Charlatanismo No Discurso Médico

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    Charlatanismo no Discurso Mdico: questes polticas e culturais na primeira metade do

    Oitocentos.

    IAMARA DA SILVA VIANA.

    As disputas entre as diferentes artes de curar na Corte imperial do Brasil na primeira

    metade do sculo XIX eram complexas. Emulaes de poder em torno da mesma consistiam

    em heterogeneidades, tendo de um lado mdicos acadmicos - brasileiros ou estrangeiros -,formados em universidades tradicionais. De outro, curandeiros, feiticeiros, parteiras e

    sangradores, muitos dos quais oriundos da escravido e leigos que praticavam a chamada

    medicina popular. Embora os primeiros dispusessem do prestgio acadmico, poder poltico e

    econmico, os segundo dispunham de prestgio entre grande parcela da populao.

    As escolas de medicina nasceram sob a proteo do Estado imperial. A relao estreita

    entre a medicina no sculo XIX e o Estado imperial fora estabelecida a partir de 1808 com a

    chegada da famlia Real quando D. Joo em carter emergencial criou algumas instituiespara adequar as cidades s novas exigncias, dentre elas a Escola de Cirurgia da Bahia e a

    Escola de Cirurgia do Rio de Janeiro, transformadas em Academias Mdicas-Cirrgicas e

    posteriormente Faculdades de Medicina do Rio de Janeiro e da Bahia (EDLER, 2002: 108).

    Suprir a falta de mdicos e fazer com que esses profissionais zelassem pela sade da elite

    portuguesa e dos estrangeiros em misso comercial eram objetivos de tais instituies

    (LOPES, 2008: 48-50). Desta forma, o ano de 1808 foi um marco para a histria do Brasil,

    alterando a sociedade em diferentes aspectos, culturais, econmicos, no sendo diferente notocante a medicina com apoio do Estado, utilizado em alguns discursos de poder daquela

    instituio mdica.

    Contudo, observar a formao sociocultural da medicina colonial nos permite refletir

    sobre tais disputas. A mesma teve por base a convivncia e combinao das trs tradies

    culturais distintas responsveis pela construo da sociedade brasileira, quais sejam, a

    indgena, a africana e a europeia. Os profissionais que possuam formao acadmica tiveram

    pouca participao nesse processo (FERREIRA: 2003: 101). O cotidiano colonial em casos de

    Doutoranda em Histria Poltica pelo Programa de Ps-Graduao da Universidade do Estado do Rio deJaneiro / UERJ. Orientadora: Profa. Dra. Mrcia de Almeida Gonalves. Bolsista FAPERJ.

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    doenas tinha como personagens centrais, curandeiros, sangradores, boticrios, feiticeiros,

    parteiras, grupo quase sempre formado por negros, seus descentes e brancos pobres.

    Devido a deficincia numrica, a medicina praticada nas primeiras dcadas do sculo

    XIX no Imprio do Brasil poucos eram os mdicos formados em universidades -,

    modificara a rgida hierarquia social que na Europa conferiu mdicos, cirurgies e boticrios

    um local de distino social. Um fato importante no pode ser desconsiderado, existia uma

    similaridade entre a medicina acadmica e a popular, pois expunha uma concepo da

    doena e apregoava um arsenal teraputico fundados numa viso de mundo em que

    coexistiam o natural e o sobrenatural, a experincia e a crena (FERREIRA, 2003: 102).A cultura religiosa, tambm presente no discurso mdico marcava a sociedade e

    influenciava nas prticas de cura eleitas, no apenas pelas classes desprestigiadas, mas

    tambm pelas mais abastadas. O grande nmero de mortos em hospitais, local onde os

    mdicos do incio do sculo XIX praticavam a medicina clnica, afastava ainda mais os

    possveis pacientes, favorecendo em certa medida as prticas mgicas de cura bem como a

    atuao dos leigos em medicina, to requeridos pela populao da poca. Nesse sentido, o

    saber mdico postulado neste perodo era um entre muitos que requeriam para si legitimidadee poder. Sendo assim, o discurso de mdicos graduados nos permite entender um pouco mais

    sobre as dessemelhantes prticas de cura. Como muitos dos que a exerciam sem um diploma

    no deixaram seus conhecimentos por escrito, as crticas que os acadmicos perpetravam em

    diferentes meios de circulao do conhecimento mdico, so fundamentais.

    No Brasil uma das maneiras encontradas pelos acadmicos para legitimar seu poder

    nas artes de curar era um confronto aberto com os seus opositores, segundo os quais

    chamavam charlates. Escrever sobre estes, mesmo numa sociedade de maioria analfabeta,apresentava algumas vantagens, tendo em vista que a maioria dos sangradores, barbeiros,

    feiticeiros, parteiras, boticrios dentre outros, no possuam tal poder de mobilizao.

    Utilizaremos como fonte de anlise um texto escrito em 1837 pelo mdico francs Jean-

    Baptiste Alban Imbert para a Academia Imperial de Medicina do Rio de Janeiro, intitulado

    Uma Palavra sobre o Charlatanismo e os Charlates e publicado pela Typografia de J. S.

    Saint-Amant e L. A. Burgain do Rio de Janeiro, situada Rua da Alfndega nmero 131.

    O Charlatanismo no discurso mdico

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    Ao conjecturar sobre a existncia de uma ordem do discurso, de diferentes discursos e

    cada qual com a sua ordem estabelecida, Michel Foucault aponta o autor como um dos

    princpios de rarefao de um discurso. Autor no entendido como o indivduo falante que

    pronunciou ou escreveu um texto, mas o autor como princpio de agrupamento do discurso,

    como unidade e origem de suas significaes, como foco de sua coerncia (FOUCAULT,

    2010: 26). Em outras palavras, alguns fatores impem limitaes ao discurso, sendo um deles

    aquele que o escreve. Seu princpio limita o acaso do discurso pelo jogo de uma identidade

    que tem a forma da individualidade e do eu, as cincias ou disciplinas tambm seriam outrofator de limitao. Organizao oposta ao princpio do autor,

    visto que uma disciplina se define por um domnio de objetos, um conjunto de

    mtodos, um corpus de proposies consideradas verdadeiras, um jogo de regras e

    de definies, de tcnicas e de instrumentos: tudo isto constitui uma espcie de

    sistema annimo disposio de quem quer ou pode servi-se dele, sem que seu

    sentido ou sua validade estejam ligados a quem sucedeu ser seu inventor

    (FOUCAULT, 2010: 29-30).

    Em outras palavras, para que um discurso mdico seja aceito e validado por umadeterminada sociedade, dever seguir algumas regras impostas pela prpria cincia ou

    disciplina. Isso porque no se podem dissociar os discursos da prtica de um ritual que

    determina para os sujeitos que falam, ao mesmo tempo, propriedades singulares e papeis

    preestabelecidos (FOUCAULT, 2010: 39). Fatores significativos entre mdicos. Entretanto,

    nos primeiros anos do sculo XIX no Rio de Janeiro, o discurso mdico tentava impor-se

    como nico e verdadeiro num embate acirrado com os que eles denominavam charlates.

    Estes muitas vezes requeridos por uma parcela considervel da sociedade, at mesmo porricos fazendeiros como no caso de mestre Tito em Campinas 1. O embate existia da mesma

    forma entre alopatas e homeopatas, ou seja, entre distintas formaes mdicos-acadmica e

    entre estes e os charlates.

    Assim pensamos Jean-Baptiste Alban Imbert, mdico francs formado em

    Montpellier, que chegou ao Imprio do Brasil em 1831 objetivando estudar as prticas

    1Regina Xavier em artigo publicado em 2003 estuda a atuao do curandeiro mestre Tito em Campinas, citandoo caso de um fazendeiro muito rico que no sendo curado por um dos dois mdicos acadmicos que moravam nacidade, fez cham-lo e trat-lo. Ver: Dos males e suas curas: prticas mdicas na Campinas oitocentista. In:Artese Ofcios de Curar no Brasil: captulos de histria social.Sidney Chalhoub et. al. (org.). Campinas, SP: EditoraUnicamp, 2003.

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    populares de cura. Teve seu diploma reconhecido e confirmado pela Academia de Medicina

    do Rio de Janeiro, em virtude da lei de 03 de outubro de 1832 que dava nova organizao s

    actuais Academias Medico-cirurgicas das cidades do Rio de Janeiro, e Bahia. Foi aceito

    como membro titular da Academia Brasileira de Medicina em 15 de outubro de 1835, com o

    nome abrasileirado de Joo Baptista Albano Imbert, tendo sido membro honorrio da

    Sociedade Real de Medicina de Marseille e membro efetivo das Sociedades Auxiliadoras da

    Indstria Nacional (SAIN), e literatura do Rio de Janeiro. A SAIN teve como inspirao a

    francesa Socit DEncouragement LIndustrie Nationale 2, tendo sido fundada em 1825

    dentro do processo de fortalecimento do Estado imperial. Seu objetivo central era estimular omelhoramento da indstria brasileira, entendida no perodo como toda e qualquer atividade

    produtiva, fosse ela agrcola ou fabril (MARQUESE, 2004: 267). Tambm foi Cirurgio

    Ajudante Major da Marinha Imperial Francesa.

    Sua identidade e sua formao vo balizar seu discurso e a maneira pelo qual define a

    sociedade brasileira de ento. Observar com ateno o autor se faz importante tendo em vista

    que seu discurso est pautado no indivduo que e se transforma no contato com uma nova

    sociedade. Nele podemos vislumbrar ideias, conhecimentos, conceitos, valores, mas tambm

    crtica e repreenso como a descrita em relao s prticas populares de cura e ao

    charlatanismo. Na verdade,

    tem-se o hbito de ver na fecundidade de um autor, na multiplicidade doscomentrios, no desenvolvimento de uma disciplina, como que recursos infinitos

    para a criao dos discursos. Pode ser, mas no deixam de ser princpios de

    coero; e provvel que no se possa explicar o seu papel positivo e

    multiplicador, se no se levar em considerao sua funo restritiva e coercitiva

    (FOUCAULT, 2006:36).

    Nesse sentido, a forma utilizada por Imbert para descrever e justificar a prtica popular

    de cura pejorativamente nos permite uma reflexo sobre as mesmas, pois que atendia em certa

    medida algumas imposies do prprio Estado e da Academia Imperial de Medicina do Rio

    de Janeiro. Seu discurso nos apresenta seu olhar, em certa medida compartilhado com

    mdicos brasileiros, sobre os charlates e suas prticas.

    2Mais informaes sobre a SAIN consultar MARQUESE, Rafael de Bivar. Feitores do Corpo, missionrios damente: senhores, letrados e o controle dos escravos nas Amricas, 1660-1860. So Paulo: Companhia dasLetras, 2004; BARRETO, Patrcia Regina Corra. Sociedade Auxiliadora da Indstria Nacional: Oficina deHomens.Artigo publicado nos Anais da XVIII Encontro de Histria Anpuh-Rio.

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    O Charlato e o doente

    A partir de uma anlise filosfica de enaltecimento da razo dotada pela Divindade,

    uma luz do esprito inherente a natureza (IMBERT, 1837; 1), o doutor Jean-Baptiste Alban

    Imbert, tece suas crticas ao que denomina charlatanismo. Para o mdico em questo, a

    atrao exercida pelos charlates advm, de tudo quanto parece afastar-se das leis geralmente

    aceitas, e offerecer alguma apparencia de maravilhoso, tem o direito de subjugar por uma

    especie de encantamento e fascinao, que a raso ou no pode ou no quer definir, com o

    receio de desvanecer mui depressa uma illuso que agrada e seduz (IMBERT, 1837: 1-2).

    Sob seu prisma, existiria uma disposio do moral humano a aceitar sem reflexo tudo o que

    promete em alguma medida de forma rpida e fcil boa sade ou prazer. Por este meio o

    charlatanismo conquista iludidos e vitimas, ora enfeitando-se o barrete da sciencia, ora

    cobrindo-se com a mascara da religio, da virtude, da sabedoria, do genio ou da magia

    (IMBERT, 1837: 2).Embora existissem diferentes formas de se convencer um doente a se curar utilizadas

    pelos no cientistas ou mdicos acadmicos, o que promove a reflexo de Imbert o chamado

    charlatanismo medical, e por isso se dispe a escrever sobre o mesmo a partir de distintas

    provas. Suas questes giram em torno de causas basilares que permitiam a prtica e a

    permanncia dos charlates no domnio da medicina, quer seja oculta ou ostensivamente,

    sendo assim classificados como intrusos na medicina. Nesse contexto,

    o homem, quando attacado de huma infermidade qualquer, bem como uma cra

    maleavel, presta-se a todas as impresses que a porfia busco communicar-lhe.

    Semelhante, de ora avante, a uma criana docil, obediente e submissa, assim como

    este ente dbil, cuja raso no se desenvolveo ainda, chega aos labios a borda da

    taa que contm uma beberagem salutar ou mortifera, pouco cuidadoso em indagar

    primeiro se ella doce ou amargosa; submisso, ou, antes, credulidade, que o pe

    disposio de qualquer individuo sem titulos conhecidos, nem talentos, que fizer

    resoar a seus ouvidos, ou penetrar em seu peito, a lisongeira esperana de

    recuperar em breve a saude (IMBERT, 1837: 2-3).

    Supostamente em seu discurso a condio fsica do enfermo um dos motivos asuscitar consentimento para atuao do charlato sem, contudo mencionar as deficincias da

    prpria medicina no sculo XIX e da formao cultural que se remete ao perodo colonial

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    como j mencionado, corroborando para uma preferncia popular em relao s prticas de

    cura dos no acadmicos. A facilidade de um enfermo acreditar, como uma criana obediente

    e submissa seria inerente aos espritos mais simples, aos indivduos que vivem na ignorancia

    absoluta dos manejos que a sciencia dos charlates inventou, para disfarar a falsidade de suas

    aces com o verniz da verdade (IMBERT, 1837: 4).

    Outro fator responsvel pela credulidade do doente, o temor da morte, se apodera do

    esprito dos indivduos fracos e no mais apenas dos ignorantes. O sofrimento intenso os leva

    a acreditar sem hesitar no que for apresentado com promessa de cura, ainda que fosse iluso.

    Com isso, tenta o mdico francs diminuir a culpa do enfermo que busca na medicina populara cura para seus males, acentuando o dolo dos que praticavam a arte da cura popular, afinal

    utilizavam o medo da morte e a ignorncia para convencer facilmente o enfermo a confiar

    prontamente em seus cuidados. Imbert afirma recorrentemente o valor da cincia mdica, pois

    segundo ele

    a autoridade da medicina muito imperiosa, ninguem o contesta, e esta autoridade

    chega s vezes ao mais violento despotismo. Diante della est a submisso curvada,

    plida e tremula, que apenas possue um claro de esperana, ultima consolaoque ainda anima o moribundo inclinado para as bordas do tumulo (IMBERT,

    1837: 3).

    O moribundo nesse sentido deveria recorrer a tal autoridade, pois que imperiosa.

    Quanto morte, a causa principal do medo de busca pela cura, Imbert reflete:

    (...) lei rigorosa, a unica que no se pde illudir, pois que nos fere tanto no seio da

    desgraa como no da prosperidade. Sim senhores, menos espanto nos inspiraria a

    morte, se quizessemos lembrar-nos de que Deos submetteo toda a raa humana, reis

    e sbditos, ao terrivel nivel de sua justia, a qual prescreveu que tudo voltaria aonada, donde sahimos, excepto, todavia, essa poro immortal de ns mesmos, a

    alma, o sopro ethereo, que torna a chamar a si, por ser uma emanao de sua

    divindade, e que nos concedeo para servir-nos de guia, e dirigir-nos sabiamente na

    vereda escabrosa do dever e da virtude, para que fomos creados (IMBERT, 1837:

    5).

    Morrer condio inerente a todos os seres humanos, mas intensamente contestada,

    principalmente se em idade no senil. O medo da morte acentuava-se em perodos de

    epidemias ou a partir da aquisio de doenas conhecidas socialmente pelo alto nmero de

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    mortandades que causavam. Acerca da mesma, Imbert, faz uso de um discurso religioso, o

    mesmo que antes utilizara para tecer crticas atuao dos charlates.

    O charlatanismo deveria ser combatido, mas a dificuldade em materializar tal ao

    leva o mdico a considerar a relao estabelecida entre a sua prtica e os que a procuravam ou

    aceitavam suas prescries. A vtima parece ser isenta de culpa devido s caractersticas

    prprias ao ser humano acometido de alguma enfermidade. Acreditar que uma dada promessa

    possa se efetivar e sanar a molstia, afastando a morte que parecia certa, uma esperana que

    no se pode depreciar. Principalmente se consideramos o fato de que a medicina acadmica

    gerava muitos bitos conhecidos pela populao de uma forma geral. Seja como for, especulando dextramente sobre o aguilho da dr, sobre a credulidade dos doentes e o receio

    que tem da morte, que o charlatanismo e os charlates grangeo esta grande aura popular, que

    os pe acima dos entes ordinarios. isto, sem duvida, o cumulo da loucura (...) (IMBERT,

    1837: 7). A credulidade assim evidencia a que ponto de fraqueza pode chegar a razo quando

    dominada pelo temor da morte.

    Utilizando o exemplo de Lus XI, rei francs entre os anos 1461 e 1483, o mdico

    aponta outro fator relevante, a supertio. Esta e a credulidade foram os motivos pelos quais,na opinio de Imbert, o monarca tentava se prevenir da morte, sendo o motor que o

    impulsionara a determinadas decises, ou seja, levar consigo uma relquia: um pedao da

    verdadeira cruz, tentativa de conseguir perdo para a sua poltica maquiavlica (IMBERT,

    1837: 8). Em sua doena fora atendido por Jacques Coytier, um astrlogo que lhe receitava

    diferentes remdios. No por acaso o mdico menciona este exemplo, a partir dele evidencia

    as diferentes formas, em tempos histricos distintos onde charlates atuavam na prtica

    mdica de cura. O modelo praticado no tempo em que redige o documento que aquianalisamos, seria

    o charlatanismo, no tempo actual, tem por principio cobrir-se com uma mascara

    que sempre harmonise com a marcha e o tom da sociedade sobre a qual exercita

    seu imperio; todavia, tem o maior cuidado em varias suas formas e linguagem

    segundo a classe que quer submetter sua aco, pois muito differe o

    charlatanismo dos palacios do das choupanas (IMBERT, 1837: 9-10).

    A proposta do mdico seguir o charlatanismo nas diferentes revolues seculares

    acompanhando-o at o seu tempo, ou seja, at este seculo XIX, que se diz de luzes e raso,

    mas no qual o observador imparcial descobre certos symptomas de loucura e demncia, de

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    que lhe cumpre curar-se para merecer o nome de seculo de sabedoria, com que alguns querem

    brinda-lo (IMBERT, 1837: 10). Demonstra que na Idade Mdia havia significante influncia

    dos astros sobre as doenas, onde astrlogos de profisso tratavam as diferentes molstias

    segundo os princpios da astrologia, caso de Lus XI. Todavia, aponta que ainda em seu

    tempo, algumas velhas tinham o costume de mostrar a parte posterior de um recm-nascido

    a lua a meia-noite para preserva-lhe de algumas enfermidades (IMBERT, 1837: 10-11). Na

    Frana e no Imprio do Brasil, tais prticas supersticiosas em certa medida eram comuns,

    ainda na primeira metade do sculo XIX.

    A religio utilizada em seu discurso, principalmente para demonstrar a imortalidadehumana e a sua incapacidade de transp-la. Muito provavelmente por isso o uso recorrente de

    amuletos e prescries de diferentes charlates. Mas, segundo Imbert

    Os povos deixro igualmente de ter f no poder dos amuletos, dos feiticeiros, da

    magia, pois os entes immateriaes e fantasticos que se designavo com o nome de

    genios e demonios, agora no causo temor: desapparecro com o exorcismo e a

    fogueira, cuja chamma j a ninguem persuade (IMBERT, 1837: 13).

    No devemos, pois deixar de mencionar que a atitude de crer em determinadas prticas

    de cura esto associadas a diferentes construes e reconstrues sociais. No caso do Imprio

    do Brasil observa-se a convivncia nem sempre pacfica, da africana, europeia e indgena,

    como j mencionado. Para muitos povos africanos a doena estava associada s prticas

    mgicas, ao pagamento de um pecado, bem como para portugueses catlicos que culpavam o

    corpo pelos males sofridos acreditando, entretanto, que poderiam purificar e salvar a alma.

    Consideraes Finais

    Nesta reflexo acerca do discurso mdico de Jean-Baptiste Alban Imbert na primeira

    metade do sculo XIX sobre os Charlates, percebemos uma tentativa complexa em

    desqualificar as prticas populares de cura, sendo o doente e sua condio peculiar o objeto

    central de preocupao e anlise. A credulidade muito mais presente entre os ignorantes, e o

    medo da morte corroboravam para que a atuao de charlates fosse concreta naquelasociedade de acordo com suas proposies.

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    Fazer um enfermo sobreviver a muitas enfermidades era um grande desafio para os

    que dominavam a arte de curar, acadmicos ou no. O nmero de mortes era considervel,

    muito mais contundente entre escravizados devido ao trabalho por eles exercido, a

    precariedade de vestimentas, alimentao inadequada e uso de bebidas alcolicas.

    Evidenciamos que o medo de fenecer fora construdo com base em questes sociais e

    culturais complexas, tendo em vista a prpria formao da sociedade brasileira desde tempos

    coloniais.

    Analisar a atuao dos charlates em diferentes tempos histricos nos permite

    perceber que muitas prticas continuaram a existir, principalmente as relativas s relquiasreligiosas e superties, considerando evidentemente os afastamentos devidos. As mudanas

    ocorreram, no podemos negar, mas a atuao de feiticeiros e curandeiros ainda na primeira

    metade do sculo XIX no Rio de Janeiro s era possvel devido a construo sociocultural

    daquela sociedade. Segundo as proposies de Imbert eram quatro os principais fatores a

    favorecer a atuao de charlates: a credulidade, a ignorncia, o medo da morte e a

    superstio. Assim a importncia de um discurso claro, objetivo e principalmente didtico

    sobre o charlatanismo e dos perigos que o mesmo impunha aquela sociedade era essencial,pois que registraram por meio de crticas a atuao dos chamados charlates da arte de curar.

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