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Gilberto e Willy: ética e estética
Paulo C. Chagas
University of California, Riverside
1. Wittgenstein, ética e estética
O compositor é julgado pela sua obra e não pela vida. Nesse aspecto, ele não se distingue
dos demais artistas da sociedade – pintores, escritores, dançarinos, etc. A biografia, a
personalidade e as atividades de um artista são importantes na medida em que ajudam a
iluminar os contextos da criação – histórico, geográfico, social, cultural, etc. Entretanto, é
a obra que permanece como referência.
A ética e a estética são uma coisa só, foi o que afirmou Wittgenstein no Tratado Lógico
Filosófico (1971). Este livro, escrito durante a Primeira Guerra Mundial, revolucionou a
filosofia. Vamos examinar aqui o que Wittgenstein está querendo dizer com esta
afirmação. O que seria a ética para Wittgenstein? Normalmente, considera-se que a ética
é a forma como deveríamos agir, a atitude que deveríamos adotar em relação aos outros,
às nossas próprias vidas e a tudo o que acontece conosco. Segundo este ponto de vista, a
ética não pode ser radicalmente desassociada da política e das questões sociais de uma
forma mais ampla. A ética serviria assim para avaliar tal ou tal pessoa, em tal ou tal
condição, com tal ou tal caráter e tal ou tal posição social. Ou seja, a ética distinguiria um
ser humano no turbilhão de todos os fatos e todas as coisas.
Porém, ao afirmar que a ética e a estética são idênticas, Wittgenstein não está se referindo
ao conceito transcendental de ética. Seu raciocínio é o seguinte: o objeto da estética é a
obra de arte, o objeto da ética é a boa vida. (Vale dizer que o termo “boa vida” tem aqui
um sentido filosófico, e não, é claro, o sentido coloquial de “boa vida” na língua
portuguesa.) A atitude estética significa que eu estou observando um objeto de arte em
relação a um todo e não em referência a alguma coisa específica como, por exemplo, em
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relação a si próprio. A atitude ética significa observar a “boa vida” também como um
todo, e não como uma possível forma de vida com um corpo específico, uma história
específica, um futuro – e tudo o que um indivíduo pode querer e desejar. A atitude ética
implica em considerar a vida como algo não específico que está incorporado em todas as
vidas.
Mas, como a vida e mundo não podem ser separados, ética e estética são, portanto, uma e
só coisa, afirma Wittgenstein. A influência de Schopenhauer fica evidente quando ele diz,
por exemplo, que a vida é simplesmente o mundo enquanto objeto da vontade. E é
através dessa vontade que se definem os predicados éticos. A ética refere-se uma vontade
que não está no mundo e sobre a qual não se pode falar. Ao contrário do que se considera
normalmente, a ética não determina como deveríamos agir, que atitudes deveríamos
tomar em relação aos outros, às nossas vidas e ao que acontece conosco. A ética não se
refere a um único ser humano no turbilhão dos fatos e das coisas.
A atitude ética que temos de tomar em relação às nossas vidas, aos outros e a tudo o que
acontece é a de aceitação. Wittgenstein afirma que devemos “ser felizes” com nós
mesmos. Mas este “ser feliz”, aqui, não é um convite ao hedonismo ou ao misticismo. O
mundo é independente da minha vontade. É um objeto de uma vontade alienada de mim.
O ser humano está sempre tomando atitudes específicas em relação às pessoas e às coisas
que, na concepção mais generalizada de ética, são contextuais. Porém, a atitude à qual se
refere Wittgenstein não é o comportamento em relação a isto ou aquilo, mas em relação a
um todo. É a atitude de ser feliz apesar da miséria do mundo, porque esta pertence ao
domínio do particular. A vida que é feliz tem a atitude certa para o mundo como um todo,
independente do que seja o mundo.
2. Willy e Gilberto, uma experiência pessoal
Voltando à questão que postulamos no início: portanto, o que seriam – à luz dessa
concepção de Wittgenstein – a ética e a estética de Gilberto Mendes e Willy Corrêa de
Oliveira? Seguindo Wittgenstein, falar da ética e da estética de Gilberto e Willy seria
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referir-se a uma única e só coisa. A ética remete à estética e vice-versa. Entretanto, apesar
do seu caráter positivista, o Tratado de Wittgenstein diz, claramente, na sua última
sentença, que não se pode falar do que realmente é importante. Ou seja, falar da ética e
estética de Gilberto e Willy seria simplesmente calar e deixar que a música fale for si só.
É o que faremos aqui. Vamos apontar alguns fatos e experiências e buscar na própria obra
as referências éticas e estéticas.
Quero deixar claro que não estou preocupado em avaliar Gilberto Mendes e Willy Corrêa
de Oliveira, e sim iluminar as suas presenças no mundo, particularmente, suas
contribuições como artistas e criadores. Certamente não teria me aventurado a uma
abordagem dessa natureza se não tivesse uma experiência pessoal e, de certa forma,
bastante próxima, tanto com Willy quanto com Gilberto. E, além disso, não empreenderia
tal reflexão se não nutrisse uma grande admiração e gratidão por ambos.
Willy Corrêa de Oliveira teve um impacto significante na minha formação musical. Não
apenas fui seu aluno de composição no Departamento de Música da Universidade de São
Paulo (USP), entre 1973 a 1979, como também considero-o o mais importante mentor
musical da minha carreira de compositor. Em 1980, instigado por Willy, embarquei para
uma nova etapa de aprendizado e aventuras profissionais fora do Brasil. Primeiramente
instalei-me na Bélgica, em seguida na Alemanha e, desde há alguns anos, vivo nos
Estados Unidos. Este processo distanciou-me naturalmente do meu ex-professor. Perdi
praticamente o contato pessoal com o Willy, mas continuei acompanhando os seus passos
e ouvindo a sua música, sempre que possível.
Conheci Gilberto Mendes nos meus tempos de aluno da USP. Porém, naquela época, o
meu contato com ele foi apenas esporádico. Mas aos poucos, mesmo de longe,
começamos a construir uma relação de amizade e interesse mútuo, a partir de encontros,
visitas e conversas. Ao contrário do que ocorreu com Willy, a minha relação com o
Gilberto intensificou-se ao longo dos anos, o que explica uma familiaridade maior com as
suas atuais idéias e posições. Sempre que venho ao Brasil vou visitá-lo em Santos e
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retorno com a memória de suas palavras e narrativas sobre música, arte, política e muitos
outros temas.
3. Estética: continuidade e ruptura
As trajetória de Gilberto Mendes e Willy Corrêa de Oliveira revelam um processo
contínuo de reelaboração que se manifesta no conjunto de suas obras musicais e em suas
atitudes no mundo. Nesse processo, podemos detectar algumas similaridades, mas
também diferenças. De uma forma geral, podemos dizer que tanto Gilberto quanto Willy
percorreram um caminho que vai da exaltação à negação da estética da música
contemporânea de “vanguarda”. Entretanto, a forma como isto aconteceu foi diferente
para cada um dos compositores.
A estética de Gilberto Mendes caracteriza-se por assimilar novos elementos que vão
transformando a sua linguagem musical de forma não-linear, não-direcional, e criam uma
diversidade estética. As transformações são movimentos que oscilam para diferentes
direções, com idas e vindas para o passado e o futuro. Parafraseando o título de uma
própria peça de Gilberto, podemos dizer que a sua música é um constante vai-e-vem.
Na estética de Willy Corrêa de Oliveira, constatamos também a busca de novos
elementos que são, porém, assimilados de forma mais brusca e abrupta. Em Willy, há
uma forte tendência à ruptura através de uma dialética de negação/afirmação: negação do
que foi dito anteriormente e afirmação de novos rumos e idéias. No longo prazo, esta
dialética conduz a um processo de síntese, na medida em que idéias do passado retornam
– de forma filtrada e reelaborada – e se incorporam ao presente.
Se tentarmos representar essa diferença fundamental entre Gilberto e Willy em termos de
forma musical, podemos dizer que a evolução de Gilberto Mendes é um processo de
variação no qual os temas vão surgindo sem um programa aparente, e causando
transformações sutis e recorrentes. A estética de Gilberto Mendes consegue articular e
conciliar elementos distintos e heterogêneos em uma mesma estrutura.
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Já a estética de Willy Corrrea de Oliveira opta pelo contraste e a oposição como
princípio. Os temas revelam conflitos que, no primeiro instante, parecem ser
inconciliáveis. Os materiais se sucedem como se tivessem negando uns aos outros.
Entretanto, os elementos contrastantes vão se diluindo no processo global de
desenvolvimento e, no final das contas, as diferenças passam a fazer parte de uma mesma
estrutura.
Resumindo: a estética do Gilberto revela uma preocupação em desenvolver uma
continuidade através da assimilação de novos elementos. A estética do Willy opera por
contrastes e oposições que são assimilados e integrados no âmbito da forma global.
4. Ouvindo a música de Willy e Gilberto
Os 3 Instantes para piano, de 1977, têm um caráter simbólico na produção de Willy
Corrêa de Oliveira. São três peças curtas que desenvolvem uma forma ABA – tanto ao
nível de cada uma das peças como em relação ao todo – e uma reflexão sobre a questão
da memória. A forma ABA e a memória são dois motores de criação na música de Willy.
Ele considera que a forma ABA é o protótipo de toda a forma musical. No seu curso de
composição, Willy desenvolvia um diálogo com a sua própria memória musical,
mostrando e analisando para os seus alunos a música de seus compositores prediletos:
Chopin, Schumann, Mozart, Beethoven, Schoenberg, etc.
No Instante 1 (A), ouvimos citações da Schumann (Phantasiestuck), Liszt e Mozart. A
música desenvolve uma polifonia de caráter lírico, combinando diferentes citações. No
Instante 2 (B), ouvimos a repetição obsessiva de uma seqüência de notas rápidas que é
executada três vezes com alterações de ataques, pedalizações, oitavas, etc. No Instante 3
(A), ouvimos a reexposição do Instante 1, onde repercute a explosão de pela energia do
Instante 2. Os 3 Instantes são uma obra sobre a memória musical de Willy na década de
1970, período que tive a oportunidade de presenciar. Posteriormente, Willy iria buscar
inspiração em outras regiões de sua memória, por exemplo, resgatando melodias que
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ouviu na sua infância em Recife, como os hinos de sua formação protestante. Mas esse
processo não vivi pessoalmente, só através de relatos.1
Vento Noroeste (1982/84), obra para piano de Gilberto Mendes desenvolve um tecido de
lembranças e referências musicais. A cidade de Santos marca a memória musical de
Gilberto: o mar, a natureza, o vento, etc. Gilberto deixa-se levar pelo fluxo das ondas e
sopros. A memória é menos uma obsessão do que um porto seguro para projetar-se no
mundo. Gilberto Mendes utiliza técnicas de composição inspiradas do serialismo; cria
motivos como arpeggios, acordes, ornamentações que oscilam entre harmonias tonais,
pseudo-tonais e dissonâncias que lembram o jazz, o foxtrot e outros universos da música
norte-americana. Em Vento Noroeste, esses materiais se alternam de forma recorrente e
variada em uma estrutura narrativa não-linear, que sugere a forma de um mosaico. Os
materiais são sobretudo justapostos; não há praticamente sobreposições. Vento Noroeste
desenvolve mais uma homofonia do que propriamente uma polifonia.
A poesia tem uma grande influência na música de Gilberto Mendes. Vento Noroeste
desenvolve uma narrativa de rimas sonoras que, na minha opinião, é inspirada na poesia
brasileira. Gilberto sempre dialogou com os poetas – sobretudo os seus amigos poetas da
Poesia Concreta. A música expressa a poesia do vento, seus sussurros e ondulações. O
vento também faz mover as ondas do mar. Portanto, ao mesmo tempo em que fala do
vento, a música fala também do mar. O mar de Santos e o porto, de onde partem e
chegam os navios. Não é preciso sair do porto para percorrer o mundo, pois o mundo vem
ao porto. A música de Gilberto Mendes assimila qualquer influência. Em Vento Noroeste
há uma influência do minimalismo norte-americano. Por exemplo, ao longo de toda a
obra, aparecem motivos que se repetem e se alternam formando ondulações. Porém, esses
elementos nunca se desenvolvem continuamente; eles se integram ao fluxo poético de
rimas sonoras, entrecortados por pausas, cortes, suspiros, suspensões, etc.
1 Os 3 Instantes sintetizam também a colaboração com o pianista Caio Pagano, que foi professor de piano
do Departamento de Música da ECA na década de 1970, e ao qual Willy esteve intimamente ligado. Foi
Caio Pagano quem estreou a obra em concerto e gravou-a em CD.
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5. Ética: da Música Nova à morte da música contemporânea
Nas trajetórias de Gilberto e Willy, observamos atitudes ambíguas e contraditórias sobre
o papel da arte no sistema capitalista. Em 1963, eles encabeçavam o grupo de
compositores que assinou o Manifesto Música Nova. Este documento tornou-se uma
referência histórica para o estudo da música erudita brasileira na segunda metade do
século XX. O Manifesto propunha, entre outros, uma reavaliação positiva dos emergentes
meios de comunicação e informação da sociedade de consumo industrial e pós-industrial.
Os jovens compositores, poetas e artistas exaltavam as mídias tecnológicas como o
cinema, a televisão, a propaganda, o design, etc. Essas mídias, segundo eles, abririam
novas perspectivas para a criação artística e musical.
Apesar do seu caráter de ruptura, na minha opinião, o Manifesto Música Nova representa
uma continuidade das idéias do Modernismo brasileiro, da primeira metade do século
vinte. Uma das características fundamentais do movimento modernista, do ponto de vista
musical, foi o anseio de superar a dialética internacional/nacional. Como apontou Mário
de Andrade, nos seus inúmeros textos sobres música, a música erudita brasileira, assim
como a arte e a cultura como um todo, sempre oscilou entre a afirmação de elementos
internos ou a assimilação de elementos externos. Esta dialética continua sendo uma
marca significativa do nosso comportamento estético. Hoje, na era da economia
globalizada e das redes de comunicação e informação, esta dialética assume novas
conotações como, por exemplo, a oposição global/local. Mas, o cerne da questão
permanece o mesmo.
No início da década de 1960, os compositores que assinaram o Manifesto Música Nova
estavam preocupados em inserir a música brasileira no contexto internacional da
chamada Música Nova que desenvolveu-se na Europa e Estados Unidos, após a Segunda
Guerra Mundial. Este movimento da música européia ficou conhecido no Brasil como
música de “vanguarda”, lembrando que esta conotação não é relevante na Europa. Em
1962, Gilberto e Willy participaram dos Cursos de Verão de Darmstadt, Alemanha. Eles
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perceberam aí diversas tendências como, por exemplo, a música aleatória e a música
eletroacústica, que trouxeram na sua bagagem de regresso ao Brasil. Mas, ao mesmo
tempo, eles sempre trataram de buscar caminhos próprios, associando-se a movimentos
locais, tais como o da Poesia Concreta. Como bem assinalou Gilberto Mendes, eles
tinham a convicção de que precisavam construir “uma linguagem musical particular e não
seguir as linguagens dos outros” (MENDES, 1994, p. 70).
Portanto, ao mesmo tempo em que queriam assimilar os elementos da “vanguarda”
européia, os compositores do Grupo Música Nova esforçavam-se em contextualizá-los na
cultura brasileira. Como afirma Gilberto Mendes,
“foram realmente os primeiros [compositores] a fazer música aleatória,
microtonal, música estruturada parâmetro por parâmetro segundo os
princípios do serialismo integral, não periódica, não discursiva, música
com a introdução do ruído no contexto sonoro (o ruído elevado à categoria
de som, de objeto musical, vale dizer, música concreta e/ou eletrônica),
com a utilização dos mixed media (como eram chamados então,
liquidificadores, aspiradores de pó, televisores, etc.), do gesto e da ação
musical como teatro (a serem encarados e desenvolvidos como tal, como
teatro musical), de novos grafismos, abolindo a notação musical
tradicional (falávamos em design para nossas obras), música com a
participação do ouvinte na sua execução, e música “programada” em
computador [etc., etc, etc.] … “ (MENDES, 1994, p. 80)
No Manifesto Música Nova, constatamos um paradoxo que marcaria profundamente o
discurso de inspiração marxista de Gilberto Mendes e Willy Corrêa de Oliveira. Assim
como a classe operária se apoderaria da infra-estrutura econômica da sociedade – os
chamados os meios de produção –, os compositores estavam convencidos de que a ênfase
na invenção e na experimentação levaria à conquista da super-estrutura cultural da
sociedade – os meios de comunicação de massa como o rádio, a tevê, a propaganda, etc.
Inspirado, entre outros, na estética do poeta russo Vladimir Maiakosvki (1893-1930), o
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Manifesto acreditava no poder de transformação da arte através de uma forma
revolucionária. A mensagem do Manifesto era de que “sem forma revolucionaria não há
arte revolucionária.” A arte revolucionária conquistaria o poder através da mídia,
contribuindo assim para libertar o ser humano da opressão do capitalismo.
É interessante observar como essas idéias do Manifesto eram também, de certa forma,
influenciadas pela Arte Pop. Mas, ao mesmo tempo em que os compositores se deixaram
seduzir pela mass media, pela perspectiva de inserir a música erudita nas estruturas da
comunicação de massa e ampliar assim o seu público, eles não captaram, na época, a
dramática transformação dos objetos artísticos, que ocorreu na primeira metade do século
vinte, e que foi impulsionada justamente pelo movimento da Arte Pop. O significado
essencial da Arte Pop, conforme assinalou o sociólogo francês Baudrillard, é ter reduzido
o objeto artístico a um objeto sem significação. Enquanto que, no passado, o objeto
artístico estava revestido de valores morais e psicológicos, com uma aura espiritual e
antropomórfica, a Arte Pop transformou os objetos de arte em objetos homogêneos,
produzidos em série e em escala industrial. A Arte Pop, incluindo a música pop que
impôs-se como modelo do mercado fonográfico, reflete assim a lógica da sociedade
contemporânea, pós-moderna. O objeto artístico perde a sua profundidade, sua
perspectiva, seu poder de evocação; o artista deixa de ser o criador ativo de significados e
críticas.
Dentro dessa perspectiva, a arte torna-se uma mera simulação: de imagens, sons, corpos e
objetos do mundo contemporâneo. A lógica de produção de objetos de arte torna-se um
exemplo contundente de como os objetos são organizados como um sistema de signos na
sociedade de consumo. Assim, é uma ingenuidade acreditar que a arte tem a função de
reelaborar o mundo, de proporcionar novas maneiras de ver o mundo, de mediar o acesso
à realidade. A arte está sujeita às mesmas regras do sistema de significação das demais
mercadorias da sociedade capitalista; ela segue os mesmos códigos de moda, de
marketing e valor de mercado. Esses valores eliminam a capacidade da arte de exercer a
crítica. Baudrillard argumenta contra Adorno e outros teóricos da cultura revolucionária,
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ao afirmar que a arte perdeu a sua função crítica e negativa. A arte tornou-se um “jogo de
peças” da tradição, um jogo de combinação de “vestígios do passado”.
Embora eu não concorde inteiramente com o pessimismo de Baudrillard, é inegável que
temos aqui uma visão polêmica e aguçada da transformação do papel da arte na sociedade
contemporânea. É interessante observar como esta transformação afetou os compositores
Willy Corrêa de Oliveria e Gilberto Mendes, de maneiras diferentes.
6. Willy e a trans-estética:
Willy Corrêa de Oliveira desenvolveu um discurso de rejeição radical ao capitalismo. Ele
refugiou-se no isolamento como uma forma de redenção do artista na sociedade
capitalista. Willy afirma, por exemplo:
“Por não haver uma língua musical erudita falada no capitalismo – porque
o aprendizado da linguagem musical revela-se custoso e de inepta e inútil
aplicação no MERCADO: é que não temos como nos comunicar. Nem o
público como entender. Pobres simulações de compreensibilidades são
desperdiçadas quando IMITAÇÕES (quase sempre grosseiras) do
PASSADO são dispostas para o engodo geral. No capitalismo, presente é
só o Mercado. E a arte não se reduz a mercadoria: Pode até ser tocada por
Midas mas não se deixa reduzir. Arte se fazendo passar por mercadoria
não ultrapassa a mentira do dinheiro: o preço pago e só.” (OLIVEIRA,
2006, páginas não numeradas)
Vejamos outra afirmação de Willy: “Viver sob o capitalismo para mim é uma
condenação. O exílio voluntário foi a única maneira de possível sobrevivência que
encontrei.” (OLIVEIRA, 2006) E mais esta frase: “O capitalismo é um deserto tedioso:
em vez de vento e areias, lucros e logros.” (OLIVEIRA, 2006)
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Apesar da aparente ferocidade, auto-flagelação e seu caráter nostálgico, a posição
assumida por Willy projeta uma visão de artista absolutamente compatível com a lógica
do capitalismo. A rejeição à arte como mercadoria e a opção pelo exílio são, sobretudo,
simulações do real. Willy manipula conscientemente os processos de simulação da
sociedade capitalista, criando para si próprio uma hiper-realidade de pastiches e modelos,
que legitimam o seu status privilegiado de artista e compositor. O criador messiânico,
agindo isoladamente e lançando-se contra os moinhos de vento do deserto capitalista, cria
um espaço que Baudrillard chamou de “trans-estética”. É uma esfera de criação no qual
tudo se torna possível, tudo adquire um valor de mercadoria, até mesmo o próprio
isolamento do artista. Criticar a falta de comunicação, a ausência de uma linguagem
comum, é também uma forma de se comunicar, é uma forma eficaz de atrair seguidores
para uma causa aparentemente política, uma forma de manipular a mídia e criar novos
significados.
A proliferação de simulações, que perderam toda a sua relação com o real, é a
característica da sociedade contemporânea. Na sociedade capitalista, as simulações se
sobrepõem ao deserto do real. A Disneylândia impôs-se como paradigma, substituindo o
poder da arte como aventura, negação da realidade, redenção de ilusões, etc. Willy
restituiu este poder ao criar a ilusão do artista auto-exilado. Ao combater a
comercialização da arte, ele materializou a dimensão estética da não-comercialização,
transformando a sua própria imagem de resistente anti-capitalista em um signo a ser
consumido no capitalismo pós-moderno.
7. Gilberto e a escuta
A exemplo de Baudrillard, os profetas do fim da arte, com o seu pessimismo e sua
obsessiva repetição de idéias pré-estabelecidas, acabam contaminando os artistas e
gerando um processo niilista que desvaloriza o pensamento critico e a investigação. É
indiscutível que a cultura de massas, as novas tecnologias digitais e as novas formas de
comunicação e expressão social e cultural estão transformando a arte e a estética. E são
justamente essas transformações que requerem uma investigação mais profunda.
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Precisamos de novas perspectivas, novas teorias e análises. Negar apenas o valor da arte
na sociedade de consumo bloqueia o pensamento, anula o esforço que devemos
empreender. É preciso ir além das atitudes provocativas, é preciso desenvolver novas
teorias e visões sobre a estética e as práticas artísticas.
Encerrando esta minha reflexão sobre ética e estética, gostaria de colocar duas questões
que me parecem fundamentais, neste momento:
(1) é necessário investigar as múltiplas e complexas relações entre música e
entretenimento;
(2) é necessário investigar o significado musical não apenas do ponto de vista do criador
mas, sobretudo, do ponto de vista do ouvinte. É preciso dialogar com o ouvinte, da
mesma forma que devemos estabelecer um diálogo entre os criadores.
Como disse Gilberto Mendes, a propósito de Eisler e Brecht: “Eu imprimo o significado
que quero às coisas que ouço. Nunca entendi essa coisa de evitar o sentimental, o
entretenimento […]. A arte deve instruir e entreter, já dizia Aristóteles. Como invenção,
maquinação de vanguarda, até que é um grande achado, a idéia do distanciamento, uma
das maiores jogadas do teatro do século XX. Mas reprimir o sentimento é mais coisa de
alemão, que acha que ter sentimento é sinal de fraqueza, como pensavam os nazistas
(MENDES, 1994, p. 170).”
Referências
Baudrillard, Jean (1994). The Transparency of Evil. London: Verso. ________(1994). Simulacra and Simulation. Ann Arbor: The University of Michigan
Press. Oliveira, Willy Corrêa de (2006). O Presente. São Paulo: Água Forte (CD booklet). Mendes, Gilberto (1994). Uma Odisséia Musical. São Paulo: Editora da Universidade de
São Paulo. Wittgenstein, Ludwig (1971). Philosophische Untersuchungen. Frankfurt am Main:
Suhrkamp.