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Leituras / Readings
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Volume X Nº3 Maio/Junho 2008
Adrian GramaryMédico Psiquiatra
Correspondência relacionada com o artigo:
Centro Hospitalar Conde de FerreiraRua Costa Cabral, 1211, 4200-227 Portoe-mail: [email protected]
Numa estante da Biblioteca do Centro Hospitalar Conde de
Ferreira, descansa, sobrevivente do tempo, do caruncho, da
depredação humana e das mudanças, um exemplar da Icono-
graphie Photographique de La Salpêtrière de Bourneville e
Régnard (1876-1880). Esta pequena jóia bibliográfica em três
tomos recolhe informação clínica e fotografias de doentes inter-
Charcot e a Iconografia Fotográfica de La Salpêtrière
Charcot and the Photographic Iconography of the La Salpêtrière
“Ao que parece a histero-epilepsia só existe em França e, até me atrevo
a dizer, e de facto já foi dito antes, que só existe em La Salpêtrière, como
se eu a tivesse inventado graças ao poder da minha vontade. Seria real-
mente surpreendente que eu pudesse criar assim doenças por vontade
expressa do meu capricho e da minha imaginação. Mas, na realidade, o
meu labor lá foi unicamente o de fotógrafo; eu registo o que vejo.”
Charcot[1]
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nadas no Hospital de La Salpêtrière – nomeadamente doentes
com histero-epilepsia – observadas nesse período de quatro
anos durante o qual Charcot era director da instituição.
Charcot tinha entrado no Hospital de La Salpêtrière em 1862,
numa altura em que a instituição tinha cerca de 4.300 mulheres,
uma mistura bizarra de delinquentes, sem abrigo, pedintes,
epilépticas, histéricas e dementes, que ele próprio definiu como
um autêntico “museu patológico vivo”.
O acaso quis que as péssimas condições físicas da Ala Saint-
Laure de La Salpêtrière - onde estavam misturadas doentes
dementes, epilépticas e histéricas - levassem a Administração
do Hospital a separar as doentes em dois grandes grupos,
dementes e doentes com convulsões (epilépticas e histéricas),
integrando estas últimas um serviço novo chamado “secção
das epilépticas simples”, que foi confiado a Charcot, o que lhe
permitiu mergulhar desde o primeiro dia no confuso e escor-
regadio universo da histeria.
Em 1881, com os necessários apoios políticos, Charcot con-
seguiu a criação da primeira Cátedra de Doenças Nervosas
do mundo, que tornar-se-ia na pedra angular que permitiu
a transformação do hospital num local vocacionado para a
investigação e para o ensino teórico e clínico.
Entre outras empresas acometidas por ele na instituição, im-
pulsionou a criação do Serviço de Fotografia de La Salpêtrière,
iniciativa que visava aplicar a nova técnica fotográfica, após
o sucesso obtido na Dermatologia, no campo da Psiquiatria
e da Neurologia. Para este objectivo, criou um serviço onde
trabalharam em estreita colaboração vários fotógrafos (Londe,
Régnard) e alguns dos seus discípulos mais queridos (Bourne-
ville, Gilles de la Tourette, Richer).
O serviço, constituído por laboratórios e por uma sala bem
iluminada com uma cama instalada ad hoc, na qual eram foto-
grafadas as doentes, tornou-se numa fábrica de produção de
imagens. O primeiro livro de fotografias publicado foi fruto do
trabalho de investigação de Bourneville e Régnard e intitulou-
se Iconographie Photographique de La Salpêtrière (1876-
1880). Em 1880, Alberto Londe substitui Régnard à frente do
laboratório publicando, a partir de 1888, e em colaboração com
Gilles de la Tourette e Richer, uma nova edição da Iconographie:
a Nouvelle Iconographie de La Salpêtrière.
Pelas páginas das diferentes Iconographies desfila um catálogo
interminável de imagens de todos os quadros histéricos imagi-
náveis e inimagináveis: auras, contracturas da face, blefaros-
pasmos, bocejos, paraplegias, catalepsias, cifoses histéricas,
paralisias faciais e até episódios de sono histérico.
A histeria, o protótipo de doença funcional sine materia, um
insulto para o modelo de inteligibilidade médica da época, foi
sabiamente descrita por Briquet como uma doença ”instável,
irregular, fantasiosa, imprevisível”, “um Proteu que se apresenta
sob um milhar de formas, mas que não podemos agarrar sob
nenhuma delas”[2,3]. Freud baptizou-a com “a besta negra”
dos médicos. Para Charcot tornou-se óbvio que a histeria,
que é qualquer coisa como um camaleão psiquiátrico, tinha
mimetizado, nessa época, os sintomas clínicos da epilepsia e
fez um esforço inusitado para tentar compreender e classificar
a histeria, estabelecendo fronteiras nosológicas – com as limi-
tações inerentes ao estado da ciência médica da época – entre
a histeria e a epilepsia.
Cartografou os doentes com métodos exaustivos de medição
científica que incluíam as temperaturas axilar, rectal e vaginal,
o estudo dos movimentos respiratórios (pneumografia) e dos
movimentos musculares (miografia), o exame oftalmológico, a
avaliação dos reflexos, a medição das sensibilidades (táctil, tér-
mica, dolorosa), debruçando-se até na descrição das variações
na quantidade e topografia da secreção vaginal. Submeteu
os doentes aos efeitos da hipnose (individual e colectiva) e,
simultaneamente, de diferentes estímulos (magnéticos, lumi-
nosos e olfactivos).
Este esforço, apesar de eventuais excessos cometidos, permi-
tiu-lhe separar o trigo do joio e realizar uma descrição porme-
norizada dos diferentes quadros conversivos, o primeiro e mais
conhecido dos quais foi a grande crise histérica tipo Charcot,
com os seus períodos de aura,
período epileptóide (com as suas
fases tónica e clónica), período
de contorções ou “clownismo”,
período de transe ou de atitudes
passionais e período terminal ou
delirante.
A protagonista destacada da Ico-
nographie é Augustine, uma jo-
vem empregada doméstica que
entrou em La Salpêtrière aos 15
anos de idade, quando ainda não
era menstruada, por parésia do braço direito, diferentes alte-
rações da sensibilidade e dores na parte direita do hipogastrio.
Sabemos por Bourneville que Augustine tinha sido violada aos
13 anos pelo seu patrão, em cuja casa vivia, e que, por sua
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vez, era amante da sua mãe. Na Iconographie ela é descrita
como “uma jovem loira, de estrutura forte, com aspecto púbe-
re, activa, inteligente, afectuosa, impressionável, mas também
caprichosa, que gosta muito de chamar a atenção; coquete,
esmera-se muito no seu asseio pessoal e na disposição do
cabelo”[4].
Augustine foi para Charcot a sua vedette e a sua obra-prima,
uma verdadeira mina iconográfica, qualquer coisa como a
manequim estrela do seu conceito nosológico de histeria.
As suas imagens durante as
crises, em diferentes atitudes
passionais (crucificação, troça,
ira, erotismo) são algumas das
mais conhecidas do livro.
Vemos Augustine olhando para
cima, com as mãos unidas,
numa pose que lembra imagens
da iconografia das místicas cris-
tãs; noutras fotografias aparece
em posição de crucificação ou
em atitude nitidamente eróti-
ca, cruzando os braços sobre
o peito como se abraçasse o amado, sorrindo, mandando
beijos com a mão ou gemendo, ou com movimentos rítmicos
da pélvis, dramatizando o que Paracelso chamava de chorea
lasciva. É-nos descrita depois ouvindo vozes ou apavorada
com visões de violações, de sangue, fogo, ou bestas negras
como ratazanas gigantes.
Lemos a transcrição dos seus discursos, a descrição do
conteúdo dos seus sonhos, sonhos cujo conteúdo são mata-
douros, com sangue a escorrer. Sabemos por outras vias que,
ao fim de vários anos de internamento, ela não terá melhorado
dos seus sintomas histéricos, acabando por fugir do hospital
mascarada de homem.
Tal como já foi dito, uma parte da Iconographie de Bourneville
e Régnard está dedicada aos efeitos da hipnose, usada por
Charcot como uma forma de histeria experimental. Nesta parte,
mais uma vez temos a oportunidade de ver a Augustine, ora
hemiletárgica à direita e hemicataléptica à esquerda (sic), ora
em catalepsia total; podemos observar ainda outras doentes
com catalepsias e contracturas induzidas durante a hipnose
através do magnetismo, ou com emoções e delírios induzidos
pelo efeito de estímulos olfactivos (éter ou do nitrito de amilo)
ou, mais inverosímil ainda, um grupo de seis histéricas com
catalepsia de grupo induzida pelo som de um gongo.
As investigações sobre a hipnose desenvolvidas por Charcot,
cujo objectivo era em muitos casos reproduzir ou repetir o
fenómeno patológico mais do procurar a sua resolução tera-
pêutica, foram alvo de inúmeras críticas por parte dos seus
contemporâneos.
Neste sentido, recorda o seu discípulo Gilles de la Tourette
que quando o mestre se confrontava com as críticas vertidas
por membros do establishment médico da época em relação
a que em La Salpêtrière mais do que curar a histeria, esta era
cultivada, respondia que “para aprender a curar, primeiro tem
que se ter aprendido a conhecer, o diagnóstico é a melhor base
para o tratamento”[5]. Mas, verdade seja dita, ele incorreu em
excessos que parecem mais próximos do espectáculo circense
do que da investigação científica. Sabe-se, por testemunhas
presentes nelas, que durante as suas famosas lições das
terças-feiras, Charcot chegava a solicitar a participação do
público assistente na indução de fenómenos hipnóticos nos
doentes, como uma forma de demonstrar a ausência de qual-
quer tipo de truque. Não demorou muito tempo a recolher o
fruto disto: os mágicos e magnetizadores dos circos e das ruas
começaram a invocar nos seus espectáculos um lema terrível
como argumento de autoridade: “segundo as experiências do
Dr. Charcot em La Salpêtrière”.
É um facto assente que, no mundo ocidental desenvolvido,
a grande crise tipo Charcot, tal como reconhece Ey[6], é uma
rara avis já dificilmente observada; mas alguns vão mais longe
e atrevem-se a questionar se a histeria tal como a descreveu
Charcot existiu alguma vez fora dos muros de La Salpêtrière.
Roy Porter, o malogrado historiador e co-editor da revista His-
tory of Psychiatry, não du-
vida em qualificar alguns
dos quadros descritos
por Charcot como “arte-
factos”, produzidos pela
sobrecarregada atmosfera
teatral da La Salpêtrière[7].
Didi-Huberman, vai além e
propõe, no seu provocador livro, a tese da histeria charcotiana
como “invenção”, fruto da extraordinária cumplicidade e do
encanto recíproco surgido entre médicos insaciáveis à procura
de imagens de histeria e histéricas que consentiam e exage-
ravam a teatralidade dos seus corpos[8]. Concordamos com
aqueles que pensam que, apesar dos esforços de Charcot para
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manter um olhar objectivo e científico, o neurologista francês
não conseguiu subtrair-se ao fascínio exercido pela histeria e
não terá valorizado de forma apropriada a importância que a
sugestão pode adquirir neste quadro, tornando-se assim, de
certa maneira, no director da representação protagonizada
pelas suas anónimas e dramáticas vedettes, no encenador
involuntário da mise en scène do espectáculo histérico.
Bibliografia
[1] Didi-Huberman G (2007): Charcot y la iconografía fotográfica de
la Salpêtrière. Ensayos Arte Cátedra. Madrid. p. 45
[2] Ibidem., p. 40
[3] Ibidem., p. 94
[4] Ibidem., p. 2
[5] Ibidem., p. 389
[6] Ey H, Bernard P, Brisset Ch (1978): Tratado de Psiquiatria. 8ª
edición. Toray-Masson. Barcelona. p. 419
[7] Porter R (2003): Breve historia de la locura. Turner – Fondo de
Cultura Económica. Madrid. p.179
[8] Didi-Huberman G (2007), op. cit., p. 7-8
Outras obras consultadas:
- Cagigas A (2003): La histeria de Charcot. Ediciones del Lunar. Co-
lección de Heterohistorias. Jaén