Ciaccona Em Ré Menor BMW 1004 de J.S. Bach - Thiago Freitas

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  • 8/11/2019 Ciaccona Em R Menor BMW 1004 de J.S. Bach - Thiago Freitas

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

    INSTITUTO DE ARTES

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM MSICA

    THIAGO COLOMBO DE FREITAS

    CIACCONA EM R MENOR BWV 1004 DE J. S. BACH:um estudo das

    articulaes e uma transcrio para violo

    Orientador: Prof. Dr. Daniel Wolff

    Porto Alegre

    2005

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    A meus pais

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    AGRADECIMENTOS

    Agradeo ao Prof. Dr. Daniel Wolff, pelo trabalho realizado nesta orientao.

    Aos professores Fredi Gerling, Andr Loss e Fernando Mattos, pelas idias e

    contribuies bibliogrficas.

    minha irm, Ana Laura, e aos colegas que contriburam comigo

    das mais variadas formas.

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    O que vo descobrir em nossos textos,no sabemos.

    Temos intenes, pretenses inmeras.Mas o que vo descobrir em nossostextos,no sabemos.Desamparado o texto,desamparado o autor,se entreolham, em vo.rfo,o texto aguarda alheia paternidade.rfo,o autor consideraentre o texto e o leitor

    - a desletrada solido.

    Af fonso Romano de Santanna

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    RESUMO

    Este trabalho uma anlise das articulaes indicadas por Johann

    Sebastian Bach (1685-1750) na sua Ciaccona em r menor - quinto movimento

    da Partita II para violino solo, BWV 1004 e uma transcrio desta obra para

    violo. A questo da interpretao dos sinais de articulao assinalados por

    Bach abordada a partir de referenciais tericos e prticos. So discutidas as

    tradies de execuo e os variados entendimentos atribudos por estas aos

    sinais de articulao.

    Palavras-chave:

    Articulao musical transcrio retrica barroca tradies de

    execuo

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    ABSTRACT

    This work is an analysis of the articulation markings in Johann

    Sebastian Bachs Ciaccona in D minor - fifth movement of the Partita BWV

    1004, for solo violin and a transcription for guitar. The problem of interpreting

    Bachs articulation indications is examined in the light of theoretical and

    practical references. The discussion also focuses on performance traditions and

    the various understandings of the articulation markings led to by these

    traditions.

    Keywords:

    Musical Articulation transcription baroque retoric musical

    performance traditions.

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    LISTA DE EXEMPLOS MUSICAIS

    Exemplo 1: Soggetto cavatoencontrado no Orgelbchlein, BWV 625, Christ lag

    in todesbanden(Williams, 1981, p. 67). ..................................................... 20

    Exemplo 2: Compasso 60 da Ciaccona (urtext)......................................... 31

    Exemplo 3: compasso 57 da Ciaccona. Em destaque, figura agrupando trs

    notas e articulando a quarta. ..................................................................... 31

    Exemplo 4: incio da Toccata em f maior BWV 504 para rgo (Keller, 1955,

    p. 120)........................................................................................................ 32Exemplo 5: Compasso 16 da Ciaccona (urtext)......................................... 36

    Exemplo 6: compasso 16 da Ciaccona: representao grfica da execuo de

    David Russell. ............................................................................................ 36

    Exemplo 7: compasso 16 da Ciaccona: representao grfica da execuo de

    Thomas Zehetmair..................................................................................... 37

    Exemplo 8: compasso 16 da Ciaccona: edio de Andrs Segovia. ......... 38

    Exemplo 9: Suite BWV 1012 para violoncelo: compasso 1 do preldio (antes da

    barra dupla) e compasso 7 da Giga (depois da barra dupla), urtext (pentagrama

    superior) e transcrio de Stanley Yates (pentagrama inferior). ................ 40

    Exemplo 10: compassos 109 e 110 do Preldio BWV 1006 (pentagrama

    superior) e do BWV 1006a, transcrio para alade do compositor (pentagrama

    inferior)....................................................................................................... 41

    Exemplo 11: compassos 229 e 230 da Ciaccona: manuscrito (pentagrama

    superior), representao grfica das execues de Russell e Fernndez

    (pentagrama inferior). ................................................................................ 42

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    Exemplo 12: trecho da Paixo segundo So Mateus (Keller, 1955, p. 55).

    ................................................................................................................... 45

    Exemplo 13: trecho da Valsa, Op. 64, n 2 de Chopin (Keller, 1955, p. 55).

    ................................................................................................................... 45

    Exemplo 14: compassos 81-83 da Ciaccona: edio de Andrs Segovia. 46

    Exemplo 15: compassos 81-83 da Ciaccona: edio de Henryk Szeryng. 46

    Exemplo 16: compassos 85-88 da Ciaccona (urtext)................................. 48

    Exemplo 17: compasso 85 da Ciaccona: edies urtextNeue Bach Gesellschaft

    e Neue Bach Ausgabe. .............................................................................. 49

    Exemplo 18: compassos 245-247 da Ciaccona (urtext)............................. 50

    Exemplo 19: compassos 245-247 da Ciaccona: edies de Abel Carlevaro(pentagrama superior) e Henryk Szeryng (pentagrama inferior)................ 51

    Exemplo 20: compassos 245-247 da Ciaccona: edio de Andrs Segovia.

    ................................................................................................................... 52

    Exemplo 21: compasso 245 da Ciaccona: representao grfica da execuo

    de Eduardo Fernndez. ............................................................................. 53

    Exemplo 22: compassos 29-32 da Ciaccona (urtext)................................. 56

    Exemplo 23: compassos 29-32 da Ciaccona: edio de Enrico Polo. ....... 57Exemplo 24: compasso 221 da Ciaccona: possvel notao usada atualmente,

    considerando a funcionalidade das notas (pentagrama superior); notao do

    compositor (pentagrama inferior). .............................................................. 59

    Exemplo 25: compasso 221 da Ciaccona: edio de Andrs Segovia

    (pentagrama superior) e representao grfica da sua execuo............. 60

    Exemplo 26: compasso 217 da Ciaccona: possvel notao usada atualmente,

    considerando a funcionalidade das notas (pentagrama superior); notao docompositor (pentagrama inferior). .............................................................. 62

    Exemplo 27: compassos 22-25: do Preldio BWV 1011 para violoncelo

    (pentagrama superior), da transcrio para alade do compositor (BWV 995,

    pentagrama intermedirio) e de tablatura feita por um alaudista do sculo XVIII

    (pentagrama inferior). ................................................................................ 66

    Exemplo 28: compassos 49-51 da Ciaccona (urtext)................................. 68

    Exemplo 29: compassos 49-51 da Ciaccona: edies de Abel Carlevaro

    (pentagrama superior) e de Andrs Segovia (pentagrama inferior). .......... 69

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    Exemplo 30: compassos 49-51 da Ciaccona: edies de Enrico Polo

    (pentagrama superior) e de Henryk Szeryng (pentagrama inferior)........... 71

    Exemplo 31: compassos 72 e 73 da Ciaccona (urtext).............................. 72

    Exemplo 32: compassos 65-80 da Ciaccona: A- variao compreendida entre

    os compassos 65-72, B- variao compreendida entre os compassos 73-80,

    a- duas figuras primordialmente em semicolcheias, b- figura primordialmente

    em fusas, a- duas figuras figuras primordialmente em fusas, b- figura

    primordialmente em semicolcheias............................................................ 74

    Exemplo 33: compassos 65-80 da Ciaccona: A- variao entre os compassos

    65-76, B- nova variao. ......................................................................... 77

    Exemplo 34: compassos 65-80 da Ciaccona: edio de Andrs Segovia. 79Exemplo 35: Ciaccona compasso 1: a)original b) transcrio com adio de

    baixo .......................................................................................................... 81

    Exemplo 36: a) conduo das vozes no original, b) conduo das vozes na

    transcrio ................................................................................................. 81

    Exemplo 37: Ciaccona compasso 229: a)original, b) transcrio com

    deslocamento de oitava da nota pedal ...................................................... 82

    Exemplo 38: Ciaccona compasso 29: a) original, b) transcrio com adio debaixo .......................................................................................................... 83

    Exemplo 39: Ciaccona compassos 72-73: a) original, b) transcrio com adio

    de baixo ..................................................................................................... 83

    Exemplo 40: Ciaccona compasso 81: a) original, b) transcrio com inverso de

    haste .......................................................................................................... 84

    Exemplo 41: Ciaccona compasso 241, a) original, b) transcrio com

    duplicao de hastes ................................................................................. 85Exemplo 42: Ciaccona compasso 88: a) original, b) transcrio com adio de

    ligados mecnicos ..................................................................................... 86

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    SUMRIO

    INTRODUO ...........................................................................12

    Articulao e msica barroca.......................................................................12

    Retrica e semntica na msica de Bach e a Ciaccona..............................15

    Tradies de Execuo................................................................................21

    1 LIGADURAS CURTAS ...........................................................30

    1.1 Ligaduras em funo da mecnica...................................30

    1.2 Ligadura em resoluo de apojatura................................35

    1.3 Ligaduras em Pedal............................................................39

    1.4 Ligaduras indicativas de acentuao rtmica ..................44

    1.4.1 Ligaduras responsveis por acentuao hierrquica........................ 44

    1.4.2 Ligaduras responsveis por quebra de acentuao hierrquica....... 50

    1.5 Ligaduras indicando pol ifonia implcita...........................55

    1.5.1 Ligaduras em arpejos ....................................................................... 551.5.2 Polifonia conquistada por saltos ....................................................... 58

    1.5.3 Polifonia conquistada por saltos e arpejos........................................ 61

    2 LIGADURAS LONGAS...........................................................65

    2.1 Ligaduras marcando mudana de harmonia ...................68

    2.2 Ligaduras caracterizando mudana de afeto ..................72

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    3 COMENTRIOS SOBRE A TRANSCRIO.........................80

    3.1 Alterao e adio de notas ..............................................80

    3.1.1 Notas adicionadas para preenchimento harmnico.......................... 80

    3.1.2 Notas adicionadas para reforar a articulao.................................. 82

    3.2 Inverses e duplicaes das hastes ................................84

    3.3 Adio de l igaduras ...........................................................85

    CONCLUSO ............................................................................87

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS..........................................91

    APNDICE A CIACCONA (TRANSCRIO: THIAGO

    COLOMBO DE FREITAS) .........................................................95

    ANEXO A CIACCONA (MANUSCRITO) ................................105

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    INTRODUO

    O presente artigo um estudo da articulao musical na Ciaccona

    BWV 1004, de J. S. Bach, seu entendimento pelas vrias tradies de

    execuo ao longo dos tempos, e sua aplicabilidade ao violo, demonstrada na

    transcrio em anexo.

    Ar ticulao e msica barroca

    Estudar a articulao musical em obras do perodo barroco

    imprescindvel para o entendimento e, por conseguinte, para a execuo de

    uma msica fundamentalmente orientada pela linguagem, que, nas palavras

    de Harnoncourt (1984, p. 42), fala, em contraposio msica posterior a

    1800 que, a grosso modo, pinta.

    Segundo Hermann Keller (1955, p. 46),

    Tal qual o fraseado, tambm a articulao musical deriva dalinguagem. Os sons da fala se compe de vogais, aqueles comsonoridade prpria, e consoantes, que se combinam com asmesmas. Emiti-las claramente e delimit-las umas das outras a misso da articulao lingstica. A criana aprende a falar

    aprendendo a articular.

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    A importncia da articulao musical apontada por Keller no seu

    estudo Phrasierung und Artikulation: Ein Beitrag zu einer Sprachlehre der Musik

    (1955, Brenreiter-Verlag, Kassel und Basel) nos remete s palavras de

    Schenker (in: Keller, 1955), segundo o qual,

    [...] o problema deveria apoiar-se sobre uma base vocal, ouseja, sobre aquela arte da distribuio da respirao que seperdeu h muito, mas que, no obstante, de uma maneiramisteriosa constitui tambm o fundamento da articulaomusical.

    Harnoncourt1(1984, p. 49) diz que,

    Articulao o nome dado ao processo tcnico de falar, amaneira de proferir as diversas vogais e consoantes. De acordocom o Lexikonde Meyer (1903), articular dividir, expor algoponto por ponto; fazer com que as partes separadas de um

    todo apaream claramente, sobretudo os sons e as slabas daspalavras. Na msica, compreende-se por articulao o ligar edestacar das notas, o legato e o staccato, bem como a suamistura, para a qual muitos empregam abusivamente o termofrasear. Deparamo-nos com o problema da articulaoprincipalmente na msica barroca, mais precisamente namsica de 1600 at 1800, pois esta fundamentalmenteorientada pela linguagem. Os paralelos com a linguagem foramacentuados por todos os tericos daquele tempo, e a msicaera freqentemente descrita como uma linguagem de sons.

    O trabalho como professor de msica somado experincia pessoal

    de aprendizado nos mostra uma dificuldade singular no estudo de obras de

    perodos anteriores ao sculo XIX. Esta dificuldade est ligada diferena

    fundamental de conceito referida por Harnoncourt, que nos permite dividir,

    ainda que de forma superficial, em duas partes a msica ocidental do medievo

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    at hoje, e nos leva a denominar msica antiga a msica feita antes do sculo

    XIX. Podemos dizer que, para ns, esta linguagem dos sons constitui uma

    lngua estrangeira, j que no somos homens do barroco (Harnoncourt,

    1984). O aprendizado desta lngua implica em entender uma arte-linguagem

    baseada nos princpios da retrica2.

    A arte do discurso musical est, ento, dividida em trs partes:

    Inventio, idia bsica a ser apresentada; Dispositio ou Elaboratio, esqueleto

    da pea; Pronuntiatioou Elocutio, apresentao do discurso (Kloppers, 1965, p.

    56-65, 196, in: Butt, 1990, p. 16). De acordo com Butt (1990, p. 16), Inventio

    pode ser facilmente associado com o Affekt3 nico tradicionalmente

    associado com cada pea musical [...] Decoratio4 a continuao do mesmo

    processo [Elaboratio], adicionando detalhes e palavras ou frases individuais.

    Cabe ao executante a tarefa de realizar o elocutio, mas este s poder ser bem

    concretizado se o executante tiver conhecimento sobre as etapas anteriores.

    Temos ento que conhecer os afetos contidos na obra ( inventio), entender as

    1HARNONCOURT, Nikolaus. O discurso dos Sons: caminhos para uma nova compreensomusical. Traduzido por Marcelo Fagerlande. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 1998.2 Todos os conceitos musicais relacionados retrica originaram-se na extensiva literatura

    sobre oratria e retrica dos escritores da Grcia e Roma antigas, principalmente, Aristteles,Ccero e Quintiliano. (SADIE, Stanley. Rhetoric and music in: The New Grove Dictionary ofMusic and Musicians. v 21. p.261-2)3Como resultado de suas intrincadas relaes com as doutrinas retricas, a msica barrocatomou como seu objetivo esttico primrio a obteno de uma unidade estilstica baseada emabstraes emocionais chamadas de Afetos. Um afeto (Affekt em alemo, do grego pathos edo latim affectus) consiste em um estado emocional ou paixo racionalizada. Aps 1600, arepresentao dos Afetos tornou-se a necessidade esttica da maioria dos compositoresbarrocos, sejam quais fossem suas nacionalidades, e a base fundamental de numerosostratados. (SADIE, Stanley. Rhetoric and music in: The New Grove Dictionary of Music andMusicians. v 21. p.261-2)4A transformao mais complexa e sistemtica do conceito de retrica em uma equivalnciamusical origina o decoratio da teoria da retrica. Na oratria, cada orador modifica o seu

    comando das regras e tcnicas do decoratio de forma a embelezar suas idias com umaimagem retrica e, infundir o seu texto/discurso com uma linguagem apaixonada. O significadodisso foi o amplo conceito sobre as figuras de linguagem. (SADIE, Stanley. Rhetoric andmusic in: The New Grove Dictionary of Music and Musicians. v 21. p.261-2)

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    inflexes que exibem ou ocultam figuras5 significativas, anotadas pelo

    compositor para tornar atraente o texto (decoratio), e conhecer as tradies de

    execuo, onde encontramos referenciais prticos, que nos auxiliaro nesta

    realizao da etapa final, o elocutio.

    Retrica e semntica na msica de Bach e a Ciaccona

    Uma idiossincrasia de Bach que o diferenciou dos msicos de seu

    tempo foi o rigor de detalhes na escrita. Harnoncourt6 (1984, p.45) diz que

    Bach foi o nico compositor de seu tempo que repetidamente rompia as

    barreiras entre obra e execuo, as quais definiam de maneira fundamental a

    msica do perodo barroco. Bach era especialmente detalhista na notao da

    articulao e dos ornamentos. Tal detalhismo foi um dos agentes responsveis

    por uma mtica controvrsia pblica entre Johann Adolph Scheibe, compositor

    contemporneo de Bach, e Johann Abrahan Birbaum, amigo de Bach,

    professor de retrica em Leipzig e compositor. Em trecho da crtica escrita por

    Scheibe em 1737 (in: Harnoncourt, 1984, p. 45-46), dirigida ao senhor

    compositor da corte, ele diz:

    Este grande homem seria objeto da admirao de naesinteiras caso fosse mais gracioso e se no subtrasse toda anaturalidade s suas peas por meio de uma execuobombstica e confusa, cuja beleza obscurecida por seusexcessos artsticos. [...] Ele expressa detalhadamente, emnotas, todos os maneirismos e pequenas ornamentaes que

    5A Figurenlehre, ou teoria das figuras, se refere a uma repertrio de gestos musicais tpicosdo perodo barroco, um repertrio mais ou menos codificado que tradicionalmenterelacionado com o aspecto retrico da msica. Por definio, esta uma compilao de gestosmusicais usualmente e quase universalmente empregados. Neste caso, h uma regra similarquela dos tropiretricos, isto , figuras comuns do discurso escrito ou falado. (Fernandez,

    2003, p. 81)6HARNONCOURT, Nikolaus. O Dilogo Musical: Monteverdi, Bach e Mozart. Traduo de LuisPaulo Sampaio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 1993.

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    entendemos como prprios ao modo de tocar, o que no sretira de suas peas toda a beleza e harmonia, como torna ocanto bastante inaudvel.

    Em trecho de sua rplica, escrita em 1738, Birbaum refuta os

    argumentos de Scheibe da seguinte forma:

    O que seria bombstico na msica? Ser que se deveentend-lo tal como o significado dado ao termo na arte daretrica, onde usado para designar uma forma de escrita emque so aplicados os mais sublimes ornamentos de linguagempara enfatizar coisas insignificantes e destarte tornar ainda

    mais evidente a sua inconseqncia? O simples fato de sepensar assim em relao ao senhor compositor da corteconstitui a mais grosseira injria. Este compositor nodesperdia seus magnficos ornamentos em canes detaverna, canes de ninar ou demais galanterias inspidas. Emsuas peas religiosas, suas aberturas, seus concertos e outrasobras, encontramos seus ornamentos sempre emconformidade com os temas principais desenvolvidos por ele...[...] Ele conhece to profundamente os aspectos e regras quetm em comum a obra musical e a arte da retrica, que no so ouvimos com grande prazer quando emite suas profundasopinies a respeito das similitudes e concordncias das duas

    artes, como tambm admiramos a hbil aplicao que faz dasmesmas em suas obras.

    O preciosismo da escrita musical de Bach permitiu que sua obra

    chegasse at ns conservando sua riqueza de significado expressa em cada

    ornamento e em cada figura agrupada pela articulao. Quando Birbaum

    escreve que Em suas peas religiosas, suas aberturas, seus concertos e

    outras obras, encontramos seus ornamentos sempre em conformidade com os

    temas principais desenvolvidos por ele, refere-se ao no uso de notas

    gratuitas. Podemos dizer que os ornamentos de Bach so sempre referentes

    a uma citao que est relacionada temtica central da obra. Este argumento

    responde satisfatoriamente a Scheibe quando diz, de forma pejorativa, que ele

    expressa detalhadamente, em notas, todos os maneirismos e pequenas

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    ornamentaes que entendemos como prprios ao modo de tocar. Sendo

    assim, Bach d orientaes ao intrprete para que este no ornamente de

    forma inconseqente, ou, nas palavras de Butt7

    (1990, p.191), Claramente,

    Bach est atuando aqui como intrprete supremo da sua msica. Sua atividade

    como executante um estgio posterior no processo composicional, incidindo

    profundamente em um decoratio superficial.

    Em 1994, Helga Thoelne escreveu Johann Sebastian Bach,

    Ciaccona: Tanz oder Tombeau. Verbogene Sprache eines berhmten Werkes.

    (Verffentlichungen des Historischen Museums Kthen / Anhalt XIX, Cthener

    Bach-Hefte 6, Kthen 1994), um trabalho que trata de semntica e numerologia

    nesta obra. Neste trabalho, Thoelne demonstra convincentemente como Bach

    insere corais na Ciaccona com a inteno de fazer desta obra uma

    homenagem no funeral de sua primeira esposa (Fernndez8, 2003, p. 75).

    Baseado neste artigo, Jos Miguel Moreno gravou, no seu disco De Occulta

    Philosophia9, uma Chaconne Tombeau, onde sobrepe, baseado no artigo de

    Thoelne, a Ciaccona de Bach ao coral luterano Christ lag in todesbanden

    (Cristo est deitado nos braos da morte), um hino de sete versos constituido

    na seqncia Victimae Paschali Laudes (Williams

    10

    , 1980, p. 66), experinciarealizada posteriormente por Christoph Poppen e o Hilliard Ensemble, no disco

    Morimur (After Bach), em 2001.

    7BUTT, John. Bach Interpretation: articulation marks in primary sources of J. S. Bach. 278 p.Cambridge Universidy Press, Cambridge, 1990.8FERNNDEZ, Eduardo. Essays on J. S. Bachs Works for lute. Ediciones ART: Montevideo,

    Uruguay, 2003.9MORENO, Jos Miguel. De Occulta Philosophia. GCD 920107. Glossa. 1998.10 WILLIAMS, Peter. The Organ Music of J. S. Bach. II - Works Based on Chorales. Cambridge

    Universidy Press: Cambridge, New York, New Rochelle, Melbourne, Sydney, 1980.

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    O Christ lag in Todesbanden foi publicado em 1524 e tornou-se o

    principal hino de Pscoa em Leipzig e arredores. A letra diz,

    Cristo jazia em seu sudrio de morte, Aleluia.

    Ningum pode forar a morte.

    Tua vontade, senhor Deus, se faz igual na terra

    como no reino dos cus.

    Ordena-nos teu caminho.

    Onde devo ir?

    Aleluia, Jesus, minha alegria,

    Ordena-nos teu caminho.

    No medo e na necessidade confio no meu querido

    Deus, quero esper-lo sempre.

    Ningum pode forar a morte.

    D-nos pacincia em tempo de sofrimento.

    Ordena-nos teu caminho.

    Cristo jazia em seu sudrio de morte, aleluia.

    Venho do alto dos cus.

    Como hei de receber-te?

    Jesus, tua paixo quero rememorar.

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    Venho do alto dos cus.

    Como hei de receber-te?

    No mais profundo do meu corao teu nome e a

    cruz queimam a cada momento.

    Isso me torna feliz.

    Louvado seja o altssimo.

    Agora ofereo minha alma ao senhor.

    Tua vontade, senhor Deus, se faz igual na terra

    como no reino dos cus.

    Do alto dos cus.

    Como hei de receber-te?

    Venho do alto dos cus.

    Cristo jazia em seu sudrio de morte, aleluia.

    A melodia tomada de um hino mais antigo, intitulado Christ ist

    erstanden (Williams, 1980, p. 66). Um arranjo de Bach deste coral constitui o

    BWV 625, pertencente ao Orgelbchleine, onde o compositor ornamenta

    usando um soggetto cavato11

    (figura 1)em forma de cruz (Fernndez, 2003,p. 69), definida por Schweitzer (1905, p. 349, in: Williams, 1980, p.67) como os

    braos da morte.

    11[...] motivos cujas notas formam palavras ou abreviaturas de acordo com o sistema alemode solmizao.[...] O mais notrio caso de um motivo derivado deste sistema na obra de Bach provavelmente o aparecimento sujeito B-A-C-H na no-finalizada fuga final da Arte da Fuga.

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    Exemplo 1: Soggetto cavato encontrado no Orgelbchlein, BWV 625, Christ lag in

    todesbanden(Williams, 1981, p. 67).

    No BWV 625 tambm encontramos a relao com o passus

    diriusculus, grupo de notas cromticas ascendentes, definidos assim por

    Bernhard, pupilo de Schtz (Williams, 1980, p. 44). Estes passus duriusculus

    esto no compasso 235 da Ciaccona, sendo imitados no compasso posterior

    pela voz mais grave. Sobre esta figura Williams diz ainda que tambm

    encontrada em r menor, ou tnus primus, de Sweelinck (Fantasia Cromtica)

    a Beethoven (Nona Sinfonia, coda do primeiro movimento).

    Outro soggeto cavato que evidencia a relao da Ciaccona com a

    crucificao de Cristo a repetio tripla da nota l que recorre ao longo de 15

    compassos (161-176), o CCC (Christus Coronabit Crucigeres), smbolo, ou

    representao icnica (Fernndez, 2003) da crucificao, encontrado na

    seo central da obra, em r maior.

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    Tradies de execuo

    Segundo Harnoncourt (1984, p.51),

    Na execuo da msica antiga, a tradio um fator todeterminante quanto a prpria notao da obra. Toda a peamusical submetida, atravs de repetidas execues no cursodos decnios e sculos, a uma elaborao formal que acabapor adquirir um carter quase definitivo. As numerosasinterpretaes de algum modo se copiam umas s outras,acabando por construir uma forma legtima que no pode maisser ignorada em novas execues [...] a tradio consideradacomo uma espcie de purificao, de cristalizao definitiva,confirmada por longos anos de experincia.

    Ao contrrio de Bach, as tradies de execuo da obra de

    Beethoven remontam ao prprio compositor. As diversas tendncias

    interpretativas das obras de Beethoven so, desta forma, como afluentes de

    um rio cuja nascente sua prpria execuo. Quando tratamos de tradies

    interpretativas da obra de Bach devemos ter bem claro que estamos falando de

    uma tradio interrompida, ou seja, que inexistiu por um longo perodo e que,

    portanto, nos desliga da tradio na qual estava inserido o compositor.

    Podemos dividir em quatro partes a histria das prticas interpretativas da obra

    de Bach: 1) a contemporaneidade do compositor (final do sculo XVII e

    primeira metade do sculo XVIII); 2) o renascimento em 1829 e a tradio

    romntica (Bach Gesellschaft 1850, reedio em 1900); 3) o Ps-guerra, a

    proliferao dos estudos musicolgicos sobre o assunto (Dart 1954, Keller

    1955, Dolmetsch 1957, Donington 1963, etc.) e a edio Neue Bach

    Ausgabe(NBA, 1954-); 4) a contemporaneidade.

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    Aps seu falecimento em 1750, Bach e sua obra passaram por

    quase um sculo de esquecimento12 at 1829, ano em que Mendelssohn

    apresentou com grande xito a Paixo segundo So Mateus. Este

    acontecimento foi o passo inicial do que podemos chamar de renascimento da

    msica de Bach. Em 1850, no centenrio da morte do compositor, foi fundada a

    Bach Gesellschaft, que editou toda a obra do mestre de Leipzig durante os

    cinqenta anos posteriores. Em 1900 a Bach Gesellschaftfoi reeditada com o

    nome de Neue Bach Gesellschaft, sendo por mais meio sculo a referncia

    principal sobre a msica deste compositor.

    No raro em nosso meio musical ouvimos afirmaes do tipo: o

    Bach dele meio romntico, ou, tocava bem, mas fazia tudo nas cordas

    graves e com vibrato, ou ainda, toca Bach usando at pedal. Estas

    afirmaes aparecem tanto em tom pejorativo como enaltecendo o executante.

    Cabe aqui fazer algumas perguntas: O que vem a ser uma execuo romntica

    de Bach? Estaria relacionada ao uso de vibrato, ou de dinmica, ou de timbre?

    Talvez a velocidade? Possivelmente est relacionada ao uso de todos estes

    recursos, mas cabe ento uma nova pergunta: Na poca de Bach estes

    recursos eram usados? De acordo com os tratados da poca, a resposta sim.Este impasse nos leva a concluir que a caracterizao de cada tradio de

    execuo no est no uso dos elementos de expresso, e sim no porqu do

    uso e, conseqentemente, no tipo de uso destes.

    12Sabe-se que compositores, entre eles Haydn e Beethoven, estudaram o Cravo bemTemperado, mas com cunho puramente didtico.

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    A tradio romntica de execuo da obra de Bach fruto do

    anacronismo resultante do redescobrimento de uma linguagem musical em

    uma poca musical e filosoficamente diferente e at antagnica.

    Ao longo da presente pesquisa o autor recordou uma anedota que

    representa a viso de Bach que nos legou o sculo XIX. H alguns anos, em

    um concurso internacional de jovens msicos, estavam a comentar sobre a

    Chaconne transcrita para violo por Segovia. A av de um pianista participante

    do certame (que, como vrios outros pianistas do concurso, tocava a lendria

    transcrio Bach-Busoni da mesma obra) interferiu dizendo: como pode soar

    bem a Chacona de Bach em seis cordinhas?, obtendo do neto a seguinte

    resposta: Av, a Chacona foi composta para quatro cordinhas!. O conceito da

    Ciaccona sugerido por esta senhora, nada mais que um resumo da viso

    propagada majoritariamente durante mais de um sculo desde o referido

    renascimento de Bach. A Ciaccona aqui uma obra com o ideal de

    transcendncia, conceito fundamental do romantismo e antpoda do conceito

    barroco de msica e de mundo. Segundo Bruno Kiefer13(1985, p.13),

    H muita analogia entre os processos que caracterizam a

    construo de uma fuga de Bach e a concepo de leisinvariveis e eternas que regem o universo. A propsitocitamos Leibniz, praticamente contemporneo de Bach. Para ofilsofo o cu e a terra so regulados pelas mesmas leis,claras, cognoscveis, calculveis. A matese divina e a matesehumana obedecem s mesmas leis. Para o mesmo filsofoainda a matemtica e a lgica so cincias de primeira classe,porque coincidem com a estrutura, com a essncia de Deus, domundo e do homem. Dentro desta perspectiva, compreende-seque Leibniz falasse na harmonia preestabelecida, sensaoque se tem muitas vezes ao ouvir uma fuga de Bach.

    13KIEFER, Bruno. Msica Alem. Editora Movimento: Porto Alegre, 1985.

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    Em Bach a msica deve falar, e falar bem falar em harmonia com

    a estrutura perfeita do universo (para tanto, se utilizava a arte da retrica),

    acessvel e at previsvel ao homem, que parte dela. Nesta cultura, conceitos

    como gnio criativo e transcendncia no existem, existindo sim os

    conceitos de permanncia e previsibilidade (Kiefer, 1985), amplamente

    negligenciados pela tradio romntica. Nossa referncia auditiva que mais se

    aproxima dos conceitos romnticos aplicados obra de Bach est nas

    gravaes dos grandes virtuoses da primeira metade do sculo XX, ainda no

    nascedouro do registro fonogrfico. Grandes instrumentistas, cantores e

    regentes da poca abordaram a obra deste compositor a partir do paradigma

    vigente, imbudos do anacronismo j comentado. Podemos dizer que neste

    momento arranjos como os de Busoni, Siloti, Brahms, Schumann, Liszt,

    Stokowski ou Segovia, pretendiam corrigir (no so raros os

    aperfeioamentos da escrita nas edies Bach Gesellschaft) e melhorar a

    obra de Bach, implementando-a com o mximo de notas e efeitos instrumentais

    possveis. Ao ouvir o arranjo de Stokowski (1930) da Ciaccona temos a real

    dimenso do carter faranico imposto a esta obra pela gerao romntica.

    Aqui podemos entender perfeitamente a idia de que a msica, ao invs defalar, desgraadamente pinta (Harnoncourt, 1984). Hoje parece mais

    interessante entender que estes arranjos so grandes obras em si, licenas

    poticas que tm como ponto de partida ou motivo inspirador a obra de Bach.

    Aps a segunda guerra mundial o ocidente passou por um perodo

    de revisionismo histrico e os esforos em apagar um passado recente

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    acabaram por estabelecer a anttese de um processo dialtico de um sculo

    marcado por extremismos. Na tradio interpretativa de Bach este revisionismo

    est expresso no grande aumento de publicaes musicolgicas sobre o

    assunto e a busca das execues autnticas, baseadas nestas publicaes.

    So desta poca os estudos de Dart14, Keller, Dolmetsch15, Donington16, entre

    outros. Tambm desta poca o incio da edio urtextNeue Bach Ausgabe

    (1954-), onde os manuscritos foram transcritos sem qualquer alterao. Novos

    nomes da execuo musical e selos especializados trilhavam caminho paralelo

    ao meio musical tradicional, criando um mercado especfico que cresceu rpido

    e que, todavia, segue crescendo. Os excessos e o xiitismo, caracterizado na

    no aceitao dos instrumentos e afinaes modernos foram, muitas vezes,

    motivo de preconceito por parte do meio musical estabelecido, mas graas a

    grandes intrpretes atuando na rea de msica antiga este meio paralelo tem

    sido cada vez mais influente e respeitado.

    Atualmente convivem diversas tradies de execuo da obra de

    Bach. Executantes de alto nvel demonstram que os instrumentos antigos so

    diferentes, mas nunca inferiores aos modernos, ao passo que grandes msicos

    de instrumentos modernos demonstram como possvel reproduzir nestes amsica de Bach em sua plenitude. Estas diferenas (entre instrumentos

    modernos e antigos) foram, e por vezes ainda so geradoras de controvrsias.

    Porm, com o passar dos anos, se evidencia a continuidade de uma tradio

    de co-existncia e at convivncia, ainda que nem sempre amigvel, entre as

    14DART, Thurston. The Interpretation of Music.New York: Harper and Row, 1954.15 DOLMETSCH, Mabel. Personal Recollections of Arnold Dolmesch. Routledge and KeganPaul: London, 1957.16DONINGTON, Robert. The Interpretation of Early Music. London: Faber and Faber, 1963.

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    partes. A dificuldade em tratar das questes estticas referentes s diferenas

    entre os recursos tcnico-musicais dos instrumentos modernos e antigos passa

    a ser ento parte de uma infindvel busca do conhecimento na obra deste

    compositor.

    Metodologia

    No princpio, a presente pesquisa pretendia adaptar as indicaes

    de articulao da Ciaccona ao idioma do violo sem que estas perdessem suas

    caractersticas principais. Ao longo do percurso, esta pesquisa foi tomando

    caminhos mais abrangentes. Na tentativa de transpor para o violo os efeitos

    sonoros criados pelas referidas indicaes, fez-se necessrio um estudo do

    seu significado, j que estas suscitavam interpretaes completamente

    diferentes por parte dos prprios violinistas. Cabia pesquisar, antes de tudo, o

    significado destes smbolos anotados por Bach e os procedimentos adotados

    pelo prprio compositor para adapt-los em suas transcries.

    Harnoncourt diz que os sinais de articulao continuam os mesmos

    atravs dos sculos, inclusive no perodo posterior a 1800, mas o seu

    significado est sempre passando por mudanas radicais (1984, p. 49). A

    pesquisa ento passou a ter como principal objetivo estudar o entendimento

    dos sinais de articulao por parte dos especialistas da rea, a fim de lev-los

    ao violo da forma adequada. Os referenciais tericos que deram suporte ao

    trabalho, no que tange ao entendimento dos sinais de articulao de Bach,

    foram Hermann Keller (1955), John Butt (1990) e Nikolaus Harnoncourt (1984).

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    A leitura destes referenciais e de outras bibliografias relacionadas

    demonstrou como as indicaes de articulao em Bach repercutem em todos

    os elementos que constituem a msica deste compositor. Fez-se necessrio

    referenciar questes de retrica musical, s quais a articulao bachiana est

    intrinsecamente relacionada. Os estudos de Eduardo Fernndez (2003) e Peter

    Williams (1980) auxiliaram nas questes envolvendo retrica e semntica, onde

    tambm contribuiram os j mencionados estudos de Keller (1955) e Butt

    (1990).

    Como comentado acima, as indicaes de articulao na msica de

    Bach passaram por entendimentos variados ao longo dos tempos,

    caracterizando uma diversidade de tradies de execuo. Estas tradies no

    poderiam deixar de ser consideradas por esta pesquisa. Harnoncourt foi

    suporte terico para estas questes. Ainda que no tenham sido citados ao

    longo do trabalho, estudos sobre autenticidade nas prticas interpretativas,

    presentes na bibliografia, foram importantes dentro da pesquisa. O estudo

    sobre a transcrio de Segovia da Ciaccona, de Eros Rosseli17, foi referncia

    sempre que comentada esta transcrio.

    Este trabalho baseou-se tambm em uma srie de referenciais

    prticos e terico-prticos. As transcries para violo das sutes para

    violoncelo de Stanley Yates18 e seus ensaios sobre arranjo, interpretao e

    performance de J. S. Bach, bem como a edio urtext da obra integral para

    17ROSELLI, Eros. In: Il Fronimo, vol. 18, n 71: ed. Ruggero Chiesa, Itlia, 1990.18YATES, Stanley. J. S. Bach: Six Unaccompanied Cello Suites Arranged for Guitar. Mel BayPublications: Pacific, 1998.

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    alade, de Tilman Hoppstock19, formam o que consideramos as referncias

    terico-prticas. Nesta definio tambm cabe citar o trabalho de Rodolfo

    Betancourt sobre a Ciaccona20

    e sua transcrio para violo.

    Os referenciais prticos propriamente ditos so as partituras de

    edies prticas e as gravaes. Foram ouvidas numerosas gravaes da

    Ciaccona: em violino, violo, violoncelo, cravo, alade e orquestra sinfnica e

    observadas quatro edies para violino, trs para violo e duas para piano;

    alm de muitas outras obras do compositor para diversas formaes. Neste

    sentido o trabalho tambm passou por reformulaes durante sua produo.

    Tal nmero de edies e gravaes no permitia o aprofundamento

    necessrio, visto a desproporo com o escopo do artigo. Sendo assim, foram

    selecionadas trs gravaes de violinistas (Nathan Milstein21, Itzhak Perlman22

    e Thomas Zehetmair23) e cinco gravaes de violonistas (Andrs Segovia24,

    Juliam Bream25, John Williams26, David Russell27 e Eduardo Fernndez28),

    visando que estas fossem representativas de tradies de execuo variadas.

    Utilizando o mesmo critrio, selecionamos duas edies tradicionais do violino

    19BACH, J. S. Das Lautenwerk und verwandte Kompositionen im Urtext fr guitarre. Publicadopor Tilman Hoppstock, apartir dos manuscritos , 138 p, Darmstadt: PRIM, 1994.

    20BETANCOURT, Rodolfo J. The Process of transcripition for guitar of J. S. Bach Chaconnefrom Partita II for violin without accompaniment, BWV 1004. University of Denver. Colorado,1999.21MILSTEIN, Nathan. Bach Sonatas & Partitas.EMI classics, ZDMB 6479323, 1955-1956.22PAERLMAN, Itzhak. Sonatas & Partitas for solo violin. EMI, :7-49483-2, 1986-1987.23ZEHETMAIR, Thomas. Sonatas & Partitas for solo violin. Teldec, 9031-76138-2, 1992/1983.24SEGOVIA, Andrs. The Legendary Andrs Sogovia in an All-Bach Program. MCA Classics,MCAD-42068, 1987.25BREAM, Julian. J. S. Bach by Julian Bream. EMI Classics,CD 106073, 1992.26WILLIAMS, John. John Williams plays Bach. Sony Classical, 2-089612, 1975, 1984, 1988.27RUSSELL, David. David Russell plays Bach. Telarc, CD-80584, 2003.28FERNNDEZ, Eduardo. Lute Suites. London, Decca 421-434-2, 1987.

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    (Enrico Polo29e Henryk Szeryng30) e duas de transcries para violo (Andrs

    Segovia31 e Abel Carlevaro32). Tanto as gravaes como as edies so

    analisadas usando como objetos de comparao: o manuscrito, bem como as

    edies urtext Neue Bach-Ausgabe33e Neue Bach-Gesellschaft34.

    29BACH, J. S. 6 Sonate & Partite per violino solo.Edizione Enrico Polo. Ricordi, Italia, s.d.

    30BACH, J. S. Sonaten und Partiten fr violine solo.Ed. Henryk Szeryng. B. Schotts Shne,Mainz, 1981.31 BACH, J. S. Chaconne. Ed.Andrs Segvia. B. Schotts Shne, Mainz, 1934, reviso de1963.32

    BACH, J. S. Chaconne BWV 1004. Ed. Abel Carlevaro (Master Class volume IV). Chanterelle:

    Heidelberg ,1989.33BACH, J. S. Drei Sonaten und drei Partiten fr violino solo.Brenreiter Kassel Basel London BA 5116, 1959.34BACH, J. S. Drei Sonaten und drei Partiten fr violino solo.Neue Bach-Gesellschaft edition:Leipzig, 1900.

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    ANLISE DAS LIGADURAS

    1 LIGADURAS CURTAS

    1.1 Ligaduras em funo da mecnica

    Neste captulo trataremos de ligaduras com funo mecnica, ou

    seja, ligaduras que, a priori, no apresentam significado musical aparente,

    seguindo preceitos tcnico-instrumentais. Ainda que estas indicaes no

    obedeam a princpios musicais em um primeiro momento, elas muitas vezes

    acabam por determinar o entendimento de uma passagem, o que se perpetua

    na tradio interpretativa da obra. Em uma pea to arraigada ao idioma

    instrumental como a Ciaccona, so comuns os casos onde no h total

    independncia entre mecnica instrumental e interpretao musical

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    propriamente dita. Veremos aqui o exemplo do compasso 60, na variao sete

    da Ciaccona (Exemplo 2).

    Exemplo 2: Compasso 60 da Ciaccona (urtext).

    Neste compasso as ligaduras possibilitam que o violinista mantenha

    o arco sobre duas cordas, sustentando as notas em colcheia enquanto se

    desenrola o contraponto em semicolcheias. Se abstrairmos este trecho

    ignorando as condies instrumentais, poderemos concluir que a articulao

    para a figura em semicolcheia seria: ligar as trs primeiras notas, que formam

    bordadura, e separar a ltima, que estabelece relao de anacruse com o

    prximo tempo, articulao indicada pelo compositor na primeira apario,

    compasso 57 (exemplo 3).

    Exemplo 3: compasso 57 da Ciaccona. Em destaque, figura agrupando trs notas e articulando a

    quarta.

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    Esta deciso aparece na edio urtext Bach Gesellschaft (1850-

    1900) e, aparentemente, a articulao mais adequada estrutura retrica do

    trecho, j que destaca a bordadura, ornamento representativo na obra de

    Bach e constantemente relacionado s figuras em forma de cruz, definido por

    Fernndez como o homem na cruz (Fernndez, 2003). Keller (1955, p. 120),

    ao analisar este tipo de figura, exemplifica com o incio da Toccata em f maior

    BWV 540 para rgo, onde liga as bordaduras e separa os saltos (exemplo 4).

    Exemplo 4: incio da Toccata em f maior BWV 504 para rgo (Keller, 1955, p. 120).

    Neste trecho da Ciaccona, presume-se que a indicao do

    compositor uma orientao de como tocar a passagem ao violino de forma

    idiomtica, mas o resultado incide de tal maneira na audio que as ligaduras

    acabam por ser adotadas como um recurso musical independente, o que

    explica a apario destas na quase totalidade das edies analisadas neste

    trabalho, incluindo as verses para violino (Polo e Szeryng), violo (Segovia) e

    piano (Brahms e Siloti).

    Ainda que tenhamos uma srie de argumentos a favor desta

    padronizao de como articular esta figura, nos cabe ainda a seguinte

    pergunta: por que o compositor assinala as ligaduras de forma to irregular

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    neste trecho? No manuscrito a figura em questo aparece com trs notas

    ligadas e uma desligada ( , 5 vezes, c. 57, 61 e 62), com as quatro notas

    desligadas ( , 1 vez, c. 58) e com as notas ligadas duas a duas ( , 6

    vezes, c. 59, 60 e 63). Estas indicaes de Bach nos do mostra da diferena

    entre o conceito de unidade do perodo barroco e nosso tempo. Sobre esta

    questo, nos diz Harnoncourt (1984, p. 55-56),

    Na parte instrumental da ria do baixo da Cantata 47, porexemplo, ele [Bach] articula um grupo de quatro notascolocando um ponto sobre a primeira e ligando as outras trs.Entretanto, na mesma cantata essa figura onde se acha otexto: Jesu, beuge doch mein herze- , torna a voltar e, destavez, as notas esto ligadas duas a duas. Eu, pessoalmente,acho esse exemplo de grande importncia, pois Bach, aqui,diz: no h apenas uma articulao correta para umadeterminada figura musical, mas vrias; e, ainda por cima, nocaso em questo, simultaneamente! claro que h tambmpossibilidades que so absolutamente falsas; cabe a nsencontr-las e elimin-las. Em todo o caso observamos que na

    mesma pea o compositor desejou expressamente duasarticulaes diferentes para o mesmo trecho. E o ponto dearticulao nos mostra bem o quanto Bach exigia estas duasvariantes precisas. Isto nos leva a uma outra reflexo. Napintura a leo com veladura a cor transparente; possvel,nela, vermos uma camada atravs de outra e de tal sorte quechegamos a ver, atravs de quatro, cinco camadas o desenhoem baixo. O mesmo acontece com a nossa audio no caso depeas bem articuladas; levamos nossos ouvidos a passear nasprofundidades e l escutamos claramente as vrias camadasque se fundem num todo. Ao fundo percebemos o desenho, oplano; passando a outra camada iremos encontrar as

    acentuaes das dissonncias e numa prxima, uma voz dedico doce, enquanto na seguinte, uma outra voz estarsendo articulada forte e rigidamente; tudo isto sincronizado,acontecendo simultaneamente. O ouvinte no pode, deimediato, perceber a totalidade do contedo da obra. Mas elecaminha por entre as varias camadas e ouve constantementealgo diferente. A existncia destes mltiplos nveis de enormeimportncia para a compreenso desta msica que no sesatisfaz com uma simples concepo plana, montona.Encontramos, freqentemente, em partes vocais da obra deBach, situaes semelhantes anteriormente mencionada,onde a parte vocal possui uma articulao radicalmente oposta

    do instrumento de acompanhamento. Essas diferenas so,nos dias de hoje, freqentemente consideradas um erro docompositor, e infelizmente corrigidas. Para ns, difcil

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    entender e aceitar esta multiplicidade do barroco, o acontecerde diversas coisas ao mesmo tempo; ns queremos a ordemdo tipo mais fcil. Contudo, no sculo XVIII, procurava-se aplenitude, o excesso; Por onde quer que se escute, recebe-seuma informao; nada uniformizado. Observamos as coisasde todos os lados ao mesmo tempo! No existe umaarticulao sincronizada para todos os instrumentos tocandocolla parte. A orquestra articula de maneira diferente do coro. Amaior parte dos especialistas do barroco no tem conscinciadisto, eles querem sempre nivelar, ter tudo o mais igualpossvel, escutam a msica como belas colunas sonoras bemalinhadas, e no em sua diversidade.

    As palavras de Harnoncourt so diretamente aplicveis a esta

    variao da Ciaccona. Neste trecho Bach tambm nos diz que no h apenas

    uma articulao correta para uma determinada figura musical e, no obstante,

    aqui tambm o ponto de articulao nos mostra bem o quanto Bach exigia

    estas duas variantes precisas.

    Diz Roselli (1990, p. 45), [...] no compasso 60 Segovia adota

    fielmente a indicao original (que bem se adapta s possibilidades do violo)

    [...]. Como expressam as palavras de Roselli, estas ligaduras coincidem

    perfeitamente com o idioma do violo, e facilitam o trabalho da mo direita.

    Carlevaro abre mo destas indicaes e de qualquer outra ligadura.

    Russell no faz uso de ligaduras ao longo da variao, mas, no

    compasso 60, liga as duas primeiras notas em todas as aparies da figura em

    semicolcheias. Esta tambm a soluo de Fernndez, com a diferena que

    este a usa em todos os aparecimentos da figura ao longo da variao, em uma

    deciso que se assemelha hiptese levantada anteriormente, onde esta

    figura aparece com bordadura e nota isolada.

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    35

    1.2 Ligadura em resoluo de apojatura

    Nas palavras de Keller (1955, p. 53),

    Quanto aos sons estranhos harmonia, todos os que seapresentam em tempo forte ou fraco do compasso, tem emcomum que, sendo dissonncias, no podem pretendernenhuma significao prpria, e no grau seguinte, inferior ousuperior, tem que se resolver em sua nota principal. Amboscasos foram expressos claramente pela msica antigaanotando esses sons com figuras pequenas unidas notaprincipal por uma pequena ligadura que nunca falta, nemsequer em uma msica que no apresente indicao alguma.De modo, pois, que para todas as notas secundrias, masespecialmente para retardos longos ou curtos, a ligadura notaprincipal se subentende.

    No compasso 16 da Ciaccona, encontramos um trecho

    representativo do que diz Keller. Aqui Bach assinala uma ligadura bvia

    segundo as consideraes deste autor, a resoluo de uma nota suspensa (r)

    na nota pertencente ao acorde de dominante (d#). Segundo Harnoncourt

    (1984, p. 57),

    Na msica barroca, o significado fundamental da ligadura aacentuao da primeira nota. [...] aqui a hierarquia daacentuao no compasso ser perturbada atravs daarticulao e da dissonncia. justamente esta perturbaoque interessante; da mesma forma que uma perturbaoprovoca na ostra o nascimento de uma prola, no ouvinte, elasuscita uma ateno permanente.

    Podemos ento dizer que a apojatura uma representao de dor,

    e, portanto, responsvel pela satisfao fsica e espiritual, nas palavras do

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    mesmo autor, quando resolvida. Em suma, s atravs do contraste

    estabelecido com um sentimento inverso que podemos chegar a real dimenso

    de outro. Esta suspenso tambm responsvel por evidenciar o acento (no

    segundo tempo de cada compasso) caracterstico do tipo de dana (chacona).

    Exemplo 5: Compasso 16 da Ciaccona (urtext).

    O uso do trinado como recurso para preencher espaos como esse

    uma tradio, principalmente nos instrumentos com menos sustentaosonora, caso do violo. No exemplo a seguir podemos observar a alternativa

    apresentada na gravao do violonista David Russell, onde o trinado longo

    preenche todo o espao temporal da ligadura. Com esta soluo, Russell

    mantm por pouco tempo a tenso causada pela nota r, aproximadamente a

    durao de uma semicolcheia.

    Exemplo 6: compasso 16 da Ciaccona: representao grfica da execuo de David

    Russell.

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    37

    No caso dos instrumentos de arco, o ornamento no condicionado

    pela menor capacidade de sustentao do som no instrumento. A gravao de

    Zehetmair nos mostra uma forma semelhante de Russell de ornamentar a

    passagem, porm, aqui o trinado bem mais curto, fazendo durar mais a

    perturbao causada pela nota r, que se resolve em pianssimo no d

    sustenido.

    Exemplo 7: compasso 16 da Ciaccona: representao grfica da execuo de

    Thomas Zehetmair.

    Na grande maioria das gravaes e edies de violonistas

    analisadas nessa pesquisa usado o trinado ligando as duas notas (r - d#)

    como visto no exemplo 6. Destas, todas foram feitas na ultima dcada, o que

    delata uma tradio interpretativa atual. Analisando a verso de Segovia, nos

    deparamos com um entendimento completamente diferente do compasso em

    questo. Sua transcrio opta por uma repetio do acorde completo de l

    maior no terceiro tempo do compasso, o que resulta discordante em relao ao

    original do compositor, tanto no que tange acentuao quanto articulao

    propriamente dita. No exemplo 8, vemos a transcrio de Segovia.

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    Exemplo 8: compasso 16 da Ciaccona: edio de Andrs Segovia.

    Williams e Bream no agregam o acorde no ltimo tempo, mas

    acentuam igualmente as duas notas. Bream faz uso de trinado sobre o d, mas

    aqui o trinado no cumpre a funo comentada anteriormente, j que no liga o

    r ao d. Milstein, bem como Pearlman, desliga as duas notas, acentuando-as

    igualmente. Esta noo de acentuao est claramente de acordo com o

    conceito romntico da Ciaccona, como possvel observar nas palavras deJohn Moore (1854) segundo o qual,

    A Chaconne tem algo em comum com a Sarabanda, mas bem mais grave, tem o primeiro e o ltimo tempo de todos oscompassos fortemente acentuados, e era formalmente usadacomo um acompanhamento para certas danas, lentas egraciosas neste movimento [...].

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    1.3 Ligaduras em Pedal

    Entre os compassos 229-240 da Ciaccona (variao 27) h um

    pedal de l. Temos aqui uma textura que comea em trs planos (pedal de l,

    linha superior; melodia em graus conjuntos, linha intermediria; e baixo, nas

    cabeas dos compassos). Essa textura dura at o compasso 236, onde o baixo

    ganha mais movimento, e cria um contraponto de primeira espcie com a linha

    intermediria. Cabe ressaltar que, entre os compassos 233-235, a linha

    intermediria se move por semitons, o que imitado pelo baixo no compasso

    236. Sadie (p.261-2) atribui a Burmeister a definio da Pathopoeia, que o

    movimento no qual semitons saem de uma harmonia ou uma escala para

    expressar sentimentos tais como: tristeza, medo e terror. Keller (1955, p.100)

    nos diz que, Via de regra, Bach concebe o legato de uma maneira emocional,

    como sinal de tristeza, de dor serena [...]. A partir destas afirmaes

    conclumos que, no trecho em questo, tanto os semitons como o legato, so

    representativos de dor. Desde o primeiro momento, compasso 229, Bachdefine o afeto desta variao quando sobrepe sib-l (respectivamente linha

    central e pedal), formando o intervalo harmnico de segunda menor. Esta

    expresso se refora posteriormente com o aparecimento dos cromatismos.

    Nos compassos 235-236 temos finalmente o passus diriusculus.

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    Com base nestas afirmaes, podemos considerar que os ligados

    aqui, apesar de agruparem as notas duas a duas, sugerem um legato contnuo.

    Estes ligados tm como funo primordial diferenciar hierarquicamente as

    melodias que cantam do pedal. Indicaes semelhantes aparecem nas

    demais obras para violino e em obras para violoncelo, o que aponta para a

    relao deste tipo de articulao com o idioma dos instrumentos de arco. Desta

    forma, as ligaduras de duas notas em pedal constituem um efeito caracterstico

    destes instrumentos. Veja no exemplo 9 dois trechos da Sute 6, BWV 1012,

    para violoncelo solo (linha superior) e a soluo proposta por Yates de

    adequao ao violo.

    Exemplo 9: Suite BWV 1012 para violoncelo: compasso 1 do preldio (antes da barra dupla) e

    compasso 7 da Giga (depois da barra dupla), urtext (pentagrama superior) e transcrio de

    Stanley Yates (pentagrama inferior).

    No exemplo 10, podemos observar como o prprio compositor leva

    ao alade um trecho semelhante, oriundo da Partita 3, BWV 1006, para violino.

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    Exemplo 10: compassos 109 e 110 do Preldio BWV 1006 (pentagrama superior) e do BWV

    1006a, transcrio para alade do compositor (pentagrama inferior).

    Nas execues em violo analisadas nesta pesquisa, observamos

    uma prtica comum entre os registros mais atuais. Fernndez e Russell optam

    pela mudana de oitava do pedal, trocando o l do segundo espao do

    pentagrama pelo l da primeira linha suplementar superior, ao longo de toda a

    variao. No exemplo 11 um trecho da variao e a soluo comentada.

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    42

    Exemplo 11: compassos 229 e 230 da Ciaccona: manuscrito (pentagrama superior),

    representao grfica das execues de Russell e Fernndez (pentagrama inferior).

    Com esta soluo possvel ouvir cada plano independente da

    polifonia, visto que, em nenhum momento, h cruzamento entre as mesmas, o

    que tambm possibilita o legato contnuo mencionado anteriormente. A

    manuteno do quarto dedo preso na quinta casa, primeira corda, faz com que

    o pedal no seja interrompido nunca. Porm, esta soluo abre mo dos

    choques harmnicos que caracterizam o j comentado afeto neste trecho,

    caso do sib - l recorrente ao longo da variao. Bream e Williams optam por

    manter a oitava do l na primeira parte da variao, mudando de oitava no

    compasso 236 em diante. Esta soluo, apesar de manter a proximidade dos

    intervalos, no permite que o pedal se sustente, interrompendo o legato e,

    muitas vezes, no deixando soar a segunda menor, o que seria o mrito desta

    deciso. Segovia, na tentativa de imitar o efeito do violino, mantm, na sua

    edio, a oitava original do pedal por toda a variao. Sobre esta soluo nos

    diz Roselli (1990, p. 45),

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    relevante notar, por outro lado, o que acontece nasvariaes 57, 58 e 59 [compassos 229-240], onde nem semprea transcrio respeita o legato a dois com o pedal l (que, noesqueamos, no violino corda solta!), pela objetiva dificuldadede deixar sempre livre a terceira corda. Isso obriga Segovia aacrobacias da mo esquerda e transferncias do l para aquarta corda, criando assim insatisfatrias variaes de timbree inutilizando precisamente o sentido de legato explicitamenterequerido.

    As insatisfatrias variaes de timbre referidas por Roselli, so

    resultado do uso do l pedal na terceira corda, por vezes na quarta e, at

    mesmo, em harmnicos na sexta corda (compasso 232). O comentrio de

    Roselli, feito a partir da transcrio de Segovia, se aplica perfeitamente s

    gravaes de Bream e Williams.

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    1.4 Ligaduras indicativas de acentuao rtmica

    1.4.1 Ligaduras responsveis por acentuao hierrquica

    No compasso 16 tnhamos uma articulao que resultava influente

    na acentuao. Veremos nos compassos 81 - 83 uma articulao motivada

    pela acentuao rtmica. Aqui os dois recursos, articulao e acentuao,

    somam-se na representao de um afeto.

    Escreve Butt (1990, p. 186),

    Mais do que nunca tm surgido teorias demonstrando que

    muitas indicaes so coerentes com a estrutura do Decoratio,de acordo com certas hierarquias mtricas, figuraes equestes harmnicas. Em instrumentos de corda as ligadurasafetam diretamente o modo de produo do som e,conseqentemente, tem profunda influncia na acentuao damsica.

    Referindo-se ao exemplo 12, retirado da Paixo Segundo So

    Mateus, escreveu Keller (1955, p. 55):

    primeira vista parecer estranho que a antecipao, apesarde ser um adiantamento impaciente do som posterior, estejaligada sempre nota anterior [...], mas condio prvia de talconcepo que esta forma esteja baseada em um legato decolcheias. Ao destacar-se a nota estranha, se aumenta o pesoda nota precedente [...].

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    Exemplo 12: trecho da Paixo segundo So Mateus (Keller, 1955, p. 55).

    E segue referindo-se ao exemplo 13: ... onde isso no acontece,

    como na valsa em d sustenido menor de Chopin (Op. 64, n 2), se intensifica

    a relao de anacruse.

    Exemplo 13: trecho da Valsa, Op. 64, n 2 de Chopin (Keller, 1955, p. 55).

    As palavras de Keller nos do mostra do quo significativa a

    articulao desta passagem. Aqui a mudana da articulao original pode

    promover uma inverso do significado musical. Sobre a edio de Segovia

    (Exemplo 14), nos diz Eros Roselli (1991, p. 45),

    [...] nos compassos 81-83, onde a ligadura a dois evidencia uminteressante significado expressivo, [Segovia] no faz nadapara realizar a vontade do autor; e liga, em todos compassos,duas semicolcheias do ltimo grupo de quatro notas, deixadosolto no original.

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    Exemplo 14: compassos 81-83 da Ciaccona: edio de Andrs Segovia.

    Na edio de Szeryng so mantidas as articulaes indicadas no

    original de Bach. Szeryng agrega ao trecho a expresso senza glissando e

    um sinal de tenuto sobre a cabea do segundo tempo dos compassos 81-82

    que, segundo a explanao feita por ele no prefcio da edio, no significa

    necessariamente um tenuto35, mas uma nfase expressiva da nota. Neste

    caso, o editor enfatiza a mudana de carter harmnico dada pelo

    aparecimento do acorde diminuto (exemplo 15).

    Exemplo 15: compassos 81-83 da Ciaccona: edio de Henryk Szeryng.

    Com o uso do termo senza glissando no compasso 81 Szeryng

    aconselha ao executante o no uso de um recurso tpico da tradio romntica

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    de interpretao da Ciaccona ao violino. Esta tradio pode ser observada, por

    exemplo, na gravao de Nathan Milstein onde h um glissando da primeira

    nota (sol#) para a segunda (f) do segundo grupo de quatro notas do

    compasso. Milstein enfatiza atravs deste ornamento a mesma nota que

    Szeryng destaca em sua edio. Temos aqui um caso em que executantes de

    geraes diferentes demonstram, cada um a seu modo, um entendimento

    parecido do texto musical de Bach.

    Na gravao do violonista Leo Brouwer h o uso de um glissando na

    mesma nota. Neste caso, se observa uma apologia tradio violinstica

    representada aqui por Milstein.

    Nos compassos 85-88 temos uma articulao de funo semelhante

    no que tange acentuao, porm muito diferente em termos de afeto. Tal qual

    no trecho comentado anteriormente (compassos 81-83), as ligaduras aqui so

    responsveis por uma acentuao em colcheias, com exceo dos compassos

    87-88 onde o compositor une as duas ltimas ligaduras de forma a enfatizar o

    terceiro tempo.

    35Szeryng usa este sinal como denotativo de notas de particular importncia temtica ouharmnica.

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    Exemplo 16: compassos 85-88 da Ciaccona (urtext).

    Nas edies analisadas h uma grande variedade de interpretaes

    diferentes e at antagnicas. A pequena diferena de articulao apresentada

    por Szeryng, que agrupa as duas primeiras ligaduras de forma a unir dois

    grupos de fusas, pode ser entendida como uma forma de sobre-acentuar o

    compasso de chacona (sobre a cabea do segundo tempo, Szeryng agrega

    ainda um sinal indicativo de arco para baixo). Essa deciso ganha coerncia na

    aproximao com as variaes anteriores. O exemplo mais prximo a

    variao dos compassos 81-83 onde Szeryng enfatiza o segundo tempo como

    comentado acima. Aqui o sinal de tenuto usado no terceiro tempo dos

    compassos 87-88.

    Na gravao do alaudista Jos Miguel Moreno evidenciada a

    relao de anacruse do primeiro para o segundo tempo dos compassos 85-86.

    Moreno separa claramente a primeira nota do primeiro grupo (f), clarificando

    assim a relao de anacruse das notas l-si-d rumo primeira nota do

    compasso posterior (r). A mesma explicao se aplica ao compasso posterior.

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    No manuscrito da Ciaccona a ligadura em questo pode gerar dvidas pela

    impreciso da grafia, que, tanto parece ligar as quatro semicolcheias do grupo,

    como ligar as trs ltimas, deixando de fora a primeira. Esta gravao de

    Moreno nos apresenta a segunda opo, ainda que as edies urtext (Neue

    Bach Ausgabee Neue Bach Gesellschaft) tenham optado pela primeira.

    Exemplo 17: compasso 85 da Ciaccona: edies urtextNeue Bach Gesellschaft e Neue Bach

    Ausgabe.

    A articulao de Segovia para esta passagem est diretamente

    baseada na transcrio de Brahms. Em ambas vemos uma acentuao acfala

    que lega ao compasso um carter de 6/8 ( ). Na edio de Enrico Polo,

    podemos observar uma deciso parecida, porm aqui o acento est justamente

    nos tempos fortes do compasso interno (6/8).

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    1.4.2 Ligaduras responsveis por quebra de acentuao hierrquica

    No ttulo anterior vimos ligaduras determinantes de acentuaes

    rtmicas regulares, ainda que tenhamos analisado exemplos de interpretaes

    que no obedecem a este preceito. Agora veremos casos onde as ligaduras

    assinaladas pelo prprio compositor so responsveis por quebra de

    acentuao. Nos trechos analisados anteriormente (1.1.4), as ligaduras eram

    responsveis por uma acentuao em colcheias; no trecho a seguir

    (compassos 245-247) elas acentuam o compasso de forma sincopada

    ( ). Aqui temos quatro quilteras de trs e uma de seis onde a primeira

    nota do compasso deixada solta seguida por quatro grupos de notas ligadas

    trs a trs e um grupo de cinco notas ligadas.

    Exemplo 18: compassos 245-247 da Ciaccona (urtext).

    Sobre casos semelhantes ao trecho em questo, diz Butt (1990,

    p.190): Por vezes as ligaduras esto discordantes com o ritmo e a harmonia.Nestes casos as ligaduras esto normalmente indicando apenas o

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    agrupamento de um conjunto de notas. Com esta afirmao, Butt alerta para o

    uso das ligaduras agrupando (e, por conseguinte, separando das demais)

    notas representativas dentro da retrica bachiana. Butt diz ainda (1990, p.191):

    As implicaes das ligaduras na execuo musical so departicular importncia na interpretao da msica. Elas podemestar relacionadas a elementos que parecem correr contra amtrica. Podem confirmar que tal agrupamento meldico tambm ritmicamente importante. Claramente, Bach estatuando aqui como intrprete supremo da sua msica. Suaatividade como executante um estgio posterior no processocomposicional, incidindo profundamente em um decoratio

    superficial.

    Na observao das edies v-se uma concordncia geral sobre

    esta variao. De formas variadas estas edies mantm o sentido musical

    sugerido pelas indicaes do compositor. As diferenas entre as diversas

    gravaes e edies esto principalmente no plano da dinmica. Nas edies

    mais atuais, caso de Carlevaro (1989) e Szeryng (1979) a acentuao

    mantida rigorosamente, bem como nas gravaes em instrumentos de poca.

    Exemplo 19: compassos 245-247 da Ciaccona: edies de Abel Carlevaro (pentagrama

    superior) e Henryk Szeryng (pentagrama inferior).

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    Carlevaro, por uma questo idiomtica do violo, liga apenas as

    duas primeiras notas de cada grupo, sem deturpar em nenhum momento a

    figurao original das notas (1+3+3+3+3+5). Essa deciso foi tomada

    anteriormente na edio de Segovia (1934) e foi encontrada em todas as

    gravaes em violo analisadas neste trabalho com exceo do registro de

    Narciso Yepes que no usa nenhum ligado e acentua os tempos fortes,

    ignorando assim todas as indicaes do compositor. Sobre a deciso tomada

    por Segovia para este trecho escreveu Roselli (1990, p. 45):

    [...] na variao 61 (excetuando o provvel erro de impressono compasso 244, que liga inexplicavelmente duas notas f)Segovia respeita muito bem o legato que inicia na segundasemicolcheia, utilizando um ligado que acentua levemente talnota, deixando quando necessrio, como nos compassos 245 e246 o mi e o sol soltos, tocando-os presos na retomada.

    A nica diferena entre as edies de Carlevaro e Segovia neste

    trecho, no que se refere articulao, que Segovia, no ltimo grupo de cinco

    notas liga, alm das duas primeiras entre si, as duas notas posteriores, criando

    assim uma acentuao a mais que divide o grupo de cinco em um grupo de

    duas e um de trs notas (1+3+3+3+3+2+3). Segovia indica tambm um

    pianssimo no incio do trecho que cresce culminando em um fortssimo ao final

    do compasso 247.

    Exemplo 20: compassos 245-247 da Ciaccona: edio de Andrs Segovia.

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    Eduardo Fernndez, alm de respeitar o sentido das ligaduras de

    Bach, agrega um portato na primeira nota e na que precede o ltimo grupo de

    cinco notas de cada compasso. Sendo assim, acentua o compasso de forma a

    congregar esta quebra (1+3+3+3+3+5) acentuao mais recorrente na obra

    ( ).

    Exemplo 21: compasso 245 da Ciaccona: representao grfica da execuo de Eduardo

    Fernndez.

    Nas gravaes de violinistas se evidencia uma tradio interpretativa

    deste trecho contradissente com o original. Em seu registro, Milstein agrupa as

    notas de forma a acentuar regularmente (colcheias agrupadas duas a duas),

    apesar de respeitar o legato sugerido. Zehetmair intensifica a quebra,

    respeitando o legato e acentuando a primeira nota de cada grupo. Grumiaux

    (tal qual Milstein representante da gerao romntica de executantes) difere

    dos demais violinistas por separar as cinco ltimas notas de cada compasso

    entre si, usando para isso uma articulao non legato. Esta deciso se

    aproxima um pouco edio de Siloti que, alm de articular desta forma,

    agrega uma seqncia de baixos em movimento descendente, segregando

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    ainda mais este ltimo grupo. Na edio de Brahms a notao nos diz o

    contrrio: uma grande ligadura une os ltimos oito tempos (1+3+3+3+8).

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    1.5 Ligaduras indicando polifonia implcita

    Referindo-se polifonia36 implcita que aparece especialmente nas

    obras de Bach para instrumentos solistas sem acompanhamento, nos diz Yates

    (1998),

    O termo unaccompanied [no-acompanhado], quandoaplicado msica solo de Bach para instrumentos de cordarepresenta um equvoco de terminologia. Na verdade, essasobras so auto-acompanhadas, com o acompanhamentoembutido em uma linha meldica junto da parte solopropriamente dita. Bach subentende esta textura polifnica detrs maneiras: atravs de arpejos, de saltos meldicos e denotas tocadas de forma simultnea.

    Muitas vezes as ligaduras nas obras de Bach para instrumentos de

    arco so indicativas desta polifonia implcita. Nestes casos, a articulao tem

    especial importncia quando tratamos de arpejos e saltos, visto que nos

    acordes de notas tocadas simultaneamente no h necessidade de indicao

    dessa natureza. Veremos separadamente casos em que Bach usa arpejos e

    saltos para conquistar esta polifonia e, logo, um trecho misto, onde ambos

    recursos so empregados.

    1.5.1 Ligaduras em arpejos

    Um exemplo de uso de arpejos para caracterizar uma textura de

    melodia acompanhada est nos compassos 29-32 da Ciaccona (exemplo 22).

    36O termo polifonia usado por Yates de forma ampla, referindo-se a acompanhamentos emgeral, no se restringindo ao seu sentido estrito de textura polifnica.

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    Neste trecho as indicaes de ligadura do compositor esto justamente sobre

    as notas que definem a estrutura harmnica: f-l-r37, acorde de r menor,

    compasso 29; d#-mi-sol, primeira inverso do acorde de l maior com stima

    menor, no compasso 30; sib-r-sol, primeira inverso de sol menor, no

    compasso 31; sol#-si-r, acorde diminuto que resolve em l-mi-r, acorde de l

    com apojatura, compasso 32. Desta forma se desenha um movimento de

    tnica, dominante, subdominante, dominante da dominante, dominante e

    Tnica (primeiro tempo do compasso 33).

    Exemplo 22: compassos 29-32 da Ciaccona (urtext).

    Tendo em vista que os acordes mencionados anteriormente (salvo o

    arpejo sib-sol-r no compasso 31) so passveis de serem compreendidos

    como acordes de quatro notas, estas ligaduras cumprem ainda uma segunda

    funo. Com a separao dada pela articulao da ltima nota do grupo, esta

    passa a ser tratada como anacruse para a prxima clula musical.

    Na edio de Szeryng so mantidas as ligaduras como no original

    fazendo apenas uma correo no primeiro grupo do compasso 29, onde liga

    37Neste grupo o compositor assinala um ligado apenas entre l e r. Isso acontece porque nacabea do grupo aparecem tocadas simultaneamente as notas r (com funo de baixo) e f.

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    as notas f-l-r, pelos motivos comentados anteriormente (ver nota 35). Polo

    (exemplo 23) liga as quatro notas do primeiro tempo no compasso 29, o que se

    explica por ser a quarta nota um f, ainda pertencente ao acorde de r. Desta

    forma o editor abre mo da relao de anacruse definida pelo desligamento da

    ltima nota f do grupo. Esta relao de anacruse respeitada e at reforada

    por Plo nos dois compassos posteriores onde ele indica portato para as notas

    sib (ltima semicolcheia do segundo grupo, compasso 30) e l (ltima

    semicolcheia do segundo grupo, compasso 31). No compasso 32, Polo indica

    uma ligadura de seis notas, adicionando tambm portato s notas d#-r

    posteriores, chamando a ateno para a suspenso sobre o acorde de

    dominante (nota r) que ser resolvida em d#.

    Exemplo 23: compassos 29-32 da Ciaccona: edio de Enrico Polo.

    Uma outra interpretao possvel para a ligadura de duas notas do

    compasso 29 que o compositor pretende separar o acorde do resto do grupo.

    Nas execues de Milstein e Perlman temos um tratamento semelhante para

    este trecho. No primeiro tempo do compasso 29, ambos fazem um tenuto no

    intervalo harmnico r-f, e ligam as trs notas posteriores. Tal qual Polo, eles

    Por similaridade com os compassos posteriores podemos deduzir que esta figura se articula atrs: trs notas ligadas e uma desligada.

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    ligam a ltima semicolcheia do grupo, desfazendo assim a relao de anacruse

    entre o f que finaliza o primeiro tempo e o que inicia o segundo. Nos demais

    compassos (30-32), Milstein faz uso de glissandos caractersticos da gerao

    romntica de intrpretes de Bach, cumprindo funo semelhante s ligaduras

    indicadas pelo compositor, ainda que, de forma anti-estilstica aos olhares de

    hoje. Perlman respeita a articulao proposta por Bach nestes compassos.

    As execues de Zehetmair, Russell e Fernndez respeitam as

    indicaes do compositor ao longo de todo o trecho (c. 29-32), evidenciando as

    relaes de anacruse e clarificando a polifonia implcita. Fernndez e Russell

    agregam, cada um a seu modo, alguns baixos a este trecho, no alterando o

    encadeamento funcional da harmonia. Segovia trata cada um dos grupos em

    questo de forma diferente, mas em todos nega a relao de anacruse, pelo

    uso de ligados entre primeira e segunda, ou terceira e quarta notas dos grupos

    de quatro. Segovia indica ainda um portamento entre as duas ltimas

    semicolcheias do primeiro grupo, soluo adotada tambm por Bream, que nos

    remete quela tradio romntica referida anteriormente.

    1.5.2 Polifonia conquistada por saltos

    Um exemplo de polifonia implcita conquistada por saltos meldicos

    est na segunda metade da variao 25, compassos 221-224. Aqui o

    compositor assinala ligaduras que destacam uma melodia em graus conjuntos.

    As notas remanescentes constituem a estrutura harmnica, tendo funo de

    acompanhamento. No exemplo 24 temos o compasso 221 conforme o

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    manuscrito e, no pentagrama superior, uma transcrio em notao que

    evidencia as funes de cada figura dentro da textura musical.

    Exemplo 24: compasso 221 da Ciaccona: possvel notao usada atualmente, considerando a

    funcionalidade das notas (pentagrama superior); notao do compositor (pentagrama inferior).

    A gravao de Fernndez nos d mostra de todos estes elementos.

    Fernndez usa ligados mecnicos na melodia, caracterizando o legato sem

    estabelecer um padro de emprego deste recurso. Bream, Williams e Russell

    tambm so claros na exibio dos elementos texturais, mas deturpam a

    articulao na primeira ligadura do compasso 223, por no desligarem a ltima

    nota da ligadura (r) da nota posterior (f). Bream e Willams usam inclusive um

    ligado mecnico entre essas duas notas, o que nos remete edio de

    Segovia. Sobre a deciso de Segovia, Roselli (1990, p.45) diz que, a ligadura

    posta sobre as primeiras duas notas do segundo tempo do compasso 223

    revela a no ateno ao original. Desta forma, a melodia que vinha

    seqencialmente se desenhando em figuras de trs notas, recebe uma quarta

    sem motivo aparente. Esta soluo est influenciada pelo estilo segoviano de

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    execuo desta obra, que prima por destacar a segunda figura ligada de cada

    compasso. Apesar de no fazer meno na sua edio, Segovia distingue este

    ltimo grupo com uso de tenuto sobre as trs notas e tocando mais forte

    (exemplo 25).

    Exemplo 25: compasso 221 da Ciaccona: edio de Andrs Segovia (pentagrama superior) erepresentao grfica da sua execuo.

    Carlevaro no faz indicao alguma de expresso neste trecho, mas

    sugere uso do polegar nas notas destacadas na gravao de Segovia. As

    edies de Szeryng e Polo destacam as trs ltimas notas de cada compasso

    com sinais de portato38. Essas notas so um arpejo da dominante secundria,

    que direciona a harmonia para o compasso posterior. No entanto, Szeryng

    mantm a articulao sugerida por Bach, enquanto Polo agrupa as notas em

    quatro, separando sempre a primeira de cada grupo de semicolcheias, o que

    desfaz o sentido textural das ligaduras.

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    A execuo de Milstein diretamente representativa da deciso

    tomada por Polo. Perlman claro na separao dos planos da textura, ainda

    que o gesto musical d margem a uma ambigidade que parece tender para o

    lado da indicao de Polo (agrupando quatro notas). Zehetmair toca staccatto a

    nota anterior e acentua a primeira nota da ligadura indicada pelo compositor,

    de forma a clarificar o gesto e planificar a textura.

    1.5.3 Poli fonia conquistada por saltos e arpejos

    Temos tambm um exemplo de polifonia implcita na primeira parte

    da variao 25, compassos 217-220. O compositor expe a polifonia fazendo

    uso das duas tcnicas: arpejos de trs notas (no incio de cada compasso) e

    saltos meldicos (que separam as primeiras notas das demais nos tempos dois

    e trs). Aqui, Bach constri uma textura de trs partes (exemplo 26): uma linha

    meldica aguda, um preenchimento harmnico com bordaduras (r-d#-r), e

    uma linha de baixo formada pela nota mais grave de cada acorde.

    38Szeryng especifica no prefcio da edio que o sinal de portato deve ser compreendido comoum destaque da nota e no propriamente como um portato, nem como um tenuto. Na ediode Polo entenderemos esta notao da forma tradicional.

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    Exemplo 26: compasso 217 da Ciaccona: possvel notao usada atualmente, considerando afuncionalidade das notas (pentagrama superior); notao do compositor (pentagrama inferior).

    Cabe ressaltar a diferenciao que o compositor faz nas figuras que

    compem o que aqui chamamos de preenchimento: as bordaduras aparecem

    ligadas entre si e com a nota anterior, ou seja, em total legato; j no ltimo

    tempo do compasso 220, as notas r-d#-mi aparecem desligadas. Essa

    diferenciao ocorre em funo das figuras de retrica. Segundo Butt (1990, p.

    193),

    A anlise das ligaduras e figuraes especficas se faz maiscomplexa pelo fato dessas ligaduras poderem exibir uma

    rtmica especfica ou funo afetiva muitas vezes associadacom a mecnica instrumental que no necessariamente estrelacionada com a figurao que constitui a linha musical. Aligadura no BWV 1005, Allegro Assai, por exemplo, estrelacionada com o ritmo e no diretamente com as figurasempregadas. [...] Contudo, algumas figuras derivam damecnica instrumental empregada.

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    Ainda na figura 1 podemos observar duas das figuras referidas por

    Butt como derivadas da mecnica instrumental empregada, os tempos dois e

    trs podem ser considerados como messanza39

    .

    A edio de Polo indica acentos nas cabeas dos compassos e uma

    ligadura que agrupa cinco notas, as quatro semicolcheias do primeiro grupo e a

    primeira do segundo, ligando a trs as bordaduras e, por conseguinte,

    separando-as do resto. Desta forma o editor chama a ateno para a

    bordadura, numa deciso contrria do compositor. Szeryng mantm as

    indicaes de Bach, mas agrega um ligado de quatro notas ao ltimo grupo do

    compasso 220, negando assim os preceitos retricos comentados.

    Carlevaro usa haste dupla destacando a linha de baixo, mas no faz

    nenhuma indicao com relao ao resto da textura. Segovia faz uso da haste

    dupla tal qual Carlevaro e acentua alguns baixos sem estabelecer um padro.

    No terceiro tempo do compasso 218, Segovia pe haste de colcheia para o mi,

    na linha de baixo. Desta forma o editor sugere uma articulao non legato,

    contrastante com os demais baixos. Esta articulao no tem motivo musical

    aparente, sendo decorrente de um pressuposto tcnico. Segovia usa tambmligados mecnicos entre segunda e terceira notas da bordadura, assim

    fragmentando a figura. A indicao de piano para todo o trecho e a digitao

    em posies altas do instrumento (entre os compassos 217-219 todo o

    dedilhado est indicado acima da casa cinco) pode sugerir para muitos um

    39Butt (1990, p. 20) atribui a Prinz (1673, p. 53-55) a definio de messanza. Segundo Prinzesta uma figura de quatro notas que podem aparecer tanto agrupadas como no agrupadas.

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    carter romantizado, mas devemos ponderar que este recurso de dinmica e

    timbre remete diretamente ao afeto da passagem.

    As gravaes de Bream e Fernndez so muito semelhantes neste

    trecho, excetuando o que tange ao andamento. Nelas esto claramente

    expostos os nveis da textura e uma ligadura a dois posta nas cabeas das

    bordaduras, unificando-as. Russell e Williams tambm caracterizam

    perfeitamente os planos da textura sem uso de ligados mecnicos. Williams

    usa ligados apenas nas bordaduras do compasso 220, diferenciando estas das

    anteriores.

    Milstein e Perlman tm concepes parecidas neste trecho, ambos

    enfatizam a bordadura como sugere a edio de Polo. Milstein, no compasso

    220, toca as notas r-d#-mi no lugar da bordadura r-d#-r, o que pode

    representar uma deciso arbitrria ou apenas um erro, j que a gravao em

    questo foi feita ao vivo.

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    2 LIGADURAS LONGAS

    Trataremos nesse captulo das ligaduras que agrupam mais de

    quatro notas. Segundo J. Butt (1990, p.180),

    Na msica do sculo XIX dois nveis de ligaduras sofreqentemente usados: ligaduras curtas indicam os detalhesde articulao e ligaduras longas implicam em um fraseadogenrico. O termo frase cada vez mais evidente nosdicionrios musicais do final do sculo XVIII. A definio deRosseau na Encyclopdie (1751-7 vol. 12 p. 530) pareceu tersido