Cidadania e Paideia

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  • Coleco Autores Gregos e LatinosSrie Ensaios

    Delfim Ferreira LeoJos Ribeiro FerreiraMaria do Cu Fialho

    CiDaDaniae PaiDeia

    na Grcia antiga

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    Educao Em Esparta E atEnas: dois mtodos E dois paradigmas

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    Delfim Ferreira LeoUniversidade de Coimbra

    Jos Ribeiro FerreiraUniversidade de Coimbra

    Maria do Cu FialhoUniversidade de Coimbra

    Cidadania E paidEiana Grcia Antiga

  • Jos Ribeiro Ferreira

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    Autores: Delfim F. Leo, Jos Ribeiro Ferreira, Maria do Cu FialhoTtulo: Cidadania e Paideia na Grcia Antiga

    Editor: Centro de Estudos Clssicos e HumansticosEdio: 2/2010 revista e aumentada (1 edio/2006 Ariadne)

    Coordenador Cientfico do Plano de Edio: Maria do Cu FialhoConselho editorial: Francisco Oliveira, Jos Ribeiro Ferreira, Maria de

    Ftima Silva, Maria do Cu Fialho, Nair Castro SoaresDirector tcnico da coleco: Delfim F. Leo

    Concepo grfica e paginao: Elisabete Cao, Rodolfo Lopes, Nelson Henrique

    Impresso:Simes & Linhares, Lda.

    Av. Fernando Namora, n. 83 Loja 43000 Coimbra

    Obra realizada no mbito das actividades da UI&DCentro de Estudos Clssicos e Humansticos

    Universidade de CoimbraFaculdade de Letras

    Tel.: 239 859 981 | Fax: 239 836 7333000447 Coimbra

    ISBN: 9789898281234 Depsito Legal: 307581/10

    Obra Publicada com o Apoio de:

    Classica Digitalia Vniversitatis Conimbrigensis

    Centro de Estudos Clssicos e Humansticos da Universidade de Coimbra

    Reservados todos os direitos. Nos termos legais fica expressamente proibida a reproduo total ou parcial por qualquer meio, em papel ou em edio electrnica, sem autorizao expressa dos titulares dos direitos. desde j excepcionada a utilizao em circuitos acadmicos fechados para apoio a leccionao ou extenso cultural por via de e-learning.

    Todos os volumes desta srie so sujeitos a arbitragem cientfica independente.

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    Educao Em Esparta E atEnas: dois mtodos E dois paradigmas

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    ndice

    Nota prvia 7

    Educao em Esparta e em Atenas: Dois mtodos e dois paradigmas 11

    Jos Ribeiro Ferreira

    A tradio dos Sete Sbios: o sapiEns enquanto paradigma de uma identidade 47

    Delfim Ferreira Leo

    Rituais de Cidadania na Grcia Antiga 111Maria do Cu Fialho

    Mito, Memria e Crise 145Maria do Cu Fialho

    A presena da Grcia e de Roma na Revoluo Francesa: Trs aspectos 173

    Jos Ribeiro Ferreira

  • palavras dE aprEsEntao

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    nota Prvia

    No contexto de novas interrogaes e desafios que, nos anos mais recentes, tm pautado a reconfigurao curricular no mbito das Humanidades e das Cincias Humanas e Sociais, pareceu aos autores oportuno recolher um pequeno conjunto de reflexes sobre os primrdios da experincia e da conscincia de cidadania, no contexto das quais, e inextricavelmente a elas ligada, surge a ideia e a execuo prtica de uma paideia necessria entendida no como educao dirigista (ideia que o termo educatio pode correr o perigo de inspirar a leituras posteriores, menos em sintonia com o Mundo Antigo), mas como formao e conjunto de competncias, cognitivas, artsticas, fsicas, de que o jovem cidado deve dispor para responder e participar, de pleno direito e com critrio, na comunidade a que pertence. O conjunto de reflexes detinhase, tambm, naqueles momentos de consolidao da experincia de cidadania atravs da ritualizao e do processo de

  • Jos Ribeiro Ferreira

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    espelhamento no mito ou na mitificao de figuras histricas. Essa primeira verso foi, em 2006, publicada na Ariadne Editora, a quem renovamos os nossos agradecimentos.

    Esgotado que se encontra o volume, h j anos, novssimas solicitaes pedaggicas se foram deparando, com a criao de cursos de 2 e 3 ciclo, com a sedimentao de disciplinas transversais de 1ciclo, que levaram os autores a confrontaremse com a pertinncia e oportunidade de ampliarem as suas reflexes at ao campo do questionamento sobre o nexo entre identidade e crise hodiernas e a memria ou o esquecimento dos liames com os primordiais modelos inspiradores de uma cidadania tica. Assim, foi do entendimento comum reorganizar o volume, introduzindo algumas alteraes de texto e acrescentando alguns captulos que pretendem levar a uma reflexo, em contexto universitrio, sobre estes fenmenos. Tal reorganizao sublima a dimenso horizntica da cidadania em relao paideia, que daquela recebe o seu sentido e configurao. Por esse motivo o volume presente v o seu ttulo alterado para Cidadania e Paideia.

    , pois, propsito desta edio dotar cadeiras do 1ciclo como Histria da Cultura Clssica (transversal), Histria da Grcia Antiga, Histria da Antiguidade, seminrios do 2 ciclo em Estudos ClssicosCultura Clssica, como Matrizes Grecolatinas da Cultura Ocidental, e seminrios do 3ciclo em Estudos ClssicosMundo Antigo e Estudos ClssicosPotica e Hermenutica, como Direito e Sociedade no Mundo

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    palavras dE aprEsEntao

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    Antigo e Ethos Poiesis e Praxis na Plis Grega, de um conjunto polifacetado de textos de apoio pedaggico.

    Possa este volume ser igualmente til a todos aqueles que dediquem a sua ateno aos constituintes da conscincia ticopoltica ocidental, s suas matrizes e momentos de consolidao, ao estreito nexo entre criao de narrativa e processo de autoreconhecimento.

    Coimbra, Maro de 2010

    Os autores,

    Delfim Leo, Jos Ribeiro Ferreira, Maria do Cu Fialho

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    a tradio dos sEtE sbiios

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    educao em esParta e em atenas dois mtodos e dois paradigmas

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    Esparta e Atenas tinham, na poca clssica, tipos de educao sensivelmente diferenciados. Mas nos primeiros tempos isso no acontecia. Nos primrdios, a educao tinha por finalidade a preparao do cidado para a defesa do seu pas. Era por isso, de incio, um ensino apenas militar, que inclua evidentemente os exerccios fsicos. Pretendia adestrar no manejo das armas os futuros defensores da plis.

    Aparecida a plis por meados do sculo VIII a.C., tal sistema explicase perfeitamente por razes histricas, com a ajuda das condies geogrficas do solo e de factores econmicos. Com o declnio micnico no sculo XII a.C. e a longa movimentao populacional que se lhe seguiu, acompanhada de intensas lutas, a ausncia de um poder centralizado forte leva os habitantes a protegeremse e a acolheremse em pequenas comunidades, no cimo de colinas que rodeavam de muralhas e a que davam o nome de acrpole. A partir de determinada altura, para melhor resistirem aos ataques constantes, essas pequenas comunidades agrupamse em unidades mais amplas, atravs de sinecismo e contribuem, desse modo, para a formao das pleis que se fecharam sempre num individualismo orgulhoso, sem nunca atingirem uma unidade poltica.1

    1 Apesar de vrias tentativas e passos nesse sentido, o particularismo foi sempre mais forte. Ora isso que j se torna mais difcil de perceber a manuteno de tal sistema por vrios

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    De esprito particularista, o Grego considerava a plis a nica base possvel de uma existncia civilizada e livre.2 Mesmo quando faziam alianas, como o caso das simaquias, os seus membros eram considerados Estados soberanos. Foi esse particularismo que os envolveu em conflitos constantes, pelo que as cidadesestado gregas passaram o tempo da sua histria, quase na totalidade, desavindas e em luta.3

    natural portanto que, nos primeiros tempos, a excelncia do homem a aret fosse o ideal herico, a coragem e destreza no combate e que, em consonncia com isso, nos primeiros sculos da existncia da plis, a educao do jovem fosse essencialmente militar e visasse a aprendizagem directa ou indirecta do manejo das armas. Neste domnio, Esparta sobressai desde cedo. Fora das primeiras, seno a primeira, a introduzir a hoplitia, nos fins do sculo VIII ou incios do VII a.C., em detrimento

    sculos at que, anmico, se vai diluir aos poucos ao longo do sc. IV a.C. Sobre a plis e significado de tal sistema, vide Ehrenberg (1960) 88192.

    2 Um facto acentuado com vigor por Plato e Aristteles. O primeiro toma a plis como modelo do seu Estado ideal, o segundo ocupase do assunto no livro I da Poltica. Por dois elucidativos passos de Plato, (Crton 50a sqq. e Leis I, 625e), vemos quanto a plis era apaixonadamente sentida. Vide Ferreira (1992a) 96103 e (1992), cap. 1.

    3 Uma vez declarada a guerra, tudo o que podia aproximar os Gregos era esquecido, os ditames da justia so abolidos e contra o inimigo todos os meios se utilizam (cf. Tucdides 5. 84116, sobretudo 89, 91, 105; Plutarco, Moralia 210e e 233b). Suspensos com a guerra leis e costumes, cometemse violncias de toda a espcie e as mais brbaras atrocidades. Por ser uma das caractersticas mais evidentes e conhecidas da histria grega, no interessa aqui repisar o assunto.

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    da cavalaria.4 Tornouse uma potncia militar temida e respeitada e granjeou grande prestgio. Na sua cultura o ideal militar ocupava papel dominante.

    Na poesia da poca arcaica cujas datas de incio e final costume situar entre 776 e em 480 a.C., respectivamente a data tradicional dos primeiros Jogos Olmpicos e o ano da batalha de Salamina , alis na sequncia do que se passava nos Poemas Homricos (Il. 6. 208; 9. 443), amide proclamado o ideal de praticar nobres feitos em defesa do pas como objectivo mximo do jovem e do cidado pela poesia da poca arcaica que vive em ligao estreita com a plis. Encontramos a cada passo a ideia de que a guerra a actividade nobre, de que nos campos de batalha que o cidado alcana a glria e de que a sua aret reside na coragem em combate. So exemplos elucidativos Calino, um poeta de feso, do sc. VII a.C., e Tirteu, poeta espartano do mesmo sculo, para dar um exemplo da rea inica e outro da drica.

    ..... honra e glria para um homem combaterpela ptria, pelos filhos e pela legtima esposa,contra o inimigo.5

    Exorta Calino (fr. 1 West, vv. 67) os seus concidados a pegarem em armas e a manteremse firmes na frente de batalha.

    4 Sobre o aparecimento da hoplitia na Grcia vide Andrewes (1974) 3133; Webster (1958) 214215; Snodgrass(1965) 110; Detienne (1968) 119142.

    5 Traduo de Rocha Pereira (2005) 119.

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    Tirteu, por sua vez, compunha poemas de incitamento ao combate, entoados pelos soldados espartanos quando se dirigiam para a batalha (cf. Ateneu 14. 630e), nos quais o poeta pe em relevo o herosmo e a valentia guerreira (fr. 10 West) e exorta os cidados a manteremse firmes nas primeiras filas, pois essa a verdadeira superioridade (fr. 12 West, vv. 19):

    Eu no lembraria nem celebraria um homem pela sua excelncia (aret) na corrida ou na luta,nem que tivesse dos Ciclopes a estatura e a fora e vencesse na corrida o trcio Breas,nem que tivesse figura mais graciosa que Titono, ou fosse mais rico do que Midas e Ciniras,ou mais poderoso que Plops, filho de Tntalo, ou tivesse a eloquncia dulcssima de Adrastoou possusse toda a glria se lhe faltasse a coragem [valorosa.6

    Mas nessa poca, a par da guerra e da preparao para ela, deparamos com uma cultura que lentamente evolua e se afirmava. Os nobres, alm de se dedicarem a actividades relacionadas com o governo e defesa da plis, levavam uma vida de requinte, apreciavam a arte, a poesia e a msica e entregavamse aos exerccios fsicos. Neste domnio Esparta no se distinguia das outras, a no ser por se ter sobressado em relao s demais nesses primeiros tempos. Do sculo VIII aos incios do VI a.C. Esparta era um grande centro de cultura. Era na opinio de Marrou (1965: 46) a metrpole da

    6 Traduo de Rocha Pereira (2005) 121.

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    civilizao helnica e no apresenta de modo algum a imagem tradicional de cidade severa, guerreira e desconfiada que possuir na poca clssica. Sobressaiu naturalmente no domnio da preparao atltica, com inovaes a nvel dos mtodos de treino e da prtica desportiva e com uma srie significativa de vitrias olmpicas.7 Mas foi tambm cultora da poesia (Tirteu e lcman) e da msica, com duas escolas que exerceram alguma influncia no sculo VII a.C. a de Terpandro e uma outra a que esto ligados nomes como Taletas de Gortina, Xendamo de Citera, Sacadas de Argos. Segundo Marrou (1965: 49), colocada no centro da cultura grega, a msica assegura a ligao dos diversos aspectos da formao do jovem: pela dana associase ginstica e pelo canto veicula a poesia. Todos estes aspectos confluam nas grandes manifestaes colectivas das festas religiosas, com procisses solenes, competies vrias atlticas, musicais, entre outras.

    Mas no sculo VII a.C., as diversas pleis gregas passam por crises sociais graves que as marcaro profundamente e que cada uma resolver de maneira distinta. Nelas um grupo de cidados, ora restrito, ora mais alargado, batese com as realidades materiais e sociais que vai encontrando e transformaas. Cada cidadeestado evoluciona mais ou menos significativamente, em luta com as dificuldades, os condicionalismos e as oposies que encontra, at nos oferecer o quadro caracterstico da poca clssica.

    7 Refere Marrou (1965) 4849 que entre 720 e 576, de 81 vencedores conhecidos, 46 so espartanos. Segundo Tucdides 1. 6, foram eles que introduziram na prtica desportiva a nudez total do atleta e a aplicao de leo no corpo.

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    Em todas as pleis surge um ncleo comum de instituies, com funes idnticas de incio em todas elas: a Assembleia do povo, o Conselho e os Magistrados, a que tinham acesso e neles participavam activamente apenas os cidados.8

    O conflito entre os nobres detentores de todos os poderes na poca arcaica religioso, poltico,

    8 Os vrios rgos institucionais podem tomar nomes diferentes conforme a plis. Assim, para dar o exemplo das duas mais poderosas cidades gregas do sculo V a. C., Atenas e Esparta, temos respectivamente Ecclesia (Assembleia) e Apela, para a Assembleia; Arepago e Gerusia, para o Conselho; e Arcontes e foros, para os Magistrados.

    Numericamente a soberania dos cidados era a de uma minoria, tanto nas oligarquias como nas democracias. Apesar da falibilidade e insegurana das cifras e estatsticas para essa poca, tudo indica que o seu nmero no teria ultrapassado os quinze por cento da totalidade da populao, mesmo nas democracias mais evoludas e abertas, como o caso de Atenas. A populao de uma plis era constituda por pessoas livres e nolivres. Eram livres os cidados e os estrangeiros com autorizao de residncia, cujo nome mais usual o de metecos. Entre as no livres incluemse os habitantes que esto submetidos a qualquer grau de dependncia e no podem dispor da sua pessoa: desde os considerados animais ou coisas os escravos mercadoria, algo que se compra e se vende at aos que, obrigados a trabalhar a terra de outrem, os servos, tinham de entregar uma parte do produto e, de acordo com o estatuto, estavam numa situao melhor do que a dos anteriores.

    Notese que uma coisa o estatuto e outra a situao real. Pode acontecer que numa plis os no livres possuam um estatuto mais benfico do que os de outra, mas se encontrem numa situao real inversa. o que se passa com Atenas e Esparta: na primeira, os escravos, embora estatutariamente considerados uma mercadoria, tm uma situao real incomparavelmente melhor do que os hilotas de Esparta que pelo estatuto so servos.

    Em Atenas, de autor para autor, a variabilidade no nmero de habitantes ultrapassa com frequncia os cinquenta por cento. Vide Ferreira (1990) 181184.

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    econmico, jurdico e um leque bastante diversificado econmica e socialmente, que, apesar de cidados, se encontravam numa situao subalterna e no gozavam de quaisquer direitos polticos, a no ser participar nas reunies da Assembleia, cujo poder era ento na prtica nulo. O conflito conhece momentos graves nos sculos a. C. VII e VI que as pleis, numa primeira fase, de modo geral tentam resolver pela nomeao dos legisladores homens ntegros que, com a confiana das vrias faces, eram escolhidos por mtuo acordo para tomarem as medidas necessrias para resolverem a crise com a misso de procederem a uma srie de reformas e dotar as cidades de cdigos de leis; essas medidas no conseguem solucionar os confrontos e as lutas levam s tiranias que, alm de centralizar os diversos poderes ainda de posse dos nobres, contribuir para o nivelamento social; ao serem expulsos os tiranos, instauramse ora oligarquias tenham elas por base o nascimento, a riqueza ou os dois , ora democracias, mais ou menos evoludas. Mas, ao desaparecerem as tiranias, qualquer que seja o regime instaurado, as pleis que elas deixam j no so as mesmas. Os poderes no estavam nas mos dos aristocratas, mas centralizados nas diversas instituies que passam da em diante, quer se trate de uma oligarquia, quer de uma democracia, a dirigir a plis.

    Ora nessa evoluo Esparta parece trilhar um caminho diferente do da maioria das outras cidades, em especial do de Atenas. A partir de fins do sculo VII

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    a.C., possivelmente em consequncia de lutas sociais subsequentes Segunda Guerra Messnica (c. 650620 a.C.), a cidade da Lacnia passa a valorizar a parte fsica e militar da sua formao, em detrimento da intelectual. Tudo parece indicar que a aristocracia, talvez chefiada por Qulon, pe termo agitao popular e estabiliza o seu triunfo por meio de instituies apropriadas as reformas que a tradio transmitiu sob o nome de Licurgo.9 A cidade comea a enquistarse, fechase e perde vitalidade cultural. Erige em ideal mximo a defesa da plis e centra a sua ateno na actividade militar, a que sujeitava toda a vida do cidado, desde os mais tenros anos. Esparta um caso paradigmtico de empenho na preparao do jovem para a guerra. Essa plis era uma mquina de combate: vivia para ele e em funo dele. Verdadeira cidadequartel, as suas instituies haviam sido pensadas e dispostas para que os cidados estivessem sempre preparados e prontos a entrarem em combate. O tipo de educao institudo tinha o nome tcnico de agog. Organizada em funo das necessidades da plis, toda ela estava nas mos do Estado.

    Como sobejamente conhecido, na Lacedemnia as crianas pertencem, desde que nascem, ao Estado que eliminava as que fossem deficientes ou no apresentassem a robustez requerida (Plutarco, Licurgo 16) e, a partir dos sete anos, passavam posse do Estado e at morte pertencemlhe por inteiro. So

    9 Sobre a figura de Licurgo e sua historicidade vide Ferreira (1992b) 6465.

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    ento educadas pela plis que lhes dava uma preparao fundamentalmente de ndole fsica, ao ar livre, e toda ela virada para a interveno na guerra. A educao propriamente dita dura at aos vinte anos. De cabelo cortado rente, ligeiramente vestidos, ps descalos, obrigados a dormir sobre uma esteira de canas (cf. Xenofonte, Lac. 2. 34; Plutarco, Lic. 16), sujeitos a uma vida parca e austera, os jovens espartanos, proibidos de se dedicarem a trabalhos manuais, viviam em comum, divididos em grupos, segundo as idades, dirigidos pelo mais avisado de cada um desses corpos, e aprendiam a obedecer e a suportar a fadiga e a dor (cf. Plato, Leis 1, 633bc), a falar de forma concisa e sentenciosa, ou seja a serem lacnicos.10 Tratase de uma educao colectiva que retira a criana aos pais para o fazer viver numa comunidade de jovens. Segundo Marrou (1965: 53), essa educao compreendia treze anos, agrupados em trs ciclos: dos 7 aos 11 anos; dos 12 aos 15; e dos 16 aos 20, a poca da efebia ou a poca em que o jovem era eiren, para usar o modo de a designar em Esparta. A finalidade desta educao era fazer deles soldados, pelo que tudo era sacrificado a esse fim nico. Davase primazia aos exerccios fsicos com o objectivo apenas de desenvolver a fora do corpo, a que se juntava a aprendizagem directa do ofcio de soldado: exerccios

    10 Xenofonte, Repblica dos Lacedemnios 2. 111 e 6. 12; Plutarco, Licurgo 1620.

    O laconismo era uma caracterstica to cultivada pelos Espartanos os habitantes da Lacnia que passou posteridade como um substantivo comum para designar a qualidade ou defeito do que parco em palavras. Plutarco, Licurgo 1920 d numerosos exemplos dessas sentenas concisas dos Lacedemnios.

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    de treino com armas e de tctica de formao. Embora se no possa afirmar, como nota Marrou (1965: 5455), que os Espartanos fossem de todo iletrados, o aspecto intelectual da sua educao estava reduzido a pouca coisa a ponto de os Dissoi logoi 11. 10 afirmarem, com algum exagero, que os Lacedemnios consideram bom que os jovens no aprendam msica nem letras.

    S quem receber este tipo de educao, tem as condies necessrias para o exerccio dos direitos cvicos (cf. Xenofonte, Lac. 10. 7; Plutarco, Inst. Lac. 238F 21)

    Tambm as jovens tinham uma educao ao ar livre, em que o exerccio fsico predominava. Msica e dana, ao contrrio do que acontecia na poca arcaica, ficavam em segundo plano (Xenofonte, Lac. 1. 4). Esparta queria fazer delas mes robustas que pudessem dar plis futuros cidados robustos.11 Tratase afinal de uma poltica de eugenismo (cf. Plutarco, Licurgo 14. 3).

    Aos vinte anos, atingido o termo da sua formao e a idade adulta ou seja ao tornar se sphaireus que jogava a bola o Estado continuava a impor as suas exigncias. Com uma vida familiar muito limitada, os Espartanos continuavam a viver em grupos, tal como combatiam, obrigados a tomarem uma refeio diria em comum nos chamados syssitia, e eram sujeitos a preparao fsica e a treino militar constantes, de modo a encontraremse sempre prontos a entrarem em

    11 Cf. Xenofonte, Repblica dos Lacedemnios 1. 3 sqq.; Plato, Leis 7, 804d e 813e; Plutarco, Licurgo 1415.

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    combate. Observa Plutarco, Licurgo 25 que os cidados foram acostumados a no quererem, a no saberem mesmo viver ss, a estarem sempre unidos, como as abelhas, em proveito do bem pblico volta dos seus chefes. Desse modo se procurava, acima de tudo, incutir o sentido comunitrio e o esprito de disciplina, a ponto de a obedincia ser considerada a virtude fundamental e quase nica, na qual o jovem era industriado desde a mais tenra idade.

    A educao espartana que era supervisionada por um magistrado especial, o paidnomo, verdadeiro ministro da educao, e, desde a Antiguidade, tem despertado entusiasmo em muitos12 dava tanta importncia ao aspecto moral como preparao tcnica do soldado. Tratase de uma educao toda ela ordenada a incutir no jovem o ideal de patriotismo e devoo plis at morte. O resultado dessa educao est bem expresso no episdio do sacrifcio de Pelpidas e seus homens nas Termpilas que motivou as belas palavras de Simnides (fr. 5 Diehl):

    Dos que morreram nas Termpilas,glorioso o destino, bela a morte. seu tmulo um altar; em vez de gemidos, a sua lembrana; o pranto se volve em elogio.Esta pedra tumularno a destruir o bolor, nem o tempo que tudo vence.Esta sepultura de homens corajosos escolheu para a [guardar

    12 Vide Ollier (19321943).

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    a fama excelsa da Grcia. Testemunha-o Lenidas,rei de Esparta, que deixou o ornamento de uma grande [valentiae um renome imperecvel.13

    A morte fsica transformouse em vida moral: os que agora jazem no so mortos. Como refere H. Frnkel, foram elevados categoria de heris protectores, como os mortos dos tempos mticos cujos tmulos eram ao mesmo tempo santurio.14

    A educao procurava incutir como norma do bem o interesse da plis e de que justo o que serve para o seu engrandecimento. Aplicado este princpio s relaes com os outros estados, conduz ao uso da astcia e da fraude. Por essa razo h o cuidado de treinar os jovens na dissimulao, na mentira, no roubo (cf. Xenofonte, Lac. 2. 68; Plutarco, Licurgo 1718): desse modo mal alimentado, o jovem era abandonado nas regies desabitadas e convidado a roubar para completar a sua rao (cf. Xenofonte, Lac. 2. 58; Plutarco, Licurgo 17). S no devia ser apanhado ou descoberto.

    Esparta considerava todas as outras actividades estranhas guerra agrcolas, comerciais, industriais ou artesanais indignas de homens livres; para essa plis apenas a guerra, e a sua consequente preparao, prestigiava e dignificava os cidados. Por isso proibia estes, os Pares (Homoioi), de se dedicarem a qualquer outra ocupao.15

    13 Traduo de Rocha Pereira (2005) 177. 14 (31969) 365366.15 Para a proibio de os cidados espartanos se dedicarem a

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    Mas nas outras pleis, de modo especial a Atenas, a formao no se centrou exclusivamente no treino fsico e na preparao militar, mas evoluiu para um sistema educativo que visava o desenvolvimento harmnico das faculdades. Vou tomar Atenas por modelo, por ter sido a que tal equilbrio primeiro se verifica, no sculo VI a.C.16

    Combater em defesa da plis continuou a ser o principal meio de alcanar a glria, mas no era, como se tornou em Esparta, uma preocupao obsessiva. Escreve Tucdides (1. 6) que nos primeiros tempos, por no existirem casas protegidas e comunicaes seguras, os Gregos tinham o hbito de andarem armados e que Atenas foi a primeira cidade a abandonlas (1. 6. 3):

    Os Atenienses foram os primeiros entre eles a abandonarem as armas de ferro e, sem constrangimento, entregaram-se a uma vida mais civilizada.

    Nas provas atlticas encontravam os Gregos, sobretudo os da classe nobre, um campo para mostrar a sua superioridade e excelncia. Eram famosos os Jogos Olmpicos, os Pticos, os Nemeus e os stmicos realizados em Olmpia, Delfos, Nemeia e Istmo de Corinto, respectivamente e constitua uma grande glria ser proclamado vencedor numa das suas provas,

    actividades econmicas cf. Xenofonte, Repblica dos Lacedemnios 7; Plutarco, Licurgo 23. 23.

    16 Para a educao na poca arcaica e sua evoluo vide Marrou (1965) 7486; Rocha Pereira (2003) 367380.

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    sobretudo as dos Jogos Olmpicos que, segundo a data tradicional, teriam comeado em 776 a.C.

    Ora na preparao, quer para o combate, quer para os Jogos, o exerccio fsico tornase essencial. Da que o ensino da ginstica comece por preponderar e que o mestre de educao fsica o paidotriba, como lhe chamam os Gregos seja o primeiro a aparecer. Existente j talvez no sculo VII a.C., as lies eram dadas na palestra ou no ginsio, sem me deter aqui na discusso sobre a diferena e relao que possa existir entre os dois.17

    Mas como se deduz de um passo clebre da Ilada (9. 443), Fnix ensinara Aquiles tambm a fazer discursos e no apenas a praticar nobres feitos. Ora com a afirmao da plis ou cidadeestado ao longo da poca arcaica ou seja no decurso dos sculos VIII a VI a.C. a necessidade de intervir no Conselho e na Assembleia, um rgo colegial o primeiro e constitudo por todos os cidados a segunda, obriga o dirigente a ter de usar da palavra e a saber convencer os seus concidados.

    Assim aparece o ensino da msica, atravs do citarista, o mestre que, talvez a partir do sculo VI a.C., ensinava as crianas a tocar ctara, e o das primeiras letras, a cargo do gramatista que ensinava a ler e a escrever e cuja existncia parece datar dos incios do sculo V a.C.

    17 Discutese se o ginsio era para os mais velhos e a palestra para os mais novos, se esta era uma parte daquele e se o primeiro era pblico e a segunda particular. Vide Delorme (1960) e Rocha Pereira (2003) 368 nota 2.

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    O ensino dos trs mestres tinha grande difuso como se pode deduzir de vrias afirmaes e aluses dos autores antigos. Em Aristfanes, o salsicheiro Agorcrito dos Cavaleiros, embora saiba ler, no frequentou o mestre de msica nem o de ginstica (vv. 12351293) e nas Vespas, num dilogo entre Filoclon e Bdeliclon, o no saber tocar ctara equivale a ignorncia (vv. 959 e 989). Plato, no Protgoras 325c326e, fala da importncia desses trs mestres na educao e acentua que os grammatistoi, depois de as crianas aprenderem as letras, os nmeros e compreenderem o que se escreve (325e326a)

    pem-nas a ler nas bancadas as obras dos grandes poetas, e obrigam-nas a decorar esses poemas, nos quais se encontram muitas exortaes, e tambm muitas digresses, elogios e encmios da valentia dos antigos, a fim de que a criana se encha de emulao, os imite e se esforce por ser igual a eles.

    No que respeita aos mestres de msica e de ginstica, refere que procedem de modo idntico e, depois de os jovens saberem tocar, fazemnos aprender as obras dos grandes poetas lricos e desse modo (326b326c)

    obrigam os ritmos e harmonias a penetrar na alma das crianas, de molde a civiliz-las, e, tornando-as mais sensveis ao ritmo e harmonia, adestram-nas na palavra e na aco. Na verdade toda a vida

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    humana carece de ritmo e de harmonia. Alm disso, ainda se mandam as crianas ao pedotriba, a fim de possurem melhores condies fsicas, para poderem servir a um esprito so, e no serem foradas cobardia, por fraqueza corprea, quer na guerra, quer noutras actividades.18

    Este texto de Plato, alm de chamar a ateno para o equilbrio que deve existir entre a preparao fsica e a formao espiritual h uma mtua influncia e de elucidar que essas escolas eram particulares, vinca o valor formativo da poesia e da msica.

    Os Gregos davam grande importncia ao ensino destas duas artes que ento no estavam to separadas como hoje. Lembremos que parte da poesia, sobretudo a lrica, destinavase a ser cantada e que no havia distino entre o poeta e o msico. Junto do citarista e do gramatista, os jovens aprendiam a cantar e a recitar as obras dos grandes autores, algumas delas de cor. Temos notcias de que os Poemas Homricos e obras de Slon eram aprendidos nas escolas.19 O jovem Nicrato, no Banquete de Xenofonte declara saber os Poemas Homricos de cor, por o pai lhos ter mandado fixar em pequeno para fazer dele um homem de bem um agaths (3. 5. 6). Pretendiase fazer penetrar na alma da criana a harmonia e o ritmo e fornecerlhe modelos que nela despertassem a emulao. squines, um orador do sculo IV a.C., exalta o valor educativo dos modelos

    18 Traduo de Rocha Pereira (2005) 422.19 Cf. Xenfanes, fr. 10 Diels (Homero); Plato, Timeu 21b

    (Slon).

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    (Contra Ctesifonte 246), e muitos so os casos de imitao ou emulao. Refiro apenas Alexandre Magno, que com a Ilada cabeceira, tinha por paradigma Aquiles, mas se lamentava de no ter, como aquele heri, um outro Homero que cantasse as suas faanhas. afinal a afirmao do valor psicaggico da poesia e da msica. Estamos perante a educao pelo paradigma de que falava Plato e que tinha tanta importncia na formao dos jovens na Grcia antiga. J a encontramos em aco nos Poemas Homricos, quando Atena aponta a Telmaco o exemplo de Orestes para o motivar a ir colher informaes sobre o pai.20 E com ela deparamos ao longo das pocas posteriores at ao nosso tempo. Um caso curioso o que se passa com os Revolucionrios Franceses que procuraram imitar os modelos da Grcia e de Roma. O Padre Grgoire encaminhanos nessa direco, ao referir que h tendncia a imitar as grandes figuras do passado e ao aconselhar que se semeie virtude para recolher virtudes, j que, se a reputao de Milcades inflamou o corao de Temstocles e o tornou seu mulo, um sofisma desorienta e um mau exemplo arrasta.21

    Grande parte dos homens da Revoluo encontravam esses paradigmas, de preferncia, nos biografados de Plutarco e acima de todos eles estava Licurgo, o lendrio legislador a

    20 Depois os prprios heris homricos foram tomados como modelos pelos Gregos dos tempos futuros. Jaeger (1954) cap. 3 (trad. port. pp. 5677); Ehrenberg (1964) 1012; Marrou (1965) cap. 1; Griffin (1977) 3953.

    21 Afirmaes de um discurso proferido na Conveno Nacional em 28 de Setembro de 1793. Cf. Oeuvres de lAbb Grgoire, ed. par A. Soboul (Liechenstein, 1977) 5960 (citao da p. 59).

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    quem a tradio atribua a criao da Esparta clssica. Mas, se Licurgo o modelo dessa virtude entre os Helenos, Marco Bruto e Cato de tica sono entre os Romanos, com predominncia para Bruto.22

    Mas esta formao, alm de se fazer em escolas particulares que, como o afirmava Plato no texto do Protgoras acima citado, apenas estavam ao alcance dos mais ricos, dizia respeito aos rudimentos e terminava na adolescncia. Mesmo no sculo V a.C., como observa Marrou (1965: 77), essa educao continuou mais orientada para a vida nobre, a do grande proprietrio rico, e menos para o ateniense mdio que ganha a vida como campons, arteso ou no pequeno comrcio.

    Paralelamente a essa formao bsica e depois de ela terminar, a grande escola era o convvio social que tem significativa importncia educativa em Atenas, com particular salincia para o convvio na gora, nos banquetes, nos ginsios. Estes, frequentados pelos jovens para os seus treinos e exerccios de ginstica eram procurados por muitos que, alm de admirarem a beleza e agilidade dos mais novos, com eles conviviam e davamlhes conselhos. A darmos crdito a Plato e Xenofonte, Scrates procurava com frequncia esse local para ensinar.23

    22 Assim Cheviner acentua que a vida austera desse indefectvel defensor da Repblica romana oferecia o modelo da virtude. Cf. Moniteur de 5 de janeiro de 1795.

    23 Alguns dos dilogos de Plato caso de Laques, Lsis, Crmides passamse no ginsio. Isso tem o seu significado, mesmo que se admita alguma idealizao do filsofo.

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    A educao referida at aqui diz respeito apenas uma formao inicial ou bsica. Depois passa a derivar sobretudo do convvio.

    A poesia tem papel de relevo na formao do homem. Procura incutir nele o ideal herico e incitlo a combater pela sua plis, tanto na elegia guerreira j referimos Calino e Tirteu , como na lrica coral (Simnides, Pndaro); procura incitlo a agir com justia e com moderao (Slon. Pndaro, Tegnis).24 Do que se acaba de referir se deduz que a poesia tinha um papel didctico. Destinase a ser cantada ou recitada e pressupunha um auditrio, a quem o poeta quer transmitir a sua experincia ou exortar a determinada actuao: Hesodo, ao irmo; Calino, Tirteu, Slon, aos concidados; Tegnis, ao seu jovem amigo Cirno. Vejamos um texto deste ltimo (vv. 2730):

    Por ser teu amigo, Cirno, que te vou dar estas normas, [que eu mesmo sendo criana, aprendi com homens de bem.S sensato, no busques honras, mrito, abastana, em actos vergonhosos ou injustos.25

    Tegnis no vou aqui discutir a questo da autenticidade da maioria dos versos da sua colectnea26 continua a dar conselhos prticos sobre a vida e

    24 Mesmo um poeta como Arquloco que sobressai pelo individualismo, rejeita a glria homrica e prefere o senso comum de salvar a vida em caso de perigo (fr. 6d), mesmo ele era recitado em concursos (Heraclito, fr. 42 Diels).

    25 Traduo de Rocha Pereira(2005) 167.26 Sobre o assunto, vide Rocha Pereira (2003) 207208.

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    a transmitirlhe os conhecimentos que ele prprio aprendera de outro. Temos aqui um exemplo da transmisso viva do saber de gerao em gerao: um homem feito a ensinar um jovem. Processo caracterstico da mentalidade grega, encontramolo j nos primrdios da cultura helnica, na Ilada, no caso de Fnix e Aquiles. tambm o caso da relao de Scrates com os discpulos. evidente e natural que nesta transmisso da experincia prpria se imiscua o elemento subjectivo (caso de Arquloco, Mimnermo).

    Transmitida de mais idoso a jovem, cantada em festividades e concursos, aprendidos nas escolas, por vezes at de cor, a poesia tornouse um poderoso veculo de formao, mas tambm de transmisso do saber. Recordese que as Musas eram consideradas filhas de Zeus e de Mnemsine, a memria.

    A gora era um importante centro cvico, religioso e comercial, e as condies especiais do clima na Grcia permitia ou convidava vida ao ar livre. Na gora ficavam vrios templos, altares esttuas e edifcios pblicos de grande importncia religiosa, poltica e social; nela se realizavam as sesses da Assembleia (Ecclesia), antes de ser transferida no sculo V a.C. para a colina da Pnix, e as reunies do Conselho dos Quinhentos, ou Boul (no Buleutrion), dos tribunais da Helieia; se encontrava o Pritaneu ou Tholos em que os prtanes se reuniam e viviam permanentemente; num dos seus prticos, a stoa basileios, exercia o seu magistrio o arconterei julgar os casos relacionados com a religio e impiedade e num outro e no Pritaneu se encontravam gravados

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    em pedra diversos documentos. Como o cdigo de Slon; a, separado por um prtico central, decorria diariamente o mercado. Era, portanto, a gora um local de grande afluncia, que os Atenienses procuravam para conversar e discutir sobre diversos assuntos.

    O symposion que de modo geral se traduz, talvez indevidamente, por banquete tinha um significado social e cultural de grande importncia. Os Gregos evidentemente os que tinham posses para isso gostavam de se reunir em festins em que se comia e bebia, mas sobretudo se convivia, conversava, discutia, por vezes assuntos elevados, e se entoavam poemas (os skolia) de grandes autores, como Alceu (cf. Herdoto 6. 129; Aristfanes, Nuvens 13531379). O symposion, alm de aparecer representado em muitos vasos, motivou referncias, foi tema e deu o ttulo a obras de grandes autores gregos: por exemplo, Plato e Xenofonte.27 O primeiro um caso elucidativo: alm de vrias referncias em que exalta o poder educativo do banquete, se bem dirigido (Leis 637b642a, 652a653a, 671a672b), escreve uma obra com esse ttulo em que vrias figuras conhecidas e de relevo na Atenas de ento Scrates, Aristfanes, Fedro, Pausnias, Alcibades se renem em casa do tragedigrafo gaton para celebrar uma sua vitria nas Grandes Dionsias.28

    O desejo de as famlias nobres conhecerem o seu passado e a nsia de se ligarem a um heri da tradio

    27 Depois muitos outros trataram o tema, que o Renascimento volta a retomar.

    28 gaton considerado o quarto grande trgico, depois de squilo, Sfocles e Eurpides.

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    lendria faz aparecer as genealogias. A empresa da colonizao, os contactos comerciais que esta motivou ou incentivou e as consequentes viagens de explorao das zonas costeiras originam os priplos que descrevem essas zonas e os relatos de fundaes de cidades. Tudo isso desperta a curiosidade pelas terras e lugares distantes e o desejo de conhecer novas regies. Aparecem as mais antigas cartas geogrficas gregas: o primeiro mapa atribudo a Anaximandro, do sculo VI a.C. (Estrabo 1. 1. 11); Hecateu de Mileto (sc. VIV a.C.) escreve uma Descrio da Terra que ilustra com um mapa. Herdoto compe a sua obra em que a geografia e a etnografia tem papel importante depois de longas viagens em busca de informaes junto de outros povos.

    Por seu lado a curiosidade ao mundo circundante e o acto de se admirar perante os seus fenmenos que, no dizer de Aristteles (Metafsica 982b) constitui precisamente a base do filosofar, vai fazer aparecer os primeiros filsofos que buscam a origem das coisas e a constituio de tudo quanto existe e procuram explicar os fenmenos naturais, sobretudo as revolues dos astros e os eclipses. Esses filsofos prsocrticos encontravamse a cada passo ligados pela relao mestre/discpulo e estavam integrados em escolas filosficas que exerceram papel significativo na investigao da natureza e na busca do saber. Se no temos a certeza da relao entre os trs pensadores milsios Tales, Anaximandro e Anaxmenes e se hoje est posta de lado a existncia a de uma escola, a Escola Eleata, fundada por Parmnides, e a Escola Pitagrica foram

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    dois focos importantes de desenvolvimento e transmisso do saber. No domnio educativo interessa de modo especial a pitagrica com o seu ideal de vida que reveste a procura do saber com um carcter religioso. Pressupe a superioridade intelectual em relao fsica e admite a possibilidade de uma sobrevivncia feliz no Alm. Supe M. H. Rocha Pereira que pertencer a esta escola a doutrina exposta no mito da II Olmpica de Pndaro: quem conservar a alma afastada da injustia durante trs existncias ter um lugar no Jardim das Delcias, sob a legislao de Radamanto e na companhia de heris como Peleu, Cadmo, Aquiles.29 Se assim for, como nota a mesma autora, a escola pitagrica abre perspectivas de imortalidade ao sbio que se vai purificando at se conseguir libertar do ciclo dos nascimentos.

    A evoluo da plis ateniense no sentido da democracia tornou instituies principais do regime a Assembleia, constituda por todos os cidados, o Conselho dos Quinhentos, ou Boul, e a Helieia, para que eram escolhidos sorte, respectivamente, cinquenta e seiscentos de cada uma das dez tribos. Possibilitou desse modo a participao cada vez maior dos cidados, mas, tratandose de rgos colectivos, neles a arte de persuadir exercia grande importncia. Dava por isso vantagens aos mais capazes e melhor apetrechados. O esprito de competio que naturalmente surgiu, que no domnio poltico, quer no judicirio, exigia uma preparao intelectual cada vez mais acentuada e fez surgir a necessidade de uma formao escolar para alm da adolescncia.

    29 (1955) 6367.

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    Vm responder a essa exigncia os sofistas, que, se no tiveram grande importncia na histria da filosofia contributo apenas no domnio da epistemologia30 , exerceram papel de relevo na cultura e deixam marca indelvel na histria da educao, a faceta que aqui nos interessa. Em tal domnio criam um currculo de estudos que podemos considerar o embrio das futuras sete artes liberais, o trivium e o quadrivium da Idade Mdia.31 Em parte herdado dos Prsocrticos, em especial dos Pitagricos, e em parte criado por si, esse currculo era constitudo por disciplinas do foro literrio (criao sua: gramtica, dialctica, retrica) e do domnio cientfico (herdado: geometria, aritmtica, astronomia e msica). Interessados nos problemas concretos do homem e nas relaes entre as pessoas, dominam as tcnicas que permitem intervir nessas relaes pela discusso ou seja pela dialctica e pela arte de persuadir, a retrica, e fazemse mestres no ensino dessas tcnicas. No de estranhar, portanto, que as suas principais inovaes se situam no domnio dos estudos literrios: desenvolvem muito a retrica cujos fundamentos se devem a Crax e Tsias nos incios do sc. V a.C. e a dialctica; criam a gramtica (atribuda a Protgoras), crtica literria, prosa artstica em tico; fazem estudos de sinonmia. Tudo matrias do domnio da arte de

    30 Vide Rocha Pereira (2003) 446 e n. 1.Da vasta bibliografia sobre os Sofistas vide, entre outros,

    Guthrie (1971); Kerferd (1981a); Kerferd (1981b); Rocha Pereira (2003) 446455. Para a traduo dos fragmentos vide Dumont (1969).

    31 Vide Rocha Pereira (2003) 449451.

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    bem falar e convencer, ou vencer pela argumentao, o opositor, quer como ser isolado, quer como membro do grupo social. Com um ensino itinerante, sem escola fixa, remunerado (e. g. Plato, Apologia 19e20a; Iscrates, Antdosis 3),32 os sofistas erigiam o homem em alvo do seu pensamento:

    O homem a medida de todas as coisas, das que so, enquanto existem, e das que no so, enquanto no existem.33

    proclama Protgoras (fr. 1 Diels), o maior deles. A educao dos sofistas, completa, enciclopdica, pretendia formar os jovens com vista a uma futura interveno na plis, a fazer deles bons dirigentes ou seja dotlos uma techn politik que lhes dar a aret poltica. Da que, embora centrado no homem, o seu pensamento no o v como um ser isolado, mas como um elemento integrado na clula social que a plis, para desse modo prever as suas reaces em grupo, como membro da Assembleia e dos outros rgos, e poder influir nas suas decises pela persuaso e argumentao ou seja no seu ensino j se encontram os incios da sociologia. Partidrios da concepo filosfica da impossibilidade de aceder a outra verdade que no seja a da opinio, vlida apenas para aquele que a professa e comunicvel por persuaso, os sofistas defendiam que era possvel persuadir do que quer que fosse e do seu contrrio.

    32 Sobre o escndalo que isso provocou e razes do facto vide Rocha Pereira (2003) 448 e nota 7.

    33 Traduo de Rocha Pereira (2005) 289.

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    Os sofistas foram os primeiros professores e o seu ensino que despertava considervel entusiasmo entre os jovens, como se depreende do Protgoras de Plato (310a311e, 314b315d) vinha responder a uma necessidade profunda de Atenas que exigia um novo tipo de educao. A antiga educao aristocrtica, baseada no conhecimento dos poetas antigos no correspondia s necessidades de uma plis democrtica. Pelo contrrio, os sofistas estabeleceram um currculo de estudos e diziamse detentores de um saber que eram capazes de comunicar aos ouvintes: um saber que lhes permitiria afrontar todas as questes e realizar, por conseguinte, uma brilhante carreira poltica. O seu ensino, essencialmente pragmtico, fornecia aos jovens discpulos as tcnicas de argumentao e persuaso indispensveis para se poderem impor na vida quotidiana, nos tribunais e na Assembleia. Mas, devido ao alto custo das lies, o acesso a esse ensino ficava restringido s classes sociais mais elevadas, em especial aristocracia. Curioso paradoxo: os sofistas trazem a Atenas o tipo de educao necessria a um Estado democrtico, mas a sua clientela reduzse aos jovens provenientes dos meios mais abastados. Contribuem assim para acentuar o desequilbrio social, j que colocavam nas mos dos que possuam mais recursos econmicos uma tcnica que lhes permitia persuadir e consequentemente dominar o dmos.34

    34 Temos informaes vrias de que os sofistas se pagavam bem pelas suas lies: e. g. Plato, Apologia 20a; Laques 186c; Hpias Maior 282be; Grgias 519d; Mnon 91d; Repblica 1, 337d; Iscrates, Contra os sofistas 3. Sobre as vantagens e desvantagens do

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    De certo modo contemporaneamente ao sofistas, mas fundamentando a sua moram na razo, Scrates d tambm grande importncia educao. Alis toda a sua vida tanto quanto se pode deduzir dos testemunhos que dele nos chegaram (Aristfanes, Plato, Xenofonte, Aristteles) foi um permanente acto educativo.35 Pensava Scrates que o til se identifica com o bem e que existe uma lei superior que pode ser atingida pela razo e em todas as ocasies da vida deve ser seguida, como bem o demonstra no episdio narrado no Crton e no Fdon. Desse modo, o saber conduz prtica do bem e s a ignorncia leva ao erro ou ao mau procedimento. Como o homem deve adequar a aco ao pensamento e colocar todo o empenho em manter uma alma recta esforo em que reside a virtude essencial a educao que desfaa a ignorncia e permita agir correctamente. Da concordar com W. Jaeger quando lhe chama o mais espantoso fenmeno educativo na histria do ocidente.36

    No sculo IV a.C., trs mestres trouxerem significativos contributos histria da educao: refirome a Iscrates, a Plato e a Aristteles.

    O primeiro funda uma escola que, situada na periferia da cidade, era muito frequentada e exerceu

    ensino dos Sofistas vide Rocha Pereira(2003) 450451.35 Sobre esses testemunhos e as possveis doutrinas de Scrates

    vide Rocha Pereira (2003) 456464.36 (1954) 475476.

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    grande influncia na Atenas de ento e no futuro.37 Apesar de o seu ensino ser remunerado, os alunos afluam em grande nmero (Antdosis 41 e 87), mas no aceitava muitos ao mesmo tempo: de modo geral no mais de nove ou dez, j que os grupos pequenos, alm de proporcionarem o convvio, no dispersavam a ateno. O curso, que durava trs ou quatro anos (Antdosis 87), privilegiava os estudos literrios e pretendia fornecer uma vasta cultura, em contacto com as obras dos bons autores, pelo que considerado o pai do humanismo.

    O seu magistrio que ele defende no discurso Antdosis, j do fim da vida era uma espcie de ensino superior que visava uma formao poltica e procurava habilitar os discpulos a exercer papel relevante na plis. O seu ensino que obteve grande aceitao na poca e exerceu uma influncia duradoira, deu frutos visveis: Hiperides, Iseu e Licurgo, trs grandes oradores do sculo IV a.C., foram seus discpulos.

    Iscrates teve papel de relevo na histria da educao: desenvolveu a parte literria do currculo dos sofistas. Pretendia ensinar a falar bem e considerava a retrica a arte suprema. Mas, ao contrrio da dos sofistas, considerava que ela devia ter uma orientao tica. Em sua opinio (Panegrico 49)

    37 Sobre Iscrates e o seu papel na histria da educao grega vide Beck (1964) caps. 7 e 8; Jaeger (1954), cap. Iscrates defende a sua paideia; Marrou (1965) cap. 7; Rocha Pereira (2003) 481-484.

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    os discursos belos e artsticos no so apangio de pessoas inferiores, mas obra de uma alma que pensa bem38

    e uma vida virtuosa d autoridade ao orador (cf. Ncocles 3. 7).

    Grande relevncia no domnio da educao exerceua tambm Plato, no s pela escola que fundou e que se manteve activa por mais de oitocentos anos ( encerrada apenas no sculo VI da nossa era), mas tambm pelas propostas educativas que, embora sem grande audincia na sua poca, vieram mais tarde a ser adoptadas, no perodo helenstico: refirome de modo especial criao de escolas pblicas e a uma educao das raparigas igual dos rapazes (cf. Leis 805a).39

    Feitas nos livros VII da Repblica e das Leis, consagrados ao estabelecimento de um currculo de estudos, as suas propostas educativas no podem dissociarse da sua teoria das ideias e da reminiscncia40 e do pensamento de Scrates, de quem foi discpulo e na boca do qual pe as suas doutrinas. Scrates, no Mnon, interroga um escravo sobre geometria para provar que no faz mais do que lembrar o que ele j sabe. Desse modo a cincia apenas reminiscncia, como se v tambm na alegoria da caverna da Repblica 514a518b. Considera a educao o primeiro dos bens,

    38 Traduo de Rocha Pereira (2005) 331.39 Sobre as propostas e plano educativos de Plato vide Beck

    (1964) cap. 5; Jaeger (1954) 541550 e 712866; Rocha Pereira (2003) 490494 e Plato: a Repblica (Lisboa, 1987), VVII e XXVIXXXIII.

    40 Sobre o assunto vide Rocha Pereira (2003) 488490.

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    que no deve ser desprezado (Leis 1, 644b). Exige uma aplicao desde a infncia para desse modo alcanar a excelncia ou ser anr agaths (Leis 1, 643b). Em face disso, o planeamento da educao deve estar a cargo do Estado, ou seja devem ser criadas as escolas pblicas, e no deve diferenar a das raparigas da dos rapazes (Leis 7, 805a).

    Nesse currculo de estudos podemos estabelecer trs fases. A primeira, relativa instruo inicial, segue a tradio dos trs mestres: exerccios fsicos, msica e primeiras letras (Leis 7, 795d e 809e810c). Na segunda fase, embora na Repblica e nas Leis no haja unanimidade nas disciplinas propostas,41 coincidem na necessidade do estudo da geometria, da aritmtica e da astronomia, disciplinas preparatrias para a terceira fase dedicada dialctica, o mtodo adequado filosofia.

    Tratase, como se acaba de ver, de um currculo de pendor cientfico. Assim considera que ao estudo das letras deve o jovem dedicar apenas o tempo que o torne capaz de ler e de escrever. que (Leis 7, 810bc)

    aprender composies de poetas sem msica, mas escritas, uma com metro, outras sem diviso rtmica, que so apenas escritas como se fala, e desprovidas de ritmo e harmonia, temos certas obras perigosas, que nos deixaram muitos homens dessa qualidade.42

    41 Por exemplo a Repblica acrescenta s trs disciplinas a seguir enumeradas a estereometria e a harmonia.

    42 Traduo de Rocha Pereira (2005) 434435.

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    dada grande importncia matemtica. Assim no Timeu aparece a noo de Deus como supremo gemetra e, entrada da Academia, segundo a tradio, encontravase a inscrio quem no souber geometria no entre.

    Aristteles foi ao mesmo tempo um grande filsofo e um grande cientista que marcou poderosamente o sculo IV a.C. e a posteridade. Para o nosso objectivo, interessa a escola que fundou, o Liceu, e os mtodos de trabalho que lhe imprimiu observao, investigao organizada, especializao, classificao e sistematizao, e possivelmente experimentao, espordica e que naturalmente ele prprio utilizou. Criada em 335, essa escola chegou a compreender pelo menos a partir de Teofrasto que lhe sucedeu na direco dois prticos cobertos, um santurio dedicado s Musas, diversos outros edifcios onde existia uma biblioteca, coleces de animais e plantas, laboratrios, salas de conferncia, possivelmente residncias. Era uma verdadeira escola de ensino superior, ou melhor um centro de investigao.

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    Bibliografia

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    A trAdio dos sete sbios o sApiens enquanto paradigma de uma

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    1. Magister dixit: o pApel formAtivo do sbio1

    A literatura gnmica ou de sentenas conheceu uma grande fortuna na antiguidade e a sua origem perde-se na prpria raiz dos tempos. De facto, so inmeros os exemplos de obras em que nos aparece determinada personalidade a aconselhar uma outra sobre a melhor forma de actuar. Este esquema de base conhece muitas formulaes e variantes; duas das mais frequentes consubstanciam-se na figura do sbio que orienta um soberano sobre o tipo de conduta a adoptar ou, na sua verso mais familiar, na imagem do pai que procura zelar pela formao do filho, dispensando-lhe os conselhos que a vida ensinou. O Oriente Prximo fornece-nos um amplo espectro de escritos com este cariz e vamos encontr-los tambm em inmeras outras literaturas, sem que isso implique necessariamente uma relao de dependncia directa, j que ideias semelhantes podem ter sido desenvolvidas por povos distantes uns dos outros e de forma autnoma.2 De resto, que este

    1 Todas as tradues que figuram ao longo deste trabalho so da nossa autoria e feitas a partir do original grego ou latino. Salvo expressa indicao em contrrio, as datas referidas remetem para um perodo anterior nossa Era. Na elaborao deste estudo, recupermos o essencial da argumentao que desenvolvemos em dois trabalhos anteriores: Leo (2000); (2003).

    2 Para um conspecto deste tipo de wisdom literature, vide West(1997).

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    modelo simples continua activo e funcional, mostra-o uma infinidade de filmes produzidos pela indstria do cinema, onde a figura do mestre (com frequncia industriado em artes orientais, assimiladas com um grau varivel de eclectismo e rigor) prossegue a nobre misso de esclarecer e formar quem com ele se cruza.

    No domnio da literatura grega, que agora nos ocupa mais em particular, o influxo deste tipo de material detectvel desde muito cedo tambm. Evocaremos apenas alguns exemplos, que ajudaro a atestar esta realidade bem conhecida dos estudiosos da antiguidade clssica. Em Homero, basta pensar na figura de Nestor, que se destaca pela ponderao das suas palavras, em particular na Ilada. De resto, ele e outros seis guerreiros formavam uma espcie de conselho mais restrito de Agammnon, o comandante-chefe da coligao grega que integrou a expedio a Tria.3 Inesquecvel tambm o quadro dos ancios que rodeavam Pramo e que, afastados embora dos combates devido ao peso da idade, mereciam, na qualidade de oradores, ser comparados ao inebriante canto das cigarras.4

    No caso dos Trabalhos e Dias, o mesmo esquema conhece um aproveitamento ainda mais significativo. Sem querermos retomar agora a debatida questo da eventual influncia directa de textos sumrios, babilnios ou egpcios sobre esta obra, o certo que a sua estrutura de base assenta no tema do conselheiro. Uma das notas de novidade de Hesodo parece residir, precisamente, no

    3 Cf. Il. 2.400-9.4 Il. 3.146-52.

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    facto de o destinatrio das suas admonies ser no um rei ou um filho, mas o prprio irmo (Perses), a quem procura reconduzir ao bom caminho, pese embora o facto de este haver tentado apoderar-se da parte que lhe cabia na herana paterna.5 Alm dos inmeros preceitos e sentenas, que tm presena obrigatria em textos de carcter gnmico, Hesodo serve-se tambm de outras estratgias expositivas que conhecero igualmente grande fortuna na literatura sapiencial: a fbula e o mito.6

    O facto de, na Ilada, Agammnon aparecer rodeado de um grupo de sete homens da sua confiana est ainda longnquo da lenda que tender a fixar um colgio de Sete Sbios, a quem eram atribudas sentenas memorveis, proferidas no decurso de encontros com personalidades igualmente famosas. O contexto histrico que envolve algumas dessas figuras (como Tales, Slon, Creso) sugere que a tradio ter comeado a delinear-se durante a poca Arcaica, em particular entre os scs. VII-VI. A este facto no ser alheia a circunstncia de, ao longo daquele perodo, a Grcia haver experimentado grandes tenses polticas e sociais, que foram acompanhadas pelo surgimento da figura dos legisladores e de governos autocrticos, bem

    5 Ainda assim, em alguns momentos Hesodo tambm se dirige aos reis, para exort-los a respeitar a justia de Zeus; e.g. Op. 248-73.

    6 Referimo-nos fbula do falco e do rouxinol (Op. 202-12) e aos mitos de Pandora (42-105) e das Cinco Idades (106-201). Para uma sinopse do aproveitamento da tradio gnmica noutros autores gregos, desde a poca Arcaica at ao perodo romano, vide Wehrli(1973); Rodrguz Adrados (1994) 130-7.

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    como por intensas relaes com a Prsia e a sia Menor, cuja opulncia econmica exercia sobre o imaginrio grego tanto um sentimento de admirao como de censura, com frequncia mesmo acintosa.

    No obstante a relativa antiguidade cronolgica de certos aspectos ligados vivncia de figuras que viriam a ser contadas entre os sapientes, em Herdoto que podemos surpreender os primeiros assomos literrios desta lenda. De resto, a imagem do conselheiro acaba por ser um Leitmotiv na obra do historiador de Halicarnasso. o que se verifica, por exemplo, em relao a personalidades como o ateniense Slon e masis, o ltimo grande fara da dinastia sata, que partilham entre si o papel de conselheiro ponderado.7 Da mesma forma que Slon avisa Creso, rei da Ldia, contra a imprudncia de ignorar a constante mutabilidade das coisas humanas (1.32.1-9), o fara aconselha o tirano de Samos, Polcrates, a interromper a sua perigosa carreira de sorte, desfazendo-se de algum pertence que considerasse precioso, pois estava consciente de como a divindade era invejosa da fortuna dos homens (3.40.2). Ao contrrio de Creso, cuja incompreenso do profundo significado das palavras do hspede ateniense o lana no caminho da desgraa, Polcrates acatou o conselho do monarca egpcio, atirando ao mar um anel com uma esmeralda, de que muito gostava. Mas essa mesma jia acabaria por lhe voltar s mos no bucho de um grande peixe que

    7 Lattimore (1939), 24, Lattimore coloca masis na galeria dos conselheiros trgicos, que, alm de Slon, integra tambm Bias, Ptaco e at o prprio Creso (junto de Cambises), mas cujo representante mais acabado se encontra na pessoa de Artbano.

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    um pescador lhe oferecera. Ao tomar conhecimento disto, o fara compreendeu que no podia ter um fim feliz quem era to aventurado a ponto de recuperar um objecto de que se havia desfeito e, assim, rompeu os vnculos de hospitalidade que o ligavam ao tirano, a fim de no ser afectado pela desgraa que certamente o atingiria.8 Embora masis tambm v ficar ligado ao ciclo dos Sete Sbios,9 a realidade que, tanto em Herdoto como na tradio posterior, se destacam em particular as entrevistas patrocinadas por Creso e os conselhos que ele recebe de figuras como Tales (1.74.2; 75.3-4), Bias (ou Ptaco, 1.27.1-5) e Slon (1.29-32). Os contornos que envolvem a relao com este ltimo constituem o relato mais significativo de todos, a ponto de atingir o estatuto de modelo paradigmtico da forma como o dilogo entre um sbio grego e um monarca oriental poderia ser abordado.10

    A importncia de Creso na gnese da tradio dos Sete Sbios vai ao encontro da fama que o soberano gozava entre os Gregos e qual no ser alheia, pela certa, a influncia dlfica, facto que facilmente se compreende se aceitarmos a historicidade das oferendas magnficas

    8 Pormenores em 3.39-43. Para outras informaes sobre masis, vide 2.154.3; 2.162 e 2.169.

    9 Conforme se ver na anlise ao Conuiuium de Plutarco (infra seco 2.1).

    10 Herdoto menciona tambm Qulon (1.59.2-3), Periandro (1.20; 23) e o cita Anacrsis (4.76-7). Este ltimo vir a integrar o crculo dos sbios; a incluso deste brbaro constitui no apenas uma nota de significativa imparcialidade, como permitir ainda criticar certos aspectos da cultura grega, atravs dos olhos de um estrangeiro no maculado ainda por certos vcios da civilizao. Vide infra seco 2.1.

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    feitas ao orculo pelo chefe ldio.11 Para mais, algumas das famosas mximas inscritas no trio do templo de Apolo eram atribudas aos sapientes que passaram pela sua corte, de modo que os conselhos de moderao que vemos, por exemplo, aplicados na conversa entre Slon e Creso se confundem com a prpria moralidade do orculo.12 Por outro lado, embora a indicao do nmero sete ainda esteja ausente em Herdoto, ser essa a frmula adoptada para designar os sapientes no seu conjunto.13 Ora bem conhecida a importncia que este algarismo possui em muitos outros relatos e culturas, mas no se afigura improvvel que ele acuse, tambm por esta via, alguma relao com os interesses dlficos. De facto, este era, precisamente, o dia do aniversrio de Apolo (sete do ms de Byzios, em Fevereiro-Maro), razo pela qual, de incio, as consultas seriam ministradas exclusivamente nessa data e s depois, para atender grande afluncia, se estenderiam a outras alturas.14

    11 Cf. Herdoto, 1.50-51. Em reconhecimento, os Dlfios outorgaram a Creso e aos Ldios privilgios especiais (1.54.2): a promanteia (prioridade na consulta do orculo entre elementos do mesmo grupo, neste caso entre os Brbaros); a ateleia (iseno de pagamento do imposto preliminar para a consulta do orculo); proedria (lugar reservado nos espectculos, geralmente nas primeiras filas) e ainda o direito de se tornarem cidados de Delfos.

    12 E.g. Plato, Chrm. 164d-165a; Pausnias, 10.24.1; Digenes Larcio, 1.63.

    13 Herdoto refere-os apenas de maneira indeterminada (1.29.1): passam por Sardes, ento no cume da sua riqueza, todos os demais sbios da Hlade que nessa altura viviam, levados cada um por seu motivo.

    14 tentadora, igualmente, a hiptese de influncia oriental, pois no poema de Gilgamesh da antiga Babilnia alude-se a um grupo de sete homens sbios que vieram ajudar na construo das

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    Em suma: desta breve resenha, afigura-se legtimo reter, antes de mais, que a imagem do sapiens constitui um dos grandes temas da prpria tradio popular, tendo conhecido uma ampla difuso na antiguidade mais remota. Na literatura grega, a sua presena surpreende-se desde Homero, mas os indcios da fixao de um grupo de figuras de contornos histrico-lendrios, que marcaram o imaginrio grego entre os scs. VII-VI, notam-se, pela primeira vez, em Herdoto. Embora a lenda no tenha ainda o perfil bem definido, na obra do historiador, detectam-se j alguns aspectos que lhe so caractersticos: a marca de certas zonas de influncia, como a Inia (Ptaco, Bias e Tales), Atenas (Slon) e o Peloponeso (Qulon, Periandro); o papel de Delfos, enquanto elo de ligao entre estas figuras.1 A partir daqui, o cnone tender a estabelecer-se, no deixando, porm, de ser enriquecido com novos contributos e desenvolvimentos. esse caminho que nos propomos evocar rapidamente na prxima seco, para nos determos, com mais pormenor, no contributo de Plutarco.

    2. A literAturA de bAnquete

    Embora Herdoto constitua o primeiro testemunho literrio a acusar a gnese de um grupo estvel de sapientes e a estabelecer at o modelo para alguns dos encontros mais famosos, no Protgoras

    muralhas da cidade. Em todo o caso, j no incio desta anlise chamvamos a ateno para a necessidade de ter em conta que ideias semelhantes podem ocorrer em lugares diferentes, sem que isso implique uma relao de dependncia directa entre si.

    1 Oportunas as observaes de Busine (2002) 17-27, esp. 27.

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    (343a) de Plato que se encontra a primeira relao completa dos Sete Sbios. As figuras escolhidas so Tales, Ptaco, Bias, Slon, Cleobulo, Mson e Qulon. Segundo o filsofo, o motivo que justificara a sua reunio teria sido a vontade de consagrar a Apolo certas mximas, como primcias da sua sabedoria. A referncia directa ao templo oracular ajuda a sustentar a hiptese de que o encontro ter acontecido em Delfos, se bem que o passo seja um tanto ambguo, j que se afirma que esse era o destino das sentenas e no propriamente o ponto de reunio. Por isso, a hiptese de Sardes tambm seria oportuna, dada a estreita ligao entre Creso, a figura dos sbios e a tica apolnea. Em todo o caso, a tradio posterior acabou por conceber estas e outras variantes, conforme demonstra um esclarecedor passo de Digenes Larcio, que valer a pena evocar (1.40):

    Ora Arquetimo de Siracusa descreveu a sua [dos Sete Sbios] reunio na corte de Cpselo, na qual afirma ele prprio ter participado; j foro colocou-a na de Creso, sem a presena de Tales. Alguns afirmam que eles se juntaram no Paninio, em Corinto e em Delfos.

    No obstante a informao de Digenes, desconhece-se hoje a natureza dos trabalhos mencionados e o prprio Plutarco, na lista que fornece da literatura ligada ao tema do banquete,2 no refere nenhum deles, se bem que essa enumerao se prenda com obras de carcter filosfico, facto que talvez explique a omisso. Em todo o

    2 Mor. 612d.

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    caso, o testemunho do doxgrafo agora evocado mostra a ateno que o tema despertou na literatura produzida entre a poca Clssica e a altura em que esteve activo, na viragem do sc. II para o sc. III da nossa Era. Na verdade, Digenes representa um momento da tradio em que as diferentes abordagens da questo se encontravam j cristalizadas e disso fornece abundantes exemplos na sua obra. No Livro I, depois do promio e antes da considerao dos filsofos propriamente ditos, o bigrafo recorda, ao longo de uma centena de captulos, inmeros aspectos ligados existncia daqueles homens que, desde os tempos de antanho, haviam sido considerados sophoi.3 Destes, a Tales e a Slon que analisa com maior cuidado, facto que espelha o peso que estas figuras detinham j na lenda.4 Ao tecer a biografia destas personalidades, Digenes est, naturalmente, a par das variantes da tradio, que opta, de resto, por explorar, fornecendo, assim, um elucidativo conspecto dos diferentes estdios da sua evoluo, que ser pertinente recordar (1.41-42):

    Discute-se tambm qual o seu nmero. Lendrio, de facto, em vez de Cleobulo e de Mson, optou porLeofanto, filho de Grsias, de Lbedos ou de feso, e pelo

    3 Conforme ele mesmo esclarece (1.122), antes de fazer a transio para a filosofia inica, de que Tales, uma das figuras evocadas tambm como sbio, fora o iniciador.

    4 Os captulos encontram-se distribudos na seguinte proporo: Tales (22-44); Slon (45-67); Qulon (68-73); Ptaco (74-81); Bias (82-88); Cleobulo (89-93); Periandro (94-100); Anacrsis (101-105); Mson (106-108); Epimnides (109-115); Ferecides (116-122).

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    cretense Epimnides; j Plato, no Protgoras, faz entrar Mson para o lugar de Periandro; foro substitui Mson por Anacrsis; outros ajuntam ainda Pitgoras. Dicearco regista quatro nomes que tambm reconhecemos - Tales, Bias, Ptaco, Slon - e refere outros seis (de entre os quais selecciona trs): Aristodemo, Pnfilo, o lacedemnio Qulon, Cleobulo, Anacrsis e Periandro. Alguns acrescentam Acusilau, filho de Cabas ou de Escabras, natural de Argos. Mas Hermipo, no Sobre os Sbios, alinha dezassete, a partir dos quais diferentes pessoas formam grupos diferentes de sete. So eles Slon, Tales, Ptaco, Bias, Qulon, Mson, Cleobulo, Periandro, Anacrsis, Acusilau, Epimnides, Leofanto, Ferecides, Aristodemo, Pitgoras, Laso, filho de Carmntides ou de Sismbrino ou, de acordo com Aristxeno, de Cbrino, natural de Hermone, e Anaxgoras. Hipboto, na Lista dos Filsofos, alinha Orfeu, Lino, Slon, Periandro, Anacrsis, Cleobulo, Mson, Tales, Bias, Ptaco, Epicarmo e Pitgoras.

    O texto quase dispensa comentrio, pois , por si mesmo, bem ilustrativo da riqueza da tradio ligada aos Sete Sbios, bem como das possibilidades de escolha e combinao dessas figuras. Ao grupo pertenciam inclusive tiranos como Periandro, que, mesmo quando no ocupavam o posto de sapiente, poderiam desempenhar um papel igualmente importante ao patrocinarem encontros de sophoi.5 Digenes, que no pretende

    5 No passo em anlise, Digenes no refere Pisstrato, embora reconhea, ao encerrar a biografia das figuras que escolhera, que alguns autores o catalogam tambm entre esses homens ilustres (1.122).

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    descrever um encontro com estas personalidades, evita a obrigao de eleger o tradicional nmero de sete, pelo que opta por traar a biografia das onze figuras que lhe despertavam maior interesse ou sobre as quais circularia maior abundncia de informao. O delineamento da sua existncia segue um esquema relativamente estvel. Os elementos constantes prendem-se com os trs pontos fundamentais na vida: nascimento, maturidade (akme) e morte. Os traos sujeitos a maior variao ligam-se s sentenas e opinies conotadas com a personagem retratada.6

    Antes de passarmos ao caso de Plutarco, que nos motivar uma reflexo maior, importa retomar um factor ligado ao contributo de Plato. Ainda mais significativo do que o aspecto episdico de ter sido ele o primeiro a apresentar uma lista de Sete Sbios, que se haviam reunido com um objectivo especfico, o facto de o filsofo ter criado um modelo de exposio que conhecer, igualmente, inmeras imitaes e aproveitamentos. Referimo-nos ao dilogo filosfico e, em particular, forma adoptada no Banquete. Para melhor ponderarmos a importncia dessa criao literria, importa reflectir um pouco sobre o lugar que o prprio symposion ocupava na cultura grega.7

    6 Estes exemplos de sabedoria popular designam-se geralmente por termos como gnome, apophthegma, apomnemoneuma, chreia. Sobre as caractersticas, origem e tradio deste tipo de literatura e sua utilizao na obra de Digenes, vide Kindstrand (1986) 217-243; Gigante (1986) 16-18.

    7 Nesta breve sistematizao, iremos aproveitar algumas das ideias expressas em Murray (1994).

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    O acto ritualizado de partilhar a comida e a bebida pode revelar-se muito importante, na medida em que constitui uma excelente oportunidade para vencer barreiras e firmar laos de natureza social, antes de mais, mas tambm de cariz poltico e religioso. De resto, as ocasies em que a refeio comum era praticada, em termos gerais, na Grcia da poca Arcaica e Clssica, ajudam a tornar mais clara esta realidade. Salvo algumas notveis excepes (como o orculo de Apolo em Delfos e o culto a Persfone e Demter em Elusis), a religio grega caracterizava-se por no ter uma casta sacerdotal fixa, pelo que as obrigaes religiosas acabavam por recair na esfera de competncia de certos magistrados pblicos. Desta forma, os festivais religiosos assumiam um carcter de Estado, enquanto elucidativo sinal de civismo, onde a refeio em conjunto poderia ocupar um posto importante. Alis, em Atenas, uma das formas de reconhecimento pblico consistia em garantir a determinada pessoa a refeio a expensas da cidade no Pritaneu, na companhia de outros membros ilustres da plis. Na sociedade estratificada e estanque de Esparta, o acto de comer em conjunto (syssitia) constitua uma forma institucionalizada de fortalecer os laos entre os cidados, cuja influncia se sobrepunha ao domnio privado da clula familiar. A vertente de lazer, que acompanhava tambm grande parte desses momentos, acabaria por se traduzir em criaes culturais, que encontravam nesse espao um enquadramento de eleio. Se no quisermos entrar no domnio das provas desportivas, basta pensar em manifestaes artsticas como a msica, a poesia, a retrica

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    e a discusso poltico-filosfica, para vermos plenamente justificadas as implicaes culturais destes eventos.8

    Deixmos para o fim aquele tipo de refeio que interessa mais aos nossos objectivos: o symposion privado. Em teoria, qualquer pessoa com alguns recursos poderia promover uma reunio informal com os amigos; no entanto, os gastos ligados a esta forma de diverso, bem como o tempo que obrigava a despender, fazem com que o banquete seja uma realidade conotada, preferencialmente, com o estilo de vida aristocrtica, realidade que acarreta algumas consequncias dignas de nota. Antes de mais, saliente-se o facto de constituir uma comensalidade inter pares e de, portanto, ser mais fcil promover a igualdade de expresso; depois, a contingncia de ocorrer num espao masculino (andron), aspecto que poderia causar alguma estranheza noutras culturas.9 Isto no implica que as mulheres estivessem ausentes, se bem que a sua assistncia no abonasse muito em favor da respectiva reputao. Na realidade, o symposion podia cumprir tambm a funo de iniciar um jovem a vrios nveis, entre eles a actividade sexual. Da que a relao de pederastia fosse uma presena assdua nestes

    8 No por acaso que, ao longo dos ltimos anos, se intensificaram os estudos relativos ao contexto de apresentao da poesia grega, bem como s caractersticas da audincia que acompanhava a execuo da lrica coral, mondica e elegaca.

    9 Conforme nos d conta Ccero (Verr. 2.1.26.66), ao apresentar as desculpas que um grego do sc. I dava a um oficial romano, interessado em seduzir a filha do anfitrio: no costume dos Gregos permitir que as suas mulheres se reclinem num conuiuium de homens.

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    espaos;10 o mesmo se diga em relao prtica do amor livre, patrocinado por mulheres de moral duvidosa (hetairai), contratadas especificamente para a animao do banquete, juntamente com as flautistas e bailarinas.

    Todos estes factores contribuam para que o symposion constitusse um meio privilegiado para reforar laos de amizade pessoal e ideolgica, traduzidos em lealdade entre os elementos de determinado grupo (hetaireia), que poderiam revelar-se determinantes na altura de solucionar problemas pessoais ou de prosseguir uma carreira poltica. Alis, estes propsitos viam-se facilitados pelo papel que o vinho detinha no banquete e que acabava por ser at mais importante do que a refeio propriamente dita, conforme se deduz do sentido primitivo do prprio termo symposion (beber em conjunto).11 A bebida aproximava os convivas, da mesma forma que o espao relativamente limitado da sala de jantar e o facto de se encontrarem reclinados ajudavam a concentrar as atenes dos comensais. Por isso, era fundamental que o vinho fosse misturado com gua, a fim de permitir o prolongamento da conversa e da diverso, sem que o convvio descambasse em

    10 Tal como acontecia nos ginsios, igualmente assimilados a ocupaes de natureza aristocrtica.

    11 J o latim conuiuium coloca a tnica na partilha do espao (viver em conjunto) e, em consequncia, na ideia de compartir a refeio. Ao comentar a etimologia do termo, Ccero (Cat. M. 13.45) acentua bem essa diferena relativamente aos Gregos. Em Tusc. 5.41.118, ainda mais expressivo, ao referir aquela norma que se observa nos conuiuia gregos: ou se pe a beber ou se pe a andar (aut bibat aut abeat).

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    excessos, colocando em risco a harmonia do encontro.12 Mesmo com estes cuidados, o banquete comportava, por vezes, uma dimenso mais violenta, em particular no seu termo, sobretudo quando resultava do convvio a necessidade de cometer alguma prova que ajudasse a cimentar os laos de lealdade (pistis) entre os companheiros de mesa. Nas vsperas da partida da armada para a Siclia (em 415), Atenas viveria momentos de escndalo e de pavor, com dois sacrilgios que teriam sido perpetrados no contexto do symposion: a mutilao das esttuas de Hermes e a pardia aos Mistrios de Elusis. Embora o excntrico aristocrata Alcibades s parea ter estado envolvido na questo dos Mistrios, as fontes espelham alguma ambiguidade favorvel confuso entre os dois sacrilgios, que poderia ter sido aproveitada pelos inimigos do estadista.13 J os antigos sentiram dificuldades em esclarecer os reais contornos do escndalo, que ficou para a posteridade como exemplo dos perigos do exibicionismo destrutivo, fosse ou no motivado por objectivos polticos de maior alcance.

    12 Beber vinho puro era, alis, uma caracterstica distintiva dos brbaros; por outro lado, a partir da poca Helenstica, a intensificao dos contactos com a Macednia e Roma levou a que a discusso ligada ao ritual da refeio propriamente dita (deipnon) viesse a ser encarada tambm com importncia crescente. Vide Murray (1994) 5-6; Stadter (1999).

    13 Em fontes mais tardias, como Diodoro (13.2.3-4; 5.1), a ligao aos dois sacrilgios encontra-se j bem patente. No entanto, Tucdides (6.27-28.2) distingue os dois crimes, mas deixa entrever (6.28.2) que, aos olhos dos inimigos, Alcibades seria suspeito de estar por detrs tambm da mutilao dos Hermes ou pelo menos de lhe dispensar simpatias. Sobre estes crimes relacionados com prticas de impiedade religiosa (asebeia), vide Leo (2004).

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    Depois destas breves notas relativas ao posto que o banquete ocupava na cultura grega, chegou a altura de regressar a Plato e de procurar entender os motivos que justificaram este pequeno excurso num trabalho em que se pretende reflectir sobre a tradio dos Sete Sbios. Os incios da literatura de banquete podem encontrar-se j na descrio de convvios divinos e humanos, que ocorrem com alguma frequncia em Homero.14 Contudo, ao imaginar o Banquete em casa do jovem poeta trgico gaton, onde vrias personalidades se tinham reunido para discutir os poderes de Eros (destacando-se entre elas a figura de Scrates), Plato havia de tornar-se no primeiro autor a verter o ambiente ritualizado do symposion numa obra literria. Com este passo, fixou o modelo para uma forma de utilizao do dilogo filosfico em contexto de banquete que ser depois retomada por inmeros autores.15

    Ora precisamente neste ponto que a questo volta a encontrar-se com o tema dos sapientes. De facto, entre os textos relativos a esta tradio, aquele que ser porventura mais significativo o Conuiuium Septem Sapientium de Plutarco.16 Que a matriz platnica est na gnese deste opsculo do bigrafo de Queroneia um facto mais do

    14 E.g. Il. 1.595-611; Od. 4.15-19.15 Para os nossos objectivos, no se afigura pertinente discutir se

    o Banquete de Xenofonte ou no anterior ao de Plato, j que, dos dois autores, foi claramente este ltimo que exerceu a influncia mais determinante.

    16 Para uma verso portuguesa, com notas, desta obra de Plutarco, vide Leo (2008a). As reflexes agora feitas sobre os antecedentes da tradio do banquete e sobre as caractersticas que o marcam so, em boa parte, comuns introduo feita traduo daquele opsculo.

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    que conhecido dos estudiosos, pelo que nos dispensamos de retomar esse problema. Menos evidente se afigura, no entanto, a hiptese de existir uma ou vrias obras de permeio, que tivessem explorado j a conjugao do encontro dos Sete Sbios com a realizao de um banquete e servissem, portanto, de modelo a Plutarco. Em si, a ideia revela-se bastante plausvel, mas falta, no entanto, um aspecto fundamental: um exemplo claro e inequvoco de que as coisas se passaram desse modo.17 certo que o texto de Digenes anteriormente comentado (1.40) aponta nessa direco, mas isso no impede liminarmente que o Symposion de Plutarco tenha sido a frmula encontrada pelo autor a fim de conseguir margem de relativa inovao, dentro de uma tradio j muito saturada por tratamentos anlogos.18

    2.1. o Banquete dos sete sBios de plutArco

    Um dos primeiros anacronismos que se pode apontar ao Banquete dos Sete Sbios reside no facto de

    17 Rodrguez Adrados (1994), 139-40, sustenta que o tema original da relao rei/sbio, combinado com o esquema do banquete platnico, foi modificado em ambiente cnico (possivelmente logo a partir do sc. IV) e expandido atravs do contributo de material antiqurio e dos gneros antolgicos helensticos. Seria esta amlgama de contributos que teria influenciado Plutarco; o estudioso vai ainda mais longe e sugere como provvel precedente a modificao do dilogo socrtico por Menipo.

    18 Ainda assim, no prlogo do Conuiuium (146b), Docles, o narrador, prope-se apresentar a verso correcta do symposion, j que circulavam outros relatos sem fundamento. Embora esta afirmao possa constituir um mero expediente narrativo, no improvvel que seja uma aluso a tratamentos anteriores e, de certa maneira, semelhantes ao que Plutarco agora adoptava.

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    Plutarco pressupor a contemporaneidade dos vrios sapientes envolvidos. Pensar que o autor no tinha conscincia do erro est fora de questo, conforme se pode constatar na biografia que fez de Slon, um dos participantes no banquete.19 Se, nesse ponto, o polgrafo defendia o relato do encontro com o soberano ldio em nome do seu peso tico, mais pertinente essa explicao se torna neste caso, j que o encontro dos Sete Sbios representa, em si mesmo, uma irrealidade histrica. Por outro lado, Plutarco est, naturalmente, a seguir uma tradio enraizada havia muito tempo no pensar comum, que o obriga a colocar o dilogo num passado distante.20

    O convite para o encontro foi endereado pelo tirano Periandro, tendo como destinatrios os seguintes sbios: Slon, Tales, Anacrsis, Bias, Cleobulo, Ptaco e Qulon. No entanto, aparecem muitas outras figuras no symposion, inclusive femininas, ajudando a construir a originalidade do opsculo, conforme veremos mais adiante. As outras personagens no gozam todas, porm, do mesmo nvel de interveno de que dispem os sapientes.21 Contudo, no que identidade dos Sete Sbios

    19 Cf. Sol. 27.1. Na seco 3, iremos ponderar com mais cuidado a questo cronolgica, que se colocava, de resto, j para Herdoto, em moldes semelhantes.

    20 Facto que constitui, de resto, uma nota de excepo dentro dos seus escritos; o nico outro caso o De genio Socratis. Cf. Aalders (1977) 28-29 e n. 7.

    21 De facto, so dezassete as personagens, sem contar com Gorgos, irmo de Periandro, que entra na parte final do symposion (160d). Contudo, o facto de algumas das figuras tomarem a palavra de forma tradicional e segundo uma ordem fixa, na primeira parte do dilogo (151e, 154d, 155c), permite identificar quais eram,

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    diz respeito, Plutarco mostra-se bastante prximo do colgio definido por Plato: exclui, como ele, Periandro, mas coloca Anacrsis no lugar de Mson.22 A eliminao de Periandro do ncleo dos sbios justifica-se, pela certa, devido ao facto de ele ser tirano e de o opsculo revelar uma animosidade de fundo em relao a esta forma de governo. Ainda assim, Cleobulo, autocrata de Lindos, continua a figurar entre os sapientes, embora detenha um papel bastante secundrio e a sua presena deva explicar-se, tambm, pela inteno de coloc-lo junto da filha, Cleobulina. Em termos comparativos, Periandro acaba por desempenhar uma funo mais importante, na qualidade de anfitrio, ainda que a sua presena se v desvanecendo, sobretudo a partir do momento em que se comea a fazer o elogio do regime democrtico, a ponto de caber a Slon a honra de fechar o banquete (164c-d). Nesta galeria, o caso de Ptaco igualmente digno de nota, dado que, durante algum tempo, esteve frente dos destinos de Mitilene com plenos poderes. F-lo, porm, na qualidade de soberano eleito pelo povo (aisymnetes) e, depois de ter acalmado o clima de dissenso civil, mostrou, como Slon em Atenas, a prudncia de abandonar o poder, com ele partilhando a fama de legislador.23

    efectivamente, os Sbios. Vide Defradas, Hani & Klaerr (1985) 179-81.

    22 Possivelmente na esteira de foro, j que a lista de Demtrio de Fleron admitia a presena de Periandro; cf. supra Digenes Larcio, 1.41. Noutro ponto (Mor. 385d), Plutarco refere a tradio, relativa s mximas de Delfos, que exclua tanto Periandro como Cleobulo, reduzindo o nmero de sbios a cinco.

    23 De resto, j Herdoto (1.27) e Plato (Prt. 338e-347a; Hp.

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    Em todo o caso, a presena de vrios sbios conotados com regimes autocrticos deve constituir um sinal da antiguidade da tradio que os contava nesse crculo.24 De facto, se certo que, na viragem do sc. VII para o VI, a tirania era um regime existente e at caracterstico da poca, o mesmo no se poder afirmar a respeito da democracia, que s mais tarde daria os primeiros passos. H portanto um anacronismo no debate quando os sbios defendem o governo popular, do tipo daquele que envolveu os nobres persas em consideraes acerca da melhor forma de constituio.25 Desta maneira, a animosidade contra a tirania