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Sessão temática Cidade - 393
CIDADES EM FRONTEIRA:
DISCUSSÃO SOBRE SEUS MÚLTIPLOS SIGNIFICADOS
Heleniza Ávila Campos1
Resumo
O presente artigo visa trazer à discussão o conceito de cidades em realidades
fronteiriças, utilizando como exemplo a realidade sul brasileira, mais especificamente
na fronteira Brasil-Uruguai. Situada na porção sul do Rio Grande do Sul, esta fronteira
apresenta grande permeabilidade de fluxos e tipos de cidades com dinâmicas
socioespaciais muito variadas, remete a possibilidade de reinterpretar o seu significado,
bem como o deslocamento do olhar para este espaço hibrido que é a fronteira. A
abordagem teórica segue as distinções teóricas no campo da Geografia Urbana e
Regional ao tratar das diferenças entre território-zona e território rede.
Introdução
As regiões de fronteira internacional na atualidade tem se convertido em espaços
de múltiplos significados, constituindo suas cidades espaços complexos de
coexistências, conflitos e permanente processo de transformação de suas relações
socioespaciais.
O presente artigo visa trazer à discussão o conceito de cidades em realidades
fronteiriças, utilizando como exemplo a realidade sul brasileira, mais especificamente
na fronteira Brasil-Uruguai. Situada na porção sul do Rio Grande do Sul, esta fronteira
apresenta grande permeabilidade de fluxos, através de eixos viários que cruzam pelo
menos três pontos estratégicos com a rede urbana uruguaia até Montevidéu: as cidades
de Uruguaiana, Santana do Livramento/Rivera e Jaguarão/Rio Branco. Outros centros
1 Doutora em Geografia (UFRJ). Docente e pesquisadora do PROPUR/UFRGS. Pesquisa com apoio
financeiro do Edital CAPES/PRO-DEFESA/2013, na pesquisa intitulada “Transfronteirizações na
América do Sul: Dinâmicas Territoriais, Desenvolvimento Regional, Integração e Defesa nas Fronteiras
Meridional e Setentrional do Brasil”, sob coordenação do Prof. Dr. Aldomar Arnaldo Rückert. Email:
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menos expressivos, mas que representam interrelações comerciais internacionais nesta
fronteira são as cidades gêmeas Aceguá/Acegua, Quaraí/Artigas e Barra do
Quaraí/Bella Unión. A diversidade de tipos de cidades com dinâmicas socioespaciais
muito variadas, remete a possibilidade de reinterpretar o seu significado, deslocando o
olhar para este espaço hibrido que é a fronteira.
Bordas, fronteiras, limites, franjas, são noções geográficas que encaminham a
discussão para duas questões epistemológicas vinculadas ao entendimento dos termos: a
rigidez da fronteira institucionalizada e a flexibilidade das práticas socioespaciais e dos
fluxos (de pessoas, capital, mercadorias), sendo a cidade de fronteira o espaço de
convergências. Dentro desta perspectiva, muitos são os significados que podem ser
atribuídos às cidades nestas regiões fronteiriças.
O artigo está estruturado em duas partes principais, além das considerações finais:
na primeira discute-se os distintos significados de fronteira e a importância da cidade
como componente catalizador de suas potencialidades e conflitos; na segunda parte
apresenta-se como exemplo alguns aspectos da realidade fronteiriça de algumas cidades
estratégicas na fronteira Brasil-Uruguai, com destaque para seus aspectos culturais e
econômicos.
1. Cidades em fronteira: situando sua importância na contemporaneidade
As discussões aqui apresentadas sobre o conceito de fronteira pretendem apenas
situar alguns conteúdos a ele relacionados que podem nortear as reflexões em torno das
complexas realidades que se apresentam nas cidades fronteiras sul brasileiras, mais
especificamente aquelas entre Brasil e Uruguai.
A abordagem teórica aqui apresentada utiliza como base e referência as
contribuições teóricas no campo da Geografia Urbana e Regional ao tratar das
diferenças entre território-zona e território rede, utilizando ao mesmo tempo como
suporte e contraponto a institucionalidade das diferentes formas de fronteira.
Parte-se inicialmente da etimologia da palavra, buscando os entendimentos mais
consolidados pelos processos civilizatórios reconhecidos no mundo ocidental. Do latim
front (frente) ou fronte (fronte, testa), o termo parece evoluir para as línguas latinas,
como o francês (frontiére) e o português, trazendo à reboque de sua origem a concepção
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de conquista e desbravamento do desconhecido, possivelmente associado ao controle da
natureza ainda intocada ou dos espaços ainda inabitados.
A consequente fase posterior do conceito avança a partir da definição e ocupação
dos territórios humanos que estabelecem novas possibilidades de entendimento da ideia
de fronteira. Território implicaria, na sua concepção mais tradicional, à ideia de limites
entre dois ou mais recortes espaciais, suscitando, assim a urgência dos espaços de
controle. A fronteira, identificada por uma linha imaginaria delimitadora entre
“territórios-zona”, ou seja, constituído em um espaço de forma contínua e estável
(HAESBAERT, 2003, p. 20), é uma concepção diretamente associada ao território,
fortalecendo-se de forma muito particular na Modernidade, sobretudo a partir da
constituição dos Estados-Nação no século XVI. Machado (2002, p. 1) ressalta que
Em meados do século XVIII, os tratados de limites entre as principais
potencias européias começam a fazer referência a estudos de
topografia e levantamentos de engenheiros para a demarcação de
limites, mesmo assim sem grande preocupação com a estabilidade das
fronteiras.
A forte contradição presente na dualidade entre “interior” e “exterior”, na
perspectiva do território nacional tem marcado de forma inexorável as ações e
estratégias de definição de espaços fronteiriços, fortalecendo a ideia de controle, seja do
ponto de vista físico, jurídico ou militar destes espaços. A dimensão econômica
encontra das experiências mercantis e pré-capitalistas também ali, em sua origem, o
resguardo de sua hegemonia, mesmo que os interesses envolvidos viabilizem
articulações multinacionais que acabam evoluindo para novas negociações e
mecanismos transfronteiriços para além dos interesses dos Estados Nacionais. Na
definição dos limites do Estado Moderno foi necessária a construção da ideia de
nacionalidade como forma de reconhecimento da identidade e individualidade das
comunidades modernas.
É, no entanto, nos processos recentes de constituição do meio técnico-científico-
informacional, nas palavras de Santos (1996), atrelados a novas relações entre espaço e
sociedade em uma perspectiva de compressão do espaço-tempo, que o conceito de
fronteira ganha novos significados no contexto das complexas e diversas manifestações
socioespaciais vinculadas ao sistema capitalista do pós-guerra. São os territórios-rede,
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descontínuos, móveis e fragmentados (HAESBAERT, 2003; SANTOS, 2006) mais
adequados às complexas relações espaço-temporais que envolvem a sociedade
contemporânea. Segundo Machado (2002, p. 4),
Essa dualidade se fragmenta frente ao reconhecimento da simbiose
entre o sistema interestatal e o sistema de acumulação capitalista, que
recobre relações [de intercâmbio] dinâmicas. (...). Indivíduos,
comunidades, corporações, organizações, redes de solidariedade, redes
de informação, baseados nos interesses mais diversos, constituem hoje
uma teia em escala planetária difícil de ser manipulada ou mesmo
controlada por cada estado.
A fronteira, expostas aos apelos, demandas e interesses dessas complexas relações
da sociedade em rede, torna-se também espaço de múltiplas experiências (lugar do
encontro, confronto e trocas de diversas formas de manifestação social, cultural e
econômica). Os espaços fronteiriços passam a se constituir em lugares privilegiados da
ação do capital global, bem como das iniciativas regionais e locais.
A realidade complexa dos territórios-rede privilegia também um possível
deslocamento do olhar de uma centralidade tradicionalmente vinculada aos espaços de
gestão do território (capitais e metrópoles, quase sempre distantes de áreas fronteiriças,
consideradas assim “marginais” no contexto do território), viabilizando uma leitura da
fronteira como centralidade estratégica da rede urbana em que se insere. Como exemplo
desse redimensionamento dos espaços de fronteira, destaca-se a utilização dos conceitos
de Functional Urban Areas (FUAs) e Morphological Urban Areas (MUAs) na
definição de regiões metropolitanas em áreas de fronteira na União Europeia.
Uma FUA é uma unidade econômica regionalmente caracterizada por centros
densamente habitados e por hinterlândias em que o mercado de trabalho é altamente
integrado aos centros. (ESPON, 2010). Uma FUA consiste de uma ou mais MUAs e
suas áreas de entorno na qual 10% da população ativa viaja diariamente às MUAs.
Os fluxos existentes entre FUAs são em geral relacionados ao mercado de
trabalho e à educação; já os fluxos internos estão vinculados a atributos qualitativos de
proximidade de serviços e equipamentos para atendimento às necessidades e interesses
da comunidade ali residente. Isso ocorre pelo desconcentração existente em
aglomerados urbanos ou regiões metropolitanas motivada pela clara separação entre
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residência e locais de trabalho bem como da residência e instituições de ensino.
(ANTIKAINEN, 2005).
Áreas definidas por viagens de trabalho (travel-to-work area) permitem distinguir
a estrutura interna da região e as características de desenvolvimento dentro das regioes
urbanas funcionais, enquanto o desenvolvimento externo está relacional a níveis inter-
regionais, nacionais e internacionais. A principal vantagem do uso das FUAs é ir além
dos limites institucionalmente estabelecidos pelas municipalidades, identificando
articulações interescalares. A ideia é fortalecer a cooperação intermunicipal a partir de
estratégias funcionais de planejamento referentes a dinâmicas regionais, tais como
racionalização de serviços públicos, por exemplo.
Essa importância relativa da região de fronteira em um contexto específico da
rede urbana demonstra a viabilidade de releituras e ponderações de valores
socioespaciais no processo de planejamento urbano e regional, de acordo com as ações
das verticalidades e horizontalidades (Santos, 2006) com os quais esses territórios
interagem. Verifica-se aqui uma perspectiva de “transfronteirização” (RUCKERT,
2010; RUCKERT & DIETZ, 2013) que se anuncia, embora confrontada com, pelo
menos, três grandes desafios do planejamento urbano e regional na contemporaneidade.
O primeiro desafio diz respeito aos tempos lentos dos processos políticos e legais
a que se vincula o planejamento, diferentemente dos tempos rápidos de transformação
da sociedade capitalista, em particular sob a forte ação do mercado transnacional. O
segundo desafio corresponde ao posicionamento e postura do planejamento frente aos
conflitos que resultam da coexistência das diferentes concepções de fronteiras aqui
expostas. Um terceiro desafio diz respeito ao reconhecimento efetivo da dimensão
simbólica dos territórios (trans) fronteiriços, quase sempre relegados a um discurso
marginal nos processos de planejamento.
De fato, a dimensão cultural é um componente importante na constituição das
fronteiras. Pesavento (2002, p. 36) ressalta a perspectiva cultural das fronteiras, para ela
consideradas sobretudo enquanto “construções de sentido, fazendo parte do jogo social
das representações que estabelece classificações, hierarquias, limites”. Pelo seu caráter
simbólico para as populações locais, as fronteiras passam a se constituir em espaços
híbridos, não mais entendidas como linha divisórias de territórios, mas ela própria um
território usado e articulado a distintos interesses e necessidades da sociedade. Enquanto
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território-rede, a fronteira integra-se a distintos sistemas de fluxos (informações, capital,
pessoas e mercadorias), de acordo com os diversos significados que pode assumir
nesses sistemas.
Seu forte conteúdo simbólico pauta-se no reconhecimento, de um lado, da ideia de
alteridade e da identidade das comunidades e suas características singulares; de outro
lado, da noção de alcance dos macro-interesses mundialmente articulados em rede
global pela ação do capital. Ainda citando Pesavento (2002, p. 36),
... as fronteiras não podem ser apenas encaradas como marcos
divisórios construídos, que representam limites e estabelecem
divisões. (...) Elas também induzem a pensar na passagem, na
comunicação, no diálogo e no intercâmbio. Figurando um transito não
apenas de lugar, mas de situações ou época, assim como de população,
esta dimensão aponta para uma nova reflexão: a de que, pelo contato e
permeabilidade, a fronteira é sobretudo híbrida e mestiça.
Neste contexto de sobreposição de significados e de forte conteúdo simbólico é
que as cidades surgem como componentes estratégicos das regiões de fronteira. As
cidades são a materialidade (sistemas de objetos) das atividades e funções (sistemas de
ações) que constituem os espaços urbanos. Nas cidades encontra-se a singularidade das
relações entre sociedade e natureza, aparecendo como representação e ponto estratégico
da rede urbana em que se encontra inserida.
Santos (1959) já destacava a importância das cidades em seus contextos regionais,
mas é na contemporaneidade que essa função estratégica na rede urbana ganha mais
força. As cidades de fronteira constituem-se em espaços heterogêneos e complexos que
assumem as características e funções particulares de intermediação não apenas na rede
urbana nacional, mas em realidade bi ou multinacional. Ao tratar dos efeitos da
globalização na organização, funcionamento e imagem das cidades contemporâneas,
Carlos Mattos (2002) destaca que
existe evidencia acerca de que en virtud de estos procesos cada ciudad
se transforma, pero preservando muchos de los rasgos establecidos y
consolidados a lo largo de su historia, que son los que la distinguen de
otras ciudades de su mismo ámbito geográfico.
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A cidade aparece nesta realidade como catalisador de potencialidades e conflitos
existentes em suas regiões e, na fronteira, não é diferente. As características de
flexibilidade e justaposição de funções e atividades conferem a estes espaços, sobretudo
aqueles que se localizam em condições estratégicas na rede urbana como espaços
fractais, para usar os termos de Soja (1993) e citados por Mattos (2002) como
representação de um mosaico social urbano em permanente reestruturação, com padrões
muito mais complexos de organização de seus espaços, em uma condição social
fragmentada, multiforme e difusa.
Ao mesmo tempo, essas cidades preservam características das relações
tradicionais de padrões de vigilância e punição, na perspectiva de Foucault (1997), seja
de forma direta ou indireta, de aspectos da vida cotidiana e de seus fluxos. Migrações e
outras formas de mobilidade social ou espacial, intra ou interurbana, colocam as cidades
fronteiriças ao mesmo tempo como espaços de transição e passagem de grandes fluxos
espaços de controle e gestão.
Na fronteira da região sul brasileira a concepção de território-zona é tanto ou mais
presente do que as manifestações contemporâneas do capital globalizado, associado à
imagem dos territórios-rede. Se existem regulamentações e condições legais de uso e
ocupação do território, aparecem também formas peculiares de lidar com as
particularidades culturais e econômicas do dia-a-dia, criando atalhos ou regras
alternativas ao institucionalmente imposto. No item a seguir serão apresentados alguns
exemplos de cidades na fronteira sul brasileira.
2. As cidades na região de fronteira Brasil-Uruguai
A região utilizada aqui como exemplo das discussões realizadas anteriormente
situa-se na Bacia do Prata, o que lhe confere algumas características culturais e
territoriais historicamente construídas. Rückert e Dietz (2013) destacam que essa é uma
região ainda pouco compreendida devido em grande parte a sua dinâmica de
transformação, principalmente ao longo do século XX, e de suas especificidades
produtivas e físico-naturais. Nesta bacia hidrográfica encontra-se a área de estudo desta
pesquisa. – gaúchos como cultura articularadora entre os países fronteiriços.
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No contexto da Bacia do Prata, a rede urbana da Região Sul Brasileira caracteriza-
se por 20 regiões metropolitanas (oito no Paraná, dez em Santa Catarina e duas no Rio
Grande do Sul), além de diversos aglomerados urbanos. De fato, verifica-se a grande
concentração de pequenos e médios centros urbanos a oeste, onde se concentram muitas
agroindústrias, algumas com investimento de capital transnacional. Destacam-se nessa
rede as duas grandes metrópoles – Curitiba (PR) e Porto Alegre (RS), ambas não
litorâneas – com fortes conexões a diversos centros regionais e sub-regionais
distribuídos de forma esparsa pelo território.
O Rio Grande do Sul se destaca pela diversidade e extensão de seus limites
fronteiriços internacionais, contendo em sua faixa de fronteira grande percentual da
população do Estado. A população total compreendida nesse recorte espacial do Estado
é de 4.783.236 habitantes, ou seja, quase a metade da população do Rio Grande do Sul,
que é de 10.693.929 habitantes (IBGE, 2010). Do total das 197 cidades localizadas
dentro da faixa de fronteira, apenas 18 contém população acima de 20.000 habitantes,
contabilizando um percentual de 730.205 habitantes.
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Figura 1: Cidades gêmeas na fronteira Brasil-Uruguai.
Observa-se, assim, a grande presença de pequenas cidades que compõem essa
rede urbana fronteiriça, que se distribuem no território de forma mais concentrada na
porção noroeste e de forma mais esparsa na metade sul do Estado. O Rio Grande do Sul
contém grande parte de seu território em faixa de fronteira, visto que é o único estado
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que possui as limites a noroeste e a sudoeste voltados à fronteira internacional. A sua
condição fronteiriça ao sul com o Uruguai e à oeste com a Argentina, estabelece apenas
uma fronteira interestadual no território nacional – com Santa Catarina.
A ocupação da região da fronteira sul brasileira possui uma longa história de
disputa. O Planalto do sul brasileiro sempre se constituiu em um dos componentes
físicos facilitadores da articulação entre as cidades que participaram dessas histórias,
integrando os três estados dentro da faixa de fronteira.
Segundo Braga (2013), na porção norte do Estado da fronteira gaúcha foi
constituída a primeira rede urbana, na região conhecida pela ocupação das antigas
Missões Jesuíticas. Estas terras, bem como seus recursos naturais foram posteriormente
partilhados entre as Coroas Portuguesa e Espanhola, no território referente às atuais
fronteiras entre Brasil, Paraguai e Argentina. Já a região da Campanha, ou dos Pampas,
surge como extensão da ocupação portuguesa no sul do Estado e no interior da Bacia do
Prata. Para Russel-Wood (1999 apud BRAGA, 2013) a Campanha é classificada como
sertão e se constitui em espaço ambíguo em termos de territorialidades.
Tomando a noção de fronteira como metáfora, o autor diz que o sertão
representa uma zona de interação entre diferentes culturas – indígena,
negra e branca – da qual emerge uma territorialidade específica,
produzida pelos que viviam para lá da jurisdição civil ou eclesiástica,
caracterizado pela continuidade infinita, sem princípio nem fim, de
ocupação descontínua, refúgio e oportunidades para rejeitados ou que
rejeitavam a sociedade colonial (bandeirantes, tropeiros, gaúchos,
etc.). (BRAGA, 2013, p. 295-296).
A territorialidade de fronteira historicamente constituída em torno da figura do
gaúcho e nos diferentes tipos de conflito acaba por condicionar as populações
envolvidas em a uma relação cultural muito própria dessa região, influenciando desde o
vocabulário, alimentação e outros aspectos dos modos de vida pertinentes à região.
(GOETTERT, 2013).
Já do ponto de vista dos investimentos econômicos, na fronteira sul do RS com o
Uruguai há três pontos estratégicos de conexão entre a rede urbana uruguaia e brasileira:
as cidades de Uruguaiana, Santana do Livramento/Rivera e Jaguarão/Rio Branco. As
conexões estabelecidas entre estes três centros urbanos com a rede em que se inserem
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justifica a presença de infraestrutura e equipamentos importantes tanto do ponto de vista
do controle de circulação de mercadorias (aduanas e unidades de atendimento da
Receita Federal e Receita Estadual), como do controle de circulação de pessoas e
veículos (polícia Federal).
Outros centros menos expressivos, mas que representam interrelações
internacionais nesta fronteira são as cidades gêmeas Aceguá/Acegua, Quaraí/Artigas e
Barra do Quaraí/Bella Unión. Essas cidades, assim como outras gêmeas nesta fronteira,
possuem free shops que variam de intensidade de uso segundo sua posição e conexão
com outros centros. Estes centros comerciais são, no entanto, espaços com potencial de
expansão dessas atividades comerciais e de investimentos das maquiladoras, ou seja,
empresas estrangeiras ou multinacionais que comercializam produtos em regiões de
fronteiras com preços distintos de suas matrizes estrangeiras, em razão de acordo com
os países em que se instalam para redução de impostos de suas mercadorias.
Paralelamente, destaca-se o comércio informal que se agrega a essa realidade.
Moura Filho (2010) apresenta uma importante reflexão acerca da coexistência e
complementariedade existentes nos dois sistemas de produção e consumo, denominados
por Milton Santos como circuitos superior e inferior da economia urbana, em cidades
gêmeas da fronteira Brasil e Uruguai. A relação de troca entre esses dois circuitos
ocorre através da ocupação do território, atendendo a públicos distintos, segundo sua
capacidade de investimento e consumo. Moura Filho (2010) destaca que há uma certa
flexibilidade do movimento desse comércio informal, de acordo com interesses de
custo/benefício que implica em melhores resultados de preços para esses comerciantes,
concentrando-se em ora em um, ora em outro da fronteira. Essa flexibilidade, própria da
informalidade, adapta-se perfeitamente aos padrões de fronteira existente naquela região
e acaba por se ajustar aos padrões socioespaciais das cidades gêmeas em que se
encontram. É o caso de Santana do Livramento/Rivera e Aceguá/Acegua.
Esses elementos, agregados a outros aspectos das condições geográficas da
fronteira Brasil-Uruguai possibilitam refletir sobre as complexas relações existentes em
cidades fronteiriças. Os interesses externos que se manifestam no dois circuitos da
economia urbana inspiram outras práticas cotidianas locais, vinculadas ao lazer local,
sobretudo em cidades que já desenvolvem estas atividades há mais tempo como Santana
do Livramento/Rivera e Chuí/Chy, por exemplo, ainda pouco exploradas em estudos
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acadêmicos. Cidades com alto potencial polarizador e gestão de controle de fluxos,
como Uruguaiana, tendem a assumir cada vez mais um papel estratégico não apenas em
relação à rede urbana brasileira, mas com a microrregião na tríplice fronteira em que se
insere (Brasil/Argentina/Uruguai). Esses são aspectos que podem revelar muito de
potencialidades e conflitos destas realidades.
3. Considerações finais
Neste artigo foram discutidos os múltiplos significados atribuídos às cidades
localizadas em regiões de fronteira, cujo papel tem assumido diferentes características
ao longo do tempo. Partindo do conceito de fronteira enquanto espaço de
desbravamento do desconhecido e de ocupação de novos territórios, o conceito se
transformou, sobretudo a partir do século XVI, para ideia de limite e vigilância
vinculada à perspectiva do Estado-Nação. Destaca-se que, deste sentido mais dual
vinculado ao controle de movimento entre o interior e o exterior do território nacional,
a fronteira se expande para uma ideia mais complexa e de múltiplos significados,
configurando-se as cidades ali presentes nos componentes estratégicos de integração às
redes em que se inserem.
Utilizou-se ainda como exemplos mais específicos para ilustrar esses aspectos a
realidade da fronteira do Sul Brasileiro, cujas cidades são elementos importantes na sua
articulação às dinâmicas socioespaciais da região fronteiriça.
O reconhecimento da importância dos distintos significados do território pode
adquirir relevância no âmbito das políticas públicas e do planejamento urbano e
regional, sobretudo no que se refere à compreensão de fenômenos socioespaciais nessas
regiões tão complexas e com lógicas muito particulares.
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