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Este trabalho, apresentado para obtenção do título de especialista em Gestão Estratégica em IES, tem o objetivo de apresentar concepções sobre as possibilidades de uma outra organização acadêmico-administrativa na instituição universidade, com base na reconfiguração dos saberes inscritos na tradição disciplinar. A partir de um cenário em que a educação superior se põe em crise em função de objetos de análise quantitativos, cuja preocupação é chegar aos padrões de resposta esperados pelas instâncias reguladoras do sistema, propõe-se a reavaliação dos pressupostos que sustentam os processos de gestão acadêmica. Para a reconfiguração de saberes julga-se necessário repensar a formação no ambiente educacional em função das trajetórias acadêmicas, seus campos de saber e áreas de conhecimento, alinhadas com itinerários ocupacionais, seus campos de atuação e áreas de formação.
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UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA
LUCIANO GONÇALVES BITENCOURT
CERTIFICAÇÃO PROCESSUAL EM COMUNICAÇÃO:
CONCEPÇÕES PARA A RECONFIGURAÇÃO DE SABERES E A
REORGANIZAÇÃO ACADÊMICO-ADMINISTRATIVA NA UNIVERSIDADE
Tubarão
2008
LUCIANO GONÇALVES BITENCOURT
CERTIFICAÇÃO PROCESSUAL EM COMUNICAÇÃO:
CONCEPÇÕES PARA A RECONFIGURAÇÃO DE SABERES E A
REORGANIZAÇÃO ACADÊMICO-ADMINISTRATIVA NA UNIVERSIDADE
Monografia apresentada ao Curso de Especialização em Gestão Estratégica em Instituições de Ensino Superior da Universidade do Sul de Santa Catarina, como requisito parcial à obtenção do título de Especialista em Gestão Estratégica em Instituições de Ensino Superior.
Orientador: Prof. Dr. Fernando Serra.
Tubarão
2008
LUCIANO GONÇALVES BITENCOURT
CERTIFICAÇÃO PROCESSUAL EM COMUNICAÇÃO:
CONCEPÇÕES PARA A RECONFIGURAÇÃO DE SABERES E A
REORGANIZAÇÃO ACADÊMICO-ADMINISTRATIVA NA UNIVERSIDADE
Esta monografia foi julgada adequada à obtenção do título de Especialista em Gestão Estratégica em Instituições de Ensino Superior e aprovada em sua forma final pelo Curso de Especialização em Gestão Estratégica em Instituições de Ensino Superior da Universidade do Sul de Santa Catarina.
Tubarão, (dia) de (mês) de (ano da aprovação).
______________________________________________________ Professor e orientador Nome do Professor, Título.
Universidade do Sul de Santa Catarina
______________________________________________________ Prof. Nome do Professor, Título.
Universidade do Sul de Santa Catarina
______________________________________________________ Prof. Nome do Professor, Título.
Universidade do Sul de Santa Catarina
A quem sempre apostou na minha capacidade
de refletir e incentivou proposições inovadoras
de sentido: ao amor, Mona.
AGRADECIMENTOS
Este trabalho não seria possível sem a participação sincera e compromissada com
a instituição universidade de professores e alunos com os quais convivi no período de
elaboração da proposta, período este em que ocupo a coordenação do Curso de Comunicação
Social da Unisul, no campus da Grande Florianópolis. À congregação do curso, meu
muitíssimo obrigado.
Mas arrisco-me aqui a nominar algumas pessoas especiais neste processo, mesmo
que, por lapso ou esquecimento, não relacione alguém. Tânia Cruz, Daniela Germann e
Nelson Baibich foram os principais parceiros. Tânia pelos ensinamentos e pela insistência em
abrir espaços no ambiente pedagógico para o debate das questões levantadas neste trabalho.
Daniela e Baibich por estarem sempre dividindo as angústias e as tarefas na condução do
curso. Tarefas que seriam muito mais difíceis de conciliar não fosse a eficiência de Gracieleni
Barros.
Alessandra Brandão, Ramayana Lira, Rosane Porto, Roberto Forlin, Tony Elíbio,
Jaci Rocha, Valmir Passos, Helena Iracy, Karla Grillo e Rogério Pohl, nas rodas formais e
informais, contribuíram com um riquíssimo debate a respeito do cenário e das proposições
aqui defendidas.
Maurício Lima e Mauri Heerdt foram parceiros intelectuais quanto às concepções
acadêmico-administrativas, sobretudo as que dizem respeito à instituição em que estamos.
Solange Gallo e Daniel Izidoro propiciaram, além do debate, a materialização de muitas das
concepções aqui referenciadas.
Por fim, o muito obrigado à alta gestão da universidade, representados aqui pelo
Reitor, Gerson Joner da Silveira, e pelo Diretor do Campus da Grande Florianópolis, Ailton
Nazareno Soares, por investirem na formação de seus gestores e permitirem o espaço de
reflexão que resultou neste trabalho.
“O verdadeiro mercado para o saber universitário reside sempre no futuro”
(Boaventura de Souza Santos).
“Sempre que estão em crise e bem antes que a natureza da crise seja medida e
compreendida, as instituições tendem a recorrer instintivamente ao seu repertório de respostas
já tentadas e assim costumeiras” (Zygmunt Bauman).
“Na coexistência dos lugares e não lugares, o obstáculo será sempre político”
(Marc Augé).
RESUMO
Este trabalho tem o objetivo de apresentar concepções sobre as possibilidades de uma outra
organização acadêmico-administrativa na instituição universidade, com base na
reconfiguração dos saberes inscritos na tradição disciplinar. A partir de um cenário em que a
educação superior se põe em crise em função de objetos de análise quantitativos, cuja
preocupação é chegar aos padrões de resposta esperados pelas instâncias reguladoras do
sistema, propõe-se a reavaliação dos pressupostos que sustentam os processos de gestão
acadêmica. Para a reconfiguração de saberes julga-se necessário repensar a formação no
ambiente educacional em função das trajetórias acadêmicas, seus campos de saber e áreas de
conhecimento, alinhadas com itinerários ocupacionais, seus campos de atuação e áreas de
formação. Neste contexto, estrutura-se uma proposta em que os projetos decorrentes levem
em conta a dinâmica das relações inscritas nessas dimensões. Descreve-se, por fim, uma
perspectiva de arquitetura curricular para a Comunicação, enquanto área de conhecimento e
campo de atuação, num contexto em que ensino, pesquisa e extensão sejam entendidas como
atividades características da instituição universidade e não metas ou objetivos a serem
alcançados.
Palavras-chave: Educação Superior. Certificação. Comunicação.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Quadro 1 - Organização Administrativa das Instituições de Ensino Superior no Brasil. ....... 30
LISTA DE GRÁFICOS
Gráfico 1 - Evolução de matrículas nas IES públicas e privadas no Brasil. ........................... 18
Gráfico 2 - Década de explosão: Ensino Superior e concluintes do Ensino Médio no Brasil. 19
Gráfico 3 - Demanda latente por ensino superior no Brasil. ................................................... 20
Gráfico 4 - Demanda latente por ensino superior em Santa Catarina. .................................... 23
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 - Percentual de ociosidade no ingresso em IES no Brasil. ....................................... 21
Tabela 2 - Percentual de ociosidade no ingresso em IES em Santa Catarina. ........................ 23
SUMÁRIO
1 PARA UMA INTRODUÇÃO: QUE LUGAR É ESTE, A UNIVERSIDADE? .......... 11
2 UMA VISÃO SOBRE A CRISE DO ENSINO SUPERIOR NO BRASIL ................. 16
2.1 ITINERÁRIOS EM DIAGONAL ................................................................................... 23
2.2 BEM PÚBLICO COMO NOVA ÁREA DE NEGÓCIOS ............................................. 25
2.3 SUTIS DIFERENÇAS INSTITUCIONAIS .................................................................... 28
2.4 CENÁRIO EM BUSCA DE QUALIFICAÇÃO ............................................................. 33
2.5 HOMOGEINIZAÇÃO DA FLEXIBILIDADE .............................................................. 38
2.6 ENTRE A PERFORMANCE E O COMPROMISSO .................................................... 41
3 CERTIFICAÇÕES, FORMAÇÃO E EDUCAÇÃO ..................................................... 44
3.1 POR ESPAÇOS DE AFETIVIDADE E AUTONOMIA ................................................ 46
3.2 EDUCAÇÃO PERMANENTE ....................................................................................... 51
3.3 ÁREAS DE CONHECIMENTO, CAMPOS DE SABER E TRAJETÓRIAS
ACADÊMICAS ........................................................................................................................ 59
3.4 ÁREAS DE FORMAÇÃO, CAMPOS DE ATUAÇÃO E ITINERÁRIOS
OCUPACIONAIS .................................................................................................................... 63
4 COMPONENTES CURRICULARES EM COMUNICAÇÃO ................................... 67
4.1 ESPAÇO SOCIAL DE APRENDIZAGEM .................................................................... 69
4.2 LUGARES DE OCUPAÇÃO, COMPETÊNCIAS E HABILIDADES ......................... 71
4.3 ARQUITETURA CURRICULAR .................................................................................. 75
4.3.1 Comunicação como área de conhecimento e de formação ...................................... 76
4.3.2 Comunicação como campo de atuação ...................................................................... 77
4.3.3 Comunicação como campos de saber ........................................................................ 78
4.4 DIRETRIZES ABERTAS ............................................................................................... 79
4.5 TIPOLOGIA DE CERTIFICAÇÕES .............................................................................. 82
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................... 87
REFERÊNCIAS ...................................................................................................................... 89
11
1 PARA UMA INTRODUÇÃO: QUE LUGAR É ESTE, A UNIVERSIDADE?
Referências conceituais, muitas vezes, são relegadas em detrimento da
objetividade. Não obstante, a própria concepção de objetividade merece releituras sobre as
referências conceituais que a produzem. Nosso cotidiano está preenchido de “objetos”
desconectados, percebidos dentro dos próprios limites, circunstancialmente utilizados e
“descartados” sempre quando sua força instrumental se esvai. Tudo em função do movimento
no rumo de metas antecipadamente traçadas.
O modelo de sociedade em que vivemos cerceia espaço para referências
conceituais que não se proponham obsoletas, não se insiram no ritmo dos deslocamentos
permanentes e individualizados. As interconexões, as interfaces, os entremeios, ou tudo o que
dá sentido aos “objetos” do cotidiano, as intersubjetividades que nos dão um lugar de
ocupação sempre instável nesse processo forçosamente jogam contra a supressão do tempo
vista como necessária para a configuração dos espaços em que transitamos. Esse alerta é
necessário: os conceitos não estão adiante; antecedem o movimento.
Tentaremos, neste preâmbulo, esboçar algumas referências importantes para abrir
o espectro de visão a respeito do campo educacional. O intuito, evidente, é o de evitar
reduções de interpretação quanto ao contexto em que as ações decorrentes da proposta de
Certificação Processual em Comunicação se fundamentam. Sem a ilusão de superar o
necessário debate sobre a proposição, enquanto esboço, o uso das referências conceituais
neste argumento sustenta-se mais pela necessidade de evidenciar a complexidade de uma
proposta que não se configura meramente num projeto. Associar reconfiguração de saberes e
educação permanente, pressupostos deste trabalho, implica novas paisagens, cenários
complexos e dinâmicos cuja cartografia é constituída por dimensões diversas, variáveis
imprevisíveis e personagens múltiplas, todas inscritas no fenômeno chamado educação. Mais
que apostar na diversidade, está na aproximação das diferenças o maior desafio.
Aproximar diferenças exige alteridade. Lévi-Strauss (1981 apud BAUMAN,
2001) sugere como estratégias humanas duas formas de relação quanto ao reconhecimento da
alteridade dos outros. Uma antropoêmica, outra antropofágica. A primeira sustenta a
necessidade de manter afastados os tidos como estranhos, “vomitá-los” dos lugares de
convivência, negligenciá-los de qualquer contato que configure uma interação social. Bauman
(2001, p.118) descreve como “refinamento” dessa estratégia “o acesso seletivo a espaços e o
impedimento seletivo a seu uso”. O conceito se aplica muito bem aos sistemas de acesso ao
12
ensino de nível superior sustentados pela lógica tecnocrática de exigência de requisitos
prévios e de certificações desconexas, usadas para delimitar o grau de legitimidade dos níveis
de conhecimento supostamente necessários.
A segunda estratégia sugerida por Lévi-Strauss, a antropofágica, sustenta-se na
ideia de “aniquilação” ou “suspensão” da alteridade dos outros. Consiste em “devorar” os
estranhos no sentido de possibilitar minimamente a convivência com eles. Uma alusão
possível e também refinada dessa estratégia é o espaço da aula. Diante da “sacralização”, da
“canonização” do conhecimento disciplinar, percebe-se uma dose - às vezes menos
embriagante, diga-se de passagem - de antropofagia intelectual, em que os “aprendizes” são
submetidos a uma certa violência simbólica sustentada na autoridade de “quem sabe” e
fundamentada na própria estrutura acadêmica, que teima em “regurgitar” os não adeptos.
Nesse sentido, as estratégias fágica e êmica se complementam e se consolidam no discurso
sobre o rigor tido como necessário para o que academicamente chamamos de construção do
conhecimento. Rigor, via de regra, sustentado pela autoridade docente, não no diálogo com os
saberes.
Seleção antropoêmica e antropofagia intelectual configuram-se em ambientes
desprovidos de integração; no caso do ensino superior, de vida acadêmica. Os nichos e guetos,
característicos das relações êmicas, são perceptíveis nas estruturas cindidas e fragmentadas
das Instituições de Ensino Superior. Por outro lado, como objetos de desejo, os “produtos e
serviços” acadêmicos servem-se de expedientes culturais para engendrar um sentido de
“comunidade”, em que o princípio de unidade se dá “tanto pelos valores que estimam quanto
pela lógica de conduta que seguem” (BAUMAN, 2001, p. 117). Dito de outro modo, primeiro
expurgam-se os desprovidos de condição intelectual ou econômica, incapazes de ocupar o
nobre espaço de construção de conhecimento, reconhecidos como “estranhos”. Depois, o
ambiente ocupa-se de moldar os adeptos à lógica do espaço em questão.
Na concepção de Bauman (2001), espaços assim seriam reconhecidos como
“públicos-mas-não-civis”. Lugares cuja imponência se dá pela imagem de inacessibilidade
para “os de fora” e cujo sentido de unidade conforta os “de dentro”. Augé (1994) acrescenta
um terceiro olhar sobre esses ambientes: os não lugares. Neles não se pode “ler” a identidade
dos que o ocupa, suas relações e a história que compartilham. São lugares que “não integram
nada, só autorizam, no tempo de um percurso, a coexistência de individualidades distintas,
semelhantes e indiferentes umas às outras” (AUGÉ, 1994, p. 101). Mesmo junto com os
outros, mas sempre sós, os “passantes” estabelecem uma relação de unidade sempre
contratual, cujos símbolos identificam e autorizam circunstancialmente os deslocamentos.
13
Os símbolos acadêmicos, aqui representados por diplomas e titulações, pode-se
dizer, já não sustentam um ambiente constituído pelos deslocamentos no percurso de uma
construção coletiva, de vínculos afetivos e regras de convivência decorrentes dessa relação.
Diplomas e titulações parecem muito mais simbolizar, para usar uma expressão de Augé
(1994), as “tensões solitárias” dos lugares de ocupação compromissados com a trajetória na
busca por objetos de desejo para consumo próprio; sempre por um momento. Diríamos que é
para os símbolos que o percurso acadêmico está organizado; não para a consolidação do
espaço. Explicitando melhor: o percurso está para diplomas e títulos, não para o processo de
configuração permanente de saberes na construção de conhecimento. O antropólogo francês
ressalta, entretanto, que os não lugares são caracterizados assim por quem os ocupa; eles não
se caracterizam a si mesmos.
Um quarto olhar pode, ainda, ser acrescentado: o dos espaços vazios.
Sucintamente, poderíamos descrevê-los, a partir de Bauman (2001), como alijados de nossos
mapas mentais. Seriam como lugares potencialmente vivos, mas não vistos. Estão fora de
nossas listas de possibilidade justamente porque dependem de outras estruturações
conceptuais para materializarem-se. Estruturações que nos levariam, obrigatoriamente, ao
desconforto de mudar de lugar, deixar os espaços reconhecidamente preenchidos. Ao
remetermos o conceito para o campo da educação, poderíamos fazer alusão às condições de
possibilidade novas, pensadas, eventualmente propostas mas descartadas pela falta de
“consenso” sobre sua “eficácia” ou falta de clareza sobre as bases nas quais se estruturam
enquanto possibilidade.
Num certo sentido, não vemos os espaços vazios pelo próprio lugar de observação
que ocupamos. Quanto mais preocupados com o lugar de ocupação mais distantes dos novos
mapas mentais que nos permitiriam percebê-los. Entre os lugares êmicos, fágicos, os não
lugares e os espaços vazios, há um sentido político que só pode ser engendrado sob novas
concepções de alteridade, novas concepções de valor e novas regras de ocupação, voltadas
para as relações em sociedade e não para o compromisso com metas e objetivos
(institucionais ou individuais).
Em educação, os projetos dependem das respostas aos sistemas de avaliação que
mensuram seu grau de validade. A priori, as propostas acadêmicas precisam prever, com certo
grau de precisão, aonde pretendem chegar. Há uma taxonomia a serviço dessa projeção que
nos ajuda a localizar em que estágio estamos; o que falta e o que sobra em termos de estrutura
para a viabilizar a projeção. Essa taxonomia diz respeito a tudo que já está definido no
contexto educacional e é de extrema importância para a construção de mapas de referência.
14
Quando ela está a serviço dos símbolos que legitimam o conhecimento, titulações
e certificações por exemplo, toda e qualquer alteração de rota rumo aos espaços vazios é vista
como decorrente de um corpo estranho que precisa ser “regurgitado” ou “devorado”,
dependendo dos riscos calculados na relação. Se a estranheza for demais, melhor o exílio; se
for passível de cooptação, melhor digerí-la, mesmo que quando “do lado de dentro” ela
provoque pequenas alterações de metabolismo. E assim vão-se instituindo os lugares de
ocupação sempre passageiros, destituídos de pertencimento e compromisso com o ambiente e
suas normas de convivência entre “os de dentro” e “os de fora”.
Vida acadêmica é antes de tudo vida. Se quer dizer com isso que não se pode
propô-la sem que haja um ambiente arejado, sem que seus “lugares epistemológicos”1 se
abram para percepções novas, para formas de expressão diversificadas, para além dos
catálogos, das coleções, dos cânones. No contexto de uma educação que se proponha
permanente, é preciso constituir espaços sociais de aprendizagem capazes de fazer circular
por eles saberes diferentes, intenções diversificadas, interesses distintos, mas comprometidos
com uma construção coletiva de oportunidades, de perspectivas e de conhecimentos.
“Preparar-se para a vida” - aquela tarefa perene e invariável de toda educação - deve significar, primeiro e sobretudo, cultivar a capacidade de conviver em paz com a incerteza e a ambivalência, com a variedade de pontos de vista e com a ausência de autoridades confiáveis e infalíveis; deve significar tolerância em relação à diferença e vontade de respeitar o direito de ser diferente; deve significar fortalecer as faculdades críticas e autocríticas e a coragem necessária para assumir a responsabilidade pelas escolhas de cada um e suas consequências; deve significar treinar a capacidade de “mudar os marcos” e de resistir à tentação de fugir da liberdade, pois com a ansiedade da indecisão ela traz também as alegrias do novo e do inexplorado (BAUMAN, 2008, P. 177).
É nesse contexto que a proposta de Certificação Processual em Comunicação
se apresenta. Ao compreender que a “democratização da universidade mede-se pelo respeito
do princípio da equivalência dos saberes e pelo âmbito das práticas que convoca em
configurações inovadoras de sentido” (SOUZA SANTOS, 2003, p. 228), o espaço social de
aprendizagem decorrente dessa reconfiguração fundamenta-se pela possibilidade de
movimento constante em busca de conhecimento, independente de níveis, graus e requisitos
1 Por lugar epistemológico poderíamos assumir, como propõe Paulo Freire (1986), um ambiente em que as
reflexões acerca de suas trajetórias cognitivas sejam fundamentadas pela curiosidade de saber justamente por se estar neste lugar. As relações com o ambiente e com o "outro", nesse contexto, fazem parte do processo de aprendizagem e de construção do conhecimento não como forma de superá-los pela competitividade, mas de compartilhar os itinerários.
15
prévios2, certificações e titulações legitimadas; contudo, a possibilidade de movimento
sustenta-se pela necessidade de se estar permanentemente no espaço em configuração. Para
propor novas paisagens, sugere-se uma revisão do cenário, uma recomposição institucional a
partir do cenário descrito, e a abertura de espaço para interpretações novas sobre as dimensões
que a constituem. Como estratégia argumentativa, abordaremos aqui questões que
fundamentam uma leitura da crise no ensino superior brasileiro para, em seguida, trabalhar os
conceitos de certificação, formação e educação à luz de uma nova proposta. Por fim,
trataremos das especificidades relativas à área de comunicação e suas potencialidades.
2 Essa independência, obviamente, não se contrapõe aos ditames legais vigentes e que fundamentam as diretrizes
para o ensino superior. Mas, evidentemente, posiciona-se entre o que a lei determina e o que as normatizações sugerem como interpretação dada.
16
2 UMA VISÃO SOBRE A CRISE DO ENSINO SUPERIOR NO BRASIL
Tem preocupado setores que lidam com estratégias nas Instituições de Ensino
Superior no Brasil a ociosidade de vagas. O caráter excessivamente seletivo do sistema
educacional brasileiro pode ser percebido pelo afunilamento de matrículas à medida que se
avança nos níveis de aprendizagem. O Censo Escolar de 2004, divulgado pelo Instituto
Nacional de Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira, o INEP, indicava que o sistema tinha 55
milhões de estudantes matriculados naquele ano. Destes, 34 milhões estavam no ensino
fundamental; 9,2 milhões, no ensino médio regular; e apenas 3,9 milhões, na graduação. As
escolas públicas concentravam 88% dos alunos no ensino fundamental, mas 41% não
terminaram o ciclo e a grande maioria dos que chegaram ao final do processo levaram mais
tempo do que os 8 anos necessários (MORAES, 2006). Com idade superior à adequada para o
nível de aprendizagem no ensino fundamental em 2004 eram 39%. No ensino médio, 53%.
São números expressivos e que ajudam a explicar porque tem sido difícil amenizar a crise por
que passa o ensino superior. De lá para cá não houve mudança na curva de afunilamento e, ao
contrário dos níveis anteriores, cresceram as matrículas no ensino superior privado.
Percebe-se, a partir da análise dos dados do Censo do Ensino Superior3, que a
crise evidenciada no setor deu-se em função da explosão no número de vagas ofertadas ao
longo das duas últimas décadas. A expansão iniciada nos anos 70 do Século XX, ganhou força
a partir de 1995 (Gráfico 1) e chegou a 74,57% dos 4.880.381 matriculados no sistema em
2007; também em 2007, 89,1% das 2.281 IES reconhecidas pelo censo são do setor privado.
Levando-se em consideração que 47,5% das vagas ofertadas para ingresso no sistema naquele
ano (1.341.987) não foram preenchidas, há aspectos relevantes a serem discutidos e que
transcendem a polarização público/privado. Não por acaso, apenas 10% da população
brasileira entre 25 e 34 anos têm curso superior completo, segundo os dados da Organização
3 Os dados estão disponíveis no endereço http://www.inep.gov.br/superior/censosuperior/default.asp. O Censo do
Ensino Superior reúne todas as informações relativas ao acesso, à infra-estrutura e aos índices de desempenho do sistema brasileiro. São dados meramente quantitativos, mas ricos em possibilidades de análise. Contudo, pelas dimensões da coleta e tabulação dos dados, os números oficiais são sempre divulgados com pelo menos um ano de atraso. Para efeito deste trabalho, fazemos a análise das informações oficiais de 2001 para cá. As informações anteriores foram colhidas de outras referências, principalmente de trabalhos de pesquisa sobre o setor da educação. Mas todos os dados podem ser confrontados com tabelas e gráficos disponibilizados no endereço do INEP na internet. Para efeito deste trabalho, utilizamos os dados oficiais até 2007. Vale ressaltar também que a unificação das provas de vestibular e do Enem e as novas regras de acesso às universidades públicas federais em todo o país devem modificar novamente os processos de coleta e divulgação de informações por parte do Ministério da Eduação. Isso porque, a partir do novo processo, será mais fácil identificar o número de candidatos por inscrição e não por instituição de ensino.
17
para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico - OCDE4. Some-se a Taxa de Titulação
Média no Brasil5, de 47,8% segundo o censo em 2006.
Gráfico 1 - Evolução de matrículas nas IES públicas e privadas no Brasil. Fonte: MEC/INEP.
A estagnação do número de concluintes no ensino médio em nível nacional é
entendida como fator preocupante nesse processo. Em 2005 a taxa de crescimento em relação
a 2000 foi de apenas 1,21%, segundo o censo. Analisando os dados oferecidos pelo Ministério
da Educação, pode-se perceber que, no período em que o ensino superior brasileiro cresceu
mais, o número de vagas ofertadas é que teve curva mais acentuada (Gráfico 2). No entanto, a
diferença entre o número de candidatos e o de alunos efetivamente matriculados também
continuou crescendo. Se está no setor privado o grande salto no índice de oferta, não há como
contestar a opção pela massificação do processo expansionista do sistema.
Comparadas proporcionalmente, oferta de vagas e número de ingressantes tiveram
crescimento bem similar. A questão é que, historicamente, sempre houve sobra de vagas no
4 Pesquisa foi divulgada no relatório Education at a Glace 2009, em 8 de setembro. O Brasil é o país com o
menor índice de adultos com diploma universitário. 5 A Taxa de Titulação representa o número de concluintes em relação aos matriculados quatro anos antes, tempo
médio considerado ideal para a conclusão da graduação.
18
sistema. Na década de explosão, portanto, as diferenças se acentuaram. Indo mais além: ao
mesmo tempo que não promove a democratização no acesso, o sistema não sustenta boa parte
dos ingressantes que conseguiram superar a seletividade das instituições tanto públicas (por
“capacidade”) quanto privadas (econômica)6. Os interessados em ingressar no sistema de
ensino superior brasileiro ficam expostos na superfície de um problema corriqueiramente
debatido a partir da dicotomia entre o direito à educação e o financiamento do processo
educativo. Público e privado ganham, assim, lugares extremos numa escala de valores que
desconsidera as oportunidades oriundas no próprio sistema.
Gráfico 2 - Década de explosão: Ensino Superior e concluintes do Ensino Médio no Brasil. Fonte: MEC/INEP.
6 O índice de evasão permaneceu na casa dos 20% ao ano, segundo o Censo do Ensino Superior, entre 2001 e
2006.
19
Os especialistas já não falam em demanda reprimida, mas em demanda latente. O
índice de candidatos/vaga caiu de 4,3 em 1995 para 2,1 em 2005 no Brasil. Nos mesmos 10
anos, houve crescimento na oferta de vagas e no número de ingressantes. Contudo, as
diferenças se acentuaram na medida em que o índice ingressantes/vaga caiu de 0,76 para 0,69.
A massificação pela expansão do setor privado do ensino superior brasileiro contrasta com o
padrão de vida e os processos de seleção do setor público, com o nível de aprendizagem de
grande parte da população brasileira7. Resultado: entre 2001 e 2007 o número de vagas não
preenchidas cresceu em mais de quatro vezes (Gráfico 3). Os patamares de candidatos a
ingresso no sistema têm se mantido estáveis desde 2002, o que indica uma demanda latente
igualmente estável (Tabela 1). Os índices de significativa mudança estão no interior da
demanda latente, com a diminuição dos não classificados ano a ano e o aumento de não
ingressantes.
Gráfico 3 - Demanda latente por ensino superior no Brasil. Fonte: MEC/INEP.
7 Estudos promovidos pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO)
apontam que apenas 53,8% dos alunos brasileiros conseguiram completar o ensino fundamental em 2005. Os números colocam o Brasil num patamar intermediário em relação às metas estabelecidas pela Unesco para o movimento Educação para Todos. Uma das principais causas apontadas, aliada à baixa qualidade do ensino no país, é o alto índice de repetência nas séries iniciais. Segundo os dados, também em 2005, 27,3% das crianças matriculadas na 1ª série foram reprovadas. Esses índices também influenciam no contexto da educação de nível superior, visto que os percentuais quanto ao acesso vêm caindo. Em 1999, 61,1% dos alunos brasileiros matriculados no ensino fundamental haviam completado o ciclo.
20
Tabela 1 - Percentual de ociosidade no ingresso em IES no Brasil.
Fonte: MEC/INEP.
Os dados do Censo do Ensino Superior não levam em consideração quem se
inscreve em mais de um processo seletivo8, em diferentes instituições. Menos ainda o fato de
que mesmo as instituições que não cobram mensalidade têm feito muitas chamadas
posteriores à primeira matrícula para ingresso, numa clara alusão de que há também
dificuldades no processo seletivo. Trazendo a análise para Santa Catarina, 30.780 vagas
(35,5%) não foram preenchidas em 2007. No setor público, 4.278. Essa característica é
importante, na medida em que o Estado concentra boa parte de suas vagas em Instituições de
Ensino Superior classificadas como públicas municipais e que cobram mensalidade. Tais IES
aparecem no Censo do Ensino Superior junto com instituições públicas e “gratuitas”, mas
estão mais próximas do perfil de gestão das comunitárias, consideradas privadas9.
A consolidação da Região Sul enquanto mercado na educação é apontada por
especialistas como sacramentada. É a região com menos perspectiva de crescimento
quantitativo de IES e, por conseguinte, de matrículas. Para se ter uma ideia, entre 1997 e
2006, o número de IES cresceu em 222,5%10 e há uma estabilidade prevista para os próximos
8 As Hopper Educacional, CM Consultoria e Ideal Invest apontam que, no Brasil, cada candidato se inscreve, em
média, em 2,8 instituições diferentes quando enfrenta o processo seletivo para ingresso no ensino superior; o que sustenta a inexistência de uma demanda reprimida, sobretudo no setor privado.
9 Até a divulgação do Censo do Ensino Superior de 2007, a Universidade do Sul de Santa Catarina aparecia como instituição pública municipal no sistema de classificação do Ministério da Educação. Hoje, a UNISUL é classificada como privada. Para efeito de interpretação dos dados aqui analisados, portanto, vale a ressalva de que a UNISUL contribuía para verificação das vagas não preenchidas em instituições municipais. As demais instituições consideradas públicas e classificadas assim para efeito do Censo do Ensino Superior em Santa Catarina são Universidade Regional de Blumenau (FURB) e a Universidade do Extremo Sul de Santa Catarina (UNESC).
10 Revista Ensino Superior, disponível em <http://revistaensinosuperior.uol.com.br/textos.asp?codigo=12126>. Acesso em: 26 jun. 2008.
21
anos por conta de uma demanda considerada atendida11. Portanto, para os especialistas, a
questão agora é o investimento em padrões de qualidade, que representariam um diferencial
importante entre as instituições existentes. Por isso mesmo as análises do setor devem levar
em consideração as características de cada IES e o contexto catarinense. Os dados do censo
confirmam essa tendência. Ao contrário do que ocorre no Brasil, em Santa Catarina todos os
índices estão em queda: seja o de ingressantes, não ingressantes ou não classificados. A
demanda latente tem reduzido as perspectivas das IES no que diz respeito à ocupação das
salas de aula.
A grande questão, nos parece, é que o nível de competitividade pela demanda
latente no Estado chega a um patamar em que não são mais suficientes os discursos sobre
infra-estrutura, docentes e projetos pedagógicos melhores. Há uma evidente necessidade de as
IES se pautarem por outros referenciais e outras formas de se mostrar à sociedade. Os
investimentos em marketing têm agora, apontam os estudiosos, como principal fator o
relacionamento com as pessoas. Não apenas para captar recursos, no caso das instituições que
dependem de mensalidade, mas principalmente para criar laços duradouros em que as
pessoas, tenham elas o nível de aprendizagem que tiverem, passem a perceber as IES por sua
conduta, não pelo seu discurso.
Um dos caminhos possíveis para essa nova configuração é considerar o processo
de formação como decorrente de um projeto de longo prazo, flexível e compatível com as
diferentes demandas sociais. É significativo considerar que, de 2001 a 2007, a demanda
latente dava sinais de crescimento até 2005; depois disso vem caindo. Os dados do censo
atestam que, entre 2005 e 2007, o número de ingressantes é maior que o número de não
classificados; e que o número de vagas não ocupadas é superior à metade de ingressos
efetivados (Gráfico 4 / Tabela 2).
11 A tendência, de acordo com os especialistas, são as fusões ou a compra de instituições menores por grandes
empreendimentos educacionais. Mas quanto ao número de vagas, o crescimento deve ser muito pequeno nos próximos anos.
22
Gráfico 4 - Demanda latente por ensino superior em Santa Catarina. Fonte: MEC/INEP.
Tabela 2 - Percentual de ociosidade no ingresso em IES em Santa Catarina.
Fonte: MEC/INEP
Estudo publicado pela Hopper Editora (BRAGA, 2006) atesta que, só em 2004, as
IES privadas investiram 4,2% do faturamento em marketing e comunicação, com diferenças
significativas de montante nas instituições localizadas em capitais. Isso equivale a R$ 596
milhões, uma quantia considerável. A principal questão, segundo o estudo, é que boa parte
23
dos recursos foi aplicada na captação de novos alunos, sobretudo através de propaganda (75%
do total destinado a marketing e comunicação). O contexto atual deve promover não só uma
redução destes recursos para este fim como uma mudança profunda no foco dos investimentos
ainda necessários no setor.
Reforçar o relacionamento institucional com discentes (os que já estão) e docentes
deve ser o novo foco. Essa mudança está diretamente associada com a qualificação dos
“produtos e serviços” oferecidos, mas deve ir além. A relação mais consistente e duradoura
com os “clientes” (docentes e pessoal administrativo aqui envolvidos) passa também por um
ambiente que estimule circulação e acesso permanentes aos interessados em vivenciá-lo.
Significa dizer que nem sempre o contexto exige a formalização contratual de cunho
comercial, com cobrança de taxas ou mensalidades. Isso exige uma mudança na concepção
dos currículos, mudança que permita a injeção de valores mais atualizados para as gerações
que estão chegando ao ensino superior.
2.1 ITINERÁRIOS EM DIAGONAL
Reconhecidamente, a escolha por uma carreira profissional ganha cada vez mais
complexidade. Seja pela imaturidade dos estudantes recém-saídos do ensino médio, ainda
muito novos e despreparados para fazê-la; pelas características de cada profissão quanto à
empregabilidade e os níveis salariais decorrentes; pela incerteza quanto às competências
exigidas pelo setor produtivo; ou por quaisquer outras razões inerentes à contemporaneidade.
Mais e mais, como argumenta o professor Renato Janine Ribeiro, as carreiras profissionais
fazem uma “trajetória em diagonal”, constroem um sentido que parte de uma atividade
entendida como porto seguro e percorre um “itinerário profissional” afastado do diploma
(RIBEIRO in QUADROS, 2003). Por outro lado, como apontam Carmen Sylvia Vidigal
Moraes & Sebastião Lopes Neto, o “itinerário formativo” no Brasil desvincula as “trajetórias
ocupacionais” de um processo educativo que consolide e qualifique certificações profissionais
a partir de uma política alinhada com as demandas sociais e não apenas com as do setor
24
produtivo (MORAES e LOPES NETO, 2005). Itinerários formativos e profissionais estão em
diâmetros diferentes, quando não opostos12.
No contexto de carreiras incertas e da ansiedade pela necessidade de escolhas
constantes, é fundamental a compreensão da multiplicidade de funções que o Ensino Superior
assumiu nos últimos anos, ainda que as três finalidades básicas – investigação, ensino e
prestação de serviços – permaneçam desde os anos 60. Segundo Souza Santos (2003, p.189),
em
1987, o relatório da OCDE sobre as universidades atribuía a estas dez funções principais: educação geral pós-secundária; investigação; fornecimento de mão-de-obra qualificada; educação e treinamento altamente especializados; fortalecimento da competitividade da economia; mecanismo de seleção para empregos de alto nível através da credencialização; mobilidade social para os filhos e filhas das famílias operárias; prestação de serviços à região e à comunidade local; paradigmas de aplicação de políticas nacionais (ex. igualdade de oportunidades para mulheres e minorias raciais); preparação para os papéis de liderança social (OCDE, 1987: 16 e ss.).
O artigo 43 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n. 9.394/96) , ao
tratar das finalidades da educação superior, fundamenta a amplitude do papel das Instituições
de Ensino Superior no Brasil. Essa amplitude precisa ser percebida como estruturante da
diversidade proposta pelo sistema de ensino. Pela LDB, a Educação Superior tem como
finalidades a) estimular a criação cultural e o desenvolvimento do espírito científico e do
pensamento reflexivo; b) formar diplomados nas diferentes áreas de conhecimento, aptos para
a inserção em setores profissionais e para a participação no desenvolvimento da sociedade
brasileira, e colaborar na sua formação contínua; c) incentivar o trabalho de pesquisa e
investigação científica, visando ao desenvolvimento da ciência e da tecnologia e da criação e
difusão da cultura, e, desse modo, desenvolver o entendimento do homem e do meio em que
vive; d) promover a divulgação de conhecimentos culturais, científicos e técnicos que
constituem patrimônio da humanidade e comunicar o saber através do ensino, de publicações
ou de outras formas de comunicação; e) suscitar o desejo permanente de aperfeiçoamento
12 Em documentos recentes e no Plano de Gestão 2009-2013, elaborado coletivamente para a gestão do Reitor
Ailton Nazareno Soares, a instituição busca construir um processo educacional, com ou sem certificação, que esteja permanentemente ao alcance de quem busque novos conhecimentos. Sustenta-se a necessidade de promover currículos de vida, muito mais do que currículos de curso. A ideia de possibilitar a formação ao longo de toda a vida, como expressa a missão da Unisul, não é nova tampouco exclusiva. Mas passa por uma transformação estrutural profunda, sobretudo nos projetos de curso e nas concepções administrativas sobre a educação que têm levado em consideração, quase que exclusivamente, o corte de despesas. Sustenta-se a necessidade de que o conhecimento se estruture por áreas não mais por cursos.
25
cultural e profissional e possibilitar a correspondente concretização, integrando os
conhecimentos que vão sendo adquiridos numa estrutura intelectual sistematizadora do
conhecimento de cada geração; f) estimular o conhecimento dos problemas do mundo
presente, em particular os nacionais e regionais, prestar serviços especializados à comunidade
e estabelecer com esta uma relação de reciprocidade; g)promover a extensão, aberta à
participação da população, visando à difusão das conquistas e dos benefícios resultantes da
criação cultural e da pesquisa científica e tecnológica geradas na instituição.
Na medida em que a educação passou a ser reconhecida como um direito, o ensino
superior ganhou novos significados e finalidades. Por isso a crise tem implicações mais
profundas, como argumenta Souza Santos (2003). Ao perder a hegemonia como centro de
produção de conhecimento e da alta cultura, a universidade perdeu também a legitimidade
social desse processo e pulverizou-se enquanto instituição para atender às diferentes
demandas do mundo do trabalho. Concomitantemente, as propostas de inovação não têm
conseguido romper com as tensões inerentes a esse processo de mudanças; a opção tem sido
controlar, administrar, fazer a gestão das contradições, justamente num ambiente que propõe
permanente flexibilidade e oferece a promessa de múltiplas possibilidades. Não se pode
perder de vista que a variedade nas combinações de oferta nos processos de ingresso e
motivação para a permanência no sistema educacional atualmente é fruto das demandas
econômicas e das lutas por justiça social.
2.2 BEM PÚBLICO COMO NOVA ÁREA DE NEGÓCIOS
Antes de sintetizar as diferenças entre as IES, importante nesta análise, é necessário
contextualizar, mesmo que sucintamente, em que condições o sistema estrutura sua
organicidade. De acordo com Porto e Réginer (2003), o crescimento do setor privado no
ensino superior não é um fenômeno isolado. Com a perda de capacidade de financiamento e
de atuação direta do estado-providência13, o setor público deixou de ser o principal
responsável por atender à expansão da demanda por educação de nível superior, ainda que a
13 O termo estado-providência é usado pelo pesquisador português Boaventura de Souza Santos para designar um
período em que o Estado era percebido como produtor de bens e serviços na educação. Pensada naquele momento como um bem público, a educação tornou-se bandeira de luta política, sobretudo no que se refere à gratuidade dos serviços e à qualidade do processo.
26
elevação dos índices de acesso ao sistema esteja vinculado aos princípios de democracia e
justiça social. O paradoxo reside na questão de que tal elevação já não é uma exigência
unicamente econômica e, por isso mesmo, institui-se numa nova “área de negócios”. Por estar
vinculada a critérios de desenvolvimento econômico e aumento de produtividade nacionais
por um lado e a fatores de mobilidade social e perspectivas de melhoria de renda individuais
por outro14, a educação de nível superior passa a ser muito mais que uma necessidade. Como
as instâncias reguladoras do processo permitiram, sobretudo no Brasil, uma expansão
desmedida e desassociada de avaliações mais consistentes quanto às verdadeiras
potencialidades da educação superior no país. Para Porto e Réginer (2003, p. 66),
o sistema se move evidenciando tendências de rompimento com padrões estabelecidos e consagrados, porém não mais eficientes tanto na perspectiva dos sistemas produtivos quanto na perspectiva das aspirações culturais ou geracionais – as duas principais forças propulsoras da expansão do ensino superior. Do lado do mercado de trabalho, há as novas exigências de qualificação profissional (novos conteúdos, novas profissões, etc.), do lado das aspirações culturais há o fator do acesso ao ensino superior como elemento novo na cultura juvenil (primeiro nas classes médias mas que também opera em mimetismo sobre as camadas menos favorecidas) – o ensino superior passa a ser objeto de desejo (grifo dos autores).
Ainda fazem parte das “profundas transformações” no ensino superior brasileiro,
segundo Porto e Réginer (2003), a diversificação ampla dos tipos e modalidades de cursos
oferecidos, com a eliminação da rigidez dos currículos mínimos; a profissionalização da
gestão das instituições de ensino superior, numa alusão de mudança do perfil das lideranças
gerenciais: de educador-administrador para administrador-educador; a difusão da cultura de
avaliação, agora também disseminada na graduação; a atração de novos investimentos para a
educação superior frente às estimativas de expansão do sistema, numa alusão à diversificação
dos “produtos e serviços” a serem ofertados pelas IES; além da interiorização do ensino,
consolidação da pós-graduação, melhoria na qualificação do corpo docente e aumento da
produtividade do sistema. São tendências avaliadas a partir de cenários que colocam o Brasil
num momento-chave.
A última versão do anteprojeto de lei da educação superior15, assinada pelo então
ministro da Educação Tarso Genro, traz na essência da exposição de motivos a intenção de
“democratizar e qualificar suas instituições de ensino em todos os níveis”. O documento
propõe expansão com “qualidade e equidade”. Uma das razões expostas no anteprojeto é a de
14 O relatório Educations at a Glance 2009, da OCDE, divulgado em 8 de setembro, aponta que no Brasil, a renda
dos trabalhadores aumenta em mais de 100% com um diploma de ensino superior. 15 Documento publicado pelo Ministro Tarso Genro em 29 de julho de 2005.
27
que a Taxa de Escolarização Bruta16 no Brasil chegava a 9%, uma das mais baixas do mundo.
Taxa que, pela proposta do Plano Nacional de Educação, tem de chegar a 30% em 2010
(NEIVA e COLLAÇO, 2005), 40% deste número em matrículas no ensino público. Essa
perspectiva tem sido discutida a partir da expansão de instituições privadas, como aconteceu
durante os anos 1990, e do fortalecimento das instituições públicas federais, como sustenta o
atual governo em seu projeto de reforma.
Pelo Censo do Ensino Superior, em 200617 a Taxa de Escolarização Bruta já havia
alcançado os 20,1%. E mesmo com a diminuição do ritmo da expansão por conta da atual
política educacional do Governo Federal, o setor privado continua crescendo
proporcionalmente em número de matrículas e de instituições. Percebe-se nas estratégias do
Governo a preocupação com os dados quantitativos, cujo enfoque reforça a intenção de
massificar a Educação Superior no Brasil para garantir uma elevação nos índices de
produtividade nacional. Em contraste, os índices de qualidade quanto ao aprendizado ainda
são muito baixos. Às IES que dependem de mensalidade resta criar alternativas para
acompanhar o nível de renda da população sem abandonar a missão de formar seres humanos
capazes de adotar posturas responsáveis nas relações com a sociedade.
Em documento síntese do Seminário Internacional Universidade XXI – Novos
Caminhos para a Educação Superior: o Futuro em Debate18, realizado em Brasília entre 25 e
27 de novembro de 2003 pelo Ministério da Educação, a tensão entre educação pública e
privada foi um dos fatores de preocupação. Mas o então ministro Cristovam Buarque parecia
mais focado na sobrevivência do sistema e na aproximação das diferentes naturezas e
finalidades das IES brasileiras. Ainda que o ensino público e gratuito estivesse em primeiro
plano, os estudos realizados na época, cuja essência não parece ter sido considerada nos
documentos atuais, levavam em consideração a complexidade da estrutura então disponível
aos interessados em ingressar no ensino superior. Note-se que o evento contou com a
participação de 31 países, o que evidencia um problema que não é localizado. Diz o
documento (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, pp. 4 e 5):
16 Índice que leva em consideração a proporção de pessoas entre 18 e 24 anos de idade e o número de
matriculados nas Instituições de Ensino Superior, independente da idade. No caso do Brasil, a taxa pode representar distorções, visto que pode haver um grande número de alunos no sistema que não se enquadram na faixa etária analisada. Em 2006, de acordo com o Ministério da Educação, a Taxa de Educação Líquida, que leva em consideração o número de matriculados dentro da faixa etária, chegava a apenas 12,1%.
17 Disponível no endereço eletrônico http://www1.universia.com.br/CensoEdSup_2006.ppt. Acessado em: 16 fev. 2008.
18 Disponível em http://mecsrv04.mec.gov.br/univxxi/resul_sem.htm. Acessado em: 31 jan. 2008.
28
A tensão entre a educação pública e privada (...) [e]m geral, (...) assume forma de um debate travado nos termos do financiamento da educação, opondo o público – com financiamento do estado – ao privado, com seus diversos modelos de financiamento. (...) Nos termos dessa oposição, visto do ponto de vista apenas econômico, o financiamento público é definido como aquele que é estatal, e não no sentido republicano daquele que promove o bem público. De um ponto de vista mais amplo, conceituando-se a educação como um bem público, é possível pensar a existência de um sistema plural de instituições públicas e privadas, que adote diferentes modelos de financiamento e atenda diretrizes voltadas para uma clara política de ampliação da oferta e democratização do processo educacional (grifos nossos).
O índice de matrículas atribuídas ao setor privado no Brasil é um dos mais altos
do mundo segundo a UNESCO. Essa tendência está expressa no anteprojeto de lei sobre
organização e funcionamento do ensino superior, que resultou na Lei Universitária 5.540, de
1968. A proposta residia na busca de uma "conciliação difícil" entre o "ensino de massa" e a
"universidade" como centro de ciência e alta cultura, cujo objetivo era dar "soluções realistas"
e criar "medidas operacionais" para "racionalizar a organização" das atividades nas
universidades e obter maior "eficiência e produtividade"19.
Como resultado, a educação enquanto negócio estimulou a concorrência e ganhou
vantagens competitivas a partir da Constituição de 1988, com a autonomia dada às
instituições universitárias. Nessa perspectiva, a descontinuidade nas políticas educacionais
tem contribuído para que o sistema de ensino superior não consolide suas potencialidades.
Entretanto, pelas suas características jurídico-administrativas e acadêmicas consolidadas na
Constituição de 1988, a universidade é a única entre as Instituições de Ensino Superior capaz
de reunir todas as possibilidades de oferta previstas pelo sistema e combiná-las com o rigor do
conhecimento científico, sejam quais forem as fontes de financiamento.
2.3 SUTIS DIFERENÇAS INSTITUCIONAIS
É necessário um recorte para evidenciar as principais características do sistema de
ensino superior brasileiro e igualmente importante que se retome a análise a partir das
categorias administrativas reconhecidas no país para as IES. A organização administrativa
(Quadro 1) decorre da natureza jurídica de suas mantenedoras. São, portanto, instituições
19 Idem.
29
públicas as mantidas, mesmo que parcialmente, pelo Poder Público federal, estadual ou
municipal; e privadas as mantidas por pessoas físicas ou jurídicas de direito privado. As
instituições privadas são reconhecidas como com fins lucrativos ou particulares em sentido
estrito, de vocação exclusivamente empresarial; e sem fins lucrativos, classificadas quanto à
vocação social: são comunitárias as mantidas por pessoas físicas ou jurídicas compostas por
representantes da comunidade em que está inserida; confessionais as mantidas por pessoas
físicas ou jurídicas de orientação confessional e ideológica específicas; e filantrópicas as
mantidas por instituições de educação ou assistência social que oferecem serviços
complementares ao Estado, sem remuneração20.
Quadro 1 - Organização Administrativa das Instituições de Ensino Superior no Brasil. Fonte: MEC.
Uma outra forma de compreender a estrutura da educação superior no Brasil é
pela organização acadêmica das IES. Esta classificação especifica prerrogativas
20 Informações disponíveis em
http://portal.mec.gov.br/sesu/index.php?option=content&task=category§ionid=1&id=88&Itemid=517.
Acesso em: 29 jan. 2008.
30
constitucionais e legais, dependendo de sua especificidade, que garantem autonomia didático-
científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, como preconiza a Constituição
de 1988, no seu artigo 207. As Instituições de Ensino Superior são hoje classificadas em
universitárias e não-universitárias. Cada instância tem subdivisões com características que se
diferenciam muito sutilmente. As instituições universitárias são classificadas em21
• Universidades: São instituições pluridisciplinares, públicas ou privadas, de formação
de quadros profissionais de nível superior, que desenvolvem atividades regulares de
ensino, pesquisa e extensão;
• Universidades Especializadas: São instituições de educação superior, públicas ou
privadas, que atuam numa área de conhecimento específica ou de formação
profissional, devendo oferecer ensino de excelência e oportunidades de qualificação ao
corpo docente e condições de trabalho à comunidade escolar;
• Centros Universitários: São instituições de educação superior, públicas ou privadas,
pluricurriculares, que devem oferecer ensino de excelência e oportunidades de
qualificação ao corpo docente e condições de trabalho à comunidade escolar (grifos
nossos).
A exigência de desenvolver “atividades regulares de ensino, pesquisa e extensão”
é que institui a principal diferença entre as universidades e as demais IES com o status de
universitárias. A composição do corpo docente pela proporcionalidade de titulação e a
implantação de um número mínimo de cursos de pós-graduação stricto sensu são aspectos
discutidos em várias instâncias da educação no Brasil, mas que hoje caracterizam as
instituições universitárias como de pesquisa por um lado (universidades) e de ensino por outro
(centros universitários). Quanto às IES não universitárias, as fronteiras são bem menos
visíveis. Elas são subdivididas em22
• CEFETs e CETs: Centros Federais de Educação Tecnológica (Cefets) e os Centros de
Educação Tecnológica (CETs). Representam instituições de ensino superior, públicas
ou privadas, pluricurriculares, especializados na oferta de educação tecnológica nos
diferentes níveis e modalidades de ensino, caracterizando-se pela atuação prioritária na
área tecnológica. Eles podem ministrar o ensino técnico em nível médio. O centro de
Educação Tecnológica possui a finalidade de qualificar profissionais em cursos
21 IES – Organização Acadêmica: textos retirados na íntegra do endereço eletrônico
http://portal.mec.gov.br/sesu/index.php?option=content&task=view&id=651&Itemid=292. Acessado em 29 jan. 2008.
22 Idem.
31
superiores de educação tecnológica para os diversos setores da economia e realizar
pesquisa e desenvolvimento tecnológico de novos processos, produtos e serviços, em
estreita articulação com os setores produtivos e a sociedade, oferecendo, inclusive,
mecanismos para a educação continuada;
• Faculdades Integradas: São instituições de educação superior públicas ou privadas,
com propostas curriculares em mais de uma área do conhecimento. Tem o regimento
unificado e é dirigida por um diretor geral. Pode oferecer cursos em vários níveis
sendo eles de graduação, cursos sequenciais e de especialização e programas de pós-
graduação (mestrado e doutorado);
• Faculdades Isoladas: São instituições de educação superior públicas ou privadas.
Com propostas curriculares em mais de uma área do conhecimento são vinculadas a
um único mantenedor e com administração e direção isoladas. Podem oferecer cursos
em vários níveis sendo eles de graduação, cursos sequenciais e de especialização e
programas de pós-graduação (mestrado e doutorado);
• Institutos Superiores de Educação: São instituição publicas ou privadas que
ministram cursos em vários níveis sendo eles de graduação, cursos sequenciais e de
especialização, extensão e programas de pós-graduação (mestrado e doutorado) -
grifos nossos. Academicamente, portanto, a universidade deve se organizar de modo a responder
minimamente por ensino, pesquisa e extensão indissociados. Um dilema, na medida em que
as interpretações quanto a esta condição são tão variadas que a concepção mesma de
universidade se esvai. Defende-se aqui que sem desenvolver uma perspectiva de iniciação
científica e de comunicação23 com a sociedade, os financiamentos para as atividades que
transcendem o ensino em instituições universitárias, sobretudo de gestão privada, não são
alcançados com a estrutura necessária para promover a vida acadêmica e a “qualidade”
almejadas.
A instituição universidade deve integrar múltiplos conhecimentos existentes e
transformá-los em patrimônio coletivo (BOTOMÉ, 1996). Esses compromissos sociais
diferenciam a universidade das demais instituições. Gerar e socializar conhecimentos depende
de um fazer humano cujo significado está nas suas relações. Nesse contexto, ensino, pesquisa
23 Comunicação aqui entendida como um lugar em que os processos culturais se desenvolvem; não como um
lugar de mediação nem de transmissão de informações.
32
e extensão são atividades desse fazer humano; resultam de um sistema de relações que
constituem a própria universidade. Não são, portanto, metas ou objetivos.
Para chegar aos financiamentos externos, a pesquisa precisa estar comprometida
com o ensino e com o desenvolvimento dos critérios de construção do conhecimento dela
advindos conjuntamente com a sociedade. Aqui, portanto, não se está falando de divulgação
de ciência, tampouco da difusão dos resultados de pesquisa; mas de um processo de
comunicação pautado por uma relação social que leve em consideração os múltiplos saberes
envolvidos. Nesse sentido, é possível pensar projetos pedagógicos que estruturem programas
de aprendizagem mais flexíveis, abertos à curiosidade epistemológica (FREIRE, 1996),
terreno fértil para abarcar a investigação científica nos processos de aprendizagem. Para as
instituições que cobram mensalidade, uma práxis que permite o financiamento de atividades
de pesquisa vinculadas ao ensino.
É sobre a lógica que pressupõe pesquisa e extensão, e igualmente o ensino, como
meta que se constroem indicadores de produtividade. Contudo, o foco institucional da
universidade está no processo, ou seja, nas relações que propiciam a geração e a socialização
do conhecimento. As avaliações quantitativas têm instigado uma interpretação desse enfoque
baseada num portfólio a partir de demandas específicas, com o objetivo de manter a
sustentabilidade econômico-financeira. As análises de mercado alicerçadas exclusivamente
em produtos e serviços desconsideram uma das funções primárias da universidade enquanto
instituição: gerar condições de possibilidade para o desenvolvimento socioeconômico do
lugar em que está inserida. E isso não se refere apenas à preparação de mão-de-obra
qualificada para setores produtivos que as demandam. É para a sociedade que estas
instituições existem.
O equívoco talvez resida na negação dos valores que diferenciam uma
universidade das demais IES em detrimento da tentativa desesperada de garantir a ocupação
das salas de aula com estratégias que enfatizam unicamente as supostas vantagens entre os
custos e os benefícios para os interessados. E o problema está no fato de que não basta
adequar-se ao contexto a partir, unicamente, da sustentabilidade financeira. Porque não é um
curso enquanto produto que sustenta a universidade. É a condição de universidade que
fundamenta as escolhas de sua própria constituição, para além de uma carteira de produtos e
serviços. Significa dizer que a sustentabilidade não é exclusivamente ponto de partida
tampouco decorrência de ações bem planejadas. Ela é concomitante a um processo que se
configura na relação com a sociedade; não só com o setor produtivo.
33
Sob esse aspecto, há uma interpretação simplista dentro e fora das IES. Via de
regra, do lado de fora desenvolve-se uma estreita visão de que quanto mais competitivo é o
processo seletivo, mais qualificada parece ser a instituição quanto aos produtos e serviços em
oferta (as IES que não cobram mensalidade sempre levarão vantagem nesse quesito). De outro
lado, as estratégias de marketing nas IES que cobram mensalidade têm, também via de regra,
desvalorizado os princípios acadêmicos como fator de sustentabilidade, sobretudo no que
tange a qualidade das atividades educacionais. Entramos no Século XXI e os princípios de
exclusão permanecem delineando as escolhas quanto aos pressupostos de qualidade. E essa
visão é sustentada pelo próprio meio acadêmico.
O fundamento elitista de que o conhecimento não é para todos justifica os
pressupostos de uma docência focada nos alunos mais qualificados para o aprendizado. Uma
distorção, na medida em que o rigor científico na construção do aprendizado deve ser um
critério de comportamento, mensurável por uma trajetória em processo; não um critério de
seleção nem meta a ser alcançada por um programa de aprendizagem. Qualificar o processo,
portanto, passa também pelo fortalecimento dos compromissos de gerar e socializar
conhecimento. Docentes valorizados, constantemente atualizados, tornam-se fundamentais;
não menos que o compromisso de canalizar as energias dos estudantes para um processo de
formação mais cooperativa24 e menos instrumental.
2.4 CENÁRIO EM BUSCA DE QUALIFICAÇÃO
As propostas do Governo Federal para a educação superior, baseadas num
processo expansionista do sistema público e gratuito de ensino, corroboradas por
investimentos em novas universidades e outras Instituições Federais de Ensino Superior; os
investimentos dos municípios em ensino superior, com instalação de novas unidades e novos
cursos gratuitos; a movimentação do setor produtivo no sentido de garantir qualificação para a
grande quantidade de postos de trabalho ociosos em algumas áreas; a expansão do Ensino a
24 O termo cooperativo aqui assume um sentido muito mais amplo do que a configuração de um modelo de
negócios de relações descentralizadas e de baixa hierarquia. O sentido de cooperação assumido aqui é o de um ambiente em que as ações são pensadas e desenvolvidas para a construção de um espaço social comprometido com todos os que por ele circulam.
34
Distância25, também gratuito, como proposta de “democratização” do acesso ao ensino
superior no país; todos são estruturantes na configuração do cenário para os próximos anos.
Esse cenário apresenta invariantes macro-estruturais com os quais se precisa
contar, como apontam Porto e Réginer (2003, pp. 91 a 93): com a abertura externa da
economia e a modernização tecnológica, a base produtiva do país tende a promover um
aumento de competitividade; em decorrência, há uma tendência de mudança nas relações de
trabalho, caracterizadas pela diminuição do emprego formal e o aumento do trabalho
informal, mesmo com a tentativa governamental de buscar, na flexibilização das relações
trabalhistas, o aumento nos níveis de emprego; o país entra no mapa dos investimentos
internacionais sustentado pela modernização dos sistemas de telecomunicações e tecnologias
da informação, apesar das deficiências ainda crônicas dos setores de energia elétrica e
transportes; e há também uma tendência de o Estado brasileiro fortalecer a retomada do papel
de “regulador e promotor do desenvolvimento”.
Também importante é a mudança no perfil demográfico brasileiro. Estudos
publicados pela Fundação Joaquim Nabuco com base nos dados do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística - IBGE, apontam em longo prazo uma mudança significativa na taxa
de crescimento da população jovem, com uma “continuada redução do tamanho absoluto da
população menor de 15 anos”. As estimativas são de que até 2050, a população jovem fique
na casa dos 17% (contra os cerca de 35% atuais) em relação ao contingente populacional. São
mudanças significativas e que impactam nas políticas sociais, sobretudo no que diz respeito
aos investimentos na educação.
A taxa de crescimento populacional, que caiu de 3,4% para 1,9% entre os anos 60
e 70 do século passado, deve se estabilizar em 0,74% ao ano entre 2010 e 2020. Esses fatores
indicam que, para a população jovem, o mais significativo seja deslocar os investimentos em
educação, hoje aplicados na ampliação do número de salas de aula e de docentes, para a
qualidade no ensino (MOREIRA, 2002). Além disso, há fortes indícios de que outros
processos seletivos e outras modalidades de oferta sejam necessárias, em função dessa
mudança de perfil.
Se considerarmos os pressupostos de que educação e trabalho estão hoje
concomitantemente para o processo produtivo; de que trabalho e emprego já não têm uma
relação explícita; e que há a promessa de diminuição da centralidade do trabalho produtivo na
25 Os dados do censo são relevantes quanto ao Ensino a Distância. De 1.682 matriculados em 10 cursos, em
2000, o EaD saltou para 207.206 matriculados em 349, em 2006. Esse índice chega a 4,4% do número de matrícula nos cursos presenciais naquele ano.
35
vida das pessoas (SOUZA SANTOS, 2003), teremos uma ideia das mudanças de paradigma
por que passa o setor da educação no mundo inteiro. Há dois níveis, segundo Souza Santos
(2003), de questionamento quanto à relação educação-trabalho nos modelos atuais. O
primeiro diz respeito aos ciclos característicos a cada um dos fatores que estruturam a relação.
Entre a titulação e a ocupação há uma correspondência instável.
Por um lado, a estrutura rígida da universidade não consegue acompanhar os
movimentos rápidos do mercado; por outro, o sentido de eficácia do setor produtivo não
contempla uma sólida formação humana. O segundo nível, mais profundo, consiste em dois
aspectos básicos e importantes: na atualidade, educação e trabalho são entendidos como
concomitantes diante das profundas transformações nos processos produtivos e por isso se
fala em educação permanente. Além disso, trabalho e emprego não se relacionam mais
diretamente, dissociando a ideia de investimento na formação como investimento direto num
emprego específico.
Diante das novas tecnologias de armazenamento e cruzamento de dados, de busca veloz da informação, resta ao ensino, à universidade, mais do que nunca, assumir sua função de (...) formar analistas simbólicos, pessoas, cidadãos capazes de interagir, de se movimentar, de decodificar essas informações, de extrair desse excesso de informações um pensamento ou uma ação. Não se trata mais de ensinar uma profissão, porque ela pode deixar de existir em três anos, mas formar sujeitos capazes de se reciclar e mudar de profissão duas, três, quatro vezes ao longo de sua vida profissional e de sua existência (BENTES, 2002, p. 4).
No âmbito das ocupações, sejam elas formais ou informais, no chamado mercado
de trabalho, constata-se o desequilíbrio entre as “qualificações adquiridas” por meio educativo
e as “qualificações requisitadas” pelo setor produtivo. Moraes e Lopes Neto (2005), contudo,
alertam para o fato de que os processos de formação e educação não geram emprego. A
constituição das políticas trabalhistas e a instituição das condições de possibilidade de
distribuição de renda decorrem da relação entre capital e trabalho. Portanto, a desarticulação
entre a empregabilidade e “os processos sociais subjacentes às mudanças em curso” é fruto de
uma visão distorcida quanto à necessidade de as “capacidades formadas” terem de atender
exclusivamente a competências consideradas necessárias pelo setor produtivo.
Reconhecidamente, o conhecimento ganha obsolescência quando reduzido ao mercado de
trabalho. Nesse sentido, também os cursos quando pensados como unidades de negócio com
ciclos de vida pré-estabelecidos.
Como flexibilizar tem sido o argumento para suprimir o tempo gasto na produção
e acelerar o tempo de giro do capital, a qualificação do capital humano e a qualidade dos
36
conhecimentos produzidos têm se tornado tão essenciais na atualidade. Competitividade e
produtividade, hoje também exigidas no âmbito da educação, tornaram-se dogmas de luta pela
sobrevivência no mundo dos negócios26. Todos esses valores são transferidos para as
composições curriculares no ensino superior por conta de uma visão de mundo que não
alcança outras perspectivas e se padroniza para atender a demandas de mercado.
Uma série de fatores está associada às demandas para reformarmos as universidades a fim de fazê-las mais “eficientes”: (...) currículos (...) mais relevantes para os negócios e a indústria; (...) contratação do corpo docente em regimes de trabalho de curto período e uma geral tendência à temporalidade da força de trabalho; (...) avaliação de desempenho (...), que força o corpo docente a ensinar dentro das modalidades aprovadas e a publicar mais; (...) padronização dos certificados, diplomas e diplomas superiores; (...) o crescente gerenciamento (...) para fiscalizar e controlar os acadêmicos e efetuar o corte e o marketing da universidade (FEATHERSTONE in SANTOS FILHO e MORAES, 2000, pp. 80 e 81) - grifo do autor.
Quase que com unanimidade, percebe-se a necessidade de garantir nas
composições curriculares valores entendidos como essenciais para uma formação atualizada
de profissionais, cidadãos, conscientes de seus compromissos sociais e com a sustentabilidade
do planeta. Mas há uma reflexão importante a ser feita: as políticas de elaboração e
implantação desses currículos, no mais das vezes, ainda refletem a sociedade industrial, e
estão preocupadas em preencher os postos de trabalho até como condição de autopromoção
(os cursos que mais empregam são os mais valorizados). Hoje, entretanto, os postos de
trabalho não são mais fixos e a formação está mais voltada para consumidores, centrada em
conteúdos generalizantes. Tais conteúdos talvez não estejam associados à necessidade de
visão global dos processos; talvez sejam reflexo da descontextualização dessa visão. Os
projetos pedagógicos, em seus princípios, podem apresentar diferentes modos de expressar
tais valores, mas eles estão lá:
1. Formação cultural sólida e ampla;
2. Uso de quadros teóricos analíticos mais gerais;
3. Visão global do mundo e suas transformações;
4. Desenvolvimento de espírito crítico;
5. A inserção da criatividade como elemento importante;
6. Disponibilidade para a inovação;
26 A reflexão pode ser melhor apreciada na revista Educação & Sociedade de número 75 (Agosto/2001), no
artigo Política Educacional, Mudanças no Mundo do Trabalho e Reforma Curricular dos Cursos de Graduação no Brasil, de Afrânio Mendes Catani, João Ferreira de Oliveira e Luiz Fernando Dourado. Acessado em 24 de outubro de 2006 no endereço eletrônico www.scielo.br/pdf/es/v22n75/22n75a06.pdf.
37
7. Ambição pessoal;
8. Atitude positiva diante do trabalho, individual ou coletivamente;
9. Capacidade de negociação. Tais valores são válidos, indubitavelmente. Contudo, não se deve listá-los apenas
como um leque de opções para a composição de currículos “inovadores”. Segundo Callon (in
PARENTE, 2004) são dois grandes processos de modernização que alicerçam o conceito de
inovação: a competição econômica do mercado mundial e a ciência como fonte de progresso e
eficácia. E essa ideia de inovação paralisa porque se impõe e se naturaliza por não permitir a
todos os atores envolvidos a percepção de margens de manobra estratégica. Nessa concepção,
“a ciência é exterior ao mundo social e econômico” e seus laboratórios, suas redes logísticas
não são reconhecidos como o que dá sentido aos textos científicos; a ciência, portanto, não
circula nem se inscreve como representação do vivido. Concomitantemente, a inovação é
entendida apenas como potencialidade de uma ideia.
Dos primeiros esboços aos protótipos, do desenvolvimento à circulação de bens
materiais ou simbólicos, a inovação se efetiva ao ser aceita pelo consumidor, como último
estágio. As ideias são, portanto, associadas à produção como origem e ao consumo como
resultado; uma lógica que estabelece a priori os papéis de cada um no processo. Contudo, sem
a ação política, que retoma permanentemente o controle, para evitar, por exemplo, que se leve os mais desprovidos ao desespero e à exclusão total, o mercado auto-regulador acabaria desabando sobre si mesmo, levando em sua queda a sociedade inteira, reduzindo a farrapos o tecido social, destruindo a solidariedade entre os seres. (...) A única comunicação entre a oferta e a demanda é feita através do preço e da troca de dinheiro. Reduzir as relações sociais à troca silenciosa garante, aliás, a paz social. Nada de tagarelices inúteis, nada de debates metafísicos, nada de discursos incoerentes (CALLON in PARENTE, 2004, p. 72).
Ciência e inovação, vistas de modo linear, estão para um mercado regulado pela
competitividade e pela eficiência. Mas, construída socialmente, a concepção de mercado não
tem nada de natural. A construção social do mercado começa no processo de aprendizagem e
de formação; portanto é necessário inseri-lo no âmbito da própria construção. Em outras
palavras, está nas relações sociais e econômicas a sua estruturação e, por isso, sem a definição
compartilhada dos papéis que desempenharão os atores desse processo como “recursos
estratégicos chave”, a concepção de mercado se resume a uma competição que “recai sobre a
satisfação de demandas que arbitram entre diferentes ofertas”.
A instituição universidade pode ser a articuladora entre ciência, inovação e
mercado, como que atando um nó em uma rede de relações sociais e econômicas capazes de
38
perceber novas condições de possibilidade. Nesse sentido, as relações para além do projeto
pedagógico e da composição curricular também devem estar pautadas por essa premissa. O
ambiente universitário, em todas as suas dimensões, inclusive as que envolvem contrato
comercial, devem se constituir num ambiente de relacionamento aberto, de negociações
constantes, orientadas pelas necessidades sociais para gerar condições de acesso ao
conhecimento em constante geração seja por quem projeta um “itinerário profissional” ou
almeja um “itinerário formativo”.
2.5 HOMOGEINIZAÇÃO DA FLEXIBILIDADE
Na perspectiva de uma visão tecnocrática, os processos de inovação no ensino, em
quaisquer dos níveis que o componham, construíram suas referências a partir do controle de
variáveis para uniformizar, homogeneizar os resultados. Em especial no ensino superior, as
reformas orientam-se para “formas e estruturas organizativas” com o fim de atingir
eficazmente objetivos específicos (RASCO in CASTANHO e CASTANHO, 2000). Em
outras palavras, as "novas formas" de utilização de indicadores, avaliações e inspeções
sustentam condições de competitividade que, via de regra, obrigam a tomada de decisões
conforme o esperado. A partir do trabalho de E. R. House (1981), Rasco adverte sobre três
mitos calcados nos interesses das sociedades industriais, que buscam “altos benefícios com
baixos custos”. Os mitos da transferibilidade, do especialista e do consenso social originam-se
de um ambiente hierarquizado, em que as decisões partem de cima para baixo e do centro para
as periferias.
Segundo o primeiro [mito], toda inovação terá uma ampla aceitação e oferecerá uma solução com alta capacidade de generalização, que poderá ser “transferida de um lugar para outro”. (...) Como se pode facilmente estimar, esse é um mito derivado diretamente da epistemologia positivista. Um produto tecnológico goza da capacidade da generalização – e da transferibilidade – próprias das proposições causais verdadeiras em que se fundamenta, porque tal produto é o resultado pragmático da manipulação de certas causas para obter efeitos desejados. (...) O segundo mito é o dos especialistas. (...) Qualquer iniciativa ou proposta tecnológica exige a presença de investigadores especializados. Como tais, eles controlam os arcanos do saber e são, por isso, os mais qualificados para orientar as decisões sobre os cursos de ação possíveis. (...) [O] mito do consenso baseia-se na ideia de que os interesses particulares, pessoais ou coletivos, dos receptores das inovações, coincidem com os interesses gerais dos grupos da decisão e dos grupos da criação do
39
conhecimento (RASCO in CASTANHO e CASTANHO, 2000, pp. 19 e 20) - grifos do autor.
Já Cortella (2004) aponta duas necessidades contemporâneas no que diz respeito à
educação: a educação formal, que alicerça os conhecimentos básicos para o ingresso das
pessoas ao mundo do trabalho; e a educação continuada, que garante a possibilidade de
atualização desse conhecimento por toda a vida. Mas as respostas do campo educacional às
novas demandas têm sido dadas no âmbito da estrutura legitimada pelos ideários de carreira
acadêmica e das decisões conforme o esperado.
De acordo com o grau de formação, há níveis diferenciados de valorização salarial
no sistema de ensino ao qual o adjetivo “superior” confirma o sentido ainda elitista das IES.
Tal característica tem origem no mundo do trabalho, cujo processo de formação profissional
desconsidera os fundamentos socioculturais, e mesmo os científico-tecnológicos, como
essenciais aos novos perfis exigidos pelo mercado e é avaliado pelos critérios de polivalência
e flexibilidade.
Não se pode desconsiderar as potencialidades do sistema de ensino superior a
partir de critérios de revitalização do conhecimento (não confinado apenas à racionalidade
científica) em qualquer nível de aprendizagem. Assim, a ideia de aprendizado permanente
talvez possa se desvincular da necessidade de titulações baseadas em “nichos” de saberes.
Não no sentido de superá-las definitivamente, mas no de valorizar outros quesitos igualmente
importantes para o processo de formação em quaisquer áreas do conhecimento humano e de
formação profissional.
É preciso ir para além das identidades profissionais fixas, o que inclui o próprio
ideário de carreira acadêmica (RIBEIRO in QUADROS, 2003). Aliás, esse é outro (senão o
mesmo) ponto paradoxal: a flexibilidade27 exigida serve para manter fixas algumas
concepções estruturantes do que se quer flexível. Dizendo de outro modo, a concepção de
flexibilidade tem sido usada para justificar uma nova dinâmica de projeção de itinerários,
sejam formativos ou ocupacionais, mas não sustenta, por si mesma, a efetivação das
trajetórias dela decorrentes. Estruturas flexíveis não têm forma; portanto, não estão dadas,
precisam ser “construídas” no percurso, em permanente processo.
27 Bauman (2007, p.10) refere-se à flexibilidade como a “prontidão [do indivíduo] em mudar repentinamente de
táticas e de estilo, abandonar compromissos e lealdades sem arrependimento – e buscar oportunidades mais de acordo com sua disponibilidade atual do que com as próprias preferências”. Em outras palavras, essa ideia de flexibilidade serve para que os projetos organizacionais – esses fixados em metas a serem atingidas – mantenham o “controle” das variáveis não previstas. Com o destino pré-traçado, os indivíduos podem sair do “lugar alocado”, se deslocar e realocar de acordo com as oportunidades postas à escolha; mesmo que não considerem os destinos traçados como ideais.
40
Nesse contexto, a complexidade do sistema de ensino superior brasileiro reserva
um terceiro nível de classificação que diversifica os processos de formação. Culturalmente,
um curso de nível superior circunscreve-se à graduação (bacharelado, licenciatura e
tecnologia). Contudo, tem aparecido no Brasil – muito timidamente, é verdade – a opção por
cursos superiores cuja proposta é explorar campos de saberes de "formação específica", com
direito a diploma e possibilidade de ingresso em pós-graduação lato sensu, ou de
complementação de estudos com direito a certificado. A base da educação superior ainda
oferece a possibilidade de oferta de cursos de extensão, com certificado de caráter meramente
social, mas de igual importância na formação.
Quanto à pós-graduação, há duas classificações:
1. Lato Sensu: Os cursos têm duração mínima de 360 horas, não computando o
tempo de estudo individual ou em grupo e sem assistência docente. É aquele
destinado à elaboração de monografia ou trabalho de conclusão de curso.
Direcionado ao treinamento nas partes de que se compõe um ramo profissional ou
científico, o curso confere certificado a seus concluintes. Os cursos de pós-
graduação lato sensu geralmente têm um formato semelhante ao dos cursos
tradicionais, com aulas, seminários e conferências, ao lado de trabalhos de
pesquisa sobre os temas concernentes ao curso. O critério de seleção para o
ingresso no curso de pós- graduação lato sensu é definido de forma independente
em cada instituição, sendo geralmente composta de uma avaliação e de uma
entrevista, no qual a única exigência formal a ser cumprida pelo interessado se
refere à posse de um diploma de nível superior. Cabe a SESU regulamentar estes
cursos conhecidos como Especialização e Residência Médica.
2. Stricto Sensu: Os cursos de Stricto Sensu são direcionados para a continuidade da
formação científica e acadêmica, como mestrado e doutorado, de alunos com nível
superior. Cabe a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES). A avaliação é realizada a cada três anos, e as médias variam de 1 a 7.
Para ser reconhecido, o curso deverá apresentar média maior que 3. O curso de
mestrado tem a duração de dois anos, no qual o aluno desenvolve a dissertação e
cursa as disciplinas coerentes a sua pesquisa. Os quatro anos de doutorado são
41
referentes ao cumprimento das disciplinas e a elaboração da tese junto à
orientação.28
Aqui a polarização do sistema se singulariza. Tecnicismo e humanidades,
autonomia e clientelismo, academia e mercado, seriedade e leviandade, bem público e
mercantilização do serviço, os termos são amplos e variados, mas todos postos em
antagonismo. Os “produtos e serviços” educacionais são estigmatizados por essas referências
a priori. Cursos sequenciais em oposição aos de graduação; de técnólogo, aos de formação
humanística e por aí seguem as diferenciações que resultam numa excessiva competitividade
(das instituições aos indivíduos) e que transformam um bem público numa relíquia a ser
conquistada através de processos seletivos meramente instrumentais ou consumida como
simples objeto de satisfação individual. Se há uma singularidade a ser sustentada, ela está na
percepção de que vários processos fazem parte de um espaço social diferenciado; reconhecer
suas relações e criar condições de possibilidade para que delas surjam novos ambientes é o
desafio que nos persegue.
2.6 ENTRE A PERFORMANCE E O COMPROMISSO
O sistema de classificação29 do Ministério da Educação é consubstanciado por
uma deferência da Constituição da República Federativa do Brasil de 1998 e que garante
autonomia didático-científica às Instituições de Ensino Superior. Mas, segundo Neiva e
Collaço (2006), há um hiato entre as perspectivas legais, que evidenciam uma abertura na
composição do sistema, e as diretrizes curriculares nacionais. Resultado de um excesso de
imposições normativas que inibem a inovação, as IES mergulham na falta de percepção das
“imensas oportunidades que esse posicionamento abre para que possam se adaptar a uma nova
realidade”. Neiva e Collaço apontam uma “cultura do medo” sintetizada pela “irresistível
tendência de [as IES] se manterem submissas às exigências despropositadas da burocracia
atrasada” das instâncias regulamentadoras.
28 IES – Quanto à Formação:
http://portal.mec.gov.br/sesu/index.php?option=content&task=view&id=598&Itemid=292., Acessado em: 29 jan. 2008.
29 Aqui expusemos as organizações administrativa, acadêmica e quanto à formação.
42
Tal submissão tem um viés extremamente danoso para os processos de inovação
ainda a serem propostos. Sem romper as “amarras”, que como apontam Neiva e Collaço
(2006) estão mais no campo das normatizações do que das leis, não será possível pensar em
novas condições de possibilidade, justamente porque o campo de visão normativo não as
alcança. Em outras palavras, há a necessidade de uma percepção mais ampla das condições de
possibilidade; uma visão que alcance um espectro maior de alternativas, para além de focos
em produtos e serviços. Esse, aliás, é o grande desafio: romper com a fragmentação do
conhecimento científico, expresso na própria estrutura que consolida os processos de
formação e o contexto educacional.
Enquanto os níveis de aprendizagem e seus aspectos estruturais não compuserem
um único processo de formação, entendido como contínuo e permanente, não há como
estabelecer mudanças significativas. Em outras palavras, a preocupação maior das IES no
contexto atual é com a performance, ou com a obediência às normatizações para responder
aos padrões de eficiência e eficácia propostos pelos órgãos reguladores; seja quanto às
avaliações ou processos de reconhecimento e recredenciamento. O compromisso com a
performance, muitas vezes sustentado por avaliações tecnocráticas e que respondem a
processos de controle, não deve sobrepor-se ao dinâmico espaço social tecido
institucionalmente.
O sistema de classificações que caracteriza a estrutura da educação superior no
Brasil não inibe as instituições não-universitárias, mesmo com foco exclusivo no ensino, de
ofertarem cursos de pós-graduação; assim como não proíbe as universidades, com o
compromisso de desenvolver “atividades regulares de ensino, pesquisa e extensão”, de
potencializarem suas condições de oferta, sejam elas gratuitas ou pagas, e tornarem-se abertas
quanto ao sentido de formação. Dependendo do espectro de visão e seu alcance é possível
pensar e propor novas escalas de valores para a aprendizagem, cujo fundamento é a
atualização constante do conhecimento, não a construção regular de conteúdos numa tabela de
fluxos.
Nessa perspectiva, também as propostas de pós-graduação, com raras exceções, estão
desvinculadas da graduação tanto em conteúdos quanto em estrutura. Essa cesura está
caracterizada sobretudo pela ideia de que as teorias estão relacionadas aos modos de
conhecimento e as práticas aos modos de saber fazer. Relacionada às trajetórias ocupacionais,
a graduação permanece vinculada quase que exclusivamente ao ensino (BRAGA, 2006). A
pesquisa pertence aos níveis de aprendizagem para além da graduação e a extensão aos
setores que respondem pelo conceito de responsabilidade social nas universidades. E essa
43
cesura também se reflete na composição dos projetos pedagógicos dos cursos na graduação:
pesquisa e extensão são pensadas como interface a partir do ensino; não são parte integrante
do processo de aprendizagem e, portanto, justificam estruturas independentes.
As ações resultantes de análises que não levem em consideração a natureza de suas
premissas tendem a sustentar um processo de gestão centralizado em generalizações que
sufocam a diversidade de pensamentos característica de uma universidade. Potencializar o
ambiente acadêmico, torná-lo mais aberto e suscetível à diversificação de perfis de
ingressante, reconfigurar saberes e promover a desfragmentação do conhecimento científico
são desafios contemporâneos das Instituições de Ensino Superior. Não há outro caminho às
IES senão o de tornarem-se protagonistas no contexto educacional, seja quanto às condições
de oferta ou de formação.
44
3 CERTIFICAÇÕES, FORMAÇÃO E EDUCAÇÃO
Na primeira parte do trabalho propôs-se a exposição de uma visão do complexo
dilema pelo qual passam as IES brasileiras. A leitura até aqui nos remete a um contexto de
saturação mercadológica, de pré-conceitos estruturais que inibem uma ação mais radical30
quanto aos movimentos de mudança, de dúvidas e incertezas quanto ao futuro, de crise
profunda. Mas é importante também que se enfatize de onde se faz a leitura: é de dentro do
ambiente desgastado que se analisa o contexto. As ações decorrentes dessa análise sempre
levam em consideração como ser melhor que os concorrentes, como desenvolver “vantagens
competitivas” para consolidar uma singularidade institucional capaz de ser reconhecida diante
das diversas opções oferecidas no “mercado” da educação.
Em quase todos os aspectos, ao menos nos mais significativos, as leis e as
possibilidades de estruturação conferem às Instituições de Ensino Superior perspectivas de
transformação interessantes. Vantagem maior é das universidades pela garantia de processos
acadêmicos e de gestão autônomos. Some-se a abertura com relação às várias modalidades de
aprendizagem hoje admitidas, às possibilidades de certificação e às diretrizes nacionais para a
composição de produtos acadêmicos. Se é para as necessidades sociais que as IES,
principalmente as universidades, precisam se voltar, parece evidente a percepção de que o
modelo hoje em oferta não atende a todas as expectativas por educação superior. É nesse
contexto que surge a proposta de Certificação Processual em Comunicação. Passemos,
então, a partir de agora, a especificar as concepções que norteiam a proposta em sua
organicidade.
É preciso, antes de qualquer argumentação, estabelecer algumas reflexões acerca
do propósito da certificação como sanção de um percurso escolar ou de reconhecimento de
saberes específicos ainda que externos ao ambiente educacional. No Brasil especialmente, as
certificações de estímulo à qualificação ocupacional no setor produtivo concorrem com as
obtidas por meios educativos. Em última análise, certificações escolares sancionam um
percurso cumulativo em termos de conhecimento, certificações de pessoas explicitam graus
de desempenho em situações passíveis de verificação, e certificações de conhecimento
30 O termo radical aqui adotado está no sentido de ir à raiz do problema para interpretá-lo em um contexto novo.
45
atestam as possibilidades de continuidade de estudos, todas sem uma política que as conduza
e oriente quanto aos itinerários possíveis.
Diante desse quadro, tanto os processos de formação quanto suas certificações
permanecem distantes pelo grau de seletividade no acesso ao sistema escolarizado e pela
ausência de critérios que fundamentem a continuidade de estudos para quem adquiriu saberes
ao longo da vida por outras vias que não a escolar. Moraes e Lopes Neto (2005) aferem que
85% da população trabalhadora entra antes dos 17 anos na vida ativa, o que as impede de
continuar os estudos. Alia-se a esse fator condicionante, o grande número de pessoas com
idade superior a 15 anos, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios -
PNAD - feita em 2001, que não possuem nível fundamental completo. De outro lado, como já exposto neste trabalho, os altos índices de evasão escolar,
sobretudo no ensino superior, evidenciam a desarticulação entre formação geral e formação
profissional no Brasil. Não há um sistema de certificações compatíveis com a Classificação
Brasileira de Ocupações31 e os processos formativos, via de regra, estão focados no
desenvolvimento de competências que atendem a demandas muito específicas, em resposta
aos interesses do sistema de produção.
Há controvérsias quanto aos ideários de formação por competências que recaem sobre
essa falta de articulação entre as formações geral e profissional. No conjunto de leis e decretos
hoje em vigor no país, tanto no campo educacional quanto no de ocupações, o conceito de
competência está ligado à verificação de desempenho em situações de trabalho, para além dos
conhecimentos formais adquiridos. E, por não abarcar “dimensões culturais e cognitivas
fundamentais à avaliação das potencialidades dos sujeitos”, o próprio Ministério da Educação
(Moraes e Lopes Neto, 2005, p. 1449) adverte quanto ao uso indiscriminado dessa concepção,
mesmo em se tratando de educação profissional e tecnológica, visto que os fundamentos
científico-tecnológicos e socioculturais não podem e não devem ser desconsiderados em
quaisquer dimensões de formação. Isso implica uma revisão das diretrizes tanto do ensino de
nível médio (técnico-profissionalizante) quanto superior (tecnólogo).
No âmbito da educação, há um hiato entre a organização de cursos, a recuperação
de escolaridade e a classificação de ocupações. Uma Instituição de Ensino Superior não tem
como dar conta sozinha de preencher esse vazio. Mas, estruturada a partir de uma proposta de
educação permanente, deve pensar em formas de inserção nesse contexto e de contribuir não
só com o debate, mas com ações que encaminhem novas oportunidades e perspectivas,
31 Disponível em http://www.mtecbo.gov.br/cbosite/pages/pesquisas/BuscaPorTitulo.jsf.
46
principalmente quando as referências apontam para um processo educativo mais aberto e
preocupado com a formação integral, não apenas com a força de trabalho.
Por esta razão, uma revisão quanto às tipologias de certificação no ensino superior
torna-se fundamental. Primeiro porque reorganiza os vínculos de transição entre diferentes
etapas e depois porque propõe um olhar mais amplo sobre as dimensões que fundamentam
essa reorganização. Entretanto, é preciso que se reforce o vínculo, antes de tudo, com as
pessoas que farão parte desse processo. A transição de etapas e o olhar sobre suas dimensões
estruturantes orientam-se pelas e com as pessoas que compõem o movimento de
reorganização.
3.1 POR ESPAÇOS DE AFETIVIDADE E AUTONOMIA
O mundo contemporâneo e suas relações tecno-humanas têm fomentado um rico
debate a respeito das condições de possibilidade na construção de um espaço social de
aprendizagem mais afetivo. Diante da premissa de que, como modernos, somos incapazes de
romper com o constante movimento necessário pela busca da satisfação, sempre a ser
alcançada, cresce a crença de que não há um fim para nossa jornada, um telos alcançável de
mudança histórica (BAUMAN, 2001). Como essa busca já não é mais coletiva, o direito à
diferença é levado a um nível de individualidade que desregulamenta e privatiza as tarefas e
os deveres que estruturam a modernização em constante processo, a ponto de transformar a
esfera pública em palco de dramas particulares.
Não por acaso, as atuais relações entre docentes e discentes estão cada vez mais
sustentadas por uma ansiedade permanente em que o inacabado não tem um oposto factível;
também pela necessidade de a “autoridade” docente depender do poder de sedução que
implique maior número de seguidores possíveis, num processo de legitimação em que, via de
regra, o foco da aprendizagem se desloca da negociação sobre o que fazer para a esfera do
exemplo, o como fazer. Diante de tantos meios e tantos fins hoje vistos como “disponíveis”, o
melhor para conter a ansiedade parece ser o aprendizado de meios específicos para fins que
estão na esfera experimencial da “autoridade” docente. Nesse sentido, as energias são
canalizadas para certas finalidades, projetadas com antecedência para garantir parâmetros
mensuráveis de avaliações de desempenho. Como resultado, a ansiedade permanente é
47
reforçada num contexto em que “tudo fica como está”, numa sucessão de encontros
episódicos sem afetividade nem autonomia.
O Século XX trouxe o contexto empresarial, dos fins planejados e projetados
como “local epistemológico de construção” do mundo. Segundo Bauman (2001), esse
“sentido praxeomórfico32”, em que o know-how do dia voltado para a eficácia e a eficiência
tornou-se estruturante, teve sua expressão maior na lógica de funcionamento da Ford
enquanto instituição. E foi adotado, inclusive, pela academia. Sucintamente, a cesura entre
projeto e execução, iniciativa e atendimento a comandos, liberdade e obediência, invenção e
determinação, em que “o entrelaçamento dos opostos se dá pelo comando do primeiro ao
segundo”, engendrou um modo de ser em que a criação se estabelecia pelo cálculo dos meios
para se chegar a determinados fins.
No Século XXI os fins não são mais reconhecidos como determináveis; já
“existem” em “abundância”. E é aos meios que se precisa “chegar”. Se, como afirma Bauman
(2001), são os indivíduos que definem e enfrentam em nossos dias seus problemas individuais
com as habilidades e os recursos de que dispõem ou “desenvolvem”, é nesse contexto que o
volume e a eficácia dos meios os conduzem ao lugar de “autoridade” e os legitimam enquanto
exemplo a ser seguido.
A Comunicação, no sentido estrito, é fator estruturante no processo de construção
de um espaço social que se constitua numa “esfera pública”; um lugar de negociação
constante dos meios e avaliação dos fins, atualmente confinados ao nível dos indivíduos. Mas
ainda hoje há dois extremos que “normatizam” o espaço social e têm nos ideários de
flexibilidade os pressupostos de legitimação: o mercado, cujo processo econômico-
administrativo se dá pela promoção da liberdade de escolha via consumo; e o estado, cujo
processo político-administrativo se constitui na promoção da liberdade de escolha pela
segurança. Pode-se, nessa interpretação proposta por Bauman (2001), considerar que as
instituições vivem o antagonismo de prometer aos indivíduos a liberdade econômico-
administrativa por um lado e a segurança político-administrativa por outro. Portanto, apesar
das mudanças contextuais, o mapa que caracteriza a vida social ainda é orientado pela gestão
das tensões. E a Comunicação fornece esses meios em grande escala.
Para romper com esses dogmas, o compromisso com a aprendizagem hoje
significa, continuada e permanentemente, oferecer condições de possibilidade para pensar o
32 Como os seres humanos tendem a conceber o mundo a partir do que podem fazer e de como o fazem
usualmente.
48
espaço social, mesmo que pelo viés produtivo, cognitiva e esteticamente preocupado com as
responsabilidades individuais e coletivas decorrentes. Fortalecer esse espaço pressupõe uma
proximidade que reconfigure a vida em sociedade. Significa criar um ambiente em que a
afetividade não se limite em favorecer uma vida social episódica, na qual os outros, sempre
estranhos, estão próximos apenas nos momentos de busca por volume e eficácia dos meios
para os fins em pauta. Parte-se, nesta proposição, de uma mudança concreta quanto à ideia de
que o espaço social, portanto público, não é um lugar de passagem para o movimento
constante rumo aos fins sempre individuais; o espaço social deve se constituir num lugar para
se estar nele, negociando constantemente a direção e os resultados do processo de formação.
Em fóruns mais politizados e preocupados com a questão da sustentabilidade, o
conceito de “economia criativa” (REIS, 2007) tem sido debatido amplamente. Essa ideia é
fundamental no contexto aqui desenhado porque toda a estrutura basilar do sistema
educacional ainda é conservadora quanto a seus lugares de ocupação. Sendo assim, a
sustentabilidade dos postos de trabalho no campo da educação quase nunca leva em
consideração seu sentido pleno, que está na viabilização do espaço social e não nas garantias
econômicas de financiamento. Para a “economia criativa” os aspectos econômicos devem ser
pensados a partir de objetivos sociais e de uma política de desenvolvimento.
É, portanto, um espaço de negociações permanentes que reconhece os capitais
intelectual e criativo33 como valores estratégicos. O potencial criativo desse processo está no
“livre fluxo de ideias”, cujo valor social depende da capacidade de diálogo entre as mais
diferentes fontes de articulação e o valor econômico depende de diferentes modelos de
negócio e canais de mercado. Em outras palavras, esse novo contexto pede um fluxo
econômico preocupado com produção, distribuição e demanda aliadas a formação,
democracia de acesso e liberdade de escolhas. Aspectos tangíveis e intangíveis estruturam
uma “espiral criativa” (REIS, 2007) cujo ciclo constrói valores para além dos preços
decorrentes da simples relação entre demanda e oferta.
Qualquer instituição de ensino tem no seu corpo docente o capital intelectual e
criativo e, enquanto “organização do conhecimento”, nela o verdadeiro valor do negócio não
está relacionado, necessariamente, a assuntos de ordem financeira. Mas o modelo de negócios
atualmente adotado pelas IES ainda sustenta uma tensão entre demanda e oferta quanto aos
33 Usamos aqui o conceito adotado por Ana Carla Fonseca Reis no trabalho Economia da cultura e
desenvolvimento sustentável: o caleidoscópio da cultura. Citando Tom Bentley e Kimberly Seltzer, a autora sustenta que o processo de criação depende fundamentalmente de desatarmos “amarras mentais”. Como principais habilidades desse processo destacamos: a)formular novos problemas e solucioná-los; b) reconhecer o aprendizado contínuo e os erros inerentes; e c) intercambiar conhecimentos de uma área para outra.
49
lugares de ocupação dos docentes na estrutura institucional, pensados pela via econômico-
financeira. As horas de trabalho são compostas por diferentes atividades, fragmentadas; os
planos de carreira valorizam cargos e posições nas esferas acadêmico-administrativas.
A oportunidade de potencializar a inserção docente num ambiente muito mais
amplo e arejado não deve desconsiderar os processos administrativos até aqui desenvolvidos,
mas reorientá-los numa política que viabilize o espaço social a ser oferecido como ambiente
acadêmico economicamente sustentável. Nesse sentido, o corpo docente deve ser parte
integrante das esferas de decisão acadêmico-administrativas que orientam os “produtos e
serviços” educacionais. O “livre fluxo de ideias” para diferentes modelos de negócio e canais
de mercado só é possível com a efetiva valorização dos capitais intelectual e criativo
(discentes e corpo técnico-administrativo aqui também incluídos) nessa outra concepção de
economia.
No âmbito educacional, pelo viés administrativo dos cortes, diminuir a duração
dos cursos surge como alternativa para preencher as vagas ociosas no sistema de ensino. Essa
estratégia, contudo, transforma a IES num lugar de passagem. A saída proposta pelo que
chamamos de Certificação Processual é, ao contrário, transformá-la num lugar para se estar
nele, permanentemente. Processualmente, os interessados em adquirir conhecimento podem
se mover de acordo com os meios e os fins de que dispõem. A chave está na concepção de
que não é mais um diploma, como entendido tradicionalmente, que finda o processo (e alguns
dos motivos já foram evidenciados neste trabalho); nem há um sentido cumulativo obrigatório
para evidenciar que o conhecimento foi “adquirido” (ou poderíamos sugerir consumido?).
O processo, de fato, se constitui num ambiente de relações que se propõem
duradouras, em que o espaço acadêmico é aberto para que se potencialize os fins não só a
partir do que está previamente planejado (individual e institucionalmente); mas que seja
também construído na própria relação34, cujos esforços (docente e discente) devem ser
política e economicamente responsáveis e criativos.
É interessante pensar na universidade como um “ponto privilegiado de encontro
de saberes” (SOUZA SANTOS, 2003, p. 224). Significa dizer que, na atualidade, está na
“configuração que proporciona” e não mais no centro de produção e transmissão de saberes
34 Algumas instituições de ensino estão transformando projetos de pesquisa em jogos eletrônicos via rede para
obter “ajuda” em análises e procedimentos. Isso, de fato, não cria ainda um espaço social considerado acadêmico; mas evidencia, indubitavelmente, que os níveis de aprendizagem e os nichos de conhecimento são muito mais intercambiáveis e contíguos do que se supõe. Um espaço social aberto a essas novas formas de relacionamento parece ser ideal para romper com alguns dogmas vigentes no sistema educacional. E é fundamental, para isso, que a figura do cânone, singelamente representada pelo docente, reconheça outros saberes necessários para a construção do que se designa conhecimento.
50
sua principal característica. Assim, a ambiência universitária constitui-se da
“multivocalidade” que singulariza essa configuração para além de comparações “mensuráveis
pela mesma unidade de medida”. Nesse lugar de encontro multivocal, a docência deve
representar “um processo que pode, na melhor das hipóteses, sugerir, nunca impor, seus
resultados” (BAUMAN, 2008, p. 177). Isso porque já não é mais possível, ainda que se insista
nessa tarefa, guiar a formação para se chegar num alvo projetado por princípio. A vida e os
compromissos decorrentes não podem mais ficar descolados dos processos educacionais, ou o
preço de ninguém se sentir encarregado por eles ficará cada vez mais caro.
Se é de um novo “sentido praxeomórfico”, um outro “lugar epistemológico” de
construção que falamos, está na docência os primeiros passos para essa transformação. É a
partir dela que os saberes têm oportunidade de reconfiguração; que os conhecimentos
“monodisciplinares”, fragmentados e especializados devem ser substituídos por uma nova
práxis, capaz de romper com o “modelo aplicacionista”, como argumenta Tardiff (2000), em
que a vida, seja ela profissional ou não, só é vivida depois que os fundamentos para a ação são
ensinados em seus conceitos.
Reconfigurar saberes não é o mesmo que reconfigurar suas certificações. Por isso
mesmo, áreas de conhecimento e campos de saber como espaços para a docência em educação
permanente são o alicerce do processo. Busca-se privilegiar a multivocalidade, a interseção
entre conhecimentos e saberes instituídos, com o firme propósito de ambientar a vida
acadêmica, não de apenas projetar novos espaços padronizados em busca de reconhecimento
por critérios de mensuração com tendência a homogeneizarem-se. O reconhecimento é
decorrência do ambiente e de como ele se articula.
Como sugere Tardiff (2000), os saberes da docência não se restringem aos
conteúdos programáticos, aos conhecimentos universitários. Os saberes docentes estão
também muito relacionados às suas histórias de vida e experiências exploratórias no campo da
educação; partem de diferentes fontes e se propõem a atingir diferentes objetivos
simultaneamente; e dificilmente se consegue dissociá-los dos traços de personalidade e das
características do ambiente de trabalho. Falar de afeto e de generosidade, por exemplo,
depende de ações que sustentem o discurso sobre a docência; experiências a serem
compartilhadas no ambiente da vida acadêmica também como conhecimento em processo de
construção.
O compromisso de educar ao longo de toda a vida depende fortemente dos laços
consolidados no ambiente acadêmico. Medina (2006) identifica “as pegadas de uma
continuidade que não se desmancha no ar” na “diáspora dos ex-alunos” que por ela passaram,
51
resultado de uma experiência pedagógica afetiva e voltada ao outro. Considerando que
“diáspora” e “ex-alunos” são termos que não combinam com as concepções de uma educação
permanente, os argumentos de Medina se atualizam pelo comportamento que inspiram; pela
noção de docência preocupada com a reconfiguração dos saberes para além dos muros
universitários. Os laços permanecem quando o processo é regido sob “o signo da relação”.
Nossas salas de aula, atualmente, respiram homogeneidades; de sonhos, de
perspectivas, de resultados. No momento em que esse espaço valorizar a alteridade e a
construção coletiva de diferentes trajetórias, os responsáveis por ele precisam estar preparados
para lidar com a mesma multivocalidade que o ambiente propõe organizar. Nesse ambiente,
diplomas e titulações estão para o conhecimento, para a aprendizagem, para a valorização dos
saberes; não o contrário. É preciso pensar, administrativamente falando, em novas formas de
valorização que permitam a potencialização desse ambiente acadêmico reconfigurado. Lidar
com estruturas flexíveis, produtos resultantes de processos dinâmicos, em que o conhecimento
esteja em primeiro plano e as relações sociais (dentro e fora da instituição) sejam estruturantes
nesse outro ambiente, pede também uma outra postura administrativa.
A docência, como função, conseguirá dar passos na reconfiguração de saberes
quando o próprio ambiente acadêmico estiver estruturado para permitir os avanços
necessários. Nesse sentido, os passos dependem de processos administrativos que sirvam de
suporte para as ações propostas e não como modelo de configuração do ambiente. Contudo,
sem novas proposições que desafiem o sentido de organização tradicionalmente estruturado
ficaremos confinados ao mesmo espaço, composto por lugares de passagem, lugares de
constante deslocamento em busca de objetos de desejo que nos autorizam o movimento no
tempo de um percurso. O espaço social de aprendizagem compromissado com a educação ao
longo de toda a vida precisa ser vivido em processo; não apenas estruturado como modelo.
3.2 EDUCAÇÃO PERMANENTE
A ideia de educação permanente não é nova. A discussão em torno do tema
ganhou maior importância a partir do Século XX, quando a finalidade do ensino,
principalmente o chamado “superior”, parece vincular-se exclusivamente aos fundamentos
que consolidaram a ciência como fonte de progresso e de exclusão. O termo “permanente”
52
aparece, em muitos aparece, em muitos aspectos, como redentor de um processo de
aprendizagem fragmentado e focado no conhecimento tecnológico. Enquanto conceito, o
termo sugere uma complexidade de interpretações cujo valor está justamente na abertura de
múltiplas escolhas; seja quanto ao tempo de formação, quanto ao espectro de conhecimentos
abarcáveis nesse tempo e aos métodos de aprendizagem possíveis.
No anteprojeto “Modelo de Negócio para a Educação Continuada”35, da
Universidade do Sul de Santa Catarina - Unisul, o professor Osvaldo Della Giustina propõe
uma diferença para os termos que qualificam o sentido da educação. Diz ele que permanente
refere-se à “duração em si”; a educação permanente pode ser interrompida e retomada
“sucessivamente através da vida”. Já o termo “continuada” expressa como deve se dar esse
processo, em “curso contínuo, sem interrupção enquanto dure”. Na oportunidade, contudo, a
ideia central tinha em seu entorno os processos de virtualização36 do conhecimento pela
tecnologia; não estava vinculada a um lugar de relações, ainda que pensada como espaço
(virtual) no qual os conhecimentos produzidos pela Unisul seriam disponibilizados para o
mundo. Estava dirigida muito mais a novas modalidades de acesso ao conhecimento gerado
pela universidade do que propriamente ao conceito aplicado à ela.
Da concepção de modelo de negócios, o projeto evoluiu para um documento com
a preocupação de expandir o debate em torno dessa tendência. Coordenado e escrito pelo
professor Mauri Heerdt, então gerente de ensino, pesquisa e extensão da Unisul no Campus da
Grande Florianópolis, o documento intitulado Educar ao longo da vida: a missão e a
contribuição da Unisul para o desenvolvimento de pessoas, de organizações e da sociedade
propõe levar a discussão à comunidade acadêmica. Em síntese, põe em pauta a ideia de que a
educação, como preconiza a missão institucional, deve seguir ao longo de toda a vida humana,
independente de tempo e lugar para isso. E deve integrar o quanto possível todos os níveis de
aprendizagem, processos de formação e métodos de ensino, além de permitir a criação de
novas condições de possibilidade quanto ao acesso e à frequência.
A Educação Permanente é, primeiramente, um discurso relativo à educação em geral, cuja importância na sociedade não é questionada; muito pelo contrário, atribui-lhe um papel primordial e decisivo, seja para adaptar os indivíduos à essa sociedade, seja para transformá-la. Os autores estudados estão de acordo quanto à necessidade, ao papel, à possibilidade de uma educação cuja característica mais eminente é que ela prossegue durante toda vida. Ao consenso relativo sobre
35 O documento foi apresentado aos participantes do Projeto Estratégico com o mesmo nome para fundamentar
as primeiras discussões em 2007. 36 O conceito de virtualização aqui empregado estava muito mais voltado para as alternativas tecnológicas de
ruptura com o espaço físico e o tempo a ele circunscrito.
53
importância da educação, acrescente-se o consenso relativo concernente à sua extensão (GADOTTI, 1991, p.66).
O principal desafio é elevar a proposta a um nível de interpretação que supere a
ideia de projeto. A educação permanente precisa ser entendida como um novo “sentido
praxeomórfico” de universidade. É como “lugar epistemológico de construção” que a
proposta deve chegar. Enquanto projeto, fica confinada ao contexto administrativo de
construção dos meios para se chegar a este fim. E o ambiente gerencial das organizações
contemporâneas perpetuam as concepções de eficácia pela “ordem” do “planejamento criativo
e inovador”; criativo pela projeção e controle das variáveis, inovador pelo volume e eficácia
dos meios, sem mudanças estruturais no processo.
São os rumos pré-traçados por estratégias baseadas na monotonia, na
regularidade, na repetição e na previsibilidade que ainda sustentam as ações ditas criativas e
inovadoras; ironicamente, aspectos incompatíveis com o próprio princípio formativo sugerido
pelas instituições de ensino. No atual modelo, as relações exclusivamente comerciais,
características da sociedade industrial e tecnológica, requerem uma “neutralidade emocional”
típica da convivência com estranhos; indivíduos desvinculados do espaço social
potencialmente aberto mas ainda vazio; espaço rico mas ainda desprovido de conteúdos
relacionados a tempo e circunstância (BAUMAN, 1997).
Nessa perspectiva, as dificuldades traduzem-se também e principalmente nos
modelos disponíveis para oferta de “produtos e serviços” educacionais decorrentes. O
entendimento de currículo ainda está estruturado sobre a ideia de projeto, pressupõe a
intervenção constante no “real” para controle das variáveis previstas, de modo ainda pensado
como no modelo fordista (mesmo que com diferenças evidentes): o entrelaçamento dos
opostos37 ensino e aprendizagem se dá pela intervenção do primeiro sobre o segundo, pela
projeção do primeiro sobre o segundo, pela sobreposição do primeiro em relação ao segundo.
O fato é que ainda há uma cesura que hierarquiza o espaço social acadêmico, no
qual a ideia de aquisição e distribuição de conhecimentos não oferece contiguidade nem
intercâmbio. As críticas ao modelo focam-se na fragmentação do conhecimento; mas é a
37 O entendimento de que ensino e aprendizagem estão em “oposição” um ao outro diz mais respeito à
hierarquização característica da relação de quem ensina e quem aprende. O pressuposto básico dessa “oposição”, entendida como lugares distintos de ocupação no processo de diálogo com o saber, é a própria ordem estabelecida no espaço circunscrito à sala de aula e o tempo planejado pela rotina de ocupação desse espaço. Grosseiramente, a disciplina deve chegar a um determinado lugar na escala de saberes propostos pelo docente; aos discentes resta fazer o esforço de chegar lá e provar que o conseguiram. Há experiências menos ortodoxas em andamento, mas as próprias diretrizes educacionais não são percebidas como possibilidade de transformação desse processo.
54
própria hierarquia estabelecida na aquisição e na distribuição do conhecimento que fragmenta
o espaço de aprendizagem, numa relação entre estranhos em que o conhecimento adquire
valor de troca.
Ainda fruto do modelo fordista, um “lugar epistemológico” específico de
construção de mundo, todos os “produtos e serviços” educacionais que se propõem a um tipo
específico de formação o fazem mais ou menos do mesmo jeito. Os sistemas de controle e
mensuração de desempenho são replicados de tal modo que a qualificação desses “produtos e
serviços” atende aos padrões ditados por “especialistas” em todas as instâncias do sistema
educacional; as respostas a esses padrões ficam enclausuradas nas variáveis passíveis de
controle. A profanação desse ambiente sacralizado por rituais tecnocráticos é um risco que
pode custar o não-reconhecimento ou o descredenciamento de qualquer instituição do sistema.
Contudo, como já vimos, esse tipo de comportamento está muito mais relacionado ao medo
de agir do que propriamente à censura externa.
Desnecessário dizer que do “lugar epistemológico” tradicionalmente ocupado não
há como pensar novas composições curriculares. Os cursos ainda são estruturados pelo viés
do lugar de ocupação do egresso no “mercado”, seus projetos se constituem de espaços
disciplinares delimitados pelo lugar de ocupação dos docentes numa grade de conteúdos
distribuídos por nichos de conhecimento específicos. O projeto de implantação do curso
consiste em, pedagogicamente, unir esses conhecimentos específicos num fluxo de
informações capaz de garantir o “aprimoramento” de “habilidades e competências exigidas”
pelo “mercado” e pela sociedade38. É interessante perceber que, via de regra, pouquíssimos
docentes têm o domínio pleno do currículo em implantação, o que é exigido do egresso
através de estratégias de controle e mensuração de desempenho, intra e extra-institucionais.
Em outras palavras, como preconiza Silva (1999, pp. 148 e 150),
[é] apenas uma contingência social e histórica que faz com que o currículo seja dividido em matérias ou disciplinas, que o currículo se distribua sequencialmente em intervalos de tempo determinados, que o currículo esteja organizado hierarquicamente... É também através de um processo de invenção social que certos conhecimentos acabam fazendo parte do currículo e outros não. (...) Com a noção de que o currículo é uma construção social aprendemos que a pergunta importante não é “quais conhecimentos são válidos?”, mas sim, “quais conhecimentos são considerados válidos (grifo do autor).
38 Ainda que haja uma generalização aqui evidenciada, não há como negar que as discussões sobre projeto
pedagógico, culturalmente, levam em consideração com maior ou menor peso, disciplinas contempladas a partir do campo de domínio do corpo docente. Pode-se discutir a medida, mas não a intenção de garantir o lugar de ocupação docente via projeto pedagógico.
55
A contingência social e histórica, o “lugar epistemológico” de construção desses
processos, também fragmenta as atividades docentes para atender e legitimar lugares de
ocupação no contexto das Instituições de Ensino Superior, especialmente as que dependem de
financiamento privado. A docência fica refém da abertura ou não de cursos, do fechamento ou
não de turmas para a composição de carga horária. E para complementar essa carga horária, as
aulas devem, de preferência em primeiro plano, constituir um rol de atividades que envolve
também a pesquisa e a extensão. Indo um pouco mais adiante, Botomé (1996) traça o que,
tradicionalmente, configura o perfil de docente nas IES:
1. Técnico e especialista em um campo de trabalho;
2. Pesquisador ou cientista em uma área do conhecimento;
3. De nível superior, capaz de ensinar e preparar para tarefas complexas da
sociedade;
4. Administrador de funções as mais diversas no meio acadêmico;
5. Escritor que atende a uma demanda de publicações para manter seu status.
Quanto maior o domínio sobre o volume e a eficácia dos meios que constituem
esse perfil, maior o “capital político” (BOTOMÉ, 1996) que garante o docente no lugar de
ocupação institucional. A distribuição de carga horária se dá em função desse “capital
político”, que depende do reconhecimento nas mais variadas instâncias de poder que
constituem o corpus universitário. Do ensino à pesquisa, há uma escala de valores que
configura o espaço acadêmico; do mesmo modo que um rol de funções operacionais, táticas e
estratégicas identificam o grau de importância do lugar de ocupação no sistema
administrativo.
Em outras palavras, há circunstâncias em que o distanciamento das atividades de
ensino, especialmente o de graduação, em detrimento do tempo para a pesquisa (seja ela qual
for) é sinal de maior status docente no lugar de ocupação do sistema acadêmico. Melhor
dizendo, não basta ao docente demonstrar competência nas tarefas para as quais está
designado; tal competência deve estar legitimada pelo próprio sistema, de acordo com as
normas e preceitos determinados pelas instâncias de poder que o compõem. Assim, o volume
e a eficácia dos meios que o docente precisa dominar dependem de sua participação como
“usuário” do sistema, não como protagonista. Obediência às normas e aos critérios de
avaliação dela advindos faz da docência também um trabalho tecnocrático, mensurável pela
quantidade de ações decorrentes.
56
Os fios que tramam e tecem a docência vão produzindo efeitos, talvez até monumentos que indicam crenças, convicções e valores. Disso parece que não é possível escapar. O que, contudo, deve ser enfrentado é uma lógica que se produz a partir dessas teias, qual seja uma lógica do déficit. No debate mais amplo sobre formação do(a ) professor(a), parece sempre estar presente essa ideia de que ele(a) deve à instituição alguma coisa. Pode ser tempo, dedicação, esforço, títulos, planejamentos, ementas, obediência. Penso que dessa lógica é preciso se libertar, para poder pensar de uma forma nova as políticas de formação, certamente mais abertas e arejadas, para poder considerar os diferentes tipos e estilos de docentes sem aprisioná-los em um formato único definido como “docente institucional”. Olhar para essa paisagem maior implica estar disposto a dar um outro lugar para o(a) docente, construir uma dimensão estética que consiga reencantar os sujeitos implicados pelo ambiente acadêmico e pelo processo de aprendizagem, para que possam, coletivamente, mobilizar-se para a busca de um compromisso novo com a sociedade no que diz respeito à educação (HARDT, 2004, p.10) - grifos da autora.
Hardt (2004) chega a essa conclusão depois de analisar o espaço da sala de aula
em suas relações. Como espaço social, esse ambiente ainda é carregado de ordem e
solenidade, com “sistemas normativos, regulamentos, diplomas, portarias e pareceres”. Nesse
ambiente o docente não reconhece outros modos de administrar o espaço que não o de
obediência aos ditames. Para a pesquisadora, em função dos protocolos aos quais os docentes
tendem a seguir não há, muitas vezes, lugar privilegiado para o aprofundamento dos
conteúdos; e a docência, segundo ela, não dá conta dos discentes “interessados, cheios de
curiosidade e com desejo de aprender”. Mas o que caracteriza o espaço social na sala de aula?
Com o reconhecimento de algumas transgressões pontuais diante da “política de verdades”
institucional, a pesquisadora enumera algumas tendências básicas quanto aos “fios que tecem
a docência”:
1. Esquemas lineares e geométricos de distribuição de saberes;
2. Negação da ambivalência em detrimento do desejo da ordem;
3. Discurso oriundo da ordem institucional;
4. Defesa dos saberes legitimados pela lógica do currículo e pela própria
competência.
Featherstone (2000) nos fala de um desafio ainda mais difícil de superar por conta
de “convenções e pressupostos tácitos que aprendemos a usar sem questionar”. Segundo ele,
“a potencial democratização dos meios de produção e consumo intelectuais” e a
“dessacralização do conhecimento intelectual e acadêmico”, hoje vistos como uma ameaça,
pode ser a oportunidade de quebrar “o ciclo da aprendizagem e da pesquisa” fragmentadas.
Sugere, então, que outras formas de expressão do conhecimento científico podem amenizar o
processo de exclusão decorrente dos ideais elitistas do ensino superior. Para ele, o grande
57
dilema é criar abertura para formas “pós-escritas” e “pós-simbólicas” de expressão no
contexto da docência.
De fato, o sistema ainda resiste em aceitar trabalhos acadêmicos de iniciação
científica expressos em textos com material sonoro e visual incorporados, por exemplo. Na
concepção de Featherstone (2000) “desenvolver habilidades de editar, de desenhar, de
manusear imagens, filmes e música assim como textos” será condição primordial no processo
de aprendizagem, desde que haja o cuidado para que seus resultados não fiquem circunscritos
a um “trivial edutenimento39”. Desnecessário dizer que outras formas de expressividade
podem permitir a fruição a um espaço estético diferente do que fundou a racionalidade técno-
científica.
Pode ser que alunos elaborando uma tese de doutorado não escrevam 80 mil palavras e não entreguem um grosso volume encadernado, mas entreguem, sim, um disquete ou CD ROM que contenha material multimídia. Parte da habilidade que eles terão de demonstrar será de modelar, fazer modelos multimídia que iluminem a matéria escolhida a partir de uma série de direções e apresentem uma “resposta” multidimensional à pergunta que eles fizeram a si mesmos, tanto num modelo feito de texto como de imagens. A tese torna-se algo no qual podemos literalmente, ou devemos dizer simultaneamente, entrar. Ela é construída num espaço visual, num ambiente ou mundo virtual, no qual dados textuais, imagísticos, orais e musicais são incorporados (FEATHERSTONE in SANTOS FILHO, 2000, pp. 92 e 93).
Esse desafio não diz respeito apenas à sala de aula e suas relações de
aprendizagem. Partindo do princípio de que a instituição universidade se diferencia das
demais instituições sociais pela capacidade de transformar em patrimônio coletivo os
múltiplos conhecimentos existentes, Botomé (1996) entende que ensino, pesquisa e extensão
são atividades de um fazer humano que dá sentido e significado a esta instituição específica.
Estrutura-se numa práxis que reconhece os múltiplos fazeres, não apenas o lugar de ocupação
dos espaços estruturados para esse fim.
Em suma, a socialização do conhecimento científico é pensada, tradicionalmente,
pela divulgação de projetos inovadores, recém-descobertos. E a divulgação de ciência vibra
na mesma frequência da hierarquização do espaço de aprendizagem; ambas estão para um
lugar de ocupação antecipadamente destacado em relação aos demais. As premissas expostas
por Botomé (1996) abrem uma outra perspectiva para a docência que insere no fazer humano
e nas relações do espaço social de aprendizagem as condições de possibilidade. A extensão
universitária é resultado de ensino e pesquisa comprometidos com o espaço social e a exigida
indissociabilidade é inerente a esse compromisso.
58
Fica evidente que as concepções de Certificação Processual e de educação
permanente não se pautam por lugares de ocupação pré-estabelecidos. Talvez a mudança mais
paradigmática esteja na dinâmica dos fluxos pelos quais fluem os processos que constituem a
identidade das Instituições de Ensino Superior. O espaço social hierarquizado pelos níveis de
conhecimento e de resposta aos problemas que nos afetam deve ser substituído. Musso (in
PARENTE, 2004) alerta, entretanto, para a existência de um espaço social constituído de
conexões permanentes em que os “passantes” estão sempre mergulhados em fluxos. Nele
também não há afetividade, ainda que as possibilidades de relação estejam sempre ali,
disponíveis.
É necessário que se configure o espaço; que suas dimensões, mesmo que tênues,
expressem uma área quantificável, possível de perceber. Um espaço social hierarquizado tem
um mapa pronto, projetado por especialistas; um espaço social aberto precisa ser cartografado
e suas fronteiras negociadas, sobrepondo-se os vários “níveis de terreno” numa só
configuração. O primeiro é dado, o segundo é vivido.
Se, como diz Latour (in PARENTE, 2004), o “domínio erudito” não é exercido
diretamente sobre os fenômenos, mas “sobre inscrições que lhe servem de veículo”, a
educação permanente ainda depende de estruturas factíveis que lhe sirvam de parâmetro. E
esse é o objetivo da Certificação Processual: ser uma das possibilidades decorrentes desse
outro conceito de educação. As justificativas para esta pretensão já foram descritas em
cenários que podem ser discutidos quanto à dimensão; negados, jamais.
Portanto, as leis, os aspectos políticos e econômicos e, sobretudo, as demandas
sociais identificadas são contemporâneas desses ideais transformadores no campo da
educação. A Certificação Processual depende, então, de recursos que mapeiem
constantemente o espaço social em suas relações. Academicamente, a fruição para essa nova
dimensão passa pelo entendimento de conceitos que já sustentam o atual modelo mas que
podem ser reinterpretados sem ferir as leis que lhes dão legitimidade. E tais conceitos devem
nortear ações que promovam o equilíbrio entre o “capital intelectual” que compõe o espaço
social acadêmico e o “capital político” dos lugares de ocupação numa nova escala de valores.
39 Palavra cunhada para designar a junção de educação com entretenimento.
59
3.3 ÁREAS DE CONHECIMENTO, CAMPOS DE SABER E TRAJETÓRIAS40
ACADÊMICAS
Pautada pelos ideários de flexibilidade, interdisciplinaridade e pela
democratização do acesso ao ensino de nível superior, a Lei 9.394 (Lei de Diretrizes e Bases)
instituiu em 1996 o termo campo de saber como pressuposto para a criação de cursos de
complementação de estudos e de formação específica, entendidos como não acadêmicos. Um
dos objetivos mais evidentes era a promoção de acesso ao sistema para pessoas com outros
interesses, que não os de formação acadêmica tradicional (seja por opção ou por falta de
recursos). A ideia de campo de saber foi claramente usada para estabelecer uma diferença em
relação às áreas do conhecimento humano, consolidadas como base para as diretrizes dos
cursos de graduação e stricto sensu, e de forte valor acadêmico.
A diferença conceitual entre áreas de conhecimento e campos de saber está
evidenciada no parecer da Câmara de Educação Superior 968/98. O termo área do
conhecimento “é nomenclatura abreviada” de um conceito já presente na Lei Universitária
5.540, de 1968, ainda em vigor. O artigo 11 da Lei Universitária estabelece os critérios de
organização da universidade; a alínea “e” do artigo citado aponta como critério “a
universalidade de campo, pelo cultivo das áreas fundamentais do conhecimento humano,
estudados em si mesmos ou em razão de ulteriores aplicações e de uma ou mais áreas técnico-
profissionais” (grifos nossos). Foram sucessivas as regulamentações que, gradualmente,
deram sentidos novos ao termo. A mais recente está expressa na Resolução 2/94, do já extinto
Conselho Federal de Educação (CFE).
No artigo 7, parágrafo 3, inciso 4, o documento fundamenta que as “áreas
fundamentais do conhecimento humano compreendem as ciências matemáticas, físicas,
químicas e biológicas, as geociências e as ciências humanas, bem como a filosofia, as letras e
as artes”. Note-se que os termos filosofia, letras e artes estão destacados, como forma de
evidenciá-los num contexto em que as ciências consolidam a base da classificação. As áreas
de conhecimento, portanto, fundamentam-se pelo viés epistemológico, de cunho científico, e
que foram tomando forma ao longo da implantação do sistema de ensino superior no Brasil.
40 O termo trajetórias ganha sentido neste trabalho quando associado à ideia de movimento resultante das
escolhas individuais em relação aos diferentes itinerários disponíveis no momento da decisão. As trajetórias são, portanto, os lugares percorridos nos espaços propostos pelos itinerários.
60
Interessa compreender, contudo, que o conhecimento humano também é composto pelo
conhecimento científico; não só por ele.
Atualmente, os sistemas de classificação são utilizados para fins e com
metodologias diferentes. O instituído pelos Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq), Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (CAPES) e Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP) reconhece, a partir do
cenário proposto pelos projetos de pesquisa que engendraram os atuais “produtos e serviços”
acadêmicos, oito grandes áreas, divididas em áreas e subáreas. Uma nova tabela foi divulgada
em 2005 e atualmente é entendida como “versão preliminar”41. A comunidade científica
permanece no debate quanto aos parâmetros que levaram à comissão de especialistas
composta pelas três agências de fomento a fazer a proposição.
Para efeito de estudo da nova tabela, área é a unidade básica de classificação. É
pelo “conjunto de conhecimentos inter-relacionados, coletivamente construídos, reunido
segundo a natureza do objeto de investigação com finalidades de ensino, pesquisa e
aplicações práticas” que o sistema se configura por áreas de conhecimento. A “aglomeração
de diversas áreas de conhecimento, em virtude da afinidade de seus objetos, métodos
cognitivos e recursos instrumentais refletindo contextos sociopolíticos específicos” configura
as grandes áreas, cuja finalidade é facilitar a visualização das 84 unidades hoje identificadas,
somadas as tabelas da CAPES e do CNPq.
Por sub-área entende-se a “segmentação da área do conhecimento, estabelecida
em função do objeto de estudo e de procedimentos metodológicos reconhecidos e amplamente
utilizados”; enquanto especialidade é a “caracterização temática da atividade de pesquisa e
ensino. Uma mesma especialidade pode ser enquadrada em diferentes grandes áreas, áreas e
sub-áreas”42. Pelas definições, pode-se apreender que o sistema leva em consideração
singularidades acadêmicas pautadas pela organização do conhecimento científico.
Já a definição de campo de saber aparece na página 8 do parecer CES 968/98:
“um recorte específico de uma área do conhecimento, ou de suas aplicações, ou de uma área
técnico-profissional ou, ainda, uma articulação de uma ou mais destas”. Os documentos que o
adotam estão relacionados à proposição de cursos sequenciais ou de lato sensu, sobretudo
especialização. Tratados como complementares, de menor duração e em regime especial de
oferta, eles têm por base campos de saber justamente para que não se permita a criação de
41 Disponível em http://www.memoria.cnpq.br/areas/cee/proposta.htm#doc. Acessado em: 30 jan. 2008. 42 Disponível em http://www.capes.gov.br/avaliacao/tabela-de-areas-de-conhecimento. Acessado em 23 fev.
2009.
61
cursos com esta característica em substituição aos de graduação. Suas certificações e
diplomas, portanto, têm menor “valor” acadêmico, ainda que reconhecidos como de nível
superior. Não há sistema de classificação previsto para os campos de saber, justamente pela
sua dinâmica de articulação.
Um “campo de saber” pode ser entendido como uma proposta curricular que esteja inserida no corpo de saberes de uma determinada área do conhecimento, ou como uma proposta interdisciplinar que utilize conhecimentos buscados em diferentes áreas mas que podem compor um conjunto articulado e sistemático para a formação acadêmica e profissional. Se pudéssemos fazer uma analogia simplificadora, poderíamos afirmar que um “campo de saber” é um subconjunto de saberes advindos de uma ou mais áreas do conhecimento, que são reconhecidas tradicionalmente nos cursos de graduação (MARTINS, 2004, p. 54).
Relacionar áreas de conhecimento e campos de saber depende das possibilidades
de configuração ao alcance. Genericamente, esses conceitos estão à margem das discussões
sobre a elaboração de “produtos e serviços” acadêmicos. Quando muito, são utilizados para
definir um lugar de ocupação para as proposições educacionais. Essa vertente taxológica,
posteriormente, consolida os processos de avaliação quanto às proposições em andamento.
Por princípio, um curso de Comunicação já tem seu lugar definido no sistema de
classificação. E é a partir dele que os “produtos e serviços” a serem propostos devem iniciar
suas discussões.
Essa lógica cristaliza as proposições sempre num mesmo padrão quantificável que
facilita posteriores avaliações de reconhecimento e recredenciamento. Além disso, estabiliza
os critérios e métodos de ensino e pesquisa numa economia de valores cuja moeda de troca é
o “uso” do sistema. Ressalte-se, no entanto, que as próprias normatizações vinculam a oferta
de cursos superiores obrigatoriamente aos de graduação. Sem cursos de graduação
reconhecidos, as IES não são autorizadas a ofertar cursos superiores. O que parece ser um
cerceamento representa, analisado sob outra perspectiva, a necessidade de integração entre
certificações, mesmo quando a serviço do controle e das normatizações dogmáticas. A ironia
do sistema reside na sua relação de forças e nas interpretações tecnocráticas dos debates e das
leis em educação.
Por isso mesmo, no âmbito desta análise se quer desviar o olhar para outros
horizontes disponíveis no mesmo ponto de observação, mas que exigem esforços de
movimento. Áreas de conhecimento e campos de saber são contíguos e intercambiáveis. As
definições consolidadas pelas instâncias de regulação educacional não deixam quaisquer
dúvidas quanto a isso. Conhecimento científico, não somente a racionalidade subjacente, e
62
múltiplos saberes estão um para o outro; não são esquemas paralelos de formação.
Conhecimento é um termo fortemente vinculado à ciência e seus recursos de inscrição na vida
contemporânea. Suas áreas delimitam uma certa medida, um certo espaço de atuação.
Pensada assim, uma área de conhecimento se desenvolve pelo aprofundamento e
não pela abertura de campo que proporcionaria uma amplitude de espaço a percorrer. Já o
termo saber é mais abrangente; conhecimentos, competências, habilidades e atitudes (para
ficarmos em concepções reconhecidas academicamente) são abarcáveis por ele. Vinculado à
ideia de campo como terreno a percorrer, nele se pressupõe o ato de escolha pela delimitação
do espaço. Os campos de saber seriam, então, campos abertos e ainda não profundamente
delimitados nem reconhecidos pelas epistemologias tradicionais que fundam o conhecimento
científico.
A configuração de um espaço social de aprendizagem passa pelo reconhecimento
das delimitações já aferidas, mas não deve deixar de lado os campos ainda não percorridos;
campos que não devem servir apenas como lugar de passagem. Essa mudança de concepção é
importante porque diversifica o ambiente sobre o qual os “produtos e serviços” educacionais
se originam. Na estrutura atual, áreas de conhecimento têm um valor acadêmico infinitamente
superior aos campos de saber. Pela própria lógica de enquadramento dos cursos oriundos
nesse contexto é possível perceber que não há vínculo entre os níveis de formação propostos.
O sistema ainda se reconhece cumulativo, linear, em que o aprendizado se dá pela
exigência de requisitos em sequência e com espaços próprios e regulados para cada um dos
níveis de aprendizagem. A Certificação Processual propõe um outro ethos acadêmico, em
que múltiplos saberes estejam disponíveis em campos nos quais as áreas de conhecimento
sejam delimitadas pelo movimento de percorrê-los. Esse movimento, inscrito nas vontades de
presença e de construção desse espaço social, pressupõe a percepção de outras dimensões cujo
percurso se insere em novas paisagens, seja na visão dos possíveis “itinerários” ou no sentido
mesmo das “trajetórias” decorrentes.
63
3.4 ÁREAS DE FORMAÇÃO, CAMPOS DE ATUAÇÃO E ITINERÁRIOS43
OCUPACIONAIS
O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira - INEP
- usa um catálogo internacional44 para classificar as áreas de formação e treinamento
reconhecidas pelo Ministério da Educação. A lógica de composição deste outro sistema tem a
ver com as disponibilidades de oferta nos níveis de graduação e lato sensu. O INEP tem como
base o modelo de negócios estruturado pelos lugares de ocupação na esfera do trabalho,
organizado por áreas gerais, áreas detalhadas, programas e/ou cursos. Ainda que haja uma
tentativa de aproximação com a tradição epistemológica de organização científica, a tabela de
áreas de formação e treinamento evidencia a complexidade do sistema educacional brasileiro,
em que é a graduação que habilita para atividades profissionais específicas. No contexto da
Certificação Processual, os lugares de ocupação caracterizadas por atividades profissionais
específicas são demarcações dentro de um determinado campo de atuação, cujas dimensões
são muito mais amplas.
Um ethos mercantil ainda esboça as concepções do chamado mundo do trabalho
na atualidade e é legitimado pelo sistema educacional nas propostas de formação, mesmo a
acadêmica em grande parte. De acordo com Moraes (2006), os ideários desse ambiente estão
voltados para a resolução de problemas econômicos com base na competitividade, cujo
nascedouro está numa concepção de educação entendida como permanente em que o
processo de aprendizagem “instrumentaliza a vida” pela ênfase na mera “adaptação funcional
à economia e ao mercado”. O atual mundo do trabalho imputa ao indivíduo a responsabilidade
de ingressar e manter-se no sistema produtivo e na vida econômica ativa.
Essa característica reforça-se no sistema de ensino superior quando pautado na
racionalidade econômica da empregabilidade e na competitividade por lugares de ocupação
43 Por itinerários compreende-se a indicação dos caminhos possíveis numa dada circunstância. São as
perspectivas de movimento em busca de lugares a percorrer. 44 A Classificação Internacional Padronizada da Educação (ISCED - International Standard Classification of
Education) é um sistema organizado pelo Gabinete de Estatísticas da União Europeia - EUROSTAT, em parceria com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura - UNESCO, e a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico - OCDE. No Brasil, as 24 áreas de formação estão estruturadas em consonância com a classificação das áreas de conhecimento usadas para fomento em pesquisa e produção científica. Contudo, o catálogo, usado pelo Ministério da Educação para fins de Censo da Educação Superior e para o reconhecimento dos cursos de graduação é também uma referência para cursos de capacitação e treinamento em diversas áreas. Para cursos superiores, contudo, são usadas apenas as áreas de formação como referência.
64
tanto no processo de formação quanto no campo de atuação. As “trajetórias” decorrentes
desse ambiente não levam em consideração itinerários mais cooperativos, consolidados por
interesses sociais de desenvolvimento e por relações preocupadas com direitos coletivos para
além das garantias genéricas que condicionam os direitos individuais. A busca por ensino de
qualidade nessas condições resume-se à manutenção dos investimentos em lugares de
ocupação já consolidados.
Complexo, o mundo do trabalho dá pistas interessantes. Por um lado, evoca as
dificuldades de adaptação dos jovens de hoje ao ambiente fortemente hierarquizado de grande
parte das organizações; dificuldade apressadamente entendida como tendência à
indisciplina45. De outro, aponta o forte vínculo da formação de nível superior com garantias
de empregabilidade e melhores condições de vida46. Tais aspectos da cultura contemporânea
reforçam a concepção simplista de que grande parte da população não está preparada para
enfrentar os desafios da “sociedade do conhecimento” e para isso precisa ser
instrumentalizada. Mas os próprios critérios de mensuração e avaliação desse processo são
discriminatórios: a empregabilidade consolida-se na constatação de quem tem ou não
instrumentos para “competir no mercado” e, portanto, a falta de trabalho recai sobre a
incompetência, um conjunto de atributos individuais necessários apenas para cumprimento de
tarefas específicas.
Tratar o mercado como um espaço a ser preenchido, somente, sugere
deslocamentos individuais em busca de lugares de ocupação. Mas, como afirma Callon
(2004), “não se entra em um universo estruturado, que se impõe a todos” quando se busca
ocupações no mercado. Essa visão linear de causa e efeito é o corolário de uma cisão
historicamente engendrada, fruto de um processo econômico cumulativo no qual formação
45 No artigo O futuro do emprego, publicado no jornal A Folha de São Paulo em 27 de setembro de 2009, o
colunista Gilberto Dimenstein analisa pesquisa feita pela psicóloga Sofia Esteves, presidente da Cia. de Talentos, responsável pela entrevista de pretendentes a postos de alta qualificação em grandes empresas. Preocupada com o alto índice de vagas não preenchidas e de desistência do emprego num curto espaço de tempo, a psicóloga se propôs a ouvir 31 mil universitários. Como resultado, o estudo revela que os jovens “não entendem o que as empresas pedem” e não se sentem satisfeitos com o ambiente que não proporciona qualidade de vida. Em suma, quem procura um ambiente mais propenso à criatividade é visto como alguém que tem dificuldades de reconhecer a hierarquia. Prazer e incapacidade de lidar com a disciplina estão no centro do antagonismo. Como conclusão, a psicóloga salienta que deve haver mudança de postura em ambos os lados; os jovens devem mudar de atitude em relação ao trabalho e as empresas terão de mudar o ambiente.
46 Pesquisa apresentada no 11° Fórum do Ensino Superior Particular Brasileiro (FNESP) em 24 e 25 de setembro de 2009 aponta que 12% dos alunos entrevistados esperam acesso ao mercado de trabalho quando escolhem a instituição em que estudam. Com 9% vem a busca por formação profissional e por um futuro melhor, com igual percentual. Foram ouvidas 1.682 pessoas, entre alunos, ex-alunos, professores, pais de alunos e ex-alunos, gestores, funcionarios, população do entorno, autoridades municipais e a mídia no estado de São Paulo. Significativa é a associação expontânea que 15% desse universo faz entre ensino superior privado e emprego e profissão.
65
geral e formação profissional não se conjugam. Compreender que o “mercado é apenas o
resultado desse processo de aprendizagem e de formatação” passa por dimensões desprezadas
no âmbito educativo, voltado exclusivamente para o mercado ou exclusivamente para as
concepções acadêmicas.
Se é mesmo factível a constatação de que educação e trabalho são processos
concomitantes e que trabalho e emprego já não oferecem garantias de contiguidade, não se
pode continuar estruturando espaços de aprendizagem que não discutam e elaborem novas
formatações, novos “modelos de negócio” que permitam um outro tipo de ocupação. Portanto,
quaisquer circunstâncias relacionadas ao mercado de trabalho devem fazer parte do processo
formativo; não como espaços a serem percebidos e preenchidos, mas como itinerários a serem
construídos.
Campos de atuação compõem-se de atividades específicas reconhecidas pelas
áreas “profissionais” como habilidades a serem construídas para gerar competências capazes
de ocupar os espaços entendidos como dados. Mas as trajetórias ocupacionais mostram
itinerários distintos daqueles planejados e projetados na origem. Há uma mobilidade quanto
às ocupações que caracterizam esses campos e que, portanto, não pode ser desconsiderada; ao
contrário, são os critérios que permitem essa mobilidade, instigando mudanças de itinerário,
que contam mais no processo aqui descrito.
Os fundamentos técnicos necessários para o preenchimento dos lugares de
ocupação específicos num campo de atuação só ganham sentido quando percebidos na
dinâmica social das relações que fundam esses espaços. Tais singularidades sociotécnicas são
fundamentais para uma composição de certificações em processo porque consolidam o
movimento de ocupação e valorizam saberes que transcendem aspectos meramente
disciplinares.
Um “lugar epistemológico” que se proponha como ambiente aberto a constantes
negociações, capaz de aproximar itinerários diferentes quanto a perspectivas de ocupação e de
propor trajetórias ocupacionais que se orientem e sejam orientadas por essas singularidades
sociotécnicas, esse lugar se consolida nas atividades específicas que constituem o chamado
mercado de trabalho, mas também, e sobretudo, no sentido de inserção política quanto às
dinâmicas de relação que definem os chamados modelos de negócio dessa economia de
mercado.
No âmbito da formação, é importante propor reflexões sobre o que se pode fazer
diante das necessidades de mudança e o que habitualmente se faz. Esses saberes
“praxeomórficos” são geradores de fronteiras tênues entre os campos de atuação diversos, não
66
estão classificados em taxonomias acadêmicas ou currículos profissionais e, por isso mesmo,
emergem como necessários para compor os critérios de formação, visto que instigam, por
princípio, uma ruptura em relação às instâncias já consolidadas do conhecimento científico e
às trajetórias ocupacionais já legitimadas pela tradição. É de uma “epistemologia da prática”
(TARDIFF, 2000), que os itinerários ocupacionais em Comunicação, nosso objeto de análise,
se ressentem, justamente porque seus processos formativos são praticamente estáticos se
comparados à mobilidade ocupacional em seus campos de atuação.
67
4 COMPONENTES CURRICULARES EM COMUNICAÇÃO
A área de Comunicação é concebida no ensino técnico de nível médio para
ocupar-se “da produção, da armazenagem e da difusão ou da distribuição, em multimeios ou
multimídia, de informações, ideias e de entretenimento” 47. Para tanto, organiza-se em termos
curriculares a partir de três pilares: as Ciências Humanas fundamentam o “nível de qualidade
e o crivo ético” da atividade; as Linguagens e Códigos, de onde a comunicação é considerada
herdeira direta, dão os alicerces instrumentais; e as Ciências da Natureza, os “aparatos
tecnológicos disponíveis”. Há uma gama bastante ampla de conteúdos a contemplar em cada
um dos pilares: dos estudos de língua e literatura, passando pelas artes, às disciplinas clássicas
de formação geral, com destaque para sociologia e filosofia, até os estudos de física,
considerados de fundamental importância para o entendimento dos recursos tecnológicos.
As diretrizes determinam que a educação profissional na área “deve,
preferencialmente, centralizar seus desenhos curriculares no desenvolvimento pleno de
competências significativas para o processo produtivo, independente da forma como a
organização do trabalho as reúna em títulos ocupacionais” (grifos nossos). Inovações
tecnológicas, incertezas quanto ao futuro, mudanças culturais no mundo do trabalho,
formação integral, “convergência profissional”, profissionais “multitarefas” ou “polivalentes”,
os conceitos estão todos explicitados no documento usado como referência para a elaboração
de cursos e constituem os argumentos quanto ao que se espera das instituições que os
elaborem.
O cenário desenhado pelo documento sugere conteúdos que sustentem visão
intersemiótica e multimidiática; práticas pedagógicas compatíveis com as tecnologias de
produção; debates sobre o impacto das tecnologias na era da informação; espaços de
discussão, ensaio e vivências laboratoriais para inovação e redefinição de processos; fluência
no uso de softwares avançados; leitura e interpretação, comunicação oral e inglês.
Seis grandes funções estruturam o processo de formação profissional no ensino
técnico de nível médio: criação, planejamento, produção, pós-produção, distribuição e
exibição/veiculação, e , por último, direção e gestão. Outras subfunções estão relacionadas e
47 As concepções estão expressas nos Referenciais Curriculares Nacionais da Educação Profissional de Nível
Técnico para a área de Comunicação, publicado pelo Ministério da Educação em 2000. Disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=16463. Acessado em: 13 fev. 2008.
68
distribuídas de acordo com suas características e habilidades necessárias. Essa divisão
funcional propõe-se a representar os campos de atuação com indicações para itinerários
formativos que são igualmente percebidos no ensino de nível superior.
O Ministério da Educação estuda proposição de alinhamento dos cursos de nível
médio com os de graduação tecnológica a partir de um cadastro nacional único para cursos de
educação profissional no sentido de aproximar os níveis de formação - nível médio e
graduação tecnológica - por eixos estruturantes. Nos catálogos de graduação tecnológica
organizados pelo MEC atualmente dois eixos estão diretamente relacionados com a área de
Comunicação: o de informação e comunicação e o de produções culturais e design.
Paradoxalmente, os dois eixos tratam de itinerários específicos, ainda que
complementares, e ilustram bem a divisão oriunda do caráter funcional de formação para o
mercado. O eixo de informação e comunicação reúne cursos com objetivo de desenvolver
competências para a geração de bases tecnológicas, de suportes técnicos para a comunicação,
as chamadas Tecnologias de Informação e Comunicação; já o de produções culturais e design
objetiva desenvolver competências técnicas para a geração de conteúdos comunicacionais
com base nos suportes já desenvolvidos. Antes da vertente tecnológica, o ensino de
graduação, tradicionalmente em bacharelados, na área primava pelo humanístico social da
comunicação, pelos usos sociais dos elementos que a constituem e pelas influências culturais
provocadas pelas transformações nos processos comunicacionais de grande escala. Os
avanços da Ciência e da Tecnologia, contudo, têm fomentado um amplo debate quanto às suas
premissas socioculturais.
É nesse contexto que os estudos em comunicação ganham importância. Os
itinerários formativos inerentes a esta área construíram uma trajetória acadêmica rica em
diversidade quanto aos fundamentos científico-tecnológicos; e os itinerários profissionais,
igualmente, a consolidam como um vasto campo de atuação, ainda mais abrangente em
função do acesso cada vez maior aos meios de produção e distribuição/veiculação. A
graduação na área precisa acompanhar a dinamicidade de seus campos de atuação sem perder
a profundidade no processo de geração e socialização de conhecimentos. O dilema é antigo,
mas as perspectivas decorrentes são ricas em oportunidade por todos os aspectos já
relacionados neste trabalho. Uma outra arquitetura curricular, combinando múltiplas
certificações e aproximando diferentes itinerários torna-se não só possível como necessária.
69
4.1 ESPAÇO SOCIAL DE APRENDIZAGEM
Enquanto arquitetura curricular, a Certificação Processual em Comunicação
configura-se num espaço social de aprendizagem que reconhece na educação permanente as
possibilidades de aliar fundamentos científico-tecnológicos e socioculturais, subjacentes às
trajetórias acadêmicas e seus itinerários formativos, com fundamentos sociotécnicos
provenientes dos campos de atuação, característicos das trajetórias ocupacionais e seus
itinerários sociais e técnico-profissionais. Por espaço social entendemos os âmbitos intra e
extra-institucionais. Na medida em que a universidade põe-se a mediar signos, sujeitos e
objetos histórico-culturais com o intuito de transformar conhecimento em condutas
significativas, de mobilizar seus recursos e valores em prol de respostas às necessidades da
sociedade, tais ações já estão na esfera social.
Esse compromisso, quando efetivado na relação do ensino com a aprendizagem,
tende a diminuir os espaçamentos cognitivos, estéticos e ético-morais entre universidade e
sociedade. Esse espaço social tende a ser mais afetivo quando os objetivos de aprendizagem
inerentes a ele são coletivamente construídos, valorizam o movimento na troca de
experiências e aproximam itinerários formativos e técnico-profissionais, para além do
treinamento e da capacitação como exigências funcionais dos lugares de ocupação no mundo
do trabalho.
Não se quer, com isso, desvalorizar a formação técnico-profissional. Pelo
contrário. O espaço social de aprendizagem preocupa-se, justamente, com a valorização dessa
formação a ponto de discutir tendências, buscar alternativas e avaliar o modelo econômico
que sustenta os lugares de ocupação e suas exigências. Trazer à tona as tramas que tecem as
relações socioculturais e sociotécnicas, estruturantes do espaço social em que vivemos, é de
suma importância não só para desestabilizar os mitos que a própria Ciência e suas verdades
constroem, mas para estabelecer um outro patamar de escolhas quanto às trajetórias
acadêmicas e ocupacionais em debate. Ciência e tecnologia são instrumentos nesse espaço
social em que a mediação de signos, sujeitos e objetos histórico-culturais sugere relações mais
afetivas, consubstanciadas na autonomia e na força de uma burocracia a serviço da criação, de
uma organização reflexiva. Tanto quanto as técnicas e os saberes que as orientam.
Entende-se que o currículo corporifica as relações sociais (SILVA, 1996) e, por
isso mesmo, precisa estar aberto a novos mapas culturais, cartografias em processo. Entre a
70
cultura engendrada a partir dos meios impressos e a que responde aos meios audiovisuais e
aos computadores há um sujeito diferente, menos fixado em rígidos padrões morais, mais
horizontalizado em suas relações e aberto a múltiplos estímulos e experiências. Esse “eu”
característico da subjetividade humana assume imagens “multiformes, heteróclitas,
descentradas, instáveis, subversivas” (SANTAELLA in LEÃO, 2004) diante do cenário de
incertezas e do mal-estar em relação às crenças e às perspectivas. Diferentes capacidades e
habilidades são oriundas desse novo contexto, que pede vontade de articulação, mais que
transmissão de conteúdos.
Ensinar nesse espaço é, sobretudo, aprender a lidar com a multiplicidade e com o
movimento constante na construção e na socialização do conhecimento. São as capacidades,
as habilidades para lidar com a vida e o mundo do trabalho em diferentes contextos que
importam. Sendo assim, é preciso respeitar também as trajetórias individuais, singulares. Os
subprodutos acadêmicos específicos, traduzidos em cursos e programas, não têm relação
biunívoca com as atividades específicas características dos campos de atuação em seus
diferentes ramos técnico-profissionais. As singularidades científico-tecnológicas e
socioculturais que delimitam as áreas de conhecimento não se relacionam diretamente com as
singularidades sociotécnicas das áreas profissionais. Portanto, é preciso assumir no espaço
social de aprendizagem que aproximar essas diferenças constitui-se numa das forças
geradoras dos itinerários em projeto e das trajetórias efetivamente realizadas. Dizendo de
outro modo, há a necessidade de se educar para a mudança e a incerteza (BERHEIM e
CHAUÍ, 2008). É para as possibilidades que a educação contemporânea existe.
Diante desse quadro, a avaliação ganha em importância conceitual. Não estamos
falando de aferições conteudistas, definidas por uma escala de valores nem sempre claras nos
objetivos disciplinares e disciplinadores. “A avaliação autêntica é uma utopia e ela tem essa
existência paradoxal: é inatingível, mas não podemos parar de buscá-la” (BLIKSTEIN, 2006,
p. 19). Capacidades e hablidades, quando postas à prova, impõem uma complexa rede de
interpretações sobre os resultados obtidos em associação com a compreensão do processo de
mobilização dos recursos necessários. Fazer e compreender estão em escalas de valores
diferentes. Nesse sentido, a avaliação no espaço social de aprendizagem não pode ser
concebida sem a avaliação do próprio espaço.
A autonomia na mobilização dos recursos e de valores para alcançar determinados
horizontes propostos em trajetórias específicas está diretamente relacionado com a
organização do espaço em que o processo se desenvolve. A avaliação está em reconhecer as
fronteiras entre o proposto e o realizado. E fronteiras não são mais limites entre espaços
71
distintos; são, antes de tudo, espaços de movimento entre lugares significativos para a
aprendizagem.
A consolidação do espaço social de aprendizagem tem, então, duas concepções
elementares e ilustrativas. Por um lado, pressupõe uma estrutura de sinapses, conexões de
saberes que se articulam para configurar itinerários formativos e técnico-profissionais e
efetivar trajetórias acadêmicas e ocupacionais. Tais conexões dependem, por outro lado, de
relações sinestésicas em que múltiplas experiências e percepções componham o sentido dos
itinerários e das trajetórias em percurso.
Sinapses e sinestesias são figuras de linguagem de um processo educativo focado
na autonomia, na organização reflexiva dos processos e resultados e na permanente circulação
por entre as áreas de referência acadêmica, as áreas profissionais, seus campos de saber e de
atuação. Mas representam bem o movimento de circulação no espaço social de aprendizagem,
visto que não admitem isolamento; dependem de um "outro" para efetivarem-se. Está na
alteridade, está no reconhecimento desse "outro" como integrante do espaço em questão o
sentido para as conexões de saberes e as trocas de experiências e percepções não ficarem
reduzidos a fluxos.
4.2 LUGARES DE OCUPAÇÃO, COMPETÊNCIAS E HABILIDADES
Valorizar experiências cognitivas e afetivas num mesmo espaço social tem sido o
desafio contemporâneo das instituições de ensino em todas as instâncias de formação.
Contudo, a tradição disciplinar orientada para a aplicação de fórmulas prontas, explicação de
conceitos dados e de forte vertente conteudista, no sentido do aprendizado pela reiteração e
pela memorização, reduz a aprendizagem à lógica da simples capacidade de expressar os
conhecimentos apreendidos, sem novas contextualizações e significações a partir dos desejos
de quem quer aprender. E, de fato, hoje quem tem a responsabilidade de ensinar, pouco ou
quase nada sabe sobre como se constitui o ato de aprender, mesmo que tacitamente aja como
aprendiz quando, por exemplo, precisa refazer suas estratégias e planos de ensino. O ato de
aprender é, por si só, uma capacidade ou competência a ser desenvolvida no ambiente
acadêmico; ato que pressupõe movimento, desejo, interesse.
72
O ensino por competência tem merecido um amplo debate e é tema controverso
quanto às concepções que o envolvem. O uso semântico do termo varia de acordo com o
campo para o qual oferece designações e, contemporaneamente, tem fortes ligações com as
necessidades eminentemente técnicas dos postos de trabalho característicos de um modelo
econômico de sociedade. Neste sentido, os lugares de ocupação pré-determinados pelo mundo
do trabalho exigem competências funcionais específicas cujo domínio alguém precisa para
responder por ações inerentes a este lugar de ocupação. Na educação, entretanto, é sobre os
lugares de ocupação que se deve pensar; sobre os itinerários de vida, o que inclui a esfera do
trabalho, que se deve desenvolver potencialidades. Ocupar-se de desenvolver o treinamento
para performances específicas é um dos objetos da educação. Isso não significa, porém, que o
ensino por competência seja instrumentalizador e tecnicista.
Etimologicamente, em latim, competere significa pedir junto com, buscar junto
com (MACHADO in PERRENOUD, 2002). De origem comum, competência e
competitividade ganharam sentidos similares pelo uso social dos termos em deferência aos
ditames de uma nova ordem econômica. Sendo assim, no latim tardio prevaleceu o significado
de disputar junto com. Como princípio em educação é ideal que se busque o sentido original
da palavra. Seja como for, o sentido de competência está diretamente associado a um verbo,
designa ação; ações em potencial (MACHADO in PERRENOUD, 2002), se o vínculo aqui
expresso for com itinerários formativos.
A mobilização de saberes para articular os itinerários pessoais com os construídos
coletivamente constitui-se no fundamento para quaisquer trajetórias demarcadas por
certificações que lhes dêem legitimidade. Essas ações em potencial, que dependem de um
conjunto de habilidades em determinados âmbitos, sejam de referência cientifico-tecnológica,
sociocultural ou sociotécnica, podem ser esquematizadas como interfaces elementares para o
processo formativo.
Importa para a concepção de arquitetura curricular a ser proposta indagar
permanentemente, nunca definir, quais ações potenciais interessam à Comunicação, como
área de conhecimento e como campo de atuação, de acordo com as trajetórias, sejam
acadêmicas ou ocupacionais, marcadas pela singularidade dos itinerários que formos capazes
de articular. Os conteúdos são decorrência desse processo. Na medida em que obedeçam aos
critérios estabelecidos em diretrizes estruturantes do sistema educacional e de procedência
institucional, podem ser reconfigurados para dar conta de novos saberes, mais amplos, mais
abertos e encadeados pela busca, sempre coletiva, de respostas aos problemas que nos afetam.
73
Os itinerários personificados dizem respeito aos tipos de recurso e aos valores construídos
nessa trajetória, não ao ato mesmo de mobilizá-los.
A proposta de Certificação Processual tem por base os cursos de graduação.
Toda a estruturação feita aqui parte da consolidação do ensino de Jornalismo e de Publicidade
e Propaganda, habilitações de Comunicação Social, na Universidade do Sul de Santa Catarina.
Mas este é um projeto para a área de Comunicação. Jornalismo e Publicidade e Propaganda,
portanto, compõem uma paisagem e suas diversas trajetórias possíveis. Neste contexto,
propõe-se relacionar competências e habilidades a serem desenvolvidas nas trajetórias
acadêmicas postas como possibilidade. Cada certificação tem seu próprio elenco de
habilidades e competências a trabalhar e a complementar em relação às demais. O espaço
social de aprendizagem em Comunicação propõe desenvolver em todas as suas certificações
as capacidades de48
• Articular teoria, pesquisa e prática social a partir da integração entre a produção
científica e artística com o agir pessoal e político;
• Exercitar a criatividade e a improvisação;
• Utilizar adequadamente os recursos tecnológicos disponíveis;
• Cultivar a curiosidade, a iniciativa e a autonomia intelectual;
• Administrar o tempo e cumprir prazos.
De acordo com as especificidades a certificar, quer-se desenvolver capacidades
para
• Assimilar criticamente conceitos que permitam a apreensão de teorias e usar tais
conceitos e teorias em análises críticas da realidade;
• Conhecer e utilizar a língua portuguesa nas suas manifestações oral e escrita em
termos de recepção e produção de textos;
• Refletir analítica e criticamente sobre a linguagem como fenômeno psicológico,
educacional, social, histórico, cultural, político e ideológico;
• Expressar visão histórica e prospectiva, centrada nos aspectos sócio-econômicos
e culturais, revelando consciência das implicações econômicas, sociais,
antropológicas, ambientais, estéticas e éticas de sua atividade;
48 As competências e habilidades aqui listadas foram estudadas a partir das diretrizes curriculares de todas as
áreas que, de algum modo, têm interface com a Comunicação enquanto itinerário formativo. Como componentes complementares foram avaliadas as referências da Classificação Brasileira de Ocupações e as portarias publicadas pelo Ministério da Educação por conta do Exame Nacional do Desempenho de Estudantes - ENADE, no qual a Comunicação enquanto área foi avaliada pela primeira vez em 2006.
74
• Compreender criticamente processos envolvidos na recepção de informações e
seus impactos sobre os diversos setores da sociedade;
• Refletir criticamente sobre as práticas profissionais no campo da Comunicação;
• Interpretar, classificar, explicar, criticar e contextualizar informações;
• Expressar em linguagem própria conceitos e soluções de acordo com as diversas
técnicas de expressão e reprodução visual;
• Aplicar as linguagens habitualmente usadas nos processos de comunicação, nas
dimensões de criação, de produção, de interpretação e da técnica;
• Experimentar e inovar no uso destas linguagens;
• Avaliar, compreender, sistematizar e criticar processos de produção e
empreendimentos;
• Aplicar as linguagens e gêneros relacionados às criações audiovisuais e gráficas;
• Argumentar e estabelecer relações entre texto verbal e não verbal;
• Coordenar o desenvolvimento de materiais de comunicação, em diferentes
meios e suportes, voltados para a realização dos objetivos estratégicos das
empresas;
• Gerar produtos em suas especialidades criativas, como escrever originais ou
roteiros para realização de projetos em comunicação;
• Elaborar, desenvolver e avaliar planejamentos estratégicos de comunicação;
• Desenvolver, planejar, propor, executar e avaliar projetos na área de
comunicação;
• Responder pela realização de produções em comunicação;
• Posicionar-se em defesa de valores ético-políticos, reconhecendo a diversidade e
a alteridade nos processos de comunicação e no âmbito cultural;
• Compreender a importância de problematizar o sentido e a significação da
própria existência e das produções culturais;
• Analisar contextos, interpretar dados e sintetizar ideias como forma de se
posicionar criticamente em todos os espaços sociais;
Na habilitação de Jornalismo somam-se capacidades específicas, características do
campo de atuação:
• Registrar fatos, apurando, classificando, questionando, interpretando, editando e
transformando-os em notícias e reportagens;
• Investigar e questionar informações, produzir textos e mensagens jornalísticas
com clareza e correção e editá-los em espaço e período de tempo limitados;
75
• Apresentar domínio oral e escrito da língua nacional e as estruturas narrativas e
expositivas aplicáveis às mensagens jornalísticas, abrangendo-se leitura,
compreensão, interpretação e redação;
Em Publicidade e Propaganda, somam-se as capacidades de
• Aplicar linguagens e competências estéticas e técnicas para criar, orientar e
julgar campanhas de comunicação e/ou publicidade
• Planejar, executar e administrar campanhas de comunicação com o mercado,
envolvendo o uso de ferramentas de comunicação, como a promoção de vendas,
o merchandising, o marketing direto, a publicidade e propaganda e o patrocínio.
É importante evidenciar que esse conjunto de habilidades e competências se
repete ao longo das trajetórias em percurso, dependendo das escolhas quanto aos itinerários
possíveis em termos de certificação. Não há, portanto, perfis específicos a priori. A
articulação dessas ações em potencial, a partir de recursos e valores a serem mobilizados, é
que vão traçar, esboçar o perfil a ser alcançado.
4.3 ARQUITETURA CURRICULAR
Na arquitetura há sempre uma boa dose de cálculo e outra de imaginação. Para
efeito de organização do processo, suas metas e propósitos, suas respostas quanto aos critérios
de avaliação e outros aspectos mais tangíveis, o cálculo quanto às projeções é imprescindível.
Mas sem uma dose, por mínima que seja, de imaginação, as ações em potencial correm o risco
de perder a saudável proporção de intangibilidade, de imprevisibilidade. Um espaço social de
aprendizagem reconhece as tensões entre o cálculo e a imaginação como aspectos
constitutivos das relações a serem consolidadas. Novas paisagens culturais, “lugares
epistemológicos”, ambientes de circulação e convivência permanente, funcionalidade
estrutural, todas estas concepções não têm como estar entregues apenas ao cálculo das
projeções. O espaço social de aprendizagem também pressupõe sensibilidade quanto às
percepções dele advindas, pede o bem-estar coletivo e a construção de novas perspectivas.
Uma arquitetura curricular pode combinar tantos elementos e proporcionar a criação desse
espaço.
76
O desenho pede a análise de seis dimensões sobre as quais se pode cartografar
possibilidades. As projeções, portanto, não definem os lugares de circulação e ocupação para
todos; apenas propõem itinerários que fornecem pontos de conexão e cuja forma tem, no
máximo, esboços. A primeira das dimensões a ser considerada reúne as áreas de
conhecimento e de formação cujos lugares estão determinados num sistema de classificações,
mas levam em conta relações e construções técnico-profissionais e epistemológicas coletivas.
Numa segunda dimensão são associados os campos de saber e de atuação, na perspectiva de
identificar o que escapa à tradição e à taxonomia. Por fim, os níveis e modalidades de ensino e
aprendizagem aliam-se às certificações reconhecidas tanto no ambiente acadêmico quanto nos
campos de atuação.
4.3.1 Comunicação como área de conhecimento e de formação
Para dar conta de mobilizar saberes em razão de ações em potencial que sustentem
trajetórias acadêmicas e ocupacionais sólidas, a arquitetura curricular em Comunicação deve
reconhecer no centro de todo o processo a área de conhecimento, homônima ao campo de
atuação. Enquanto área de conhecimento, a Comunicação caracteriza-se como ciência social
aplicada. De acordo com a classificação ora adotada pelas agências de fomento à pesquisa,
mais vinculadas a programas de pós-graduação, inserem-se no contexto epistemológico como
sub-áreas teoria da comunicação, jornalismo e editoração (esta subdividida em teoria e ética
do jornalismo, organização editorial de jornais, organização comercial de jornais e
jornalismo especializado), rádio e televisão (subdividida em radiodifusão e videodifusão),
relações públicas e propaganda, comunicação visual.
Esta classificação foi revista em 2005, quando uma comissão montada por
representantes do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq,
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES e da Financiadora
de Estudos e Projetos - FINEP apresentou uma proposta de alteração. Nessa nova concepção,
a Comunicação passa a ser uma área das Ciências Socialmente Aplicáveis e suas sub-áreas,
teorias da comunicação, processos sociais, mídias, relações públicas e propaganda e ética e
linguagens. Além disso, acompanha a tabela de classificação uma lista de especialidades com
as quais a área tem interfaces.
77
Controvérsias à parte, julga-se importante recuperar o conceito de área de
conhecimento como referência. Se é “pela natureza do objeto de investigação” que a área
organiza os “conhecimentos inter-relacionados e coletivamente construídos” para fins de
“ensino, pesquisa e aplicações práticas”, sua referência deve gerar movimento, numa espiral
criativa que resulte em múltiplas possibilidades de percurso e certificação.
Já para o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira
- INEP, jornalismo e informação compõem uma área específica de ciências sociais, negócios
e direito, considerada área geral. Como subdivisão, jornalismo e reportagem denominam uma
área detalhada em que cinema e vídeo, comunicação social (redação e conteúdo), informação
(redação e conteúdo), jornalismo, noticiário e reportagem, produção editorial, publicação
(disseminação de mensagens), rádio e telejornalismo, e radialismo são os programas e/ou
cursos nela inscritos.
Publicidade e propaganda aparece nesta classificação como programa e/ou curso
da área detalhada marketing e publicidade. Isso porque a formação é entendida como
pertencente a comércio e administração, área igualmente incluída em ciências sociais,
negócios e direito. Junto de publicidade e propaganda estão marketing e propaganda,
mercadologia (marketing), pesquisa de mercado e relações públicas.
Tal caracterização evidencia a cesura já explicitada neste trabalho. Pensada pelo
viés da tradição epistemológica a Comunicação abarca conhecimentos diversificados em que
as atividades técnico-profissionais são objeto de reflexão e análise. Mas pensada pelo viés da
formação, a área se dilui, ganha o adjetivo "social" e é associada a técnicas de produção
textual e geração de conteúdos por um lado, e técnicas de persuasão e perspectivas de negócio
por outro.
4.3.2 Comunicação como campo de atuação
Numa sociedade midiatizada, fortemente caracterizada pela supressão do tempo e
o alargamento do espaço, os lugares de ocupação para quem conhece minimamente os
processos que envolvem este fenômeno contemporâneo são muitos. Contudo, os avanços da
tecnologia, fundamentados ou não pela Ciência, têm reduzido as perspectivas de
interpretação, avaliação e socialização dos resultados quanto aos aspectos centrais do
78
processo comunicacional. Mesmo o ambiente acadêmico tem dado mais ênfase à velocidade
das mudanças do que propriamente aos impactos desse modelo de construção da realidade no
nosso cotidiano. Sendo assim, o campo de atuação pede, antes de tudo, um olhar mais
profundo sobre os critérios que sustentam o modelo e sobre as alternativas a ele. Isso não quer
dizer negar o campo; quer dizer potencializá-lo.
Nas diretrizes curriculares reguladas pelo Ministério da Educação, apenas o curso
cinema e vídeo teve sua autonomia reconhecida49. Jornalismo, publicidade e propaganda,
editoração, relações públicas e radialismo continuam como habilitações do curso de
Comunicação Social. Esta vinculação engessa as áreas de conhecimento e de formação na
medida em que impõem, numa composição curricular isolada, compatibilizações de recursos
cognitivos, estéticos, procedimentais e estruturais nem sempre passíveis de articulação. É
pensando a Comunicação como campo de atuação, e não uma área técnico-profissional
específica, que se pode potencializar os itinerários formativos com flexibilidade e mobilidade
suficientes para atender às diretrizes e valorizar trajetórias singulares.
4.3.3 Comunicação como campos de saber
Na medida em que diferentes saberes se aproximam, tanto a área de conhecimento
quanto o campo de atuação se diversificam. Estamos falando dos saberes reconhecidos pela
Ciência e dos tacitamente presentes na paisagem cultural na qual os meios e os processos
comunicacionais existem. Os saberes “epistemológicos” em Comunicação abarcam uma
ampla gama de conteúdos hoje estruturados em disciplinas que não cabem nas 2.700 horas
mínimas previstas para a graduação na área, como rezam as diretrizes. Isso porque tais
conteúdos estão confinados na própria estrutura disciplinar cujo recorte não se dá pelo viés da
ciência sobre seus efeitos na formação, mas pela fragmentação de uma grade em que o
currículo homogeiniza o que deve ser aprendido.
De outro lado, os saberes “praxeomórficos” isolam-se no interior do campo de
atuação e não se reconhecem enquanto conteúdo significativo para os itinerários formativos. É
como se a construção do conhecimento sobre Comunicação não precisasse entender o que
tendemos a fazer em certas circunstâncias aplicadas à atuação no campo e porque o fazemos
79
habitualmente do mesmo jeito. Os campos de saber são a perspectiva de articulação entre as
áreas de conhecimento e os campos de atuação na medida em que não só aproximam
conteúdos, competências e habilidades em suas dimensões socioculturais, científico-
tecnológicas e sociotécnicas, como permitem conceber produção e análise, reflexão e técnica
no âmbito da formação, não só do conhecimento acadêmico necessário para habilitar uma
área técnico-profissional.
4.4 DIRETRIZES ABERTAS
Outras três dimensões a serem consideradas - níveis e modalidades de ensino e
aprendizagem, e tipos de certificação - orientam as perspectivas de estruturação dos
componentes curriculares em função dos objetivos propostos e das competências e
habilidades a serem trabalhadas. A organização dos conteúdos surge numa espiral cujo
movimento aproxima as diretrizes curriculares e as de avaliação do ensino superior, além das
trajetórias acadêmicas e ocupacionais. Portanto, os conteúdos estão para os itinerários
formativos, sociais e técnico-profissionais, ainda que sua origem esteja nas disciplinas
tradicionais.
A questão é que, em termos de composição, tais conteúdos já são pensados fora de
suas amarras e do isolamento disciplinar os quais se busca romper depois, quando se intervém
no percurso para que a projeção, pensada separadamente, se efetive no conjunto. É nesse
contexto que a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão é pedida; é também aí que
projetos integradores tornam-se uma saída. Ora, por princípio, a Certificação Processual se
pensa em processo e, portanto, sem delimitações disciplinares. Os conteúdos são tomados por
seu valor para o itinerário proposto e o ensino, a pesquisa e a extensão já são o contexto.
À espiral que aproxima os elementos acrescenta-se o qualitativo “criativa” por
duas razões básicas: a primeira, mais elementar, é que a área está sempre em movimento. As
mudanças de itinerário podem ser feitas a qualquer tempo, visto que todo o processo é
certificado e tende a compor as trajetórias possíveis no espaço social de aprendizagem.
Significa dizer que as reformulações pedagógicas não estão mais no interior de cursos; estão,
sim, na viabilização de trajetórias entendidas como importantes para a área.
49 Ver Resolução n. 10, de 27 de junho de 2006.
80
Como decorrência dessa primeira razão elementar, as reformulações na
Comunicação dependem da paisagem cultural ao alcance das percepções. Toda e qualquer
planificação inerente ao cálculo arquitetônico do projeto deve, por isso, estar associado,
obrigatoriamente, às trajetórias pessoais cuja articulação só é possível com imaginação. Como
um espaço social de aprendizagem, um lugar para se estar nele, a Certificação Processual
depende do desejo para movimentar a espiral e da aproximação das diferenças para torná-lo
factível.
Para iniciar o movimento e traçar os primeiros itinerários, façamos a análise das
diretrizes curriculares em Comunicação. Primeiramente é preciso destacar o uso do termo
“Social” junto à Comunicação não como elemento revelador, mas para evidenciar as formas
de diferenciar o sentido da formação. Como já vimos, os cursos técnicos em Comunicação
têm duas vertentes básicas: a elaboração de bases tecnológicas e a de recursos técnicos para o
uso dessa base. Os cursos de bacharelado, contudo, para evitar comparativos, ganham um
adjetivo, uma característica. Significa dizer que, por princípio, nem toda a comunicação é
Social. O termo, então, está a serviço de uma formação mais humanística, focada em valores
coletivos para a construção de cidadania etc.. Contudo, a formação de competências e
habilidades para desenvolver as bases tecnológicas por onde circulam as produções estão fora
dos itinerários na área. Mesmo nos cursos de tecnólogo, que compõem a graduação. Produção
de base tecnológica é com as engenharias.
As diretrizes curriculares em comunicação sugerem que cada curso estabeleça e
organize seus conteúdos. Mas especificam a necessidade de dois conjuntos: os
“caracterizadores da formação geral da área”, chamados de básicos, e os que organizam o
“currículo pleno”. Tradicionalmente, essa organização é pensada sob o ponto de vista de uma
base comum em Comunicação e os complementos específicos por habilitação. Propostas nas
diretrizes, há seis habilitações já legitimadas: Jornalismo, Relações Públicas, Radialismo,
Publicidade e Propaganda, Editoração e Cinema. Diz o documento que podem ser criadas
“ênfases específicas em cada uma destas habilitações, que serão então referidas pela
denominação básica, acrescida de denominação complementar que caracterize a ênfase
adotada” e “novas habilitações pertinentes ao campo da Comunicação”50. Aqui importa
evidenciar o grau de abertura proporcionado pelo documento.
Quatro eixos orientam a organização de conteúdos, em relação à formação geral
da área: a) os teórico-conceituais; b) os analíticos e informativos sobre atualidade; c) os de
50 Parecer CES/CNE 492/2001, p. 17.
81
linguagens, técnicas e tecnologias midiáticas e d) os ético-políticos. A arquitetura curricular
proposta aqui para a Comunicação fundamenta neles os saberes necessários para a
constituição de uma certificação. Não há diferença entre conteúdos gerais e específicos,
porque não há disciplinas estruturadas com este tipo de classificação. Os eixos orientam os
conteúdos no sentido de mobilizar recursos e valores para promover ações em potencial
legitimadas nas certificações a serem propostas. As especificidades, em termos de conteúdo,
como propõem as diretrizes, são as próprias certificações, organizadas de modo singular, por
complementaridade. Neste sentido, não há disciplinas a compartilhar, visto que os conteúdos
são exclusivos de uma certificação e complementam-se a partir dos eixos descritos pelas
diretrizes.
Isso implica mudanças estruturais no modelo mental de organização curricular. O
propósito de trabalhar certificações em processo é, justamente, o de usar toda a abertura legal
no campo da educação para promover ações inclusivas, promover o trânsito pelo espaço
social de aprendizagem pela construção e socialização do conhecimento e não pela
certificação em si. A Comunicação, enquanto área de conhecimento e campo de atuação, tem
a perspectiva de abrir múltiplas possibilidades de acesso ao ambiente universitário ao não se
impor por fases disciplinares, cumulativas e cindidas em termos de teoria e prática.
Composições curriculares em que os conteúdos impliquem ações em potencial,
aliás, parecem mais integradas aos sistemas de avaliação ora implementados pelo Ministério
da Educação e que se caracterizam como tendência no mundo inteiro. Não é mais a
quantidade de informações, de insumos educacionais que um estudante conseguiu acumular
ao longo de sua formação o objeto de aferição. Mas a capacidade de articular os saberes e
demonstrar condições de pensar soluções para os problemas que nos afetam.
Em Comunicação, os debates quanto às divisões do conhecimento por área estão
sempre latentes. É que a trajetória acadêmica percorrida ao longo da história inclui uma
autorreflexão profunda, a ponto de transformar também os itinerários técnico-profissionais. O
debate envolve inclusive outras áreas, pois não há setores que não sejam afetados pelas
transformações inerentes à Comunicação.
O campo de atuação está em constante transformação, é instável e suscetível aos
movimentos políticos de época. A área de conhecimento, igualmente, admite vertentes
múltiplas quanto aos “lugares epistemológicos” nela reconhecidos. Pô-las no movimento em
espiral significa inserir essa instabilidade e suas condições de possibilidade no próprio
processo de formação, condição que não só amplia os horizontes à vista como reconhece
82
politicamente o embate de forças quanto à legitimidade dos saberes e dos lugares de ocupação
contemporâneos.
4.5 TIPOLOGIA DE CERTIFICAÇÕES
O termo certificação tem, em síntese, dois aspectos relevantes a serem
considerados. Em primeira instância, os itinerários propostos para a Comunicação devem ter
caráter de terminalidade, certificável num determinado contexto. Esse caráter de
terminalidade está associado às competências a serem desenvolvidas e aferidas numa dada
circunstância. Neste caso, estão associados aos níveis de aprendizagem e suas referências
normativas definidas pelo Ministério da Educação. Numa segunda instância, o termo está
associado aos produtos em oferta, cursos cuja característica interessam a demandas
específicas ou a investimentos de longo prazo, estratégicos para a instituição de ensino.
A tipologias gerada nesse processo e relacionada neste trabalho é uma referência
ainda tímida das potencialidades subjacentes, mas já estabelece um amplo espaço social de
aprendizagem e oferece múltiplas possibilidades de acesso e trânsito ao ambiente
universitário. Como argumento principal, a proposta de Certificação Processual rompe com
a visão unilateral de que há saberes inferiores, estes sim, disponíveis a todos os que não
tiveram capacidade/competência para ocupar um lugar no sistema de ensino superior como
estudante regular. Os requisitos para se chegar à uma graduação estão em
capacidades/competências adquiridas em processo. Os pré-requisitos são os estabelecidos pela
lei. Um espaço social de aprendizagem coerente com o compromisso de formar para a
cidadania tem, de início e necessariamente, que romper com os dogmas que sustentam a
exclusão e a hierarquia de saberes.
Neste sentido, a articulação dos saberes na Comunicação pode ser feita nas
seguintes estruturas certificáveis, intercambiáveis e contíguas nas suas áreas e campos,
legitimadas pelas instâncias reguladoras do sistema educacional brasileiro de nível superior:
a. Cursos livres e de promoção social - em caráter de extensão, têm a finalidade
de promover atividades complementares de formação técnica e de iniciação
científica. Propõem heterogeneidade de perfis de ingressante e conteúdos
associados a uma série de recursos que auxiliem na efetivação das ações em
83
potencial propostas em itinerários formativos. Além disso, podem ser
estruturados para a formação de parcerias, sejam duradouras ou temporárias,
que viabilizem o uso de novas tecnologias e estruturas laboratoriais. São
também um excelente espaço para a contratação de palestrantes e docentes
temporários cujo conteúdo a ministrar representa alguma inovação ou objeto
de pesquisa significativa para a área. Na arquitetura curricular subdividem-se
em
i. Cursos de Iniciação, introdutórios quanto à formação técnica ou
acadêmica, ou relacionados a novos processos, métodos e concepções
sejam socioculturais, sociotécnicos ou científico-tecnológicos;
ii. Cursos de Atualização, focados em conhecimentos e procedimentos
técnicos ou acadêmicos cuja estruturação tenha por objetivo "renovar"
ações potenciais já desenvolvidas;
iii. Cursos de Qualificação, voltados para o aprimoramento de
competências desenvolvidas academicamente ou requisitadas. no
contexto técnico-profissional;
b. Cursos superiores de complementação de estudos - de destinação coletiva,
compõem o processo de formação em nível de graduação para todas as
certificações decorrentes. Envolvem campos de saber e de atuação a partir de
conteúdos mobilizados para competências e habilidades específicas. São
complementares em relação às trajetórias na área e complementares também
entre si. Subdividem-se em
i. Cursos de degustação de saberes, orientados para a área de artes e
focados no uso de elementos comunicacionais para estruturar formas de
expressão mais livres. Oferecem certificação de nível superior a partir
de pré-requisitos pensados em função de seus objetivos. São de
degustação justamente por proporcionarem itinerários introdutórios ao
ambiente universitário.
ii. Cursos de fundamentação de campo, que constituem essencialmente o
processo de formação na graduação. Neles estão as dimensões
científico-tecnológicas, socioculturais e sociotécnicas necessárias ao
espaço social de aprendizagem, cuja orientação depende das ações em
potencial a serem desenvolvidas.
84
c. Cursos superiores de formação específica - mais vocacionados para formação
sociocultural, refletem campos de saber e suas articulações com a área de
conhecimento e o campo de atuação (mínimo de 1.600 horas). Seus diplomas
não são de graduação, mas chancelam uma trajetória que responde por lugares
de ocupação na sociedade e permitem a inserção em cursos lato sensu.
d. Cursos de graduação em tecnologia - mais vocacionados para formação
sociotécnica, refletem campos de atuação profissional, reconhecidos pelo
mundo do trabalho e por itinerários técnico-profissionais legitimados pela
sociedade (mínimo de 1.600 horas). Seus diplomas garantem acesso a
quaisquer cursos de pós-graduação.
e. Cursos de bacharelado - compõem as habilitações da Comunicação Social,
tradicionalmente descritos nas diretrizes (mínimo de 2.700 horas). Atualmente
na arquitetura curricular estão Jornalismo e Publicidade e Propaganda.
f. Cursos de pós-graduação - atualmente, as possibilidades de cursos nesta área
são amplas e conjugam as necessidades de formação técnica com a acadêmica,
dependendo da característica e da modalidade em oferta.
i. Em lato sensu:
1. Cursos de Aperfeiçoamento: com carga horária mínima de 180
(cento e oitenta) horas, visam ao aprofundamento de
conhecimentos e habilidades técnicas em domínios específicos
do saber e da prática profissional.
2. Cursos de Especialização: com carga horária mínima de 360
(trezentas e sessenta) horas, visam à complementação,
ampliação e desenvolvimento do nível de conhecimento
teórico-prático em determinado domínio do saber.
3. Cursos de MBC (Master in Business Communication), com
carga horária mínima de 360 (trezentas e sessenta) horas,
enquadram-se nos cursos lato sensu em nível de especialização,
destinando-se a segmentos de gestão e negócios na área.
4. Programas de Residência, classificados na pós-graduação lato
sensu, em nível de especialização, são desenvolvidos como
treinamento em serviço, em tempo integral, sob supervisão de
docente ou profissional de elevada qualificação ética e
profissional, em ambiente de ensino e pesquisa.
85
ii. Em stricto sensu:
1. Cursos de Mestrado objetivam aprofundar o conhecimento
profissional e acadêmico, bem como possibilitar o
desenvolvimento da habilidade para executar pesquisa em área
específica. Hoje são reconhecidos os mestrados acadêmicos,
para a formação de pesquisadores e docentes, e os mestrados
profissionais, para a formação de técnicos de alto nível.
2. Cursos de Doutorado objetivam o desenvolvimento da
habilidade para conduzir pesquisa original e independente, em
área específica.
Pela tipologia apresentada, a arquitetura curricular em Comunicação ganha um
sentido mais amplo em relação às tradicionais propostas pedagógicas. As interfaces e os
recortes inerentes aos campos de saber e de atuação diante da tradição epistemológica e
mercadológica ganham sentido num mapa de certificações que não está confinado à ideia de
portfólio de produtos e serviços educacionais. O movimento por entre as certificações aqui
propostas não é somente linear, valorizada pela sobreposição de títulos. Há uma circulação
possível em relação aos ambientes de aprendizagem decorrentes dos projetos arquitetônicos
em seus diversos graus de complexidade.
É necessário combinar as esferas do saber, do saber fazer e do ser em conteúdos
conceituais, procedimentais e atitudinais (ZABALA, 1998) cujas barreiras estruturais
disciplinares sejam vencidas em programas de aprendizagem em código aberto. A ideia de
código aberto não significa uma proposição caótica em que as trajetórias se reconheçam por
quaisquer possibilidades. Antes, colabora com o movimento em espiral proposto na
composição das certificações; os contratos de aprendizagem, como são muitas vezes
considerados esses programas, devem ser consolidados pelas ações em potencial. Portanto,
deve ficar suficientemente claro na “assinatura” desse contrato o compromisso de todos os
envolvidos no desenvolvimento dessas ações. No espaço social de aprendizagem, seus
programas propõem as ações em potencial e negociam em processo as relações necessárias
para se implementar tais ações. Há uma certa dose de previsibilidade e de intervenção
possível; mas educar para as incertezas pressupõe um processo de negociações constantes em
que se pode apenas sugerir as possibilidades, não mais que isso.
Nesse sentido, os processos de avaliação também propõem-se mais abertos.
Significa dizer que não há como estabelecer critérios de avaliação sem se estar envolvido
diretamente no processo de realização das ações em potencial. O sentido de avaliar em
86
processo não permite que primeiro se chegue a um resultado e a partir dele se faça as relações
com a aprendizagem possível. Estar em processo significa poder intervir nos rumos apenas
pontualmente. As correções de rota em momentos chave dependem de avaliações sempre
coletivas que discutam e proponham quais soluções são factíveis para se alcançar os
horizontes propostos. Para que uma burocracia, necessária, consiga se pôr a serviço da
criação, surja do vivido, é necessário promover no espaço social de aprendizagem um
ambiente específico para o processo de avaliação; considerá-lo também como conteúdo e,
portanto, socializar o debate sobre as proposições decorrentes do processo; não apenas seus
resultados.
87
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Resultado de pelo menos dois anos de reflexão em grupos estratégicos e em
reuniões de planejamento no Curso de Comunicação Social da Universidade do Sul de Santa
Catarina, campus da Grande Florianópolis, a Certificação Processual em Comunicação traz
uma proposta de reconfiguração dos processos acadêmicos para reorientar processos
administrativos. Sem mudanças na estrutura, da curricular à de gestão financeira, não nos
parece possível pensar em uma outra universidade.
Autônoma em suas atividades, prerrogativa constitucional, a instituição
universidade no Brasil permanece atrelada às excessivas normatizações e aos modelos de
organização tecnocráticos nas respostas aos processos avaliativos. Propor diferentes
concepções de estrutura acadêmico-administrativas é também propor alternativas aos padrões
de resposta esperados pelas instâncias de regulação do sistema educacional. E não há porque
ter receio quanto a isso. As medidas reguladoras não tendem a oferecer resistência quando as
alternativas de proposição sustentam-se em argumentos que reforçam a própria educação
enquanto concepção.
Como propósito, este trabalho buscou entender o cenário da educação superior no
Brasil e argumentar sobre as aberturas possíveis no contexto da crise por que passa o setor.
Uma crise, aliás, sustentada pelo próprio sistema, na medida em que reforça os padrões de
seletividade e distancia os níveis "inferiores" - para usarmos um termo de similar significância
quanto ao nível aqui analisado - no processo de aprendizagem. Instituições públicas e
provadas enfrentam a mesma situação, ainda que por circunstâncias diferentes. Mas as que
dependem de mensalidade, em particular, organizam-se como empresas em busca de
sustentabilidade estigmatizadas pela ideia de que estão "negociando" um bem público.
Diante do cenário analisado, há formas de organização que possibilitam à
instituição universidade de direito privado valorizar o conhecimento como patrimônio
coletivo e a educação como bem público, em concomitância aos ideários de sustentabilidade
econômica. Isso pede um espaço permanentemente aberto à circulação dos interessados em
conhecimento, não só em títulos; pede a criação de propostas que reconheçam diferentes
saberes e valorizem o capital intelectual não só como capital político, mas e sobretudo como
identidade institucional; pede o reconhecimento de uma diversidade inerente à própria
88
instituição, além de outros modelos mentais e esforços de solução em patamares nos quais os
problemas que enfrentamos sejam deslocados a outro nível de compreensão.
No âmbito administrativo, e por consequência econômico-financeiro, essa outra
organização pede formas diferentes na relação com os interessados no conhecimento
estruturado em produtos acadêmicos. Formas que valorizem o interesse na aprendizagem a ser
financiada pelas mensalidades, que procurem respeitar o tempo disponível para a efetivação
de uma trajetória acadêmica e diversifiquem as perspectivas de ingresso no sistema
educacional de nível superior. Sem uma discussão profunda quanto aos aspectos
administrativos que estejam a serviço da gestão desses novos processos, não há como
implementar mudanças profundas.
Pensar na instituição universidade como "lugar epistemológico" capaz de educar
ao longo de toda a vida e, por consequência, construir outros "sentidos praxeomórficos" para
a percepção do mundo em que vivemos não é possível num ambiente dogmatizado por
preceitos inscritos na mesma tradição que gerou a crise. Para a gestão numa "organização de
conhecimento", como se costuma denominar as instituições de ensino, é fundamental que
justamente o conhecimento fomente concepções em resposta aos problemas por ela
enfrentados. E, para isso, entender os conceitos que alicerçam o movimento de reconfiguração
de saberes e reorganização da estrutura torna-se fundamental.
Como desafio, a Certificação Processual precisa, enquanto projeto, de um
mergulho nas concepções operacionais, relativas não apenas à gestão mas aos processos
acadêmicos mesmo. Ainda que longa e abrangente em conceitos e perspectivas, a proposta
que ora fecha seu primeiro ciclo terá de caminhar agora para uma constituição mais
pragmática, funcional. E para isso terá de se deparar com os itinerários projetados pelos
setores estratégicos, a alta gestão da universidade. Espera-se sensibilizar para um outro
movimento, fora do contexto reconhecido nos processos de gestão formal de instituições de
ensino superior.
89
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