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PONTO DE VISTA | ENTREVISTA Nélio Machado 17 Revista Fórum CESA - ano • n. 7 • p. 18-6• abr./jun. 008 Hamilton Penna Atualmente, Nélio Machado é con- selheiro federal da OAB e exerce a advocacia notadamente em tribu- nais do Rio de Janeiro, de São Pau- lo e de Brasília. Apesar de todas as dificuldades enfrentadas na dita- dura militar e da vitória represen- tada pela Constituição de 1988, ele tem muitas críticas ao direito pe- nal vigente. Em algumas questões, acredita que houve retrocessos. Nesta entrevista, ele assinala tais retrocessos e aponta práticas que contradizem preceitos básicos da Constituição. Critica, ainda, a estrutura da Defensoria Pública. Apresenta argumentos para defen- der penas alternativas e descrimi- nalização de algumas condutas. Analisa as mudanças no Sistema Carcerário. São questões das quais ele fala com o conhecimento de quem já foi defensor público e pre- sidente do Conselho Penitenciário. Não obstante as críticas, ele se mostra otimista quando diz que a sociedade está acordando e reagin- do aos abusos. Apóia-se, segundo ele, naqueles que o antecederam para se opor aos excessos identi- ficados. Cita juristas renomados, como Rui Barbosa, Heleno Fragoso e Evaristo de Morais e, como não poderia deixar de ser, seu pai, Lino Machado Filho, como referências para sua atuação. Em 1974, no auge da ditadura militar, Nélio Machado se gra- duava em direito. Paralelamente aos seus estudos, ele já começa- ra a atuação, como colaborador, em defesas de presos políticos. Quando se formou, deu continui- dade a uma carreira de advogado criminalista que abraça, até hoje, com grande entusiasmo. Logo nas primeiras atuações, já se co- locou frente ao Supremo Tribunal Federal defendendo causas em fase recursal. Tinha ao seu lado o pai, Lino Machado Filho, crimina- lista que se dedicava à defesa de presos políticos desde o golpe de 1964. Viram clientes do seu escri- tório desaparecerem. Por Natália Martino Ana Paula Amorim

CESA 8

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Cesa 8 - Natalia Martino

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17Revista Fórum CESA - ano � • n. 8 • p. 18-�6 • jul./set. �008

PONTO DE VISTA |ENTREVISTA

NélioMachado

17 Revista Fórum CESA - ano � • n. 7 • p. 18-�6• abr./jun. �008

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Atualmente, Nélio Machado é con-selheiro federal da OAB e exerce a advocacia notadamente em tribu-nais do Rio de Janeiro, de São Pau-lo e de Brasília. Apesar de todas as dificuldades enfrentadas na dita-dura militar e da vitória represen-tada pela Constituição de 1988, ele tem muitas críticas ao direito pe-nal vigente. Em algumas questões, acredita que houve retrocessos.

Nesta entrevista, ele assinala tais retrocessos e aponta práticas que contradizem preceitos básicos da Constituição. Critica, ainda, a estrutura da Defensoria Pública. Apresenta argumentos para defen-der penas alternativas e descrimi-

nalização de algumas condutas. Analisa as mudanças no Sistema Carcerário. São questões das quais ele fala com o conhecimento de quem já foi defensor público e pre-sidente do Conselho Penitenciário.

Não obstante as críticas, ele se mostra otimista quando diz que a sociedade está acordando e reagin-do aos abusos. Apóia-se, segundo ele, naqueles que o antecederam para se opor aos excessos identi-ficados. Cita juristas renomados, como Rui Barbosa, Heleno Fragoso e Evaristo de Morais e, como não poderia deixar de ser, seu pai, Lino Machado Filho, como referências para sua atuação.

Em 1974, no auge da ditadura militar, Nélio Machado se gra-duava em direito. Paralelamente aos seus estudos, ele já começa-ra a atuação, como colaborador, em defesas de presos políticos. Quando se formou, deu continui-dade a uma carreira de advogado criminalista que abraça, até hoje, com grande entusiasmo. Logo nas primeiras atuações, já se co-locou frente ao Supremo Tribunal Federal defendendo causas em fase recursal. Tinha ao seu lado o pai, Lino Machado Filho, crimina-lista que se dedicava à defesa de presos políticos desde o golpe de 1964. Viram clientes do seu escri-tório desaparecerem.

Por Natália Martino

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PONTO DE VISTA | ENTREVISTA Nélio Machado

Revista Fórum CESA: Sua atuação como criminalista começou du-rante a ditadura militar. O senhor pode falar um pouco sobre a evo-lução da sua carreira a partir daí?

Nélio Machado: Eu me formei em 197�, mas meu pai, Lino Machado Filho, era um dos advogados que se dedicava à defesa de presos políti-cos desde o golpe militar. A partir de 197�, aproximadamente, eu comecei a trabalhar no escritório dele. Em razão disso, co-participei, diga-se, como reles colaborador, de algumas defesas. Depois da minha formatura, passamos a trabalhar lado a lado em diversas causas des-sa natureza.

Compartilhei da defesa de casos importantes, como o seqüestro do embaixador alemão Von Hollebem e do suíço Giovanni Enrico Bucher. Defendi um dos réus, José Roberto de Gonçalves Resende. Naquela época era possível que, de uma decisão tomada pela Justiça Militar, houvesse um recurso para o Supe-rior Tribunal Militar. Desse julga-mento cabia um recurso ordinário para o Supremo Tribunal Federal. Então começou nessa época tam-bém minha militância frente ao Supremo.

Minha formação veio a partir daí. Fui também estagiário no Tribu-nal do Júri; fiz diversos júris como estagiário e, mais tarde, como ad-vogado. Fui defensor público na Justiça Militar concomitantemen-te à minha atuação na advocacia privada. Pedi afastamento porque cheguei à conclusão que o tempo não era suficiente para que eu me ocupasse da banca privada ao lado da atuação como defensor público. Fui também presidente do conselho penitenciário no período de 199� a 1998. A partir daí, as coisas foram seguindo seu caminho.

RFC: Quais foram as principais mudanças no direito penal desde o início da sua carreira?

NM: Naquela época havia muito rigor, mas a ação do advogado era tida como meritória. Hoje temos o que eu chamo de “triunfo acusató-rio”. A premissa seria de igualdade, paridade de armas, e isso não acon-tece na prática. Com a utilização desses métodos tecnológicos de investigação – como a invasão de e-mails e a interceptação telefônica através de um suposto controle ju-dicial – e a criação de varas especia-lizadas – que são um equívoco, em minha opinião, porque elas tendem a combater o crime e não a julgar o acusado –, a defesa passa a ser mui-tas vezes alguém que incomoda.

As escutas são feitas pela polícia com o acompanhamento do Mi-nistério Público e solicitação ao juiz para cada prorrogação em períodos de 15 dias. Depois de um ano, dois, três, às vezes, quatro, o que passa a existir é uma possibilidade de defe-sa menor. A lei fala em 15 dias pror-rogáveis por mais 15, e nada além disso. Ela foi mal interpretada até o presente momento pelos nossos tribunais; à exceção de decisão re-cente do STJ que põe freio, ao que tudo indica, a esses excessos. Essa metodologia de arapongagem já convence o juiz de antemão.

No tempo da ditadura os exces-sos existiam no inquérito, no qual freqüentemente se praticavam vio-

lência, tortura, pau-de-arara, gela-deira, enfim, métodos de agressão ao corpo, à alma e à mente. Quan-do se chegava ao Poder Judiciário, porém, o advogado tinha absoluto respeito por parte dos tribunais e dos magistrados. Nós, advoga-dos, passamos de heróis a vilões. Eu acho que agora, em razão dos muitos excessos, começa a existir uma resistência e o interesse de se valorizar a advocacia, corolário inevitável da eficácia das garantias constitucionais. Quando a gente fala em devido processo legal, te-mos que falar em ampla defesa. Fa-lar em ampla defesa significa falar do advogado. Minha análise é que temos tido, no momento em que há uma Constituição que assegura muitos direitos abstratamente no papel, a violação permanente de várias garantias.

RFC: O grampo seria um ins-trumento de investigação válido quando feito com ordem judicial e obedecesse ao tempo máximo de 15 dias, prorrogável por mais 15?

NM: Não, considero que há uma carga de inconstitucionalidade in-separável e inevitável no uso desse instrumento. Na prática, o grampo como prova significa, por via oblí-qua, a utilização de uma auto-in-criminação como instrumento para deixar numa posição desfavorável o acusado ou o investigado. Eu só admito, como cidadão, que exis-tam métodos invasivos como esse na medida em que, pelo princípio da proporcionalidade, haja a peri-clitação de um bem jurídico maior da própria privacidade. Nesse sen-tido, estou falando de vida, de cri-mes de seqüestro, de estupro, de crimes que efetivamente tenham uma carga de reprovação que justi-fique o uso dessa metodologia ex-cepcional na apuração. Mas nem isso significa que essa prova possa ser considerada bastante. O Có-digo de Processo Penal diz que a confissão, para valer como prova, tem que ter harmonia com outras tantas provas. Ela pode ser uma re-ferência, uma orientação.

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A prova tem que ser colhida atra-vés do contraditório. O réu tem que saber que está sendo acusa-do, tem o direito de apresentar sua defesa nos termos das garantias fundamentais. Eu vejo que esses episódios se banalizaram. Hoje há notícias na CPI da intercepta-ção telefônica de que, no Brasil, existiria algo em torno de �90 mil interceptações telefônicas com or-dem judicial. Sem falar do grampo ilegal, pelas facilidades que se sabe existirem no mercado. É inadmissí-vel que isso continue dessa forma. Agora começa efetivamente a ha-ver uma evolução na postura dos tribunais. O ministro Gilmar Men-des tem falado em ação pedagó-gica do STF, e fala muito bem. O Supremo é sentinela da liberdade, guardião da Constituição Federal, não importa o que o grande povo possa achar.

O estardalhaço que se faz em al-guns casos é uma forma de punição antecipada que relembra os espe-táculos medievais. Antigamente, o povo assistia a enforcamentos em praça pública. Precisamos cuidar para que os princípios de civilização que foram conquistados lentamente não sofram um retrocesso. O povo apedrejou Jesus Cristo. A verdade é que não é a turba que resolve a questão, e sim um julgamento com critérios técnicos, jurídicos, com as garantias da dogmática, o princípio da reserva legal; enfim, conquistas que foram obtidas por muitos sé-culos de sofrimento, de dor, de luta e de caminhada no processo civili-zatório. Esta é a linha que deve se seguida.

RFC: Como se deu essa desvalori-zação do advogado identificada du-rante a sua atuação profissional?

NM: Em dado momento valoriza-ram-se muito o Ministério Público e o delegado de polícia com essas ações espetaculares. O advogado foi posto como se fosse um colabo-rador da criminalidade. Isso resulta, sobretudo, de um encantamento maior nos cursos jurídicos pela idéia de se fazer um concurso e pela co-

locação do advogado como sendo alguém que faz um papel menos dignificante, quando, na verdade, é um papel de grande importância social defender um direito alheio.

O advogado tem que ter o com-ponente altruísta, seu cliente é, sobretudo, a liberdade. É um pa-pel muito dignificante e que muito nos enobrece. Nós defendemos a liberdade humana. Esse é o nosso verdadeiro cliente, e essa frase não é minha, é do Evaristo de Morais se dirigindo àqueles que são incapa-zes de compreender a natureza do trabalho advocatício. Não há nada mais merecedor de elogios do que dizer-se defensor da liberdade. Qualquer um se envaideceria em dizer que esse é o seu ofício na Terra. Acho que essa compreensão está voltando.

Os advogados são beneficiários de terem escolhido uma profissão que muito realiza, embora seja carrega-da de muita dor, muito sofrimento, porque nos deparamos com as im-perfeições humanas. Rui Barbosa

A sociedade que não enxerga dessa forma é uma sociedade totalitária.

RFC: E a nossa sociedade entende bem isso?

NM: Nossa sociedade caminha nes-se sentido. Já vivemos períodos mais alvissareiros e períodos mais obscu-ros. O Estado Novo foi um horror para o Brasil, a redemocratização foi uma espécie de alvorada, a elei-ção do presidente Lula representou uma grande esperança para o país. Mas houve uma involução em re-lação às garantias fundamentais. Temos que ver isso tudo de forma dialética. Na história, teve a época medieval, obscurantista; houve o período das inquisições, mas teve a Revolução Francesa, a Declaração Universal dos Direitos do Homem. Logo depois, houve uma reação persecutória e a França acabou caindo, em seguida, nos braços de Napoleão Bonaparte, que expandiu pelo mundo a força dos seus exérci-tos. Então, essa é uma questão dia-lética permanente.

“O advogado tem que ter o componente

altruísta, seu cliente é, sobretudo, a

liberdade. É um papel muito dignificante

e que muito nos enobrece.”

dizia que entre um médico e o pa-ciente só existem as questões cien-tíficas e os desígnios de Deus. Pois bem, entre o advogado, a causa e o cliente têm todas as imperfeições humanas, o jogo das paixões, pes-soas que são capazes de ações me-nos nobres, mais repulsivas. Isso é alguma coisa que faz com que esse embate seja duro, mas a gente deve ter sempre a postura da pondera-ção. A advocacia é uma profissão muito séria e ela deve ser coloca-da nos patamares mais elevados. A sociedade que entende bem isso é uma sociedade que vai em frente.

O Brasil está acordado, os advoga-dos estão alertas, há resistência. As conquistas se fazem passo a passo. Mais do que nunca a gente tem que fazer com que a Carta Cidadã se transforme efetivamente na Carta Cidadã. A Constituição não pode ser figurativa, uma farsa. Ouvi um discurso oficial dizendo que o go-verno de agora é republicano. Acho que o mais importante é proceder a uma republicanização da república, que é a res publica, coisa pública. Ela tem que ser igualitária, não deve eleger inimigos nem desafetos. Nós fazemos o trabalho da maior impor-

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PONTO DE VISTA | ENTREVISTA Nélio Machado

Revista Fórum CESA: Sua atuação como criminalista começou du-rante a ditadura militar. O senhor pode falar um pouco sobre a evo-lução da sua carreira a partir daí?

Nélio Machado: Eu me formei em 197�, mas meu pai, Lino Machado Filho, era um dos advogados que se dedicava à defesa de presos políti-cos desde o golpe militar. A partir de 197�, aproximadamente, eu comecei a trabalhar no escritório dele. Em razão disso, co-participei, diga-se, como reles colaborador, de algumas defesas. Depois da minha formatura, passamos a trabalhar lado a lado em diversas causas des-sa natureza.

Compartilhei da defesa de casos importantes, como o seqüestro do embaixador alemão Von Hollebem e do suíço Giovanni Enrico Bucher. Defendi um dos réus, José Roberto de Gonçalves Resende. Naquela época era possível que, de uma decisão tomada pela Justiça Militar, houvesse um recurso para o Supe-rior Tribunal Militar. Desse julga-mento cabia um recurso ordinário para o Supremo Tribunal Federal. Então começou nessa época tam-bém minha militância frente ao Supremo.

Minha formação veio a partir daí. Fui também estagiário no Tribu-nal do Júri; fiz diversos júris como estagiário e, mais tarde, como ad-vogado. Fui defensor público na Justiça Militar concomitantemen-te à minha atuação na advocacia privada. Pedi afastamento porque cheguei à conclusão que o tempo não era suficiente para que eu me ocupasse da banca privada ao lado da atuação como defensor público. Fui também presidente do conselho penitenciário no período de 199� a 1998. A partir daí, as coisas foram seguindo seu caminho.

RFC: Quais foram as principais mudanças no direito penal desde o início da sua carreira?

NM: Naquela época havia muito rigor, mas a ação do advogado era tida como meritória. Hoje temos o que eu chamo de “triunfo acusató-rio”. A premissa seria de igualdade, paridade de armas, e isso não acon-tece na prática. Com a utilização desses métodos tecnológicos de investigação – como a invasão de e-mails e a interceptação telefônica através de um suposto controle ju-dicial – e a criação de varas especia-lizadas – que são um equívoco, em minha opinião, porque elas tendem a combater o crime e não a julgar o acusado –, a defesa passa a ser mui-tas vezes alguém que incomoda.

As escutas são feitas pela polícia com o acompanhamento do Mi-nistério Público e solicitação ao juiz para cada prorrogação em períodos de 15 dias. Depois de um ano, dois, três, às vezes, quatro, o que passa a existir é uma possibilidade de defe-sa menor. A lei fala em 15 dias pror-rogáveis por mais 15, e nada além disso. Ela foi mal interpretada até o presente momento pelos nossos tribunais; à exceção de decisão re-cente do STJ que põe freio, ao que tudo indica, a esses excessos. Essa metodologia de arapongagem já convence o juiz de antemão.

No tempo da ditadura os exces-sos existiam no inquérito, no qual freqüentemente se praticavam vio-

lência, tortura, pau-de-arara, gela-deira, enfim, métodos de agressão ao corpo, à alma e à mente. Quan-do se chegava ao Poder Judiciário, porém, o advogado tinha absoluto respeito por parte dos tribunais e dos magistrados. Nós, advoga-dos, passamos de heróis a vilões. Eu acho que agora, em razão dos muitos excessos, começa a existir uma resistência e o interesse de se valorizar a advocacia, corolário inevitável da eficácia das garantias constitucionais. Quando a gente fala em devido processo legal, te-mos que falar em ampla defesa. Fa-lar em ampla defesa significa falar do advogado. Minha análise é que temos tido, no momento em que há uma Constituição que assegura muitos direitos abstratamente no papel, a violação permanente de várias garantias.

RFC: O grampo seria um ins-trumento de investigação válido quando feito com ordem judicial e obedecesse ao tempo máximo de 15 dias, prorrogável por mais 15?

NM: Não, considero que há uma carga de inconstitucionalidade in-separável e inevitável no uso desse instrumento. Na prática, o grampo como prova significa, por via oblí-qua, a utilização de uma auto-in-criminação como instrumento para deixar numa posição desfavorável o acusado ou o investigado. Eu só admito, como cidadão, que exis-tam métodos invasivos como esse na medida em que, pelo princípio da proporcionalidade, haja a peri-clitação de um bem jurídico maior da própria privacidade. Nesse sen-tido, estou falando de vida, de cri-mes de seqüestro, de estupro, de crimes que efetivamente tenham uma carga de reprovação que justi-fique o uso dessa metodologia ex-cepcional na apuração. Mas nem isso significa que essa prova possa ser considerada bastante. O Có-digo de Processo Penal diz que a confissão, para valer como prova, tem que ter harmonia com outras tantas provas. Ela pode ser uma re-ferência, uma orientação.

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A prova tem que ser colhida atra-vés do contraditório. O réu tem que saber que está sendo acusa-do, tem o direito de apresentar sua defesa nos termos das garantias fundamentais. Eu vejo que esses episódios se banalizaram. Hoje há notícias na CPI da intercepta-ção telefônica de que, no Brasil, existiria algo em torno de �90 mil interceptações telefônicas com or-dem judicial. Sem falar do grampo ilegal, pelas facilidades que se sabe existirem no mercado. É inadmissí-vel que isso continue dessa forma. Agora começa efetivamente a ha-ver uma evolução na postura dos tribunais. O ministro Gilmar Men-des tem falado em ação pedagó-gica do STF, e fala muito bem. O Supremo é sentinela da liberdade, guardião da Constituição Federal, não importa o que o grande povo possa achar.

O estardalhaço que se faz em al-guns casos é uma forma de punição antecipada que relembra os espe-táculos medievais. Antigamente, o povo assistia a enforcamentos em praça pública. Precisamos cuidar para que os princípios de civilização que foram conquistados lentamente não sofram um retrocesso. O povo apedrejou Jesus Cristo. A verdade é que não é a turba que resolve a questão, e sim um julgamento com critérios técnicos, jurídicos, com as garantias da dogmática, o princípio da reserva legal; enfim, conquistas que foram obtidas por muitos sé-culos de sofrimento, de dor, de luta e de caminhada no processo civili-zatório. Esta é a linha que deve se seguida.

RFC: Como se deu essa desvalori-zação do advogado identificada du-rante a sua atuação profissional?

NM: Em dado momento valoriza-ram-se muito o Ministério Público e o delegado de polícia com essas ações espetaculares. O advogado foi posto como se fosse um colabo-rador da criminalidade. Isso resulta, sobretudo, de um encantamento maior nos cursos jurídicos pela idéia de se fazer um concurso e pela co-

locação do advogado como sendo alguém que faz um papel menos dignificante, quando, na verdade, é um papel de grande importância social defender um direito alheio.

O advogado tem que ter o com-ponente altruísta, seu cliente é, sobretudo, a liberdade. É um pa-pel muito dignificante e que muito nos enobrece. Nós defendemos a liberdade humana. Esse é o nosso verdadeiro cliente, e essa frase não é minha, é do Evaristo de Morais se dirigindo àqueles que são incapa-zes de compreender a natureza do trabalho advocatício. Não há nada mais merecedor de elogios do que dizer-se defensor da liberdade. Qualquer um se envaideceria em dizer que esse é o seu ofício na Terra. Acho que essa compreensão está voltando.

Os advogados são beneficiários de terem escolhido uma profissão que muito realiza, embora seja carrega-da de muita dor, muito sofrimento, porque nos deparamos com as im-perfeições humanas. Rui Barbosa

A sociedade que não enxerga dessa forma é uma sociedade totalitária.

RFC: E a nossa sociedade entende bem isso?

NM: Nossa sociedade caminha nes-se sentido. Já vivemos períodos mais alvissareiros e períodos mais obscu-ros. O Estado Novo foi um horror para o Brasil, a redemocratização foi uma espécie de alvorada, a elei-ção do presidente Lula representou uma grande esperança para o país. Mas houve uma involução em re-lação às garantias fundamentais. Temos que ver isso tudo de forma dialética. Na história, teve a época medieval, obscurantista; houve o período das inquisições, mas teve a Revolução Francesa, a Declaração Universal dos Direitos do Homem. Logo depois, houve uma reação persecutória e a França acabou caindo, em seguida, nos braços de Napoleão Bonaparte, que expandiu pelo mundo a força dos seus exérci-tos. Então, essa é uma questão dia-lética permanente.

“O advogado tem que ter o componente

altruísta, seu cliente é, sobretudo, a

liberdade. É um papel muito dignificante

e que muito nos enobrece.”

dizia que entre um médico e o pa-ciente só existem as questões cien-tíficas e os desígnios de Deus. Pois bem, entre o advogado, a causa e o cliente têm todas as imperfeições humanas, o jogo das paixões, pes-soas que são capazes de ações me-nos nobres, mais repulsivas. Isso é alguma coisa que faz com que esse embate seja duro, mas a gente deve ter sempre a postura da pondera-ção. A advocacia é uma profissão muito séria e ela deve ser coloca-da nos patamares mais elevados. A sociedade que entende bem isso é uma sociedade que vai em frente.

O Brasil está acordado, os advoga-dos estão alertas, há resistência. As conquistas se fazem passo a passo. Mais do que nunca a gente tem que fazer com que a Carta Cidadã se transforme efetivamente na Carta Cidadã. A Constituição não pode ser figurativa, uma farsa. Ouvi um discurso oficial dizendo que o go-verno de agora é republicano. Acho que o mais importante é proceder a uma republicanização da república, que é a res publica, coisa pública. Ela tem que ser igualitária, não deve eleger inimigos nem desafetos. Nós fazemos o trabalho da maior impor-

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tância social; no mínimo, vamos im-pedir que alguém seja preso injusta-mente. O juiz tem que agradecer ao advogado pelo que o advogado fala em favor do seu cliente, porque ele faz um alerta à consciência do ma-gistrado. Se o magistrado olha para o advogado com reservas, com res-trições, pior para justiça, pior para todo mundo. O advogado é indis-pensável à administração da justiça e quem diz não sou eu, é a Cons-tituição Federal, no Artigo n° 1��. Mas andaram tentando demonizar o advogado, criando em relação a ele uma figura mefistofélica, que faz manobra, protege o criminoso.

RFC: Nesse contexto, como fica a atuação do advogado criminalista?

NM: O advogado criminalista atua onde se faz presente a necessidade da voz da defesa falar em favor de alguém. Advogar outra coisa não é senão falar em favor de um neces-sitado que precisa que lhe seja feita justiça. Houve a fase de jovens que eram eventualmente acusados por uso de substâncias entorpecentes, houve o início da fase dos chama-dos crimes financeiros, houve a fase dos crimes de natureza tributária.

Nos últimos tempos, sobretudo a par-tir de �00�, inovou-se em termos de perseguição com o uso de um apa-rato exibicionista sem paralelo, sem precedentes. Isso aconteceu a partir das rumorosas operações da Polícia Federal; hoje largamente questiona-das, porque a maior parte delas viola a Constituição. As garantias básicas e fundamentais não são observadas, na medida em que as pessoas são presas, algemadas, exibidas à exe-cração pública. A atividade advoca-tícia – que já teve um componente se não heróico, ao menos, distinto na valoração crítica da sociedade – começou a ser vista como se fos-se uma tarefa menos nobre. É como se não o acusado, mas o criminoso, já etiquetado desde a primeira hora em que sua foto estampou o jornal, não merecesse a voz do advogado a favor dos seus direitos. Isso na pers-pectiva de um linchamento, de uma desmoralização.

Supõe-se, de forma equivocada, que a prisão pode ser justificada na medida em ela alcance pessoas da classe média, da classe média alta, empresários, banqueiros. Na realidade, a prisão deve ser evita-da sempre que possível. Os subs-titutivos penais devem prevalecer em qualquer circunstância e que a prisão se dê nos casos de absoluta necessidade, como forma de defesa social. Nos casos do dia-a-dia, em que se discutem aspectos que po-dem ser resolvidos por outros ramos do direito – como o societário, o tributário e o civil –, deve-se evitar o direito penal, que traz mais des-vantagens e inconveniências para a própria sociedade.

RFC: Como se deram essas mu-danças constatadas a partir de 2003?NM: De alguma forma, mais consciente ou menos consciente, montou-se um aparato à margem da Constituição e do Código de Processo Penal. Utiliza-se, inclu-sive, de equipes especializadas que passaram a transitar por todo território nacional e que violam a disposição legal pertinente ao inquérito policial. Hoje se vê, fre-qüentemente, um delegado da Polícia Federal de Brasília atuando em um inquérito no Rio de Janei-ro ou em São Paulo. Eles se valem do pendrive para fazer o que eles chamam de cópia de segurança de um original, que fica retido em cartório e o advogado não tem acesso. Nada disso está previsto em lei.

A informática não pode ser usada em desfavor das garantias funda-mentais. Quando fazem os gram-pos, não há uma transcrição lite-ral do que se tem conversado, e sim uma interpretação subjetiva, no estilo narrativo, por um poli-cial que muitas vezes não tem se-quer formação de bacharel. Hoje a gente vê até a Polícia Federal compartilhando com arapongas com o concurso de pessoas ligadas a ABIN – que outra coisa não é se-não o velho SNI (Serviço Nacional de Informações), uma instituição

que precisa ser repensada no Bra-sil democrático. Isso não pode continuar como está e a sociedade começa a reagir. Os tribunais, em particular, começam a coibir essas ilegalidades.

RFC: Como a ABIN deveria ser repensada?

NM: Acho, e aí é uma posição minha e talvez eu seja tido como radical, que a ABIN deveria ser extinta. O Estado tem na própria conformação constitucional os três poderes e as instâncias poli-ciais. Não vejo motivo para exis-tir um órgão que se assemelha ao extinto SNI. Um órgão que faz lembrar a chamada comuni-dade de informações e vicejar a ditadura, que foi responsável por tantas mazelas, tantos desmandos, tantas violências nesse país. O re-gime democrático é o regime da transparência e, como tal, o que é oculto, sigiloso, preservado, deve-se reduzir ao grau mínimo. As es-truturas de poder investigatório podem ter sua eficácia indepen-dentemente de um órgão dessa natureza, que não traz benefício concreto nenhum para o país.

RFC: Como se constata a reação da sociedade citada?

NM: Através de artigos em jornais e de conversas com pessoas que tem maior sensibilidade. Antigamente, quando se verberava contra esse uso indiscriminado de grampos, não era incomum que pessoas até de nível cultural elevado dissessem: “mas não tinha ordem judicial?”. A ordem judicial não tem o relevo que as pessoas supõem. Não é pelo fato de ter ordem judicial que a violência deixa de ocorrer. Os juízes emitem ordens ilegais, caso não as emitis-sem não haveria habeas corpus con-cedidos. O habeas corpus se conce-de contra um ato abusivo ou ilegal praticado por quem detém o poder. O mesmo se diga do mandado de segurança. O juiz, quando permite essas ações invasivas e as banaliza – fazendo disso algo de importância secundária ou priorizando a eficácia

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do combate ao crime – está, a rigor, sem ter a devida atenção às garan-tias constitucionais.

O próprio Legislativo está assinando contra. Até o Executivo está pro-pondo medidas de modificação em relação à invasão de privacidade. A sociedade começa a acordar. Se ela ficar omissa, quando nos der-mos conta estaremos caminhando para um Estado Policial, um Estado de Exceção e a nossa história mais recente não deixa que nos engane-mos. Vivemos um período de trevas entre 196� e 198� e a constituição de 1988 surgiu com uma expectati-va muito grande. A maior parte dos direitos ali consignados, porém, não tem tido a aplicação efetiva. No úl-timo século tivemos também o Esta-do Novo, quer dizer, a democracia é algo tenro ainda, incipiente, e nós temos que fazer um esforço diutur-no para que ela não pereça. Acho que hoje os advogados começam efetivamente a ter a noção muito clara do seu dever, do seu papel de resistência em face dos desmandos.

RFC: Como a OAB tem reagido a esse quadro?

NM: A OAB tem sido ativa. A maior prova do que acabo de afirmar é que, já no início do ano, foi escolhi-do como tema central para a Con-ferência Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, que se dará na cidade de Natal entre 10 e 15 de novembro, “Estado Democrático de Direito versus Estado Policial”. Isso é um sinal claro de que a OAB não só prioriza o tema como revela sua preocupação e sua responsabi-lidade na luta pela preservação da ordem jurídica e da Constituição. Se esse tema foi posto é porque se observa no dia-a-dia que se vem violando a Constituição com muita constância, como se efetivamente fosse razoável essa forma de atuar no poder à margem das garantias básicas. A OAB está exercendo um papel muito digno e muito positivo para o interesse social.

RFC: A mídia, que nesse contexto de espetacularização tem um pa-

pel central, e o clamor público in-terferem no julgamento do juiz e na atuação dos advogados?

NM: Isso é um fato. Na realidade, o juiz-comunicação muitas vezes faz com que haja uma pressão e essa pressão acaba se direcionando em determinado rumo. Muitos dos que operam na atuação jurisdicio-nal acabam sofrendo esse tipo de influência. O grande juiz Piero Ca-lamandrei disse que mais virtuoso ser justo parecendo injusto do que ser injusto para salvar as aparências de justiça. Ou seja, o juiz tem que ser justo, não tem que se preocu-par com o que a mídia esteja di-zendo do caso ou da decisão dele. Quando o juiz primeiro consulta o clipping dos jornais para verificar o que estão dizendo da causa e o que possam vir a dizer dele, magistrado, ele está deixando de ser juiz.

Não importa muito a opinião da mídia, o que importa é a coerência de se fazer justiça. Há o que cha-mamos “trial da mídia”, ou seja, a mídia operando e conduzindo a causa, através do que poderíamos chamar de duplo debate. Isso acon-tece de tal maneira que nem Jesus Cristo na tribuna da defesa seria capaz de resolver a dor daquele perseguido. De vez em quando, se escolhem alguns bodes expiatórios, algumas pessoas pré-selecionadas para receberem todo esse impac-to, essa volúpia condenatória, esse assanhamento punitivo. Temos que tentar ter o esclarecimento. A mídia deve lembrar-se sempre que, quan-do o regime deixa de ser democrá-tico, os primeiros atingidos são os jornalistas e os advogados.

O regime democrático é o regime da transparência e, como tal, o que é oculto, sigiloso, preservado, deve-se reduzir ao grau mínimo.

Ana

Paul

a Am

orim

Revista Fórum CESA - ano � • n. 8 • p. 17-�5 • jul./set. �008 �1

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do combate ao crime – está, a rigor, sem ter a devida atenção às garan-tias constitucionais.

O próprio Legislativo está assinando contra. Até o Executivo está pro-pondo medidas de modificação em relação à invasão de privacidade. A sociedade começa a acordar. Se ela ficar omissa, quando nos der-mos conta estaremos caminhando para um Estado Policial, um Estado de Exceção e a nossa história mais recente não deixa que nos engane-mos. Vivemos um período de trevas entre 196� e 198� e a constituição de 1988 surgiu com uma expectati-va muito grande. A maior parte dos direitos ali consignados, porém, não tem tido a aplicação efetiva. No úl-timo século tivemos também o Esta-do Novo, quer dizer, a democracia é algo tenro ainda, incipiente, e nós temos que fazer um esforço diutur-no para que ela não pereça. Acho que hoje os advogados começam efetivamente a ter a noção muito clara do seu dever, do seu papel de resistência em face dos desmandos.

RFC: Como a OAB tem reagido a esse quadro?

NM: A OAB tem sido ativa. A maior prova do que acabo de afirmar é que, já no início do ano, foi escolhi-do como tema central para a Con-ferência Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, que se dará na cidade de Natal entre 10 e 15 de novembro, “Estado Democrático de Direito versus Estado Policial”. Isso é um sinal claro de que a OAB não só prioriza o tema como revela sua preocupação e sua responsabi-lidade na luta pela preservação da ordem jurídica e da Constituição. Se esse tema foi posto é porque se observa no dia-a-dia que se vem violando a Constituição com muita constância, como se efetivamente fosse razoável essa forma de atuar no poder à margem das garantias básicas. A OAB está exercendo um papel muito digno e muito positivo para o interesse social.

RFC: A mídia, que nesse contexto de espetacularização tem um pa-

pel central, e o clamor público in-terferem no julgamento do juiz e na atuação dos advogados?

NM: Isso é um fato. Na realidade, o juiz-comunicação muitas vezes faz com que haja uma pressão e essa pressão acaba se direcionando em determinado rumo. Muitos dos que operam na atuação jurisdicio-nal acabam sofrendo esse tipo de influência. O grande juiz Piero Ca-lamandrei disse que mais virtuoso ser justo parecendo injusto do que ser injusto para salvar as aparências de justiça. Ou seja, o juiz tem que ser justo, não tem que se preocu-par com o que a mídia esteja di-zendo do caso ou da decisão dele. Quando o juiz primeiro consulta o clipping dos jornais para verificar o que estão dizendo da causa e o que possam vir a dizer dele, magistrado, ele está deixando de ser juiz.

Não importa muito a opinião da mídia, o que importa é a coerência de se fazer justiça. Há o que cha-mamos “trial da mídia”, ou seja, a mídia operando e conduzindo a causa, através do que poderíamos chamar de duplo debate. Isso acon-tece de tal maneira que nem Jesus Cristo na tribuna da defesa seria capaz de resolver a dor daquele perseguido. De vez em quando, se escolhem alguns bodes expiatórios, algumas pessoas pré-selecionadas para receberem todo esse impac-to, essa volúpia condenatória, esse assanhamento punitivo. Temos que tentar ter o esclarecimento. A mídia deve lembrar-se sempre que, quan-do o regime deixa de ser democrá-tico, os primeiros atingidos são os jornalistas e os advogados.

O regime democrático é o regime da transparência e, como tal, o que é oculto, sigiloso, preservado, deve-se reduzir ao grau mínimo.

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RFC: O que seria esse duplo de-bate?

NM: O duplo debate é a causa de-cidida não só na instância judiciá-ria; ela é pré-decidida ou decidida concomitantemente por aquilo que a mídia veicula. São os casos que estão em evidência e sobre os quais as pessoas formam opinião, independentemente de terem lido uma folha de papel alusiva ao caso concreto. Isso é uma tendência que faz com que haja pré-julgamento. O juiz tem que ser um grande ma-gistrado para não dar importância a isso e se comportar de modo imune a esse tipo de pressão.

Se o juiz for juiz, no bom sentido, na acepção plena da palavra, a mí-dia não vai atrapalhar nunca. Se ele for um juiz carreirista, um juiz que eventualmente possa ter propostas outras como promoção pessoal,

para 150; no outro ano para 180, e assim por diante. Não é assim que as coisas devem ser feitas. Se existem dados em desfavor de um cidadão, que se instaure um inquérito, que ele seja convocado, que se dê am-plo direito de conhecer os termos da investigação, que as perguntas possam ser respondidas não através de ciladas, mas sim por meio de um procedimento às claras.

Quando se faz um trabalho com eficiência, evidentemente que a prova surge. Há de se acabar com esse preconceito de que apenas esses métodos invasivos e que vio-lam a Constituição são eficazes. Se formos pensar assim, então haverá, em breve, aqueles que defenderão o uso da tortura. Agora mesmo, nos Estados Unidos, com essa história de Guantánamo, tem-se consenti-do com algumas barbaridades que fazem corar e envergonhar os maio-

Quando se faz um trabalho com eficiência, evidentemente que a prova surge. Há de se acabar com esse preconceito de que apenas esses métodos invasivos e que violam a Constituição são eficazes.

tudo fica mais perigoso. Eu já par-ticipei de julgamentos em que, em uma dessas ocasiões, o juiz disse mais ou menos o seguinte: “bom, eu absolvi. A minha convicção ínti-ma era para condenar, mas eu jurei julgar de acordo com a lei e as pro-vas dos autos. Eu não encontrei a prova que esperava ter para conde-nar o réu do qual, subjetivamente, tenho uma visão de culpabilidade. Como magistrado, não posso con-dená-lo”.

Essas operações que têm ocorrido, sobretudo a partir de �00�, apon-tam no sentido de que o julgamento passa a ser desimportante. Ninguém consegue apagar a imagem de uma foto na primeira página com alge-mas às 6h da manhã. Em �00�, a Polícia Federal fez dez operações de relevo. No ano seguinte, já passou

res constitucionalistas que aquele país já produziu.

RFC: O aumento no número de operações da Polícia Federal é vis-to por alguns como aumento da efetividade no combate ao crime. O que o senhor acha disso?

NM: Na verdade, as pessoas não pensam no seguinte: será que nessas operações, já que a polícia tinha alguns dados, não se pode-ria, por outros métodos, chegar a uma investigação compatível com as garantias da Constituição? Isso é marketing, é alguma coisa que se faz de forma consciente contra as garantias básicas da Constitui-ção Federal. Isso deve cessar, não pode continuar assim. E acho que vai acabar. Claro que vai existir um caso isolado ou outro de excesso,

mas não como uma representação sistêmica com o propósito de se mostrar que o rico vai pra cadeia ou a classe média vai para a ca-deia, que eles também são algema-dos. Isso é uma tolice, algema não se deve usar em ninguém, salvo em caso de absoluta necessidade, quando a pessoa está fora do con-trole. Qual é a necessidade de se algemar um empresário e exibi-lo no jornal das �0h? Nenhuma ne-cessidade. A polícia pode trabalhar com os meios que o Código Penal permite: como a prova pericial ou a prova testemunhal.

RFC: Desde a Constituição de 1988, houve avanços no direito penal?

NM: Não. A lei penal deveria se consubstanciar em um único di-ploma legal e não em leis extrava-gantes. Essa tese foi defendida na Conferência Nacional dos Advoga-dos, na Bahia, em 1976. Naque-la época, existia Lei de Segurança Nacional, Lei de Entorpecentes, Lei de Imprensa, e assim por dian-te. Subsistemas para a aplicação do direito penal. A minha visão é cor-respondente à essa. As leis penais devem corporificar-se em um único diploma repressivo, que há de ser o Código Penal.

Toda vez que se faz uma legislação extravagante, há uma tendência a se criar regras especiais que acabam confrontando-se com as regras ge-rais. Por um critério de interpreta-ção, a lei especial prevalece sobre a geral. Isso não é positivo. Inverte-se aqui e ali o ônus da prova, presu-me-se a culpa e criam-se entidades sem definição clara, como acontece com o chamado crime organizado, que não se sabe exatamente o que seja, já que a lei não define. Sou ab-solutamente contrário a essa profu-são de leis.

Além disso, há muitas condutas que não precisariam ser criminalizadas. Deveria haver uma despenalização, uma descriminalização. Mesmo em se cuidando de crimes, a substitui-ção das penas por medidas alterna-tivas deveria ser estimulada de uma maneira que se evite o mal da ca-

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deia. A cadeia acaba fazendo com que a pessoa que lá tenha entrado saia muito pior do que quando en-trou. Temos que realmente pensar em menos leis e mais proteção. Com menos presos é muito mais viável fazer um trabalho de reinser-ção social. Essas cadeias novas de regime de segurança máxima, em que há uma permanência de ��h encarcerado, são equívocos profun-dos, equívocos lamentáveis.

A execução penal também preci-sa ser repensada. Ela tem que ser obra do juiz da condenação, como se faz quando se cobra uma dívida ou quando se discute uma questão societária. A realidade hoje, pelo menos no Rio de Janeiro, tem sido o juiz de execução penal que cui-da de milhares de presos, ou seja, não cuida de preso nenhum, é im-possível.

RFC: Quais condutas poderiam, em sua opinião, ser descriminali-zadas?

NM: Por exemplo, uso de substân-cias entorpecentes, crimes de natu-reza tributária, que podem ser resol-vidos com penas pecuniárias, infra-ções nas quais as partes se dão por satisfeitas. O caminho é uma refle-xão crítica de todo esse arcabouço jurídico. A gente precisa ter menos leis, melhor conhecidas, e critérios norteadores de interpretação mais bem assentados para que a pru-dência no julgar seja uma garantia contra os desatinos e os disparates que de vez em quando assistimos. Seria repassar o Código Penal e as leis extravagantes de ponta a ponta, fazendo a seguinte indagação: ou-tro ramo do direito poderia resolver essa contenda, esse litígio? Se a res-posta for afirmativa, pode-se descri-minalizar.

RFC: A preferência por penas al-ternativas tem espaço no Brasil?

NM: Tudo acontece de forma ab-solutamente homeopática. Uma frase usada muitas vezes, “bandi-do bom é bandido morto”, reflete a idéia de que essas pessoas têm

mais é que sofrer mesmo e que nós não vamos dar luxo e conforto para essa gente. Na verdade, não se tra-ta de luxo e conforto. Trata-se de se reclamar a preservação mínima da dignidade humana, que é uma das garantias basilares da Constituição Federal. Se a pessoa for bem tra-tada, a possibilidade de ela reagir bem é muito maior do que se ela for agredida, humilhada, e isso é o que acontece na realidade do nos-so sistema penal.

A cadeia, para melhorar, primeiro tem que ser evitada ao máximo. Se-gundo, em ocorrendo, que ela seja a menos dolorosa possível e a mais humanitária, na perspectiva de via-bilizar uma revalorização da própria pessoa destinatária do rigor penal. As chances de reinserção são muito maiores caso assim se proceda. Ain-da que se diga que a taxa de reinci-dência é alta em qualquer lugar do mundo, ela será sempre maior se porventura o tratamento for incom-patível com a dignidade humana.

RFC: Quais foram as mudanças do Sistema Carcerário, desde a época em que o senhor era presidente do Conselho Penitenciário?

NM: As cadeias hoje, ao pretexto da segurança máxima, estão se fa-zendo de forma desumana, de for-ma a maltratar, a controlar, ultrapas-sando qualquer limite do que possa ser aceitável. Essas cadeias, como as novas construídas em Campo Grande e no Paraná, começam por desatender os princípios básicos. A recuperação do preso pressupõe contato com a família, contato com entes queridos. Quando se afasta, se brutaliza, se radicaliza. Quem acha que isso é bom, no fundo, por uma forma indireta, está sus-tentando a pena de morte. Trata-se de submeter a uma humilhação tal que a vida acaba. E não há cadeia que chegue diante do aumento da população carcerária brasileira. Es-tamos seguindo erradamente o mo-delo norte-americano. Lá tem mais de � milhões de pessoas encarce-

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RFC: O que seria esse duplo de-bate?

NM: O duplo debate é a causa de-cidida não só na instância judiciá-ria; ela é pré-decidida ou decidida concomitantemente por aquilo que a mídia veicula. São os casos que estão em evidência e sobre os quais as pessoas formam opinião, independentemente de terem lido uma folha de papel alusiva ao caso concreto. Isso é uma tendência que faz com que haja pré-julgamento. O juiz tem que ser um grande ma-gistrado para não dar importância a isso e se comportar de modo imune a esse tipo de pressão.

Se o juiz for juiz, no bom sentido, na acepção plena da palavra, a mí-dia não vai atrapalhar nunca. Se ele for um juiz carreirista, um juiz que eventualmente possa ter propostas outras como promoção pessoal,

para 150; no outro ano para 180, e assim por diante. Não é assim que as coisas devem ser feitas. Se existem dados em desfavor de um cidadão, que se instaure um inquérito, que ele seja convocado, que se dê am-plo direito de conhecer os termos da investigação, que as perguntas possam ser respondidas não através de ciladas, mas sim por meio de um procedimento às claras.

Quando se faz um trabalho com eficiência, evidentemente que a prova surge. Há de se acabar com esse preconceito de que apenas esses métodos invasivos e que vio-lam a Constituição são eficazes. Se formos pensar assim, então haverá, em breve, aqueles que defenderão o uso da tortura. Agora mesmo, nos Estados Unidos, com essa história de Guantánamo, tem-se consenti-do com algumas barbaridades que fazem corar e envergonhar os maio-

Quando se faz um trabalho com eficiência, evidentemente que a prova surge. Há de se acabar com esse preconceito de que apenas esses métodos invasivos e que violam a Constituição são eficazes.

tudo fica mais perigoso. Eu já par-ticipei de julgamentos em que, em uma dessas ocasiões, o juiz disse mais ou menos o seguinte: “bom, eu absolvi. A minha convicção ínti-ma era para condenar, mas eu jurei julgar de acordo com a lei e as pro-vas dos autos. Eu não encontrei a prova que esperava ter para conde-nar o réu do qual, subjetivamente, tenho uma visão de culpabilidade. Como magistrado, não posso con-dená-lo”.

Essas operações que têm ocorrido, sobretudo a partir de �00�, apon-tam no sentido de que o julgamento passa a ser desimportante. Ninguém consegue apagar a imagem de uma foto na primeira página com alge-mas às 6h da manhã. Em �00�, a Polícia Federal fez dez operações de relevo. No ano seguinte, já passou

res constitucionalistas que aquele país já produziu.

RFC: O aumento no número de operações da Polícia Federal é vis-to por alguns como aumento da efetividade no combate ao crime. O que o senhor acha disso?

NM: Na verdade, as pessoas não pensam no seguinte: será que nessas operações, já que a polícia tinha alguns dados, não se pode-ria, por outros métodos, chegar a uma investigação compatível com as garantias da Constituição? Isso é marketing, é alguma coisa que se faz de forma consciente contra as garantias básicas da Constitui-ção Federal. Isso deve cessar, não pode continuar assim. E acho que vai acabar. Claro que vai existir um caso isolado ou outro de excesso,

mas não como uma representação sistêmica com o propósito de se mostrar que o rico vai pra cadeia ou a classe média vai para a ca-deia, que eles também são algema-dos. Isso é uma tolice, algema não se deve usar em ninguém, salvo em caso de absoluta necessidade, quando a pessoa está fora do con-trole. Qual é a necessidade de se algemar um empresário e exibi-lo no jornal das �0h? Nenhuma ne-cessidade. A polícia pode trabalhar com os meios que o Código Penal permite: como a prova pericial ou a prova testemunhal.

RFC: Desde a Constituição de 1988, houve avanços no direito penal?

NM: Não. A lei penal deveria se consubstanciar em um único di-ploma legal e não em leis extrava-gantes. Essa tese foi defendida na Conferência Nacional dos Advoga-dos, na Bahia, em 1976. Naque-la época, existia Lei de Segurança Nacional, Lei de Entorpecentes, Lei de Imprensa, e assim por dian-te. Subsistemas para a aplicação do direito penal. A minha visão é cor-respondente à essa. As leis penais devem corporificar-se em um único diploma repressivo, que há de ser o Código Penal.

Toda vez que se faz uma legislação extravagante, há uma tendência a se criar regras especiais que acabam confrontando-se com as regras ge-rais. Por um critério de interpreta-ção, a lei especial prevalece sobre a geral. Isso não é positivo. Inverte-se aqui e ali o ônus da prova, presu-me-se a culpa e criam-se entidades sem definição clara, como acontece com o chamado crime organizado, que não se sabe exatamente o que seja, já que a lei não define. Sou ab-solutamente contrário a essa profu-são de leis.

Além disso, há muitas condutas que não precisariam ser criminalizadas. Deveria haver uma despenalização, uma descriminalização. Mesmo em se cuidando de crimes, a substitui-ção das penas por medidas alterna-tivas deveria ser estimulada de uma maneira que se evite o mal da ca-

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deia. A cadeia acaba fazendo com que a pessoa que lá tenha entrado saia muito pior do que quando en-trou. Temos que realmente pensar em menos leis e mais proteção. Com menos presos é muito mais viável fazer um trabalho de reinser-ção social. Essas cadeias novas de regime de segurança máxima, em que há uma permanência de ��h encarcerado, são equívocos profun-dos, equívocos lamentáveis.

A execução penal também preci-sa ser repensada. Ela tem que ser obra do juiz da condenação, como se faz quando se cobra uma dívida ou quando se discute uma questão societária. A realidade hoje, pelo menos no Rio de Janeiro, tem sido o juiz de execução penal que cui-da de milhares de presos, ou seja, não cuida de preso nenhum, é im-possível.

RFC: Quais condutas poderiam, em sua opinião, ser descriminali-zadas?

NM: Por exemplo, uso de substân-cias entorpecentes, crimes de natu-reza tributária, que podem ser resol-vidos com penas pecuniárias, infra-ções nas quais as partes se dão por satisfeitas. O caminho é uma refle-xão crítica de todo esse arcabouço jurídico. A gente precisa ter menos leis, melhor conhecidas, e critérios norteadores de interpretação mais bem assentados para que a pru-dência no julgar seja uma garantia contra os desatinos e os disparates que de vez em quando assistimos. Seria repassar o Código Penal e as leis extravagantes de ponta a ponta, fazendo a seguinte indagação: ou-tro ramo do direito poderia resolver essa contenda, esse litígio? Se a res-posta for afirmativa, pode-se descri-minalizar.

RFC: A preferência por penas al-ternativas tem espaço no Brasil?

NM: Tudo acontece de forma ab-solutamente homeopática. Uma frase usada muitas vezes, “bandi-do bom é bandido morto”, reflete a idéia de que essas pessoas têm

mais é que sofrer mesmo e que nós não vamos dar luxo e conforto para essa gente. Na verdade, não se tra-ta de luxo e conforto. Trata-se de se reclamar a preservação mínima da dignidade humana, que é uma das garantias basilares da Constituição Federal. Se a pessoa for bem tra-tada, a possibilidade de ela reagir bem é muito maior do que se ela for agredida, humilhada, e isso é o que acontece na realidade do nos-so sistema penal.

A cadeia, para melhorar, primeiro tem que ser evitada ao máximo. Se-gundo, em ocorrendo, que ela seja a menos dolorosa possível e a mais humanitária, na perspectiva de via-bilizar uma revalorização da própria pessoa destinatária do rigor penal. As chances de reinserção são muito maiores caso assim se proceda. Ain-da que se diga que a taxa de reinci-dência é alta em qualquer lugar do mundo, ela será sempre maior se porventura o tratamento for incom-patível com a dignidade humana.

RFC: Quais foram as mudanças do Sistema Carcerário, desde a época em que o senhor era presidente do Conselho Penitenciário?

NM: As cadeias hoje, ao pretexto da segurança máxima, estão se fa-zendo de forma desumana, de for-ma a maltratar, a controlar, ultrapas-sando qualquer limite do que possa ser aceitável. Essas cadeias, como as novas construídas em Campo Grande e no Paraná, começam por desatender os princípios básicos. A recuperação do preso pressupõe contato com a família, contato com entes queridos. Quando se afasta, se brutaliza, se radicaliza. Quem acha que isso é bom, no fundo, por uma forma indireta, está sus-tentando a pena de morte. Trata-se de submeter a uma humilhação tal que a vida acaba. E não há cadeia que chegue diante do aumento da população carcerária brasileira. Es-tamos seguindo erradamente o mo-delo norte-americano. Lá tem mais de � milhões de pessoas encarce-

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radas. O Brasil deve ter hoje quase 500 mil presos. Há pouco tempo tinha 1�0 mil. E daqui a pouco vai ter 1 milhão se seguir nessa escala-da. Isso tem que acabar. E nós sabe-mos como são nossas prisões. São masmorras infectas, insalubres, que não atendem às regras mínimas de tratamento aos presos que a ONU determina.

RFC: O jornal Folha de S.Paulo pu-blicou uma matéria denunciando que 9 mil pessoas estão presas de-pois de já terem cumprido a pena e 133 mil estão em prisão pre-ventiva. A matéria atribuiu essa situação ao número reduzido de defensores públicos. Qual é a sua opinião sobre essa situação?

NM: O problema aí decorre pri-meiro das pessoas serem manda-das para a cadeia muitas vezes sem necessidade. O número de presos provisórios já é um sinal indicativo disso. Por outro lado, os benefícios prisionais – que são estímulos para que as pessoas tenham perspectiva de vida – cada vez mais são diminu-ídos. Eu vivo pensando duas vezes se a prisão é necessária, se não for, que se evite.

A Defensoria Pública, por sua vez, tem a própria realidade estrutu-ral deficiente. O defensor muitas vezes, por falta de estrutura, não consegue ter o empenho necessário para a defesa. O advogado priva-do defende seu cliente no local de origem e segue a causa para onde ela for. O defensor é limitado a fa-zer o recurso, porque raramente se tem uma presença pessoal. Se tiver, não será do defensor de origem, que conheceu melhor o caso, e sim de um representante da defensoria ou coisa que o valha. O certo se-ria se garantir à Defensoria Pública a maior eficácia possível a partir de uma estruturação compatível com os interesses da defesa.

A Defensoria deveria também ter permanecido, como foi no passado, vinculada ao Ministério Público. Ini-ciaria-se a carreira pela Defensoria. Isso, por si só, já humanizaria subs-

tancialmente o formulador da acusa-ção. O que acontece hoje é que pes-soas muito jovens, sem maior expe-riência de vida, passam a ter o poder de acusar. O mesmo se passa com os juízes. Cada vez mais se reduzem os períodos necessários para investidu-ra como magistrado ou como repre-sentante do Ministério Público.

Esse papel, porém, não é só do defensor. Promotor é fiscal da lei e órgão de acusação. A tarefa mais importante é fiscal da lei. Ele pode impetrar habeas corpus. Temos que restabelecer a idéia do promotor protetor e não do promotor algoz. Ele não é adversário do advogado, somos ambos auxiliares da Justiça. Temos que acabar com essa refrega, o advogado quer soltar o bandido, o promotor quer encarcerar até a morte. Há um ponto de equilíbrio aí, um ponto de moderação. Encon-trando esse denominador comum, o problema tende a diminuir.

As mudanças que se tem feito são terríveis, hoje a gente vê o direito penal do espetáculo, do terror, pe-nas que fazem com que Beccaria, que escreveu em 176� Dos delitos e das penas, se levante do seu túmulo e fique absolutamente surpreendi-do. A pena tem que corresponder ao mal do crime. Imaginemos um comportamento de falsidade, sem maior conseqüência, pena de 1 a 5 anos ou coisa que o valha. O juiz, considerando concurso material, soma a pena, que acaba chegando a �5 anos. Isso agride o princípio da proporcionalidade. E de vez em quando a gente vê esses absurdos. Absurdos os quais quase sempre são corrigidos pelos tribunais supe-riores, o STF particularmente.

Há quem diga, e com razão, que, quando uma causa chega ao Supre-mo, o juiz precisa ter uma compe-netração especial, porque é a última oportunidade do réu. E aí entra o lado da advocacia. Às vezes, temos 15 minutos, é o tempo que a gente ocupa na tribuna, para defender a honra e a liberdade de uma pessoa. Em outros casos o tempo é maior, mas a regra geral é 15 minutos.

Eu estou falando nessa entrevista a mais tempo do que o tempo que se concede na tribuna do Supremo pra defender um recurso. É desgastante isso tudo. É difícil suportar a dor de eventualmente não ter tido sucesso em uma causa que nós avaliamos como sendo absolutamente correta e justa. O próprio advogado é um juiz da causa.

RFC: Nessa perspectiva do advo-gado como juiz da causa, como fica a relação com o cliente?

NM: Eu já ouvi advogados dizendo, por exemplo, que não defendem acusado de tráfico ou de estupro. Isso é uma contradição à advocacia. O advogado não pode dizer isso. E se o acusado dessas ilicitudes for inocente? E se ele estiver receben-do uma pena muita além daquela que seria razoável? E se, além dele, estiverem estigmatizando a família dele, que não é culpada de nada, é vítima também? O advogado é a voz dos direitos legais do acusado. Ele pode pedir até a condenação do seu cliente, não está ali para passar a mão na cabeça dele. Eu já tive ocasião de pedir a condenação do meu cliente. Não na perspectiva desarrazoada e exagerada do Minis-tério Público, mas em uma proposi-tura compatível com o equilíbrio na prestação jurisdicional.

RFC: Nesse contexto, qual é o per-fil ideal do advogado criminalista?

NM: Tem que ser uma pessoa que estude, que tenha bom senso, sen-sibilidade, combatividade, que não esmoreça. Diante de uma eventual derrota, ao invés de cair, que se le-vante imediatamente. Se nós ima-ginarmos uma luta de boxe de dez rounds, o advogado tem que estar preparado para apanhar em nove e ganhar no décimo.

É preciso, ainda, acreditar na força da palavra. Não perder a capacida-de de indignação, se conformar com as coisas que estão no descaminho. É acreditar! E aí eu vou recorrer ao professor Roberto Lira, um dos au-tores do Código Penal brasileiro – e

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radas. O Brasil deve ter hoje quase 500 mil presos. Há pouco tempo tinha 1�0 mil. E daqui a pouco vai ter 1 milhão se seguir nessa escala-da. Isso tem que acabar. E nós sabe-mos como são nossas prisões. São masmorras infectas, insalubres, que não atendem às regras mínimas de tratamento aos presos que a ONU determina.

RFC: O jornal Folha de S.Paulo pu-blicou uma matéria denunciando que 9 mil pessoas estão presas de-pois de já terem cumprido a pena e 133 mil estão em prisão pre-ventiva. A matéria atribuiu essa situação ao número reduzido de defensores públicos. Qual é a sua opinião sobre essa situação?

NM: O problema aí decorre pri-meiro das pessoas serem manda-das para a cadeia muitas vezes sem necessidade. O número de presos provisórios já é um sinal indicativo disso. Por outro lado, os benefícios prisionais – que são estímulos para que as pessoas tenham perspectiva de vida – cada vez mais são diminu-ídos. Eu vivo pensando duas vezes se a prisão é necessária, se não for, que se evite.

A Defensoria Pública, por sua vez, tem a própria realidade estrutu-ral deficiente. O defensor muitas vezes, por falta de estrutura, não consegue ter o empenho necessário para a defesa. O advogado priva-do defende seu cliente no local de origem e segue a causa para onde ela for. O defensor é limitado a fa-zer o recurso, porque raramente se tem uma presença pessoal. Se tiver, não será do defensor de origem, que conheceu melhor o caso, e sim de um representante da defensoria ou coisa que o valha. O certo se-ria se garantir à Defensoria Pública a maior eficácia possível a partir de uma estruturação compatível com os interesses da defesa.

A Defensoria deveria também ter permanecido, como foi no passado, vinculada ao Ministério Público. Ini-ciaria-se a carreira pela Defensoria. Isso, por si só, já humanizaria subs-

tancialmente o formulador da acusa-ção. O que acontece hoje é que pes-soas muito jovens, sem maior expe-riência de vida, passam a ter o poder de acusar. O mesmo se passa com os juízes. Cada vez mais se reduzem os períodos necessários para investidu-ra como magistrado ou como repre-sentante do Ministério Público.

Esse papel, porém, não é só do defensor. Promotor é fiscal da lei e órgão de acusação. A tarefa mais importante é fiscal da lei. Ele pode impetrar habeas corpus. Temos que restabelecer a idéia do promotor protetor e não do promotor algoz. Ele não é adversário do advogado, somos ambos auxiliares da Justiça. Temos que acabar com essa refrega, o advogado quer soltar o bandido, o promotor quer encarcerar até a morte. Há um ponto de equilíbrio aí, um ponto de moderação. Encon-trando esse denominador comum, o problema tende a diminuir.

As mudanças que se tem feito são terríveis, hoje a gente vê o direito penal do espetáculo, do terror, pe-nas que fazem com que Beccaria, que escreveu em 176� Dos delitos e das penas, se levante do seu túmulo e fique absolutamente surpreendi-do. A pena tem que corresponder ao mal do crime. Imaginemos um comportamento de falsidade, sem maior conseqüência, pena de 1 a 5 anos ou coisa que o valha. O juiz, considerando concurso material, soma a pena, que acaba chegando a �5 anos. Isso agride o princípio da proporcionalidade. E de vez em quando a gente vê esses absurdos. Absurdos os quais quase sempre são corrigidos pelos tribunais supe-riores, o STF particularmente.

Há quem diga, e com razão, que, quando uma causa chega ao Supre-mo, o juiz precisa ter uma compe-netração especial, porque é a última oportunidade do réu. E aí entra o lado da advocacia. Às vezes, temos 15 minutos, é o tempo que a gente ocupa na tribuna, para defender a honra e a liberdade de uma pessoa. Em outros casos o tempo é maior, mas a regra geral é 15 minutos.

Eu estou falando nessa entrevista a mais tempo do que o tempo que se concede na tribuna do Supremo pra defender um recurso. É desgastante isso tudo. É difícil suportar a dor de eventualmente não ter tido sucesso em uma causa que nós avaliamos como sendo absolutamente correta e justa. O próprio advogado é um juiz da causa.

RFC: Nessa perspectiva do advo-gado como juiz da causa, como fica a relação com o cliente?

NM: Eu já ouvi advogados dizendo, por exemplo, que não defendem acusado de tráfico ou de estupro. Isso é uma contradição à advocacia. O advogado não pode dizer isso. E se o acusado dessas ilicitudes for inocente? E se ele estiver receben-do uma pena muita além daquela que seria razoável? E se, além dele, estiverem estigmatizando a família dele, que não é culpada de nada, é vítima também? O advogado é a voz dos direitos legais do acusado. Ele pode pedir até a condenação do seu cliente, não está ali para passar a mão na cabeça dele. Eu já tive ocasião de pedir a condenação do meu cliente. Não na perspectiva desarrazoada e exagerada do Minis-tério Público, mas em uma proposi-tura compatível com o equilíbrio na prestação jurisdicional.

RFC: Nesse contexto, qual é o per-fil ideal do advogado criminalista?

NM: Tem que ser uma pessoa que estude, que tenha bom senso, sen-sibilidade, combatividade, que não esmoreça. Diante de uma eventual derrota, ao invés de cair, que se le-vante imediatamente. Se nós ima-ginarmos uma luta de boxe de dez rounds, o advogado tem que estar preparado para apanhar em nove e ganhar no décimo.

É preciso, ainda, acreditar na força da palavra. Não perder a capacida-de de indignação, se conformar com as coisas que estão no descaminho. É acreditar! E aí eu vou recorrer ao professor Roberto Lira, um dos au-tores do Código Penal brasileiro – e

PONTO DE VISTA | ENTREVISTA Nélio Machado

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de quem eu tive a honra de ser alu-no –, que dizia que o pior facínora carrega nele a chama da sua reden-ção. Temos que apostar nessa cha-ma. Eu me lembro também de um jurista, Romagnosi, que dizia mais ou menos o seguinte: “se o autor de um primeiro delito não viesse a co-meter um segundo, se fosse possível ter essa certeza, seria justo encarce-rá-lo?”. É preciso tentar propiciar ao acusado um julgamento justo, equi-librado, um julgamento em que o direito de defesa seja respeitado, em que o réu não seja ofendido. É preciso acreditar na justiça.

RFC: E o cidadão comum? Ele pode acreditar na justiça brasileira?

NM: Ele tem que começar identi-ficando o advogado que acredita. Se ele não tiver uma crença, por si próprio, com a convivência, através do advogado, vai acabar acreditan-do na Justiça. Agora, a Justiça é uma obra humana e, como obra huma-na, imperfeita.

RFC: É possível identificar, no Bra-sil, essa humanização do direito penal que o senhor defende?

NM: A mentalidade dominante em geral é muito conservadora. Temos que ter uma mentalidade de sonho. Como é que se realiza um sonho? Sonhando. Como é que se faz a caminhada? Caminhando. Como é que se modifica alguma coisa? Dando o primeiro passo. E qual é o primeiro passo? É ter uma idéia de que a justiça não foi feita para vin-gar, a justiça foi feita pra minimizar o conflito, resolver, na medida do possível. E não é piorando as pesso-as que elas vão se tornar boas para a sociedade. É preciso olhar para o réu com o espírito cristão, com cer-ta bondade, certa tolerância.

Eu já assisti a determinado magis-trado afirmar que ele, ao receber uma denúncia, já tinha uma visão do caso pró-condenação ou não. Acho que o “ou não” foi só uma gentileza. Condições das prisões, a forma como se exibem as ações policiais, a presunção que em tese é de inocência, mas na prática é de culpa, todas essas mazelas existem e nós temos o dever de lutar con-tra tudo isso. O julgamento começa com o igual julgando o igual. Por-que houve esse destino em relação

a essa pessoa? Qual foi a história dele? Por que chegou a esse ponto? Não é julgar só o fato, é julgar a vida em relação ao fato. Houve um fato, está provado, tenho que condená-lo. Na hora da condenação buscar a solução mais magnânima, mais generosa, e menos vingativa, menos perversa, menos agressiva. RFC: Como o senhor, na posição de criminalista, reage aos abusos relatados nesta entrevista?

NM: Honestamente, sou entusias-mado com a profissão, com a ad-vocacia criminal. No direito penal é como se nós encontrássemos a potência máxima da relação en-tre Estado e indivíduo. Quando a gente sente o clima persecutó-rio, o melhor remédio – além de confiar nas forças supremas e nos valores mais exponenciais da dig-nidade humana – é lembrar-se da-queles que nos antecederam. Eu poderia enumerar muitos juristas que representam o lado heróico da profissão. Rui Barbosa, Sobral Pinto, Heleno Fragoso, Evaristo de Morais, Raymundo Faoro, meu próprio pai, Lino Machado Filho, que foi um exemplo pra mim. Fo-ram referências, eles e tantos ou-tros. Agora nós pegamos o bastão e entregaremos um pouco adiante para outro que venha a aperfeiço-ar nossa luta. A vida do advogado é uma vida de luta. Luta pelos di-reitos, luta pela justiça.

É ter uma idéia de que a justiça não foi feita para vingar, a justiça foi feita pra minimizar o conflito, resolver, na medida do possível. E não é piorando as pessoas que elas vão se tornar boas para a sociedade.

Ana

Paul

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