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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Adriana Aparecida de Oliveira Cenas de enunciação e ethos discursivo no discurso literário escrito por Moacyr Scliar em Língua Portuguesa MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA SÃO PAULO 2011

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

Adriana Aparecida de Oliveira

Cenas de enunciação e ethos discursivo no discurso literário escrito por Moacyr Scliar

em Língua Portuguesa

MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA

SÃO PAULO

2011

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

Adriana Aparecida de Oliveira

Cenas de enunciação e ethos discursivo no discurso literário escrito por Moacyr Scliar

em Língua Portuguesa

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Língua Portuguesa, sob a orientação do Prof. Doutor Jarbas Vargas Nascimento.

SÃO PAULO

2011

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Banca Examinadora

...........................................................................................

.............................................................................................

.............................................................................................

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À minha avó Luiza

Sempre

Ao Prof. Moacyr Scliar

Imortal

... nossa vida era regulada por um ciclo aparentemente eterno e imutável...(MS)

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AGRADEÇO ... A milha família, alicerce ... exemplo que a união é força Uma união de sangue que também por ser uma relação de amor fica cada vez maior. Mãe - Muito obrigada. Sua presença é essencial Aos meus amados sobrinhos são pura alegria Nayara, Tamyris, Kawan, Ludmilla e Diego, Lucas e Pedro, Marcos Aos Meus irmãos Rogério , Marcio e Marcos Raquel e Vagner Paula, Meire e Gisele Aos meus tios que estão sempre por perto e acompanharam minha trajetória Aqui são muitos: Isaura, Wanna, Nego, Miro, Antonia, Fátima, Ao meu primo-tio José Antonio – Sabiá - Muito obrigada pela colaboração. Sempre prestativo, ajudou-me muito. Aos meus queridos primos - Todos gente boa: Guga, Toni, Milena, Aline, Chris, Well, Lizandra, Samara, Soraia, Nando, Glaucco e Glauccio E um agradecimento especial a família que escolhi: Kuka, Nina, Yasmin, Nega, Cesar, Laila Um carinho e meu profundo agradecimento: Cremilda, Flavio, Silvia Peres, Silvia Moraes, Sandra, Neusa, Margareth, Lilian, Ivana, Maria Cezira, Almir, Marcio, Jussanea, Ana Lucia, Sueli, Elisabeth Machado, Lucia Guilhoto e Linete Martinez (amigas sempre) E... vou parar de nominar para não ser traída pela memória

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- Ao Prof. Jarbas agradeço a colaboração, orientação e amizade, exemplo de dedicação ao trabalho e a vida. Mestre que acreditou em mim até mesmo quando duvidei. Que com sua humildade fez-me acreditar no meu sonho. Muito obrigada! - Aos Professores da PUC e do Departamento de Língua Portuguesa, pelo apoio, ensinamentos e desafios. Pela acolhida na Universidade. Muito Obrigada! - Aos Professores João Hilton e Mauro Maia por terem aceitado participar da banca examinadora de qualificação, com críticas fundamentais que espero ter podido atender. Muito Obrigada! - Aos funcionários da PUC apoio fundamental Lourdes, Rodrigo, Miriam, Cida Miloni e toda a equipe da Secretaria. Muito Obrigada! - As amigas e companheiras na PUC e para vida: Sabrina, Rosmeire, Nelci, Paula, Izilda, Flavio e Élio. Muito Obrigada! - Aos Supervisores de Ensino – Vagner Manaf e Cristina responsáveis pela Comissão de Bolsas de Mestrado da Diretoria de Ensino Leste 5. Muito Obrigada! – A Cida Teodoro e os amigos do Departamento Financeiro. Muito Obrigada! - Aos Amigos Professores e Funcionários da EE Luiza Mendes Correa e da Diretoria de Ensino Leste 5. Muito Obrigada! A Secretaria de Estado da Educação por possibilitar que nós professores da Rede Pública de Ensino tenhamos a oportunidade de estar em renomadas Instituições de Ensino. – Muito Obrigada! - A Deus יהוה Muito Obrigada!

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RESUMO

CE�AS DE E�U�CIAÇÃO E ETHOS DISCURSIVO �O DISCURSO LITERÁRIO ESCRITO POR MOACYR SCLIAR EM LÍ�GUA PORTUGUESA

Esta dissertação tem por objetivo geral examinar a construção da cena de

enunciação e a constituição do ethos discursivo, no discurso literário escrito por Moacyr

Scliar em Língua Portuguesa. Como objeto de análise, tomamos o conto As Pragas,

escrito por Moacyr Scliar que assumimos como discurso.

A fundamentação teórico-metodológica utilizada para a análise, é dada pela

Análise do Discurso de linha francesa, na abordagem proposta por Dominique

Maingueneau em especial para o discurso literário.

O discurso analisado de autoria de Moacyr Scliar, corresponde a uma prática

discursiva freqüente na obra deste autor, que tendo o discurso bíblico como fonte de

inspiração apresenta uma significativa parte de sua obra relacionada como ele intitula a

“bíblia revisitada”. Na verdade, a proposta discursiva de revisitar as antigas histórias,

parábolas e personagens bíblicos, que por meio da ficção recebem deste autor um tom

contemporâneo, crítico, marcado pela ironia, pelo humor ou até mesmo reflexivo, estes

são os pressupostos adotados que inscrevem As Pragas no discurso literário

contemporâneo.

A relevância desta pesquisa reside em propor por meio da Análise do Discurso

de linha francesa um novo tratamento ao evento literário destacando as categorias como

a cena de enunciação e o ethos discursivo.

Palavras-chave:

1. Análise do Discurso

2. Discurso Literário

3. Ethos discursivo

4. Cenas de Enunciação

5. As Pragas

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Abstract

SCE�ES OF E�U�CIATIO� A�D DISCURSIVE ETHOS I� LITERARY DISCOURSE WRITTE� BY MOACYR SCLIAR I� PORTUGUESE LA�GUAGE

This dissertation aims to examine the overall scene of the construction of enunciation

and the constitution of Discursive Ethos, in the literary discourse by Moacyr Scliar in

Portuguese Language. The tale “As Pragas” written by Moacyr Scliar was taken as the

purpose of analyses that we have taken on a discourse.

The theoretical and methodological basis used to analyze, is given by the Discourse

Analyses of the French line on the approach proposed by Dominique Maingueneau

especially for literary discourse.

The discourse analysis written by Moacyr Scliar, corresponds to a discursive practice

common in his works which have the biblical discourse as a source of inspiration and

present a significant part of his work related as he calls the “Bible revisited”. In fact,

the discursive proposal to revisit the old stories, parables, and biblical characters, that

get through the fiction of this author, a contemporary tone, critical, marked by irony,

humor, or even reflective. These are the adopted assumptions that inscribe “As pragas”

in contemporary discourse.

The relevance of this research is to propose through the discourse analyses of the French

line a new literary event highlighting categories like the Scene of Enunciation and the

Discursive Ethos.

Keywords:

1. Discourse Analysis

2. Literary Discourse

3. Discursive Ethos

4. Scenes of Enunciation

5. “As pragas”

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 2

CAPÍTULO I - AS CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO DO DISCURSO LITERÁRIO ESCRITO POR MOACYR SCLIAR EM LÍNGUA PORTUGUESA

1.0 Introdução ..................................................................................................................... 6

1.1 A emergência a concepção de literatura e o papel da Análise do Discurso .................. 7

1.2 Literatura – possíveis caminhos .................................................................................... 9

1.3 O discurso literário ...................................................................................................... 12

1.4 O gênero conto – do literário ao discursivo ................................................................ 16

1.5 O Conto Contemporâneo em Língua Portuguesa ........................................................ 18

1.6 Scliar e sua participação no discurso literário brasileiro ............................................. 21

1.6.1 O início no Bom Fim .......................................................................................... 22

1.6.2 Revolução e engajamento .................................................................................... 24

1.6.3 Scliar Médico e Autor – questão de identidade................................................... 26

1.6.4 Scliar e a “Orelha de Van Gogh” ....................................................................... 27

CAPÍTULO II - CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA ANÁLISE DO DISCURSO 30

2.0 Introdução ................................................................................................................... 30

2.1 Enunciado e Texto ....................................................................................................... 30

2.2 Interdiscurso ................................................................................................................ 32

2.3 Cenas de enunciação e situação de comunicação ........................................................ 34

2.4 Ethos retórico .............................................................................................................. 38

2.5 Ethos prévio - segundo Maingueneau ......................................................................... 39

2.6 Ethos discursivo - ........................................................................................................ 40

2.4 Gênero do Discurso ..................................................................................................... 44

CAPÍTULO III - ANÁLISE ......................................................................................... 46

3. Introdução ....................................................................................................................... 46

3.1 Quem conta um conto As Pragas ............................................................................ 47

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3.2 Interdiscursividade e a geração de conflitos discursivos ......................................... 49

3.3 As Pragas na literatura uma cena englobante.......................................................... 52

3.3.1 O conto As Pragas – um gênero do discurso ...................................................... 54

3.3.2 As Pragas – a cenografia ..................................................................................... 58

3.3.3 As Pragas – e espaço e o tempo discursivos ....................................................... 59

3.3.4 As Pragas – um código linguageiro .................................................................... 63

3.3.4 O ethos discursivo - a família .............................................................................. 64

3.3.5 O ethos discursivo – o filho ................................................................................. 67

Considerações finais ................................................................................................................ 70

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................... 72

ANEXO

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ITRODUÇÃO

Esta Dissertação é o resultado de um desejo há muito ‘desejado’ e que por

circunstâncias da vida foi, por tantas vezes, adiado. Ter as condições necessárias para

poder dedicar um tempo aos estudos e examinar o discurso literário do ponto de vista

lingüístico. Encontrar caminhos teórico-metodológicos que permitissem discutir as

questões lingüístico-discursivas que envolvem todo o evento literário e compartilhar

destas reflexões com os interessados em uma boa prosa sobre a “boa prosa”.

Uma motivação que gerou esta pesquisa esta baseada na discussão com

professores e alunos sobre a noção que envolve a produção literária. Quais seriam os

critérios que estabelecem a noção de literatura, seriam critérios que se remetem somente

aos textos, quais obras poderiam ser consideradas como literatura, ou ainda, quais

autores podem se inscrever como produtores de literatura, inicialmente estas

proposições são dadas por Antonio Candido, que aborda o evento literário sob uma

perspectiva social.

(...) O fenômeno literário da maneira mais significativa e

completa possível, não só averiguando o sentido de um

contexto cultural, mas procurando estudas cada autor na

sua integridade estética. (CANDIDO, 2000, p.29)

Entretanto novas proposições teórico-metodológicas serão necessárias para

abordar o evento literário como veremos, nesta pesquisa, trata-se de um evento

complexo, que envolve inúmeros determinantes, não só pela perspectiva social,

histórica, como também por teorias voltadas para os estudos da língua.

Outra motivação que desencadeou a pesquisa foi a necessidade de responder

algumas questões sobre a concepção do que é um texto, se é uma unidade coerente em

si mesma, ou ainda se a coerência é adquirida na perspectiva interacionacionista, são

concepções adotadas, principalmente, pela Linguística Textual, que não são descartadas,

por nossa pesquisa, mas estas concepções serão tomadas por discurso e por elementos

lingüístico-discursivos.

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Logo, ao adotarmos o discurso como modos de apreensão da linguagem

Maingueneau (2006b, p.43) e consideramos que a noção, não só de texto, como as

concepções de literatura poderão ser reconfiguradas, pela proposta teórico-metodológica

da Análise do Discurso francesa, e pela perspectiva de Dominique Maingueneau.

Foi na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo no Programa de

Estudos Pós-Graduados em Língua Portuguesa com a orientação dos professores e

pesquisadores que nos garantiramu a oportunidade de aprender, discutir, conhecer,

enfim expor dúvidas e refletir sobre questões que estão impostas pelo uso da língua e

sua complexidade. Hoje, podemos afirmar que o sentimento de acolhida foi respaldado

por princípios teóricos e metodológicos, que contribuiram com as atividades acadêmicas

e profissionais, nas quais questões lingüístico-discursivas estão implicadas

cotidianamente.

Conjugando estes fatores motivacionais e acadêmicos, o resultado que

julgamos satisfatório está nos estudos da enunciação e, mais especificamente, nos

princípios teórico-metodológicos da Análise do Discurso de linha francesa.

Muitas vezes se apresenta a Análise de discurso como

uma tentativa para superar os limites da filologia

tradicional e das diversas "análises de conteúdo" em uso

nas ciências humanas. :a linha direta da "nova crítica"

literária e do conjunto do estruturalismo, a Análise de

Discurso reconhece a existência de "estruturas"

específicas da discursividade, pré-requisito obrigatório

para qualquer análise séria de textos. (MAINGUENEAU,

1990, p.66)

Neste sentido, a Análise do Discurso se apresenta, sob nossa perspectiva,

como um avanço para a análise de texto, pois permite que sejam estudadas além das

marcas lingüísticas materializadas no texto, a situação de comunicação, às cenas da

enunciação e suas estruturas discursivas. O que nos levou a pesquisa foi à necessidade

de buscar uma metodologia de análise, que contemplasse o discurso, inclusive, que se

aplicasse à esfera literária.

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Nos deparamos com uma problemática a ser desvendada sobre o discurso

literário. A investigação sobre quais são os elementos discursivos que irão tornar-se

suficientemente expressivos para inserir um discurso no campo discursivo literário.

Bastará termos na cenografia os elementos ficcionais, e de estilo, para que um

enunciado se inscreva no discurso literário?

Qual a importância da instauração do ethos discursivo como elemento

constitutivo capaz de incorporar um enunciado ao discurso literário?

Para responder a estas questões, selecionamos como amostra o discurso As

Pragas produzido por Moacyr Scliar.

Esta dissertação tem por objetivo geral analisar a constituição das cenas de

enunciação e o ethos discursivo, presentes na organização do discurso selecionado, bem

como as condições lingüísticas que se estabelecem nas relações interdiscursivas.

presentes no conto As Pragas, de Moacyr Scliar.

Especificamente, a análise destes elementos lingüísticos permitirão

comprovar que o texto é um rastro do discurso. Segundo Maingueneau (2008c), os

planos da semântica global perpassam por todo o texto, e por meio destes elementos

lingüísticos é que se constituirão os significados do texto, que contribuirão para a

legibilidade tanto do texto, quanto do discurso. Trataremos de identificar os

marcadores temporais, presentes na dêixis enunciativa, que fornecem pistas para a

constituição da cenografia, assim como as marcas de pessoa e não pessoa que marcam o

posicionamento discursivo dos personagens, verificar a construção da cenas de

enunciação e do ethos discursivo. Com estas relações constituídas trataremos neste

trabalho de aplicá-las na análise das categorias das cenas de enunciação e do ethos

discursivo.

Nossa opção teórico metodológica é pela Análise do Discurso de linha

francesa, com base na abordagem de Dominique Maingueneau que, a partir dos anos de

1960, vem construindo um arcabouço teórico-metodológico, que amplia e possibilita

que a metodologia proposta atenda à investigação de textos funcionais e literários.

Maingueneau propõe uma observação do evento literário do ponto de vista textual e

discursivo, contemplando as condições de comunicação e a situação de enunciação do

evento literário.

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Em relação à organização desta dissertação seguiremos além desta

introdução com três capítulos:

No primeiro Capítulo – As condições de produção do Discurso Literário em

Língua Portuguesa, apresentaremos uma conceituação sobre literatura e sobre o

Discurso Literário, além da apresentação de Moacyr Scliar seguindo uma

contextualização que julgamos necessária para compor a pesquisa.

No segundo Capítulo – Pressupostos teóricos da Análise do Discurso de

linha francesa que nortearão as categorias analisadas: Discurso literário, as relações

interdiscursivas, gênero do discurso, as cenas da enunciação e ethos discursivo.

No terceiro Capítulo – Análise do mostra o discurso As Pragas. Um estudo

dos elementos lingüístico-discursivos para a construção das cenas enunciativas e do

ethos discursivo.

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CAPÍTULO I - AS CODIÇÕES DE PRODUÇÃO DO

DISCURSO LITERÁRIO ESCRITO POR MOACYR

SCLIAR EM LÍGUA PORTUGUESA

1.0 Introdução

Para cumprir a proposta da pesquisa, deparamo-nos com a necessidade de

examinar quais os elementos lingüístico-discursivos de uma amostra que fornecem

pistas para a análise que vamos empreender, sobre as da manifestações literárias em

nosso cotidiano.

Fato que parece ser tão simples deixa de ser, quando temos a tarefa de

restringir, selecionar, e definir o que é manifestação literária ou apenas uma produção

escrita.

Selecionamos um autor contemporâneo, o brasileiro Moacyr Jayme Scliar,

gaúcho, de Porto Alegre, que tem uma produção intelectual que atravessa inúmeros

gêneros de discurso romances, contos, ensaios, colunas jornalísticas. Além uma

produção direcionada ao público infantil, tanto quanto a intensidade de sua produção, a

diversidade são marcas de sua inserção cultural no cenário acadêmico e artístico.

Scliar foi um autor que marcou sua participação no cenário cultural

contemporâneo por uma exposição constante na mídia televisiva, em discussões

acadêmicas sobre literatura e inúmeros artigos em jornais de todo o país que discutiam o

cenário artístico, de fato foi um autor que dedicou grande parte de sua vida a divulgar a

literatura, tornando-o assim um legítimo representante da instituição literária (...) pois

designa a vida literária (os artistas, os editores, os prêmios, etc) levando em conta o

conjunto de quadros sociais da atividade dita literária. (MAINGUENEAU, 2006a,

p.53).

Apresentando o autor a etapa seguinte é selecionar de sua obra um discurso

que atenda aos nossos objetivos. Optamos pelo discurso As pragas, publicado

inicialmente no livro A orelha de Van Gogh, de 1988.

O discurso selecionado é representativo da obra de Scliar, traz uma prática

verbal relativamente frequente em seu repertório, promovendo a intertextualidade com o

discurso bíblico e integrando-o a contemporaneidade.

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1.1 A emergência a concepção de literatura e o papel da Análise do

Discurso

A Análise do Discurso é uma proposta teórico-metodológica que teve seu

surgimento em meados dos anos de 1960 e que propõe uma concepção global de

discurso, surgiu e desenvolveu e sofreu um processo de evolução por meio da noção de

discurso e como se dá sua funcionalidade.

Assim como a Análise do Discurso, os estudos literários na década de 1960

e 70 desenvolveram novas problemáticas que questionavam as concepções de literatura

que vinham sendo difundidas desde o final do século XVIII. Correntes de estudos que

pautavam-se pelo Estruturalismo e futuramente as propostas da Teoria da Enunciação

foram decisivas para reformular as concepções dos estudos lingüísticos e literários.

As teorias da enunciação lingüística, as múltiplas

correntes da pragmática e da análise do discurso, o

desenvolvimento do campo literário de trabalhos que

recorrem a Bakhtin, à retórica, à teoria da recepção, à

intertextualidade, à sociocrítica etc impuseram

progressivamente uma nova apreensão do fato literário na

qual o dito e o dizer, o texto e o contexto, são

indissociáveis. (MAINGUENEAU, 2006, p.7)

Contudo, a noção de discurso literário ainda apresenta pressupostos que

contrariam a proposta que prevalece para os estudiosos de literatura e, podemos dizer,

que até mesmo a noção de literatura difundida em contextos institucionais como

escolas, mídia, etc. A primeira proposta difundida pelos Românticos que consagram

textos e autores estabelecendo critérios estéticos para inscreverem uma obra no

‘sagrado’ literário, ou ainda correntes da crítica literária sociológica que estudam o

fenômeno literário ligado ao funcionamento da sociedade que o produz .

Para a Análise do discurso literário o primeiro pressuposto é que não

devemos nos pautar por restrições aos textos consagrados pela estética romântica da

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literatura. Por explorar as dimensões da discursividade a Análise do Discurso literário

vale-se de noções por vezes tomadas de outras ciências como a Psicanálise, a Sociologia

a Antropologia entre outras, que podem ser projetadas e constituindo desta maneira,

possibilidades de análise que emergem na relação interdiscursiva. A Análise do

Discurso literário é tomada por uma constituição que:

(...) não se contenta com a mobilização de noções tomadas

à Psicanálise, à Sociologia à Antropologia etc. para

‘aplicá-las’ a textos literários, não se trata de projetar um

universo (as ciências humanas) noutro (a literatura) que

lhe seria estranho, mas de explorar o universo do

discurso. (MAINGUENEAU, 2006a, p.38)

O segundo pressuposto é que o discurso literário está fortemente ligado aos

estudos lingüísticos, e não se restringe a apenas uma corrente de estudos da língua,

portanto acompanha reconhece tanto as correntes mais tradicionais como as noções da

gramática descritiva passam a ser utilizadas para reelaborar interpretações, mesmo que

por principio metodológico estariam ligados apenas à Linguística, ou de elementos que

derivam da Teoria da Enunciação como os estudos de gêneros, a polifonia enunciativa,

de marcadores de interação oral, entre outros que estão presentes nas propostas da

Análise do Discurso com a finalidade de apreensão do fato literário

(...) na perspectiva da análise do discurso, as ciências da

linguagem intervêm de duas maneiras, e não apenas nos

termos anciliares tradicionais da ‘gramática’(ainda que

esta última tenha entrements se tornado “lingüística”)

com relação à literatura. O recurso à lingüística não é

mero uso de ferramentas elementares, ou como no caso do

estruturalismo, de alguns princípios de organização

sobremodo gerais; ela constitui um verdadeiro

instrumento de investigação. (MAINGUENEAU, 2006a,

p. 38)

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Diante destes pressupostos, segundo Maingueneau (2006a) não é elementar

buscar uma distinção dos textos julgados dignos da literatura propriamente dito, mas

nos dedicarmos aos fundamentos da metodologia aplicada a Análise do Discurso, ou

seja, o discurso e todos as condições de sua constituição.

O discurso literário apresenta como uma de suas características, um plano

determinado da produção verbal, marcado como discurso constituinte. É neste plano que

serão estabelecidas as relações com os demais discursos, como por exemplo: o discurso

literário e o discurso sociológico, o discurso literário e o discurso religioso, o discurso

literário e o discurso político, entre outros discursos constituintes.

Os discursos constituintes são aqueles que conferem sentidos aos atos da

coletividade, sendo em verdade representados em múltiplos gêneros do discurso

(Maingueneau, 2006a, p. 61), que emergem o discurso literário a análise evidencia um

discurso de Origem, uma autoridade, uma fonte enunciativa que corresponde

simultaneamente a um, ou mais, discursos (além do literário). Os discursos constituintes

não possuem uma delimitação rígida de suas fronteiras, são hipóteses que se constroem

de acordo com as produções verbais de uma determinada sociedade, que têm como

propriedades as condições de emergência, de funcionamento e de circulação de um

discurso.

1.2 Literatura – possíveis caminhos

A reflexão sobre o evento literário se realiza mediado, inevitavelmente, por

preceitos da crítica literária, daí a necessidade de apoio teórico capaz de conceituar e

orientar o que entendemos por literatura.

Não temos a pretensão de apresentar uma conclusão, ou um único conceito

que possa atender a todos os questionamentos que já foram feitos sobre o que é

literatura. O que faremos e propor uma reflexão sobre o conceito pressuposto por

Aristóteles (384-322aC) um dos primeiros estudiosos a dedicar-se a conceituar arte

literária, e que entende a literatura como uma arte capaz de recriar a realidade pelo

pricípio da imitação, a mimesis, em toda sua estrutura personagens, tempo, ação, e

marcando suas distintas maneiras de representações.

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:osso propósito é abordar a ‘obra’ poética em si mesma

e em seus diversos gêneros, dizer qual a função de cada

um deles, e como se deve construir a fábula, visando a

conquista do belo poético; qual o número e natureza de

suas (da fábula) diversas partes, e também abordar os

demais assuntos relativos a esta produção. (...) Seguindo a

ordem natural, começaremos pelos pontos mais

importantes. A epopéia e a poesia trágica, assim como a

comédia, a poesia ditirâmbica, a maior parte da aulética e

da citarística, consideradas em geral, todas se enquadram

nas artes de imitação. (ARISTÓTELES, 2001, p.45)

O conceito de literatura, ou melhor, da Arte Literária de Aristóteles está

pautada não só pela representação da realidade, mas como a arte da elevação,

associando a questões estéticas. A arte literária pode estar vinculada a todos os gêneros,

desde que estes empreguem a linguagem de maneira que seja mais ‘sofisticada’.

Seguindo estes caminhos Aristóteles privilegia não só alguns gêneros, como também o

próprio conceito de estética está condicionado por valores culturais, históricos e até

mesmo subjetivos.

Desta ordem aristotélica para o conceito de arte literária, que prevaleceu na

cultura ocidental e defendida por décadas, é que literatura é uma arte marcada pela

elevação, um registro da realidade marcado por padrões estéticos que são por sua

elevação, independem de tempo, de cultura, literatura é uma construção artística

universal.

Nos séculos que nos distanciam dos gregos, inúmeras correntes críticas

tratam do tema com substancial dedicação, ora valorizando as condições de estilo e

adequação às Escolas Literárias, ora tendo sua valorização marcada pela utilização da

linguagem como forma de expressão, sendo assim centrando-se em questões estéticas.

Com o propósito de tratarmos das questões contemporâneas como

subjetivação, posicionamentos sociais entre outros nossa reflexão passa inevitavelmente

pelo filósofo Jean-Paul Sartre (1905-1980) que, no século XX, apresenta a noção da arte

engajada, ou especificamente a Literatura Engajada. Este conceito tem por sinal uma

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valorização não só dos aspectos estéticos como também da sociedade em que está

inserida. A arte assume também uma função social e, portanto, a linguagem assume um

aspecto de maior inserção para o público, a arte deve refletir a sociedade e

simultaneamente ser ‘absorvida’ por ela.

Do mesmo modo, a função do escritor é fazer com que

ninguém possa ignorar o mundo e considerar-se inocente

diante dele. E uma vez engajado no universo da

linguagem, não pode nunca mais fingir que não sabe

falar: quem entra no universo dos significados, não

consegue mais sair; deixemos as palavras se organizarem

em liberdade, e elas formarão frases e cada frase contém

a linguagem toda e remete a todo o universo; o próprio

silêncio se define em relação às palavras, assim como a

pausa, em música, ganha o seu sentido a partir dos grupos

de notas que a circundam. Esse silêncio é um momento da

linguagem; calar-se não é ficar mudo, é recusar-se a falar

- logo, ainda é falar. (SARTRE, 1993, p. 22)

A arte literária, segundo Sartre, passa a receber um tratamento de

proximidade do artísta com a sociedade, o contexto político que ele está inserido,

engajando a função artística a um propósito de inferir conhecimentos e posicionamentos

ideológicos. O século. XX dessacraliza os principios de elevação artística, em busca de

uma função social, seja esta de encaminahar uma reflexão, de registrar um evento

histórico ou mesmo retratar os dilemas da sociedade. Promovendo literatura como uma

arte que também é responsável por oferecer reflexões ideológicas, filosóficas, históricas

entre outras.

Aproximando ainda para o contexto brasileiro, Antonio Cândido (2000,

p.23) compartilha do conceito de valorização da sociedade como condicionante do

evento literário, baseada na tríade da produção literária: autor, obra e público.

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12

Distinguindo manifestações literárias, de literatura

propriamente dita, considerada aqui como um sistema de

obras ligadas por denominadores comuns, que permitem

reconhecer as notas dominantes duma fase. Estes

denominadores são, além das características internas,

(língua, temas, imagens) certos elementos de natureza

social e psíquica, que se manifestam historicamente e

fazem da literatura aspecto orgânico da civilização. Entre

eles se distinguem: a existência de um conjunto de

produtores literários, mais ou menos conscientes de seu

papel; um conjunto de receptores, formando os diferentes

tipos de público, sem os quais a obra não vive; um

mecanismo transmissor, (de modo geral, uma linguagem,

traduzida em estilos) que liga uns a outros

Seguindo esta concepção o surgimento das obras tidas como literárias,

variam de acordo com a dinâmica da sociedade, e não como fenômeno pontual,

expressão individual, mas como um evento de natureza social. Logo a literatura passa a

ser gerida como uma arte, uma expressão individual, mas dependente de um sistema que

envolve autores suas obras e seus leitores.

1.3 O discurso literário

Segundo Maingueneau (2006a) a própria noção de “discurso literário” é

problemática. Ela parece pressupor que, por proximidade de gênero e diferença

específica haveria uma categoria correspondente a um subconjunto bem definido da

produção literária de uma dada sociedade, o discurso literário.

O que nos leva a considerar que é necessário, ampliarmos a percepção do

que é um discurso literário, uma vez que sua caracterização permeia a ambigüidade por

designar a sociedade, que o aceita, atribuindo assim uma característica pragmática, e

por outro lado permite agrupar um conjunto de fenômenos que são de épocas e

sociedades muito diversas entre si. (MAINGUENEAU, 2006a, 19).

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13

O discurso literário concebido pela Análise do Discurso é concebido nos

termos de instituição discursiva , e respectivamente contempla a instituição literária,

representada por uma vida literária, que envolve artistas, os editores, os prêmios e todas

as instituições e suas praticas sociais. Além da academia que não produz a literatura

‘arte’ mas dedica-se aos estudos dos textos e autores

O discurso literário rompe com esta distinção

(...) existia uma espécie de repartição tácita do trabalho:

de um lado, as faculdades de letras analisavam os textos

de grande prestígio, dedicando atenção especial ao

“estilo” e, por conseguinte, aos recursos estilísticos

mobilizados pelo escritor; de outro lado, os

departamentos de ciências humanas ou sociais que

dedicavam seus empreendimentos de pesquisa a textos de

pouco prestígio, “documentos”, considerados como não

suceptíveis a abordagens estilísticas, visto que davam

acesso apenas a realidades extralingüísticas.

(MAINGUENEAU, 2010, p.6)

Desta forma a Análise do Discurso trata o discurso literário, sobretudo,

institucionalmente, se valendo dos pressupostos dos estudos lingüísticos, e de modo

especial refletidos nos mais recentes estudos da teoria da enunciação que refletem uma

preocupação com os elementos envolvidos na comunicação, como os enunciadores e

coenunciadores, compartilhando, ainda, dos avanços que os estudos sobre discurso

apresentam.

Análise do Discurso literário por manter a perspectiva institucionalizada,

que legitima autores e obras, o que por vezes não se restringe às tradicionais Acadêmias

de Letras, pois considera o posicionamento discursivo do autor, e a sua relação

interdiscursiva, é possível termos configurado o discurso literário nas mais diversas

situações. Por exemplo uma premiação literária de um sindicato, ou um grupo que

médicos que reúne-se para saraus literários.

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14

Há também que ser observado as configurações das práticas discursivas,

expressas por meio de sua obra, nos textos, entrevistas, palestras, ou ainda por meio de

distintas produções, como o cinema, o jornal, entre outras que utilizam do Literário para

o cotidiano.

Entretanto, pelo Discurso Literário não se bastar nos fatores

extralingüísticos, a ambigüidade da Análise do Discurso Literário reside ao ater-se tanto

aos fatores explorados pela realidade do contexto social, quanto pela investigação

epistemológica, do objeto ´literatura’ - o texto.

Maingueneau (2006a) se refere à proposta de Jakobson que centrou sua

definição baseado nas funções da linguagem (emotiva, referencial, fática, conativa,

metalingüística e poética). Esta perspectiva funcionalista da linguagem privilegia uma

das funções para tratar de literatura. A função poética era um determinante da expressão

subjetiva, que permite uma liberdade de expressão considerada fundamental à expressão

artística.

A Análise do Discurso vai além, inicialmente por sua proposta de integrar

ao arcabouço textos não literários, e portanto, não se restringe a relação estilística e

estética, logo, ao retomarmos a proposta Jakobson, os textos informativos, não

poderiam ser contemplados, assim como textos com o registro oral.

A Análise do Discurso não ignora estes fatores e registros, mas os integra

por meio das formações discursivas num sistema de múltiplas dimensões.

O principio da Semântica Global leva a tratar a língua como um princípio

dinâmico (MAINGUENEAU, 2008c:76-77), convém marcar que embora o trabalho de

análise ocorra com o discurso e não com a língua, não é possível privilegiar que uma ou

outra possibilidade de ‘olhar’ para este enunciado, e portanto, admite-se desde que seja

constituído um ‘inventário laborioso que seja de todas as formas lexicais’ desde que

seja necessário a se alcançar a compreensão do todo que uma língua forma,

(MAINGUEGEAU, 2008c) quanto a planos marcados por um esquema construtor

global, representado pela competência lingüística, portanto não há uma a hierarquização

dos planos na Semântica Global.

O discurso literário de acordo com Maingueneau (2006a) representa de fato

uma proposta inovadora pois considera

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apreensão do fato literário no qual o dito e o dizer, o texto

e o contexto, são indissociáveis. As condições do dizer que

permeiam aí o dito, e o dito remete a suas próprias

condições de enunciação (o estatuto do escritor associado

a seu modo de posicionamento no campo literário, os

papéis vinculados com os gêneros, a relação com o

destinatário, construída através da obra, os suportes

materiais e os modos de circulação dos enunciados...)

(MAINGUENEAU, 2006:43)

O discurso produzido por Moacyr Scliar, como veremos, é uma produção

contemporânea e discursivamente dialoga com uma das mais conhecidas histórias

narradas na Bíblia Hebraica, presentes no 2º Livro do Pentateuco - o Êxodo. O discurso

literário permite o contar, ou melhor, o recontar desta história, que ultrapassa as

fronteiras do tempo, dos homens, dos valores sociais.

Neste sentido o discurso As Pragas contribui, não só para retomar e uma das

mais tradicionais histórias, como também proporcionar uma reatualização, ou melhor,

uma nova constituição discursiva significativa para nosso cotidiano.

Desta maneira, temos inscrito neste conto, uma relação interdiscursiva que

nos permite abordar inúmeros outros tantos campos discursivos, minimamente distintos

estão o discurso literário e o discurso bíblico que, segundo Maingueneau (2006a) são

discursos constituintes, cujo campo e fronteiras são pouco rigorosas, por não

apresentarem uma palavra fundadora, ou possuir uma localização fixa, mas como

discursos constituintes ocupam os espaços e o tempo relacionadas às condições de

enunciação.

São as teorias que estudam a enunciação lingüística, como a Pragmática a

Semântica e a Análise do Discurso, assim como os estudos que decorrem das

proposições de Bahktin que permitem adequar uma nova reflexão sobre o evento

literário, o que é “dito” e o como “dizer”, aproximando o texto e o contexto, sobretudo

uma abordagem que contemple a abordagem ‘interna’ e ‘externa’ dos textos.

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Neste sentido, ao elegermos a Análise do Discurso de linha francesa como

base teórico-metodológica que norteará nossa pesquisa, buscamos comprovar que a

literatura é não só uma arte, mas também uma manifestação que recorremos para

(re)construir significados do universo real ou ficcional, na medida em que se muda o

posicionamento discursivo e as condições de enunciação, além de possibilitar que se

analise o discurso em sua materialização – o texto.

Por meio das categorias da Análise do Discurso como a observação das

cenas de enunciação nos permitirá legitimar o que é dado como elemento do discurso

literário. Outra categoria que será observada está diretamente relacionada ao

posicionamento discursivo de quem profere a enunciação, pelo qual analisaremos a

categoria do ethos e sua constituição, uma vez que o ethos é constituído

discursivamente e compreendendo um estudo de uma imagem pessoal, corporificada, e

dotada de um caráter ao assumir a fala de um discurso.

1.4 O gênero conto – do literário ao discursivo

Dentre a multiplicidade de gêneros do discurso que transitam no contexto

social, faz-se necessário buscarmos um conceito de gênero para conto e seu

funcionamento na sociedade. Para isso um dos caminhos é olhar para o seu processo de

evolução. Em linhas gerais, o conto se origina na tradição oral, atendendo à necessidade

de o homem relatar fatos, contar e recontar histórias, vivenciadas, testemunhadas, ou

simplesmente histórias ouvidas que podem reproduzidas infinitamente. Do registro oral

dos contos para o registro escrito, o processo parece quase natural, ou seja, movidos

pela necessidade de garantir que a tradição possa manter-se, e participando dos

diferentes recursos de registro, muitos contos passaram para uma configuração do

registro escrito.

O próprio ato de contar uma história já equivale a uma diferença em relação

ao ato de relatar. Relatar é um compromisso de refazer um acontecimento, o mais

próximo da realidade, do fato tal como a realidade que o produziu, por outro lado o

contar uma história, os limites entre a realidade e a ficção não tem limites precisos

(GOTLIB, 1990:8), uma vez que não existe o compromisso com a realidade, o conto

transita livremente entre o real e a ficção.

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De acordo com Gotlib (1990, p. 17) essa transitoriedade não é tão simples,

uma vez que ao contar e recontar uma história, seja no registro oral seja no registro

escrito, estes necessariamente passam por um autor, que se incumbirá de reelaborar a

realidade qual realidade nossa? a nossa cotidiana, do dia-a-dia? ou a nossa

fantasiada? Ou ainda: a realidade contada literariamente (...) este espaço ocupado pelo

autor que autoriza o contador-criador-escritor a se aventurar, utilizando recursos

criativos para que a história assuma caminhos ficcionais e o caráter literário.

Ressaltamos que estas condições de mudança dos registros, de veículos e de

transmissão passam necessariamente pela reelaboração e adequação da linguagem, o

quem nem sempre significa que os efeitos de sentido serão conservados.

Além destas distinções marcadas pelas características da verossimilhança,

nos deparamos com outra distinção a ser feita, para a terminação de conto, nos séc. XVI

e XVII, em inglês, por exemplo, o termo utilizado para uma narrativa ficcional com

personagens e ação representando fatos do cotidiano, era novel, e diferenciava-se do

romance, em italiano novella era o termo mais adequado para histórias mais curtas.

É a modernidade que vem promover uma segmentação para as narrativas

mais curtas, com um estilo econômico, atribuindo a denominação de fábula às histórias

com características como a antropomorfização de animais, e outros seres, ou ainda com

personagens que adquirem pela narrativa um caráter educativo, exemplar de cunho

moralista.

A perspectiva moralista valorizada conto popular, é um recurso cristalizado

ainda na tradição oral, e utilizado pelos povos como apropriação e elemento de

transmissão de ensinamentos, valores éticos ou concepções de mundo. O ato de contar e

recontar histórias é uma garantia de manter viva a tradição e a memória de gerações de

pais para filhos, e para a sociedade como um todo.

Já no século XVIII a complexidade do mundo moderno, proporcionado pela

Revolução Industrial provoca um questionamento sobre a unidade da vida e,

consequentemente, nas formas de expressões, ou seja, das obras. O predomínio da

fragmentação, abrange pessoas, obras e valores, tem-se outra perspectiva sobre a ordem,

sobre a realidade, desvinculada de um antes ou um depois (início e fim), solta neste

espaço, desdobra-se em tantas configurações quantas são as experiências de cada um,

em cada momento destes. (GOTLIB, 1990, p17)

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O que é importante de se ressaltar é que por toda a história deste gênero

discursivo, que ainda com todas as possibilidades de recursos e tecnológicas utilizados

em sua composição, é conservada na natureza do conto

a relação: entre a extensão do conto e a reação de

excitação que ele consegue provocar no leitor, pelo efeito

que a leitura devidamente dosada lhe causa. É pela

intensidade e a economia narrativa, que de acordo com A.

Poe o contista elabora sua composição, com o mínimo de

meios para provocar o máximo de efeitos, cabendo ao

contista elaborar tal efeito se por incidentes comuns e um

tom peculiar, ou o contrário, ou por peculiaridade tanto

de incidentes quanto de tom”. E em seguida busca

combinações adequadas de acontecimentos ou de tom,

visando a construção do efeito. (Gotlib, 1990:20)

Discursivamente serão as condições de produção que o contista está

exposto, bem como seus limites e procedimentos, que orientarão o enunciado e

marcarão a seleção de instrumentos lingüísticos -

(...) todo enunciado, antes de ser um fragmento da língua

natural que o lingüista procura analisar, é o produto de

um acontecimento único, sua enunciação, que supõe um

enunciador, um destinatário, um momento e um lugar

particulares. Esse conjunto de elementos define a situação

de enunciação (MAINGUENEAU, 2001, p.8).

1.5 O Conto Contemporâneo em Língua Portuguesa

A opção pela amostra de análise, desta pesquisa, em deter-se no discurso As

Pragas, tem como uma das justificativas o fato de termos no discurso, um significativo

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processo de mudança que, seguramente é revitalizado, por seus autores e suas mais

diferentes condições de produção.

Se a princípio os discursos com um forte apelo à tradição da oralidade,

representavam uma maior aceitação, uma vez que grande parte da população

desconhecia o registro escrito, é em meados do século XIV que

(...) o contador procura elaboração artística sem perder,

contudo, o tom da narrativa oral. E conserva o recurso

das estórias de moldura: são todas unidas pelo fato de

serem contadas por alguém a alguém. (GOTLIB, 1990:6).

Atualmente, podemos observar o quanto a atualidade empenha-se em

manter as formas deste discurso, que ganha espaço em diferentes suportes midiáticos e

até mesmo diferentes linguagens, enquanto resgarda as relações interdiscursivas, que no

nosso caso observamos o discurso bíblico também se reconfigurando em diferentes

formações discursivas e suportes midiáticos.

Diante de séculos de história, parece evidente que tenhamos uma

diversidade favorável para a manutenção deste tipo de produção literária, seja por meio

da estética que o próprio ato de contar histórias encontrou ao propor uma temática

próxima ao cotidiano, reconhecida na vida cotidiana, ora buscando na ficção a

capacidade de contar histórias procurando também atingir uma dimensão metafísica e,

num certo sentido atemporal, das realidades vitais (...) (BOSI, 1977, p 21). A

capacidade de transformação ou adequação ao tempo, aos homens e ao próprio ato de

contar de histórias faz com que este discurso se revitalize, ainda que se valha das

‘velhas histórias’.

Esta revitalização do discurso confirma o que a Análise do Discurso propõe

que sejam observadas as constituições lingüístico-discursivas como característica do

discurso literário, além de uma produção em constante movimentação adequada ao

contexto social. Explorando história por vias da intertextualidade, recuperando sua

intensidade ficcional característica do discurso literário. No que compete ao bom

contista, tter uma história para contar e trabalhar com os recursos linguististicos e

discursivos.

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(...) ao contista se faz pelo achamento (sic) de uma

situação que atraia, mediante um ou mais pontos de vista,

espaço e tempo, personagens e trama. Daí não ser tão

aleatório ou inocente, como às vezes se supõe, a escolha

que o contista faz de seu universo (BOSI, 1977:18).

A década de 1980 é o momento que proporciona elementos discursivos

importantes para a situação de comunicação na qual se inscreve a nossa amostra.

Consideramos que historicamente o grande marco para este período foi a decadência do

ideal marxista, que reformulou aspectos ideológico, econômico e político apresentavam

sinais de que o sistema comunista soviético agonizava. A reestruturação do Estado,

político e economicamente, foram propostas pelo líder soviético Gorbatchov assim

como a modernização do Estado, dos modos de produção e um retorno ao capitalismo.

Brevemente, o mundo assistiria a desintegração da União Soviética, a queda do Muro de

Berlim. E o fim de um ideal que inspirou uma geração e

No Brasil, significativas mudanças deixavam o país numa efervescência, o

período é de transição. O último presidente militar João Batista de Figueiredo governou

o país de 1979 a 1983, sinalizando que a ditadura não suportaria a pressão popular.

Inicia-se um processo de abertura democrática envolvendo movimentos populares de

diversos segmentos sociais, jovens estudantes e trabalhadores pedem por eleições

“Diretas Já”. Nesta grande efervescência da sociedade é grande a adesão de

personalidades artísticas, intelectuais e acadêmicos juntam-se ao povo nas ruas.

Pedindo mudanças políticas e sociais.

É nesta fase que á também um novo fluxo migratório, que ocorria desce a

época da colonização, sofre uma inversão. O Brasil, que recebia inúmeros imigrantes,

passa a exportar mão-de-obra; são brasileiros que partem para os mais distantes lugares,

buscando novas oportunidades de trabalho, condições mais justas e liberdade.

Sobretudo liberdade.

Na década de 1980, estava marcada por grandes mudanças; enquanto

inúmeros jovens abandonavam o país, o fim da ditadura no Brasil promoveu um novo

fluxo de pessoas, desta vez, brasileiros artistas, músicos, atores, jornalistas além de

intelectuais e políticos. Beneficiados pela anistia e traídos pela possibilidade de retornar

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em segurança, trouxeram ao país com seu grande vigor e poder de intervenção nos

meios artísticos. O impacto da volta destes exilados refletiu-se em uma liberdade de

expressão, e refletida nas instituições artísticas.

A possibilidade de expressar-se com maior liberdade foi aproveitada por um

grande número de escritores da década de 1980, Italo Moriconi (2001) revela que há

uma diversificação na representação da imagem do nacional, sem aderir a linguagens

regionalistas, afinal a nova geração de escritores podia inovar nas técnicas narrativas e

na agilidade da escrita, e dar vazão à crítica que por tantos anos ficou reprimida.

Esta é a literatura-verdade que nos convém desde os anos

60, e que corresponde à tecnocracia, à cultura para as

massas, às guerras, às ditaduras feitas de cálculo e de

sangue. De outro lado, a ficção introspectiva, cujos

arrimos foram sempre a memória e a auto-análise. (BOSI,

1977, p. 35)

Embora não se tenha nenhuma antologia de contos específica desta década,

os contistas como Scliar ousaram na diversidade de temática e inovaram na expressão,

imanentes da prosa moderna, livres de expressões neo-realistas, (BOSI, 1977, p.30) é

uma busca pela intensidade e por palavras despojadas de rebuscamentos.

1.6 Scliar e sua participação no discurso literário brasileiro

Moacyr Jaime Scliar, nascido na cidade de Porto Alegre no Rio Grande do

Sul, primogênito de uma família de imigrantes judeus da região da Bessarábia (Rússia),

desembarcados no Brasil no ano de 1904. Seus pais José e Sara Scliar elegeram o Brasil

como uma promessa de uma Terra de abundância, paz e progresso para os judeus que

fugiam da perseguição étnica, religiosa e política.

Historicamente, a imigração de europeus constituiu, de um lado, a

necessidade de abandonar uma vida de perseguições e mortes, o fantasma de privações

provocadas pela hostilidade do clima e a proximidade da guerra e, por outro lado,

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visava-se a um projeto de ocupação de terras brasileiras e uma efetiva participação

destes imigrantes no processo de industrialização e desenvolvimento do país,

São diversos os relatos que apontam a associação das imagens da América,

à visão edênica do Novo Paraíso, como algo que deveria ser buscado pelos homens,

como recompensa das adversidades do mundo dito civilizado, a representação da Terra

Prometida. É uma fonte de inspiração evidenciado no contexto ficcional cristão e

judaico. E o Brasil não se exclui desta evidência, por manter uma ´propaganda´ cultural

que exalta a natureza e as amenidades da vida, que são facilmente encontradas.

Durante o primeiro quartil do século XX, a imigração foi estimulada tanto

pelo governo brasileiro quanto por imigrantes que aos poucos se estabeleciam graças ao

patrocínio de seus conterrâneos, entre os anos de 1933 e 1937 um maior número de

judeus alemães chegaram ao Brasil, o fluxo de chegada de estrangeiros só foi reduzido

por razões ligadas aos acordos com os aliados à Segunda Guerra, e a política nacional

da Era Vargas, ainda assim Brasil representou a oportunidade de salvação para

inúmeros refugiados do governo nazista

Ao final da Segunda Guerra, a comunidade judaica nas Colônias do Sul do

país, havia crescido, e muito, a integração desta população se dava juntamente com a

mudança da economia pelo processo de industrialização, logo, grande parte da

população migrava do campo para as cidades, em Porto Alegre, fixavam-se no Bairro

do Bom Fim, região de periferia, populosa, com casas pequenas e de famílias

numerosas.

1.6.1 O início no Bom Fim

No Bairro do Bom Fim, periferia da cidade de Porto Alegre, aos 23 de

março de 1937, na cidade de Porto Alegre no Rio Grande do Sul, nasce o primogênito,

da família Scliar. Moacyr Scliar.

A periferia da cidade gaúcha é o cenário real da comunidade, composta por

inúmeros imigrantes judeus, que surge com freqüência como cenário ficcional,

revisitado em crônicas, contos e romances, os becos e travessas, mesclando personagens

e paixões reais à ficção. O Bom Fim representava para seus moradores a possibilidade

de manter o contato com suas tradições e o entorno cultural. De qualquer forma, o

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espaço do Bom Fim não se restringiu a observância da prática religiosa, nem a outras

formas de expressões culturais como o uso da língua do imigrante e a culinária.

A vida do imigrante independente também dependia de um certo

‘miscigenar’. Não era pretensão fazer do Bom Fim um gueto, aliás, era desta segregação

que os imigrantes, principalmente os judeus fugiam. Havia a clareza para a comunidade,

de que, o Brasil era para se fixar e estabelecer a ponte cultural. A família Scliar adota

este preceito.

Ao falar de Sara Scliar, professora do colégio judaico, e que já demonstrava

a preocupação que o ‘peso pelo judaísmo’ traria, Scliar declara:

(...) Como Clarice Lispector, declarava-se brasileira,

embora não o fosse. E deu-me o nome de Moacyr, uma

homenagem a José de Alencar, mas, principalmente um

nome brasileiro – melhor ainda – indígena. Teria ela se

dado conta do significado, em guarani, desse Moacyr –

aquele que causa dor? (SOUZA & SCLIAR, 2000, p. 63)

A preocupação pela assimilação cultural travava um confronto com a

entrada dos descendentes, Scliar fora alfabetizado em casa, e só mais tarde foi

matriculado em Colégio Público e de denominação católica, tornavam-se evidentes as

distancias culturais. Embora não tenha havido elementos anti-semitas na fase escolar

evidenciava a distinção cultural e a associação dos estereótipos, toda vez que a palavra

judeu era mencionada a classe inteira voltava-se para mim com olhar acusador.

(SOUZA & SCLIAR, 2000, p.64)

Com este objetivo promover a assimilação cultural, Scliar teve sua formação

envolvida pelo judaísmo, mas por não pelo viés religioso. Neste sentido Scliar

demonstra-se um conhecedor das tradições, do imaginário e de todo um ´universo´que

corresponde ao mundo judaico, e sua participação no contexto social brasileiro.

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1.6.2 Revolução e engajamento

O Brasil sofreu grandes mudanças, desde a chegada dos primeiros

migrantes, e os anos de 1960 e 1970, foram marcados por transformações sociais e

políticas, com a presença de trabalhadores, de estudantes, e lideranças de movimentos

sociais anos de uma política autoritária, inevitavelmente, esta efervescência atingia a

toda a sociedade, inclusive a comunidade judaico-brasileira e os jovens ligados a

movimentos políticos engajavam-se a causa sionista, inúmeros jovens ou não

retornaram a Israel, a Terra Prometida de seus antepassados. (SCLIAR & SOUZA,

2000)

Neste efervescente contexto de transformação, o jovem Scliar teve sua

formação cultural, intelectual e política. Ao refletir sobre o seu trabalho de escritor,

declara que sua formação, passa necessariamente, por sua condição de leitor e por todas

as influências dos textos lidos que alimentam sua imaginação. Na leitura que passou

pelos clássicos da literatura universal, a literatura brasileira além de obras relacionadas a

história das ciências e à Bíblia hebraica reconhece que é uma fonte de inspiração para

suas histórias. Scliar foi um leitor tão eclético quanto será sua produção.

Embora tenha tido participado de movimentos juvenis ligados às causas

sociais, à militância política rendeu-lhe, sobretudo, um modo de vida, uma experiência

total – totalitária, a qual contribuiu fortemente para compor sua obra a experiência nos

movimentos juvenis: utopias, marxismo-leninismo e, claro, ainda a companhia

inseparável do texto literário, engajado é verdade, mas literatura.

O companheirismo era fundamental, como era a lealdade

os princípios, às idéias e os ideais. E que ideais eram

esses? O ideal sionista e o ideal socialista, intimamente

acoplados. O movimento do qual fiz parte mais tempo, e

ao qual me dediquei mais intensamente, era de inspiração

marxista-leninista-estalinista. Um verdadeiro oximoro,

uma contradição em termos (...) (SOUZA & SCLIAR,

2000, p. 67)

Se de sua formação cultural e profissional rendeu-lhe inúmeras temas obras,

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que conforme nossa perspectiva discursiva, transparecem em seu discurso seja a

abordagem à temática judaica que é recorrente, ora configurada por temas polêmicos e

posicionamentos políticos e ideológicos, que com certo desvelo que podemos apontar

para momentos distintos de sua obra, visto que inicialmente evidencia o clima político

da ditadura brasileira sob o olhar de um espírito revolucionário e sonhador.

Os romances A guerra no Bom Fim, ou O exército de um homem só, ou

ainda alguns contos, produzidos na mesma ocasião, questões envolvendo tanto a

dimensão social do universo humano em um dinâmico e complexo fluxo de relações.

Percorre os espaços da tradição judaica, sem esquecer os recantos da condição humana,

surge um estilo próprio, marca de um escritor hábil e maduro.

Por pretendermos nos aventurar pelas narrativas de Moacyr Scliar, devemos

estar avisados sobre o mundo de estranhezas que podemos encontrar, inusitados

discursos que variam do fantástico maravilhoso, a ensaios que tratam da história da

medicina, com compartilham seu universo, uma linguagem simples, condensada por um

léxico simples, mas intenso e com encadeamentos lógicos, reflexo provavelmente da

sua forma de organização do pensamento treinado pelo raciocínio científico.

Não é possível delimitar um caminho temático que esteja relacionado seu

discurso, suas obras foram inicialmente marcadas pela publicação dos romances nos

quais os caminhos para a Faculdade de Medicina cruzam-se com suas experiências

ficcionais como no romance Os deuses de Raquel, o Ciclo das Águas onde estão

marcados os conflitos culturais e a sua experiência como médico, época em que exerceu

a medicina nos sanatórios. Lá, como bom ouvinte, as histórias dos pacientes tornam

fonte de inspiração, o real e o ficcional são “traduzidos” para o discurso literário.

Sob a inspiração do seu dia-a-dia de estudante de medicina, pelas narrativas

bíblicas e a construção de um singular bestiário formado de centauros e quimeras,

delineia a experiência incontestável de um grande prosador contemporâneo, embora

reconheça que “contar histórias é coisa antiga”.

A produção literária de Moacyr Scliar foi intensa, são cerca de 80 livros

entre romances, e contos, muitos dos quais revisitando o universo judaico, alguns

dedicados ao público juvenil, além dos ensaios nos quais aborda questões e personagens

que contribuíram para a história da medicina. Scliar reconhece que a composição de sua

obra, está marcada por sua condição judaíca, ainda que tenham ocorrido mudanças

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decorrentes no processo natural do amadurecimento e da expressão artística, a

afirmação da diferença é crucial num mundo tão homogeneizante (...). A versatilidade

da produção artística, ao menos por hora, como veremos na amostra selecionada para

esta dissertação será evidenciada por questões culturais expressas numa rica cultura, na

história, na literatura, na arte ... (SOUZA & SCLIAR, 2000, p.79)

Além desta imensa possibilidade de atingir o público leitor, Scliar ainda

alcançava, especificamente, leitores de jornais. Pois foi colunista por mais de 10 anos,

onde escreveu como convidado, para jornais como a Folha de São Paulo, do Estado de

São Paulo e para o Zero Hora, jornal do Rio Grande do Sul.

1.6.3 Scliar Médico e Autor – questão de identidade

A obra de Scliar se apresenta de maneira bastante diversificada, seja em

relação aos gêneros como romances, contos, crônicas, ensaios e livros voltados para um

leitor adolescente ou infantil, seja pela temática que povoa seu universo literário, indo

da prosa memorialista, ensaios sobre cultura judaica ou a história da medicina, às obras

com características de Literatura, Tão abrangente quanto à obra está o público que, não

se basta num determinado grupo de leitores, de adultos a adolescentes, de intelectuais a

donas-de-casa permeando o universo escolar, fez de Scliar um autor inserido no

cotidiano brasileiro.

Prêmios regionais, nacionais e internacionais também fazem parte do

currículo de Scliar, os destaques são: Prêmio da Academia Mineira de Letras (1968),

Prêmio Joaquim Manuel de Macedo (Governo do Estado do Rio, 1974), Prêmio Cidade

de Porto Alegre (1976), Prêmio Érico Veríssimo de romance (1976); Prêmio Brasília

(1977), Prêmio Guimarães Rosa (Governo do Estado de Minas Gerais, 1977); Prêmio

Associação Paulista de Críticos de Arte (1980); Prêmio Jabuti (1988, 1993 e 2000); o já

citado Prêmio Casa de Las Américas (Cuba, 1989) pelo livro A Orelha de Van Gogh;

Prêmio PEN Clube do Brasil (1990), Prêmio Açorianos (Prefeitura de Porto Alegre,

1997 e 2002). Seu romance A Majestade do Xingu, que narra a história de Noel Nuttles,

também judeu e médico sanitarista, além de renomado indigenista, recebeu o Prêmio

José Lins do Rego, da Academia Brasileira de Letras (1998); Prêmio Mário Quintana

(1999); Prêmio Jabuti (2009) na categoria romance com Manual da paixão Solitária, e

uma das últimas premiações o Jabuti (2010) na categoria Contos e Crônicas com o livro

Histórias que os jornais não contam. .(WALDMANN, 2003, p.29)

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Frutos desta dedicação ao ofício de escrever foi a indicação à Academia

Brasileira de Letras, fato que ocorreu em 31 de julho de 2003 com a eleição à 31ª

cadeira da ABL. O cenário que envolveu a eleição de Scliar refletiu, de fato, seu

reconhecimento como intelectual devotada à literatura e popularidade. Em seu Estado

de origem, o Rio Grande do Sul houve uma mobilização popular, um abaixo-assinado

foi disponibilizado na praça central de Porto Alegre, onde a população assinava sua

adesão e com isso marcava o seu apoio ao escritor, emissoras de rádio, e a comunidade

gaúcha lançaram inúmeras campanhas, para garantirem a imortalidade pela ABL.

1.6.4 Scliar e a “Orelha de Van Gogh”

O escritor que conquistou do reconhecimento entre os populares e os

intelectuais, recebeu em 1989 o Prêmio Casas de Las Américas pelo livro de contos A

Orelha de Van Gogh, publicado no ano anterior. Neste livro, uma coletânea de 24

contos inéditos, tem a abertura com o conto As Pragas, que de certa forma imprimirá o

tom do restante do livro, contos que trazem o interdiscurso com textos bíblicos, como

no conto Diário de um comedor de lentilhas, que tem nos personagens Esaú e Jacó, os

irmãos que já revisitaram a literatura por meio de inúmeras obras, e dentre elas podemos

citar Machado de Assis, que apresentou o conflito familiar e a constante disputa pelo

poder. Segundo Waldmann (2003), nesta coletânea de contos

:a obra Orelha de Van Gogh, estão presentes duas

direções narrativas sobrepostas: uma delas alude à matriz

judaica, ainda que os textos não se refiram a judeus, ao

mesmo tempo que aponta para a realidade cotidiana

brasileira muitas vezes por caminhos oblíquos.

(WALDMANN 2003, p. 118)

Nesta coletânea, Scliar vale-se de uma linguagem simples e acessível,

embora mantenha a sofisticação irônica que confere um grau de tensão nas narrativas,

fator que torna os contos agudez entre o real e o imaginário, ou da tensão das relações

familiares, que questionam a imposição do poder para a manutenção do ciclo da vida,

dramas cotidianos refletidos nas histórias universais. É sob este aspecto que o conto As

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Pragas torna-se notório, a reversão do ponto de vista entra como ingrediente que

elabora o novo a partir de um código pré-existente, recurso paródico. (WALDMANN,

2003, p. 118).

As direções que o livro toma, refletem a simpatia do autor pelas temáticas

sociais, em que há uma adesão aos menos favorecidos, sofrimentos físicos, doenças,

morte, dramas causados pela inveja, pelo poder e a busca pela própria identidade se

mesclam ao tom humorístico das paródias, ou recebem um tom irônico. São contos,

paradoxalmente, simples e intensos, nos quais Scliar denuncia as mazelas humanas,

há dois componentes em sua obra: a expressão de uma

identidade étnica, e a manifestação de um modo de sentir

e pensar o nacional. (WALDMANN, 2003, p.130)

Os contos ratificam a experiência de hibridização cultural nas quais o autor

vivencia diversificadas cosmovisões e revive suas memórias. A Análise do Discurso,

por considerar o texto como a materialização, um rastro do discurso irá transpor estas

experiências, e por meio do texto literário as experiências e novas possibilidades

discursivas, diferentes pontos de observação que recriam ‘mundos ficcionais’.

A Análise do Discurso, sem dúvida nos permite observar a manifestação do

evento literário voltado para a crônica do presente, no qual o discurso está ‘se fazendo’

em tempo real transformando a vida em arte, a realidade em ficção, a realidade em

textos ficcionais.

Como já mencionamos uma das vertentes da produção de Scliar é a de

crônicas o que, na sua opinião, se tornou uma das atividades mais produtivas, pois

permite uma interação constante com seus co-enunciadores.

Por conseqüência, das condições tecnológicas, das mídias eletrônicas que a

vida contemporânea dispõe, a amostra selecionada atinge um grupo populacional muito

maior, que não se restringe aos ‘leitores de romances’, mas torna-se pauta de discussões

na sociedade. Além destas considerações Scliar também contribuiu abordando temas

regionais do sul do país e fez com que o Bom Fim tivesse suas fronteiras expandidas. A

linguagem tida como acessível ao grande público, embora não tão simples, faz com que

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temas de interesse sejam explorados por Scliar e discutidos pelos seus leitores, a

temática social, política, as condições históricas e polêmicas regionais, a reflexão sobre

a tradição e a modernidade fazem com que Scliar permita que inúmeras “imagens de si

do discurso” sejam apresentadas.

Reflexo deste sentimento de aproximação e re relação torna-se um meio da

validação das formações discursivas, que são apresentadas na produção do seu discurso

literário, e como veremos mais a frente validando as cenas de enunciação.

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CAPÍTULO II

COCEITOS FUDAMETAIS DA AÁLISE DO DISCURSO

2.0 Introdução

Neste capítulo, trataremos de alguns dos conceitos da Análise do Discurso

de linha francesa. A perspectiva corresponde à chamada terceira fase da AD, na qual

tem despontado os estudos propostos por Dominique Maingueneau.

Discutiremos a partir das noções de texto, discurso e interdiscurso como as

mudanças de perspectivas deram condições, para que esta pesquisa se realizasse. A

primeira dessas mudanças diz respeito ao corpus, sem abandonar, os estudos iniciais

que tratavam dos discursos políticos e publicitários a Análise do Discurso ampliou seu

corpus de pesquisa, e passou a dedicar igual atenção ao discurso religioso, pedagógico,

literário e outros tantos. Igualmente significativa, foi a mudança baseada na relação do

ethos na enunciação, que deixa de ser instituido empiricamente, como propõe a Retórica

tradicional, e passa a ser constituído discursivamente na situação de enunciação.

Desta maneira, o capítulo deverá ainda tratar de conceitos como gênero do

discurso, uma vez que a pesquisa tem como corpus um conto, apreendido como

discurso. Ainda neste capítulo, abordaremos as categorias de cenas enunciativas e ethos

discursivo.

2.1 Enunciado e Texto

As concepções de enunciado e texto serão tratadas sob a perspectiva atual

da Análise do Discurso que, embora recebam definições diversas, acolhe uma relação

de constituição heterogênea. Ao se fazer referências às produções verbais, deparamos-

nos com definições domo enunciado e texto que, muitas vezes, parecem ser a mesma

coisa, ou ainda que uma definição complemente a outra.

Segundo Maingueneau (2008) enunciado é uma produção verbal que pode

estar representada desde uma única frase, até mesmo um romance sempre que inscritos

num contexto específico. O enunciado é o resultado de uma enunciação, é o produto

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desta enunciação com uma unidade elementar da comunicação, e não se deve associar a

condição de existência de um enunciado, qualquer vinculação com extensão.

Portanto, podemos ter uma expressão como ‘As pragas`, se considerada fora

de um contexto específico, ou considerá-la como um enunciado quando inscrito

especialmente numa situação de uso da língua, de comunicação, e devidamente

relacionado um determinado gênero do discurso, tomemos com exemplo: `As pragas`

relacionada ao discurso bíblico esta diretamente ligada à história de Moisés e à

libertação dos hebreus. Relacionando ao discurso literário alude a um conto literário, e

até mesmo numa suposta situação de comunicação, onde o assunto seja as pragas de

parasitas que atacam lavouras, enfim uma expressão como:`As pragas`, ao relacionar-se

a uma situação específica de comunicação, apresentando uma unidade significativa e

coerente, torna-se um enunciado.

Neste sentido a definição de texto é muito semelhante, pois se tem por texto

uma unidade de comunicação coesa e coerente. Para Maingueneau (2008, p57) o

conceito de texto emprega-se igualmente um valor mais preciso, como um todo, como

constituindo uma totalidade coerente, esta definição de validade é compartilhada pela

Linguística Textual, que ainda apresenta como uma distinção de um enunciado para um

texto, a questão da duração e capacidade de repetição que estas unidades de

comunicação tem ao serem repetidas, em diferentes situações de enunciação, e longe do

seu contexto original.

Esta distinção só é possível por se considerar o texto uma unidade de

comunicação heterogênea, pois um texto não é necessariamente produzido por um só

locutor. Há uma co-responsabilidade do locutor para com os diversos locutores, há

diversas vozes que compartilham um determinado conteúdo e que compõem o texto,

com a finalidade de atribuir significação.

A perspectiva da Lingüística Textual a definição de texto ainda está

relacionada a critérios interdependentes, sendo que alguns deles mais próximos da

‘realização’ do texto como coesão e coerência, e outras condições que se relacionam ao

contexto de produção, como os critérios de intencionalidade, situacionalidade,

informatividade, intertextualidade e aceitabilidade. Neste caso, a interdependência está

voltada não só para o texto, em si, mas existe uma interdependência dos co-locutores.

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Por mais estruturado que um texto esteja a aceitabilidade, por exemplo, está diretamente

ligada aos co-locutores.

Há, ainda, os textos que são estas unidades coesas e correntes significativas

para que se efetive a comunicação, e que pode estar representada em diferentes

registros, seja no registro da oralidade, do visual, e do registro escrito, esta

diversificação das técnicas de gravação e de reprodução da imagem e do som vem

modificando consideravelmente a representação tradicional de um texto.

O que remete a um consenso é a afirmação de que o texto é a materialização

de um discurso, e que o texto não é um enunciado auto-suficiente a que se somaria

contigentemente um intérprete, ele só é um enunciado ao ser tomado num quadro

hermenêutico que vem a garantir que o texto deve ser interpretado. (MAINGUENEAU,

2006:72). Conseqüência destes diferenciais a opção pelo uso de textos literários ou

textos jurídicos a enunciados literários. Dada as possibilidades de interpretações, a cada

nova leitura, os textos e as relações estabelecidas por estes tornam-se enigmas

importantes de serem revelados a coletividade.

Assim como a noção de texto, a noção de discurso pode-se encontrar

diferentes conceitos, contudo Maingueneau (2008, p.15) já apresenta como conceito que

ao entenderemos por “discurso” como uma dispersão de textos, cujo modo de inscrição

histórica permite definir um espaço de regularidade, é sob este aspecto que percebe-se

que metodologicamente há uma mudança considerável, apoiado no conceito de que os

discursos surgem da relação de uns com os outros.

Desta maneira, equivale dizer que o interdiscurso tem precedência sobre o

discurso, ou seja, todo o discurso é constituído pela hetereogeneidade, logo para

apreendermos um discurso é necessário compreendermos que sua origem está no

interdiscurso.

2.2 Interdiscurso

Tomando como a primeira hipótese para se pensar numa nova forma de

discutir a Análise do Discurso, e para ser mais específico Maingueneau, propõe

substituir a noção de interdiscurso pela tríade: universo discursivo, espaço discursivo e

campo discursivo.

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Entende-se por "universo discursivo" o conjunto de formações discursivas

de todos os tipos que coexistem, e interagem. Este conjunto apresenta uma finitude,

embora, irrepresentável, e não pode ser apreensível na sua totalidade, ou seja, um

analista do discurso jamais consegue dimensionar todo o universo discursivo.

Além do universo discursivo, há um outro conjunto, com dimensões

menores chamado de campo discursivo, que por sua vez também é composto por

inúmeras formações discursivas, porém interagem de forma a concorrente, entendendo

que é no campo discursivo onde as formações discursivas com a mesma função social

se associam, se confrontam, se delimitam. Embora ainda mantenha um alto nível de

abstração é no campo discursivo que identificamos o campo literário, político, religioso

etc.

E, por fim, o espaço discursivo que é uma representação ainda mais restrita,

cujas fronteiras criam espécies de subconjuntos do campo discursivo, logo um

subconjunto de formações discursivas em proporções menores, condicionadas pelo

saber histórico do analista.

O espaço discursivo revela sua importância para a Análise do Discurso por

dois momentos em especial, primeiro por constituir um discurso que apresenta como

diferente dos discursos iniciais, e é neste momento que o discurso “Outro” se

estabelece, e num segundo momento por estabelecer as relações de confrontos, ou de

associações, que serão confirmadas no “Outro” discurso, este é o espaço que deverá ser

criado e explorado pelo analista, para atender ao seu propósito.

Este “Outro” estabelecido revela uma opção uma aceitação de um discurso,

mas também uma negação, e por esta razão irá agregar-se de outro discurso que surge

para fechar um propósito. Esta interdiscursividade tem a primazia sobre o discurso, pois

é na relação entre o discurso e o “outro” que residirá o interesse do analista.

A possibilidade de encadear esta primazia do interdiscurso ao fato das cenas

de enunciação, que como veremos, ao definirmos o gênero discursivo já associamos a

sua situação de enunciação, por termos uma série de cenas enunciativas já validadas.

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2.3 Cenas de enunciação e situação de comunicação

A Análise do Discurso não teve um evento ‘fundador’, ou de ruptura com

outras teorias, pois é “fruto da evolução” de alguns conceitos ou ainda de novas

propostas de atividades de análise textos, em que a própria AD foi reformulada, ou seus

conceitos foram substituídos. Neste sentido, a AD constituiu um verdadeiro campo de

estudos, em constante processo de formação.

A situação de enunciação é foco da atenção de teorias que dedicam especial

atenção à atividade discursiva e ao ato de enunciação. Embora sob perspectivas

diferentes, a teoria da enunciação busca estabelecer as coordenadas pessoais, e espaço

temporais, no contexto, ou seja, a tríade que condiciona o eu/aqui/agora na situação de

enunciação. Já a Semântica verifica-se que a situação de enunciação privilegia o aspecto

discursivo contextual enquanto as disciplinas da Análise do Discurso e Análise da

Conversação buscam estabelecer a atividade reflexiva da situação de enunciação junto

ao discurso.

Maingueneau ressalta que a ‘situação de enunciação’ pode gerar um

equívoco, e faz ainda uma distinção necessária, a situação de enunciação de uma obra

literária. Ao se perguntar sobre a situação de enunciação de uma obra literária como

configurar o eu/aqui/agora, estabelece um vínculo ligado ao momento da produção da

obra, ou ao momento em que ela se inscreve no contexto social, esta sua ‘aplicação’

social, diz respeito ao momento em que o discurso se reproduz sócio-historicamente.

A solução é dada pela situação de comunicação implica os fatores externos

a obra, relacionam-se as datas, o período em que a obra, a certo(s) lugar(es) e por

determinado(s) individuo(s), neste sentido a situação de comunicação estaria

relacionada aos aspectos sociológicos. Ainda, segundo Maingueneau, pois não trata do

modo empírico das instâncias espaciais, temporais onde estão seus interlocutores, mas

sobretudo que a situação de enunciação não é socialmente descritível, não narrativo.

Definido, assim, como plano não embreado.

As possibilidades discursivas de descrever as instâncias espacio-temporais,

linguisticamente, define-se por um sistema de comunicação identificada por meio dos

dêiticos espaciais e temporais, além de contemplar as três posições fundamentais:

enunciador, co-enunciador e o não-pessoa, que se ajusta a narrativa. Neste caso,

segundo Maingueneau trata-se do plano embreado.

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A cena de enunciação foi inicialmente apresentada por Maingueneau (2006,

2008a/b) como dêixis enunciativa, no Gênese do Discurso, acrescida das concepções

sobre a situação de comunicação propostas por Benveniste que resultou nos seus mais

recentes trabalhos sobre a cena enunciativa e termo que foi atualizado para cenas de

enunciação.

A atualização proposta não se deu simplesmente na nomenclatura, mas

também, pela necessidade de propor que a noção de cenas de enunciação opera em três

planos distintos: a cena englobante, a cena genérica e a cenografia.

Cena englobante é aquela diretamente relacionada ao tipo de discurso

associando o institucionalmente, de acordo com sua função social, é pela cena

englobante que podemos identificar os tipos de discurso sua origem e suas delimitações.

A cena englobante situa as atividades discursivas nas quais os sujeitos estão

condicionados sócio-historicamente. É de onde emana o discurso, Maingueneau

(2006:251) apresenta um exemplo de um tratamento pragmático, ao se receber um

folheto na rua, deve-se ser capaz de determinar se este folheto pertence ao discurso

publicitário, religioso, político e outros tantos. Ao situar-se como por estar recebendo o

folheto, a cena englobante é a publicitária, inicialmente o propósito parece ser o de

divulgar, apresentar algo novo ou ao menos desconhecido a este coenunciador.

Ainda que a cena englobante situe as atividades discursivas, a caracterização

é incompleta, pois ela não estabelece o estatuto dos parceiros no espaço pragmático.

Todo enunciado literário está vinculado a uma cena

englobante literária (...) a cena englobante não é

suficiente para especificar as atividades verbais, pois não

tem contato com um literário. (MAINGUENEAU, 2006,

p.251)

O plano capaz de determinar as condições de enunciação e as atividades

verbais está relacionado à cena genérica e esta implica o gênero do discurso em um

contexto específico. É no plano da cena genérica que as expectativas em relação ás

condições de enunciação no que diz respeito à relação espaço temporal, a determinação

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do papel social de seus participantes da enunciação e às possibilidades do suporte

material, enfim características capazes de determinarem o gênero do discurso.

A cena englobante e a cena genérica são caracterizadas por sua condição de

estabilidade, diante das condições de enunciação, elas marcam o espaço estável no

interior, no qual os enunciados ganham sentido. Há inúmeros enunciados que se limitam

nestes planos de enunciação, (...) Essas duas “cenas” definem conjuntamente o que

poderia ser chamado de quadro cênico do texto (MAINGUENEAU, 2008a, p. 87).

A cenografia é um ‘segundo’ plano da situação de enunciação, instituído

pelo próprio discurso, é o primeiro elemento com que um leitor se depara, e se utiliza da

cenografia com a pretensão de convencer e legitimar a própria cena de enunciação. A

cenografia, de acordo com Maingueneau (2008a), tem por efeito passar a cena

englobante e a cena genérica para um segundo plano, de modo que o leitor se encontre

preso numa armadilha MAINGUENEAU (2008b: 117).

Há gêneros que prescindem de cenografias se atendo à cena genérica.

Maingueneau exemplifica esses gêneros com a lista telefônica ou uma receita. Explorar

a cenografia é algo que Maingueneau se detem com mais especificidade, pois remete

àquilo que a enunciação instaura progressivamente como seu próprio dispositivo de

fala, é pela cenografia que se instauram: enunciador, co-enunciador o tempo e o lugar.

Logo, a cenografia é o próprio ato de enunciação, é o discurso posto em prática em

ação.

A cenografia só se manifesta plenamente quando pode

dominar seu desenvolvimento e manter uma distância em

relação ao co-enunciador. (MAINGUENEAU, 2008b, p.

118).

Há gêneros que permitem uma cenografia bastante variada. O gênero

publicitário é um desses, pode-se montar uma peça publicitária de algum produto por

meio de uma cenografia de sala de aula, de viagem, de cena caseira cotidiana todos

estes ‘lugares’ podem ser explorados pela cena englobante publicitária, e pela cena

genérica anuncio publicitário.

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Já o discurso literário é muito diversificado na questão apresentar e

surpreender em cenografias diferentes. Pode-se dizer até que é uma competência

necessária ao gênero literário.

Retomando uma característica sobre o que é um texto é na verdade o rastro

deixado por um discurso em que a fala é encenada, (MAINGUENEAU, 2006a, p. 250),

criando uma aproximação como um caráter teatral para conceitua a cenografia. O autor

também utiliza a metáfora de uma armadilha, pois a cenografia pode ser utilizada como

um atrativo que pretende surpreender, portanto, utilizado pelo enunciador como

estratégia para a eficiência do seu discurso.

Essa “-grafia” não remete a uma oposição empírica entre

o oral e o suporte gráfico, mas a um processo fundador, à

inscrição legitimadora de um texto, em sua dupla relação

com a memória de uma enunciação que se situa na

filiação de outras enunciações em que reivindica um certo

tipo de reemprego. (...) é a cena de fala que o discurso

pressupõe para poder ser enunciado e que em troca ele

precisa validar através de sua própria enunciação.

(MAINGUENEAU, 2006a, p.253)

A cenografia, por seu turno, não é imposta pelo tipo ou pelo gênero, uma

vez que já está sujeita a estabelecer uma expectativa, que é construída pelo texto. É

possível um mesmo gênero lançar mão de diferentes cenografias, inclusive as

cenografias validadas, isto é, cenas que fazem parte da memória dos coenunciadores -

leitores.

As obras podem, com efeito, basear sua cenografia em

cenas de enunciação já validadas, que podem ser outros

gêneros literários, outras obras, situações de

comunicação de caráter não literários (p. ex. a

conversação mundana, a fala camponesa, o discurso

jurídico...) e até eventos de fala isolados (...) Validado não

significa dizer valorizado, mas já instalado no universo do

saber e de valores do público. (MAINGUENEAU (2006a,

p. 256)

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A contribuição do estudo das cenas de enunciação para o discurso literário

reside na necessidade de atender às expectativas dos gêneros discursivos, uma vez que

as cenas se validam, de acordo com o universo do saber e dos valores do público. O

discurso literário pauta-se no enunciado na recriação do real, e na ficção, e tem nas

cenas de enunciação validadas, a possibilidade de utilizá-las de acordo com a vontade

de um enunciador e a necessidade de um enunciado. Há cenas que são validadas e

determinadas, ou melhor, mostradas por indicações textuais explícitas, que interagem

com o enunciado, o que é “mostrado” é especificado por essas indicações explícitas,

que de certo modo tomam corpo através de sua própria enunciação que as sustenta.

(MAINGUENEAU, 2006a, p. 257).

Este enlaçamento de uma cena validada por um dicurso e a possibilidade de

utilização num discurso totalmente distinto pode ser utilizado como estratégia pelo

discurso literário, para fortalecer sua enunciação, ou por ironia ou ainda provocar uma

desqualificação, como por exemplo uma paródia.

A cenografia legitima a situação de enunciação e estabelecem as relações de

tempo, espaço além das condições necessárias para a constituição da imagem do

enunciador.

2.4 Ethos retórico

A noção do ethos remonta à Antiguidade. É necessário para a compreensão

do ethos discursivo que se retome parte da tradição antiga, grega, com uma obra de

Aristóteles intitulada Retórica, que sistematizou a ‘arte’ da persuasão. Para Aristóteles o

orador ao pronunciar uma fala, utiliza-se de mecanismos para persuadir o auditório, para

isso é preciso que o orador impressione, seduza, utilizando-se de argumentos. O ethos,

portanto, está ligado ao orador, ao seu caráter, à sua virtude, e a confiança que ele pode

gerar no auditório. O caráter, no caso da retórica - ethos do orador constituirá ponto

importante na persuasão. O ethos, para Aristóteles, pode ser compreendido como a

imagem que o orador cria de si, por meio do discurso, o orador é o responsável pela

criação de sua imagem.

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2.5 Ethos prévio - segundo Maingueneau

A concepção de ethos apresentada por Maingueneau (2006, 2008,a/b) está

ampliada na perspectiva da Análise do Discurso, e relaciona-se aos diversos tipos de

texto, esta é uma representação significativa, pois não se restringe a persuasão

pretendida conseqüência da argumentação, ou de sequências argumentativas, mas

contempla ativamente a enunciação toda a cena enunciativa. Embora, tome a noção de

ethos discursivamente, isto implica em aceitar algumas teses da origem retórica, e

ampliar a tese para associá-la as condições do discurso. Uma destas teses é a da

participação do coenunciador, e para a Análise do Discurso participa da construção da

imagem do enunciador, mesmo antes que ele fale.

Esta noção é chamada por Maingueneau de ethos pré-discursivo ou ethos

prévio, deve levar em conta que alguns tipos de gêneros do discurso, podem utilizar a

noção de ethos prévio com maior facilidade, por exemplo, no discurso político, um

pronunciamento oficial de um político ao identificar o enunciador é possível prever um

posicionamento ideológico que induz a expectativas do ethos deste enunciador.

Expectativas estas criadas pelos coenunciadores, em relação aos seus conhecimentos,

que muitas vezes antecedem a enunciação ou ao discurso em que o enunciador pretende.

Há circunstâncias que favorecem a constituição do ethos pré-discursivo, ou

melhor, há gêneros discursivos mais propícios às representações criadas pelos

coenunciadores, como exemplo Maingueneau apresenta a questão do romance, os

leitores, coenunciadores com seus conhecimentos prévios sobre determinado autor e sua

obra tem expectativas sobre um texto, uma obra, contudo, é a cada enunciação que o

enunciador pode firmar ou infirmar este ethos pré-discursivo.

Compreendemos que tão logo Maingueneau proponha a existência deste

ethos pré-discursivo, e o fato dele ser firmado ou infirmado pela enunciação, já ocorre

uma dissolução do ethos prévio, pois é a enunciação que autorizará a existência deste

ethos e quem condicionará sua veracidade. Portanto mesmo para um ethos relacionado a

uma cena enunciativa própria do discurso literário, o ethos só se constituirá relacionado

ao discurso.

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40

2.6 Ethos discursivo -

Ao dedicar-se ao estudo sobre o ethos Maingueneau (2006a, 2008a/b)

reorganiza este conceito e passa a abordá-lo sobre a perspectiva da Análise do Discurso.

Logo as questões sobre a noção de ethos passam a ser respondidas sob o quadro teórico-

metodológico da Análise do Discurso, que por princípio afirma que o ethos está ligado

ao ato da enunciação, a uma voz que enuncia, uma voz que ‘ecoa’ que dá o tom do

discurso.

Minha primeira deformação (alguns dirão “traição”) do

ethos consistiu em reformulá-lo em um quadro da Análise

do Discurso que, longe de reservá-lo a eloquência

judiciária ou mesmo a oralidade, propõe que qualquer

discurso escrito, mesmo que a negue, possui uma

vocalidade específica, que permite relacioná-lo a uma

fonte enunciativa. (MAINGUENEAU, 2008:72)

O tom nos discursos orais é dado pela entonação da fala, que na dimensão

discursiva poderá marcar diversas situações, reproduzindo os modos de dizer, podendo

atribuir diferentes significados pela marcação da entonação. Já no discurso escrito o tom

será expresso por meio da pontuação, das pausas, um ritmo que confere ao discurso

uma relação com o sentido que o enunciador pretende.

Nesta proposta, de Maingueneau, a noção do ethos representa um avanço

em relação ao ethos retórico, pois assume alguns princípios mínimos, o primeiro é que o

ethos é uma noção discursiva, ou seja, é construído por meio do discurso, e não é uma

“imagem” do locutor exterior a sua fala, ou seja, não se restringe a fala do enunciador,

um segundo princípio é que o ethos é construído por meio da interação entre enunciador

e coenunciadorde, interação relação de influência que atende o terceiro princípio, é de

que o ethos é uma noção híbrida, que se forma pelas características sociais e discursivas,

representadas num comportamento socialmente avaliado, e que se manifesta somente na

situação de comunicação.

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Maingueneau, ainda, mantem um traço inovador ao considerar que o ethos é

a imagem que o enunciador faz de si, esta imagem contempla a representação do corpo

e segue abrangendo uma dimensão global, por um lado a uma representação corporea,

ligada as características físicas, como as maneiras de vestir-se, de mover-se, de estar em

contato com o outro. Tomando como exemplo o discurso As Pragas podemos ter

discursivamente uma determinação etária do enunciador, uma relação de grupo social,

enfim características que marcam a corporalidade do enunciador.

Por ser uma representação global de si, o enunciador ao elaborar sua fala

criar sua imagem, um ethos, e lhe confere uma gama de traços psicológicos, como

jovialidade, amabilidade, severidade, simpátia estas características marcarão o caráter

do enunciador.

Maingueneau (2008a/b) ao propor a noção de ethos discursivo estabelece

uma constituição reflexiva, uma vez que o ethos é constituído não só pela atuação do

enunciador, mas pela cooperação do coenunciador. Temos aqui um desafio proposto

pela noção do ethos, que é considerar uma natureza que é verbal, articulada ao poder

das palavras e em que medida integrar a esta imagem os fatores extralinguisticos que

contribuem para a construção do ethos deste enunciador.

A responsabilidade do coenunciador com a instauração do ethos é de muita

proximidade, pois o simples fato do enunciador se utilizar de um certo gênero

discursivo, o coenunciador já recupera determinadas formas e comportamentos socio-

históricos utilizados pelo enunciador neste gênero, ou pelo posicionamento discursivo.

Um professor que que queira passar uma imagem de um

individuo sério pode ser percebido como monótono; um

político que queira suscitar a imagem de um individuo

aberto e simpático pode ser percebido como m demagogo.

(AMOSSY 2008:16)

Ressaltamos que, por mais determinada que esteja a cena enunciativa, os

fracassos na percebidos na relação a percepção do ethos discursivo são comuns. Mesmo

pressumindo a atuação dos participantes do discurso, o lugar de e o espaço de onde se

fala.

Esta dissimetria entre o ethos que se pretende construir e o ethos

efetivamente percebido pelo coenunciador, nos possibilita apresentar o conceito de

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fiador. Enquanto o ethos está ligado a imagem do enunciador, o conceito de fiador liga-

se a imagem construida pelo coenunciador.

Uma vez que o coenunciador participa reflexivamente da enunciação e

identifica-se em um conjunto de representações sociais, é denominado fiador, segundo

Maingueneau (2008a/b) Amossy (2008) o chamado fiador incorpora uma gama de

estereótipos, tipos e configurações de papéis sociais que podem ser validados tanto do

modo positivo como do modo negativo.

Destacarmos um exemplo, podemos citar uma aula, na qual temos como

enunciador um professor, e como coenunciadores os alunos, nesta cena enunciativa

presume-se as falas de cada um dos participantes.

O fiador por meio de um tom atesta o que é dito. Por meio de traços de

características psicológicas que marcam o caráter do orador, que deve ser mostrado ao

auditório (pouco importando sua sinceridade) para causar boa impressão: são os ares

que assume ao se presentar (...). O orador enuncia uma informação e ao mesmo tempo

diz: eu sou isso e não aquilo.

Assim, diz-se que o ethos liga-se ao enunciador, através principalmente das

escolhas lingüísticas feitas por ele, seleções estas que oferecem pistas acerca da imagem

do próprio enunciador, continuamente construída no âmbito discursivo.

Ao propor o conceito de ethos para a Análise do Discurso, Maingueneau

(2006a), afirma que este se liga diretamente ao tom que envolve o discurso, o que pode

ocorrer de maneiras diferente entre o ethos dito e o mostrado. Sendo que o ethos dito é

aquele através do qual o enunciador mostra apresenta suas características, dizendo ser

essa ou aquela pessoa, enquanto que o ethos mostrado é aquele que não é dito

diretamente pelo enunciador, mas é construído através de pistas fornecidas por ele no

seu discurso. Maingueneau (2006a:71).

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Segundo o esquema proposto, o ethos compõe-se de duas partes: o ethos

pré-discursivo e o ethos discursivo. Atualmente, Maingueneau substituiu a noção de de

ethos pré-discursivo para ethos prévio.

Estas são categorias relacionam- se mutuamente a partir do momento em

que o ethos prévio pode ou não ser confirmado pelo ethos discursivo, ou ainda quando o

ethos discursivo pode reformular a imagem inicial formada pelo ethos prévio,

confirmado ou refutado.

Como pode ser observado nesta esquematização a resolução da polêmica

envolve diferentes ‘olhares’ e procedimentos que são acionados pelo enunciador e co-

enunciador de acordo com suas referências que podem ser por meio de competências

culturais, dos interlocutores ditas não lingüísticas, compreendidas nos dados

situacionais que compõem o universo do discurso. Outro procedimento que pode ser

acionado que envolve o ethos está relacionado a perspectiva interacional e a influencia

mutua que ocorre entre enunciador e co-enunciador.

Na base do esquema, estão os estereótipos, através dos quais o co-

enunciador utiliza-se de representações culturais fixas, de modelos pré-construídos para

atribuir algumas características e não outras ao enunciador.

A Análise do Discurso aborda esta noção de ethos de maneira ampliada pois

considera que a imagem é criada tanto pelo enunciador quanto pelo coenunciador, e em

ambos casos compartilhada por um tom, por uma voz enunciativa que atribui ao ethos

uma corporalidade e um caráter psicológico.

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2.4 Gênero do Discurso

Nosso intuito ao abordar o conceito de gênero do discurso se restringe a

uma apresentação dessa noção tal como ela é desenvolvida por Bakhtin e abordada por

Maingueneau, nós estamos operando e o que daí é relevante para a análise dos discursos

em nosso trabalho.

Bakhtin (2003:267), quando se refere à “ausência de uma classificação bem

pensada dos gêneros do discurso por campos de atividade”, nos autoriza a associar os

gêneros do discurso aos diversos campos da atividade humana, tais como o jurídico, o

político, o familiar, o literário, o científico, e considera as peculiaridades dos

enunciados relativamente estáveis, denominados gêneros discursivos por Bakhtin

(2003:262).

Os gêneros discursivos caracterizam-se por suas particularidades, e suas

categorias surgem de inicialmente por seu funcionamento social. Além disso,

caracterizam por seu conteúdo temático, estilo e unidades composicionais – as

dimensões que refletem a esfera social em que são produzidos e modificados.

As condições sócio-históricas do uso do gênero refletem, inclusive, na

criação de novos gêneros, uma vez que os gêneros também estão condicionados pelas

estruturas textuais e forma de produção. Segundo Bakhtin, esta consideração que

determinará a escolha do gênero e de seus procedimentos estilísticos, composicionais e

temáticos.

Maingueneau ao tratar da questão dos gêneros discursivos, sugere uma

organização textual que possa contribuir para sua categorização e funcionamento social.

Embora considere o papel do enunciador e do co-enunciador na composição do gênero,

por serem responsáveis pela fala em determinado gênero, justificando que a fala não

parte aleatoriamente de qualquer um, mas de um indivíduo detentor de um dado estatuto

a se responsabilizar por determinados papéis na situação de comunicação.

Ainda, que Maingueneau (2008a) proponha que uma definição de texto em

que

todo texto pertença a uma categoria do discurso, a um

gênero do discurso e que dispositivos de comunicação que

só podem aparecer quando certas condições sócio-

históricas estão presentes.

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O que explica que “o discurso é aí apreendido como atividade relacionada a

um gênero, como instituição discursiva: seu interesse é não pensar os lugares

independentemente de enunciações que eles tornam possíveis de realização.

Os gêneros do discurso se dispõem em relação às divisões da sociedade em

setores de atividades sociais, portanto em diferentes ordens, para as quais justifica a

opção por um ou outro gênero. Estas ordens são desde o lugar institucional, ou a relação

entre os parceiros ou ainda em relação ao posicionamento.

Um dos exemplos dados por Maingueneau é o lugar institucional sendo um

hospital / uma escola há gêneros específicos que circulam nestas esferas, assim como há

gêneros específicos que circulam nas relações entre diretores e professores, médicos e

pacientes, assim como há gêneros que são aceitos por parceiros de posicionamento de

natureza ideológica como ‘discurso socialista’ ou o ‘discurso católico’.

A utilidade dos gêneros do discurso baseada no reconhecimento de sua

funcionalidade social, e das condições destes garante uma o que está denominado como

economia cognitiva. Como enfatiza Bakhtin (1997:302)

Aprendemos a moldar nossa fala pelas formas do gênero

e, ao ouvir a fala do outro, sabemos logo, desde as

primeiras palavras, descobrir seu gênero, adivinhar seu

volume, a estrutura composicional usada, prever o final,

em outras palavras, desde o início somos sensíveis ao todo

discursivo [...] Se os gêneros de discurso não existissem e

se não tivéssemos o domínio deles e fossemos obrigados a

inventá-los a cada vez no processo de fala, se fossemos

obrigados a construir cada um de nossos enunciados, a

troca verbal seria impossível.

Os traços constitutivos do gênero apresentados por Maingueneau apontam

para uma concepção mais pragmática desta categoria discursiva, condicionando a

proposição de bahktiniana de interlocutor ativo dentro de um quadro teórico que o

considere um dos aspectos formadores do gênero.

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CAPÍTULO III

ANÁLISE

3. Introdução

Neste capítulo inicialmente, faremos um breve resumo do discurso de Scliar

intitulado As Pragas simplesmente situar o leitor, e em um segundo momento

observaremos alguns aspectos da situação de comunicação e do contexto de produção.

A Análise do Discurso nos oferece por meio das categorias de análise

examinadas como cenas de enunciação e ethos discursivo, uma possibilidade a para

apreensão o fato literário, enquanto prática social institucionalizada.

Nesta perspectiva o discurso literário não é isolado ou restrito a

circunstâncias específicas, ele é uma prática verbal que não se limita aos textos

destacados como literários, Maingueneau (2006:39) destaca, que a AD deve partir para

elaborar interpretações que envolvam a instituição literária e outros elementos que são

constituintes de outros discursos, e propõe que aquilo que se considerava um mero

auxiliar, um protocolo de pesquisa e interpretações em outros discursos possam também

subsidiar a Análise do Discurso literário.

Entretanto Maingueneau (2006) ao propor uma delimitação desta fronteira

do discurso literário alerta que não se pode descartar que os avanços alcançados pelos

estudos dos gêneros do discurso, de polifonia enunciativa de marcadores de interação

oral e assim por diante, embora com propósitos distintos as relações entre as pesquisas

sobre a língua e sobre a literatura são uma passagem obrigatória para a compreensão do

fato literário.

Elegemos para duas categorias para apresentarmos as possibilidades que o

discurso literário oferece como prática social, e como ampliação das fronteiras que

definem o discurso literário permite examinaremos os marcadores de pessoa,

configurados na gramática tradicional como os pronomes pessoais, e que nos estudos da

enunciação podemos ampliar para uma condição de não-pessoa.

Atentaremos para a constituição interdiscursiva que se inscreve neste

discurso, e observaremos que a relação estabelecida não se restringe ao discurso

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literário e bíblico, estende-se também a outras relações, apontadas pelo enunciador,

como a relação entre o discurso científico e o empírico entre outros que se tornam

evidentes em nossa análise.

Passando pelas relações interdiscursivas seremos que conduzidos a

examinar as cenas enunciativas que já validadas por alguns discursos, como por

exemplo, uma cena validada pelo discurso bíblico que é recuperada pelo discurso

literário. E aí há um legítimo “dispositivo” discursivo que a literatura se utiliza ao

engajar, encadear ou contrapor estas cenas de diferentes discursos, por vezes os mais

distintos, serão recuperadas pelo discurso literário. A nosso ver gerando um novo

sentido para este discurso e um procedimento que cumpre a função institucional da

literatura.

Considerando as cenas de enunciação validadas transitam entre os discursos,

ao serem deslocadas para discurso literário, tem os seus elementos lingüísticos

discursivos reorganizados pelo gênero discursivo. Esta reorganização nos permitirá

observar o posicionamento discursivo do enunciador, quais são suas ações e crenças que

caracterizam-se como ethos discursivo de expectador e narrador de um drama familiar.

Por esta reorganização também, observamos o quanto o discurso As Pragas contribui ao

compor os personagens com características próprias, caracterizando muitas vezes ethos

discursivos que se apresentam em relações de concorrência e cooperação.

O discurso As Pragas de Scliar nos apresenta por meio dos recursos

lingüístico-discursivos o ethos discursivo, imbuído de uma expressão contemporânea da

linguagem que contribui para a manutenção do gênero discursivo em nosso cotidiano,

mediando tradição e modernidade e apresentando em seu discurso polêmicas explícitas,

que permitem refletir sobre o processo mais geral da adesão dos sujeitos a determinado

posicionamento.(Maingueneau, 2008b, p.64)

Para nortear a análise do discurso As Pragas nos concentraremos na

proposta no confronto de pontos de vista divergentes ao invés de serem dominados pelo

ponto de vista do enunciador, contribuem para a constituição da relação interdiscursiva.

3.1 Quem conta um conto As Pragas

O conto de Scliar, que tomamos por princípio metodológico, deste trabalho

como discurso, tem como enredo a história de uma família de egípcios, com um

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cotidiano simples e uma vida sem sobressaltos. Até que um dia a vida tranqüila desta

família é abalada, uma série de pragas surgem nos rios, suas lavouras, em suas casas,

em seus corpos. As razões que provocaram estas pragas pouco se sabe, há especulações,

algumas suspeitas, porém o que se sabe é que a ocorrência das pragas desequilibra a

vida familiar.

No desenrolar da história ficamos diante de percalços que são enfrentados

pelos Éramos seis que conta uma família com um pai dominador e incansável, uma mãe

submissa e chorosa, um filho mais velho independente e oportunista, uma filha curiosa e

questionadora, um filho caçula inocente e um filho (do meio) que contará e registrará a

história.

As pragas provocam um desequilíbrio no ambiente, na situação econômica e

nas relações familiares, questões sobre o quê fazer para salvar-se? Como impedir a

continuação destas pragas? Quais são as escolhas que os chefes de família, que os

governantes farão? Quem poderá determinar quando a vida prosseguirá o seu ciclo

aparentemente eterno e imutável.

As pragas se sucedem uma após a outra e avançam provocando uma tensão

familiar, que resiste bravamente aos infortúnios, até que a última praga seja lançada. A

morte do primogênito.

Este discurso literário dialoga com o discurso bíblico ao retomar o episódio

do livro do Êxodo. A história Moisés, filho de uma hebréia, é abandonado nas águas de

um rio, recolhido pela rainha egípcia e é educado como um príncipe, ainda jovem

envolve-se em um crime e foge para o deserto. Lá ... tempos passados recebe uma

missão divina, deveria retornar ao Egito e libertar os hebreus da tirania do Faraó. Desde

então, Moisés tornou-se ícone da observação ao cumprimento dos desígnios de Deus. É

tido pelos judeus como um dos patriarca do seu povo.

As conseqüências desta história atribuem a Moisés um estatuto de herói, um

mito que permanece na memória discursiva dos povos da tradição judaico cristã, mas o

que Scliar produz em seu discurso é uma mudança de perspectiva, revelada pelo

posicionamento discursivo que o narrador assume.

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3.2 Interdiscursividade e a geração de conflitos discursivos

Examinar o discurso As Pragas de autoria de Scliar é tratarmos

necessariamente da condição interdiscursiva, o que é evocado desde o título dado ao

texto, o que do ponto de vista da Análise do Discurso não deixa de ser valioso,

estabelecer esta relação com outros discursos como, por exemplo, o discurso bíblico, o

discurso científico ou o discurso social.

Antes, é necessário esclarecer que ao há uma duplicidade discursiva, ao

citarmos o discurso bíblico, nos referimos ao Antigo Testamento aceito pela tradição

judaíca como uma a lei do povo hebreu e fonte religiosa e histórica. E não deve

confundir-se com o Novo Testamento, este associado ao cristianismo, e traz em sua

composição os relatos e histórias dos tempos de Jesus.

Esta distinção é necessária ao propósito de nossa pesquisa, pois são

discursos que apresentam significativas diferenças no seu tom. O discurso relativo ao

Antigo Testamento é marcado por um tom de autoridade divina, útil para mediar as leis

e o comportamento social, exercendo sobre os homens o poder, o controle e a punição,

podemos dizer que há um tom de austeridade. Enquanto o Novo Testamento apresenta

um tom de maior solidariedade, perdão, e leveza. Este esclarecimento deve-se por

apresentarmos a citação de discurso bíblico, quando nos referindo ao Antigo

Testamento ou Bíblia Judaíca.

O discurso As Pragas de Scliar evoca, indiscutivelmente, uma memória

discursiva que é presente para os coenunciadores. Consideramos que este discurso é

marcado como um enunciado estável, que permeia o cotidiano de diversos

coenunciadores ao longo do tempo, provocando diferentes associações de sentido,

ligadas ao discurso bíblico, e replicada em diversos contextos sociais e históricos.

Segundo Maingueneau (2007, 2008a, 2008b) nosso trabalho de analise recai

na necessidade de demarcar fronteiras agrupando enunciados estabelecidos

historicamente. No caso do discurso As Pragas esta zona de fronteira será agrupada

marcando os enunciados inscritos historicamente e pertencentes a outros discursos,

como é o caso, do discurso social, do discurso científico entre outros, é neste espaço

denominado como transverso, que podemos identificar unidades lingüísticas, funcionais

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ou comunicacionais que estão presentes em outros gêneros discursivos conquistado

pelas práticas verbais instituídas.

Ao tomarmos o discurso As Pragas observamos que os marcadores

lingüísticos que seguem confirmam que há referência ao discurso bíblico, o que segue

ao título, como um capítulo, anuncia a primeira das pragas “AS ÁGUAS SE

TRANSFORMARAM EM SANGUE”. Este destaque, também, poderá ser reconhecido

pelo discurso literário, que marcará o início de um texto apresentando procedimentos

discursivos próprios, e encaminham a leitura para uma compreensão de um discurso

literário. Tomando o enunciado por discurso literário, o encaminhamento adotado pelo

enunciador, é próprio do gênero discursivo que traz uma introdução com a apresentação

uma situação inicial, marcada por um locus amenus, e de um enunciador que será

estabelece a comunicação com seus coenunciadores, para iniciar sua narrativa.

O interdiscurso é uma apresenta-se em diversos momentos do, e como

podemos constatar, o enunciador reivindica que os aspectos sociais sejam destacados,

evidentes, que mereçam uma reflexão, pois trata-se de um marcador do posicionamento

discursivo do enunciador, capaz de determinar as circunstâncias sociais e econômicas

nas quais um trabalhador do campo está sujeito, bem como as condições naturais que

determinarão sua produção e seu status social.

Se marcar o discurso social é possível isso é feito com o estabelecimento de

uma relação polêmica, de autoridade vinculada não só as condições sociais como

também as condições econômicas. Aliás, flor era coisa que não plantávamos. :ão

podíamos nos permitir tais indulgências. Este controle social é exercido

interdiscursivamente, ou seja, perpassa todas as relações de sentido que podemos

estabelecer neste discurso As Pragas . Marcado por meio do posicionamento discursivo

do enunciador, que por vezes está na situação de vencedor, como no caso do discurso

bíblico, e em outras situações, como neste discurso de autoria de Scliar, como o

enunciador dos derrotados, dos vencidos.

Embora possamos atribuir ao discurso As Pragas assuma uma significância

de controle social, refletindo padrões de comportamento historicamente definidos, a

exemplo, da condição social da mulher, e da valorização do conhecimento científico, a

relação de força, poder e autoridade é mantida. Vence a voz da ordem tradicional, do

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pai, do homem da terra, do homem obediente, do homem que teme as forças de um

mundo que nem ele consegue explicar.

Há no discurso de As Pragas outro aspecto interdiscursivo que se evidencia

em uma relação de polêmica, gerada entre o discurso científico, vindo de relações e

comprovações de um método de comprovação, de experimentações, em confronto com

o discurso tomado pela observação, logo determinado por condições empíricas.

O discurso científico desafia as explicações e as respostas vindas do

conhecimento empírico, que até então era o padrão utilizado pela autoridade de um

grupo social. Este desafio está a cargo, no discurso literário, por meio de um enunciador

apresenta os personagens caracterizando suas funções sociais e históricas, declara-se o

conflito “Minha irmã (em algum tempo ela poderia ser reconhecida como expoente do

nosso espírito científico) deteve-se.” A polêmica gerada situa-se em diferentes aspectos,

ora por estar contrapondo o científico e o empírico, assim como o papel social

desempenhado pela mulher, apontando algo incomum, e pouco aceito, vincular o

espírito investigativo a figura feminina.

O trabalho interdiscursivo, segundo Maingueneau, não pode se limitar, tudo

o que podemos conceber é um espaço de relações que gerem um significado capaz de

incitar e construir um sistema no qual a definição de rede

semântica que circunscreve a especificidade de um

discurso coincide com a definição das relações com seu

Outro. :o nível das condições de possibilidade

semânticas, haveria, pois, apenas um espaço de trocas e

jamais de identidade fechada. (MAINGUENEAU, Gênese

dos Discursos 2008b:34)

Portanto o que nos avisa o enunciador deste discurso é que As Pragas

representa uma história que será contada e registrada para revelar a obediência foi

desejo do meu pai, acho que ele queria que eu contasse esta história; aqui está a

história.

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3.3 As Pragas na literatura uma cena englobante

Conforme Maingueneau (2006a, b) afirma que todo enunciado é o produto

de uma enunciação e, portanto, uma obra literária também é um enunciado. Pensar nas

circunstâncias de produção deste enunciado, responder quem é o autor, quando foi

publicado, em que coletânea, ou quais os prêmios conquistados, responde apenas

parcialmente ao nosso objetivo, atende às questões externas à obra, a situação de

comunicação.

Para responder sobre questões mais internas à obra, devemos considerar a

situação de enunciação, num quadro mais pragmático e dinâmico, devemos considerar a

situação de fala. Citando Maingueneau (2006) que afirma que o texto é um rastro do

discurso em que a fala é encenada, logo, para empreendermos uma análise significativa,

que atenda às nossas questões, iremos nos pautar nas cenas de enunciação.

As Pragas corresponde a um discurso literário por sua inscrição

institucional, sua situação de comunicação, Scliar ao compor a coletânea de contos

reunidos no livro A orelha de Van Gogh (1988) já era um reconhecido autor brasileiro,

participando do cenário literário desde o final da década de 1960.

Scliar traz para a sua produção as marcas da sua condição de judeu, de filho

de imigrantes da Europa Oriental, do sentimento de estrangeiro, de pertencer a ‘dois

mundos’, fato semelhante ocorre pela sua condição profissional, a medicina é a paixão

que concorre com a literatura. Provavelmente estas situações são as responsáveis por

um viés temático presente em sua obra.

O retratar a condição de estrangeiro na literatura brasileira é algo freqüente

em nossa produção nacional, o discurso do estrangeiro no contexto nacional pode ser

evidenciado desde as primeiras manifestações literárias.

Quatro grandes temas presidem a formação da literatura

brasileira como sistema entre 1750 e 1880, em correlação

íntima com a elaboração de uma consciência nacional: o

conhecimento da realidade local; a valorização das

populações aborígenes; o desejo de contribuir para o

progreso do país; a incorporação aos padrões europeus

(...) :o fundo do desabafo mais pessoal ou da elocubração

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53

mais aérea, o escritor pretende inscrever-se naquelas

balizas, que dão a nossa literatura, vista no conjunto, esse

estranho caráter de nativismo e estrangeirismo; pieguice

e realidade; utilitarismo e gratuidade. (CANDIDO

2000:66-67)

O sentimento de ambigüidade e de estranhamento deixou profundas marcas,

no ‘cenário globalizante’ da literatura brasileira, e que são registradas, a princípio a

presença do europeu sob o viés do olhar português, adotando uma perspectiva edênica

para a realidade brasileira. É ao longo da produção literária brasileira que percebe-se a

constituição do cenário nacional o retrato que marca a idealização do homem, o

exotismo e as mazelas do país são retratadas no regionalismo.

São as manifestações literárias do início do século XX indicam que a

independência artística, com uma nova correspondência da identidade nacional do e

pelo brasileiro. O grande salto foi desta visão deu-se com os Modernistas que inovam na

linguagem no estilo na forma, a exaltação da identidade nacional, e o apelo de criação

do mito brasileiro, provoca um apagamento da identidade do estrangeiro no contexto

nacional.

Na segunda metade do século XX numa fase pós-moderna, a literatura

brasileira livre dos compromissos de criar a identidade nacionalista, com todas as

mudanças sociais e políticas na ordem mundial, o cenário literário brasileiro dá voz a

uma produção que apresenta o olhar deste estrangeiro, que produz sua obra em

igualdade de condições, nem ‘tão’ herói, nem ‘tão’ vilão, os grupos de imigrantes

passam a ser representados em nossa literatura. O que não impede que alguns autores

mantenham uma identidade cultural aliada às suas origens.

(...) Antonio Candido de Alcântara Machado que mapeia

a cidade de São Paulo, acompanhando os passos da

trajetória de integração dos italianos e ítalo-paulistanos

pelos bairros da cidade; é o caso de Lya Luft que registra

a imigração alemã no Sul do país; de Raduan :assar que

traz à sua Lavoura Arcaica um tom árabe; e de Milton

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Hatoum que trata de um certo Oriente em Manaus.

(WALDMANN 2003:103)

Segundo Berta Waldmann (2003) a obra de Scliar reflete sua condição de

estrangeiro numa combinação que aflora o choque cultural entre imigrantes e

brasileiros, o conflito entre entre a tradição e a cultura hegemônica, e a utilização de

certas matizes da cultura judaíca como a Bíblia e a representação metafórica das

parábolas.

Scliar ao apresentar esta visão do estrangeiro que na contemporaneidade,

revelando a multiculturalidade nacional brasileira, participa do discurso literário,

legitimando-se por meio de sua produção como contista, romancista, cronista ensaísta,

enfim um homem dedicado a produzir literatura, o que, segundo Mainguneau nos

remete a cena englobante é aquela que corresponde ao tipo de discurso, ao seu estatuto

pragmático. (MAINGUENEAU, 2008c:115).

3.3.1 O conto As Pragas – um gênero do discurso

O conto cuja origem esta na tradição oral e tem em sua prática social a

recuperação de histórias, que mesmo que não estejam presentes no registro escrito,

mantem determinadas marcas que o tornam reconhecível para ambos registros, seja na

estrutura lingüística, seja por meio dos recursos mais voltados para o estilo, como por

exemplo a relação com uma narrativa curta e ‘intensa’ para seus acontecimentos.

Ainda que o gênero discursivo ‘conto’ tenha passado por significativas

mudanças, ao longo do tempo, há características que permanecem relativamente

estáveis, em um núcleo narrativo, próprio do ato de contar ... relatar um acontecimento,

e os elementos constitutivos que se estabelecem na enunciação, como enunciador,

coenunciadores, e as relações espacio-temporais, logo os estudos da enunciação,

contribuem para marcar um posicionamento discursivo, que se torna determinante para

se estabelecer as relações de sentido, de vinculações estéticas, de posicioamentos

ideológicos, sociais, entre outros.

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55

É no e pelo discurso que se instauram as pessoas do discurso imbuídas de

um posicionamento social e historicamente constituídas. No discurso As Pragas esta

marca é declarada pelo enunciador, pois é feita uma apresentação, do enunciador e de

sua tarefa neste discurso. Assumindo-se como o ‘contador’ o responsável pela

transmissão do acontecimento para tantos quantos forem. E reconhece a

responsabilidade de contar a história, porque ele aprendeu, o oficio de contar e registrar

as histórias cotidianas, das ‘pessoas comuns’.

Éramos seis na pequena casa: meus pais, meus três

irmãos e eu.Todos dedicados a faina agrícola.Mais tarde

aprendi o ofício de escrever, foi desejo de meu pai, acho

que ele queria que eu contasse esta história; aqui está a

história.

Esta interação do enunciador com os coenunciadores remonta as

características do discurso oral, que ao longo do tempo foi transferido para o registro

escrito, como uma espécie de história, esta necessidade marca uma preocupação de

registrar o acontecimento, que se transmitido somente pela oralidade, pode sofrer

inúmeras coerções.

Há uma valorização do registro escrito, pelo qual o enunciador se reveste de

autoridade, para contar esta história, a autoridade de quem foi aprender o ofício de

escritor (...) mais tarde aprendi o oficio de escrever uma maneira eficaz de registrar a

história de se comunicar e transmitir conhecimentos. Nota-se que há um distanciamento

temporal da ocorrência do fato e seu enunciado propriamente dito, resultado das

lembranças um acontecimento.

O enunciador busca estabelecer a comunicação com seus co-enunciadores e

garantir a adesão destes, esclarecendo que o seu posicionamento de destaque no grupo

familiar, é uma condição imposta, alguém deveria contar está história, e ele foi o

escolhido, ainda como um bom aprendiz revela sua imperfeição, diante dos

coenunciadores, e deixando lacunas de semânticas que serão ‘preenchidas’ pela

interação discursiva dos coenunciadores.

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Caracterizando ainda esta condição desta cena genérica percebe-se que o

enunciador apresenta fortes influências da oralidade, há uma introdução em que o

enunciador inicia o seu conto, um preâmbulo que esclarece uma situação inicial, que

antecede o acontecimento que desencadeará a ação. É uma atitude que marca neste

discurso uma transferência no modo de enunciar, do registro oral para o escrito, como se

o fato de relevância, deva receber um tratamento diferenciado, e ser ‘contado’ pelo

registro escrito.

As Pragas é presento sob uma cenografia que é construída na interação

entre enunciador e coenunciadores, notamos que há, desde o início da maneira como se

apresenta o título, do enunciado, a maneira de como se destaca o subtítulo, e que se

repetirão ao longo do discurso apontando como títulos de capítulos e que solicitam a

memória discursiva dos coenunciadores.

(...) há inúmeros enunciados míticos orais, mas essa

inscrição passa por vias distintas daquelas pelas quais

passa o código gráfico. (...) a inscrição é radicalmente

exemplar, ela segue exemplos e dá exemplo. Produzir uma

inscrição é não tanto falar em próprio nome, mas seguir

os traços de Outro invisível, que associa os enunciadores-

modelo de seu posicionamento e, no limite, a presença da

Fonte que funda o discurso constituinte: a Tradição, a

Verdade, a Beleza... (MAINGUENEAU, 2008c)

Embora o enunciador venha a recuperar um enunciado inscrito na memória

discursiva, é legítimo o seu posicionamento diante do enunciado ‘As Pragas’, uma vez

que consideramos o aspecto interdiscursivo em relação ao discurso bíblico. O que

podemos comprovar por meio de marcadores discursivos, próprios do gênero como a

relação intertextual, a temática, o vocabulário entre outros, que atendem tanto a

inscrição no discurso literário quanto a inscrição do discurso bíblico.

Existe uma correspondência direta entre os capítulos do discurso As Pragas

com os capítulos e versículos bíblicos, no entanto, ressaltamos que o no discurso

mantém a interferência do enunciador, que assume uma autonomia para narrar a história

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com sua marca própria, a partir do seu posicionamento, de suas características, ou seja,

a partir de seu ethos discursivo. Como examinaremos oportunamente.

A cena genérica, uma vez que possui como correspondência com o gênero

do discurso, é caracterizada por uma construção relativamente estável, que é retomada

enquanto discurso literário, enquanto conto. O enunciador imbuído da autoridade de

narrador desta história, reproduz sua fala, e como um aprendiz que busca apresentar sua

identidade e isentar-se de eventuais mal entendidos.

Pode-se dizer o seguinte (e a frase até que não é das mais

empoladas, para quem termina uma narrativa): a vida

prossegue seu curso, num ciclo aparentemente eterno.

A condição interdiscursiva que ocorre entre o discurso bíblico e o discurso

literário, e a interação com os coenunciadores do discurso As Pragas, e determina uma

prática social própria do conto, que condicionada, por uma independência do

enunciador. É uma cena genérica em que o enunciador tem um espaço privilegiado para

o exercício de sua subjetividade, o que predomina é a versão do enunciador, por mais

que haja a interação com os coenunciadores, o enunciador manterá o seu modo de

contar até que possa dizer tudo o que pretende.

:ão chegamos a saber. Sem um suspiro tombou

pesadamente. Meu pai tentou ampará-lo, mas

simplesmente não conseguiu segurá-lo: estava muito

fraco, o pai. De gafanhotos, jamais alguém se nutriu

adequadamente.

Enterramos nosso irmão na manhã seguinte. :ão foi o

único primogênito enterrado naquele dia, pelo que

soubemos.

Quem conta um conto aumenta um conto é um dito popular reflete esta

característica da prática social do contador de histórias, o enunciador exercendo o

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controle sobre a sua fala e sobre o seu conhecimento em relação ao outro, determina o

quê e como deverá ser contado, revelando a liberdade que o enunciador tem para

transitar entre o real e o ficcional, isento de responsabilidade e marcando um duplo

papel, o de espectador de uma história e de co-enunciador e do seu posicionamento

discursivo de enunciador.

3.3.2 As Pragas – a cenografia

Segundo Maingueneau, a cena enunciativa integra as três cenas, a cena

englobante que corresponde ao ‘tipo de discurso’, a cena genérica que se relaciona aos

gêneros discursivos, mobilizando alguns elementos discursivos que correspondem a

expectativas do enunciador e do coenunciador e finalmente a terceira cena, chamada de

cenografia, que corresponde a uma noção de cena teatral, na qual será inscrita a

enunciação.

É neste momento a cenografia torna-se um círculo, um processo no qual não

se poderá separar os elementos que participam da enunciação como um ethos, que

instaura as pessoas do discurso, enunciador e coenunciador, o código linguageiro que

configura um mundo, e por meio do qual poderá ser validado o discurso, além das

condições espaciais (topografia), e das condições temporais (cronografia).

Outra consideração importante é a associação da cenografia com o tipo de

discurso, neste sentido as cenografias serão validadas de acordo com os tipos de

discurso.

Maingueneau recorre à cena num nível mais elevado da

enunciação, para o tipo de discurso: os gêneros literários,

por exemplo, mobilizam a Cena literária. Os gêneros

científicos a Cena científica. É então a cenografia que

designa a cena instituida por um discurso.

(MAINGUENEAU, 1998:21)

Ao tomarmos o discurso As Pragas o primeiro impacto que se tem é de se

tratar de um texto bíblico, os destaques de título e subtítulo, correspondem ao texto

bíblico e inevitavelmente o coenunciador aciona sua memória discursiva.

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AS PRAGAS

AS ÁGUAS SE TRANSFORMARAM EM SANGUE

Porém a Análise do Discurso, ao tratar do discurso literário algumas

observações específicas, Segundo Maingueneau (2006:252), na literatura é muito

comum que o leitor ou ouvinte não veja diretamente a cena englobante, mas antes uma

cenografia. Neste sentido o coenunciador, inicialmente é levado por uma possibilidade

de interpretação que não se confirmará, e é um recurso utilizado pelo discurso literário.

O leitor se vê assim apanhado numa espécie de

armadilha, porque o texto lhe chega em primeiro lugar

por meio de sua cenografia, não de sua cena englobante e

de sua cena genérica, relegadas em segundo plano, mas

que na verdade constituem o quadro desta enunciação

(ibidem 252)

Neste caso, entendemos que este relegado em segundo plano está o própria a

relação com o discurso bíblico, pois ele é uma fonte na qual estão relacionados outros

elementos discursivos, como o código linguageiro, e a dêixis enunciativa como

veremos.

O enunciador reconhece que o coenunciador foi enredado por esta

“armadilha cenográfica” e para inserir o coenunciador no seu propósito real, faz a sua

introdução, um preâmbulo próprio da cenografia, indicando aos coenunciadores os

espaços e o tempo em que se desenrolará a cena.

3.3.3 As Pragas – e espaço e o tempo discursivos

Indicando a topografia, como o espaço da enunciação, e neste caso da

enunciação literária, o enunciador remete a características muito próprias de uma região

agrícola, de uma região que se regula pelo ciclo das estações do ano, e pelas condições

do grande rio este é um referencial bastante marcado da zona fértil, das margens do

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Nilo, e representa historicamente uma região que é propícia a populações que dominam

os conhecimentos mais rústicos da natureza, dos tempos de plantar e colher, é um

convívio pacífico, com este grande rio, desde que sejam respeitadas as condições

impostas pela natureza. Desde que o home respeite esta força natural.

Uma tarde passeávamos, como era nosso costume, às

margens do rio (...)

Porque nosso rio não era nenhum desses riachos de água

cristalina que corre trêfego entre as pedras, na montanha,

era um volumoso curso d’água que vinha de longe, fluindo

lento e arrastando consigo a terra das margens (que nos

importava? :ão era nossa terra); grande animal, quieto,

mas poderoso, que adquirira ao longo dos séculos o

direito ao seu leito largo. :ão era um rio bonito, isto não

era; mas não queríamos que ele adornasse a paisagem,

queríamos que se integrasse ao ciclo de nossa vida e de

nosso trabalho, e ele o fazia. :ão precisávamos

contemplá-lo em êxtase. Secreta Gratidão bastava.

Este lugar de onde fala o enunciador, de onde ele e de onde irá marcar

espacialmente o desenrolar da história é um local que participa da cenografia com certa

estabilidade, toda a cena enunciativa irá passar neste ambiente, os integrantes apesar de

todas as perturbações estão praticamente fixos, nos seus costumes, nos seus caminhos,

nos seus destinos, é um lugar, um ambiente dominador.

Podemos considerar que está é uma cena validada para uma vida de

camponeses, que usufruem comedidamente da natureza, não transformam o ambiente,

não fazem alterações, não provocam interferências, apenas respeitam a natureza

reconhecendo que o tempo legitima sua força e poder.

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O espaço que determina a ação dos personagens, assume uma condição

cíclica, e assim como ocorre na natureza, a intervenção do homem só em possibilidades

de adaptá-la, na verdade o homem está subjulgado a tais variações naturais.

E então, vinha a colheita, e a festa da colheita, e de novo

a cheia. Ano após ano.

(...) lavrando, semeando, arrancando com fúria as ervas

daninhas

A cenografia de As Pragas por ser correspondente ao discurso literário

permite que a cena possa ser validada, contudo esta cena é validada por uma relação

interdiscursiva, que encontra corresponde no discurso bíblico, e aos modos de vida dos

camponeses egípcios.

Na verdade é uma conclusão possível pela série de relações interdiscursivas

que fazemos, pois ao acionarmos como referencial o texto bíblico, condição de vida

egípcia e de seus modos de produção agrícola é inferida. O que valida esta cena

enunciativa está marcada no discurso histórico que recupera e estuda os modos de vida

destes povos.

Assim como a topografia corresponde a inscrição do espaço, a cronografia

corresponde à inscrição do tempo da enunciação. Tratamos aqui da cena enunciativa e,

portanto, desta apresentação do tempo em que o enunciador propõe demarcar.

Por se tratar de uma narrativa, o enunciador recupera a história já

acontecida, marcada na memória, contudo, ao tomarmos este texto, observa-se que há

uma necessidade de imprecisão, os marcadores temporais, registram uma passagem de

tempo, que reflete a um tempo qualquer indefinido.

:ossa vida era regulada por um ciclo aparentemente

eterno e imutável. Periodicamente subiam as águas (...)

E então vinha a colheita, e a festa da colheita, e de novo a

cheia. Ano após ano.

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(... ) Eventualmente tínhamos problemas

Construímos uma cisterna. Dia e noite sem cessar nós a

enchemos com cântaros.

As rãs sumiram, mas dias depois de seu desaparecimento

(...)

Uma coisa súbita: uma tarde, pesadas nuvens toldaram o

sol (...)

Passam-se os dias e, uma tarde, estamos todos sentados à

rente da casa quando um vizinho vem correndo.

Enterramos nosso irmão na manhã seguinte. :ão foi o

único primogênito enterrado naquele dia, pelo que

soubemos.

A vida prossegue seu curso, num ciclo aparentemente

eterno

Estes destaques revelam que a indeterminação do tempo está ligada ao fato

que o enunciador presenciou a história, porém a circunstância de marcar este ciclo

aparentemente eterno, reatualiza o enunciado tornando-o atemporal.

Há uma disposição temporal que observa ser diferenciada, de um lado temos

a marcação temporal da enunciação, e este tipo de disposição temporal é muito comum

na enunciação literária,na qual o enunciador marca sua fala, para iniciar sua história.

(...) foi desejo de meu pai, acho que ele queria que eu

contasse esta história; aqui está a história.

Temos instalado na cenografia, o “eu” que enuncia, o “aqui” e o pronome

“esta” marcando a espacialidade, o distancimento que este enunciador tem dos seus

coenunciadores e a temporalidade “está”, no presente do indicativo, correspondendo a

uma temporalidade praticamente instantânea.

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Esta cenografia permite avaliar que a medida de valores que cada um dos

participantes dá ao seu posicionamento é diferenciado, enquanto a imprecisão do tempo

é dada com pouca relevância ao enunciador, que o colocando na condição duvidosa de

sua própria história, ocorre o inverso com os coenunciadores, pois as referencias

temporais representem ciclo aparentemente eterno e imutável, o que contribui para um

tom ameaçador, de retorno ao fato de desequilíbrio.

3.3.4 As Pragas – um código linguageiro

Falar de código linguageiro para o discurso literário é justificar como se dá

o uso da linguagem para a constituição e validação da cena enunciativa. Por ser uma

cena constituída na e pela linguagem é possível observarmos alguns aspectos relevantes.

(...) mas de maneira geral éramos felizes, se feliz é o

adjetivo que qualifica uma existência sem maiores

preocupações ou sobressaltos (...)

(...) é verdade que, às vezes, ao crepúsculo o céu se tingia

de cores diversas, e, entre elas o escarlate. Mas a essa

hora já estávamos em casa. Dormíamos cedo.

Jubilo precoce, o do nosso pai, como haveríamos de

constatar. Um dia, apareceu uma rã na cozinha. Rãs não

eram raras na região, e aquela era uma rã absolutamente

comum, o tamanho e a aparência habituais em tais

batráquios.

(...) poderia ter aquele olhar ter induzido no tegumento do

homem um processo patológico, traduzido primeiro por

uma dolorosa saliência e logo por uma fétida ulceração?

O primeiro é uma linguagem atualizada, revitalizada, que mescla

simplicidade e uma preocupação de registrar uma transformação da oralidade para o

registro escrito. E num segundo momento observa-se que o código linguageiro assume

um viés didático, quando o enunciador impõe algumas características de quem domina

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determinada situação, por meio de uma linguagem mais sofisticada, que o diferencia de

seus coenunciadores camponeses, um diferencial provavelmente adquirido por um

conhecimento formal, e o aproxima deste ofício que ele dedicou-se a aprender, para

contar e registrar a história.

Segundo Maingueneau, o código linguageiro é indissociável do ethos, as

características distintas deste código e sua eficiência, no discurso literário, e na cena

enunciativa serão fundamentais para apontar o ethos discursivo, com sua corporalidade,

seu caráter modo de ser, as características e as crenças que determinarão o quanto é

importante para determinar o modo de ser, as características e as escolhas que

constituem o ethos discursivo.

3.3.4 O ethos discursivo - a família

Antes porém de tratarmos do ethos discursivo, a cenografia compõe ao

instituir o enunciador, coenunciadores e as relações de tempo e espaço, promovendo

uma distribuição de papéis sociais para os coenunciadores. A cenografia instaura junto

ao enunciador, um coenunciadores que é representado por um grupo familiar, como se

fosse um único ser, que irá se desagregando, mostrando suas características

individualizadoras, traços e marcas pessoais que constituirão o ethos de cada um dos

personagens.

Éramos seis numa pequena casa: meus pais, meus três

irmãos e eu.

Minha irmã notou algo estranho (...)

- Que é isso? – perguntou meu pai, e notei uma ruga em

sua testa.

Meu irmão mais velho, rapaz prático (...)

O caçula ri, bate palmas, divertido; na sua inocência

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Há nesta constituição do grupo um funcionamento próprio da instituição

familiar, apresentando características comuns, presentes na memória discursiva que

representam este núcleo, pai – mãe – filho mais velho – filho do meio – filho caçula –

filha. Todos os sujeitos desta história não apresentam nomes pessoais, como se os

nomes que representam a identidade, a subjetividade de cada ser deixasse de ser

fundamental, e o que de fato vale são os papéis que cada um ocupa neste grupo nesta

instituição familiar.

Embora haja um funcionamento deste grupo, há um destaque, para um

indivíduo que sempre está à margem, como se seu espaço no discurso fosse marginal,

percebemos que o enunciador, marca-se com uma negação pois ele não é o primogênito,

não é o caçula e também não é o filho do meio (que neste caso é ocupado pela filha),

este nosso enunciador por estar deslocado, que por está a margem deste núcleo, recebe

uma tarefa específica, algo que dê uma razão para sua existência no grupo, a

responsabilidade de contar a história

Éramos seis numa pequena casa: meus pais, meus três

irmãos e eu.

O Anjo da Morte ferirá, sim, os primogênitos. Mas

passará por sobre as casas em cujos portais haja uma

marca feita com o sangue de um animal sacrificado!

>ós o olhávamos. O caçula, muito espantado. Minha irmã

e eu, bastante espantados. Pai e mãe – bem, não sei, se

estavam espantados, não sei, não o demonstraram. Mas

independente do grau individual de espanto. Ficamos

imóveis, a mirá-lo. Ele:

- Mas vocês não entenderam? – gritou. – Eu estou salvo!

Praticamente salvo!

Com o desenrolar da narrativa, ocorre um desequilíbrio deste núcleo, que

para manter sua unidade familiar substitui elementos que a compõe, o primogênito, que

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no início da narrativa o enunciador o agrupa “meus três irmãos”, “meus pais”, que está

completamente inserido, aglutinado no grupo dos irmãos, sem que haja um tratamento

individualizado.

Já ao final, no momento em que a família se vê diante do drama, da escolha

em que todos estão diante do dilema, entre sacrificar um animal e com isso todos

passariam fome, ou sacrificar um irmão, é o sacrifício individual que o grupo familiar

aceita. Observamos que neste fragmento, o primogênito deixa de estar agrupado como

irmão, desta vez quem está associado ao coletivo é o enunciador “Nós o olhávamos” e

faz um destaque a sua própria presença.

Este é um ethos institucional que representa um funcionamento

institucional, a família, possui regras tácitas para o comportamento ser socialmente

aceito, o grupo familiar responde por um discurso que mobiliza ações coletivas,

decisões, e que discursivamente tem uma voz que reflete suas necessidades.

Minha irmã (em algum tempo ela poderia ser reconhecida

como expoente do nosso espírito científico) deteve-se.

Paramos também, surpresos. Deixando-nos para trás,

deixando para trás o grupo familiar, a própria família, a

carne de sua carne, o sangue de seu sangue (atenção,

aqui: o sangue de seu sangue), ela adiantou-se vivaz

como sempre, e entrou no rio.

A família enquanto ethos discursivo apresenta uma imagem de si do seu

comportamento instituído, por expectativas, por aceitação e por formações discursivas

que refletem a adesão a determinados valores, existe a voz e o silêncio que caracteriza o

caráter de cada família. Assim como a corporificação em casas, em sótãos ...

Isto não ousei perguntar. :em falou ela a respeito. Tais

partículas integram o rol das coisas embaraçosas, não

verbalizadas, que existem em todas as famílias, numas

mais, noutras menos. Palavras não pronunciadas pairam

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nos lares como espectros; sobretudo nas noites opressivas

em que não se consegue dormir em que todos, olhos

abertos, fitam o mesmo ponto do forro da casa. O lugar

exato em que, no sótão, está o esqueleto insepulto).

O ethos discursivo que envolve os personagens nesta situação de enunciação

estão presentes institucionalmente como no grupo familiar, mas também por

desempenharem papéis sociais individualizados, correspondem a uma imagem de si

construída discursivamente e por meio de seu conhecimentos de mundo,

comportamentos sociais, competências lingüísticas, ou seja assumem o caráter e uma

corporalidade.

3.3.5 O ethos discursivo – o filho

As Pragas é um discurso marcado pela interdiscursividade com o texto

bíblico, é uma narrativa que subverte a o posicionamento do enunciador do que é o

discurso (fonte) e difundido historicamente.

Para o discurso bíblico o narrador é Moisés, a quem se atribui a escritura

dos livros do Pentateuco, é Moisés quem registra no segundo livro o Êxodo o relato

sobre as pragas que Deus enviou ao Egito. Vendo Deus o seu povo oprimido, e

construindo monumentos a deuses pagãos ‘manda’ Moisés ao Egito, para que este

liberte os hebreus da opressão e os conduza a liberdade e a Terra Prometida. Desafiado

pelo Faraó, e para provar sua soberania Deus lança pragas sobre todo o Egito até que

seja reconhecida a sua força e soberania. Moisés obedecendo a vontade de Deus conduz

os hebreus a liberdade e a Terra Prometida, onde recebe a orientação de Deus para

escreves seus mandamentos, a lei que guiarão o povo escolhido.

Claro que esta breve citação, não dimensiona o personagem ou toda a

representação que Moisés tem para a história e religião, principalmente no que

corresponde ao arcabouço judaico. Mas para nosso propósito serve para dimensionar os

aspectos da subversão que ‘nosso’ enunciador reflete.

As Pragas de Moacyr Scliar apresenta um enunciador de pouca expressão,

deslocado e que pouco sabe o que deve fazer, tanto que suas ações são determinadas

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pelo grupo familiar, sua voz tem pouca influência, mas muita percepção dos

acontecimentos é um bom espectador, ao examinarmos os elementos discursivos que o

posicionam no discurso, é possível constatar que a ‘aparição’ deste enunciador é diluída

pela 3ª. pessoa do plural ocorrência, enquanto a 1ª. pessoa é uma ocorrência menos

freqüente.

(...) Éramos seis na pequena casa: meus pais, meus três

irmão e eu. Todos dedicados à faina agrícola. Mais tarde

aprendi o ofício de escrever.

- Que é isso? – perguntou meu pai, e notei então uma ruga

em sua testa (...)

Mas já prosseguia, sem notar minha pertubação com um

destes dispositivos capazes de aumentar

extradordinariamente o tamanho das coisas (...)

Sangue! Sim, era sangue e eu o sabia desde o início.

Apenas não me atrevera a mencionar a palavra, e muito

menos com a segurança e a facilidade com que ela o

fazia.

O ethos deste filho é de um homem de pouca determinação, com dúvidas

sobre sua ação e demonstra que jamais enfrentará a autoridade, mesmo que não acredite,

não desafia, não fala, não recusa as ordens do mesmo que paire dúvidas sobre suas

crenças, ele obedece.

:osso pai, testa franzida, passa em revista o seu pequeno

exército. Conta conosco; ou imagina que conta conosco,

que estamos com ele. Estamos? Posso falar por mim:

estou. Mas estou mesmo? Inteiramente? Completamente?

E o que dizer de inexplicáveis sentimentos? E o que dizer

das dilacerantes dúvidas? Deus agora habita em mim.

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69

Dentro de mim crescerá, e prosperará, e triunfará. Estou

perdido. Estamos perdidos.

Não reconhece sua história como uma história que de fato possa ser

significativa, não sente sua perda em relação ao vínculo familiar, não se vê como um

indivíduo que pudesse interferir no destino, é um personagem prosaico.

Praticamente: foi o que ele disse. Mais tarde até

interroguei minha irmã a respeito e ela confirmou: sim,

foi praticamente o que ele falou: praticamente salvo. E

fico me perguntando se não foi essa a palavra – para mim,

na ocasião, pouco usual e até mesmo estranha.

(...) eu dizia, se não fosse essa palavra, curiosa para dizer

o mínimo, ou sinistra, como já mencionei, se não fosse

essa palavra, esse praticamente que precipitou tudo(...)

O enunciador demonstra em diferentes momentos suas incertezas, dúvidas

que correspondem tanto ao que ele mesmo enuncia, observe que o enunciador precisa de

uma confirmação, sobre algo que ele presenciou, que ouviu, mas qua para dimensionar

o real sentido, recorre a outra personagem, sua irmão, que já possui um caráter de

firmeza e objetividade. Quando é o momento de se pronunciar, de impor sua afirmação

eu dizia, se não fosse (...) corresponde a uma condição, um talvez, a sua verdade é uma

possibilidade.

A sua história pode ser concluída como algo que sofreu pouca mudança.

Observe que para dimensionar toda essa grande história, o ciclo narrativo deixa como

uma provocação, que poucas mudanças aconteceram, o enunciador recorre ao mesmo

elemento discursivo do começo da narrativa, Imútável é um único vocábulo que pode

significar as experiências vividas pelo grupo familiar.

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Pode-se dizer o seguinte (e a frase até que não é das mais

empoladas, para quem termina uma narrativa): a vida

prossegue o seu curso, num ciclo aparentemente eterno.

Considerações finais

:ossa vida era regulada por um ciclo aparentemente eterno e imutável.

Esta etapa do trabalho é o momento de avaliarmos o quanto nosso

empreendimento foi exitoso. Concluo que a opção teórico-metodológica feita pela

Análise do Discurso foi fundamental para que a compreensão do evento literário, assim

como a seleção do discurso a ser analisado foi produtiva, para o propósito.

No que diz respeito à opção teórico-metodológica proposta por

Maingueneau consideramos que ao contemplar o discurso literário em seus estudos,

contribuiu para que a literatura pudesse ser observada em sua complexidade,

contemplando a situação de comunicação como as condições sociais e históricas em que

inscrevem obras e autores no discurso literário, além de contemplar a situação de

enunciação e todos os elementos lingüístico-discursivos que estão envolvidos na

condição discursiva.

No que corresponde ao discurso selecionado para análise, vale ressaltar que

foi uma proposta de trabalho selecionar uma formação discursiva que contemplasse

(minimamente) dois discursos constituintes, o discurso literário e o discurso bíblico, e

em especial o discurso do Antigo Testamento. Foi um desafio, trabalhar com discursos

que ao longo da história, correspondem a tantas e tão distintas interpretações,

reproduções e usos. São discursos que não possuem uma verdade absoluta, mas por

acreditarmos que a polêmica é algo que impulsiona os homens nas ciências e nas artes,

vale o risco.

O mesmo risco que correu Moacyr Scliar, judeu, médico e escritor a

estabelecer um ethos discursivo para enunciar um discurso, que a nosso ver, por meio

de seu posicionamento discursivo subverte a heróica saga contada na Bíblia. Difícil

tarefa é nos desvencilharmos de nossas crenças, e observarmos que o adequado uso

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lingüístico-discursivo recria novas realidades, coerentes com as formações

interdiscursivas.

Foi observando os elementos lingüístico discursivos presentes nas cenas de

enunciação, e a constituição do ethos discursivo de alguns dos personagens deste

discurso, como e ethos do enunciador que ao tornar-se escritor, narra a história. Este

jovem que corresponde a um escritor anônimo, que sem grandes pretensões, e mesmo

diante de uma história, que representa um marco para um povo, não se manifesta, não

vê, não ouve, não sente e não se dá conta desta sua dimensão discursiva.

Assim concluímos que literatura é uma construção discursiva, e sua

inscrição no discurso literário deve considerar os elementos lingüístico-discursivos

como imprescindíveis.

:ossa vida era regulada por um ciclo aparentemente eterno.

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