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CIDADANIA A PORRETE José Murilo de Carvalho O jornal do Brasil de 8 de dezembro último traz fantástica reportagem sobre um ex-marinheiro, Adolfo Ferreira dos Santos, o Ferreirinha. Segundo o repórter Borges neto, Ferreirinha, já com 98 anos, foi marinheiro contemporâneo e admirador de João Candido, o líder da revolta contra o uso da chibata na Marinha. Até aí nada demais. Não há surpresa também na revelação de que Ferreirinha, como quase todos os marujos da época, levou marmelo no lombo. O extraordinário está no que segue. Disse Ferreirinha literalmente: “Mas chicotadas e lambadas que levei quebraram meu gênio e fizeram com que eu entrasse na compreensão do que é ser cidadão brasileiro.” Aí está. Um negro, nascido apenas dois anos após a abolição da escravidão, diz que aprendeu no cacete o que significa ser cidadão brasileiro. Entre ingênuo e malicioso, Ferreirinha produziu o comentário mais rude e mais revelador que jamais li e ouvi sobre a natureza de nossa cidadania. Revelador da original contribuição brasileira à teoria e à prática da moderna cidadania. A cidadania inglesa, na conhecida análise de E.P. Thompson, foi construída em cima de profundo sentimento de liberdade; a francesa assentou nos princípios da liberdade, da igualdade, da fraternidade; a norte-americana emergiu das comunidades livres da Nova Inglaterra. A brasileira foi implantada a porrete. O cidadão brasileiro é o individuo que, na expressão de Ferreirinha, tem o gênio quebrado a paulada, é o indivíduo dobrado, amansado, moldado, enquadrado, ajustado a seu lugar. O bom cidadão não é o que se sente livre e igual, é o que se encaixa na hierarquia que lhe é prescrita. Esta originalidade brasileira, este aspecto de nosso nacionalismo escaparam aos modernistas da década de vinte. Na busca de nossas origens eles criaram o movimento da poesia pau-brasil. Não lhes ocorreu que nossa política poderia ser colocada também sob o mesmo símbolo: política pau-brasil. É justo que caiba, então, a Ferreirinha o crédito pela descoberta. Vamos chama- la a lei do Ferreirinha e dar-lhe a formulação mais simples: brasileiro é no pau.

Cidadania a Porrete

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CIDADANIA A PORRETE

José Murilo de Carvalho

O jornal do Brasil de 8 de dezembro último traz fantástica reportagem sobre um

ex-marinheiro, Adolfo Ferreira dos Santos, o Ferreirinha. Segundo o repórter Borges

neto, Ferreirinha, já com 98 anos, foi marinheiro contemporâneo e admirador de João

Candido, o líder da revolta contra o uso da chibata na Marinha. Até aí nada demais. Não

há surpresa também na revelação de que Ferreirinha, como quase todos os marujos da

época, levou marmelo no lombo. O extraordinário está no que segue. Disse Ferreirinha

literalmente: “Mas chicotadas e lambadas que levei quebraram meu gênio e fizeram

com que eu entrasse na compreensão do que é ser cidadão brasileiro.”

Aí está. Um negro, nascido apenas dois anos após a abolição da escravidão, diz

que aprendeu no cacete o que significa ser cidadão brasileiro. Entre ingênuo e

malicioso, Ferreirinha produziu o comentário mais rude e mais revelador que jamais li e

ouvi sobre a natureza de nossa cidadania. Revelador da original contribuição brasileira à

teoria e à prática da moderna cidadania. A cidadania inglesa, na conhecida análise de

E.P. Thompson, foi construída em cima de profundo sentimento de liberdade; a francesa

assentou nos princípios da liberdade, da igualdade, da fraternidade; a norte-americana

emergiu das comunidades livres da Nova Inglaterra. A brasileira foi implantada a

porrete. O cidadão brasileiro é o individuo que, na expressão de Ferreirinha, tem o gênio

quebrado a paulada, é o indivíduo dobrado, amansado, moldado, enquadrado, ajustado a

seu lugar. O bom cidadão não é o que se sente livre e igual, é o que se encaixa na

hierarquia que lhe é prescrita.

Esta originalidade brasileira, este aspecto de nosso nacionalismo escaparam aos

modernistas da década de vinte. Na busca de nossas origens eles criaram o movimento

da poesia pau-brasil. Não lhes ocorreu que nossa política poderia ser colocada também

sob o mesmo símbolo: política pau-brasil.

É justo que caiba, então, a Ferreirinha o crédito pela descoberta. Vamos chama-

la a lei do Ferreirinha e dar-lhe a formulação mais simples: brasileiro é no pau.

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Não é difícil rastrear em nossa história evidência para esta leitura. Suas raízes

profundas estão, naturalmente, na escravidão. Já dizia Antonil, o grande cronista do

Brasil colônia, que o tratamento dos escravos seguia a regra dos três pés: pau, pão e

pano, ou seja, cacete, comida e roupa. Seus colegas, os padres Jorge Benci e Manuel

Ribeiro da Rocha, não viam nada de fundamentalmente errado na regra. Apenas

exortavam os senhores a serem mais generosos no pão e no pano e mais contidos no

pau. Aplicar o porrete em doses razoáveis era mesmo obrigação moral dos senhores, do

mesmo modo que é obrigação do pai castigar o filho para o próprio bem deste.

Da colônia para o país independente a mudança não foi grande. Como era

tratado o escravo e o agregado, assim foi tratado o cidadão. Em 1848, ao se discutir no

Congresso um projeto de lei que regulasse a imigração, e tendo sido proposta a

naturalização do imigrante após três anos de residência, o senador Vasconcelos objetou

dizendo não desejar que o estrangeiro, confiado na lei, viesse tomar cacete. A expressão

usada por Vasconcelos foi essa mesma, tomar cacete. Era este o privilégio do cidadão

do novo país no depoimento de um dos representantes mais típicos da elite política

imperial. A tanto montava ser cidadão brasileiro: ficar sujeito ao recrutamento forçado

para a Guarda Nacional, para o Exército e para a Marinha. Na Guarda esperava-o o

porrete do coronel, no Exército e na Marinha, a espadada e a chibatada. Se escapasse

dessas três alternativas, não escaparia do inspetor de quarteirão e dos delegados de

polícia. O estrangeiro não naturalizado tinha pelo menos o cônsul para o defender.

República adentro, manteve-se a prática. É conhecida a lei de ouro do

coronelismo: para os amigos pão, para os inimigos pau. Era a mesma velha regra de

Antonil, apenas adaptada à vida política. E não se diga que a regra se aplicava apenas ao

mundo rural, ao reino dos coronéis. No mundo urbano que emergia o espírito era o

mesmo. Questão social era com a polícia mesmo, era no sarrafo. Para não espichar a

estória, basta lembrar a recentíssima declaração do general Medeiros de que, tratando

com grevistas, porrete é um santo remédio. Que o digam os metalúrgicos de Volta

Redonda1.

A prática brasileira de formação do cidadão é corroborada pela riqueza do

vocabulário. Ferreirinha virou cidadão, em suas palavras, no marmelo, na lambada, na

1 Referência ao uso do Exército para reprimir a greve dos metalúrgicos da Companhia Siderúrgica

Nacional.

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chibata. Outros entraram no pau, no sarrafo, no cacete, no porrete, no bordão, na

manguara, na vara, no cipó. Ou na borduna, a contribuição indígena à nossa polis. Isto

no ciclo do pau-brasil. No ciclo do boi as alternativas ampliaram-se. O candidato a

cidadão tinha então à sua disposição o couro, o bacalhau, o chicote, o relho, o açoite, o

laço. As técnicas continuaram a diversificar-se. Hoje é o pau-de-arara, o choque

elétrico, o “telefone”, o afogamento, o fuzilamento simulado. Ou mesmo métodos muito

mais refinados para moldar o cidadão: o enquadramento sindical, a lei de segurança

nacional, o decreto-lei, a censura. Mudam as técnicas, permanece o espírito da lei: o

bom cidadão é o cidadão amansado, inativo. Quase como nos velhos faroestes: o bom

índio é o índio morto.

Naturalmente, nada disto impede que sejamos um povo pacífico, extrovertido,

amigo, cordial. Pelo contrário, a função do cacete é exatamente dissuadir os que tentam

fugir ao espírito nacional de camaradagem, de cooperação, de patriotismo. O cacete é a

paternal admoestação para o operário que faz greves, para a empregada doméstica que

responde à patroa, para o aluno rebelde, para a mulher que não sabe cuidar da casa, para

o crioulo que não sabe o seu lugar, para o malandro que desrespeita a “otoridade” , para

qualquer um de nós que não saiba com quem está falando. O porrete é para quebrar o

gênio rebelde e trazer de volta ao rebanho todos os extraviados. Como diziam os bons

padres da colônia, o castigo é para o próprio bem dos castigados. É um cacete brasileiro,

muito cordial. É pau-brasil.

Publicado no Jornal do Brasil, 18 de dezembro de 1988.