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CIDADES (RES) SENTIDAS: HISTÓRIA, CIDADE E SENSIBILIDADES NA FICÇÃO DE O. G. RÊGO DE CARVALHO
Pedro Pio Fontineles FilhoUniversidade Estadual do Piauí – UESPI/CCM
Resumo: o presente estudo analisa as inter-relações entre cidade e literatura, notadamente no que se refere aos deslocamentos espaciais dos personagens da obra do literato piauiense O. G. Rêgo de Carvalho e o despertar ou intensificação de sensibilidades, sobretudo os sentimentos de solidão, amor, morte e loucura. Metodologicamente o trabalho se debruça sobre reflexões a partir de Ulisses Entre o Amor e a Morte, Rio Subterrâneo e Somos Todos Inocentes, como suas principais obras. Além disso, jornais e mensagens governamentais referentes aos períodos de ambientação da narrativa das obras, especialmente as décadas de 1940 e 1950, que expressão as memórias do literato em sua infância e juventude, foram utilizados como confronto das imagens sobre Teresina e Oeiras. Como arcabouço teórico, foi feito diálogo com autores como Rezende (2008), Decca (2000), Sevcenko (1999) e Williams (1999), para as discussões acerca das interfaces entre história e literatura. Autores como Rolnik (1995), Raminelli (1997), Berman (1986) e Castells (2009) foram fulcrais para as discussões sobre cidade e as maneiras de subjetivação dos espaços. A obra de O. G. Rêgo (re) cria imagens das cidades de Teresina e Oeiras, por meio das noções de pertencimento aos lugares, cujos sentimentos denotam as relações imateriais da cidade.
Palavras-chave: História. Literatura. Sensibilidades.
1. Introdução
O fenômeno da migração, ou de qualquer tipo de deslocamento humano nos
espaços urbanos, torna os sujeitos “todos inocentes” frente às mudanças. Tal inocência é
fomentada pela dicotomia “entre o Amor e Morte”, pautada pela solidão, pela angústia e
pela expectativa. Esses sentimentos povoam o “Rio Subterrâneo” dos indivíduos que se
vêem desamparados quando da mudança de seu lugar, de sua cidade. Todas essas formas
de sentir estão expressas nas três obras principais, ou pelo menos as mais conhecidas1, do
escritor piauiense O. G. Rêgo de Carvalho2, que imprime em seus personagens ora o
encantamento pelo novo, ora o estranhamento com os novos espaços ou com as novas
condutas de um mesmo espaço. As experiências nas cidades, por esse diapasão, desperta
um vasto leque de percepções, fazendo surgir vários e diferenciados sentimentos. A
1 As referidas obras são a novela Ulisses entre o Amor e a Morte (1953); o romance Rio Subterrâneo (1967); e o romance Somos Todos Inocentes (1971).2 Orlando Geraldo Rêgo de Carvalho nasceu em Oeiras no Piauí, no dia 25 de janeiro de 1930. Bacharel em Direito, professor e funcionário aposentado do Banco do Brasil, O. G. Rego integrou o Grupo Meridiano e pertence à Geração 45. Juntamente com o poeta H. Dobal e o crítico M. Paulo Nunes, lançou em 1949 a revista "Caderno de Letras Meridiano", um marco dentro do Modernismo Piauiense. É ocupante da cadeira número 6 da Academia Piauiense de Letras. Atualmente, reside em Teresina.
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presente pesquisa tem o objetivo principal de analisar as representações construídas sobre
os deslocamentos da cidade de Oeiras a Teresina, a partir do olhar dos escritos de O. G.
Rego de Carvalho, que deixara transparecer as sociabilidades e sensibilidades de seu tempo
e dos personagens no intervalo entre as décadas de 1940 e 1950, período que abarca os
anos de ambientação narrativa das obras aqui pretendidas, sem perder de vista o lugar
social e o tempo de onde fala o próprio escritor.
Nesse sentido, além de analisar os sentimentos em suas relações com os
deslocamentos espaciais na obra de O. G. R ego de Carvalho, é pertinente que se faça
interlocução com a configuração histórica do período no qual as obras foram ambientadas.
Por esse viés, a década de 1940 era marcada, tanto em esfera local quanto nacional e
internacional, pelos efeitos da guerra mundial e pela expectativa de seu fim, bem como
pelas políticas do governo getulista e de interventores no Piauí. O interventor Leônidas de
Castro Melo, ao falar do seu governo do ano de 1942, em relatório ao presidente Getúlio
Vargas, faz várias queixas em relação à economia do estado que estava em crise. Ele
justifica que tal crise teria como principal fator a guerra que prejudicou as exportações de
cera de carnaúba que era a atividade que segurava a economia do estado, mas que isso não
impedia os esforços para o atendimento eficaz às cidades, sobretudo à capital.
2. Objetivos da Pesquisa
Por esse prisma, para o norteamento das discussões, os objetivos da pesquisa
foram: Como objetivo geral: compreender as interconexões entre Cidade, Cultura e
Sensibilidades na obra de O. G. Rego de Carvalho. Como Objetivos Específicos: Discutir
os sentimentos de solidão, amor e loucura e sua relação com os deslocamentos dos espaços
na obra de O. G. Rego de Carvalho; Refletir sobre as ressonâncias do fenômeno da
migração no cotidiano e nas formas de sentir os espaços a partir da literatura produzida
pelo autor piauiense; Inferir sobre as experiências de espacialidades e temporalidades na
obra de O. G. Rego de Carvalho; Analisar os conflitos emocionais dos personagens da obra
de O. G. Rego impulsionados pelas mudanças de espaços.
3. Metodologia da Pesquisa
A construção da pesquisa histórica, conforme ensina March Bloch (1976), deve
pautar-se na fricção entre teoria e empiria, mas tal aproximação só é possível e com
resultados satisfatórios quando se aplica as metodologias apropriadas. A metodologia
também contribui para que sejam lançadas as perguntas adequadas às fontes, pois as fontes
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somente respondem conforme as questões que sobre elas são lançadas. As mensagens
governamentais, Códigos de postura, os jornais piauienses como O Dia, O Piauí, Estado
do Piauí e Jornal do Piauí, que já estão, em sua maioria já catalogados, e revistas da época
que expressam as ressonâncias das transformações nas sociedades teresinense e oeirense,
constituindo o universo das fontes desta pesquisa. Obras de historiadores também são
elencadas nessa pesquisa, como Pedro Vilarinho Castelo Branco (1996), Teresinha Queiroz
(1998) e Áurea da Paz Pinheiro (2001), que discutem as relações da modernização de
Teresina e suas relações com as demais cidades piauiense nas primeiras décadas do século
XX. Além de Francisco Alcides do Nascimento (2002) que também elege como estudo a
cidade de Teresina, mas em temporalidade mais extensa e com outro foco de
problematização. Além dessa obra, o livro organizado por Kenard Kruel (2007), que reúne
mais de cinqüenta críticas sobre a obra de O. G. Rêgo de Carvalho e editadas em jornais do
Piauí e de outros estados, bem como nove entrevistas transcritas, que foram concedidas
pelo literato piauiense, também é de fulcral importância para o encaminhamento das
análises de sua escrita. Em suas entrevistas podem ser visualizadas as intencionalidades do
autor ao escrever seus textos e pode-se perceber os confrontos entre sua escrita e as
interpretações, ou melhor dizendo, as relações de poder por meio do consumo e da
apropriação de sua obra. É possível, também, compreender as influências literárias de
outros autores em sua narrativa, como é o caso de sua identificação com alguns literatos
cearenses3.
A cidade de Teresina da década de 1950 vai ser “retratada” pelo olhar da literatura
da época, da qual se destacam as obras de H. Dobal, Roteiro Sentimental e pitoresco de
Teresina (1952), de A. Tito Filho, Teresina, meu amor (1974). Essas obras e de outros
autores contribuem para o confronto de olhares acerca da cidade de Teresina, em grande
medida (re) criada e idealizada na produção literária de O.G. Rego de Carvalho,
especialmente em Ulisses entre o amor e a morte (1953) e em Rio Subterrâneo (1967), que
falam da cidade de sua juventude e experiências de fins da década de 1940 e princípios da
década de 1950, endossando o manancial de fontes da presente pesquisa. Esses autores
constituirão um elo de diálogo e contraponto de informações sobre a cidade “ímã” de
Teresina pintada na escrita de O. G. Rêgo de Carvalho. Soma-se a esse arcabouço das
3 Em entrevista a Edmilson Caminha Jr., que compõe o livro de Kenard Kruel (2007), O. G. Rêgo de Carvalho fala que, na década de 1980 vários autores cearenses são de grande peso literário. Contudo, ele dá maior relevância a Caio Porfírio, cujos contos O Casarão e Chuva se assemelham com as temáticas introspectivas apresentadas em Rio Subterrâneo.
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fontes literárias o livro Somos Todos Inocentes (1971), que mesmo tendo seu enredo
ambientado no ano de 1929 ainda expressa as memórias de O. G. Rêgo de Carvalho em sua
juventude em Oeiras e em Teresina, visto que o autor nasceu em 1930 e aos doze anos de
idade muda para Teresina. Dessa maneira, o discurso literário atua como interlocutor entre
os demais discursos, sejam eles oficiais ou ligados à imprensa. Além disso, fotografias da
cidade também contribuem para a visualização da vida em Teresina e em Oeiras,
notadamente dos espaços mencionados nas obras, como a Rua da Glória, a Praça do Liceu,
o cais do Rio Parnaíba, o cinema Olympia, o Theatro 4 de Setembro, a Praça Pedro II(em
Teresina) e o Mercado Público, o Morro do Rosário, a Igreja do Rosário, o riacho da
Mocha e os Sobrados (em Oeiras).
4. Resultados Obtidos
4.1 Nas trilhas de uma escrita: literatura e configuração histórica
A década de 1950, período da publicação de Ulisses Entre o Amor e Morte, foi
marcada pelos discursos e ações do desenvolvimento e do progresso, o que promoveu uma
série de transformações na vida política, econômica e sociocultural das cidades brasileiras
e Teresina também presenciou esse turbilhão de acontecimentos, que ressoariam direta ou
indiretamente no cotidiano e nos costumes da população. É na década de 1950 que a
modernização, pelo menos no nível dos discursos modernizadores, se processa mais
intensamente, pois Teresina, nesse momento, também busca se organizar para seu
centenário. Isso se dá por conta de um projeto organizado a âmbito nacional de
melhoramento das cidades de todo o Brasil conhecido como “50 anos em 5”, esse período
ficou mais conhecido como “Os anos dourados”, mais associado pela mídia como época
de glamour e de jovialidade. Essa esfera de juventude, inexperiências e desejos, bem como
medos e frustrações está nitidamente expressa em Ulisses Entre o Amor e a Morte, livro
publicado em 1953. Tanto Ulisses Entre o Amor e a Morte como Rio Subterrâneo são
textos propositalmente ambientados na Teresina das décadas de 1940 e 1950, pois, como
admite o próprio autor, apresentam trechos de suas lembranças da cidade quando da sua
juventude. Ele admite isso na ocasião em que ele recebeu o título de cidadão teresinense,
no dia 16 de dezembro de 1994, dizendo:
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Quantas saudades eu tenho da Teresina de minha infância e de minha adolescência. Quantas recordações agradáveis trago no peito da modesta cidade de 1940 e 1950, quando só havia três ou quatro automóveis por estas ruas, e não o inferninho do trânsito de hoje. Para poder crescer, Teresina desfigurou-se, perdeu as características de cidade provinciana, com seu pequeno aeroporto e hidroaviões que desciam em pleno Rio Parnaíba, onde está agora o cais de pedra e cimento (CARVALHO, 1994, p. 204).
Essa conexão entre o autor e seus personagens é reforçada por ele mesmo, quando
diz, em uma das entrevistas organizadas por Kenard Kruel (2007), que “todos os meus
personagens são projeção de mim mesmo e muita fantasia” (CARVALHO apud KRUEL,
2007, p. 309). A cidade de Teresina, que ele mesmo chamou de “Cidade Eleita”, foi a
cidade pela qual ele se encantou e que o abraçou desde os primeiros momentos de sua
chegada. É essa cidade que o acolhe, mas que é cheia de mistérios, descobertas e
frustrações na juventude, que o autor apresenta em sua obra. É com essa cidade com a qual
se identifica e se sente muito mais pertencente, pois a Teresina de sua fase adulta, como ele
mesmo afirma, está se desfigurando. A Teresina da década de 1940 era um atrativo,
principalmente para os jovens que buscavam melhores oportunidades de estudos e
emprego. Além disso, a capital se configurava como a manifestação contrária, para muitos,
aos ares rurais e atrasados das demais cidades piauienses. Naquele momento é que
Joaquim Ribeiro Magalhães como centenas de jovens de outras cidades do Piauí e maranhão, pisou pela primeira vez, em solo da chapada do corisco” em 1945. Veio para continuar os estudos. Tinha 19 anos de idade. Não impressionou: “... chegando foi que eu vi: uma cidade pequena com poucas ruas calçadas. A maneira que o caboclo de minha terra se conduzia se conduzia o caboclo de Teresina (NASCIMENTO,2002, p.125).
O imaginário do jovem, que morava no interior, sobre a capital teresinense era de
uma cidade bem estruturada, com habitantes que possuem hábitos sofisticados. Mas ao
chegar percebe-se uma realidade totalmente diferente, quer dizer, não há tanta diferença
entre uma cidade do interior e uma da capital, ocorre então uma desilusão. Para alguns,
como demonstra o velho que conversa com Lucínio em Rio Subterrâneo, “a gente sai de
casa só para sofrer. É sempre assim...” (CARVALHO, 1995, p. 13). No entanto, a
juventude é vista, nas narrativas de O. G. Rêgo de Carvalho como uma experiência cujas
desilusões podem ser superadas mais facilmente. É o que diz D. Odete em Somos Todos
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Inocentes, pois, para ela, “como é bom ser jovem! – refletiu. A dor fere menos”
(CARVALHO, 2003, p. 105).
A partir dessas considerações iniciais é que surgiu o principal questionamento da
presente pesquisa: Como a obra de O. G. Rêgo de Carvalho expressa as relações entre
História e Cidade, sobretudo no que tange aos deslocamentos espaciais como despertadores
ou intensificadores de sentimentos e sensibilidades? Além dessa problemática inicial,
outras questões norteadoras podem ser elencadas: Quais as relações sócio-históricas entre
as cidades de Teresina e Oeiras na constituição da narrativa do literato piauiense? Em que
medida os sentimentos de solidão, morte e loucura estão em consonância com as noções de
pertencimento e identidade com os espaços em sua obra? Como a narrativa literária de O.
G. Rêgo (re) constrói as cidades de Teresina e de Oeiras? Quais as inter-relações entre as
cidades narradas por O. G. Rêgo de Carvalho e os discursos de jornais e mensagens
governamentais sobre a cidade, especificamente sobre o desenvolvimento e modernização
da capital, Teresina, narrada entre um misto de atração e desconfiança? Tais
questionamentos permitiram o melhor direcionamento para o alcance das propostas e dos
objetivos aqui delineados.
Por esse viés, a literatura contribui para a visualização dos sentimentos acerca das
mudanças na cidade e a migração de uma cidade a outra. Por meio da literatura pode-se
perceber uma cidade que “esconde” várias outras cidades, as cidades subterrâneas do autor
e de seus personagens. A cidade das festividades, da euforia, da esperança e das
transformações convive com a cidade das tradições, dos costumes e da fé. Essa existência
de cidades plurais no interior de uma mesma cidade se dá em função de múltiplos olhares
sobre o espaço.
Vale ressaltar que, em meio a esse frenesi de cidades que se apresentam a partir de
uma mesma, a memória situada no tempo e no espaço faz com que as lembranças do
indivíduo estejam muito mais atreladas a determinadas experiências de sua vida e seus
valores. Isso explica o caráter da memória individual, ou melhor, autobiográfica dos
literatos, pois tal memória “[...] não está inteiramente isolada e fechada. Para evocar seu
próprio passado, em geral a pessoa precisa recorrer às lembranças de outras, e se transporta
a pontos de referências que existem fora de si, determinados pela sociedade”
(HALBWACKS, 2006, p. 72). As maneiras pelas quais a cidade é representada e sua
relação na constituição de memórias transcende uma temporalidade fixada. Tal memória,
mesmo que disfarçada de narrativa literária, aparece de maneira marcante na escrita de O.
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G. Rêgo de Carvalho, sendo que sua escrita não expressa somente a sua memória das
cidades de Teresina e Oeiras, mas também se constitui como memória desses mesmos
espaços cujas sensibilidades de outrora já não são mais as mesmas. As reminiscências da
memória se configuram nas interfaces entre a lembrança e o esquecimento, o que, em Rio
Subterrâneo, faz com que Lucínio tenha lapsos de memória ao tentar lembrar de Oeiras,
pois, respondendo a sua mãe, ele diz: “Aliás, a única recordação que guardo de minha
permanência em Oeiras é do sobrado em que vivi uns tempos. Quantas semanas foram
mesmo?” (CARVALHO, 1995, p. 22-23). O seu distanciamento com a cidade natal e falta
de memória são enfatizados por O. G. Rêgo de Carvalho quando diz que “só Lucínio não
tem nenhuma: é um jovem sem infância, sem raízes, sem nada” (CARVALHO, 1995, p.
25). A literatura, dessa forma, assume um papel importante tanto na perpetuação da
memória quanto na sua própria constituição. Nesse sentido, a cidade de Teresina e de
Oeiras são aqui apreendidas pelo olhar do literato em diferentes momentos históricos, no
intuito de perceber as permanências e transformações nas formas de ver e experimentar os
espaços citadinos, bem como a memória se constituindo em decorrência da própria
dinamicidade da cidade.
A cidade apresenta-se como espaço de construção de memórias, significados e
funções, nas inter-relações entre o material e o imaterial, denotando as mais variadas
formas e dimensões de relações de poder. Como destaca Roger Chartier (2002), as disputas
e as relações podem, ainda, ser percebidas nas esferas de produção e de consumo de um
livro. Tal fato está representado pela época, por exemplo, em que Ulisses entre o Amor e a
Morte foi publicado, pois os críticos literários diziam que o livro fugia das perspectivas
regionalistas que se esperavam da escrita nordestina, visto que a temática do livro era de
introspecção e não de determinismos geográficos. Espera-se que as discussões acerca das
narrativas sobre as cidades de Teresina e de Oeiras nas décadas de 1940 e 1950, a partir da
escrita de O. G. Rêgo de Carvalhono permitam o despertar de novas reflexões em relação
aos espaços, bem como o conhecimento e compreensão dos condicionantes políticos,
econômicos e socioculturais que povoaram o imaginário nacional e local. Pretende-se
contribuir para ampliar a (re) escrita da história da cidade, visto que a escrita da história é
marcada, dentre outros aspectos, pela prática constante do historiador em revisitar o
passado e repensar seus significados. Busca-se, ainda, despertar a consciência de que
discursos progressistas estão historicamente pautados em ações e projetos de modernização
e de modificação dos espaços, com vinculações com a esfera política, pois, conforme as
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novas perspectivas da história política, como ressaltam René Remónd (1996) e Jacques
Juliard (1974), a vivência coletiva está imersa nos aspectos econômicos, culturais e
imagéticos da cidade, condicionando as próprias relações do meio social. Além disso, as
experiências de um dado momento ressoam no tempo e deixam suas marcas em
temporalidades e espacialidades futuras, o que pode ser apreendido na narrativa literária.
Por esse viés, a identificação dos múltiplos discursos de diferentes grupos sociais,
possibilita a visualização dos sentidos e desejos atribuídos à modernidade em Teresina nas
décadas de 1940 e 1950 que atraía muitos indivíduos de outras cidades piauienses, como é
o caso dos personagens apresentados por O. G. Rêgo de Carvalho. A modernização como
fenômeno que se relaciona à cidade faz com esta seja pensada como “[...] um conjunto de
lugares apropriados e produzidos pelos grupos sociais experimentando tempos e ritmos
diferentes” (CARLOS, 2002, p. 99). Assim, é que um conceito que também norteia este
estudo é o de espacialidade, pois permite perceber como os diversos grupos se apropriam e
reproduzem os espaços, dando-lhes novos sentidos e significações. Teresina tornou-se o
palco dos olhares dos governantes, comerciantes, artistas, literatos e jornalistas, que (re)
criavam a cidade diante de suas experiências e dos conflitos oriundos do choque entre as
tradições e as inovações.
A Teresina daquele momento era a cidade das lavadeiras na beira do rio, das
movimentações das praças e dos namoros de que fala A. Tito Filho (1974). Ele, dentre
outros aspectos, também olha a Teresina daquela época como a cidade da jovialidade, das
meninices e da sensualidade, pois lembra que “No final do parque da Bandeira – o
Parnaíba – o velho monge de barbas brancas – como cantou Da Costa e Silva. Rio de água
boa. Junto às suas margens, a gente ainda vê, como no outro rio, o Poti, as lavadeiras
batendo roupa. Algumas de seios à mostra. Outras quase nuinhas como nasceram” (TITO
FILHO, 1994, p. 48). É também a cidade das ruas elegantes, bem arborizadas e de pessoas
amigáveis, como fala O. G. Rêgo de Carvalho (1994), pois, para ele, a cidade era um lugar
de “ruas alegres, espaçosas e arborizadas, retilíneas” (CARVALHO, 1994, p. 203). É a
mesma cidade que vivia com suas ruas da prática da prostituição, dos pedintes e de pessoas
que permaneciam excluídas das ações progressistas do ambiente desenvolvimentista
daquele momento. Discutir a cidade de Teresina das décadas de 1940 e 1950 é buscar
compreender as imagens e discursos que se construíram acerca da cidade e de seus
costumes e práticas, como, nos dizeres de Raquel Rolnik (1995), uma constante escrita e
plural.
10
4.2 A cidade (re) lembrada: memória e juventude
A relação de O. G. Rêgo de Carvalho com a cidade de Teresina é algo marcante
não somente na sua obra, mas em sua própria história, pois assim como no saber histórico,
o literato também é filho de seu e de seu espaço, deixando transparecer suas vivências e
experiências. Isso pode ser notado quando O. G. Rêgo de Carvalho diz:
Receio que, com o passar dos anos, meus livros, eminentemente introspectivos, venham a ser considerados romances de costumes. Pois é um dos costumes de Teresina que eu evoco no final de Ulisses..., quando descrevo a vida noturna desta cidade, circunscrita, na minha adolescência, ao passeio circular da Praça Pedro II, onde rapazes e moças se entrecruzam, à espera de cinema, de puro prazer ou para namorar.Em Rio Subterrâneo descrevo ainda a Praça do Liceu tal como era por volta de 1950, então um largo cheio de pedras abruptas, mais tarde demolidas a explosão de dinamite, para que a Rua Coelho Neto, extensão da Simplício Mendes, pudesse ser calçada ali e a praça, então nua, fosse plantada de árvores já crescidas (CARVALHO, 1994, p. 203-204).
Além desses aspectos memorialísticos e sentimentais, enfatizando o
enquadramento o presente projeto na linha de Pesquisa Cultura e Poder, a escrita de O. G.
Rêgo de Carvalho, em suas três principais obras, demonstra uma relação de poder que se
constitui entre Teresina e Oeiras desde a transferência da capital, quando, em 1852, Oeiras
deixa de ser capital e Teresina se torna o centro político-administrativo do Piauí. Desde
então, Teresina se tornou o ponto central para os olhares do poder público e se configurou
como a vitrine do estado para todas as políticas públicas, o que tornou a capital, como
destaca Rolnik (2000), um “ímã” que atrai a atenção de outras cidades piauienses. É
necessário destacar que as relações de poder, que podem ser visualizadas na narrativa
literária de O. G. Rêgo de Carvalho vão além das dimensões político-administrativas, pois
nos discursos que imprimem, notadamente, os caracteres de práticas de loucura e solidão,
denotam os poderes em micro-dimensões que significam o “outro” como louco ou são.
Nesse sentido, a loucura faz parte dos discursos que intentam localizar, e até
mesmo neutralizar, os indivíduos em seus espaços de atuação. Essa dimensão introspectiva
da loucura e da solidão assume, na narrativa do literato piauiense, os sentidos de
identificação e pertencimento com os espaços. Em Rio Subterrâneo isso é notório, quando
Lucínio, personagem central, à beira do Rio Parnaíba fica observando que “a correnteza
11
impetuosa era um convite à loucura: arrastava a imaginação remoinho adentro, com um
rumor de vozes abafadas, atraindo o espectador desprevenido para a morte”
(CARVALHO, 1995, p. 09). Contudo, esse mesmo rio que desperta em Lucínio um
sentimento vazio de expectativa para a morte também é o rio que, em outros instantes, o
conforta em meio à sua solidão, pois “agora novamente Lucínio escuta o Parnaíba: um
rumor profundo e forte, inquietante como um choro. Sorri, porém. Essas vozes, tão íntimas
suas, matam a solidão que o enerva. Já não está sozinho: tem o rio (CARVALHO, 1995, p.
33). Na condição de deslocamento e de não pertencimento aos espaços, o rio torna-se o
misto de martírio e de refúgio, onde as sensibilidades em relação à cidade afloram.
Como fundamento teórico, este trabalho subsidia-se por propostas a partir das
análises da tradição de estudos sociais ou de história social, como na perspectiva de
Raymond Williams (1999), que enfatiza os estudos entre cidade e campo, demonstrando os
desejos e confrontos da modernidade na configuração dos espaços, tentando ainda refletir
sobre o “contraste retórico” que permeia a vida urbana e a vida do campo, movido por uma
separação ideológica. Traços rurais e traços urbanos subsidiam as reflexões sobre as
relações entre o campo e a cidade. Na vivência e nas experiências humanas, tal relação é
comumente marcada pela cristalização de significados. Nesse diapasão, o campo seria
caracterizado “como lugar de atraso, ignorância e limitação”, ao passo que a cidade é
apreendida como lugar “de saber, comunicações, luz” (WILLIAMS, 1990, p. 11). Tal
contraste seria uma das molas propulsoras para as percepções da modernidade como
superação do “antigo” e do “atrasado” vinculados à vida campestre, e, embora esta
pesquisa não pretenda fazer um estudo sobre processos migratórios diretamente, analisa a
idéia muito cara a Williams acerca do que é encarado nessa perspectiva e seu confronto
com o que é considerado como novo e moderno. Essas articulações discussivas entre
cidade e campo podem ser direcionadas à cidade de Teresina e à cidade de Oeiras nas
décadas iniciais do século passado, especialmente nas décadas que compreendem o recorte
temporal da presente pesquisa. Teresina, desde que se tornou capital do Piauí foi
significada como sendo o pólo irradiador dos modelos de progresso e de modernidade, ao
passo que Oeiras foi sendo (re) significada como modelo de estagnação e de atraso, sendo
vista como uma cidade rural e interiorana, ou seja, como expressão do antigo e do velho.
As discussões sobre modernização e modernidade estão, também, sendo
subsidiadas por leituras relacionadas às reflexões sobre Cidade, utilizando como
referenciais teóricos as discussões feitas por Nicolau Sevcenko (1999), em seus estudos
12
sobre os efeitos da modernização nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo nas primeiras
décadas do século XX. Além disso, noções de representação e práticas sociais foram
subsidiadas pelo diálogo com Chartier(1988) e Certeau(1994).
A Cidade, conforme os ensinamentos de Ítalo Calvino (1990), configura-se como
um todo no qual todos os desejos e projetos coexistentes, o que explica o caráter plural da
dinâmica da cidade e das transformações que nela acontecem. Por esse viés, o processo de
modernização das cidades torna-se um dos estudos mais recorrentes na Academia. Devido
aos vários efeitos produzidos sobre a cidade, mas não só no que diz respeito às
transformações dos espaços, como também implicações no mundo das sociabilidades que
são expressas a partir dos vários usos e significados atribuídos aos espaços pelas pessoas.
O que veio a ocorrer em diferentes capitais brasileiras e em diferentes épocas,
resguardando suas devidas proporções. Tais mudanças influenciaram na (re) organização
espacial de Teresina que também presenciou esse turbilhão de acontecimentos4. Isso,
contudo não significa dizer que todas as práticas dos citadinos estejam hermeticamente
restritas às ações desses agentes ordinários do espaço urbano. Os demais agentes, a
população de modo geral, conforme Michel de Certeau (1994) criam mecanismos de
apropriação do repertório cultural estabelecido e apresentam novas práticas e
sociabilidades dentro do espaço idealizado pelos agentes ordinários. A Cidade se modifica
em diferentes instâncias: no social, cultural, político e espacial, daí tornam-se perceptível
uma série de contradições produzidas pela modernização, logo porque a reestruturação da
cidade é pensada por e para um grupo seleto de pessoas. Dessa forma, alguns seguimentos
sociais, provavelmente, não serão beneficiados por ela. São essas modificações que se
pretendeu discutir nesta pesquisa, buscando mostrar as múltiplas representações de
Teresina nas décadas de 1940 e 1950.
A Modernização, bem como as múltiplas manifestações nos espaços, como é o caso
dos deslocamentos dos indivíduos, tem vários efeitos, o de encantamento e de esperança
proporcionados pela idéia do novo. Porém, por outro lado, causa nostalgia, principalmente
naqueles que vêem o passado como modelo para o presente que é provocado por esse
processo que insere homens e coisas em um mundo de transformações5. Tem-se, então,
4Conforme Marshall Berman (1986), sobre o fenômeno da modernização das cidades, tais acontecimentos ressoariam direta ou indiretamente no cotidiano e nos costumes da população, notadamente no que se refere aos espaços de sociabilidades. Sendo que em geral, são submetidas às regras estabelecidas por aqueles que promoveram esse projeto, notadamente Estado e as elites políticas e intelectuais.5 As cidades, como destaca Ítalo Calvino (1990), não apenas contam história de uma cidade como contém essa própria história. Mas não são apenas os aspectos detidamente materiais que compõem a malha urbana,
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como proposta de pesquisa, a busca pela compreensão desse processo que atinge diversas
cidades brasileiras e que de uma forma muito particular alcançou a capital do Piauí. Pois
nesse momento todos os olhares se voltaram para Teresina, dessa forma pode-se dizer que
ela torna-se a vitrine dos projetos de modernização. Destaca-se que o espaço urbano
tornou-se alvo de estudiosos de deferentes áreas do conhecimento que buscam refletir
sobre o passado das cidades e compreender seus ordenamentos e funções. Vale ressaltar
que, segundo Maria Stella Bresciani(1996), a industrialização não deve ser vista como o
único ponto de partida para o entendimento da questão urbana. Isso significa dizer que
outros elementos, ou melhor, saberes coadunaram-se para a representação do que se
configura como espacialidade urbana. Para conceituá-la, alguns pesquisadores como Fustel
de Coulange(1830-1889), deram ênfase ao caráter político da cidade, não se tratando aí de
cidade propriamente dita, mas sim, cidade-estado, compreendidas como sociedades
politicamente organizadas, detentoras de leis próprias. Coulange conclui que sociedades
políticas surgem a partir de sociedades baseadas em organizações familiares, e não como
extensão de sociedades individuais, outros deram relevância seu aspecto econômico como,
Max Weber (1864-1920), que vê a cidade como “um aglomerado humano caracterizado
por trocas comerciais regulares, capazes de prover o sustento de seus habitantes”
(RAMINELLI, 1997). O próprio estudo das cidades vem sofrendo diversas
transformações. Com a ampliação das fontes foi possível surgimento de novas abordagens
e metodologias, principalmente com o advento do que se convencionou chamar Nova
História Cultural, que ampliou as análises sociais. Sendo assim, novos estudos
possibilitaram que a categoria cidade fosse cada vez mais revisada, então novas
conceituações surgem.
Dessa maneira, a cidade é representada por diversos ângulos, pois “todos vivem de
maneiras diferentes a mesma experiência, concentrada no mesmo setor do espaço público e
no mesmo intervalo de tempo” (SEVCENKO, 2000, p. 28). Isso implica dizer que há uma pois são as práticas sociais, os costumes, o ir-e-vir e as memórias que dão sentido aos espaços. Nesse sentido, o conceito de cidade é proposto como o espaço de confluência entre as transformações materiais e suas ressonâncias da esfera imaterial da própria cidade. Segundo essa mesma perspectiva, os conceitos de representação como construção social, elaborados por Roger Chartier(1988) são subsídios teóricos para a presente pesquisa, no que se refere ao papel das representações na construção do mundo social, ao afirmar que “as representações do mundo social[...] são sempre determinadas pelos interesses de um grupo que as forjam. Daí, para cada caso, o necessário relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem os utiliza” (CHARTIER, 1988, p.17). O interesse sobre cidade pelos administradores se iniciou, mais ou menos, na segunda metade do século XIX em fase ao processo de industrialização, o que proporcionou um aumento populacional nas metrópoles européias. Daí em diante começou-se a idealizar projetos de reorganização das cidades, incluindo organização dos espaços como também surgem tentativas de higienização, pois o grau de civilidade de uma cidade também é medido por sua capacidade de controle de doenças.
14
fragmentação das percepções, alicerçada pelas descontinuidades acerca do tempo e do
espaço. Os literatos catalisam as apreensões de sua época, pois potencializam os
murmúrios das vozes da cidade. As imagens da cidade de Teresina, produzidas pela
literatura, simbolizam as projeções culturais da própria sociedade, que passava por um
processo de exacerbação conflituosa das transformações e manutenção dos valores.
A cidade é uma esfera na qual as relações sociais e de produção são catalisadas por
meio das imagens e apropriações que dela são oriundas. A cidade, em função de sua
complexidade, dinamicidade e de suas imagens, é constituída por “várias cidades”,
constituindo o que Ítalo Calvino denominou de “cidades invisíveis”, fruto das
subjetividades e dos olhares múltiplos sobre a cidade. Os diversos pontos da cidade contêm
histórias de sua existência e das vivências de seus habitantes, pois
[...] a cidade não conta o seu passado, ela o contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos pára-raios, nos mastros das bandeiras, cada segmento riscado por arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras (CALVINO, 1990, p. 14-15).
Ao revelar sua anatomia, sua cartografia, a cidade desafia o historiador a decifrá-
la, agindo semelhante à Medusa em relação a Perseu; provoca-o a descobrir seus segredos,
à medida que o ameaça de petrificá-lo. Ao historiador cabe apenas a alternativa de reagir
semelhante ao herói grego, enfrentá-la por meio de refratários, não encará-la diretamente,
por intermédio de elementos que desnudam alguns de seus segredos: as fontes que são
vestígios e marcas do passado no tempo. Nessa perspectiva, as fontes possibilitam notar
que não são cidades que se excluem ou que se negam, mas que expressam as diferentes
maneiras que as sociabilidades constroem e se apropriam dos espaços. O que mais ocorre,
e isso é o mais lógico, é uma influência dialética entre a cultura e a cidade, pois ambas são
construídas pelos mesmos agentes do processo histórico. As cidades não existem apenas
pela ação das lideranças políticas e sim em conjunto com as relações sociais que ali se
desenvolvem, com suas tensões, negociações e diálogos, confirmando o que Michel de
Certeau afirma quando se refere à cidade como uma “ficção que cria leitores, que muda em
legibilidade a complexidade da cidade e fixa num texto transparente a sua opaca
mobilidade” (CERTEAU, 1994, p. 171).
15
Destaca-se que o pensar sobre a cidade é compreender que o espaço se constitui nos
limiares entre as dimensões materiais e imateriais, pois a idéia de que “o espaço urbano é
um produto material em relação com outros elementos materiais – entre outros, os homens,
que entram também nas relações sociais determinadas” (CASTELLS, 2009, p. 181), não
exclui a premissa de que esse espaço assume formas, funções e significações sociais. Dessa
maneira, estudar e interpretar a história das cidades é, além de se apreender as
manifestações da cultura, captar os efeitos do imaginário e da memória, que contribuem
para a existência das práticas6 sociais presentes. Com o cuidado de não cair em
anacronismos, lançar olhares para eventos passados abre a possibilidade para que se
compreenda melhor as razões de acontecimentos de uma sociedade atual. Por essa razão, a
escrita literária evidencia que
A linguagem revela e esconde, as possibilidades de leitura da história são incomensuráveis, articulando-se com as questões de cada tempo, por isso o diálogo da história com a literatura é um território importante, para se compreender o quanto o trabalho do historiador tem de ficcional (REZENDE, 2008, p. 52).
A aproximação da história com a literatura não torna a história uma narrativa
ficcional, pois a oficina história, como destaca Certeau (1994) imprime condicionamentos
técnico-científicos pautados na busca da objetividade e das redes de verdade. A partir disso
é que o historiador tem se utilizado da parceria com a literatura, para perceber as várias
formas de produção de significados e de sensibilidades, notadamente no que se refere à
experimentação dos indivíduos nos espaços. A literatura, dessa maneira, como destaca
Edgar de Decca (2000), permite ao historiador desenvolver reflexões acerca das diferentes
experiências sociais, bem como das múltiplas formas de produção e consumo da realidade.
As obras de O. G. Rêgo de Carvalho são emblemáticas no tocante à visualização da relação
intrínseca entre a cidade e sujeito que nela habita, pois a cidade, como dimensão pulsante e
dinâmica, é caracterizada, dentre outros aspectos, pelas formas de identificação dos
citadinos com os espaços. Nesse sentido, os sentimentos despertados ou potencializados a
partir dessa relação de identidade são apresentados, ou melhor, canalizados principalmente
nos personagens jovens dos textos do escritor piauiense.
6 O conceito de prática é aqui trabalhado como as diferentes formas de fazer e agir dos indivíduos em meio a um repertório cultural reinante. São as diferentes maneiras que os indivíduos empregam para não serem totalmente capturados por um discurso ordeiro.
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Os textos literários são muitas vezes frestas por onde as luzes do passado chegam
aos olhos do presente. Cabe ao historiador não tapá-las ou obstruí-las na vã crença de uma
objetividade míope de si mesma, que recuse a si o direito de conter a subjetividade que
abraça as esferas da vida humana. Recusar isso é recusar que a história é sedução mútua
entre presente e passado, sedução que é objetividade/subjetividade mediante a narrativa
histórica, que, por sua vez, corteja e é cortejada pela literatura.
Daí a importância dos ensinamentos propostos por Roger Chartier ao afirmar que
“narrativas de ficção e narrativas de história têm em comum uma mesma maneira de fazer
agir seus ‘personagens’, uma mesma maneira de construir a temporalidade, uma mesma
concepção de causalidade” (2002, p. 14).
A relação entre História e Literatura permite a utilização de outras categorias de
fontes, além de possibilitar ao historiador o trânsito por outras cadeias discursivas. Neste
trabalho, a literatura é o ponto de interconexão entre as interfaces da História com as
discussões de Cidade. A literatura mostra-se como mais uma possibilidade de se
compreender, historicamente, como as cidades são representadas por diferentes sujeitos em
diferentes espaços, lugares sociais e, também, em diferentes temporalidades. Isso ainda
abre uma clareira para a compreensão de que a literatura produzida sobre a cidade é reflexo
de memórias ao mesmo tempo em que também é constituidora de outras memórias, visto
que a memória é dinâmica e fragmentária, bem com socialmente localizada, uma vez que a
memória, como ensina Chartier (2002, p. 54) “não se apodera diretamente do passado: ela
o recompõe com os presentes”. Por esse viés, recorrer aos textos dos literatos é
implementar um passeio pelas trilhas sedutoras da memória da cidade e de seu cotidiano.
O soerguimento da cidade por meio de seus projetos de modernização e de
civilidade, com suas “faces incongruentes, seus ritmos desconexos, sua escala extra-
humana e seu tempo e espaço fragmentários” (SEVCENKO, 2000, p. 40), promoveu o
estranhamento de gerações em relação aos traços culturais cristalizados na sociedade. A
mocidade estaria vivendo em um tempo cujas experiências e desejos são muito mais
impulsionados pela vivência do presente, sem o peso enrijecido do passado e das amarras
das promessas do futuro. Esse “mal-estar” promovido pelas inovações criou uma esfera na
qual conviviam experiências e temporalidades divergentes e contraditórias, lançando
olhares dicotômicos uns sobre os outros. A juventude, na obra de O. G. Rêgo de Carvalho
é uma tônica presente, pois seriam as crianças e adolescentes os que mais sofrem os
impactos das novidades, tanto no sentido do encantamento e das descobertas, como na
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esfera dos medos e dissabores. A juventude, no turbilhão de transformações, tem menos
propensão a se apegar às reminiscências de uma tradição cultural, daí essa juventude ser
alvo dos comentários ásperos dos mais moralistas.
Os jovens são os mais adeptos às transformações e buscam, em geral, na cidade a
concretização de novos espaços que possibilitem novas experiências. A cidade de aspectos
provincianos desperta nos jovens a idéia de não ter conseguido “vencer” os limites de uma
cultura arraigada de tradições e valores visto que ultrapassados. Teresina estava no
imaginário dos jovens como essa possibilidade de se experimentar uma nova realidade,
distinta da realidade das demais cidades piauienses, que conviviam mais nitidamente com
restrições de diversas ordens, precisamente de infra-estrutura. Mas não só de desencanto
permeiam os olhares sobre a Capital. Teresina é também a cidade das ruas elegantes e de
pessoas amigáveis, como fala O. G. Rego de Carvalho (1994), na capital o jovem rapaz
consegue visualizar alguns aspectos comuns que venham a diferenciar uma área urbana de
uma área rural como ruas retas com espaços iguais, praças bem arborizadas, pois para ele,
Teresina constituiu, desde os meus dez anos, um deslumbrante para os olhos. Acostumado, em Oeiras, com ruas tortas, becos sem saída e praças sem arborização, surpreendi-me agradavelmente ao encontrar nesta cidade, quando aqui vim residir em 1949, com minha família, ruas alegres, espaçosas e arborizadas, retilíneas, cruzando-se a espaços certos e dando em praças ajardinadas e cheias de passarinhos (CARVALHO, 1994, p. 203).
Teresina das décadas de 1940 e 1950 também é apresentada como a cidade da
jovialidade, das meninices e da sensualidade, não somente por O. G. Rêgo de Carvalho,
visto que
No final do parque da Bandeira – o Parnaíba – o velho monge de barbas brancas – como cantou Da Costa e Silva, Rio de água boa. Junto às suas margens, a gente ainda vê, como no outro rio, o Poti, as lavadeiras batendo roupa. Algumas de seios à mostra. Outras quase nuinhas como nasceram. Quando a gente era menino ia ao Parnaíba e ao Poti para ver peito de lavadeira. E a mãe de cada olhador recebia a respectiva xingação (TITO FILHO, 1974. p.48).
Essa tônica de jovialidade e sensualidade das descobertas é apontada por O. G.
Rêgo de Carvalho como um ponto a mais na não identificação dos indivíduos aos novos
espaços, às práticas da nova cidade. Isso está demonstrado em Rio Subterrâneo, quando o
autor fala sobre a sexualidade de Hermes, filho de um proprietário de armazéns na cidade.
Segundo o autor,
18
Apesar da aparência viril, que lhe embelezava o rosto, ele ainda não conhecia mulher. Sua experiência limitava-se a umas tantas carícias nas empregadinhas, à sombra das figueiras do bosque ou ao pé dos muros acolhedores. Gostava de sentir os seios delas em suas mãos: carne macia e tépida, que os dedos modelavam ansiosamente. Tudo, no entanto, ficava nisso, e na volúpia que lhe envolvia o corpo, quando imaginava que elas, obedientes, carinhosas, vinham para a sua rede, na solidão da noite velha (CARVALHO, 1995, p. 38).
É a mesma cidade que vivia com suas ruas da prática da prostituição, das pedintes
e de pessoas que permaneciam excluídas dos discursos progressistas do ambiente
desenvolvimentista daquele momento. Discutir a cidade de Teresina das décadas de 1940 e
1950 é buscar compreender as imagens e discursos que se construíram acerca da cidade e
de seus costumes e práticas.
5. Considerações Finais
A literatura não é um mero suporte de confirmação das hipóteses levantadas pelo
pesquisador, mas sim uma valiosa parceira no objetivo de dissipar, o quanto for possível,
as penumbras que envolvem o passado. Um aspecto do passado que este texto dedica-se é
o que concerne aos processos de transformações nos espaços urbanos da cidade de
Teresina em diferentes momentos, no intuito de perceber, além das pluralidades
discursivas, a narrativa citadina sendo (re) construída continuamente, acompanhando os
movimentos da cidade. A aproximação com a literatura para o entendimento da cultura e
da cidade tem uma prática recorrente entre vários historiadores. Nicolau Sevcenko (1999;
2000), por exemplo, trava um eloqüente diálogo com a produção literária para perceber as
visões dos literatos acerca do processo de modernização da cidade do Rio de Janeiro em
princípios da Primeira República, bem como discutir as projeções culturais da cidade de
São Paulo na década de 1920.
Dessa maneira, a literatura permite perceber a cidade em diferentes momentos e
por diferentes olhares. Olhares esses que estão carregados de memórias que são
socialmente localizadas. A escrita de O. G. Rêgo de Carvalho deve ser entendida tanto do
lugar de onde fala como o lugar de endereçamento de sua narrativa. A cidade que surge a
partir do olhar de cada literato abre espaço para a visualização de inúmeras cidades,
cidades subterrâneas, que se confrontam e também se complementam. As narrativas da
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cidade pela perspectiva da literatura é um arcabouço a mais para o entendimento de como a
cidade é sentida em temporalidades e espacialidades diferentes.
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