3
A15 de Julho, em Durban, a candidatura foi finalmente reconhecida por unanimi- dade, vendo Macau o seu Centro Histó- rico classificado como Património Mun- dial, justificado nos seguintes termos: “(...) a mais antiga, completa e rica he- rança europeia que permanece actual- mente intacta no Território Chinês, con- sequência de um fluxo cultural e de as- similação Sino-Occidental num perío- do de cerca de 400 anos(...)”. “(...) Estes monumentos também são tes- temunhas da longa história das missões cristãs no Extremo Oriente e, o mais im- portante, elas são o símbolo da pacífica e harmoniosa coexistência social e do plu- ralismo e diversidade cultural”. A proposta inicial foi elaborada com a pretensão de incluir apenas 12 monu- mentos, de origem Portuguesa e Chine- sa. No entanto, estes monumentos fica- vam órfãos e isolados na malha urbana da cidade, uma vez que a maioria está rodeada por estruturas modernas. Esta “contaminação” de estruturas moder- nas deve-se ao facto de não existirem di- rectrizes ou plano urbano para as zonas históricas. Cada projecto é visto caso a caso, permitindo soluções sui generis (de volumetrias variadas, anacronismo de fachadas, etc.) que rompem a ante- rior harmonia de conjunto. Para resol- ver este dilema, o Instituto cultural criou guidelines particulares. Especia- listas do ICOMOS foram mais longe ao sugerirem a inclusão de um corredor urbano que ligasse os vários monu- mentos propostos na lista anterior e abarcasse largos espaços públicos e ou- tros edifícios Patrimoniais neste “Cor- redor Histórico”. Este corredor está isolado por uma zona de protecção (Buffer Zone) do resto da cidade. As zo- nas de protecção não são áreas neutras, mas de intervenção condicionada des- tinadas a ambientar e introduzir os visi- tantes e residentes na zona do Centro Histórico. É precisamente nestas zonas que residem as maiores dificuldades em evitar a construção de edifícios altos e de estilo que contrastem com ambien- te e escala e linguagem tradicional da arquitectura de Macau, pois, muitas ve- zes, o novo destrói e retira o contexto natural do antigo. Perante a recente ex- plosão da especulação do sector imobi- liário e da febre de construção de casi- nos, muitos manifestaram a preocu- pação que esta febre construtiva com- prometa ou destrua o resto do patrimó- nio da RAEM, sobretudo aquele que não está incluído na lista da UNESCO. Os portugueses fundaram a primeira cidade europeia na China, rodeada por três colinas (Fig. 4) coroadas por forta- lezas. As povoações chinesas foram- -se organizando em redor de templos, criando os Bairros de Amá, Patane e Mong Há, com a evidência histórica e arqueológica apontando para uma épo- ca posterior à chegada e assentamento dos portugueses cerca de 1555. Mas voltemos ao centro histórico de Macau, que corresponde em termos ge- rais ao núcleo da antiga cidade cristã de- signada por “Cidade do Nome de Deus de Macau” 2 , com as suas Igrejas, con- ventos, escolas, pomares, armazéns, contida dentro de muralhas de taipa protegidas pelos canhões das fortifi- cações estrategicamente colocadas nas Pedra & Cal n.º 28 Outubro . Novembro . Dezembro 2005 CASO DE ESTUDO Tema de Capa 17 Na defesa da candidatura de Macau como Património da Huma- nidade, Portugal participou através do IPPAR. Num gesto de coope- ração, o seu Presidente, Arq.º João Rodeia, proporcionou um impor- tante apoio que contribuiu para a aceitação final da proposta 1 submetida pelo Governo da República Popular da China à UNESCO. Centro Histórico de Macau classificado como Património Mundial 1 – O Largo do Senado com o edifício do Senado ao fundo e a Santa Casa da Misericórdia em primeiro plano. As torres de habitação ameaçando invadir o Centro Histórico FRANCISCO VIZEU PINHEIRO

Centro Histórico de Macau classificado como Património Mundial · rico classificado como Património Mun-dial, justificado nos seguintes termos: ... Estes monumentos também são

Embed Size (px)

Citation preview

A15 de Julho, em Durban, a candidaturafoi finalmente reconhecida por unanimi-dade, vendo Macau o seu CentroHistó-rico classificado como Património Mun-dial, justificado nos seguintes termos:“(...) a mais antiga, completa e rica he-rança europeia que permanece actual-mente intacta no Território Chinês, con-sequência de um fluxo cultural e de as-similação Sino-Occidental num perío-do de cerca de 400 anos(...)”.“(...) Estes monumentos também são tes-temunhas da longa história das missõescristãs no Extremo Oriente e, o mais im-portante, elas são o símbolo da pacífica eharmoniosa coexistência social e do plu-ralismo e diversidade cultural”. Aproposta inicial foi elaborada com a

pretensão de incluir apenas 12 monu-mentos, de origem Portuguesa e Chine-sa. No entanto, estes monumentos fica-vam órfãos e isolados na malha urbanada cidade, uma vez que a maioria estárodeada por estruturas modernas. Esta“contaminação” de estruturas moder-nas deve-se ao facto de não existirem di-rectrizes ou plano urbano para as zonashistóricas. Cada projecto é visto caso acaso, permitindo soluções sui generis(de volumetrias variadas, anacronismode fachadas, etc.) que rompem a ante-rior harmonia de conjunto. Para resol-ver este dilema, o Instituto culturalcriou guidelines particulares. Especia-listas do ICOMOS foram mais longe aosugerirem a inclusão de um corredor

urbano que ligasse os vários monu-mentos propostos na lista anterior eabarcasse largos espaços públicos e ou-tros edifícios Patrimoniais neste “Cor-redor Histórico”. Este corredor está isolado por uma zona de protecção (Buffer Zone) do resto da cidade. As zo-nas de protecção não são áreas neutras,mas de intervenção condicionada des-tinadas a ambientar e introduzir os visi-tantes e residentes na zona do CentroHistórico. É precisamente nestas zonasque residem as maiores dificuldadesem evitar a construção de edifícios altosede estilo que contrastem com ambien-te e escala e linguagem tradicional daarquitectura de Macau, pois, muitas ve-zes, o novo destrói e retira o contextonatural do antigo. Perante a recente ex-plosão da especulação do sector imobi-liário e da febre de construção de casi-nos, muitos manifestaram a preocu-pação que esta febre construtiva com-prometa ou destrua o resto do patrimó-nio da RAEM, sobretudo aquele quenão está incluído na lista da UNESCO. Os portugueses fundaram a primeiracidade europeia na China, rodeada portrês colinas (Fig. 4) coroadas por forta-lezas. As povoações chinesas foram--se organizando em redor de templos,criando os Bairros de Amá, Patane eMong Há, com a evidência histórica earqueológica apontando para uma épo-ca posterior à chegada e assentamentodos portugueses cerca de 1555.Mas voltemos ao centro histórico deMacau, que corresponde em termos ge-rais ao núcleo da antiga cidade cristã de-signada por “Cidade do Nome de Deusde Macau”2, com as suas Igrejas, con-ventos, escolas, pomares, armazéns,contida dentro de muralhas de taipaprotegidas pelos canhões das fortifi-cações estrategicamente colocadas nas

Pedra & Cal n.º 28 Outubro . Novembro . Dezembro 2005

CASO DE ESTUDOTema de Capa

17

Na defesa da candidatura de Macau como Património da Huma-

nidade, Portugal participou através do IPPAR. Num gesto de coope-

ração, o seu Presidente, Arq.º João Rodeia, proporcionou um impor-

tante apoio que contribuiu para a aceitação final da proposta1

submetida pelo Governo da República Popular da China à UNESCO.

Centro Histórico de Macau

classificado como

Património Mundial

1 –OLargo do Senado com o edifício do Senado ao fundo e a Santa Casa da Misericórdia em primeiro plano. Astorres de habitação ameaçando invadir o Centro Histórico

FRANCISCOVIZEUPINHEIRO

CASO DE ESTUDO

Pedra & Cal n.º 28 Outubro . Novembro . Dezembro 2005

Tema de Capa

18

cristas das colinas e no sopé das encos-tas à beira rio. Esta cidade com dois por-tos (Fig. 5) é, sem dúvida, uma Porta doOriente para a Europa e do Ocidente pa-ra a China e Japão. Aespinha dorsal da cidade cristã era aantiga Rua Direita (Fig. 3 e 4) que se es-tendia ao longo da estreita península deMacau, percorrendo paralela às duaspraias formadas pela bacia do Porto In-terior e da Praia Grande. Este eixo liga-va a sul o Templo de Amá à beira do Rio

da Pérola, com o centro da cidade cristãlocalizado a norte. No seu percurso, durante as subidas e descidas, à seme-lhança de um caminho de ronda pelascristas das colinas, servia espaços resi-denciais, militares (Quartel dos Mou-ros) e religiosos (a Igreja paroquial deSão Lourenço, o Convento de SantoAgostinho, o Seminário de São José), de-sembocando finalmente no Largo da SéCatedral. Apesar do nome “direita”, asua forma era torcida como uma espi-

nha de peixe, que serpenteava pela si-nuosa topografia do terreno. A cidadecresceu de uma forma orgânica, dentroda tradição medieval portuguesa3.Paralelamente, Manila, fundada pelosespanhóis em 1571, organiza-se na ma-lha regular em tabuleiro de xadrez, comcasas e fortes construídos em adobe,madeira e palha4.Acidade chinesa cres-ceu virada para o Porto Interior e a cida-de ocidental para a Praia Grande. So-mente no século XX, a abertura da Ave-nida Almeida Ribeiro (1910-1922) cor-tou a 90 graus a Rua Direita (Fig. 6) e aantiga malha urbana chinesa5 do PortoInterior (também conhecido por PraiaPequena), para estabelecer comuni-cação directa com a Praia Grande. O no-vo “epicentro” da zona histórica ficouno cruzamento da nova avenida com oLargo do Senado a partir do qual se ace-de às actuais ruínas do Colégio Jesuítade São Paulo (1594-1762), que foi a pri-meira universidade europeia na Ásia6.Os portugueses trouxeram consigo umADN cultural que se manifesta na ar-quitectura, com influências celtas, ro-manas, visigóticas, árabes, moçárabes,renascentistas, barrocas, neoclássicas,do Estado Novo (a Casa Portuguesa deRaul Lino) etc.; que fazem parte do ricobackground cultural e histórico de Por-tugal. É interessante verificar que as

2 – Igreja do antigo Convento de Santo Domingos

3 –A cidade cristã contida ente as três colinas,A) Nossa Senhora do Monte, B) Guia e C) Barra-Penha

4 – Imagem alargada da figura 3 representa o percurso desde o Templode Amá até à Sé Catedral. As vilas Chinesassão: 1) Patane, 2) Amá, 3) Mong Há

FRANCISCOVIZEUPINHEIRO

F.V.P.

Pedra & Cal n.º 28 Outubro . Novembro . Dezembro 2005

CASO DE ESTUDOTema de Capa

práticas urbanas do medievo portu-guês, as leis de fachadas do período ma-nuelino, se reflectem em Macau de ummodo natural, talvez inconsciente, pelaforça da inércia cultural trazida com osportugueses da diáspora. Macau é uminteressante laboratório para historia-dores como para especialistas em teoriade arquitectura. Neste ambiente tãolongínquo sentimo-nos perto de casa, evem-me à memória o poema de Fer-nando Pessoa na sua visão do Mar Por-tuguês...“Ó mar salgado quanto do teu sal são lágrimas de Portugal”... lá-grimas agora de saudade, de orgulho etambém de alegria.

REFERÊNCIAS(1) Publicado no The Historical Monuments of Macau(2001), 6. By the State Administration of CulturalHeritage of the People’s Republic of China. (2) Bocarro, António (1642) – O livro das plantas de to-das as Fortalezas e Povoações do Estado da ÍndiaOriental,Estampa XLVII, Lisboa: Instituto NacionalCasa da Moeda, 1992 (Reimpressão), pp. 260-272.(3) Baracho, Carlos (2001) – Macau Focus Magazine,Vol 1., n.º 3, Macau: Instituto Internacional de Ma-cau, p. 34.(4) Zaragoza, Ramon (1997) – Old Manila, Oxford: Oxford University Press, p. 6.(5) Cody, Jeffrey W (1999) – “Taiwan. Cutting Fabric -San Ma Lo”, in Dialogue Magazine, Salem: Blinds-kills, Inc., p. 53.(6) Amaro, C. Cacao, A. Moreno, C. Pereira, F. Graça,J. Teixeira, M. Silva, B. (1999) – AMuseum in a His-torical Site, p. 115.

19

FRANCISCO VIZEU PINHEIRO,Professor Adjunto do IIUM,Arquitecto do IACM

5–Macau, a cidade dos portos contida intramuros. Reprodução de uma pintura do século XVIII de autor anónimo

6 –Detalhe do corredor do centro histórico de Macau com os monumentos portugueses mais significativos.Note-se a Avenida Almeida Ribeiro, perpendicular ao eixo peninsular percorrido pela Rua Direita

FRANCISCOVIZEUPINHEIRO