Upload
ciceroaruja
View
6
Download
3
Embed Size (px)
DESCRIPTION
Trabalho de faculdade sobre filosofia da ciencia
Citation preview
1 A CINCIA ARISTOTLICA E A GUINADA EPISTEMOLGICA DE GALILEU Cicero Loureno da Silva TrabalhodissertativonadisciplinadeFilosofia daRenascena,paraaquisio de crdito de Mestrado emFilosofia. Disciplina sob orientao doProf. Dr. Eduardo Henrique PeiruqueKickhfel Guarulhos, agosto de 2014 2 Resumo: Oescopodestetrabalhoexplicitarasdiferenasentreaconcepocientficade Aristteles, que domina a antiguidade clssica e estende-se por toda a Idade Mdia, at suasuperao,levadaaefeitopelonovoaprioricientficoquevaiseconsolidandoa partirdaRenascena.Destacaremos,emparticular,opapeldeGalileuGalilei,cuja obra,aliceradanummtodoexperimentalqueeleinaugura,daratnicaaocanne ocidental que orienta todo fazer cientfico posterior. Introduo Acinciamoderna,talcomoaconhecemos,oaprimoramentodeumelaborao queremeteaosprimeirosfilsofos.Oespantodeuorigemfilosofia,eestapassaa explicaroatentoinexplicvel,libertando-odesuacangamitolgica.Ohomem comea a interrogar o universo no qual se v inserido.Masafinal,porqueohomemquisexplicaroqueatentolhepuromistrio?A existncia, vivida em sua crueza cotidiana, no lhe bastava? Ora, para que se atendam as muitasexignciaspragmticas,precisoqueseelaboremfunesetarefasadequadas snecessidadespercebidas.Semisso,compromete-seaexperinciadeumeficincia mnima,capazdeapararasarestasdomeroexistir.Umconjuntodesaberestericose prticos se faz necessrio para que a referida eficincia no trato com os desafios dirios da experincia humana se realize.Entretanto,ahierarquiadossaberesdifereemmuitodosvaloresquehojelhe atribumos.Porexemplo,oconhecimentodavirtude,edeverdadestidascomo superiores, era, para Plato e Aristteles, o principal conhecimento a ser almejado. Por outro lado, a habilidade de construir coisas para a melhoria da vida social (instrumentos, objetos,moradias),apesardeseuinegvelvalor,representavaumexercciointelectual inferior.3 Noquedizrespeitoaoconceitodeteoria,afilosofiavemfornecer,jnosseus primrdios,oselementosqueumdiaformaroabasedosabercientficodenossos tempos.Mashdiferenassubstanciaisentreoqueosantigosgregoschamavamde cincia e o que os modernos e contemporneos entendem pelo mesmo termo. Hoje nos parece evidente que a cincia tem a funo de melhorar a vida dos seres humanos, que cadaumadesuasconquistasdeveserpragmaticamentejustificada.Nestesentido,a cinciaaserviodamedicinavisaafastarparaomaislongepossvelaexperincia inevitveldamorte.Cogita-semesmodesupera-la,fisicamente,extraindoa imortalidadedosdomniosmetafsicosdodiscursoreligioso,parasitua-laentrea conquistamaiordogniohumano.Asrealizaestecnolgicas,aeficciaque proporcionam nas aes humanas, seja no mbito profissional ou pessoal, todas buscam promoverumaexperinciahumanacadavezmaislivredosentraveserestriesquea natureza nos impe. A cincia uma capacidade de contornar os obstculos naturais aos objetivos humanos. Como saber ela se reconfigura em poder: poder de superar barreiras, de fazer a natureza atuar em benefcio da humanidade.
A noo de cincia em Plato e Aristteles Na antiguidade clssica, a ideia de um conhecimento organizado percorre a obra dos grandes pioneiros do pensamento racional. Tomaremos como referncia, ainda que no exaustivamente, dois: Plato e Aristteles, sobretudo pelo fato de a obra de ambos no serfragmentria.Oconhecimento,paraeles,divididodeacordocomsuafuno social. Mais do que uma mera distino, a categorizao que fazem explicita uma certa hierarquia dos saberes, dependendo da utilizao a que cada um deles remetido. Numa passagem,porexemplodoPoltico,Platodiferenciaumconhecimentoabstrato,do conhecimentorelativoao,defendendo,porconseguinte,umadualidadedos saberes, no que diz respeito aos objetivos. Entodividamosascinciasemgeralentre aquelas que so prticas e aquelas que so intelectuais. (Plato, 1952, p. 581)4 Essa passagem parece sugerir, por exemplo, uma primeira distino entre aquilo que viemosachamardeteoria,daquiloquedenominamosprtica.Contudo,importante cautela, uma vez que nossa utilizao desses termos encontra-se bastante matizada pelo seusignificadocontemporneo,que,comoveremos,notraduzoespritoqueanimou aquelaprimeiraacepo.Hojetendemosaverumaseparaoradicalentreteoriae prtica.Essaindependncia,contudo,nosemprecontemplada-pelosmenosno enfaticamente-,nostextosantigos.Asartes,quenaqueletemposignificavamalgo como as habilidades, inclusive a arte de governar, informada por uma teoria, da qual emanadiretamente.Nestecaso,aausnciadateoriaacarretariaainexequibilidadeda prtica.importanteobservar,tambmque,naobradePlato,ambososconceitos (episteme e techn)recebem tratos diferentes conforme o dilogo. s vezes, os termos chegam a ser usados indistintamente.1
Episteme e Techn em Aristteles MasvamosnosdeterumpoucomaisnaconceituaodostermosemAristteles, cujaabordagemdoassuntosedestaca.Hajavistaaimportnciaquesemprelhe atriburamosescolsticos,osfilsofosjudeusemuulmanosmedievais.Asinstrues delineadasporAristteleseratudooquesetinhaporconhecimentocientfico,ata consolidao do mtodo experimental. O estagirita praticou sim um tipo de observao eledissecavaanimaisparaentenderofuncionamentodosrgos.Massuas observaes careciam de uma metodologia rigorosa capaz de orienta-lo para a repetio, confirmao(ourefutao)dodadoapreendido.Masvejamosmaisdepertoaforma como teorizou sobre os mtodos de investigao. No livro VI da tica Nicomaquia, Aristteles assim classifica os saberes: D-seporestabelecidoqueasdisposies
1 Aqui tomamos por base as informaes extradas da Stanford Encyclopedia nos verbetes episteme and techne, didaticamente agrupados juntos. 5 emvirtudedasquaisaalmapossuiaverdade,quer afirmando, quer negando, so em nmero de cinco: a arte, o conhecimento cientfico, a sabedoria prtica, a sabedoria filosficaearazointuitiva(noinclumosojuzoea opinio porque estes podem enganar-se)2 Aquilo a que o filsofo chama deconhecimento cientfico no texto grego grafa-seepisteme.Esseconhecimentoprocededainvestigaodaquiloqueocorre necessariamente, do que existe com regularidade e sua metodologia tanto o silogismo quantoainduo.(Notemosaausnciadanoodeexperimento,quecaracterizara metodologiacientficaprincipalmenteapartirdeGalileu,comoveremos)O conhecimentodemonstradoracionalmente,partindodeprincpiosconhecidos,que induzemcerteza.Nocaptulo4,Aristtelesfaladaartecomoumacapacidade raciocinadadeproduzir,incluindotodasasartes,nooaquicompreendidacomoa habilidadedeproduziralgo.Otermogregooriginaltechn.Certo,ahabilidade envolve um conhecimento terico, o domnio de um passo-a-passo sem o qual um dado projetonotercomoconcretizar-se.Entretanto,esseconhecimentodeordem inferior,jquebaseia-senomundodacontingncia.Dondedepreende-sequehum saber,umacinciamaiorqueelechamadeconhecimentocientfico,ligadonoo deteoria.Seuobjetosoosprincpioseternoseimutveis,esuainvestigaoum exerccio que Aristteles atribui aos filsofos. No h um fim til, socialmente falando, neste exerccio racional que ele chama de episteme. O outro saber est relacionado com a produo de coisas imprescindveis paraa existncia pessoal e social dos indivduos, instrumentos e capacidades de lidar com desafios cotidianos. Essa techne realizvel sem oconcursodoconhecimentocientficoacimadefinidodarorigemnossa contempornea noo de tecnologia. Todavia,acrescenotarquenahistriadodesenvolvimentohumano,hindciosde queessadistinoentreossaberesnemsemprefoitontida.Porexemplo,o desenvolvimento da Astronomia e da matemtica ambas altamente tericas ocorreu noantigoEgito,esuacriaodeve-searazesbastantepragmticas.Eradesuma importnciacompreenderosciclosdorioNilo,jqueeraeleabasedaagriculturae
2 ARISTTELES, tica a Nicmaco, livro VI, cap. 4 (Col. Os Pensadores) p. 103. Nova Cultural, 1987 6 pecuria do povo no perodo. Entender as cheias, estiagens, alteraes no solo, tudo isso prendia-sesexignciasdenaturezapragmtica.Mascomoinvestigarquestesdessa ordem sem uma precedncia terica?3
Fogeaoslimitesdestetrabalhoumaexploraoexaustivadahistriadacincia. Limitemo-nos a afirmar que a construo terica de Aristteles percorre a antiguidade e a Idade Mdia, tornando-se uma referncia do que considerado o correto pensar. No obstante,asmudanasaceleradasquecomeamaocorrernoRenascimento,leva importantespensadorescomoCoprnico,Kepler,NewtoneGalileuaestabelecer fronteiras entre a filosofia e a Filosofia natural, cuja especificidade metodolgica exige umacertaautonomia.Sobreessametodologiaquetornou-seocnoneocidentaleo quanto ela difere da noo aristotlica de cincia (episteme) e habilidade (tecn), vamos discorrer em seguida A revoluo cientfica Autores e historiadores da cincia costumam aludir ao perodo em que os parmetros aristotlicosdesabersoquestionadoscomoodeumarevoluocientfica. RecordemosqueAristteles,devidamentecristianizado,tambmoesteiosoboqual apoia-seaIgrejaRomana.Suafilosofianoeraameaadoradasociedadeeuropeia crist,poisaomesmotempoemquevalidaosaberatravsdafilosofia,mantma autoridade da f intacta. Mas em que consistiu exatamente a revoluo cientfica? Seria a atuao de Galileu to impactante assim? Pablo Mariconda alude a dois aspectos que, a partir da obra de Thomas Khun, costuma caracterizar uma cincia revolucionria, a saber uma realizao inovadora cientfica forte e uma nova concepo do que seja a cinciaeofazercincia.4Maricondareconhece,aindanomesmotexto,essesdois aspectospresentesnateoriadomovimentoenainauguraodomtodocientfico experimentalqueselhesegue.Asmudanasqueissotudoimplicarianosopoucas, colidindo frontalmente, j de incio, com a base aristotlica do fazer cientfico at ento oficial. Acerca disso, esclarece Stilman Drake:
3 Cf. CALDAS, Waldenyr, Cultura, Global Editora, 2008, SP, p. 46 (Col. Para Entender) 4 Cf. MARICONDA, Pablo, p. 129. 7 ARevoluoCientficaconsistia,emlarga medida, em apagar aquelas distines clssicas e em trazer otipodeconhecimentoadquiridodaexperinciaprtica juntamente com o tipo de experincia adquirida atravs da razo,mesmocustadeaceitaroconhecimentodoque fazerdaprximavezemvezdeumacompreensodas causasdascoisas.Estaltimamudanadescrita delicadamente com a busca de leis em vez de causas.5
Com base na assertiva de Drake, deduzimos que a Revoluo Cientfica parte de um questionamentodospressupostosaristotlicos.Omaisimportante,anoodeque conhecerconhecerpelascausas.NaMetafsica,porexemplo,LivroIAlpha, Aristteles observa: (Entretanto),achamosqueoconhecereosaber pertencem mais tcnica do que experincia, e julgamos ostcnicosmaissbiosdoqueosexperientes,comosea sabedoriaacompanhassetodoselessobretudopelo conhecer.Isso,porqueunsconhecemacausa,masoutros no:osexperientesconhecemoque,masnoopor que, mas aqueles outros conhecem o por que e a causa. Porisso,emcadadomnio,tambmconsideramosqueos mestres-de-obrasabemmaisesomaisvaliososesbios queostrabalhadoresbraais,porquesabemascausas daquilo que est sendo produzido (... )6 Esseparmetromostrainsuficientediantedanovametodologiaquedescortinada pelo experimento cientfico. A ideia de conhecer pelas causas prende o conhecimento demonstrao racional. A cincia nova, orientada por um Novum Organum como refere Francis Bacon, condiciona a demonstrao no apenas formulao de princpios, mas
5 DRAKE, Stilman, Galileo; a very short introduction, OUP, 2001, p. 5 (traduo nossa) 6 ARISTTELES, Metafsica, 981a 12, trad. Lucas Angioni 8 experimentao capazde confirma-los ou refuta-los.A prpria importncia enfase dadaaoporquedascoisas,fatalmenteprendeoinvestigadornasmalhasdeuma metafsicaincapazdesersuperada,umavezque,osprincpiossupostospodem descreverounooquecausaumdeterminadofenmeno.Sobestatica,aimportante concepodecertezaafasta-sedohorizonte,algoacercadoqualosfilsofosnaturais no pretendem no podem mais - transigir. A observao e o questionamento rigoroso que ela suscita o novo critrio do saber cientfico. No frontispcio do Mensageiro das Estrelas ele convida as autoridades a contemplar o que ele mesmo vira com o auxilio de instrumentosporelemesmoconcebido.Aobservaotomaaprecednciana investigao,eaargumentaoagorasegue-separaquestionarasimplicaesdofato observado.Esteinformasobrecomoosfenmenossedo,enoporqueelessedo. Esteltimodetalhe,exatamentepelasuanatureza,estalmdainvestigao experimental, uma vez que a observao nada aduz a este respeito. A preocupao com eleremetemetafsica,apenas,masprecisodeixa-laparatrsseacinciativerde avanar.Galileuafirma-seaqui,nonominalmente,comoumautnticocientista,na acepoquedamoscontemporaneamenteaestanoo.PabloMaricondalheatribuia dupla funo de cientista e filsofo, uma vez que, cincia e epistemologia esto numa relaorecproca que as torna mutuamente dependentes7 Filosofandosobreoanecessidadedeumnovomtodocientfico,Galileusesitua entreosfilsofos,eosexperimentosquelevaaefeito,orientadoporaquelemtodo, fazemdeleseguramenteumcientista,comoaquelesquevemoshoje,seusherdeiros intelectuais. Sua contribuio para a criao de uma cincia autnoma o resultado do queMaricondachamadeumainterdependnciaentreacinciaeaepistemologia8, condioque,aindaparaoprofessor,Galileuumfilsofonaexatamedidaemque todo cientista inovador tambm um epistemlogo ou metodlogo.
7 MARICONDA, Pablo,8 Idem, p. 128 9 Autonomia da cincia Essarupturacomaspremissasaristotlicas,levandoemcontaoperodoemque ocorreu, no representa apenas um passo significativo na histria do saber. Na verdade, trata-se,defato,deumarevoluo,jqueafilosofiaaristotlicaeraaferramenta racionaleteolgicadevalidaodasverdadesdareligio.Umnovodiscursoque dispensasseessafonte,reivindicavaparasiumaautonomiaqualasautoridades eclesisticasnosemostravamreceptivas.Ospequenosequvocosfilosficosde Aristtelesjhaviamsidodevidamenteperdoados,afinal,eleviveranumperodo anterior revelao crist. De resto, sua filosofia era vista como s grandeza, e sob sua sombradeleitavam-senosaCristandadecomoosintelectuaisdoJudasmoedo Islamismo.Aaceitaodequeseusprincpiosgozavameramdetalordemqueforam recrutados at mesmo para comprovaras verdades crists.Por conseguinte, Aristteles viera para ficar. As novidades trazidas por Coprnico, Newton, Kepler, e Galileu, foram porisso,recebidascomressalvas.linguagemdarazoentronizadapelaescolstica, propunhamaneutralidadedasmatemticas,cujaseguranadeixavaacincialivrede elocubraesrefutveis.Entretanto,Galileuforacuidadosoemenfatizarquesuas descobertasnoatentavamcontraasverdadesdaf.NoMensageirodasEstrelas,por exemplo,apsfornecerdetalhessobreosastrosqueobservaranaluneta,Galileu assevera que: Todasestascoisasforamdescobertaseobservadas h alguns dias por meio de uma lunetaconcebidapormimdepoisdetersidoiluminado pela graa divina.9
9 GALILEI, Galileu, Mensageiro das Estrelas, p. 152 10 SeDeusinspiraraaconstruodeumaparelhocapazdefaze-loobservarmaisde pertoagrandezadacriao,decertoquesuainvestigaonoconstituaheresia.A ruptura comea a consolidar-se, mas com a devida cautela de algum que compreende a dimensodesuadescobertaedoqueelarepresentavaparaoseutempo.Suasideias representavamumasuperaodedoutrinasfilosficasdequasedoismilnios,se levarmosemcontaabasearistotlica,eummilnioemeioseconsiderarmoso Cristianismo.Aautonomiadafilosofianatural,eraumaspectonecessrioparaoseu desenvolvimento,masnosignificava,aprincpio,umaoposioaodiscursoque filosficoreligiosodoqualbuscavadesprender-se.Aincompatibilidadeentreosdois saberes,noobstante,foificandopatente,medidaquevoseconcretizandotodasas implicaes das ideias de Galileu. Essa ruptura ecoa at os nossos dias, e o dilogo entre afacincia,nuncamaisdeixoudesertenso.Seporumlado,issopodeser interpretadocomoumaperda(oavanodosecularismo,aerosodevaloresmorais atreladossdoutrinasreligiosas),poroutro,abriu-seapossibilidadedereduzira vitimizao do homem pela sua prpria ignorncia. 11 Bibliografia ARISTTELES, Metafsica; Livro I (Alpha). Trad. Lucas Angioni _ tica a Nicmaco, Livro VI, Nova Cultural, 1978 CALDAS, Waldenyr, Cultura. Global Editora, 2008, SP,(Col. Para Entender)DRAKE, Stilman, Galileo; a very short introduction, Oxford University Press, 2001 GALILEI,Galileu,OMensageirodasEstrelas,CalusteGulbekian,3edio,Lisboa (sem data) MARICONDA, Pablo R., A Contribuio Filosfica de Galileu. artigo (sem data) PLATO, Complete Works (Great Books of the Western), Statesman, Britannica, 1952