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CENAS DA EDUCAÇÃO PÚBLICA: NARRATIVAS, LINGUAGENS E
REPRESENTAÇÕES NA EDUCAÇÃO INFANTIL, ENSINO FUNDAMENTAL
E MÉDIO
Neste painel três cenas da educação são apresentadas com narrativas, linguagens e
vozes de crianças, adolescentes e jovens, na Educação Infantil, Ensino Fundamental e
Médio de escolas de Cuiabá/MT- Brasil. A primeira, uma prática pedagógica, discute a
relação da criança da Educação Infantil com a narrativa de ―Bugrinho‖ e sua
constituição identitária na relação com a história de vida e obra do patrono da
instituição. Observação participante e registros fotográficos sob inspiração etnográfica
serviram para análises compreensivas dos núcleos de significação, resultando em duas
imagens: a invisibilidade social da criança, reconhecida como imatura, naquilo que não
é, ―um vir a ser‖; e um discurso reificado, da criança ator social, produto e produtora de
cultura. A segunda, uma pesquisa de mestrado com crianças e adolescentes, investiga as
brincadeiras violentas na cultura escolar trazendo uma interpretação das linguagens
corporais em uma escola estadual, sob bases sócioantropológicas. Estudo qualitativo do
tipo etnográfico, teve participação de vinte e quatro crianças e adolescentes do Ensino
Fundamental. Percebeu-se que as brincadeiras violentas podem ser entendidas enquanto
fenômeno que compõe as rubricas de nossa existência, atravessa as linguagens corporais
agressivas no processo de escolarização. O último apresenta a relação do aluno do
Ensino Médio com as aulas de Educação Física e suas ―representações‖ sobre a
importância desse componente curricular. Em abordagem qualitativa/quantitativa de
investigação, o estudo exploratório/descritivo, teve a participação de 236 alunos,
verificou-se que o elemento recorrente da prática pedagógica do professor nas aulas é o
ensino do esporte. Para os alunos as aulas estão vinculadas à saúde e ao esporte,
carecendo diversificar conteúdos. A significativa perda do ―espaço‖ da disciplina sugere
a falta de contextualização e sentidos nas manifestações da cultura corporal. Sendo
assim, da união dos textos vê-se as subjetividades do ensinar e aprender, as narrativas,
linguagens e vozes dos alunos em suas representações.
Palavras-Chave: Narrativas, Linguagens, Representações.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
860ISSN 2177-336X
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A EDUCAÇÃO FÍSICA NO ENSINO MÉDIO: O QUE DIZEM OS ALUNOS
Marcia Cristina Rodrigues da Silva Coffani – UFMTi
RESUMO
O estudo investigou a relação do aluno do Ensino Médio com as aulas de
Educação Física, abordando suas ―representações‖ sobre a importância desse
componente curricular na formação humana. Adotaram-se a abordagem
qualitativa/quantitativa de investigação. Trata-se de um estudo exploratório –
descritivo, com a participação de 236 alunos, do período matutino, de uma
escola estadual em Cuiabá-MT, que responderam um questionário semiaberto,
em 2013, organizado em duas dimensões: a proposta pedagógica da escola e
sua organização didática e administrativa, principalmente em relação à
Educação Física; e ―representações‖ dos alunos do Ensino Médio sobre a
disciplina de Educação Física. Verificou-se que o elemento recorrente da
prática pedagógica do professor nas aulas de Educação Física é o ensino do
esporte numa perspectiva técnico-instrumental. Para os alunos as aulas de
Educação Física estão vinculadas à saúde e ao aprendizado esportivo. Estes
indicaram a necessidade de diversificação dos conteúdos ensinados nas aulas.
Percebeu-se que a significativa perda do ―espaço‖ da Educação Física no
Ensino Médio sugere a falta de contextualização das manifestações da cultura
corporal, que poderia produzir sentidos pedagógicos para a formação do
aluno. Aponta-se a importância da discussão das concepções pedagógicas e
curriculares de Educação Física no Ensino Médio, no interior dos cursos de
formação inicial ou continuada, que permitam aos professores
compreenderem que, para além da situação de legalidade, a disciplina precisa
encontrar legitimidade pedagógica na escola, ao comprometer-se com a
formação do aluno do Ensino Médio, numa perspectiva contextualizada da
experiência crítica com as manifestações da cultura corporal de movimento
destes alunos.
Palavras-Chave: Educação Física. Ensino Médio. Aluno.
INTRODUÇÃO
Este trabalho apresenta reflexões sobre a relação do aluno do Ensino Médio com
as aulas de Educação Física, ao investigar suas ―representações‖ sobre o papel
pedagógico desse componente curricular na sua formação humana.
A pesquisa foi proposta com a intenção de compreender a realidade de ensino da
Educação Física no Ensino Médio, a fim de subsidiar o planejamento coletivo e as
intervenções pedagógicas de um subprojeto do Programa de Bolsas de Iniciação à
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Docência (PIBID-CAPES), que desenvolve suas ações em aulas de Educação Física, no
Ensino Médio em Cuiabá-MT, numa escola estadual da rede de ensino.
Partiu-se da suspeita de que a Educação Física tem ―legalidade‖ como
componente curricular da Educação Básica, mas que não tem encontrado ―legitimidade‖
no Ensino Médio, com a aparente perda significativa de ―espaço‖, o que poderia se
relacionar às pressões sociais vivenciadas pelos alunos, como a conjugação do trabalho
e estudo, família e estudo; a escolha de uma profissão; e a passagem ao Ensino
Superior. Por outro lado, para os alunos de classes sociais economicamente
privilegiadas, os saberes e práticas da cultura corporal de movimento, que são conteúdos
da Educação Física na escola, são acessados em outros espaços como academias, clubes
e áreas de lazer, o que demonstra a opção política por atender este público em
específico.
Outra inquietação inicial da pesquisa era em relação a prática facultativa de
Educação Física ao aluno da Educação Básica, nos casos previstos no art. 26, parágrafo
3º, da LDBEN nº. 9.394/1996, em razão da Lei nº. 10793/2003, o que pode atingir
expressivamente a disciplina no Ensino Médio.
Darido (2005), como também, Palma, Oliveira e Palma (2010) relacionam a
perda de ―espaço‖ diretamente ao fato de que alguns profissionais se apoiam no
discurso de que a Educação Física não possui conteúdos sistematizados, que
possibilitariam a organização do fazer pedagógico de forma contínua ao longo dos anos.
No entanto, há uma diversidade de estudiosos, documentos, orientações e
proposições curriculares e pedagógicas (DARIDO, 2005; BRASIL, 2006; NEIRA,
2009; PALMA; OLIVEIRA; PALMA, 2010), que podem ser consultados pelo professor
de Educação Física, a fim de permitir-lhe autonomia para organizar sua sistematização
de conteúdos de ensino, adequando-os à sua realidade escolar, ao considerar as
demandas sociais e culturais de seus alunos. Dessa forma, as manifestações da cultura
corporal de movimento vivenciadas nas aulas de Educação Física no Ensino Médio
podem deixar de ser apenas a prática de atividades desconexas e vazias de sentidos
pedagógicos para formação do aluno.
Em razão destes conflituosos questionamentos, a pesquisa definiu como foco de
estudo ―a relação do aluno do Ensino Médio com as aulas de Educação Física‖, a partir
da investigação de suas representações sobre o papel e importância pedagógica desse
componente curricular na sua formação humana, tendo como questão problematizadora:
Será que os conteúdos e vivências ofertados nas aulas de Educação Física no Ensino
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Médio atendem as demandas e interesses dos alunos a ponto de produzir o
reconhecimento de sua importância pedagógica na sua formação humana?
METODOLOGIA DA PESQUISA
A pesquisa adotou a abordagem qualitativa/quantitativa, proposta por Santos
Filho e Gamboa (2002), assumindo a feição de um estudo exploratório - descritivo. A
escolha da escola foi motivada por ser um espaço de Estágio Curricular no Ensino
Médio para os acadêmicos em Educação Física. O perfil da professora confirmou a
importância dessa escola como campo de investigação, pois a docente é efetiva da rede
estadual de ensino, ex-aluna do mesmo curso de licenciatura, do qual, tem recebido
estagiários em formação. Atuou em 2013, unicamente com o ensino da Educação Física
no Ensino Médio para os turnos matutino e vespertino, perfazendo um total de 20
turmas de alunos atendidas, com uma única aula semanal para cada turma, que são
agrupadas em duas manhãs e tardes. O que levou a identificar a evidente perda de
―espaço‖ da Educação Física no Ensino Médio, o que justifica a demanda por
investigações e ações que tomem essa escola como lócus de reflexão da ―educação para
juventudes‖.
O instrumento de pesquisa foi um questionário semiaberto composto de questões
abertas e fechadas, aplicado para os alunos das 10 turmas (primeiros anos A, B, C, D e
E; segundo anos A, B e C e terceiros anos A e B) do Ensino Médio, do período
matutino, que ―frequentam‖ as aulas de Educação Física, no período vespertino,
totalizando 236 questionários.
O questionário foi construído pela equipe de trabalho do ―Subprojeto PIBID
Educação Física no Ensino Médio em Cuiabá‖, a partir das ―visitas campos‖ que
indicaram as necessidades a serem investigadas que pudessem lançar ―luz‖ sobre a
relação do aluno do Ensino Médio com a Educação Física.
A primeira parte do questionário foi construída com questões que pudessem
oferecer o diagnóstico da escola: identificação da realidade escolar; caracterização do
perfil social e cultural dos alunos do Ensino Médio (idade, gênero, naturalidade, local de
moradia, meio de transporte para escola, trabalho remunerado, entre outros); das
atividades didáticas e práticas avaliativas, e das condições físicas e materiais da unidade
escolar.
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A segunda parte do questionário foi composta de questões que versaram sobre as
―representações‖ dos alunos do Ensino Médio sobre a disciplina de Educação Física
como: se sente motivado a participar das aulas; o que mais gosta de fazer e se aprende
nas aulas; a importância da Educação Física; os aspectos desagradáveis nas aulas; o que
gostaria de aprender; entre outros.
A estratégia metodológica da pesquisa permitiu compreender a relação dos
jovens com as manifestações da cultura corporal de movimento, ao refletir sobre a
realidade escolar e a adequação das proposições pedagógicas da Educação Física, ao
―escutar as vozes‖ dos alunos do Ensino Médio.
ANÁLISES DA INVESTIGAÇÃO
O contexto da pesquisa
A primeira ação da pesquisa foi conhecer a proposta pedagógica da escola e sua
organização didática e administrativa, principalmente em relação à Educação Física.
Nesta escola, existe um ―espaço para prática‖ das aulas de Educação Física, que
ocorrem prioritariamente na quadra esportiva coberta, localizada nos fundos da escola, e
assim, apartadas do contexto e da efervescência cotidiana da escola. As aulas são
oferecidas no contraturno com separação de gêneros, o que dificulta à organização de
projetos e ações pedagógicas em parceira com as demais disciplinas curriculares.
Com as visitas periódicas à escola, nosso sentimento foi de que as aulas de
Educação Física se constituíam ―num mundo a parte da escola‖, pois tanto a sua
localização espacial (fundos da escola com impedimento de acesso aos demais alunos,
com a presença apenas da professora e dos alunos frequentadores) e simbólica no
currículo escolar (em contraturno escolar, se constituindo num impedimento para os
alunos que trabalham, moram longe ou frequentam cursos preparatórios para ENEM,
entre outros), nos levaram a questionar o papel pedagógico da Educação Física no
Ensino Médio.
Outro aspecto agravante se relacionava a separação de gênero evidenciada nas
aulas de Educação Física no Ensino Médio. Para Lovisolo (2009) a segregação de
gêneros foi superada em diversos espaços, o que contradiz com a realidade das aulas de
Educação Física, na escola investigada. Identificou-se que a separação de gênero nas
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aulas se constitui um modus operandi que não encontra mais justificativa pedagógica.
Contudo, se perpetua em função de que sempre foi assim.
Diversos instrumentos legais foram e têm sido propostos para normatização da
organização político-pedagógica e curricular do Ensino Médio (Parecer nº. 15/1998
CEB; Resolução nº. 03/1998 CEB; Parâmetros Curriculares Nacionais, 1999; 2000;
Orientações Curriculares para Ensino Médio, 2006; Parecer nº. 11/2009 CNE/CP;
Parecer nº. 05/2011 CEB/CNE; Resolução nº. 02/2012 CNE/CEB), que reconhecem
mudanças significativas na forma de aprender os conhecimentos que afetaram à
produção e às relações sociais. Assume-se outra compreensão do papel da escola e do
Ensino Médio na formação e atuação de seus agentes sociais, em virtude das
necessidades de outros parâmetros para a formação dos cidadãos, não mais compatíveis
com a visão tecnicista sobre trabalho.
Em função desses aspectos legislativos e pedagógicos se intensificaram as idas à
escola em busca de dados sobre a sua constituição histórica e social e sua proposta
pedagógica, que pudessem nos esclarecer os motivos que levaram a comunidade escolar
a decidir pela proposta de ―Ensino Médio Inovador‖, e em que medida se encaminhava
a (re) configuração do currículo, das práticas pedagógicas e da formação continuada do
quadro docente para atendimento da formação do aluno do Ensino Médio, nesta
proposta curricular e pedagógica, que não se reduzisse apenas à ampliação da carga
horária do Ensino Médio.
Ao considerar a falta de argumentos que pudessem nos permitir compreender, o
sentido da proposta de ―Ensino Médio Inovador‖ para os professores e alunos dessa
escola, em especial, o papel da Educação Física nesta proposta, é que buscou conhecer o
aluno do Ensino Médio.
Os alunos do Ensino Médio
A legislação educacional brasileira estabelece a universalização do Ensino
Médio gratuito como um dever do Estado, sendo parte integrante da Educação Básica,
tendo como finalidades desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação comum
indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no
trabalho e em estudos posteriores (LDBEN nº. 9.394/1996, art. 22).
O Ensino Médio foi e ainda é marcado por modelos duais de formação, um
sendo de preparação de jovens para prosseguimento dos estudos em nível universitário;
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e outro modelo exercido para preparação técnica e profissional, que se destinou
prioritariamente aos jovens, de classes sociais menos abastadas, para entrada no
mercado de trabalho.
As Orientações Curriculares para o Ensino Médio propõem o papel do Ensino
Médio na Escola ―[...] como uma etapa da formação básica [...] cujo perfil não se define
tão somente pelo recorte cronológico da juventude ou da vida adulta, mas, por
características socioculturais‖, também, definidas pelas experiências do aluno na escola
(BRASIL, 2006, p. 221).
Os elementos que caracterizam a singularidade desse nível de ensino incluem a
evasão dos alunos em função de problemas socioeconômicos, de sobrevivência e
sustento, ou a conjugação da jornada de estudo com uma dupla jornada de trabalho; os
índices de repetência e a formação deficitária e acrítica, que dificulta a continuidade dos
estudos, consequentemente, limitando o acesso aos bens materiais, sociais e culturais
produzidos pela humanidade.
Ao considerar essa realidade social e cultural descrita nos documentos
orientadores, a primeira parte do questionário da pesquisa, buscou retratar o perfil
socioeconômico dos alunos do Ensino Médio, da referida escola. O que nos revelou que
a faixa etária dos alunos é de 15 a 17 anos, que 189 (80%) alunos cursaram o Ensino
Fundamental na rede pública, 10 (4%) alunos cursaram na rede particular e 37 (16%)
alunos não responderam. Verificou-se que 131 (55%) são do sexo feminino e 105 (45%)
do sexo masculino, divididos em:
Tabela 1 – Distribuição por gênero de alunos do Ensino Médio - 2013
ANOS DO ENSINO
MÉDIO
QUANTIDADE DE
ALUNOS
QUANTIDADE DE
ALUNAS
SUBTOTAL
1º ano 50 (21%) 53 (23%) 103 (44%)
2º ano 32 (14%) 49 (20%) 81 (34%)
3º ano 23 (10%) 29 (12%) 52 (22%)
SUBTOTAL 105 (45%) 131 (55%) 236 (100%)
Nota: Construção da pesquisadora.
A análise quantitativa da distribuição de alunos por anos de ensino do Ensino
Médio, na escola investigada, nos permitiu perceber que há uma evidente redução do
número de alunos ingressantes e concluintes deste nível de ensino nesta escola,
constatada pela diminuição de 05 turmas de primeiro ano para apenas 02 turmas de
terceiros anos.
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Ao refletir sobre a expressiva ausência dos alunos nas aulas de Educação Física,
percebidas por meio das visitas de campo, surgiu a necessidade de identificar o número
de alunos que trabalhava e que possuia prole. Identificou-se que 177 (75%) alunos não
realizam atividade remunerada. Além disso, 231 (97%) alunos não têm prole. O que nos
leva a perceber que não é o direito à facultatividade que tem afastado ou impedido os
alunos de frequentarem as aulas de Educação Física no Ensino Médio, nesta escola.
Mas, sobretudo, o contraponto é a sintomática rotatividade dos alunos nas aulas
de Educação Física, que por sua vez, parece ser produzida pela falta de sentidos
pedagógicos dos conteúdos resultante das vivências descontextualizadas oportunizadas
nas aulas. Aliada a presença marginalizada da disciplina no contraturno, e que por outro
lado, refletem o esvaziamento das aulas de Educação Física no Ensino Médio
impedindo a continuidade da apreensão de conhecimentos concertes ao componente
curricular. O que nos pareceu demandar uma reflexão filosófica e pedagógica sobre os
motivos que levaram a essa situação de descrédito da Educação Física no Ensino
Médio.
Os desafios postos para o Ensino Médio incluem a superação do dualismo
histórico entre o ensino propedêutico e profissionalizante e a construção de uma
identidade para esse nível de ensino, que considere a diversidade de trajetórias de vida
dos alunos, ao estabelecer interlocução com a condição juvenil dos alunos, que não se
restrinja a ênfase do papel econômico da educação escolar para a vida do indivíduo,
centrada na preparação para os exames de ingresso no Ensino Superior ou de formação
aligeirada para o mercado de trabalho.
Destaca-se a importância da formação do aluno do Ensino Médio para o
exercício e inserção social cidadã, de forma que se percebam ―[...] como sujeitos de
intervenção de seu próprio processo histórico, atentos às transformações da sociedade,
compreendendo os fenômenos sociais e científicos que permeiam o seu cotidiano‖
(BRASIL, 2009, p. 3). O que implica na condição para continuação de seus estudos e
para o exercício pleno da cidadania. Educar para cidadania não se restringe a aprofundar
com o aluno do Ensino Médio apenas os conhecimentos técnicos e científicos para
ocupação do mercado de trabalho, mas aquilo que o permita a reflexão crítica da sua
condição humana, tomando consciência de ―si‖ e do ―outro‖, perpassando discussões
sobre sexualidade, mídia, gênero, lazer, consumo, sociedade, entre outros.
Admite-se a compreensão da escola de Ensino Médio como ―espaço‖ e ―tempo‖
destinado à formação de um sujeito histórico, que produz e vivencia as transformações
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do seu tempo; que é capaz de analisar criticamente os conhecimentos socialmente
produzidos; e que se percebe frente aos desafios da contemporaneidade, no
estabelecimento de relações sociais no mundo do trabalho, na família, na comunidade
escolar, e que assim, exerce plenamente o direito constitucional de cidadania. O que
perpassa pelo repensar do papel e da função da escola, em função da incorporação ao
cotidiano de novas tecnologias, do mundo virtual no estabelecimento das relações
sociais, da massificação midiática de padrões de consumo e das mudanças processadas
por via destas, nos campos econômico, cultural e social na contemporaneidade.
Em relação, aos desafios postos para ―legitimidade‖ da Educação Física no
Ensino Médio, na escola investigada, podemos pontuar: a singularidade do componente
curricular; e inexistente proposição de sistematização de conteúdos para as aulas que
precisa ser tensionada pela autonomia reflexiva e transformada do professor; e em
especial, a inconsistência das práticas educativas desenvolvidas no ambiente escolar.
A realidade de ensino da Educação Física no Ensino Médio
Os alunos apontaram que hegemonicamente o único conteúdo das aulas tem sido
o esporte, restrito ao vôlei misto e futsal feminino e masculino, que não vivenciam
experiências pedagógicas com outros elementos da cultura corporal de movimento,
como dança e luta, e assim, não se sentem atraídos pela aula, pois ―[...] é sempre a
mesma coisa‖ (1CM04).
O que se contrapõe aos interesses apresentados pelos alunos em experienciar
diferentes práticas da cultura corporal, como Badminton, Corrida de aventura, Slack
Line, Le Parkur, Capoeira, Dança de Salão, entre outros. As práticas corporais
mencionadas pelos alunos podem ser abordadas nas aulas, podendo ser inseridas ou
adaptadas através de diversas vivências no contexto da disciplina, mesmo porque, o fato
de se tratar de uma disciplina distinta e peculiar como é o caso da Educação Física ―[...]
há uma ―liberdade‖ / flexibilidade maior para programar e organizar a sua prática
pedagógica‖ (BOSSLE, 2002, p. 36, grifo do autor).
Esses aspectos nos faz suspeitar que a disciplina tem perdido ―espaço‖ por não
ter sido capaz de problematizar sua função educativa e por propor práticas pedagógicas
que não atendem a realidade vivenciada e os interesses dos adolescentes e jovens. São
diversos os motivos para a ―não aula‖ de Educação Física no Ensino Médio como ―a
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maioria dos jogos são os meninos que dominam e as meninas não participam muito‖
(3BF10).
A importância da disciplina é relegada unicamente ao: ―Sair do sedentarismo‖
(3BM01); ―Sim, porque a gente exercita um pouco o corpo‖ (1CM10); ―Sim, pra
saúde‖ (2AM09). Esses discursos parecem reproduzir o que dizem os diversos canais
midiáticos, sem contudo, terem sido objeto de discussão pedagógica nas aulas desse
componente curricular que tem se restringido ao ensino técnico do esporte, sem fazer a
leitura dos corpos que dizem que: ―Nada, não tem motivação‖ (2AF01); ―Não, participo
das aulas de Educação Física‖ (2AF01).
Parece haver uma falta de sentidos dos conteúdos curriculares e das práticas
culturais vivenciadas pelos alunos do Ensino Médio, no fazer cotidiano das aulas de
Educação Física, levando-se à incompreensão do ensino das manifestações da cultura
corporal de movimento, como dimensões da linguagem do corpo. Com isso, se tem
normatizado a redução dos ―espaços‖ de atuação do professor de Educação Física e das
possibilidades de vivências dessas práticas e suas contribuições na formação do aluno
do Ensino Médio.
No entanto, esses mesmos jovens demandam cada vez mais intervenções
educativas que possam contribuir, por exemplo, para a consciência corporal e o cuidado
com a saúde, numa perspectiva de qualidade de vida, com a responsabilidade de
compreender os inúmeros riscos sociais existentes nesta fase da vida.
A Educação Física tem se justificado no currículo da Educação Básica pela
prática pedagógica vincular-se aos temas de ensino advindos da cultura. A análise dos
estudos no campo da Educação Física Escolar (CAPARROZ, 2005; VAGO, 2009;
DAOLIO, 2004; NEIRA; NUNES, 2006) permite compreender que a ―legitimidade‖ da
Educação Física no currículo escolar, é reconhecida quando prioriza a formação do
aluno no plano das práticas corporais, e se diferencia das propostas pedagógicas
conservadoras, que se centram na aprendizagem estritamente técnica e instrumental de
tratar o corpo em movimento.
As reflexões das ―representações‖ dos alunos do Ensino Médio nos levam a
compreender a juventude como categoria sócio histórica. O que implica em reconhecer
que esse nível de ensino é produzido pela diversidade de jovens, que expressam no e
pelo corpo marcas simbólicas de diferentes trajetórias de vida e realidades sociais e
culturais. Assim, para cada um dos alunos do Ensino Médio ― homens e mulheres;
trabalhadores e não trabalhadores; moradores de grandes e pequenas cidades ou da zona
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rural ― com concepções de vida singulares, a escola e seus componentes curriculares e
práticas pedagógicas se estabelecem e terão sentidos diferentes para o projeto individual
e coletivo de vida.
O desafio posto é (re)pensar as formas de educar no Ensino Médio, em
específico, a Educação Física necessita se vincular cada vez mais com a vida e a
realidade social e cultural dos alunos, e o desenvolvimento da criatividade, da
autonomia, da crítica e de posturas éticas perante o mundo.
Os estudos propositivos como de Hildebrandt e Laging (1986), Kravchychyn,
Oliveira e Cardoso (2008) e Neira (2009; 2011) apontam possíveis caminhos para uma
metodologia de planejamento de ensino participativo a partir do levantamento das
experiências corporais dos alunos, assim se inicia com eles, a construção coletiva da
aula. O que pode possibilitar o aprofundamento dos saberes e experiências com a
cultura corporal de movimento a partir daquilo que se julgava saber, ao mesmo tempo,
em que torna o aluno sujeito do processo de aprendizagem, contribuindo para a
construção de sentidos pedagógicos para a vida do aluno sobre aquilo que está
vivenciando no corpo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A investigação da relação do aluno do Ensino Médio com a Educação Física a
partir de suas ―representações‖ sobre o papel pedagógico desse componente curricular
na sua formação humana, nos revelou um quadro de descrédito da disciplina no Ensino
Médio, marcado pela rejeição ou (in)compreensão unilateral das manifestações da
cultura corporal de movimento
Alerta-se que a ―legitimidade‖ de uma disciplina não se faz apenas no aspecto da
―legalidade‖. Mas, pela sua efetividade pedagógica que é alcançada quando os
conteúdos ensinados se relacionam com o ―mundo da vida do aluno‖.
Para tanto, há a necessidade de promover o aprofundamento da discussão sobre
as dimensões e as implicações das tarefas pedagógicas da Educação Física como
elemento do currículo escolar, no interior dos cursos de formação de professores, ao
reconhecer a distância entre a teoria e a prática que de fato se materializa na escola.
A favor de uma concepção pedagógica e curricular de Educação Física no
Ensino Médio capaz de garantir ―espaço‖ para a disciplina, ao se comprometer com o
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aluno, suas necessidades e interesses, possibilitando-lhe a contextualização e
experiência crítica das manifestações da cultura corporal de movimento de seu tempo.
REFERÊNCIAS
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2000.
BRASIL, Ministério da Educação. Secretaria de Educação Média e Tecnológica.
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2014.
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Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. Disponível em:
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BRASIL. Parecer nº. 05/2011 CEB/CNE. Ministério da Educação. Disponível em:
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Acesso em 30 nov. 2014.
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871ISSN 2177-336X
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CAPARROZ, F. E. Entre a Educação Física na Escola e a Educação Física da
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872ISSN 2177-336X
8
BUGRINHO: A NARRATIVA COMO ATIVIDADE GUIA NA MEDIAÇÃO DA
CRIANÇA COM A CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO E DA
REPRESENTAÇÃO DE SI
Iury Lara Alves. Universidade Federal de Mato Grosso UFMT.
RESUMO
Este artigo propõe uma discussão sobre a relação da criança com a narrativa de
Bugrinho, mediante análise compreensiva do discurso associado ao contexto
educacional vivenciado pela criança participante, com o objetivo de refletir sobre
aspectos de sua constituição identitária nessa relação com a história de vida e obra do
patrono da instituição de ensino. A referida reflexão trata-se de um desdobramento da
minha prática pedagógica em uma sala de Educação Infantil oriunda da Secretaria
Municipal de Educação de Cuiabá-MT. Parte-se do pressuposto que a criança é uma
interlocutora ativa desde a mais tenra idade e busca-se compreender o potencial criativo
que a criança utiliza para demonstrar sua participação social em atividades pedagógicas
que lhe são apresentadas. O lócus da investigação foi em uma Escola Municipal da
cidade de Cuiabá-MT. A análise das significações se orientará pela articulação entre a
Teoria Histórico-Cultural (VIGOTSKI, 1996, 2009, 2010) e seus colaboradores. Em
adição, destacam-se os estudos sobre culturas infantis (SARMENTO, 2007). Ainda
exercita-se a aproximação os estudos sobre Narrativas (BRUNER, 2002, 2008;
JOVCHELOVITCH, 2008). A coleta de dados foi realizada mediante a observação
participante e registros fotográficos, sob a orientação de uma inspiração etnográfica
(GEERTZ, 1998). Os elementos de observações ora trazidos, serão analisados de forma
compreensiva sob a ótica qualitativa por meio da identificação dos núcleos de
significação (AGUIAR; OZELLA, 2006). A análise dos discursos assumidos em nome
da infância se revelou em várias facetas, destaco assim, duas imagens sociais das
crianças para este trabalho: a primeira anuncia a invisibilidade social da criança sendo a
mesma reconhecida na sua imaturidade, naquilo que não é, ―um vir a ser‖; a segunda,
ainda no âmbito do discurso reificado, apresenta aquela imagem da criança
caracterizada como ator social, produto e produtor de cultura.
Palavras-chaves: Práticas Educativas. Narrativas. Desenvolvimento Humano.
Aporte teórico
Teoria Histórico Cultural, Representações Sociais do Desenvolvimento Humano e
Narrativa: aspectos teóricos em diálogos
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Esta reflexão inicia-se com a discussão de aspectos do desenvolvimento humano
e da construção do conhecimento social, a partir do diálogo entre a Teoria Histórico -
Cultural (VIGOTSKI, 1996, 2000, 2006, 2009, 2010) e as Representações Sociais do
Desenvolvimento Humano (MOSCOVICI, 2003), e ainda exercita-se uma reflexão
sobre narrativas (JOVCHELOVITCH, 2008; BRUNER, 2002), teorias cujos conceitos
nortearão a investigação e a análise dos dados da proposta de estudo.
Tais indicações teóricas se fazem necessárias uma vez que articulam as
perspectivas de Vigotski e Castorina, anunciando a possibilidade de pensar as o
desenvolvimento humano como fruto de processos simultâneos e dialógicos, quais
sejam: o desenvolvimento humano e a construção do conhecimento social. Esta
articulação aliada aos estudos acerca da narrativa (BRUNER 2002) mostra-se se
desafiadora em sua perspectiva teórica, delineando um campo de estudo bastante
promissor e ainda com grandes desafios.
O objeto desta pesquisa refere-se à condição social de ser e estar no mundo pelas
crianças que compõem a primeira etapa da Educação Básica, assim objetiva apresentar
alguns aspectos introdutórios tomados como referência no desenvolvimento do estudo
sobre as relações sociais de crianças e sua relevância. Esse tema, ainda que não seja
inédito, exige ser analisado considerando os aspectos históricos, culturais e sociais a ele
relacionados. A preocupação com as crianças pequenas integra a história da pesquisa
sobre crianças e suas infâncias, sobre o resultado das modificações sociais e históricas
que transformaram seu lugar na sociedade e a responsabilidade social para com elas.
Neste texto ao me referir ao termo ‗crianças e infâncias‘, recorro a reflexões
acerca do que as constitui: as crianças, suas diferenças, o lugar onde vivem e as coisas
que fazem, de forma a conhecê-las, respeitando assim, a alteridade que se estabelece
entre o mundo adulto e o universo infantil (DE LAUWE, 1991).
Parte-se da premissa de que a produção do conhecimento sobre o que é ser
criança e do que constitui a infância está dialeticamente relacionada com as
significações, representações e discursos produzidos culturalmente, e de que é a partir
disso que se constituem as bases concretas da estrutura social. A conceituação de
crianças e infâncias não se resume a configurações isoladas, que as definem como
período cronológico da vida do ser humano, mesmo quando observadas sob o aspecto
biológico, pois as significações e formulações sobre elas se correlacionam às bases
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históricas atreladas às condições reais e objetivas em que são produzidas (ANDRADE;
LOPES, 2012).
A assertiva acima permite dizer que as crianças sempre existiram em todas as
sociedades, mas as formas de ser e estar no mundo, bem como de viver suas infâncias
não foram e não são iguais. Isso não se refere apenas à dimensão temporal, mas também
à posição social, de classe, de raça-etnia, de gênero, cultura e religião. Ou seja, as
crianças não são iguais e vivem diversamente a suas infâncias em condições sociais
concretas, apesar da insistente homogeneização configurada pelo projeto da
Modernidade, que procura racionalizar sua definição de forma universal.
Tradicionalmente é a geração adulta que discursa sobre o que as crianças são e
como devem viver, sem, contudo, dar conta da totalidade e diversidade da realidade em
que elas estão inseridas (DE LAUWE, 1991).
Nessa direção, é inegável a contribuição da Medicina e da Psicologia do
Desenvolvimento para compreensão das especificidades do cuidado para com a criança.
Destaco as contribuições de Vigotski, na década de 1930 na Rússia, que significou para
a Psicologia uma ruptura com a visão clássica evolucionista. Diferente da visão clássica
da Psicologia, que considera o desenvolvimento humano originário do interior da
criança, com etapas evolutivas e formas de adaptação social, Vygotsky (1996) toma
com pressuposto que o desenvolvimento se origina do meio social em que a criança está
e nos meios que utiliza nas relações que estabelece. Para o autor e seus sucessores, as
condições e as estruturas sociais são determinantes, mas não negam a ação do indivíduo
nesse processo.
A Teoria Histórico Cultural refere-se ao desenvolvimento com um processo que
ocorre pela apropriação dos instrumentos culturalmente criados por mediações na relação
social. Dessa forma, o Outro, adulto ou criança, tem um papel fundamental na constituição
do ser humano, numa ação ativa de interação social, determinada pelas condições sociais e
históricas em que estão imersos.
Também áreas afins como a Sociologia da Infância; Antropologia da Infância;
Filosofia da Infância, Geografia da Infância, entre outras tem mostrado interesse em
investigar as crianças como sujeitos ativos na sociedade.
Contudo, pode-se dizer que, no processo histórico de construção científica e de
teorização sobre a criança e sua infância, deu-se pouca relevância à ação ativa das
crianças em sua própria constituição, assim como a seu próprio processo educativo. Isto
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suscita a necessidade de maior compreensão das relações entre o desenvolvimento e a
educação das crianças que compõem a primeira etapa da Educação Básica.
Nessa direção, os processos de ‗reprodução e criação‘ (VIGOTSKI, 2009),
evidenciam a participação ativa do sujeito, sua apropriação dos produtos da cultura e da
experiência humana, ao fazê-lo a criança se instrui, coloca-se em atividades ricas em
vivências1 que geram desenvolvimento e novas formações cognitivas, afetivas e
psíquicas.
Tal perspectiva revela um posicionamento de reflexão acerca dos aspectos do
desenvolvimento humano, da construção do conhecimento social e da representação de
si, salientando a necessidade do diálogo entre a Educação a Tradição e o ato criativo
celebrado pela criança por meio da atividade da narrativa presente no humano.
Os estudos de De Lauwe (1991), sugere pensar que a constituição da infância
está atrelada à história de sua educação, tornando muito tênue a linha divisória entre os
conceitos de criança e o da educação na infância. Nesse sentido, a ação educativa será
alicerçada por concepções idealizadas sobre as crianças, para assim defini-las e
organizarem ações sobre elas, particularmente nas principais instituições em que a
mesmas se encontram – família, escola – os chamados ‗universos de socialização
infantil‘ destinado às crianças, neste caso, uma escola municipal de Cuiabá-MT.
Dentre os modos de favorecer o processo de desenvolvimento infantil no espaço
escolar, destaca-se a leitura. A utilização de livros como um artefato cultural mediador
do contato humano, do diálogo e do desenvolvimento, assim busca-se explorar o
potencial da narrativa como ferramenta pedagógica promotora do desenvolvimento da
aprendizagem. Para tanto, o projeto terá como base intervenções didático-pedagógicas a
partir da história presente no livro Bugrinho que menino é esse? 2(2008), que conta a
biografia do poeta Benedito Sant´Ana da Silva Freire, patrono da escola em estudo.
Para Kishimoto, Santos e Basílio (2007) ―A narrativa está presente na
conversação, no contar e recontar histórias, na expressão gestual e plástica, na
brincadeira e nas ações que resultam da integração de várias linguagens [...]‖ (p.430).
Deste modo, compreende-se aqui que as expressões lúdicas realizadas pela criança após
1 Vivência não significa a influência do meio sobre o desenvolvimento da criança, nem mesmo as
possíveis influências da criança sobre o meio que a circunda. A vivência é a unidade (da criança com o
meio) de um todo complexo (que é o desenvolvimento) e se expressa em uma relação complexa,
inevitável e, sobretudo, indissociável, entre as particularidades da pessoa e as particularidades do meio.
―Portanto, no desenvolvimento, a unidade dos elementos pessoais e ambientais se realiza em uma série de
diversas vivências da criança‖ (VIGOTSKI, 2006, p.6). 2 Bugrinho: que menino é esse? Obra infanto-juvenil que conta a história de vida do poeta mato-grossense
Silva Freire. De autoria de Daniela Barros da Silva Freire Andrade. Entrelinhas (2008).
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o contato com a narrativa também carregam conteúdos narrativos que podem expressar
indícios do processo de significação realizado por elas.
Neste caso, destaca-se a importância da narrativa como uma necessidade e uma
forma elementar de comunicação e constituição humana. Por narrativa se entende forma
discursiva que envolve tanto o contar estórias, quanto histórias de vida e histórias
societais (JOVCHELOVITCH, 2000).
Dessa forma, as narrativas não se limitam às narrativas literárias, pois se aplicam
as vidas reais dos grupos sociais quando estes agem conjuntamente e vivenciam suas
próprias ações.
Assim, as narrativas são infinitas em sua variedade, e nós as encontramos em
todo lugar. Parece existir em todas as formas de vida humana uma
necessidade de contar histórias, esta é uma forma elementar de comunicação
humana e, independentemente do desempenho da linguagem estratificada, é
uma capacidade universal. Através da narrativa, as pessoas lembram o que
aconteceu, colocam a experiência em uma seqüência, encontram possíveis
explicações para isso, e jogam com a cadeia de acontecimentos que
constroem a vida intelectual e social (JOVCHELOVITCH, 2000, p. 91)
Na mesma perspectiva, Andrade (2007, p. 17), acrescenta que narrativas
auxiliam ―os indivíduos a tornar o mundo um lugar estável para viver. Este caráter
construtivo da narrativa se revela em função da busca de sentido para as experiências de
vida‖. Assim, as narrativas apresentam-se enraizadas nas relações e nos modelos
culturais de uma.
Bruner (2008) lembra que toda narrativa é história de alguém e que com isso os
acontecimentos são sempre vistos por meio de um conjunto de prismas pessoais.
Entretanto, considerando que as pessoas estão inseridas em uma cultura, e que
representar objetos pressupõe estoques prévios de representação, as narrativas podem
refletir não apenas o ponto de vista de um sujeito, mas também a relação de grupo de
pertença do autor com o objeto. Com isso, parte-se da ideia que as narrativas trazem
representações que organizam redes de significações.
Nesse sentido, considera-se que na escola existem redes de significações
associadas aos professores e seus alunos, mas também outras, que estão presentes no
grupo familiar da criança, e ainda na veiculação de artefatos culturais tais como a
narrativa de Bugrinho (2008).
As narrativas fornecem em seu bojo uma série de significações que assinalam a
presença de categorias que apresentam um sistema de codificação possível. O conteúdo
representacional da narrativa Bugrinho (2008) tem em seu projeto a ideia de promover
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no espaço escolar a visibilidade da infância, favorecendo o diálogo entre as crianças e
os demais atores sociais presentes nesse lugar.
O objetivo desse exercício investigativo docente foi identificar e compreender
em que medida a narrativa Bugrinho (2008) poderia ser considerada uma ferramenta
pedagógica para Educação Infantil, bem como o potencial dos conteúdos presentes na
narrativa auxiliavam a criança na construção do conhecimento e na representação de si.
Metodologia
Como procedimento metodológico, optei por um estudo com inspiração
etnográfica (GEERTZ, 1989), considerando a importância de compreender as relações
no contexto onde elas ocorrem. Nesse sentido, elegi como lócus uma escola pública
municipal da cidade de Cuiabá, onde atuo como professora com um grupo de crianças,
com idade entre quatro anos e quatro anos e onze meses.
Durante todo o processo investigativo busquei aprofundar o estudo da infância a
partir do diálogo disciplinar da Pedagogia com a Sociologia da Infância, a Antropologia
da Criança, a Psicologia Histórico-Cultural. Com o cuidado de não ser absorvida por um
relativismo ou ecletismo desmedido, tentei alargar o olhar para além do contexto
educativo, entrecruzando as contribuições desses campos, sob a ideia principal da
constituição histórica, cultural e social das relações humanas.
Os materiais utilizados foram: registros fílmicos, fotográficos e diários de
campo. Os registros em vídeo das atividades, movimentos, gestos, sons e relação das
crianças entre si e das educadoras foram realizados ao longo de um período (nove
meses). Da mesma forma as notas de campo acompanharam todo o período de
permanência na instituição de educação coletiva, de modo a melhor compreensão do
processo investigado.
Dentre os procedimentos metodológicos, foi utilizado a narrativa como
possibilidade de ferramenta para o trabalho pedagógico, realizado na sala de atividades,
a partir de elementos visuais inspirados na própria história, o que auxiliou a criança a se
situar no espaço-tempo da história e a conferir significados e sentido aos conteúdos.
Primeira intervenção – Conhecendo o poeta patrono de nossa escola – apresentei a
narrativa: Bugrinho que menino é esse? As próximas intervenções seguiram-se
orientadas a partir das observações dos discursos infantis, mas precisamente com as
identificações com as brincadeiras de Bugrinho.
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As análises das informações coletadas se deram a partir dos materiais
fotográficos e fílmicos dar-se-á sob a ótica qualitativa por meio da identificação dos
núcleos de significação (AGUIAR; OZELLA, 2006).
A seguir alguns resultados encontrados ao longo do exercício ivestigativo
docente.
Alguns achados
O trabalho com a narrativa possibilitou a identificação de três núcleos de
significação, a saber, primeiro, que as narrativas de Bugrinho forneceram uma série de
significações, que assinalam a existência de categorias e apresentaram um sistema de
codificação possível para esse grupo de crianças; segundo, que a narrativa apresentou
um conteúdo representacional, que tem como pano de fundo a ideia de promover um
espaço de diálogo com as crianças, bem como a possibilidade de dar visibilidade cívica
e social a infância, favorecendo o processo de desenvolvimento infantil; terceiro, que a
partir das narrativas autorais produzidas pelas crianças foi possível observar indícios de
estratégias, repertórios que elas transportavam para suas vivências cotidianas.
Ao longo do exercício educativo, foi possível vislumbrar o potencial ora linear,
ora narrativo dos lugares, bem como compreender a construção da intersubjetividade
das crianças na construção do conhecimento e da representação de si que ali se
encontravam, por meio das narrativas que foram contadas, partilhadas e vivenciadas.
Ao considerar as narrativas do grupo de crianças apresentado, o projeto ―Silva
Freire pra gente miúda‖ elucida um caráter peculiar, que fala do processo de construção
da identidade desse grupo que, ao demarcar o espaço da sala de atividades e outros
espaços de aprendizagem, se reconhece nele, se revê a partir dele, ao mesmo tempo em
que o revê.
O desenvolvimento das atividades propostas seguiu um cronograma pensado a
partir do espaço disponível para as vivências e atividades ministradas. Para tanto, foi
considerado uma articulação pedagógica, que privilegiasse o exercício da construção da
identidade e autonomia infantil, o que implicou ver a criança como autora das suas
ações e produtora de cultura.
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BRINCADEIRAS VIOLENTAS NA CULTURA ESCOLAR - UMA
INTERPRETAÇÃO DAS LINGUAGENS CORPORAIS DE CRIANÇAS E
ADOLESCENTES
Josiane Rodrigues – UFMTii
Resumo
O artigo a apresentado se refere a uma pesquisa de mestrado realizada em uma escola
estadual de Cuiabá. Como objetivo central a pesquisa buscou investigar a cultura das
Brincadeiras Violentas na cultura escolar sob a lente de bases sócioantropológicas e
enquanto fenômeno que compõe as rubricas de nossa existência, atravessando as
linguagens corporais agressivas no processo de escolarização. Como objetivos
específicos observou-se as situações de conflito envolvendo brincadeiras violentas, as
formas de prevenção e punição, o que possibilitou mapear os ambientes onde mais elas
ocorrem no espaço escolar, a incidência do indivíduo ou seu grupo nessas brincadeiras,
ou seja, as expressões corporais reconhecidas como agressivas com conotação de
divertimento e os adjetivos que os alunos usam para apelidar os colegas, o que
possibilitou na compreensão do fenômeno em uma possível interpretação. O estudo
caracteriza-se, quanto ao gênero, como qualitativa do tipo etnográfico e contou com a
participação de vinte e quatro alunos entrevistados, entre crianças e adolescentes, do
quarto ao nono Ano do Ensino Fundamental, com idade de nove a quatorze anos. Como
resultado do estudo pode-se perceber que o corpo, enquanto via régia de contato com a
nossa existência, nos permite mostrar várias faces, ora o homo sapiens, senhor da razão,
ora o homo faber, o ―fazedor‖ de tecnologias; o homo ludens, o bufão ou o homo
demens, o violento e são estas quatro rubricas que cimentam nosso ―estar-junto‖ estão
emaranhadas no íntimo de nosso ser ―demasiadamente humano‖, é a filogênese de nossa
animalidade que vive em constante jogo com nossa ontogênese social.
Palavras-chave: Brincadeira Violenta. Cultura Escolar. Linguagem Corporal.
Introdução
A palavra brincadeira soa para os profissionais da educação como tema
ambivalente, dá não só a sensação de algo muito conhecido e pesquisado, como também
de difícil definição. A própria palavra parece ser uma convocação, uma provocação, um
desafio, como se ela mesma dissesse: te desafio a brincar comigo!
No estudo, o objetivo principal foi investigar a violência, a partir das
brincadeiras de alunos na cultura escolar, a partir deste, os objetivos específicos foram
observar quais são as situações de conflito, envolvendo brincadeiras violentas ao
analisar as formas de prevenção e punição adotadas pela escola em seus episódios e
diferenciá-las dentre as demais, mapeando os ambientes onde mais elas ocorrem dentro
do espaço escolar e procurando perceber a incidência do indivíduo ou seu grupo nessas
brincadeiras, de modo que, ao mapear as expressões corporais reconhecidas como
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agressivas com conotação de divertimento e listar os adjetivos que os alunos usam para
apelidar os colegas, facilitou compreender o fenômeno e dar uma possível interpretação
a ele.
Pensar que as crianças e adolescentes de hoje em dia só sabem se divertir
fazendo brincadeiras violentas, que seriam motivadas pela violência assistida na TV e
nos jogos de videogames; que os infantes são agora mais agressivos com os colegas;
que não brincam como seus pais e avós, todos estes pensamentos se situam em ―lugar
comum‖ na ideologia social. O que se constata é: não poderiam as crianças/adolescentes
desta geração ser iguais às da geração passada, pois a época é outra e, conforme pontua
o sociólogo da atualidade, Michel Maffesoli (2004, p. 17) ―só podemos entender bem
uma época sentindo seus odores‖, pois bem, em cada época há um rumor, um espírito
entranhado, dentre outras coisas, não estávamos imersos neste mundo tecnológico e
globalizado em que nos encontramos hoje, enfim, por mais que as realidades sejam
diferentes a possível ―inocência infantil‖ que nos relata nossos ancestrais, na realidade,
nunca existiu!
Seriam as crianças são naturalmente más? Quando se observa um grupo de
crianças sem a intervenção de um adulto, não demora a acontecer uma violência
gratuita, mordidas, tapas, empurrões, beliscões e assim por diante... Esse
comportamento pode nos revelar é que elas, juntas, lutando pelo espaço e pelos bens
culturais à sua disposição, vão se expressar a partir de ações violentas porque,
justamente, ainda não sabem negociar, dialogar ou disputar pela palavra ― pela ―boa‖
conversa ― há uma força atávica que os impulsionam a este sentido. Essa violência que
há em nós, nos ancora e nos impele no decurso de nossa existência.
Para checarmos a hipótese de a criança ser naturalmente má ou não, encontra-se
em Durkheim (2008) plausível argumentação na lição ―A influência do meio escolar‖.
O autor sugere que não se deve ver na criança, ao maltratar os animais, por exemplo,
mais que uma ―mera curiosidade‖, ou a demonstração da relação de posse —
superioridade, ou ainda, quando destrói objetos, uma forma de descarregar a ―atividade
acumulada‖ que há em si, isto é, realiza o desejo que tem de se movimentar. Lembra-se
que esta argumentação só se aplica à criança capaz de conviver socialmente, excetuando
as patologias de distúrbio de comportamento ou de personalidade, pois esses últimos
casos são de ordem específica e devem ser analisados em nível ambulatorial. Por ser a
escola nosso observatório, tudo que se observa é construto social, não se trata de ignorar
o diferente, porque o pesquisador sempre busca estar sensível para as peculiaridades de
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cada ambiente pesquisado, no entanto, investigar um fenômeno social requer um
esforço para que o social seja destacado dos indivíduos, já o estudo das patologias faz o
indivíduo se destacar da vida social.
Problema de pesquisa
Das crianças, em sua inventividade, sempre houve e sempre haverá as mais
criativas do que outras no quesito brincadeiras violentas, não se deve negar que as
brincadeiras violentas na infância é cultural. Sendo assim, importou então saber: como
está representada a violência no ambiente escolar, especificamente no terreno das
linguagens corporais lúdicas?
Hipóteses
Na atualidade, estas brincadeiras consideradas, muitas vezes, ―naturais‖,
motivam estudos sobre o comportamento de crianças, adolescentes, jovens e, até mesmo
de adultos, sobretudo motivados pela divulgação e crescentes revelações sobre o
bullying3, caracterizado como um tipo de brincadeira violenta. Há, inclusive, uma
crescente moda de generalização e banalização do termo, possivelmente pela exposição
da/na mídia, qualquer brincadeira ou qualquer tipo de atitude de violência está
erroneamente sendo tratada como bullying.
Por ocorrer, em sua maioria, no seio das relações aluno/aluno as brincadeiras
violentas se tornam de difícil observação, visto que longe da supervisão de adultos é que
eles formam ―tribos‖, que buscam legitimar suas identidades, quase sempre de forma
categórica e influenciados em muitas ocasiões pelos líderes dos grupos.
Frequentemente, as crianças/adolescente que sofrem com as brincadeiras violentas
chegam a relatar o fato para seus familiares ou para uma pessoa da instituição escolar e
dado o descaso destes adultos para com a criança, ela julga ter que conviver com esta
situação, em alguns casos, elaborando uma vingança de acordo com seu conceito de
justiça.
Pressupostos teórico-metodológicos
Ao falar sobre brincadeira enquanto teoria deve-se lembrar que brincadeira pode
ser sinônimo de jogo, o mais certo seria dizer que é o contrário o que ocorre com mais
frequência, o jogo como sinônimo de brincadeira. Alguns autores preferem falar sobre
jogos e brincadeiras, colocando-os no mesmo degrau. Outros preferem uma separação
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categórica ou hierárquica, mas o jogo enquanto ciência ancora as teorias do brincar. Faz
parte deste estudo distinguir apenas o que é e o que não é brincadeira.
Deve-se considerar que não existe na língua francesa, ou mesmo na língua
inglesa, uma palavra de tradução fidedigna e como nossa matriz teórica é, em sua
maioria, baseada na matriz francesa, faremos uso de algumas definições de jogo
enquanto brincadeira.
Embora a brincadeira possa ser observada a partir de abordagens biológicas,
psicológicas ou históricas e tantas outras mais, este estudo trouxe para os teóricos da
sócio-antropologia, destacando este ser brincante e seu brinquedo, seja ele real ou
simbólico, e a significação deste fenômeno na cultura da brincadeira.
Para tanto, buscou-se observar nosso objeto de estudo como um fenômeno
complexo. Investigou-se suas causas, efeitos, significações para além das pessoas ou
instituição, como chose (do francês), como coisa, ou como ―fato social‖, metáfora
cunhada por Durkheim. Este estudo perseguiu a sutura entre brincadeira e violência
considerando que se inter-relacionam e se constituem ambiguamente.
Mas de que homo se fala? Para além do bem e do mal, hoje somos levados a
reconhecer outras estruturas que compõem e explicam a nossa ontologia, que decompõe
a sua força biológica e agrega a sua força metafísica. Nas ciências biológicas,
antropológias e na paleontologia podemos nos localizar dentro do gênero homo em que
todos incluídos nesse gênero são chamados de humanos, mesmo que este gênero se
multiplicam noutras derivações. Se o termo homo sapiens fosse um verbo nós diríamos
que há, no mínimo, mais três conjugações possíveis: o homo-ludens-faber-dêmens, que
vimos neste estudo reforçar, e este pseudoverbo será usado de acordo com seu tempo,
não o tempo verbal, mas o tempo real, neste modelo tetragonal de pensar a nossa
existência. No papel da ludicidade na educação escolar há uma alegoria, sob a forma de
brincadeira dessa ontologia que se perfila passando por essas rubricas, a saber: ludens-
sapiens-faber-demens.
Resposta razoável é pensar que somos múltiplos, não temos mais uma só função,
ou melhor, não somos uma função, a pessoa de hoje — a considerar a diferenciação
dada por Maffesoli entre indivíduo e pessoa, está mais propensa a assumir várias
funções na sociedade, talvez mais acertado seria dizer identidades, são identidades
múltiplas que assumimos. Estas identidades só são possíveis no equilíbrio ou na sinergia
entre luz e sombra. O indivíduo do mundo de hoje:
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[...] é causa e efeito da lógica da identidade. Senhor de sua história, capaz,
com outros indivíduos autônomos, de fazer a história do mundo, ele é
educado para exercer uma função nas instituições programadas pela
sociedade. A pessoa, em contrapartida, tem identificações múltiplas, suas
máscaras (persona). (MAFFESOLI, 2004, p. 95-96)
Seguindo este raciocínio, somos levados a pensar que as pseudo-pessoas que
criamos e pelas quais nos apresentamos se comungam com as entidades imemoriais, o
que a psicologia denomina como arquétipo. ―O imaginário está na ordem do dia, e com
ele a multiplicidade de sentidos que cada pessoa confere à sua existência.‖ (ibid, p. 97).
E ―a cultura de um povo é um conjunto de textos, eles mesmos conjuntos, que o
antropólogo tenta ler por sobre os ombros daqueles a quem eles pertencem.‖ (GEERTZ,
2008, p. 212).
Buscando uma boa noção para esse termo, foi consultado o
pesquisador, professor doutor Fabiano Bossleiii, para nos falar sobre as
definições que se podia dar às Brincadeiras Violentas, para ele é:
[...] aquela que fere a integridade física ou moral do sujeito, do indivíduo. Vê
bem, eu incluí moral, ela fere a integridade física e moral do indivíduo. O
rugby não é violento! O modo que alguns podem jogar é que pode tornar ele
violento. O boxe já tem um princípio de violência, o objetivo é atingir o outro
desferindo golpes, portanto, o que a gente segue é o princípio da integridade,
é o que limita um e outro. Então, este é o ponto, uma brincadeira violenta é
aquela que fere a integridade do outro, que fere moralmente ou fisicamente o
outro.
Das configurações da pesquisa
A escola pesquisada apresenta estrutura de médio porte, de acordo com a
SEDUC. Nesta categoria, estão as escolas de 600 a 1.200 alunos. Essa escola ocupa
uma quadra do bairro, sendo o prédio escolar com quatro pavilhões, um anexo e a
quadra poliesportiva. A estrutura escolar toma o espaço de uma quadra do bairro e se
destaca das demais construções pela altura dos muros. A rua defronte à entrada do
prédio escolar é estreita e pouco movimentada, na lateral temos uma rua, que é, neste
perímetro, a mais movimentada. Há um espaço para o estacionamento entre o portal
principal e os portões de acesso ao interior do ambiente.
Quanto ao seu funcionamento, a escola atende a cerca de 900 alunos, estudando
nos turnos vespertino e matutino. Em março deste ano de 2012, as matrículas somaram
878 alunos. Embora o número de funcionários não tenha sido informado pelos
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funcionários da área técnica da escola, estima-se que haja em torno de 60 funcionários
entre professores, a equipe técnica, seladoras, merendeiras e vigias.
Foram observados os espaços físicos e virtuais, como arredores da escola, portão
de entrada, quadra poliesportiva, quadra do salão comunitário de uma Igreja da
comunidade, pátio, cantina privada, cantina da escola, cozinha, algumas salas de aula,
sala de vídeo, sala de informática, sala de Recurso Pedagógico, sala dos professores,
sala de coordenadores, sala de diretores, secretaria, banheiros. Dentre os momentos
observados estão o intervalo na sala dos professores, intervalo no pátio, entrada e saída
dos alunos nos portões da escola, festa junina, palestra sobre bullying, ensaios da
Fanfarra, olimpíadas interna, feira de ciências, aulas do 5º Ano diretamente e algumas
aulas do 4º, 6º, 7º, 8º e 9º Anos, facebook e Rádio da escola, vídeos e notícias referentes
à escola em questão.
Procedimentos metodológicos
A pesquisa do tipo etnográfico, remete logo à antropologia, portanto, temos em
mente que sua pesquisa será qualitativa. Nas observações, tanto sistemáticas, com
horários e locais pré-estabelecidos, como observações assistemáticas, em momentos
esporádicos, portanto, aleatórias, a finalidade era a de captar as situações inusitadas que
pudessem ocorrer no ambiente, registradas em caderno de campo, somadas aos demais
instrumentos de coleta. Foram realizados questionários com os alunos, registros de
imagem e/ou de vídeos de brincadeiras violentas, entrevista com estudiosos do tema e
aplicação de questionários para professores, alunos e funcionários da escola investigada.
O uso do gênero narrativo foi utilizado em algumas ocorrências como forma de destacar
episódios relevantes para a discussão do tema.
Assim, a etnografia consiste numa ―descrição profunda‖. Os objetivos do
etnógrafo são os de apreender os significados que os membros da cultura têm como
dados adquiridos e, posteriormente, apresentar o novo significado às pessoas exteriores
à cultura. O etnógrafo preocupa-se essencialmente com as representações. (BOGDAN e
BIKLEN, 1994, p. 59).
Para isso, foram utilizados de observação-participante e questionários,
entrevistas, registros de campo, análises de documentos, vídeos, fotografias (produzidas
e encontradas), interpretação de narrativas, enfim, ―os dados são considerados sempre
inacabados [...], o que se busca, sim, é descrever a situação, compreendê-la, revelar seus
múltiplos significados [..]‖ (ANDRÉ, 2005, p. 37-38). Contudo, para essa autora (p. 42),
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faz-se necessário adotar uma postura metódica que conduza à pesquisa e relacione teoria
e prática, a fim de que se possa realizar uma análise dos dados, para que se alcancem os
objetivos pretendidos da proposta deste projeto, afinal, segundo sua reiteração, ―embora
o processo etnográfico deva ser aberto e flexível, isso não significa ausência total de um
referencial teórico.‖
A Sondagem fora realizada com os líderes de sala e o questionário com dois sub-
grupos de alunos, um com os ―autores‖ e outro com os ―coadjuvantes‖. Portanto, a
Sondagem agrupou um número de 16 alunos e os Questionários selecionaram 30 alunos,
sendo 15 em cada sub-grupo.
Inicialmente, buscou-se uma aproximação dos líderes de sala, já que estes alunos
são líderes por indicação ou por eleição, com notória representatividade daquele grupo,
são o elo de comunicação entre a gestão e os alunos, ou ao menos deveria ser. Em
algumas salas, notou-se a falta de estímulos para o exercício desta liderança, não havia
candidatos para exercer esta função. Em outras salas ocorreu o contrário, havia muitos
candidatos e uma verdadeira disputa para a ocupação do cargo. Contudo foi possível
realizar o questionário com os 16 líderes, um de cada sala, para que então chegar até os
outros alunos apontados por estes líderes como ―agressores‖ e vítimas‖.
O questionário realizado com os líderes foi de caráter norteador, pois a partir
dele surgiram os nomes dos alunos considerados ―agressores‖ e ―vítimas‖ das
brincadeiras violentas. Em uma nova etapa, foi realizado o questionário, diferenciado do
anterior, para estes dois grupos de alunos, que não foi proporcional ao número de salas
pela não aceitação de dois alunos.
Numericamente, teríamos 16 líderes de sala, 16 ―agressores‖ e 16 ―vítimas‖
somando 48 sujeitos, no entanto, ao grupo de ―agressores‖ faltaram dois questionários,
que não foram realizados, devido à falta de adesão ao Termo de Consentimento, por
parte dos responsáveis pelo aluno. Alguns alunos demonstraram total desinteresse pela
pesquisa e outros, mesmo se dizendo interessados, não efetivavam a participação por
não atender à legalização do processo de coleta. Nestes casos, os alunos foram
procurados várias vezes. Todavia, sem ultrapassar os limites dos alunos, a desistência de
tornar o aluno um sujeito da pesquisa acontecia quando se notava um desconforto do
estudante pela insistência da pesquisadora. Dois alunos não colaboraram com suas
respostas, toma-se a ―não aceitação‖ também como um dado.
Na medida em que havia uma desistência por um dos motivos já citados, se
voltava ao líder de sala e se pedia outra indicação para aquele perfil de aluno, ―agressor‖
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ou ―vítima‖, isto é, quando era possível a indicação de outra pessoa que tivesse traços
daquela personalidade.
Análise de dados
Uma das práticas corporais mais presentes nas aulas de Educação Física,
certamente, são as desportivas. Dentre as categorias agôn, Alea, mimicry e ilinx, o agôn,
tem larga vantagem na Cultura Escolar. ―Cada uma das categorias fundamentais do jogo
apresenta assim aspectos socializantes que, dada a sua amplitude e estabilidade,
adquiriram direito de cidadania na vida coletiva. Para o agôn, essa forma socializada é,
essencialmente, o desporto [...]‖ (CAILLOIS, 1990, p. 62).
Uma releitura constante dos jogos são, por fim, uma subcategoria deles: os jogos
híbridos. Eles se configuram como uma mistura entre um jogo e outro, as crianças e
adolescentes são hábeis em tal tarefa. O mesmo ocorre nas brincadeiras, como o ―pega-
esconde‖ citado nas respostas ao questionário, que é a mistura de um pega-pega com o
esconde-esconde. É muito divertido e diversas essas criações que surgem do interior dos
jogos e brincadeiras. Além das possíveis misturas no momento de brincadeira, há
também as variações das brincadeiras tradicionais, como o ―pega-ajuda‖, também
citado, que mantém elementos da brincadeira tradicional, acoplando novas regras,
sentidos ou significados, que por fim, vem a ser outra brincadeira. Château (1987) bem
descreveu ―a disciplina do jogo‖, por meio da qual somos induzidos a considerar a
existência de quatro tipos de jogos, isto é, pelas características da criação destas
brincadeiras. Esses jogos estão ligados às formas com que são originados, segundo suas
regras:
Funcionais: são jogos de origem instintivos, facilmente observados nos
bebês; Inventados: são quase sempre momentâneos, onde se aplica a um caso
novo uma regra já conhecida; De imitação: onde a criança reproduz os
movimentos/ações de um objeto ou pessoa, porém esta reprodução depende
de sua visão e sua vontade; Tradicionais: são jogos reproduzidos, no entanto,
depende de que outrem o transmita e assim de geração em geração se
eternizam.
Ficou para a pesquisa a imagem do ―superman maconheiro‖, o assunto era ―vilão
e herói‖, um texto remetia os alunos ao conceito destas palavras. Foi aí que surgiu a
imagem: um aluno está andando pela sala, porém, está atento ao assunto discutido no
momento, então ele imita uma mistura de superman com uma pessoa fumante, o
superman maconheiro. Podemos dizer que a simulação se tratava de maconha, pelo
modo de pegar e ―tragar‖ o cigarro ilusório. A própria fase da adolescência é uma fase
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híbrida, foi construída socialmente, assim como a infância12, o adolescente é uma
criança se adultizando, almeja posturas do adulto, mas ainda está impregnado do ser
infantil, é uma criança crescida, como veremos:
Cena 1: Um aluno entra na sala, em busca de um refúgio, se sentam e
simulam estar prestando atenção na aula como os demais alunos da sala, na
tentativa de se passar por alunos que ali estudam, logo, a professora nota o
movimento, neste instante chega o terceiro aluno em busca dos primeiros
―intrusos‖, a professora pede, gentilmente, que os três se retirem e eles saem
brigando entre si. Seria um pega-pega? Uma lutinha? Um esconde-esconde?
Certamente, uma em três, uma brincadeira híbrida.
É fantasiando que as crianças vivem, são nas fantasias que elas experimentam o
mundo, simbolizam o real e abstraem suas percepções, formando assim suas
significações para o mundo que a rodeia. Este episódio descrito vem de encontro ao
pensamento de Gerard Jones:
As crianças querem ser fortes e felizes ao mesmo tempo em que se sentem
seguras. Se prestarmos atenção, veremos que as fantasias delas expressam o
que acham que precisam atingir. Mas precisamos olhar além de nossas
expectativas e interpretações adultas e enxergá-las através dos olhos de uma
criança. Primeiro, precisamos começar a desembaraçar os medos e
preconceitos que os impedem de fazê-lo. (JONES, 2004, p.23)
Na pergunta ―Você brinca na escola? De quê?‖. Metade dos alunos disse que
sim, doze dizem que não — destes, dois dizem que brincava antes, agora, não mais.
Três ponderam com ―às vezes‖. As brincadeiras mais cotadas são pega-pega — e suas
variações, que aparecem em um terço das respostas; ―esconde-esconde‖; em segundo
lugar, com três, depois muitas outras são citadas uma vez, como ―bagunça‖, ―bola‖,
―corda‖, ―correr‖, ―polícia e ladrão‖, ―guri pega menina‖, ―vôlei‖, ―conversa‖ e ―jogo
da velha‖.
Nos bastidores do recreio, a música ―rola‖ à solta, seja nos celulares ou nas
caixinhas de som da Rádio, pela radiotransmissão que se ouve, em geral, algumas
músicas do estilo MPB e dance, muitas evangélicas e várias do estilo Sertanejo
Universitário. As músicas que mais se ouvem dos celulares são do ritmo funk e
Sertanejo Universitário, muitas são de intérpretes populares como ―Luan Santana‖,
―Gustavo Lima‖ e também de artistas regionais, como a Banda ―Scort Som‖, que é uma
banda de lambadão16, ritmo tipicamente cuiabano. O que os alunos mais escutam são
do gênero ―Funk Proibidão‖iv
. Trechos de Funk que se ouvia com frequência:
♪♫ Vou pra carcá de vagarinho...
♪♫ Vai mamar na van, vai mama na van,
vai mama, mama, mama, mama na van//
Vc chupa, chupa, chupa, chupa, chupa as cabecinha,
vc chupa, chupa, chupa, chupa chupa a bolinha.
♪♫ Quer que eu conte a mentira e te faço feliz?
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Quer que eu conte a verdade e te deixo chorando?
Das brincadeiras violentas ― Brincando de matar
Quando as respostas ao questionário não bastaram, o objeto de estudo se tornou
assunto periférico quando me deparei com os dados. Por este motivo, passou-se a
conversar com os alunos no intervalo das aulas. Sempre que via um grupo se formar, me
aproximava e tentava interagir na conversa e, aos poucos, instigava-os a falar das
brincadeiras a que eu tinha interesse, me sentia uma espiã, tentando me infiltrar em uma
conspiração. Foi a estratégia que planejei, pois há muitas conspirações nos interstícios
do ambiente escolar, difícil de descrever, como se configurasse como algo proscrito.
Falar sobre brincadeiras violentas é apenas um jeito de falar sobre brincadeiras e nos
parece óbvio que a escolha e a declaração das brincadeiras adiante relacionadas não
esteja livre de julgamento e afetação por parte dos alunos relatores. Como consequência,
existe uma margem de erro ou, no mínimo, discrepância entre o que uma pessoa e outra
define como brincadeira violenta. Quando seleciono o que é e o que não é uma
brincadeira violenta, esta seleção permanece mergulhada em minha interpretação
subjetiva para o fato.
Em cenas esporádicas, temos alguns casos de objetos e utensílios diretamente
ligados à violência, que são trazidos pelos alunos, como é o caso de um aluno que é
intimado para se apresentar na sala de coordenação, pelo fato de ter trazido, em sua
mochila, uma faca e um martelo em miniatura. Não obtivemos êxito em constatar se
estes instrumentos seriam miniaturas de brinquedo ou em tamanhos reais. Desta
natureza também é o caso a seguir:
Cena 2: Logo ao chegar na escola, nos primeiros dias de observação, ainda
exploratória, vejo alunos brincando no pátio com um objeto, permaneço
muito distante da cena por não ter ainda me familiarizado com o local e com
os alunos, não pergunto o que é o objeto, mas depois, chega ao meu
conhecimento de que era uma arma artesanal, de pólvora. O coordenador foi
avisado, pegou a arma e a guardou.
As marcas do corpo
Uma das marcas corporais mais bem desenhada, foi na ―brincadeira‖ de duas
meninas deste espaço pesquisado, ambas estudantes do 7º Ano. Elas possuíam vários
riscos nos braços os quais eram pequenos ferimentos feitos naquela semana que
estavam a cicatrizar. A primeira possuía 11 riscos no antebraço esquerdo, junto com as
iniciais LS (que são as iniciais do nome de Luan Santana) e 31 no direito, totalizando
mais de 40 pequenos cortes nesta parte do corpo. A segunda possuía 33 riscos no
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antebraço esquerdo, junto com as iniciais LRDS (iniciais do nome completo do cantor),
9 riscos na parte superior do braço — na região do bíceps e 72 no antebraço direito.
Percebendo a situação e totalizando mais de 100 riscos, feitos com uma lâmina
de metal, quando perguntadas dos motivos, disseram que era porque elas eram fãs do
cantor. Quem sabe este fato pode ser enquadrado como uma ―loucura de fã‖, loucura ou
brincadeira? Na alegação das meninas, esta ocorrência não era uma brincadeira. Le
Breton (2003), nos oferece outras alternativas de reflexão, ele relata a possibilidades do
ser humano tomar seu ―corpo como acessório‖, algo a se modelar a seu bel-prazer. Este
corpo pode ser esculpido ou entalhado, como no caso acima, como se quer, pelos
motivos que se julgarem necessários. Desta mesma natureza é o caso da garota que
―fugiu‖ da escola para colocar piercing no umbigo. O que vemos é a maleabilidade do
corpo-acessório, a anatomia não é mais segredo, mistério a ser desvelado, mas as
estruturas corporais careceriam agora de mudanças, pois ―ao mudar o corpo, o indivíduo
pretende mudar sua vida, modificar seu sentimento de identidade‖ (LE BRETON, 2003,
p. 30).
Dividimos em três blocos as respostas sobre os apelidos. Um bloco compreende
os alunos que não possuem apelidos; outro, os alunos que tem em seus apelidos — ao
menos, eles assim os consideram — o seu sobrenome ou a abreviação do seu primeiro
nome. O último bloco compreende os alunos que têm apelidos diversos, a saber: Gordo,
Bolo fofo, Meio metro, Formiga, Perna de Pau, Girafa, Suco de Pneu, Batidinha de
Carvão. Foram desconsiderados os nomes com sufixo diminutivo ou aumentativo desta
relação — para se preservar a identidade dos sujeitos. Acrescentam a essa lista outros
adjetivos transformados em xingamentos: Burrinho, Feio, Chato, Burra, Besta, Chata,
Sem-graça. Apelidos diversos são agregados à lista, como: Mandioca, Bombom, Cara
de Pastel, Pato, Ganço, Calcinha, Zoio, Tiririca, Mandioca, Escorrega, Pinho, Ploco,
dentre outros.
No recreio eles descrevem algumas das Brincadeiras Violentas que conhecem:
Hoje não!: é necessário ter ―tratado‖23 com alguém para se brincar, então, em dado
momento, um dos participantes da brincadeira começa a bater em outro, sempre de
surpresa, sem que o outro perceba a aproximação do agressor; Pirulito: depois de
―tratar‖, os participantes não podem pronunciar palavra que comecem com a letra P, se
isto acontecer, ele deve rapidamente dizer ―Pirulito!‖. O que não fala é castigado
momentaneamente com murros, tapas, cróque, chutes e etc; Peta: consiste em bater com
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os dedos indicador e médio, no braço do colega; Passou-levou: se faz, geralmente, em
grupos, onde o aluno que passa por ali recebe golpes variados, como chute, soco e etc;
Considerações finais
A pesquisa de campo, de início, trouxe certo desconforto para ambas as partes:
pesquisador e pesquisados; desconforto que também pode ser interpretado como
estranhamento, que, de certa forma, é comum nas pesquisa deste gênero. O estudo
revelou que, ao contrário do que se possa supor, as Brincadeiras Violentas ocorrem,
preferencialmente, em sala de aula, no órgão vital da escola, ali, surgem rituais de
humilhação, ―chacota‖, escárnio... Corredores, os pátios e a frente da escola também
foram eleitos como locais passíveis destas práticas, com menores índices de incidência,
na opinião dos alunos. As assinaturas da violência, passíveis de observação, dentro da
brincadeira, no ambiente escolar são: xingamentos, agressões físicas, agressões verbais,
bullying e ―brincadeiras de mau gosto‖. De fato, quase todos os alunos têm algo a falar a
respeito, que já viram ou ouviram coisas do gênero.
Mas não se vai, de forma alguma, acabar com as Brincadeiras Violentas e, muito
menos, com a violência nas escolas, não nos cabe este papel ou função. É
compreensível que os gestores, peçam ajuda, a escola sempre está em busca de ajuda,
sempre pedindo socorro para estas e outras questões que atravessam o ambiente escolar
e que perturbam a ordem natural do ambiente escolar. Porque este tipo de atitude fere a
integridade física ou moral das crianças, atentam contra a ordem, atentam contra a vida.
Resta-nos insistir, ao modo de Maffesoli (2004), no fato de que a pessoa humana
tem a possibilidade de entrar (ingressar) em sua natureza sem rejeitar esta ou aquela
parte. Consideremos contudo sua complexidade, sua incompletude, sua profundidade,
sua sincretude. Muitas são as faces da Brincadeira Violenta, o ―vaivém entre o anjo e o
demônio, partilha entre céu e terra, são muitas as expressões que frisam no terreno
artístico a ambiguidade da criança que brinca.‖ (Maffesoli, 2004, p. 139)
E quem nunca fez uma Brincadeira Violenta que atire a primeira pedra!
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REFERÊNCIAS
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Papirus, 2011.
BOGDAN, Robert C.; BIKLEN, Sari Knopp. Investigação qualitativa em educação —
uma introdução à teoria e aos métodos. Porto: Porto editora, 1994.
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DURKHEIM, E. A educação moral. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008.
JONES, Gerard. Brincando de matar monstros: por que as crianças precisam de
fantasia, videogames e violência de faz de conta. São Paulo: Conrad Livros, 2004.
LE BRETON, David. Adeus ao Corpo — antropologia e sociedade. Campinas: Papirus,
2003.
MAFFESOLI, Michel. A parte do diabo — resumo da subversão pós-moderna. Rio de
Janeiro: Record, 2004.
i Aluna do Doutorado em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT. Grupo de
Estudos e Pesquisas sobre Corporeidade e Ludicidade – GEPCOL. E-mail: [email protected]
ii Aluna do Doutorado em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT. Grupo de
Estudos e Pesquisas sobre Corporeidade e Ludicidade – GEPCOL. E-mail: [email protected]. iii
Entrevista concedida em 20/06/2011. iv Um estilo musical, que, assim como o Funk Melody é derivado do Funk Carioca.
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