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RESUMO No estágio atual de desenvolvimento da prestação jurisdicional, em que setores respeitáveis da doutrina processual reivindicam a quebra do protagonismo e do isolamento do órgão judicial, com o consequente incremento da atividade das partes em prol da criação de um ambiente democrático, de colaboração mútua e de divisão equânime de responsabilidades entre estas e o juiz, torna-se necessária a investigação acerca da importância que ganha, sob este aspecto, a conduta ética de autores, réus e de todos quantos participem do processo, para que esta mudança de paradigmas possa ser efetivamente implementada. O presente trabalho, vinculado à linha de pesquisa “acesso à justiça” do curso de Mestrado em Direito Público e Evolução Social da Universidade Estácio de Sá, estuda as origens da centralização das atividades processuais na figura do juiz (em especial a doutrina instrumentalista do processo) e as vertentes doutrinárias que sustentam a necessidade de ampliação da atuação das partes, através de ideias como comparticipação e policientrismo processual, tudo com vistas a demonstrar que, para além do protagonismo judicial – cuja atenuação se apresenta como premissa – o ambiente democrático que se pretende ver instaurado somente se tornará possível por meio da efetiva imposição às partes de deveres éticos, como os de lealdade e de veracidade e pela necessidade premente de sua irrestrita observância. Palavras-chave: Protagonismo judicial. Colaboração. Processo democrático. Lealdade. Abuso do processo.

Celso Belmiro (1)

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  • RESUMO No estgio atual de desenvolvimento da prestao jurisdicional, em que setores respeitveis da doutrina processual reivindicam a quebra do protagonismo e do isolamento do rgo judicial, com o consequente incremento da atividade das partes em prol da criao de um ambiente democrtico, de colaborao mtua e de diviso equnime de responsabilidades entre estas e o juiz, torna-se necessria a investigao acerca da importncia que ganha, sob este aspecto, a conduta tica de autores, rus e de todos quantos participem do processo, para que esta mudana de paradigmas possa ser efetivamente implementada. O presente trabalho, vinculado linha de pesquisa acesso justia do curso de Mestrado em Direito Pblico e Evoluo Social da Universidade Estcio de S, estuda as origens da centralizao das atividades processuais na figura do juiz (em especial a doutrina instrumentalista do processo) e as vertentes doutrinrias que sustentam a necessidade de ampliao da atuao das partes, atravs de ideias como comparticipao e policientrismo processual, tudo com vistas a demonstrar que, para alm do protagonismo judicial cuja atenuao se apresenta como premissa o ambiente democrtico que se pretende ver instaurado somente se tornar possvel por meio da efetiva imposio s partes de deveres ticos, como os de lealdade e de veracidade e pela necessidade premente de sua irrestrita observncia. Palavras-chave: Protagonismo judicial. Colaborao. Processo democrtico. Lealdade. Abuso do processo.

  • ABSTRACT

    In the present stage of development of courts jugdements in which its claimed the break with courts being the protagonist and with their isolation, having as consequence the enhancement of the parties performance for the benefit of the creation of a democratic environment, based on mutual collaboration and on the reasonable share of responsibility between the parties and the judges, it becomes necessary the investigation of the importance gained, under such aspect, by an ethical behavior of plaintiffs, defendants as well as of anyone that takes part in the procedure, so that this change in paradigm may be effectively implemented. The work herein, linked to the study on access to justice conducted in the Masters Degree in Public Law and Social Evolution of Universidade Estcio de S, studies the origins of the centralization of the procedures in the judges figure (especially the instrumental procedure doctrine) and the doctrines that defend the need of enlargement in parties performance by means of ideas as co-participation and decentralization, all aiming to demonstrate that beyond attenuating courts protagonist role, which is presented as premise, the democratic environment intended to be put into practice will only become possible by means of the effective imposition of ethical duties to the parties as loyalty and truthfulness as well as the need of their obedience to such duties without any restriction. Keywords: Judge as protagonist. Processual co-participation. Democratic process. Loyalty. Abuse of the process.

  • SUMRIO

    INTRODUO...................................................................................................... 11 1 CONCENTRAO DE PODERES NO RGO JUDICIAL E AS PARTES COMO COADJUVANTES: A DOUTRINA INSTRUMENTALISTA DO PROCESSO COMO EMBRIO ........................................................................... 16

    1.1 As fases evolutivas do direito processual: fase sincretista, fase cientfica ou autonomista e fase instrumentalista ................................................................. 17

    1.2 Instrumentalidade do processo: propostas nucleares ................................ 21

    1.2.1 Publicizao do processo na viso instrumentalista o embrio de uma primeira vertente de concentrao de poderes: a conduo do processo ..... 23 1.2.2 A viso instrumentalista da atividade judicial na formao do provimento A superao da neutralidade ideolgica e a concentrao de poderes para alm da conduo do processo ...................................................................... 26 1.2.3 Os acertos e os erros do instrumentalismo uma viso pragmtica .... 30

    1.3 O superdimensionamento da celeridade processual e a consequente reduo da atividade das partes ...................................................................... 34

    2 A MITIGAO DO PROTAGONISMO JUDICIAL FUNDAMENTOS TERICOS PARA O INCREMENTO DAS ATIVIDADES DAS PARTES NO PROCESSO ......................................................................................................... 40

    2.1 A abertura do sistema a partir de uma perspectiva filosfica a razo comunicativa e a tica do discurso de Jrgen Habermas: limites e possibilidades de sua aplicao ao processo judicial brasileiro ....................... 42

    2.1.1 O paradigma procedimentalista de Jrgen Habermas como instrumento de mitigao do protagonismo judicial ............................................................ 43 2.1.2 Pressupostos comunicacionais gerais da argumentao: a pretendida situao ideal de fala .................................................................................... 46 2.1.3 A aplicao da teoria do discurso e do procedimentalismo habermasianos realidade brasileira: limites e possibilidades ...................... 51

    2.2 Colaborao processual, Formalismo-valorativo e modelo cooperativo de processo ........................................................................................................... 56

    2.2.1 Formalismo e o papel dos sujeitos do processo: a necessria interdependncia ....................................................................................... 58

  • 2.2.2 O contraditrio sobre a tica do formalismo-valorativo breve histrico acerca do princpio e a necessidade de seu incremento ............ 61 2.2.3 O dilema celeridade/durao razovel x modelo cooperativo do processo, sob a tica do formalismo-valorativo ........................................ 64

    2.3 A ideia de processo judicial democrtico o processo em uma perspectiva comparticipativa e policntrica ......................................................................... 67

    2.3.1 A necessidade de releitura do sistema processual: o papel do juiz e das partes - o policentrismo e a comparticipao ..................................... 69 2.3.2 O novo enfoque ao princpio do contraditrio e alguns aspectos prticos da proposta da democratizao .................................................. 73 2.3.3 O combate rapidez e celeridade como critrio nico de aferio da eficincia do sistema ............................................................................ 77 2.3.4 A necessria adeso das partes e advogados ideia da democratizao do processo .................................................................... 78

    3 O COMPORTAMENTO TICO DAS PARTES COMO PRESSUPOSTO DA COLABORAO PROCESSUAL E DA DEMOCRATIZAO DA PRESTAO JURISDICIONAL ................................................................................................. 80

    3.1 A atividade das partes vista sob o aspecto positivo: lealdade processual e dever de veracidade ......................................................................................... 81

    3.1.1 O princpio da lealdade processual: contedo ................................. 81 3.1.2 O dever de veracidade: origens e contedo .................................... 87 3.1.3 Lealdade processual, dever de veracidade e o direito estratgico de defesa: o conflito tico inter-processual .................................................... 95

    3.2 A atividade das partes vista sob o aspecto negativo: o abuso do processo e a litigncia de m-f ......................................................................................... 98

    3.2.1 O abuso do direito no plano do direito material ................................ 98 3.2.2 O abuso do direito no mbito do direito processual ....................... 106

    3.3 O princpio da lealdade e a responsabilidade por dano processual positivados no Direito brasileiro: breve anlise dogmtica a partir do texto legal................................................................................................................. 113

    3.3.1 A lealdade positivada o art. 14 do Cdigo de Processo Civil dever de probidade e vedao ao contempt of court .............................. 115

  • 3.3.2 Litigncia de m-f e responsabilidade por dano processual art. 16 a 18 do CPC e seus pressupostos de aplicao ............................................... 120

    3.4 A imprescindibilidade de um comportamento leal para o modelo cooperativo de processo e para sua efetiva democratizao ............................................ 126

    CONCLUSO .................................................................................................... 130 REFERNCIAS ................................................................................................. 133

  • INTRODUO

    Diversos so os fatores, antigos e atuais, que colaboram para a to

    propalada morosidade da prestao jurisdicional e sua alegada inefetividade, da

    mesma forma como inmeras so as tentativas apresentadas pelos estudiosos

    para a soluo do problema, todas recentemente realimentadas por fora das

    discusses levadas a efeito para a elaborao do texto do novo Cdigo de

    Processo Civil.

    As causas mais frequentemente apontadas, em coro quase

    unssono, podem ser facilmente reproduzidas: o excessivo nmero de recursos

    colocados disposio dos litigantes, bem como a possibilidade de apresentao

    dos mais variados incidentes pelas partes (especialmente a parte r), a enorme

    pletora de demandas com o mesmo fundamento de fato e de direito (e que muitas

    vezes tm solues dspares), a quantidade angustiante de processos

    distribudos a cada magistrado do pas, seu reduzido nmero de representantes, a

    falta de infra-estrutura do Poder Judicirio, a ausncia de instrumentos efetivos de

    tutela coletiva etc1.

    Porm, comum que seja olvidado um dos aspectos mais decisivos

    na atrofia do sistema de prestao jurisdicional brasileiro, vale dizer, uma de suas

    causas mais contundentes, qual seja o comportamento nocivo das partes no

    ajuizamento de demandas judiciais temerrias, de ndole unicamente emulativa,

    bem como em suas condutas procrastinatrias to comumente presentes ao

    longo de todo o processamento do feito. Cuida-se aqui, especificamente, de

    atitudes que revelam evidente descompromisso dos sujeitos parciais do processo

    com valores como lealdade, boa-f e dever de veracidade, que podem ser

    observadas tanto no plo ativo quanto no plo passivo da relao processual, 1 Na mesma linha do elenco apontado, os ensinamentos do prof. Barbosa Moreira, para quem a demora no processo se deve a uma conjugao de mltiplos fatores, dentre eles: a escassez de rgos judiciais, a baixa relao entre o nmero deles e a populao em constante aumento, com o agravante de que os quadros existentes registram uma vacncia de mais de 20%, que na primeira instncia nem a veloz sucesso de concursos pblicos consegue preencher, (...) o insuficiente preparo de muitos juzes, bem como o do pessoal de apoio, (...) a irracional diviso do territrio em comarcas, em algumas das quais se torna insuportvel a carga de trabalho enquanto noutras, pouco movimentadas, se mantm uma capacidade ociosa devesas impressionante; a defeituosa organizao do trabalho e a insuficiente utilizao da moderna tecnologia, que concorrem para reter em baixo nvel a produtividade. BARBOSA MOREIRA, Jos Carlos. O Futuro da Justia: alguns mitos in Temas de Direito Processual Oitava Srie. So Paulo: Saraiva, 2004, p.4-5)

  • 12

    tanto na atividade das partes como na de seus representantes legais, podendo

    ainda ter lugar at mesmo na postura mproba de terceiros intervenientes no

    processo.

    E as consequncias no dependem de investigao aprofundada: se

    do autor que vem a conduta desleal, observa-se, quando menos, a instaurao

    de processos que j se sabe ou se deveria saber serem destitudos de um

    mnimo de fundamento jurdico (mas at para se chegar a essa concluso no

    caso concreto necessria a utilizao e movimentao da mquina do Poder

    Judicirio). Se, por outro lado, do ru que parte a atividade contrria aos valores

    ticos do processo, tem-se o prolongamento indefinido do procedimento

    instaurado, uma vez mais com a ocupao desnecessria de todo o aparato

    judicial.

    Como exemplo do que aqui se sustenta, surge a noo de assdio

    processual (ou tambm assdio judicial), atravs do qual as partes ajuzam

    demandas ou procrastinam o andamento do processo, negam-se a cumprir

    decises judiciais, apresentam requerimento de provas e documentos novos a

    todo momento, interpem recursos e peties despropositadas e provocam

    incidentes processuais reconhecidamente infundados, tudo com o objetivo de

    incomodar a parte contrria ou impedir o reconhecimento de um seu direito2.

    Trata-se, ao fim e ao cabo, do abuso no exerccio de faculdades processuais

    inerentes ao devido processo legal, a includas o contraditrio e a ampla defesa,

    com o intuito nico de se criar obstculos efetivao da prestao jurisdicional.3

    A matria, contudo, est longe de ser novidade...

    2 Cita-se, como exemplo, recente episdio envolvendo o Jornal Folha de So Paulo e a Igreja Universal do Reino de Deus e seus fiis. Neste caso concreto, aps a publicao, em 15 de dezembro de 2007, de matria intitulada Universal chega aos 30 anos com imprio empresarial, sofreu a empresa jornalstica mais de uma centena de aes por todo o Brasil, com peties iniciais de todo assemelhadas (o que indica uma ao orquestrada), onde os fiis se diziam ofendidos pela publicao. Os pedidos apresentados eram de R$ 1.000,00, valores bem inferiores ao comumente reivindicados (o que era justificado pelo intuito de se evitarem prejuzos com eventual sucumbncia), sendo certo que as aes tinham como nica finalidade intimidar a empresa no livre exerccio de sua atividade jornalstica e faz-la despender recursos com deslocamentos e honorrios advocatcios. 3 O tema assdio processual ainda novo na doutrina do processo, sendo certo, porm, que j se encontram decises, em especial na Justia do Trabalho, onde se reconhece a sua presena, com a responsabilizao da parte que assim procedeu. Citam-se aqui dois desses processos judiciais: 1) Proc. 0173-2009-462-05-00-6 2. Vara do Trabalho de Itabuna/BA Bombril S.A. e 2) Proc. 00618-1994-037-01-00-0 37. Vara do Trabalho do Rio de Janeiro/RJ Ita S.A.

  • 13

    J em 1960, Jos Olimpio de Castro Filho, em obra que se tornaria

    um clssico sobre o tema na doutrina nacional, intitulada Abuso de direito no

    processo civil, aps exemplificar diversas situaes que caracterizou como

    abusivas, assim se manifestou4:

    Mesmo que haja outras causas, o mesmo o abuso do direito a maior determinante desse fenmeno que desanima os que tm razo, que acaba justificando a pessimista regra universal de que melhor um pssimo acordo do que uma boa demanda, que s aproveita aos espertos e sem escrpulos, e que s serve para o descrdito da Justia. Examinem-se, atentamente, de modo geral, e causar pasmo como a falta de direito, na maioria dos processos, manifesta. Podem variar os incidentes e os aspectos, mas a concluso uma s, na absoluta maioria das aes: pululam a malcia, a astcia, o erro grosseiro, a fraude mesmo, em matizes diversos que no escondem o abuso do processo.

    A seu turno e com esta mesma tica, Araken de Assis, em texto

    publicado em maio de 2010, cinqenta anos depois de Castro Filho e tecendo

    consideraes com os olhos voltados para os dias atuais, sustenta que5:

    ... na oportunidade em que surgiu o CPC de 1973, ecoava o diagnstico: nmero expressivo de processos agasalhava lides temerrias e a conduta das partes longe se encontrava da retido. (...) Esse panorama sombrio tem causas sociais profundas. No se difundiu suficientemente e com clareza a solidariedade. S isto explica que a pessoa, pilhada furtando energia eltrica, que conduta violentamente antissocial (...) sinta-se no direito de reclamar infrao privacidade, pleiteando indenizao do dano moral...6

    Vastos so os exemplos em que claramente se identifica uma

    completa subverso de valores ticos pelas partes e seus advogados no mbito

    do processo judicial, tanto na propositura da demanda quanto na sua conduo

    at o encerramento definitivo, sendo igualmente claras as consequncias de tais

    posturas para o sistema de prestao jurisdicional como um todo, gerando um

    nmero excessivo de processos pendentes de julgamento. A uma, porque as lides

    4 CASTRO FILHO, Jos Olimpio de. Abuso de direito no processo civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1960, p. 213. 5 ASSIS, Araken de. Dever de veracidade das partes no processo civil in Revista Jurdica n 391. Sapucaia do Sul: Editora Nota Dez, 2010, p. 15. 6 Situao a esta assemelhada a da ao de danos morais por protesto supostamente indevido de cheque emitido sem suficiente proviso de fundos onde a parte autora, no corpo de sua petio inicial, confessa a prtica do crime previsto no art. 171, VI do Cdigo Penal.

  • 14

    se multiplicam indevidamente; a duas, porque as que esto em curso nunca se

    encerram (ou no se encerram em um prazo razovel).

    Mas no s na administrao da mquina judiciria que se

    observa a nocividade de atitudes desleais praticadas pelos sujeitos do processo.

    Ao contrrio, a questo um tanto mais complexa por tambm interferir em ponto

    sensvel do estudo do processo e do papel desempenhado por cada um de seus

    atores, tanto no plano acadmico, como tambm em seus aspectos prticos.

    Trata-se aqui, especificamente, da necessidade de se investigar o

    comportamento das partes luz da vertente do pensamento doutrinrio-

    processual que reivindica a completa abertura do sistema de prestao

    jurisdicional a uma efetiva participao de autor e ru, com o incremento do

    contraditrio e sua elevao a princpio fundamental do processo, alm da

    insero, no processo judicial, de conceitos como colaborao e democratizao,

    sustentando-se, a partir de tais premissas, a necessidade de uma distribuio

    mais racional de tarefas e de responsabilidades entre os sujeitos do processo, em

    uma estrutura policntrica e comparticipativa.

    E a questo que se coloca absolutamente simples: como faz-lo,

    como reivindicar, de forma segura, uma maior participao dos sujeitos parciais

    no processo de formao da deciso, se das prprias partes (e de seus

    representantes), atravs de seu comportamento mprobo, que surgem os

    elementos e as razes para uma negativa peremptria?

    exatamente a investigao destas questes que se pretende levar

    a efeito no presente estudo, estruturando-se a dissertao em trs eixos

    fundamentais, correspondentes a cada um de seus captulos, intimamente ligados

    entre si por fora de um ntido movimento de fluxo e refluxo dialticos.

    Assim, tendo em vista que se objetiva analisar, nestas linhas, como

    e em que medida o comportamento tico das partes configura efetivo pressuposto

    para uma mudana de paradigmas, superadora do alegado protagonismo

    isolacionista do rgo judicial, o primeiro captulo foi dedicado exatamente ao

    estudo das origens desta concentrao de poderes, sendo a identificada a

    doutrina da instrumentalidade do processo como um de seus principais elementos

    justificadores. Neste tpico sero estudadas as fases evolutivas do direito

    processual (sincretista, autonomista e instrumentalista), apontando-se, para alm

  • 15

    da concentrao de poderes, os erros e acertos da viso instrumentalista e de

    suas propostas. E, claro, a necessidade de sua superao.

    No captulo dois, como uma espcie de contraponto ao que fora

    apresentado no tpico anterior, so apresentadas as vertentes doutrinrias que

    sustentam, com forte embasamento jurdico e filosfico, a criao, no mbito do

    processo, de um ambiente deliberativo, policntrico e democrtico, onde se abra

    espao efetiva atuao das partes, com a distribuio mais equnime das

    atividades e tambm das responsabilidades entre os sujeitos do processo. Para

    este fim, trs teorias sero analisadas, a saber: a tica do discurso de Jrgen

    Habermas e a possibilidade de sua aplicao ao direito processual brasileiro; o

    formalismo-valorativo e a ideia de colaborao processual e de processo

    comparticipativo, de autores como Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, alm de, por

    ltimo, a concepo de processo juridical democrtico, onde proposta a releitura

    do sistema processual atravs da nfase no contraditrio e do novo papel a ser

    desempenhado pelas partes e pelos rgos jurisdicionais.

    No terceiro e ltimo captulo tratada a questo dos deveres ticos

    do processo, sendo ento investigados elementos como o princpio da lealdade, o

    dever de veracidade, o abuso do processo e a litigncia de m-f, tudo com vistas

    a restar demonstrado, ao final, que no se pode falar em uma mudana de

    paradigmas, em fim de protagonismo judicial, em policentrismo, democratizao e

    incremento da atividade das partes, se estas, sem a exata conscientizao acerca

    dos seus deveres de probidade na relao processual e com seu comportamento

    muitas vezes violador de preceitos elementares de fundo tico do processo,

    mostram-se despreparadas para este novo e reivindicado modelo de prestao

    jurisdicional.

  • 16

    1 CONCENTRAO DE PODERES NO RGO JUDICIAL E AS PARTES COMO COADJUVANTES: A DOUTRINA INSTRUMENTALISTA DO PROCESSO COMO EMBRIO

    O presente captulo, de carter eminentemente introdutrio, tem por

    finalidade proceder a uma investigao comparativa do papel desempenhado

    pelas partes e pelo rgo judicial no procedimento judicial e de sua importncia

    na dinmica do processo de prestao jurisdicional. Busca-se, com efeito,

    proceder a um contraste entre as atividades hoje a cargo dos sujeitos parciais do

    processo e a sensvel concentrao de atos e de poderes na figura do

    magistrado, apresentando-se as possveis razes para uma notria diminuio,

    historicamente considerada, do munus atribudo a autores e rus, tanto na

    iniciativa quanto na conduo do processo.

    Afirma-se, inicialmente, que grande parte deste movimento

    centralizador da atividade judicial remete aos influxos da doutrina instrumentalista

    do processo, com a defendida necessidade de incremento do impulso oficial e da

    prevalncia do princpio inquisitivo sobre o dispositivo, tudo em prol da busca

    obstinada de uma efetividade que vem sendo equivocadamente associada

    celeridade processual, o que acaba por produzir a objetivao e a verticalizao

    indiscriminada das decises, conduzindo, no mais das vezes e em situaes

    excepcionais, ao menoscabo de garantias asseguradas pela Constituio Federal.

    Pretende-se, nesta quadra, a demonstrao de que necessria

    uma mudana de paradigmas na prestao jurisdicional, de forma que ainda

    que no se retorne aos extremos do processo de ndole liberal seja reafirmada a

    necessidade de efetiva participao das partes no processo de produo da

    deciso que, em ltima anlise, ir regular o conflito em que elas mesmas se

    encontram envolvidas. E o caminho indicado, como ser visto, a observncia

    tenaz de aspectos fundamentais do processo, como a obrigatoriedade de

    fundamentao das decises judiciais e, no que importa mais de perto ao

    presente estudo, o respeito ao contraditrio e ampla defesa, com a reassuno

    do papel de destaque que devem ter as partes, ao lado do magistrado, na

    produo da deciso judicial.

  • 17

    No se busca com isso, por certo, a retomada de um processo de

    ndole privada e muito menos a simples eliminao do sistema vigente, que

    possui diversos aspectos efetivamente positivos, mas sim um meio termo possvel

    entre os extremos da conduo unicamente privada, de um lado, e do crescente

    alijamento das partes do processo de tomada de deciso, de outro lado.

    Para tanto e como premissa, ser estudada, neste tpico, a origem

    instrumentalista da concentrao de poderes na figura do rgo judicial.

    1.1 As fases evolutivas do direito processual: fase sincretista, fase cientfica ou autonomista e fase instrumentalista

    Uma investigao crtica que se pretenda levar a efeito acerca das

    origens do protagonismo judicial envolve, necessariamente, a anlise evolutiva

    das fases por que passou o direito processual e pelo estudo dos institutos

    jurdicos a ele inerentes, como a noo histrica de processo e de jurisdio

    estatal. Apresentam-se, assim, como fases (etapas/momentos) da cincia

    processual as fases sincretista, a cientfica e a instrumentalista.

    A primeira das apontadas a fase sincretista (ou imanentista) do

    processo, que situada, historicamente, em momento que precede ao

    reconhecimento da chamada autonomia cientfica do Direito Processual. Nela,

    como cedio, o processo (e o direito de ao) so reconhecidos como mera

    consequncia da violao ao direito material, a que integrava (e com este se

    confundia) como um seu anexo ou um seu necessrio desdobramento.

    No se reconhece o processo, portanto, como constitutivo de uma

    relao jurdica diferente daquela relao de direito material levada a juzo e para

    a qual a parte pede a soluo estatal. No h autonomia, quer para o processo,

    como instituio, quer para o direito processual, como cincia. No possua o

    mesmo, portanto, vida prpria ou dignidade acadmica.

    O processo era visto, em suma, como mera sequncia de atos

    formais, que tinham por fim possibilitar o reconhecimento do direito material por

    meio da atuao jurisdicional do Estado, sendo denominados praxistas aqueles

    profissionais que se dedicavam ao estudo das formas processuais. No eram

  • 18

    reconhecidos, poca, elementos suficientes para a separao das normas civis

    das normas substanciais.

    Trata-se, em verdade, da concepo que est presente na maior

    parte da histria do direito processual, sendo certo que a fase sincretista e sua

    viso reducionista do processo perduram at o surgimento e propagao, em

    nvel mundial, da doutrina alem acerca do processo como relao jurdica e do

    lugar de destaque que deveria ser por ela efetivamente ocupado, o que acabou,

    ento, por dar origem a uma nova etapa de seu estudo: a fase cientfica do direito

    processual.

    Esta segunda etapa do processo (ou seu segundo momento

    metodolgico) tambm chamada de fase autonomista, onde j se passa a

    reconhecer que o direito de ao apresenta-se como realidade distinta do direito

    material para o qual se busca reconhecimento em juzo. H, com efeito, a ntida

    separao daquilo que, de um lado, representa o processo, como instituto

    autnomo e contornos prprios e, de outro lado, o direito material/substantivo

    deduzido em juzo, rompendo-se os vnculos (e a amlgama envolvendo estes

    dois conceitos) at ento vigentes na fase sincretista. Conforme salientado, o marco da criao da fase autonomista do

    processo, como amplamente reconhecido pela doutrina processual,

    representado por uma das obras mais marcantes da literatura processual, no s

    pelo tanto de carga principiolgica nela contida, mas tambm pelos efeitos

    produzidos na doutrina processualista subseqente. Trata-se do livro A teoria das

    excees processuais e os pressupostos processuais, de Oskar Von Bllow,

    escrita no ano de 18687.

    a partir do trabalho desenvolvido por Bllow8, na segunda metade

    do sec. XIX, que a interpenetrao entre os planos material e processual comea

    a se desfazer, o que possibilitou a que se chegasse, em momento posterior,

    adequada viso da autonomia do direito de ao e, via de conseqncia, do

    processo e da relao jurdica processual. Segundo o autor alemo, os critrios

    7 Posteriormente, em 1885, Bllow escreveria Gesetz und Richteramt (Lei e Magistratura), obra que exerceu profunda influencia na atividade da magistratura alem durante vrios anos. 8 Afirme-se que a doutrina de Bllow foi encampada por Enrico Tullio Liebman, que a transportou para o Brasil quando de sua chegada da Itlia, fazendo-a difundir pelos mais diversos seguimentos do direito processual brasileiro, ao que se soma, para sua propagao, a adeso fundamental de Alfredo Buzaid na elaborao do Cdigo de Processo Civil de 1973.

  • 19

    distintivos entre um e outro plano de anlise do direito eram: a) seus sujeitos; b)

    seus pressupostos e c) seu objeto.

    O processo passaria a constituir, assim, um vnculo jurdico a unir

    autor e ru em subordinao ao Estado-juiz, de quem se exigiria a prestao

    jurisdicional atravs do exerccio de um direito autnomo, o direito de ao.

    Cuida-se, correto afirmar, de momento no qual se reconhece a efetiva

    emancipao do estudo cientfico do direito processual, percebendo-se a

    natureza jurdica do processo como algo diferente da relao de direito material

    nele contida. Como decorrncia lgica destas formulaes, surge o

    estabelecimento da cincia processual como objeto de estudo prprio e valendo-

    se de mtodos prprios de anlise.

    Outrossim, a separao entre os planos do direito material (e a

    relao jurdica que guarda esta caracterstica) e do direito processual (e sua

    relao de direito pblico) acaba por revelar-se fundamental para o

    desenvolvimento da cincia processual.

    Durante esta fase, absolutamente importante da histria do direito

    processual, so fixados diversos conceitos e institutos, que se tornariam

    determinantes para a estruturao do arcabouo do processo como cincia, tais

    como o direito de ao e as condies para seu regular exerccio, a noo de

    processo como instrumento da jurisdio e seus pressupostos, alm da ideia de

    coisa julgada, constituindo, todos, referncias indispensveis para o estudo da

    matria at os dias de hoje.

    Esta a essncia da fase autonomista, tambm chamada fase

    conceitual, tendo em vista o desenvolvimento de princpios, conceitos e de uma

    metodologia prpria do direito processual, que passou ento, conforme

    salientado, a ser considerada como cincia independente, regida por princpios e

    institutos prprios.

    A significativa evoluo decorrente da autonomia do processo

    acabou, porm, por criar alguns inconvenientes que seus precursores no seriam

    capazes de identificar aprioristicamente. Trata-se daquilo que se revelou como um

    distanciamento indesejvel do mundo do processo em relao realidade, o que

    acabaria por transformar a cincia processual e o processo em instrumentos de

  • 20

    questionvel serventia, afirmando-se, em dado momento histrico, a sua pouca

    praticidade.

    Assim, retrospectivamente considerado o problema, comeam a

    surgir questionamentos sobre a utilidade do processo jurisdicional estatal como

    instrumento hbil a garantir uma justa, rpida e efetiva soluo para os litgios que

    passaram a surgir na sociedade, muitas vezes em crescimento exponencial. A

    doutrina do processo passa a perceber que a cincia processual, apesar do nvel

    de desenvolvimento conceitual a que chegara, j no conseguia atingir os fins

    para os quais fora criada, indicando-se fatores dos mais diversos matizes para a

    ineficincia do sistema, como a morosidade crnica do Poder Judicirio, o alto

    custo do processo dificultando o acesso justia, a supervalorizao de tcnicas

    em detrimento do resultado justo para a demanda, a inexistncia de instrumentos

    de tutela coletiva de direitos etc.

    Este alheamento por que passou o processo (e o direito processual)

    constituiu terreno frtil para a propagao de novas ideias, que reaproximariam a

    cincia processual no s da realidade da qual havia se desgarrado, mas tambm

    do direito material e do contexto social em que deveria estar inserido. Surge, por

    este caminho aberto, a terceira e mais contundente (sob o ponto de vista que aqui

    se pretende desenvolver) das fases do direito processual: a fase instrumentalista,

    cujo cerne a idia da instrumentalidade do processo, que passa a figurar como

    centro em torno do qual vo girar princpios, institutos e solues, revelando-se

    como essencial a busca dos fins em virtude dos quais os atos processuais

    havero de ser praticados, pretendendo-se com isso a criao de um sistema

    jurdico-processual apto a produzir os resultados prticos desejados e passando o

    processo a servir como instrumento de atuao do direito material, com a efetiva

    insero do mesmo no seio da sociedade em que pretende atuar. criada, assim,

    a fase instrumentalista do processo, fase da efetividade (ou de acesso justia)

    ou ainda a fase do direito processual de resultados.

    Contudo, apesar de apresentar propostas louvveis em diversos de

    seus aspectos e de ter, em perspectiva histrica, apresentado enormes avanos

    no estudo do processo e na sua efetividade, os desvios verificados na

    implementao do instrumentalismo acabam por trazer a reboque uma carga

    indesejvel de questionamentos acerca da legitimidade dos efeitos que acabou

  • 21

    por produzir na prestao jurisdicional, cuja faceta mais visvel talvez seja a forte

    concentrao de poderes nas mos do magistrado e a consequente e inevitvel

    reduo da atividade das partes no processo judicial. Trata-se aqui da

    identificao de uma necessria correo de rumos, de forma a trazer de volta s

    propostas do instrumentalismo a importncia e a dignidade que sempre lhe foram

    inerentes.

    Para um completo entendimento daquilo que aqui afirmado, os

    principais aspectos da doutrina instrumentalista do processo sero abordadas nos

    tpicos seguintes.

    1.2 Instrumentalidade do processo: propostas nucleares

    Cndido Dinamarco, merecidamente um dos mais renomados

    juristas brasileiros, no prefcio 1. edio de sua obra A Instrumentalidade do

    Processo obra-chave que serve como marco do movimento instrumentalista no

    Brasil chama a ateno, j no ano de 1986, para o que denominou de

    inoperatividade do sistema processual, uma vez que estruturado em uma base

    lgica e coerente, porm dissociada do mundo em que deveria atuar, propondo o

    autor, ento, uma abordagem do fenmeno a partir dos objetivos a perseguir e

    dos resultados com os quais ele h de estar permanentemente comprometido.

    Enfim, uma nova perspectiva, segundo a qual o sistema processual deveria se

    abrir, entre outros, aos influxos da poltica e da sociologia jurdica, atravs de

    seus pensamentos publicistas e solidaristas9.

    Propunha-se, ento, uma desmistificao das regras do processo e

    de suas formas, com o que se alcanaria a otimizao do sistema, tudo com

    vistas efetividade do processo. Buscava-se assim a formao de um novo

    pensamento que tinha por finalidade aperfeioar o mecanismo processual, at

    porque a eficcia do direito processual seria medida em funo de sua utilidade

    para o ordenamento e para a pacificao social10.

    Com base nessas premissas, lanava-se a ideia de que a jurisdio

    no possua como nica finalidade a soluo dos conflitos de interesse, mas, ao

    9 DINAMARCO, Cndido Rangel. A instrumentalidade do processo. 14. ed. So Paulo: Malheiros, 2009, p. 11 10 BEDAQUE, Jos Roberto dos Santos. Direito e Processo. A influncia do direito material sobre o processo. 5. ed. So Paulo: Malheiros, 2009, p. 175.

  • 22

    contrrio, apresentava outros objetivos, outros escopos (conforme assim se

    preferiu denominar), a saber, em breve sntese: o escopo social (pacificao com

    justia, educao e orientao), o escopo poltico (liberdade, afirmao da

    autoridade do Estado e de seu ordenamento) e o escopo jurdico (concreta

    atuao da vontade abstrata do Direito). Era sugerida, assim, uma nova faceta da

    jurisdio, que adquiriria, a partir de ento, funes metajurdicas e, para alcanar

    tais escopos, estaria o Estado-juiz autorizado a fazer inserir, no processo de

    prestao jurisdicional, os princpios e valores que se apresentassem como

    vigentes na sociedade e amplamente aceitos pela coletividade, em um

    determinado momento de sua histria11.

    Defendia, assim, a doutrina instrumentalista, a superao das

    colocaes puramente tcnico-jurdicas da fase conceitual do direito processual,

    devendo os processualistas envolver-se na crtica sociopoltica do sistema, que

    transforma o processo, de instrumento meramente tcnico, em instrumento tico e

    poltico de atuao da justia substancial e garantia das liberdades, dando integral

    cumprimento sua vocao primordial que a efetiva atuao dos direitos

    materiais12. Em outras palavras, o abandono do tecnicismo obstaculizante que

    dominava o pensamento jurdico na fase autonomista iniciada por Bllow, mas

    que, segundo afirmado, j havia superado seu ciclo de vida. Nas palavras de

    Cndido Dinamarco13, sobre o processo e sua fase autonomista, no se trata de

    renegar as finas conquistas tericas desse perodo que durou cerca de um

    sculo, mas de canaliza-las a um pensamento crtico e inconformista, capaz de

    transformar os rumos da aplicao desse instrumento.

    Por fim, cabe asseverar, quanto a esta breve recapitulao de cunho

    histrico e introdutrio, que o que pretendeu a doutrina instrumentalista, em suas

    valiosas proposies, no foi, ao menos em tese e na sua concepo original, um

    11 Esclarea-se, por oportuno, que no se deve confundir a instrumentalidade do processo com o princpio processual da instrumentalidade das formas, previsto no art. 154 do CPC, tambm chamado princpio da liberdade das formas, segundo o qual somente se vai decretar a nulidade de um ato por vcio de forma se o mesmo no atingir sua finalidade ou, uma vez atingindo, vier a causar prejuzo a qualquer das partes. Referido princpio, apesar de integrar, como uma de suas facetas, a proposta maior de trabalho que a instrumentalidade do processo, no pode ser com a mesma identificado. No h como tomar o todo por apenas uma de suas partes... 12 GRINOVER, Ada Pellegrini. O processo em evoluo. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1998, p. 9. 13 DINAMARCO, ibidem, p. 366.

  • 23

    desaparecimento das formalidades do processo da ordem jurdica, mas sim que

    fossem desmistificados os princpios, os critrios, as regras e, em ltima anlise,

    desburocratizado o prprio sistema. Os problemas, porm, principiaram a surgir

    com a deturpao, no plano prtico, dos objetivos tericos inicialmente traados.

    1.2.1 Publicizao do processo na viso instrumentalista o embrio de uma primeira vertente de concentrao de poderes: a conduo do processo

    A ideia de interesse pblico na prestao jurisdicional est no centro

    da doutrina instrumentalista e apresenta, como decorrncia lgica e natural, o

    movimento preconizado e sustentado por seus defensores de publicizao do

    processo, com a necessria superao do privatismo reinante na fase sincretista

    do processo.

    Por esta proposta, a cincia processual e, via de conseqncia, o

    prprio processo passariam a girar em torno da busca da concretizao de

    interesses pblicos na atividade judicial, associando-a a uma vertente poltica que

    se estabelece atravs de uma alegada insero de princpios e garantias

    processuais previstas constitucionalmente, alm da sensibilidade que se passa a

    exigir do juiz para os problemas sociais.

    Desta forma, o processo, que at ento era examinado numa viso

    puramente introspectiva, sendo considerado mero instrumento tcnico destinado

    nica e exclusivamente a servir de veculo para que a jurisdio pudesse ser

    prestada, passa a ser analisado a partir de um ponto de vista deontolgico e

    teleolgico, aferindo-se os seus resultados na vida prtica, pela justia que fosse

    capaz de proporcionar no caso concreto. Sob esta tica, o processualista

    moderno, consciente dos nveis expressivos de desenvolvimento tcnico-

    dogmtico de sua cincia, deslocou seu ponto de vista interpretativo, passando a

    ver o processo a partir de um ngulo externo, examinando-o em seus resultados

    junto aos consumidores da justia.14

    Pode-se afirmar, assim, que esta conotao pblica adquirida pelo

    processo decorrncia natural do surgimento do Estado social intervencionista e 14 Ao final, remata a professora Ada Pellegrini Grinover com a considerao de que, a partir de ento, inicia-se a etapa instrumentalista do processo (GRINOVER, op. cit., p. 6)

  • 24

    de suas propostas para a ordem jurdica, em especial os ditames de dignidade

    constitucional atravs dele inseridos e as suas conseqncias publicizadoras

    refletidas nas instituies processuais.

    A natureza instrumental do processo impe, portanto, que todo o

    sistema processual receba os influxos desta inspirao pblica, para que possa o

    processo exercer a funo de instrumento do Estado para a realizao de suas

    finalidades e, em especial, para a concretizao do direito material.

    Neste sentido, sustenta a doutrina instrumentalista, no que aqui

    identificado como uma retirada de poderes das partes e concentrao na figura do

    juiz, que o processo no pode ficar a merc do destino que os contendores

    resolvam por bem lhe dar, uma vez que esta situao pode ensejar violao da

    isonomia das partes, com prevalncia de uma, mais forte, sobre a outra, o que

    revelaria, segundo se afirma, uma completa deturpao do exerccio da jurisdio,

    atividade puramente estatal e pblica, por excelncia. Da a autorizao para

    interveno judicial, minimizando o valor da autonomia da vontade dos litigantes

    no processo.

    Trata-se, assim, da alegada necessidade de se redimensionar o

    valor do impulso oficial, incrementando-o (tendncia observada na prtica

    judiciria do pas) e de uma mitigao, quando menos, do princpio da

    disponibilidade processual, como formas eficazes de atender a esse movimento

    de publicizao do processo e da prestao jurisdicional, orientao metodolgica

    que deita suas razes no direito processual constitucional que, inspirado na Carta

    da Repblica, trata o processo, repita-se, como instrumento no propriamente (e

    apenas) da jurisdio, mas dos valores presentes em toda a ordem jurdica e

    social.

    Se certo, por um lado, que a viso do interesse pblico a ser

    perseguido pelo processo aponta para sua valorizao como instrumento de

    atuao do Estado, por outro lado exige, segundo a doutrina instrumentalista: a) a

    superao do que comumente chamado de tecnicismos processuais, b) a

    necessria prevalncia do princpio inquisitivo sobre o dispositivo e c) a

    superao pelo juiz de posturas conservadoras e comodistas quanto sequncia

    de atos do processo. Cada um destes aspectos abaixo analisado, de forma

    itemizada.

  • 25

    a) superao de tecnicismos processuais - quanto ao primeiro dos

    aspectos, a defendida superao dos tecnicismos representa a negao da tica

    do processo como um valor em si mesmo. Prope-se, em decorrncia disto, um

    afastamento dos exageros processualsticos, extraindo-se do processo todo o

    proveito possvel na busca da consecuo das finalidades do sistema, alm de

    dever o instrumento ser apto, sob este ponto de vista, a cumprir integralmente

    toda a sua funo scio-poltico-jurdica, atingindo em toda a plenitude os seus

    escopos institucionais, tudo de forma a que se alcance a efetividade da jurisdio.

    Segundo este enfoque, a tcnica processual muitas vezes se depara

    com situaes e exigncias contrapostas que devem ser conciliadas,

    especialmente no que toca ao desenvolvimento do processo e dos atos

    processuais, havendo a necessidade de transigncias em busca de um escopo

    maior, que a efetividade do processo e da prestao jurisdicional.

    b) prevalncia do princpio inquisitivo sobre o dispositivo - quanto ao

    segundo dos aspectos mencionados, qual seja o significativo incremento do

    princpio inquisitivo, ele, conforme defendido pelo instrumentalismo, decorrncia

    natural da publicizao do processo. Tratar-se-ia, assim, de um reflexo, no

    processo, do crescimento das tarefas assumidas pelo Estado contemporneo

    impondo-se, tambm ao Estado-juiz, uma efetiva participao superadora da

    inrcia clssica do agente jurisdicional. Assim, o incremento do espao ocupado

    pelo princpio inquisitivo, que expansivo e absorvente15, ainda que no se

    chegue aos extremos da jurisdio ex officio, representa, segundo se sustenta,

    significativa conquista do processo civil moderno, em busca de sua efetividade

    jurdica, poltica e social. Devem assim ser alteradas as frmulas tradicionais de

    equilbrio entre o princpio dispositivo e o inquisitivo, sobrelevando-se a

    importncia at ento dada a este.

    c) superao pelo juiz de posturas conservadoras - o terceiro dos

    aspectos mencionados quanto publicizao do processo (at como

    conseqncia do incremento do princpio inquisitivo) a superao da inrcia e do

    15 DINAMARCO, op. cit., p. 341.

  • 26

    conservadorismo na atividade cotidiana dos juzes, tendo uma vez mais como

    fundo, a busca da efetividade16.

    Neste sentido, o valor do procedimento seria, em si, relativo,

    devendo o juiz ter participao mais efetiva na conduo do processo, tudo com

    vistas a fazer valer sua obcecada preocupao com a justia. So os magistrados

    os condutores do processo e o sistema no lhes tolera atitudes de espectador17,

    sendo certo que, para a efetividade do processo e seu tratamento como coisa do

    Estado, o juiz no se pode dispensar de participar efetiva e ativamente da prova e

    de todas as etapas do procedimento.

    esta, em sntese, a abordagem instrumentalista da atividade que o

    juiz deve ter no curso do processo, em decorrncia, repita-se, da publicizao

    observada neste e da escalada do princpio inquisitivo, que o convoca a assumir

    uma postura proativa ao longo de todas as fases do procedimento, tudo com

    vistas consecuo de um bem jurdico maior que a efetividade do processo.

    Inequvoco, portanto, sob esta tica, a concentrao de poderes

    verificada na conduo do processo, sendo certo que, ainda que no seja

    integralmente retirada das partes a iniciativa processual (tendo em vista que o

    elemento detonador da jurisdio, o exerccio do direito de ao, ainda depende

    da indispensvel iniciativa da parte), passa ela a sofrer forte influncia da

    atividade reguladora do juiz em diversos de seus aspectos, como se verifica no

    direito probatrio e na observncia (e/ou supresso) de etapas procedimentais.

    1.2.2 A viso instrumentalista da atividade judicial na formao do provimento A superao da neutralidade ideolgica e a concentrao de poderes para alm da conduo do processo

    Pode-se afirmar, sem sombra de dvidas, que a doutrina

    instrumentalista devota grande parte dos problemas por que passou (e passa) o

    processo em especial seu atraso na comparao com o direito constitucional e

    outros ramos das cincias sociais ao preconceito em considerar-se o direito

    processual como uma cincia neutra e o processo como mero instrumento

    16 S se pode falar em efetividade do processo se o resultado for socialmente til, proporcionando acesso ordem jurdica justa. BEDAQUE, op. cit., p. 176. 17 DINAMARCO, op. cit., p.339.

  • 27

    tcnico, tudo a servir, segundo afirmado, de suposto fundamento a posturas e

    mentalidades conservadoras.

    Atacando frontalmente o mito da neutralidade, sustenta Dinamarco18

    que o processo e deve ser influenciado pela ideologia, uma vez que o juiz

    membro da sociedade e sua escolhas so escolhas que a prpria sociedade vem

    a fazer, atravs dele, no processo, j que este, uma vez liberto de qualquer

    ideologia (no sistema de que lei lei, to caro ao positivismo jurdico), acaba por

    compactuar com o abuso poltico do direito processual civil. No outro o

    entendimento de Jos Roberto Bedaque, para quem o processualista deve

    conscientizar-se da natureza tica de sua cincia, reconhecendo a identidade

    ideolgica entre processo e direito material.19

    A neutralidade , assim, tida como um obstculo s evolues

    sociais e polticas, devendo o juiz se libertar deste preconceito conservador,

    especialmente porque trabalha-se com Cdigos com estruturas arcaicas (o de

    Processo Civil de 1973, mas inspirado no de 1939, do Estado Novo) e, neste

    sentido, revela-se o processo civil de ndole burocrtica e formalista como um

    entrave prolatao de decises justas.

    Prope o instrumentalismo, ento, uma ruptura com os tecnicismos

    burocrticos, em uma nova forma de pensar e agir no processo, qual devem

    aderir todos os juzes, para que sua atividade jurisdicional adquira a exata

    dimenso dos tempos em que a exercem. Da a necessidade de pensar

    ideologicamente o processo, uma vez que, no tendo ele objetivos prprios, deve

    necessariamente estar merc das mutaes constitucionais, polticas,

    econmicas e jurdicas da sociedade.

    Na concepo ento sustentada no se pode, portanto, dissociar

    ideologia de processo. Ambos devem caminhar juntos, abrindo-se o sistema,

    segundo o prudente arbtrio e critrio do magistrado, ao influxos dos princpios e

    valores consagrados na ordem poltico-constitucional e no seio da sociedade.

    Neste sentido, Artur Csar de Souza, em sua obra A parcialidade

    positiva do juiz defende que, para se romperem as barreiras externas que pem

    em dvida a factibilidade dos resultados buscados com a deciso proferida no

    18 DINAMARCO, op. cit., p. 40 19 BEDAQUE, op. cit., p. 175

  • 28

    processo, so necessrias medidas que permitam suplantar os fatores

    socioeconmicos que interferem na realizao de um processo justo e quo para,

    mais adiante, sustentar que, para que se atinja esta evoluo, devem ser

    inseridas as conquistas propugnadas pelo modelo legtimo de acesso justia,

    cujos princpios ferem gravemente o velho edifcio do processo legal, para torn-

    lo mais poroso, funcional, sincero e realista.20

    A partir desta premissa, pode-se afirmar que o eixo central da

    doutrina instrumentalista do processo representado e no h quanto a isso

    qualquer sombra de dvidas na figura do magistrado, em torno do qual devem

    girar todos os atos processuais e de cuja sensibilidade deve decorrer a deciso

    do caso concreto, o que traz como consequncia a ntida reduo da importncia

    do papel a ser desempenhado pelas partes no processo de construo da

    deciso. Sobre o tema, uma vez mais, a posio enftica de Cndido Dinamarco21

    sobre o tema:

    Deve ser reconhecido poder aos juzes, guardies fiel da constituio e responsveis por sua interpretao fiel e cumprimento estrito, funcionando como legtimo canal atravs de que o universo axiolgico da sociedade impe as suas presses destinadas a definir e precisar o sentido dos textos, a suprir-lhes eventuais lacunas e a determinar a evoluo do contedo substancial das normas constitucionais.

    Ou ainda, na mesma obra e em sequncia: Imbudo dos valores dominantes, o juiz um intrprete qualificado e legitimado a buscar cada um deles, a descobrir-lhes o significado e a julgar os casos concretos na conformidade dos resultados dessa busca e interpretao.(...) Por isso que, quando os tribunais interpretam a Constituio ou a lei, eles somente canalizam a vontade dominante, ou seja, a sntese das opes axiolgicas da nao.

    Defende o instrumentalismo processual, assim, que o juiz deve

    superar as barreiras da viso interna e limitativa do processo e abrir os olhos ao

    que ocorre para alm dos autos, pesquisando e colhendo da vida poltica e social

    os valores majoritariamente aceitos. a jurisdio, como manifestao do Estado

    Social Contemporneo buscando a reduo ou eliminao das diferenas

    20 SOUZA, Artur Csar. A parcialidade positiva do juiz. So Paulo: RT, 2008, p. 217-218. 21 DINAMARCO, op. cit., p. 46

  • 29

    econmicas e sociais e atribuindo ao valor justia um contedo efetivo e

    substancial.

    Segundo esta mesma concepo, do magistrado no se deve

    esperar estrita vinculao lei. Elas envelhecem e podem at mesmo ser mal

    feitas. As leis representam, quando muito, um norte indicativo do que determinado

    grupo social entendeu como justo, em determinada fase de sua evoluo. Porm,

    no deve o juiz pautar-se somente por ela, mas sim adotar uma postura de

    abertura s mutaes axiolgicas verificadas na sociedade (interpretao

    sociolgica/axiolgica), valendo-se de boa dose de sensibilidade. Do contrrio,

    estar perigosamente se afastando dos critrios de justia reinantes na

    comunidade onde est inserido.

    H assim a defesa da tese de que o juiz deve dispor-se a pensar

    como mandam os tempos, de modo a que tenha a exata noo dos objetivos de

    todo o sistema e, para que possam os mesmos ser alcanados, deve ser

    intensamente usado o instrumento processual. Um novo mtodo de pensamento,

    enfim, de modo a se tomar o processo a partir de sua facete teleolgica,

    reconhecendo-se sua misso fundamental diante das instituies polticas e da

    sociedade.

    Nos exatos termos utilizados pelo ilustre professor paulista22: preciso que o juiz valore situaes e fatos trazidos a julgamento de acordo com os reais sentimentos de justia correntes na sociedade de que faz parte e dos quais ele legtimo canal de comunicao com as situaes concretas deduzidas em juzo. (...) Sempre que os textos comportem mais de uma interpretao razovel, dever do juiz optar pela que melhor satisfaa ao sentimento social de justia do qual portador (ainda que as palavras da lei ou a mens legislatoris possam insinuar soluo diferente). Ele h de interpretar a prova e os fatos, tambm por esse mesmo critrio.

    Busca a doutrina instrumentalista, ao fim e ao cabo, a superao do

    positivismo deducionista, onde o processo se abre para os influxos de valores que

    no esto expressamente contemplados na lei. No se trata, portanto, de uma

    simples proposta de interpretao sistemtica, mas sim de uma nova viso que,

    sem chegar ao nvel do direito alternativo, busca trazer para dentro do processo

    22 DINAMARCO, op. cit., p. 378.

  • 30

    solues no expressamente previstas na lei, de modo a torn-lo socialmente til

    e efetivo instrumento do direito material.

    1.2.3 Os acertos e os erros do instrumentalismo uma viso pragmtica

    Se certo afirmar-se, por um lado, que o discurso central da

    doutrina instrumentalista girava inicialmente em torno da proposio de que no

    fossem priorizadas as regras processuais em detrimento do direito material, por

    outro lado necessrio que se apontem os graves desvios observados em sua

    aplicao prtica, corrigindo-se o seu curso e retornando-se rota inicialmente

    traada.

    Assim, foroso reconhecer que a doutrina instrumentalista

    atravs de seus dignos representantes por todo o pas acertou em muitos e

    significativos pontos, dentre os quais se pode apontar, em perspectiva histrica, o

    resgate do processo do mundo ideal e distanciado da realidade em que vivia,

    transformando-o em efetivo instrumento de atuao do direito material, atravs da

    superao de tecnicismos e formalidades que o tornavam extremamente

    burocrtico, a ponto de frustrar as legtimas expectativas de quem dele

    pretendesse se socorrer.

    A perspectiva iniciada pela doutrina instrumentalista trouxe,

    correto afirmar, um novo enfoque sobre a prestao jurisdicional e o sobre o

    modo se produzi-la, colocando o direito material no seu devido lugar de destaque

    e municiando o processo judicial de meios necessrios a que se tornasse efetivo.

    Seu valor, portanto, inegvel.

    No mesmo sentido, pode-se dizer que esta vertente de pensamento

    acerca do direito processual vai ao encontro da nova frmula de aplicao do

    Direito que teve significativo desenvolvimento a partir da Constituio da

    Repblica de 1988, qual seja a vasta utilizao de princpios gerais e de normas

    abertas, que deveriam, no caso concreto, sofrer a aplicao interpretativa e

    integrativa do juiz, na busca da soluo mais justa para o conflito de interesse.

    Em suma, os mritos da doutrina instrumentalista so muitos e

    devem ser reconhecidos, sob pena de se cometer profunda injustia, a partir de

    uma viso maniquesta de suas proposies e dos resultados de sua

  • 31

    implementao, sendo certo que iniquidade corriqueira e j identificada a

    atribuio ao instrumentalismo de absoluta responsabilidade (como se fosse um

    seu embrio) pelo crescente ativismo judicial ou como eventual pano de fundo

    para o direito livre, como se, em algum momento ou por algum de seus

    defensores, tivesse sido sustentada a possibilidade de o juiz julgar contra a lei ou

    to-somente de acordo com a sua conscincia do que seja justo. A imputao, ao

    menos quanto a esta correlao equivocada, no parece ser de todo justa23.

    Ocorre que, por outro lado, tambm no se pode ignorar os

    equvocos e desvios de sua aplicao prtica, presumivelmente no imaginados

    pelos estudiosos e defensores daquela escola quando da formulao de suas

    propostas. O principal deles, para efeito que se pretende sustentar ao longo do

    presente estudo, a sensvel concentrao de poderes nas mos do magistrado

    e uma correlacionada diminuio da atuao das partes no processo de produo

    da deciso judicial.

    Ao colocar o magistrado como centro em torno do qual devem

    gravitar todos os atos do processo e lhe atribuir o papel de meio de corporificao

    dos valores reinantes em uma determinada sociedade, a doutrina instrumentalista

    acaba por criar uma noo, se no equivocada ao menos indesejvel, de que o

    juiz o protagonista nico da relao processual, devendo as partes estarem

    sempre a reboque, olvidando-se, neste contexto, que o processo visa

    composio do conflito em que elas mesmas se encontram envolvidas, que a

    deciso a ser proferida ir produzir efeitos na sua esfera jurdica de interesses e

    que a primeira fase do processo civil era exatamente a de um processo de

    partes, que dele poderiam dispor. Por certo que no se pretende, aqui, sustentar

    a volta a esta primeira fase e dar as costas a tudo que j se reconheceu como

    verdadeira e legtima evoluo, mas sim a indicao de que o protagonismo

    judicial absoluto, acaba por reduzir drasticamente o papel das partes no processo

    civil, em situao absolutamente anti-isonmica.

    23 A liberdade do juiz encontra limite nos ditames da lei e dizer que esta precisa ser interpretada teleologicamente para fazer justia e que o juiz direciona sua interpretao pelos influxos da escala axiolgica da sociedade no significa postular por algo que se aproxime da escola do direito livre. No seria correto imputar esse exagero ao pensamento instrumentalista.(...) Eventuais exageros dos operadores do sistema processual sejam debitados a eles e no ao instrumentalismo. (DINAMARCO, op. cit., p. 379)

  • 32

    A questo torna-se especialmente relevante quando se observa o

    papel que o Estado-juiz passou a desempenhar na sociedade contempornea

    onde, diante da ineficincia de diversos setores da atividade estatal, passou-se a

    buscar o judicirio como provedor de instrumentos de exerccio de cidadania que

    o executivo revelou-se incapaz de fornecer atravs de polticas pblicas

    adequadas e efetivamente comprometidas com o desenvolvimento social. Todo

    este contexto acabou por permitir a atribuio ftica, diga-se de um papel

    muito particular ao Judicirio, postulando-se a implementao de igualdade social

    atravs do juiz e no no mbito da democracia direta ou representativa.

    Neste quadro que se revela o poder que hoje atribudo ao juiz,

    instado que a tratar de questes que, por certo, competiriam a outros poderes

    institudos, substituindo-se o exerccio direto de cidadania no mbito de uma

    sociedade democrtica, por prestao jurisdicional via processo judicial.

    Na mesma linha do que aqui se sustenta, quanto ao crescimento da

    importncia do papel desempenhado pelo juiz, as palavras de um de seus mais

    dignos representantes, o prof. Jos Renato Nalini, para quem24:

    Aceitar a plenitude da funo interpretativa do juiz implica conceder a ele larga margem de liberdade na indagao do sentido da norma. Se isso j era admitido quando se pressupunha prevalncia do legislativo, como emissor da vontade geral, inverteu-se o plo de relevncia quando o parlamento s produz leis de circunstncias. A volpia na produo de normatividade por um poder que no deveria faz-lo o Executivo e a transformao do parlamento em cartrio de homologao de interesses localizados, sobrecarregou o juiz de responsabilidades (...) A lei contempornea algo imperfeito e a nica possibilidade de vir a ser aplicada sem causar injustias o intelecto do juiz. Ele ir decodific-la, complet-la, aperfeio-la, tirar dela o sentido possvel. (NALINI, 2001, p. 267-269)

    Porm, as omisses verificadas em determinado Poder da Repblica

    no podem autorizar, em um Estado Democrtico de Direito, que outro Poder

    constitudo lhe faa as vezes, invadindo suas atribuies. Neste sentido, as notas

    esclarecedoras de Antoine Garapon25:

    O espao simblico da democracia emigra silenciosamente do Estado para a Justia. Em um sistema provedor, o Estado todo-poderoso e pode tudo preencher, corrigir, tudo suprir. Por isso, diante de suas falhas, a esperana se volta para a justia. ento nela (...) que se

    24 NALINI, Jos Renato. A rebelio da toga. Campinas: Milenium, 2001. p. 267-269. 25 GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia. Rio de Janeiro: Revan, 2001, p. 47-48.

  • 33

    busca a consagrao da ao poltica. (...)A posio de um terceiro imparcial compensa o dficit democrtico de uma deciso poltica agora voltada para a gesto e fornece sociedade a referncia simblica que a representao nacional lhe oferece cada vez menos. O juiz chamado a socorrer uma democracia na qual um legislativo e um executivo enfraquecidos, obcecados por fracassos eleitorais contnuos, ocupados apenas com questes de curto prazo, refns do receio e seduzidos pela mdia, esforam-se em governar, no dia-a-dia, indiferentes e exigentes, preocupados com suas vidas particulares, mas esperando do poltico aquilo que ele no sabe dar: uma moral, um grande projeto. (...) , portanto, a, na evoluo do imaginrio democrtico, que se devem buscar as razes profundas da asceno do juiz. (grifos atuais)

    Assim que, se na concepo clssica e simplista de processo

    judicial com simples soluo de conflito intersubjetivos j se vislumbrava a

    necessidade de superao do isolamento do juiz protagonista, com muito mais

    razo a premncia pela mudana de paradigma se faz presente diante desta nova

    situao, tendo em vista os papis faticamente incorporados pelo magistrado na

    moderna estrutura da prestao jurisdicional.

    No se pode mais, sob qualquer argumento, desprezar a efetiva

    participao das partes (e seus advogados) na formao do provimento, em prol

    de um protagonismo judicial absoluto e excludente, sob pena de retirar-se a

    legitimidade da deciso proferida. Nas palavras de Dierle Nunes26:

    a degenerao de um processo governado e dirigido solitariamente pelo juiz, (...), gerar claros dficits de legitimidade, que impediro uma real democratizao do processo, que pressupe uma interdependncia entre os sujeitos processuais, uma co-responsabilidade entre estes e, especialmente, um policentrismo processual.

    O modelo estrutural de um processo que se pretende democrtico

    no pode mais se sustentar em torno de uma nica pessoa, a quem se outorgam

    todos os poderes de, unilateralmente, decidir sobre o que bom para todos. O

    processo e a prestao jurisdicional precisam de uma nova atitude, sendo certo

    que eventual deciso que apele apenas e to-somente para o sentimento, a

    conscincia, o convencimento, o prudente arbtrio do juiz no contemplar o

    paradigma democrtico do direito, fundamental legitimao das decises

    judiciais.

    26 NUNES, Dierle Jos Coelho. Processo jurisdicional democrtico. Curitiba: Juru, 2008, p. 194.

  • 34

    No se pretende, conforme salientado, nem o retorno ao primeiro

    modelo de processo, que era o do processo de partes, nem a fase social do

    processo, do juiz inquisitor, que dispe do processo para fazer jurisdio, mas sim

    um processo judicial efetivamente democrtico, com a realce importncia do

    princpio consititucional do contraditrio, com a indispensvel anlise criteriosa

    dos argumentos apresentados pelas partes e com uma razovel prestao de

    contas, pelo rgo judicial, acerca da deciso proferida.

    A sobrevalorizao do papel do magistrado na estrutura organizacional do

    Estado no autoriza mais que a deciso seja um ato unilateral, exigindo-se, mais

    do que nunca, uma efetiva fundamentao, clara e objetiva, das decises e

    principalmente para efeito do que abordado no presente estudo a necessidade

    de se abrir o processo judicial para o espao dialgico, possibilitando-se s partes

    a apresentao de seus argumentos, observando-se a estrutura dialtica do

    processo e assegurando-se a ampla defesa, restando assim como absolutamente

    excepcionais as hipteses em que a situao ftica de urgncia ou de possvel

    ineficcia da deciso autorize a sua superao.

    Argumentos de celeridade processual, de efetividade da jurisdio e de

    necessidade de se observar o princpio constitucional da durao razovel do

    processo no autorizam que se faa tbula rasa de outros tantos princpios e

    direitos fundamentais, como o direito de ao (e de obter uma resposta

    fundamentada do Estado ao exerccio deste direito) e o direito ao devido processo

    legal, sem que isso represente a defesa intransigente de uma dilao meramente

    procrastinatria do processo. Sobre a questo, torna-se imprescindviel a

    abordagem da busca incessante da celeridade como nico critrio para aferio

    da efetividade do sistema de prestao jurisdicional, tema investigado no tpico

    seguinte.

    1.3 O superdimensionamento da celeridade processual e a consequente reduo da atividade das partes

    Apresentadas que foram as consideraes acerca da diminuio da

    participao das partes no processo judicial por fora de uma concentrao de

    atividades na figura do juiz, cumpre que se investigue uma outra (e

    correlacionada) fonte de esvaziamento da importncia das mesmas no processo

  • 35

    de prestao jurisdicional, qual seja, a busca desenfreada pela celeridade

    processual, que acaba por sobrepor-se, em determinadas situaes especficas,

    direitos fundamentais previstos na Carta da Repblica.

    Como exemplos de situaes concretas daquilo que aqui afirmado,

    citam-se as reformas processuais havidas no Cdigo de Processo Civil desde o

    ano de 1992, em movimentos cclicos que tiveram como objetivo fundamental a

    to propalada efetividade do processo, atravs da atribuio de celeridade

    prestao jurisdicional, sendo certo que, sob este ponto de vista, clere o

    processo que chega a seu termo o mais rapidamente possvel,

    independentemente do contedo e da qualidade do que vem a ser decidido.

    Para tanto, utilizou-se o legislador reformista de diversos

    instrumentos para que o procedimento fosse encerrado com a maior brevidade,

    tais como a supresso de formalidades tidas por suprfluas, decises de primeira

    instncia vinculativas (art 285-A do CPC), smulas impeditivas de recursos e

    enunciados vinculativos de jurisprudncia, sem que muitas vezes se oportunize

    partes a possibilidade de demonstrar que sua situao no se enquadra

    exatamente no paradigma (o distinguish do direito norte-americano), bem como

    dispensas de audincia, ou ainda a concesso de tutelas de urgncia ou de

    evidncia sem que se trate exatamente de uma ou de outra hiptese e sem se

    oportunizar o contraditrio, indispensvel em muitas situaes concretas.

    Se por um lado se pode afirmar que a celeridade uma necessidade

    para a realidade da justia, assoberbada com a quantidade descomunal de

    demandas que lhe so submetidas diuturnamente, com a falta de infra-estrutura e

    de pessoal adequado para dar conta da superabundncia de processos

    instaurados, por outro lado necessrio que se reconhea que a celeridade no

    pode se suplantar como princpio essencial a nortear toda a atividade estatal de

    soluo dos conflitos de interesse, em detrimento de qualquer outro que se lhe

    oponha. De outra forma, se reconhecido, por um lado, que prestao

    jurisdicional tardia (e eventualmente ineficaz) corresponde odiosa situao de

    negativa de jurisdio, por outro lado a prestao jurisdicional aodada,

    precipitada e sem a observncia de princpios constitucionais tambm

    corresponder negativa de jurisdio, sendo certo que o nico elemento a

    diferenci-las ser o tempo decorrido at que a negativa reste configurada.

  • 36

    Sobre o tema, as sempre pertinentes lies de Barbosa Moreira:

    Para muita gente, na matria, a rapidez constitui o valor por excelncia, qui o nico. Seria fcil invocar aqui um rol de citaes de autores famosos, apostados em estigmatizar a morosidade processual. No deixam de ter razo, sem que isso implique nem mesmo, quero crer, no pensamento desses prprios autores hierarquizao rgida que no reconhea como imprescindvel, aqui e ali, ceder o passo a outros valores. Se uma Justia lenta demais decerto uma Justia m, da no se segue que uma Justia rpida seja necessariamente uma Justia boa. O que todos devemos querer que a prestao jurisdicional venha a ser melhor do que . Se para torn-la melhor preciso aceler-la, muito bem: no, contudo, a qualquer preo.27

    Alertando sobre os efeitos negativos da busca cega pela celeridade,

    apresenta-se observao lapidar feita por Calmon de Passos que, analisando as

    reformas por que passou (e vem passando) o Cdigo de Processo Civil, com

    vistas a reduzir a quantidade acachapante de aes que assoberbam o Poder

    Judicirio, assim advertiu:

    A pergunta que cumpria fosse feita quais as causas reais dessa crise jamais foi formulada. Apenas de indagava o que fazer para nos libertarmos da pletora de feitos e de recursos que nos sufoca? E a resposta foi dada pela palavra mgica instrumentalidade, a que se casaram outras palavras mgicas celeridade, efetividade, deformalizao etc. E assim, de palavra mgica em palavra mgica, ingressamos num processo de produo do direito que corre o risco de se tornar pura prestidigitao. No nos esqueamos, entretanto, que todo espetculo de mgica tem um tempo de durao e de desencantamento.28

    As palavras do eminente processualista baiano parecem resumir o

    tanto de frustrao de expectativas, se assim possvel se afirmar, que decorre

    da viso que norteou o legislador na reforma das normas processuais. Ao que

    parece, buscou-se a rapidez como panaceia para todos os males da jurisdio e

    do processo, mas no pareceu o legislador se preocupar em momento algum com

    tornar justa a prestao jurisdicional.

    A efetividade buscada est ligada assim, no mais das vezes, a uma

    rpida e menos onerosa soluo para o litgio (que se revela muitas vezes

    aodada) e ao fiel cumprimento das sentenas judiciais. Se o sistema apresenta

    27 BARBOSA MOREIRA, op. cit., p. 5. 28 CALMON DE PASSOS, Jos Joaquim. Instrumentalidade do processo e devido processo legal in REPRO n. 102. So Paulo: RT, 2001, p. 20.

  • 37

    respostas cleres e se h instrumentos eficazes para que as decises produzam

    efeitos de imediato, estar comprovada a sua utilidade.

    Porm, a sobrevalorizao de elementos como celeridade,

    economia, operacionalidade, concentrao de poderes no magistrado e

    diminuio da participao dos litigantes no procedimento acabou por trazer,

    como conseqncia, questionamentos de toda ordem acerca da legitimidade do

    processo estatal de soluo de conflitos.

    Em outro passo, sob o manto da celeridade, exige-se dos juzes o

    atendimento a estatsticas que o tornam refns de um sistema de resultados

    numricos que pode, em casos excepcionais, aviltar a prpria dignidade de sua

    nobilssima atividade, sendo certo que as metas do Poder Judicirio, cada vez

    mais ousadas, no levam em conta a qualidade das decises, o contedo jurdico

    nelas versado e muito menos a sua efetiva aptido para solucionar o litgio, o

    conflito social surgido entre as partes, que muitas vezes h de continuar reinando

    entre as mesmas, s que agora fora do processo estatal e com o manto

    acolhedor da coisa julgada a coadunar o interesse de um deles.

    A viso estratgica do processo, se levada a extremos como se

    vem observando, pode conduzir at mesmo retirada da dialtica nsita ao

    processo, colocando autor e ru merc da ordem jurdico-poltica, sendo em

    funo dela criadas praticamente todas as novas ferramentas previstas em

    reformas recentes, de que se pode valer o juiz, conforme j relatado, na busca da

    efetividade: sentenas com fora vinculativa (art. 285-A do CPC), antecipaes de

    tutela sem ouvir a parte contrria fora dos casos onde estritamente necessria,

    proibio de interposio de recursos por fora de decises anteriores, juizados

    especiais como forma de permitir o acesso justia, porm mascarando a

    inexistncia do direito justa prestao jurisdicional, as smulas, persuasivas ou

    vinculantes, a impedir o debate intraprocessual e a sua conseqente criao da

    jurisdio por atacado etc. O que passa a valer, de verdade, a velocidade na

    obteno da soluo judicial; o que parece importar ao Estado, na ordem de

    valores que se pretende implementar, que o Judicirio seja apto a conceder ao

    jurisdicionado uma resposta clere, seja ela qual for, tenha ela o contedo que

    tiver, desde que, repita-se, seja rpida.

  • 38

    Como ilustrao do que aqui sustentado, apresenta-se trecho do

    voto proferido pelo Min. Celso de Mello, do E. Supremo Tribunal Federal29, em

    deciso proferida no Agravo de Instrumento 660.657/MG30:

    Com efeito, no se negou parte recorrente, o direito prestao jurisdicional do Estado. Este, bem ou mal, apreciou, por intermdio de rgos judicirios competentes, o litgio que lhe foi submetido. preciso ter presente que a prestao jurisdicional, ainda que errnea, incompleta ou insatisfatria, no deixa de configurar-se como resposta efetiva do Estado-Juiz invocao, pela parte interessada, da tutela jurisdicional do Poder Pblico, circunstncia que afasta a alegada ofensa a quanto prescreve o art. 5., XXXV, da Carta Poltica, consoante tem enfatizado o magistrio jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal.(grifos atuais)

    Assim, embora se reconhea que nossa lei processual apresenta,

    apesar das reformas havidas, resqucios de formalismos desnecessrios e ainda

    que se identifique a busca da celeridade como um elemento importante na

    moderna jurisdio (at mesmo para a sobrevivncia do sistema), por outro lado

    imprescindvel, em determinadas situaes, que venha ela a ceder em prol de

    outros valores de igual dignidade ou superior, como o direito fundamental ao

    contraditrio e ampla defesa, muitas vezes indevidamente abreviados pela

    busca da rapidez a qualquer preo.

    No se prope aqui, por certo, a pura e simples eliminao de

    medidas judiciais como as liminares sem oitiva da parte contrria, que se revelam

    efetivamente necessrias (e at mesmo imprescindveis) em determinados casos,

    mas sim que, com o respeito e observncia a estas situaes (que devem se

    apresentar como excepcionais), modifiquem-se os paradigmas procedimentais

    para que os espaos de atuao dos sujeitos parciais do processo sejam

    incrementados e que a deciso possa ser fruto deste procedimento realizado sob

    o manto do contraditrio.

    Sobre a necessidade de abertura do sistema participao dos

    envolvidos que tratar o captulo seguinte, investigando-se as teses construdas

    29 Observe-se que no se trata de deciso proferida por juiz singular, que tenha atuao em primeiro grau de jurisdio, o que j seria por si s desaconselhvel. Ao revs, trata-se de deciso advinda de magistrado da mais alta corte do pas... 30 A referncia transcrita do artigo A instrumentalidade tcnica do processo, de Welington Luzia Teixeira, publicado na RBDPro Revista brasileira de direito processual no. 60, p. 64, uma vez que no se encontra disponibilizado seu contedo quer no stio do tribunal, quer em publicao impressa.

  • 39

    a este respeito e que defendem a imprescindibilidade de uma atuao efetiva dos

    interessados, no s no contexto mais amplo de deliberao social, mas principal

    e fundamentalmente no processo estatal de prestao jurisdicional.

  • 40

    2 A MITIGAO DO PROTAGONISMO JUDICIAL FUNDAMENTOS TERICOS PARA O INCREMENTO DAS ATIVIDADES DAS PARTES NO PROCESSO

    A busca de alternativas ao modelo clssico de processo,

    tradicionalmente centrado na figura do magistrado (conforme observado no cap. 1

    da presente), passa pela investigao histrica acerca de teorias que, no Direito

    ou em outras reas das cincias sociais aplicadas, sustentam a necessidade de

    criao de um espao dialogal de deliberao, onde os argumentos de cada

    uma das partes envolvidas no conflito sejam efetivamente levados em

    considerao e a soluo possa, em decorrncia disto, chegar o mais perto

    possvel da ideal.

    Com esta finalidade, o presente captulo vai trabalhar com trs

    bases tericas onde estas propostas surgem com maior ou menor intensidade: a

    tica do discurso de Habermas, o modelo cooperativo de processo, e a idia de

    processo judicial democrtico.

    Assim, num primeiro momento (item 2.1), sero utilizadas como

    elemento de anlise fontes doutrinrias de origem filosfica e sociolgica,

    fundamentalmente o estudo das teorias expostas por Jrgen Habermas e de seu

    paradigma procedimentalista do Direito, buscando-se alcanar uma alternativa

    para a aplicao, tanto quanto possvel, de sua tica (/teoria) do discurso e de sua

    situao ideal de fala ao processo judicial brasileiro.

    Em tpico posterior (item 2.2), a investigao concentra-se

    especificamente na seara do direito processual civil, sendo ento analisada a

    ideia de colaborao processual (modelo cooperativo de processo), cujas bases

    remontam ao formalismo-valorativo, de Carlos Alvaro de Oliveira e a proposta de

    criao de um novo modelo de prestao jurisdicional onde o debate

    endoprocessual assume lugar de destaque, via o reforo da importncia do papel

    a ser desempenhado pelo princpio do contraditrio. Concluindo esta segunda

    abordagem, restam ento criadas as bases para, no ltimo tpico (item 2.3),

    serem trabalhadas as linhas mestras do chamado processo jurisdicional

    democrtico, analisando-se, nesta oportunidade, as propostas apresentadas por

    esta vertente doutrinria para uma efetiva e significativa mudana estrutural na

  • 41

    prestao jurisdicional, especialmente no que toca diviso de trabalho e de

    responsabilidades entre as partes e o magistrado.

    Conforme restar observado, tudo o que desenvolvido no presente

    captulo tem a finalidade, certo, de trazer a lume os fundamentos para uma

    pretendida alterao de paradigmas em relao ao que foi apresentado no

    captulo anterior, onde trabalhou-se precisamente a ideia de um processo

    centrado na figura do juiz. Aqui, num ntido movimento de contraposio

    ideolgica, busca-se apontar, com base nos elementos apresentados na literatura

    filosfica e jurdica, a necessidade de um maior e mais intenso envolvimento de

    autor e ru no processo de formao da deciso judicial. Esta a reivindicao

    presente nas teses que sero adiante analisadas.

    Uma ltima observao de carter introdutrio h de ser feita: a

    afirmao de que a moderna prestao jurisdicional demanda uma maior

    participao das partes no significa, em absoluto, o menosprezo ao trabalho

    desenvolvido pelo rgo judicial, sendo certo que no se vai sustentar, por bvio,

    em nenhuma das teorias investigadas, uma reduo drstica (ou mesmo

    eliminao) da relevante atividade do magistrado no processo, postulando-se um

    inimaginvel retorno ao processo liberal, onde cabia ao juiz apenas a observao

    formal das regras do jogo. O que defendem estas teorias, muito ao contrrio, a

    mitigao, a atenuao do protagonismo judicial, quando se revele exacerbado,

    atravs de uma maior distribuio de responsabilidades entre o rgo judicial e as

    partes no processo de formao da deciso e a transformao, no limite do

    possvel, do processo judicial em um espao dialogal, de comparticipao e de

    co-responsabilidade pelo resultado final obtido.

    Esta, portanto, a pedra de toque do presente captulo.

  • 42

    2.1 A abertura do sistema a partir de uma perspectiva filosfica a razo comunicativa e a tica do discurso de Jrgen Habermas: limites e possibilidades de sua aplicao ao processo judicial brasileiro

    As correntes doutrinrias que, no direito brasileiro, sustentam a

    necessidade de uma mudana de paradigmas na prestao jurisdicional, para que

    haja uma abertura do sistema a uma maior participao e envolvimento das

    partes parecem apresentar, em maior ou menor escala, de forma declarada ou

    velada, uma origem comum: a razo comunicativa e a tica do discurso de Jrgen

    Habermas. Da a necessidade premente de trazer lume os conceitos lanados

    pelo filsofo alemo.

    Uma advertncia inicial, porm, deve ser feita: qualquer tentativa de

    transposio in natura da doutrina de Habermas ou de suas concluses ao

    processo judicial brasileiro se revelar ingnua e pouco sria, se no forem

    efetivamente consideradas as diferenas histricas, culturais e sociais entre o

    ambiente para o qual o filsofo escrevia e a realidade brasileira. Assim, adiante-se

    que a pretenso aqui no , por certo, uma simples transferncia de suas teses e

    sua imediata insero no Direito brasileiro, como se fosse possvel a abduo da

    experincia de um pas e sua mecnica aplicao a outros, como apangio para

    os males de que venham estes a padecer (especialmente no caso concreto, onde

    se encontram envolvidos pases to diferentes como Brasil e Alemanha, a

    experincia poderia se revelar trgica). Muito ao contrrio, o que se pretende no

    presente captulo , em verdade, proceder-se a uma investigao do que

    apresentado pelo autor alemo como situao ideal e, a partir da e na medida em

    que a experincia brasileira comportar, buscar a sua aplicao possvel.

    Com a fixao destas premissas, esclarecedoras do que se

    pretende levar a efeito neste dilogo com fontes de origem filosfica, pode-se

    afirmar que o desenvolvimento da doutrina de Habermas vai levar

    transformao do locus processual em um ambiente ideal de fala (ou ao menos a

    busca deste ideal), onde seja propiciado s partes o dilogo efetivo, a tentativa

    compromissada da busca pelo entendimento e, de modo muito particular, que

    sejam levadas em considerao pelo juiz as perspectivas e as pretenses de

    cada uma das partes, exercendo o magistrado um papel fundamental de

    fomentador e arranjador deste debate.

  • 43

    Com efeito, a razo comunicativa de Habermas e a aplicao de sua

    viso procedimentalista ao processo criam um ambiente democrtico e mais

    propcio para a tomada da deciso pelo juiz, que no ser, assim, uma escolha

    alheia e descomprometida com o debate processual argumentativo, mas um

    provimento verdadeiramente oriundo do contraditrio, com ampla defesa exercida

    pelas partes, respeitando-se a isonomia e dando-se nfase linguagem e

    necessidade de fundamentao (mais do que isso, a justificao), de sua

    deciso.31

    Neste sentido, conforme sustenta o prprio Habermas, em seu

    ensaio Correo versus verdade. O sentido da validade deontolgica de juzos e

    normas morais, a neutralidade do juiz em relao s partes insuficiente. A

    fundamentao exige que tomem parte da deciso todos os que sejam

    potencialmente envolvidos, para que no haja mais a separao entre um terceiro

    privilegiado e as partes sob conflito. A noo de legitimidade que apenas estar

    presente com o reconhecimento de normas igualmente boas para todos,

    somente pode ser satisfeita atravs de uma atividade que, nas condies de

    incluso de todas as pessoas potencialmente envolvidas, seja asseguradora da

    imparcialidade no sentido de considerao igual de todos os interesses afetados.32

    Afirma-se, assim, que a teoria discursiva de Habermas toca o

    modelo constitucional de processo atravs de um agir proativo e participativo que

    se passa a exigir na construo das decises judiciais em um ambiente

    democrtico. Da o porqu da utilizao de sua doutrina como fonte para o que

    sustentam as teorias aqui analisadas.

    2.1.1 O paradigma procedimentalista de Jrgen Habermas como instrumento de mitigao do protagonismo judicial

    Uma anlise que se pretenda adequada da doutrina de Jrgen

    Habermas carece de algumas consideraes iniciais, especialmente no que se

    31 ROSA, Alexandre Morais da; SILVEIRA FILHO, Sylvio Loureno da. Para um processo penal democrtico. Crtica da metstase do sistema de controle social. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p.85. 32 HABERMAS, Jrgen. Correo versus verdade. O sentido da validade deontolgica de juzos e normas morais in Verdade e Justificao. Ensaios Filosficos. So Paulo: Loyola, 2004, p. 298.

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    refere ao intenso debate que envolve procedimentalismo x substancialismo.

    Assim, pode-se afirmar que vem de longa data as divergncias entre as

    concepes substancialistas e procedimentalistas do Direito, da prpria

    Constituio e, em ltima anlise, tambm do processo de prestao jurisdicional

    e dos limites da atuao judicial, com de