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Certas coisas figadais- Millor Fernandes Quando Tongo Tango, interrogado por Jango Lomango sobre a morte de seu pai, respondeu que ele tinha morrido depois de comer patê de foagrá (pasta feita com fígado de ganso), Lomango se espantou: - Como? O fígado estava podre? - Não – explicou Tongo Tango -, estava bom. Mas todos sabem que não se deve comer fígado de ganso, porque é uma coisa terrivelmente tóxica. Mortal. - Que bobagem mais boba! – riu-se Lomango. – Se o fígado de ganso fosse tóxico, os gansos não andariam por aí, lampeiros. Não resistiriam ao próprio fígado. - Resistem – concordou Tongo -, mas resistem pouco. Os gansos vivem 2% do que vive o ser humano exatamente por causa do fígado. Lomango calou-se, abalado. E como ele próprio possuía um ganso, nessa noite, na surdina, pegou um facão, foi ao quintal, abriu o ganso e lhe tirou o fígado. E ao ver que o ganso morria, concluiu sabiamente: - Tongo tem toda razão. Se o fígado fora do ganso lhe faz tanto mal, imagina se permanecesse mais tempo lá dentro. Amor com Amor se Paga Morria o dia e Ismael morria. Sob a colcha de linho, tiritava seu corpo ainda relativamente moço, corpo, aliás, de homem cuja vida não fora das mais operosas. A esposa, a seu lado, ainda moça também, assistia-o em seu transe derradeiro. Ismael morria. E Isaura assistia. E, no pungir da morte, Ismael confessou: - Isaura, meu amor, quero morrer com a consciência límpida. Na hora grave e treda em que parto desse mundo, devo levar a alma leve pra iniciar outra existência sem o peso desta (2). Confesso que errei muito em minha relação com você. Nem sempre fui verdadeiro, nem sempre fui fiel. Mas, para não tirar da minha consciência os dias e as vezes em que pequei ou errei, coloquei um saquinho dentro do armário de roupa, lá em baixo, onde guardo os sapatos velhos. Nesse saquinho você encontrará tantas moedas de mil, mil réis, mil cruzeiros , mil cruzados, mil reais ah, nosso dinheiro muda tanto! quantos foram meus erros e pecados (3). Não abra o saquinho antes da minha morte (4). depois, depois... Dizendo isso, Ismael desmaiou. Desmaiou e reviveu. A morte poupo-o, a vida convidou-o para novas aventuras e ele mudou as moedas de saquinho, e o saquinho de lugar. E o tempo passou (5). E veio então a vez da mulher cair doente, pois aos cônjuges o destino reserva sempre alternação nas moléstias, para que possam repartir, e ocasionalmente, como interessa à nossa fábula, lealdades e sacrifícios. Os médicos examinaram cuidadosamente Isaura e concluíram que não era nada grave. Consequentemente (ah, os esculápios!) ela começou a dar sinais de que não ia durar muito. Sentindo a morte, chamou Ismael, o marido, e disse: -Ismael, naquele dia, gravemente enfermo, você teve a coragem de me confessar que tinha errado. Chorei. Mas, quando você pensava que eu chorava ferida por seus erros, na verdade eu chorava ferida pelos meus. De remorso por não poder também contar meus pecados, na hora em que você partia para sempre (6). Se você não podia levar para outro

Certas Coisas Figadais

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Certas coisas figadais- Millor FernandesQuando Tongo Tango, interrogado por Jango Lomango sobre a morte de seu pai, respondeu que ele tinha morrido depois de comer pat de foagr (pasta feita com fgado de ganso), Lomango se espantou:- Como? O fgado estava podre?- No explicou Tongo Tango -, estava bom. Mas todos sabem que no se deve comer fgado de ganso, porque uma coisa terrivelmente txica. Mortal.- Que bobagem mais boba! riu-se Lomango. Se o fgado de ganso fosse txico, os gansos no andariam por a, lampeiros. No resistiriam ao prprio fgado.- Resistem concordou Tongo -, mas resistem pouco. Os gansos vivem 2% do que vive o ser humano exatamente por causa do fgado.Lomango calou-se, abalado. E como ele prprio possua um ganso, nessa noite, na surdina, pegou um faco, foi ao quintal, abriu o ganso e lhe tirou o fgado. E ao ver que o ganso morria, concluiu sabiamente:- Tongo tem toda razo. Se o fgado fora do ganso lhe faz tanto mal, imagina se permanecesse mais tempo l dentro.

Amor com Amor se PagaMorria o dia e Ismael morria. Sob acolchade linho, tiritava seu corpo ainda relativamente moo, corpo, alis, de homem cuja vida no fora das mais operosas. A esposa, a seu lado, ainda moa tambm, assistia-o em seu transe derradeiro. Ismael morria. E Isaura assistia. E, no pungir da morte, Ismael confessou:

- Isaura, meu amor, quero morrer com a conscincia lmpida. Na hora grave e treda em que parto desse mundo, devo levar a alma leve pra iniciar outra existncia sem o peso desta (2). Confesso que errei muito em minha relao com voc. Nem sempre fui verdadeiro, nem sempre fui fiel. Mas, para no tirar da minha conscincia os dias e as vezes em que pequei ou errei, coloquei um saquinho dentro do armrio de roupa, l em baixo, onde guardo ossapatosvelhos. Nesse saquinho voc encontrar tantas moedas de mil, mil ris, milcruzeiros, mil cruzados, mil reais ah, nossodinheiromuda tanto! quantos foram meus erros e pecados (3). No abra o saquinho antes da minha morte (4). S depois, s depois...

Dizendo isso, Ismael desmaiou. Desmaiou e reviveu. A morte poupo-o, a vida convidou-o para novas aventuras e ele mudou as moedas de saquinho, e o saquinho de lugar. E o tempo passou (5). E veio ento a vez da mulher cair doente, pois aos cnjuges o destino reserva sempre alternaonasmolstias, para que possam repartir, e ocasionalmente, como interessa nossa fbula, lealdades e sacrifcios. Os mdicos examinaram cuidadosamente Isaura e concluram que no era nada grave. Consequentemente (ah, os esculpios!) ela comeou a dar sinais de que no ia durar muito. Sentindo a morte, chamou Ismael, o marido, e disse:

-Ismael, naquele dia, gravemente enfermo, voc teve a coragem de me confessar que tinha errado. Chorei. Mas, quando voc pensava que eu chorava ferida por seus erros, na verdade eu chorava ferida pelos meus. De remorso por no poder tambm contar meus pecados, na hora em que voc partia para sempre (6). Se voc no podia levar para outro mundo a manchas de suas faltas, como dizer-lhe naquele momento que mais pecadora era eu, amargurando o corao moribundo que se mostrava to nobre?(7) Agora, porm, quando meu fim que se aproxima, eu lhe digo:

-Se eu morrer, como quase certo, voc vai naquele lato na cozinha, onde est escrita a palavra Milho. Nessa lata eu pus um gro de feijo por cada erro que cometi em relao a voc. Mas s abra depois que se instalar em mim uma absoluta rigidez cadavrica. Dizendo isso, Isaura deu incio a seu the end. Fechou os olhos e principiou a falecer. Antes porm teve um lampejo, uma lembrana. Abriu os olhos e disse: -Ah, Ismael, ia me esquecendo; na lata h alguns feijes de menos porque, no outro dia, no teu aniversrio (8), a empregada tirou quatro xcaras para fazer a feijoada. E morreu.