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Cinema e Loucura

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Conhecendo as doenças mentais através dos filmes.

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  • Cinema e LoucuraConhecendo os Transtornos Mentais atravs dos Filmes

    Formato: 16x23Peso: 0,52 kgPginas: 288ISBN: 9788536321318Ano: 2010

    Neste livro surpreendente, os autores se propuseram a uma tarefa pioneira: usar personagens de filmes clssicos e modernos para auxiliar o leitor a compreender os mecanismos dos transtornos mentais, criando uma obra de interesse no apenas aos estudantes de sade mental, mas a todos aqueles apaixonados por cinema.

    Saiba MaiS

  • Poucas reas do conhecimento tm fascinado tanto a humanidadecomo aquela voltada para o estudo da mente humana: a mentebuscando compreender a si prpria. A questo se torna ainda maisfascinante ao se estudarem os transtornos mentais, situaes em queo funcionamento da mente encontra-se alterado. A complexidade dessarea to grande que algumas pessoas chegam mesmo a acreditarque o homem jamais conseguir desvendar de forma plena os mistriosque permeiam nossas funes mentais e as alteraes associadas aelas. Seria como tentar tirar os dois ps do cho puxando os prpriossuspensrios, ou seja, algo impossvel.

    Os transtornos mentais fazem parte de nossa experincia diria.Eles so muito mais comuns do que em geral se imagina. Dados epi-demiolgicos estimam que entre 30 e 40% dos brasileiros apresentarampelo menos uma vez na vida um transtorno mental (Mello; Mello; Kohn,2007). Dessa forma, inevitavelmente cada um de ns tem um vizinho,um amigo ou mesmo um familiar que j sofreu ou est sofrendo desseproblema.

    Os transtornos mentais podem ser altamente incapacitantes. Umlevantamento realizado pela Universidade Federal de So Paulo, emparceria com o Ministrio da Sade, constatou que a maior parte doscasos de licena para o tratamento da sade no Brasil est relacionadaa um diagnstico psiquitrico. Entre as 10 principais causas de afasta-

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    mento do trabalho, cinco esto relacionadas a transtornos mentais, sendo a depresso a causanmero um.

    Mas, afinal, o que um transtorno mental? A resposta no fcil. As dificuldades jsurgem com a prpria terminologia. Na rea da sade mental, o termo transtorno no temum significado preciso. Ele utilizado para evitar problemas ainda maiores inerentes ao uso depalavras como doena ou enfermidade, empregadas quando se conhece a causa da patologia as alteraes fisiopatolgicas que explicam a anormalidade. A atual Classificao internacionalde doenas e problemas relacionados sade, que se encontra em sua 10a edio (CID-10,publicada originalmente em 1992), contm 21 captulos, dos quais o nico que emprega otermo transtorno o relacionado psiquiatria. Nos demais, a CID-10 utiliza a denominaodoena (Organizao Mundial da Sade, 1993).

    O termo mente tambm bastante controverso. Em geral a palavra utilizada para descreverprocessos psicolgicos que atingem a nossa conscincia, como motivaes, emoes ou processoscognitivos incluindo percepo, memria, racioccio, ou qualquer outra funo que permita aaquisio de conhecimento, a resoluo de problemas e a elaborao de planos para o futuro.Para os primeiros filsofos que viveram na Grcia Antiga e principalmente para Ren Descartes(1596-1650) responsvel pela inaugurao da filosofia moderna , corpo e mente representamdois tipos distintos de substncia. De acordo com essa perspectiva, denominada dualista, ocorpo formado por matria, enquanto a mente ou a alma imaterial.

    Em oposio ao dualismo, vrios filsofos contemporneos por exemplo, John Searle,da Universidade de Berkeley acreditam que mente e crebro so indistinguveis e representamum nico sistema. Essa segunda perspectiva, conhecida como monista materialista, vem sendocorroborada por evidncias recentes da neurocincia (Damsio, 1996). Portanto, a designiotranstorno mental pode ser enganosa, uma vez que sugere uma falsa distino entre doenasfsicas, de natureza material, e doenas mentais, de natureza imaterial. De fato, termos comoamnsia psicognica ou transtorno mental orgnico foram gradativamente abandonados naliteratura especializada por dar a entender, incorretamente, que transtornos mentais psico-gnicos ou no orgnicos no possuem um substrato neural.

    Outro problema presente nessa rea so os critrios utilizados para diferenciar o que normal do que patolgico. Fundamentalmente, existem trs grandes critrios: o subjetivo, oestatstico e o cultural. Todavia, nenhum deles considerado totalmente satisfatrio. De acordocom o critrio subjetivo, o patolgico est relacionado a uma vivncia de sofrimento, a umsentir-se enfermo. No entanto, nos quadros de mania eufrica (ver Captulo 5), por exemplo,o indivduo, embora parea aos outros claramente fora do normal, sente-se muito bem, maisalegre e mais bem-disposto que de costume. De acordo com o critrio estatstico, o patolgicorepresenta aquilo que raro ou foge da mdia. No entanto, indivduos com um nvel deinteligncia muito alto, que apresentam um quociente de inteligncia (QI; ver Captulo 15)muito acima de 100, no so considerados doentes. Por fim, de acordo com o critrio cultural,o patolgico aquilo que est fora dos padres ideais de comportamento definidos por umadeterminada cultura. A fragilidade deste ltimo critrio reside no fato de que algo que vistocomo patolgico em uma cultura pode ser considerado normal em outra. Da mesma forma,

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    algo que visto como patolgico em uma poca pode ser considerado normal em outra. Ohomossexualismo seria um bom exemplo disso.

    Independentemente de todas essas questes, possvel formular, ainda que de formaprovisria, uma definio de transtorno mental. Dessa maneira, utiliza-se o termo transtornomental para indicar a presena de um conjunto de vivncias subjetivas ou comportamentosque causam sofrimento significativo ou um importante prejuzo no funcionamento social,ocupacional ou em qualquer outra rea importante da vida do indivduo.

    A forma como compreendemos os transtornos mentais atualmente consequncia deuma longa srie de eventos histricos. Nossa perspectiva acerca do adoecimento mental mudoubastante ao longo do tempo, abrangendo desde explicaes religiosas e sobrenaturais atteorias mais racionais, que culminaram, hoje em dia, em modelos tericos muito elaborados,que propem uma relao dinmica entre genes, crebro e ambiente.

    PR-HISTRIA

    Como qualquer outra enfermidade, as doenas mentais representam alteraes inerentes prpria condio humana. Assim, possvel que alguma forma de adoecimento mental jestivesse presente nas primeiras culturas humanas, que surgiram no leste africano entre 100 e150 mil anos atrs. A ausncia de registros escritos impede uma determinao exata do tipode conhecimento que essas culturas detinham sobre as funes e disfunes mentais. Entretanto,escavaes arqueolgicas revelaram a existncia de crnios perfurados cirurgicamente desdeo perodo neoltico, 12 mil anos atrs.

    No esto claras as razes que motivaram o homem pr-histrico a realizar essas cirurgias,denominadas trepanao (do grego trpanon, perfurao, abrir um buraco). Uma possvelfuno religiosa estaria relacionada necessidade de liberar demnios que estariam atormentan-do o doente. No entanto, especula-se que haveria uma funo teraputica: aliviar convulsesou dores de cabea. Independentemente da razo pela qual a trepanao era realizada, oemprego dessa tcnica indica a importncia que o homem pr-histrico atribua ao crebroou, pelo menos, regio da cabea.

    IDADE ANTIGA

    A Idade Antiga corresponde ao perodo que vai desde a origem da escrita, cerca de 4000 a.C.,at a queda do Imprio Romano, em 476 d.C. Registros antigos demonstram que as primeirasgrandes civilizaes humanas o Egito, a Mesopotmia, a China e a ndia interpretavamtudo aquilo que lhes era incompreensvel, fosse na adversidade os desastres naturais, asdoenas e a morte ou na abastana boa colheita, sade ou o nascimento de uma criana ,

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    como manifestaes de foras divinas (deuses ou demnios). Esses registros, alguns datadosde 1700 a.C., revelam descries muito detalhadas de algumas formas de adoecimento mental,como a histeria (ver Captulo 7). Entretanto, essas primeiras grandes civilizaes atribuam taismanifestaes ao efeito de feitios ou possesses por espritos malignos. Dessa forma, o trata-mento consistia, basicamente, na expulso desses espritos por meio de encantamentos einvocao de deuses.

    Os primeiros modelos explicativos de natureza racional em relao s enfermidadesmentais surgiram com a filosofia, na Grcia Antiga. De acordo com essa nova perspectiva,descartou-se completamente a influncia de deuses sobre a ocorrncia de adoecimento mental,o qual passou a ser associado a causas naturais. Em torno de 450 a.C., Alcmeon e, mais tarde,Hipcrates propuseram a primeira teoria monista relativa ao problema mente-corpo, atribuindoao crebro a origem de toda a atividade mental humana. De acordo com Hipcrates,

    os homens precisam saber que de nada mais alm do crebro vm alegrias, prazeres,divertimentos e esportes; e tristezas, desapontamentos, desesperanas e lamentaes. Epor isso, de uma maneira especial, ns adquirimos viso e conhecimento, e ns vemos eouvimos. E pelo mesmo rgo nos tornamos loucos ou delirantes, e medos e terrores nosassaltam, alguns de noite e outros de dia. Todas essas coisas ns suportamos do crebroquando ele no sadio.

    Hipcrates (460-377 a.C.) formulou, tambm, a teoria de que haveria quatro humorescorporais a bile negra, a bile amarela, o sangue e a fleuma e que eles estariam relacionadosa quatro tipos de temperamento melanclico, colrico, sanguneo e fleumtico, respectiva-mente (ver Captulo 14 para uma descrio desses quatro tipos de temperamento).

    Na Roma Antiga (sculos I e II d.C.), Galeno (131-200 d.C.) seguiu ideias semelhantes sde Hipcrates. Para eles, havia basicamente trs espcies de doenas mentais: melancolia(afeco mental crnica, sem excitao), mania (excitao mental crnica, sem febre) e frenite(excitao mental aguda, com febre). Alteraes no equilbrio desses humores seriam respons-veis pelas trs formas de adoecimento mental. Consequentemente, qualquer tipo de intervenoteraputica tinha como finalidade resgatar o equilbrio dos humores corporais. Nesse sentido,dentre as formas de tratamento adotadas naquela poca, incluam-se sangrias, purgaes,massagens corporais e dietas alimentares.

    IDADE MDIA

    Com o declnio de Roma e de todo o Imprio Romano no Ocidente, teve incio na Europa umperodo de guerras, barbrie, misria e doenas, culminando em uma nova organizao econ-mica, poltica e social calcada na agricultura e no poder do rei. Essa nova organizao econmica,denominada feudalismo, e a ascendncia do cristianismo na Europa destacam-se como caracte-

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    rsticas importantes do incio da Idade Mdia. As ideias de Santo Agostinho (354-430 d.C.),associadas aos dogmas da Igreja Catlica, contriburam para uma concepo dualista da questomente-corpo. Nesse contexto, a doena mental era vista como consequncia de um pecado.Teorias que buscavam explicar a participao do crebro nos diferentes distrbios do comporta-mento ficaram esquecidas, prevalecendo as explicaes amparadas em crenas sobrenaturais.Assim, indivduos acometidos por algum tipo de doena mental eram considerados endemo-niados, possudos ou enfeitiados.

    No sculo XII, teve incio a Inquisio (do latim, inquisitione, que significa inquirir,perguntar, averiguar, pesquisar, interrogar), um movimento da Igreja que tinha como objetivoinvestigar crimes cometidos contra a f catlica, supostamente em decorrncia da influnciade foras malignas. Em 1487, dois padres dominicanos escreveram um manual para a identifi-cao de bruxas, que serviu como guia para os juzes dos tribunais da Inquisio. O manual,denominado O martelo das bruxas ou O martelo das feiticeiras (em latim, Malleus Maleficarum),certamente fez com que muitas pessoas que sofriam de doenas mentais fossem acusadas equeimadas como bruxas.

    O filme Joana dArc, de Luc Besson, ilustra bem essa poca. Ele conta a histriada personagem-ttulo (Milla Jovovich), herona francesa na Guerra dos Cem Anos. No sculoXV, a Frana havia sido parcialmente invadida pela Inglaterra. Quando Joana era criana, aaldeia em que vivia foi incendiada pelos ingleses. Alm disso, nesse ataque, ela viu sua irmmais velha ser estuprada e morta por um dos soldados invasores.

    Na infncia, Joana j apresentava alucinaes auditivas. Uma voz lhe dizia para ser boae ajudar os outros. Ela era uma catlica mais do que fervorosa e se confessava 2 ou 3 vezes pordia. J adolescente, Joana escreve vrias cartas para o herdeiro do trono francs, Carlos VII(John Malkovich), dizendo que era uma enviada de Deus e que precisava v-lo. Ela consegueser recebida por ele e lhe revela que tem uma mensagem do rei dos Cus. Refere ouvir

    vozes, por meio das quais Deuslhe dera uma misso: ela deveriasalvar a Frana dos inimigos econduzir Carlos VII ao altar da ci-dade de Reims para ser coroado.Alguns conselheiros de Carlos VIIsuspeitam que Joana poderia seruma bruxa ou feiticeira. No en-tanto, ela consegue convenc-loa lhe dar um exrcito para com-bater os ingleses.

    Analfabeta e sem ter qual-quer treinamento militar prvio,Joana comanda os soldados fran-

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    ceses em diversas batalhas contra os ingleses, saindo-se sempre vitoriosa, at conseguir expulsaro inimigo da cidade de Orlans, o que permitiu a coroao de Carlos VII. Depois desse episdio,Joana continua querendo guerrear e almeja expulsar os ingleses de Paris. No entanto, nessemomento, o novo rei francs prefere a negociao guerra, e, consequentemente, Joanapassa a ser uma figura incmoda para ele. Carlos VII ento fornece um exrcito muito reduzidoa ela, na esperana de que seja morta ou capturada na prxima batalha. De fato, Joana dArc presa pelos borguinhes, que a entregam a seus aliados, os ingleses, que, por sua vez, aacusam de heresia por falar em nome de Deus e de ser uma bruxa por causa das vozesque ouvia. Joana dArc julgada pela Igreja Catlica, na diocese de Beauvais, condenada equeimada viva em 1431, aos 19 anos de idade. Todavia, cerca de 500 anos depois, seriacanonizada pelo papa Bento XV. Atualmente, acredita-se que ela apresentava alucinaesauditivas, sintoma presente em vrios transtornos psicticos, dentre os quais a esquizofrenia(Allen, 1975). Alm de esquizofrenia, outra hiptese formulada para o diagnstico da heronafrancesa o de epilepsia de lobo temporal (dOrsi; Tinuper, 2006).

    Enquanto a Europa estava mergulhada nesse sistema de crenas durante a Idade Mdia,os rabes de religio islmica desenvolveram grandes avanos na cincia. Entre os sculos IX eXIII, perodo conhecido como a poca de ouro da cincia islmica, os rabes ampliaram seushorizontes intelectuais nas reas da matemtica, engenharia, astronomia, qumica e medicina.Abu Ali al-Hasan ibn Al-Haitham (965-1040), conhecido no mundo ocidental como Alhazen,representa um dos precursores do mtodo cientfico moderno. Em seu livro sobre tica, encon-tram-se os primeiros modelos quantitativos de fenmenos fsicos, assim como a nfase naobservao e na experimentao sistemtica.

    Outro precursor do mtodo cientfico, o mdico Ali al-Husain ibn Abdallah ibn Sina(980-1037), conhecido no mundo ocidental como Avicena, realizou uma srie de descriesclnicas de doenas mentais, reconhecendo, inclusive, a influncia das emoes sobre seu sur-gimento. De fato, Avicena foi um dos precursores do tratamento moral (ver adiante) e da psi-coterapia. Ele empregava o que chamamos hoje de terapia ocupacional e musicoterapia, almde medicamentos da poca, banhos, exerccios e massagens no tratamento de doentes mentais.

    A importncia do mundo rabe para a histria da psiquiatria deve-se tambm ao fatode o primeiro hospital para o tratamento de doenas mentais ter sido construdo em Bagd,no ano de 706. Na Europa, essas instituies apareceriam somente no sculo XV.

    A partir do sculo XVI, a civilizao islmica entrou em declnio. Entretanto, oconhecimento acumulado pelos povos rabes foi traduzido para os idiomas europeus, tornando-se uma fonte importante para a revoluo da cincia moderna.

    IDADE MODERNA

    A Idade Moderna foi marcada por um retorno ao pensamento racional da Grcia Antiga epelo desenvolvimento do mtodo cientfico. Comeam a surgir, ento, crticas s explicaes

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    demonacas para o adoecimento mental. Por exemplo, o mdico e astrnomo suo Paracelso(1493-1541) relacionou as doenas mentais influncia das diferentes fases da Lua, derivandoda o termo luntico,1 utilizado at os dias de hoje. Teresa Dvila (1515-1582), uma madreespanhola canonizada em 1622, tambm contestou a perspectiva metafsica da doena mental.Ela argumentou, durante um processo de um tribunal da Inquisio, que algumas madres deseu convento que apresentavam alteraes mentais sofriam de uma doena fsica, no estandopossudas por espritos malignos.

    Entretanto, as explicaes calcadas em perspectivas mais racionais acerca do adoecimentomental foram ofuscadas devido concepo cartesiana sobre a mente. Ao sistematizar omtodo cientfico, Descartes postulou que a mente, por ser de natureza imaterial, no erapassvel de estudo pelo mtodo cientfico. A popularidade dessa ideia foi to grande que umaabordagem cientfica das doenas mentais s seria adotada cerca de um sculo mais tarde.

    O incio da Idade Moderna assistiu, tambm, a uma nova organizao econmica, polticae social. O sistema de produo feudal foi sendo substitudo pela produo capitalista calcadano comrcio, o que levou ao aparecimento de vrias cidades ao longo das principais rotascomerciais. Com a reorganizao da sociedade europeia, tornou-se necessria a criao deinstituies especiais que pudessem abrigar um grande nmero de mendigos, idosos, invlidose doentes que se acumulavam nas cidades e no tinham onde morar. Essas instituies, chama-das de asilos ou hospitais gerais, foram inicialmente mantidas pela Igreja. Grandes hospitais,construdos pelo Estado em diferentes cidades europeias, tambm comearam a surgir. Desta-cam-se aqui o Hospital Bethlehem, criado em Londres, em 1547, por ordem do rei HenriqueVIII (1491-1547), e o Hospital La Salptrire,2 criado em Paris, em 1656, por decreto do rei LusXIV (1638-1715).

    Ao serem retirados do convvio social, os indivduos eram confinados no hospital, masno recebiam tratamento mdico ou qualquer outra forma de terapia, podendo permanecerali at a morte. Com o tempo, os hospitais passaram a abrigar, tambm, prostitutas e infratoresde toda espcie. Os doentes mentais eram tratados com descaso, at mesmo de forma desuma-na, sendo submetidos a condies piores do que os criminosos nas prises.

    Na poca, o tratamento das doenas mentais ainda era muito limitado. Havia umagrande relutncia em abandonar a teoria dos humores propostas por Hipcrates e Galeno

    1 possvel que a expresso no mundo da lua, utilizada para indicar que uma pessoa encontra-se distra-da, tenha relao com essa antiga teoria.

    2 O Hospital La Salptrire um dos cones na histria da psiquiatria. Na segunda metade do sculo XIX,renomados mdicos, por exemplo, Jean-Martin Charcot, Pierre Janet e Jean-tienne Esquirol, realizaramimportantes descobertas acerca de diversas doenas mentais (ver Captulos 7, 8 e 13). Nesse perodo, ohospital tornou-se um centro de referncia mundial, recebendo estudantes de todo o mundo, entre elesSigmund Freud. Seu nome vem do fato de ele ter sido construdo no local de uma antiga fbrica deplvora, cujo componente principal o salitre em francs, salptre.

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    ainda na Idade Antiga. Assim, sangria, ventosas e purgaes, com o objetivo de aliviar osexcessos humorais, ainda eram os tratamentos preferidos.

    Somente no incio do sculo XVIII a explicao humoral para o adoecimento mentalcomeou a ser abandonada. A loucura passou a ser interpretada como uma perturbao darazo e da moral. De acordo com essa nova perspectiva, a incapacidade lgica e intelectual doindivduo impediria que ele pudesse adquirir as regras e os costumes sociais. Assim, o doentemental era visto como um selvagem desprovido das faculdades morais, e, consequentemente,no poderia ser responsvel por seus atos.

    Com base nessa concepo, novas intervenes, utilizando mtodos educacionais ecoercitivos, buscavam elevar a condio de selvagem do louco ao nvel de um ser moral comsentimentos nobres. Diversas tcnicas de punio fsica foram desenvolvidas, algumas delaslembrando procedimentos de tortura, com o objetivo de reeducar o doente mental. Mtodosde restrio, como a cadeira tranquilizante, eram empregados para acalmar o enfermo. Aquelesque no respondiam adequadamente a essas rigorosas e, muitas vezes, cruis tcnicas educacio-nais eram acorrentados em pequenas celas, como se fossem animais selvagens.

    IDADE CONTEMPORNEA

    A Revoluo Francesa, em 1789, d incio Idade Contempornea. Mais do que uma transfor-mao poltica, esse movimento gerou grandes mudanas na forma de conceber o ser huma-no. Sob o lema liberdade, igualdade e fraternidade, os revolucionrios franceses enfatizavama defesa dos direitos humanos. Consequentemente, o impacto da Revoluo Francesa sobre aforma como os loucos eram tratados nos hospitais franceses foi imediato.

    Em 1792, logo aps a primeira fase da Revoluo Francesa, Philippe Pinel (1745-1826),defensor dos ideais revolucionrios, foi nomeado para a direo do hospital Bictre, localizadoem Paris, onde tomou conhecimento de uma srie de tratamentos humanitrios que o antigodiretor, Jean-Baptiste Pussin (1746-1811), havia implementado. O louco no era mais acorren-tado. Era tratado como um indivduo acometido por uma doena. Durante trs anos, Pineldeu continuidade a essa forma digna de abordar os pacientes. Em 1795, tornou-se diretor doHospital La Salptrire, onde aplicou de forma sistemtica essa nova forma de interveno,que ficou conhecida como tratamento moral. Esse tratamento enfatizava os aspectos saudveisdo paciente e visava o desenvolvimento da capacidade de autocontrole e de hbitos de socializa-o, incluindo, tambm, contato prximo e amigvel do mdico com o doente, discusso dedificuldades pessoais, alm de um conjunto de atividades para manter o paciente ocupado aolongo do dia.

    Alm do fato de ter adotado a prtica do tratamento moral, Pinel tambm ficou conhe-cido por ter dado uma grande importncia ao diagnstico das doenas mentais. Ele ressaltavaa necessidade de se conhecer a histria prvia do indivduo, assim como a descrio detalhadade seus sintomas. Ele documentou essa nova concepo de doena mental em seu livro Clas-

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    sificao filosfica das doenas ou mtodo de anlise aplicado medicina, publicado em1798. O livro marca o incio da psiquiatria como uma nova especialidade mdica.

    O tratamento moral tornou-se bastante popular, ganhando adeses na Inglaterra, comWilliam Tuke (1732-1822), e nos Estados Unidos, com Benjamin Rush (1745-1813). Entretan-to, a falta de evidncias de sua eficcia fez com que fosse gradativamente abandonado, atdesaparecer por completo no final do sculo XIX.

    Dois filmes As loucuras do Rei George e Contos proibidos do Marqusde Sade ilustram bem a forma como os doentes mentais eram tratados na virada do sculoXVIII para o sculo XIX. O filme As loucuras do Rei George retrata a histria real nos doissentidos dos tratamentos a que foi submetido o rei George III (1738-1820), da Inglaterra,aps o surgimento dos primeiros sinais de insanidade mental um comportamento altamenteinadequado e agitao (ver Captulo 5). Vemos o monarca (Nigel Hawthorne) sendo submetidoa um tratamento com ventosas, pequenos vasos de vidro, que eram aquecidos e, em seguida,colocados nas costas e nas pernas do rei, para drenar os humores do crebro e das extremidadesde seu corpo. Esse tipo de tratamento ilustra como a antiga teoria dos humores ainda eraaceita por muitos no final do sculo XVIII.

    Como o rei no apresentava sinais de melhora, chamado o mdico e religioso FracisWillis (Ian Holm), que se ope aos tratamentos calcados na teoria dos humores. O Dr. Willis utilizatcnicas coercitivas assim como mtodos humanitrios preconizados pelo tratamento moral. Oemprego de tcnicas coercitivas pode ser observado em uma cena em que o mdico ameaa orei, dizendo que, se ele no se comportasse adequadamente, seria amarrado a uma cadeira derestrio. Dentre as medidas humanitrias, esto os encorajamentos e os reforos quando o reidemonstra algum progresso. Entretanto, o tratamento prescrito por Willis tambm se mostraineficaz. Mais adiante, o rei melhora de forma sbita ao interpretar o rei Lear em uma encenaoda pea de Shakespeare, um personagem caracterizado por uma extrema retido moral. O fato dea recuperao do rei ter sido to repentina indica que ela no resultou da interveno de Willis.

    Contos proibidos do Marqus de Sade baseia-se em alguns fatos da vida doescritor francs, cujo nome deu origem expresso sadismo. O filme se passa imediatamenteaps a Revoluo Francesa. Ao tomar conhecimento do livro Justine, escrito pelo marqus deSade (Geoffrey Rush), o imperador Napoleo Bonaparte (Ron Cook) ordena que o autor sejafuzilado devido ao carter altamente ertico e indecente da obra. Entretanto, o imperador convencido por seus assessores de que seria melhor tentar recuper-lo. Para isso, o mdicoRoyer-Collard (Michael Caine) enviado ao asilo de Charenton, onde o marqus est internado.

    Royer-Collard um psiquiatra rigoroso que emprega uma estratgia de punio paratentar devolver a razo aos doentes mentais. Ele mesmo reconhece que seus mtodos soextremamente agressivos, mas acredita que sejam necessrios no cuidado de pessoas que secomportam como animais selvagens. Contudo, o asilo de Charenton dirigido pelo abade

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    Coulmier (Joaquin Phoenix), um jovem idealista que emprega o tratamento moral em seus pa-cientes. De fato, podemos observar que os pacientes esto sempre ocupados. O abade participade brincadeiras com os internos e os repreende quando necessrio, porm sempre de formamuito respeitosa. Dentre as atividades que os doentes realizam esto pintura, teatro e um coral.

    O marqus fica a maior parte do tempo em uma cela privilegiada, com livros, mesas euma cama confortvel. Durante sua internao, continua a escrever e publicar seus livrosproibidos. Ao chegar a Charenton, Royer-Collard comunica ao abade que novos livros domarqus continuam sendo vendidos por toda a Frana, o que comprova que o tratamento dopaciente est sendo ineficaz. O abade pede ao mdico, ento, que lhe d mais uma chancepara recuperar o marqus, antes que Royer-Collard use seus mtodos severos. O abade conversaintensamente com o marqus, mas sem qualquer sucesso. Para piorar a situao, ao saber queRoyer-Collard havia se casado com uma jovem que acabara de sair de um convento local, omarqus escreve uma pea de teatro caoando dele e a encena l mesmo, no hospital.

    Como o marqus no atende aos pedidos do abade, suas regalias so retiradas. Mesmoassim, ele continua escrevendo seus contos erticos. Ao ler um desses contos, um pacientepiromanaco provoca um incndio no hospital (ver Captulo 13). Outro paciente, tambmestimulado pelo texto do marqus, tenta violentar e acaba matando Madeleine LeClerc (KateWinslet), uma bela e inocente lavadeira do asilo. A morte de Madeleine revolta o abade, quetinha por ela uma grande afeio. Ele, ento, rende-se aos mtodos teraputicos de Royer--Collard e a lngua do marqus cortada, literalmente. Questionado quanto a se poderia usarpio para aliviar a dor do marqus, o abade diz que no, alegando que, se a ideia era punir ocomportamento do paciente, no haveria qualquer sentido em usar o anestsico. Aps amutilao, o marqus acorrentado e preso em uma pequena cela, onde acaba morrendo.

    AS CONTRIBUIES DA FRANA E DAALEMANHA NO FINAL DO SCULO XIX

    As reformas institudas por Pinel a partir do final do sculo XVIII fizeram com que o Hospital LaSalptrire se tornasse um local de referncia no estudo das doenas mentais. Esquirol, seuprincipal discpulo, tornou-se diretor da instituio em 1811, dando continuidade ao trabalhode Pinel. Esquirol acreditava que a loucura era consequncia de um distrbio cerebral crnicoque produzia alteraes na inteligncia e na vontade do indivduo. Ele foi o responsvel pelacriao do conceito de monomanias (loucura parcial), diferenciado-as da mania (a loucura pro-priamente dita). De acordo com Esquirol, as monomanias produziriam alteraes especficas navontade do indivduo, preservando, no entanto, sua capacidade intelectiva (ver Captulo 13).

    Em 1862, Jean-Martin Charcot (1825-1893) ingressou no Hospital La Salptrire, ondepermaneceu por toda a vida, destacando-se por uma capacidade bastante aguada de descreversintomas clnicos e associ-los a possveis alteraes neurais. Empregando o mtodo antomo-clnico o qual busca relacionar as leses cerebrais observadas postmortem a quadros neurol-

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    gicos avaliados durante a vida , descreveu uma srie de enfermidades e sndromes neurolgicas,como a esclerose lateral amiotrfica, a neuropatia de Charcot-Marie-Tooth e a esclerose mltipla.Graas a esses estudos, tornou-se mundialmente conhecido, sendo, inclusive, considerado umdos fundadores da neurologia moderna.

    Mais tarde, Charcot interessou-se pela histeria e pela hipnose. Acreditava que o transehipntico poderia representar um modelo experimental til para a compreenso dos mecanismosneurofisiolgicos da histeria, chegando mesmo a propor a ideia de que somente pessoashistricas poderiam ser hipnotizadas. Seu interesse pela histeria atraiu a ateno de vriospesquisadores da poca, com destaque para Sigmund Freud (1856-1939), que mais tardecriaria a psicanlise.

    Nessa mesma poca, a psiquiatria alem tambm comeou a ganhar uma posio deprestgio mundial. Wilhelm Griesinger (1817-1868) foi um de seus principais representantes,sendo responsvel pela formulao da clebre frase doenas mentais so doenas cerebrais.Griesinger realizou uma srie de reformas no sistema psiquitrico da Alemanha, propondo ahospitalizao por um curto perodo de tempo e enfatizando sistemas de apoio social e fami-liar. Seu livro Tratado sobre patologia e teraputica das doenas mentais, publicado em 1845,representa um marco na histria da psiquiatria.

    Um dos principais discpulos de Griesinger foi Emil Kraepelin (1856-1926). Da mesmaforma que Griesinger, Kraepelin apoiava a concepo de que as doenas mentais representavamalteraes cerebrais. Ele acreditava que no havia doenas especificamente mentais; havia apenasdoenas. Na virada do sculo XIX para o sculo XX, Kraepelin deu incio a um sistema de classificaodas doenas mentais anlogo ao das enfermidades fsicas, distinguindo-as de acordo com etiologia,sintomas, evoluo e prognstico. At hoje importante a distino estabelecida por ele entre ademncia precoce, posteriormente chamada de esquizofrenia (ver Captulo 4), e a loucura manaco--depressiva, que corresponde aos atuais transtornos do humor (ver Captulo 5).

    O MOVIMENTO PSICANALTICO

    Na virada do sculo XIX para o XX, surge a psicanlise, criada em Viena, na ustria, pelomdico Sigmund Freud. A psicanlise representa ao mesmo tempo trs aspectos: uma teoriapsicolgica, um mtodo de investigao da mente e um mtodo de tratamento. Em um primeiromomento, a teoria freudiana baseou-se, principalmente, no estudo dos sonhos e dos sintomasdas antigas neuroses, em particular da histeria. Para Freud, tanto os sonhos como os sintomasneurticos tm um significado. Simbolizam elementos que esto fora da conscincia do indivduo como desejos, fantasias, medos e conflitos intrapsquicos. Nesse sentido, ele formulou oconceito de inconsciente dinmico, que consiste em uma parte do aparelho psquico que,embora desconhecida pelo prprio indivduo, influencia enormemente seu comportamento esuas reaes emocionais, sendo, por conseguinte, decisiva para a determinao da sade oudo adoecimento mental. A psicanlise marcou no s a psiquiatria, mas tambm diversas

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    reas do conhecimento, como a psicologia, a antropologia, a sociologia e as artes inclusive ocinema e, de forma geral, toda a cultura do sculo passado.

    O filme Freud, alm da alma, mais do que a biografia do mdico de Viena,retrata o nascimento da psicanlise. Durante sua graduao em medicina, Freud (MontgomeryClift) teve uma formao muito ligada pesquisa neurocientfica. Um dos seus professores,que aparece no filme, foi o psiquiatra Theodor Meynert (Eric Portman), que mais tarde dariaseu nome a uma estrutura subcortical do crebro o ncleo basal de Meynert , na qualpredomina a atividade colinrgica e que se encontra atrofiada na doena de Alzheimer.

    No filme vemos tambm Josef Breuer (Larry Parks), mdico e fisiologista austraco, queexerceu enorme influncia sobre Freud. Breuer usava o mtodo hipntico para tratar os muitospacientes histricos que atendia. Nessa poca, Breuer j era muito famoso por ter demonstrado,junto com Ewald Hering, a natureza reflexa da respirao. O mecanismo autnomo do sistemanervoso que os dois descreveram , ainda hoje, conhecido como reflexo de Hering-Breuer.

    O filme mostra a viagem de Freud a Paris para estagiar com o grande neurologista Jean-Martin Charcot (Fernand Ledoux), no Hospital La Salptrire. Charcot, assim como Breuer,hipnotizava os pacientes que sofriam de histeria, mas, diferentemente de Breuer, o fazia comfins apenas demonstrativos, sem objetivos teraputicos.

    De volta Viena, Freud usa a hipnose em pacientes histricos. Esse mtodo teraputicotinha como objetivo fazer o indivduo recuperar lembranas traumticas que estavam afastadasde sua conscincia, as quais, segundo a teoria de Breuer e Freud (1987, publicada originalmenteem 1895), estariam relacionadas gnese dos sintomas histricos. Freud, porm, mais tarde,abandona a hipnose, substituindo-a pelo mtodo da associao livre, no qual o paciente deveriadizer tudo o que viesse sua mente, sem qualquer censura ou seleo. Essa passagem dahipnose para a associao livre representa um dos marcos da criao da psicanlise.

    A histria do filme gira em torno de uma paciente chamada Cecily (Susannah York), quesofria de histeria (ver Captulo 7), sendo inicialmente tratada por Breuer, que, mais tarde,passa o caso para Freud. Cecily, na verdade, nunca existiu. Ela representa uma condensaode vrios casos que foram, de fato, tratados por ambos. Ou seja, os sintomas de vrias pacientesreais foram reunidos nessa personagem fictcia.

    A REVOLUO PSICOFARMACOLGICA

    No incio do sculo XX, quatro mtodos de terapia biolgica se destacavam na psiquiatria.Eram eles: a malarioterapia, desenvolvida por Julius Wagner-Jauregg3 (1857-1940); o coma

    3 Julius Wagner-Jauregg foi o primeiro psiquiatra a ganhar o prmio Nobel de medicina e fisiologia, pelodesenvolvimento da malarioterapia para o tratamento da sfilis cerebral, em 1927.

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    insulnico, criado por Manfred Joshua Sakel (1900-1957); convulses induzidas por substnciasqumicas (como, por exemplo, o cardiazol); e convulses induzidas por corrente eltrica (aeletroconvulsoterapia). Dentre esses mtodos, o nico ainda hoje utilizado a eletroconvulso-terapia. Criada em 1938 pelo neurologista italiano Ugo Cerletti (1877-1963), essa modalidadeteraputica foi inspirada pela hiptese proposta pelo psiquiatra Ladislaus von Meduna (1896-1964) de que haveria um antagonismo entre a esquizofrenia e a epilepsia isto , um esquizo-frnico no poderia se tornar epilptico e vice-versa. Nesse sentido, a induo de crises con-vulsivas poderia ser til no tratamento de sintomas psicticos (delrios e alucinaes; ver Captulo4), o que, de fato, se observa na prtica clnica embora a hiptese de Meduna nunca tenhasido comprovada.

    Em meados do sculo XX, ocorreu a chamada revoluo psicofarmacolgica. Diversosacontecimentos fortuitos marcaram o surgimento de medicamentos realmente eficazes no tra-tamento das principais doenas mentais. O marco dessa mudana ocorreu na Frana, com aintroduo da clorpromazina, o primeiro antipsictico. Essa substncia foi sintetizada, em 1951,pelos qumicos Paul Charpentier e Simone Courvoisier, que trabalhavam no laboratrio far-macutico Rhne-Poulenc. Em 1952, o cirurgio francs Henri Laborit (1914-1995) descreveu osefeitos da clorpromazina como um pr-anestsico. No mesmo ano, os psiquiatras franceses JeanDelay (1907-1987) e Pierre Deniker (1917-) relataram a ao sedativa da clorpromazina empacientes psiquitricos agitados, internados em um hospital prximo quele em que trabalhavaLaborit. Posteriormente, com o uso em pacientes com esquizofrenia no agitados, constatou-seque o medicamento, alm de causar sedao, levava a uma melhora dos sintomas psicticos.

    O psiquiatra suo Roland Kuhn (1912-2005), em 1957, descobriu o efeito antidepressivode um derivado da clorpromazina, a imipramina. Esta substncia foi inicialmente testada empacientes psicticos agitados, e se mostrou ineficaz. Contudo, Kuhn observou uma melhoraacentuada em um subgrupo de pacientes classificados como deprimidos. Em 1952, verificou-se que a iproniazida, que j era usada no tratamento da tuberculose, possua efeitos estimulantese de elevao do humor. Com base nessa observao, em 1957, o psiquiatra norte-americanoNathan Kline (1916-1982) avaliou e confirmou a eficcia dessa substncia no tratamento dadepresso (ver Captulo 5). A imipramina foi o primeiro antidepressivo tricclico, enquanto aiproniazida foi o primeiro antidepressivo inibidor da enzima monoaminoxidase (IMAO).

    Em 1949, o australiano John Cade (1912-1980) descobriu a ao teraputica do ltio nafase manaca do transtorno bipolar (ento conhecido como psicose manaco-depressiva; verCaptulo 5). O ltio no foi sintetizado, ele existe na natureza. Trata-se de um metal alcalinomonovalente, classificado na coluna 1A da tabela peridica dos elementos qumicos. Cadeinjetou urato de ltio em cobaias (porcos-da-ndia) e constatou que isso lhes causava letargia.Experimentou, em seguida, a substncia em pacientes psiquitricos, observando que os mana-cos, mas no os esquizofrnicos ou os deprimidos, apresentavam melhora. Nos anos seguintes,na Dinamarca, Mogens Schou (1918-2005) realizou diversos estudos clnicos que comprovaramo efeito antimanaco do ltio.

    Nessa histria de casualidades, os ansiolticos benzodiazepnicos so uma exceo. Osqumicos Leo Sternbach e Earl Reeder intencionalmente tentaram criar um medicamento com

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    propriedades sedativas e de relaxamento muscular, e, em 1957, sintetizaram o clordiazepxido,o primeiro benzodiazepnico. Em 1963, lanado no mercado o diazepam, um medicamentoda mesma classe, porm mais potente que o clordiazepxido.

    A revoluo psicofarmacolgica alterou profundamente a abordagem teraputica dosdoentes mentais, permitindo que as internaes psiquitricas se tornassem mais curtas, menosfrequentes e, muitas vezes, desnecessrias. Os medicamentos mais modernos so, em geral,mais seguros e apresentam menos efeitos colaterais que os mais antigos. No entanto, consideran-do-se apenas a eficcia teraputica, at hoje no se conseguiu sintetizar um antipsicticosuperior clorpromazina, ou um antidepressivo superior imipramina. Alm disso, o ltiocontinua a ser o principal medicamento no tratamento do transtorno bipolar.

    A ANTIPSIQUIATRIA

    Michel Foucault (1926-1984) foi um dos principais pensadores a estudar de forma crtica osaspectos histricos da doena mental. Em seu livro Histria da loucura, publicado em 1961,argumenta que os hospitais psiquitricos, da mesma forma que os presdios, representaminstituies criadas pela sociedade com o objetivo de excluir indivduos incapazes de se ajustar ordem social. Foucault aponta, tambm, que mesmo a revoluo psiquitrica originada comPinel, por meio do emprego do tratamento moral, representou, meramente, uma nova formade opresso, uma vez que eram empregados mtodos de punio fsica muito semelhantesaos existentes at ento.

    Nos anos seguintes, essas crticas contriburam para a origem da antipsiquiatria, umconjunto de teorias que se opunha maior parte das prticas psiquitricas da poca. Deacordo com essa perspectiva, no h nada de patolgico em relao loucura. Aqueles chama-dos de loucos so, na verdade, pessoas que apresentam um comportamento que se ope aospadres impostos pela sociedade. Nesse sentido, os hospitais psiquitricos so locais de exclu-so social, de isolamento em um ambiente hostil e desumano. Ainda segundo o movimentoantipsiquitrico, o conhecimento cientfico sobre adoecimento mental e o tratamento psiqui-trico representam interesses de determinados grupos da sociedade em excluir formas alternativasde expresso individual. A institucionalizao de hospitais psiquitricos teria como objetivo arepresso de pessoas que ousam pensar ou agir de forma diferente ao padro j estabelecido.

    Vrios psiquiatras, durante a dcada de 1960, aderiram ao movimento da antipsiquiatria.Dentre eles destacam-se Ronald Laing (1927-1889) e David Cooper4 (1931-1986), na Gr--Bretanha, e Thomas Szasz (1920-), nos Estados Unidos. De acordo com esses mdicos, sintomasesquizofrnicos, como delrios de perseguio, seriam reaes esperadas a situaes de extremo

    4 O termo antipsiquiatria foi criado por David Cooper, em 1967, em seu livro Psiquiatria e antipsiquiatria.

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    controle social. Com base nessa ideologia, vrias comunidades teraputicas foram criadas naInglaterra e nos Estados Unidos, nas quais mdicos, enfermeiros, psiclogos e assistentes sociaisexerciam as mesmas funes, sem qualquer diferenciao. Alm disso, no havia uma ascendn-cia hierrquica dos profissionais em relao aos pacientes, e a medicao s poderia ser utiliza-da de forma voluntria.

    Ainda no incio da dcada de 1960, o movimento antipsiquitrico ganhou fora com opsiquiatra Franco Basaglia (1924-1980), que, ao assumir a direo do Hospital Psiquitrico deGorizia, no norte da Itlia, em 1961, promoveu mudanas significativas no processo de institu-cionalizao do doente mental. Dentre as medidas adotadas, destacam-se a substituio dotratamento hospitalar e manicomial por uma rede territorial de atendimento, da qual faziamparte servios de ateno comunitrios, emergncias psiquitricas em hospitais gerais, coopera-tivas de trabalho protegido, centros de convivncia e moradias assistidas. Muitas dessas mudan-as realizadas por Basaglia na Itlia tiveram grande impacto na psiquiatria brasileira, especialmen-te na dcada de 1980.

    O filme Um estranho no ninho uma adaptao do livro homnimo, escrito porKen Kesey, que popularizou algumas das ideias da antipsiquiatria. Filme de grande sucesso, foium dos poucos a ganhar os cinco principais prmios da Academia: Oscar de melhor filme,roteiro adaptado, direo, ator e atriz.

    Randle Patrick McMurphy (Jack Nicholson) simula estar louco para no trabalhar napenitenciria em que est preso (ver Captulo 9), sendo, ento, transferido para o hospitalpsiquitrico do estado de Oregon, situado na cidade de Salem. Aos poucos, vai percebendoque a troca de instituies no foi to proveitosa assim. Ele constantemente supervisionadopela autoritria enfermeira Mildred Ratched (Louise Fletcher), que, durante as sesses de tera-

    pia em grupo, comporta-se deforma sdica, humilhando ospacientes que no se compor-tam de forma apropriada. Osmdicos logo chegam conclu-so de que McMurphy, de fato,no sofre de uma doena men-tal, embora reconheam que uma pessoa muito perigosa. En-tretanto, a enfermeira Ratchedpede para que ele continue nohospital, pois acredita que podemodificar seu comportamento.A partir da, tem incio um con-fronto entre Ratched eMcMurphy. Podemos observar

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    uma srie de medidas repressivas, entre elas o uso do eletrochoque, com o objetivo de controlaro comportamento do paciente. Como essas medidas no surtem efeito, a enfermeira acabaconvencendo os mdicos do hospital a realizar uma lobotomia em McMurphy, transformando-o,assim, em um vegetal. A cirurgia o deixa em estado to deplorvel que outro pacienteacredita que ele estaria melhor morto e, por piedade, sufoca-o com um travesseiro.

    A lobotomia foi desenvolvida pelo neurocirurgio portugus Antnio Egas Moniz (1874--1955),5 denominada por ele leucotomia (corte da substncia branca). Consiste em umpequeno corte nas fibras nervosas que ligam o tlamo ao crtex pr-frontal. De fato, a lobotomiafoi indiscriminadamente utilizada em todo o mundo, pois se mostrava um mtodo muitoeficaz no controle do comportamento agressivo em pacientes psiquitricos, em particular naque-les que sofriam de esquizofrenia. Entretanto, mais tarde ficou evidente que essa tcnica cirrgicacausava danos irreversveis ao crebro e profundas alteraes na personalidade e na afetividadedos pacientes. Consequentemente, a lobotomia foi abandonada no final da dcada de 1950.

    Hoje em dia, cirurgias cerebrais para o tratamento de transtornos mentais psicocirurgias,cirurgias psiquitricas ou neurocirurgias funcionais so bastante incomuns, sendo indicadasapenas como ltima alternativa em casos de depresso ou transtorno obsessivo-compulsivomuito graves e refratrios, isto , que no responderam a nenhuma forma de tratamento eque causam extremo sofrimento ao paciente. No Brasil, necessrio obter autorizao prviado Conselho Federal de Medicina para a realizao desse tipo de cirurgia.

    Com relao eletroconvulsoterapia, preciso prestar alguns esclarecimentos, uma vezque muitos mitos foram criados em torno desse mtodo de tratamento. Apesar do que aspessoas em geral acreditam, trata-se de um procedimento inteiramente indolor, mesmo seno se utilizasse anestesia. H uma perda imediata da conscincia, o que impede que o indivduosinta qualquer dor. Alm disso, o crebro um rgo insensvel dor, permitindo que cirurgiascerebrais sejam realizadas com o paciente acordado. A eletroconvulsoterapia est associada amenos efeitos colaterais do que muitos medicamentos. Nos quadros psicticos, catatnicos,manacos e depressivos, a eletroconvulsoterapia mostra-se muito eficaz, sendo com frequnciaprescrita nos pases do primeiro mundo e em hospitais universitrios brasileiros. verdade quedurante o regime militar, e ainda hoje em dia, o eletrochoque foi usado como instrumento detortura porm, com uma tcnica diferente da empregada na eletroconvulsoterapia. No entan-to, o mau uso de um instrumento no deve impedir o seu bom uso. Seno, como muitosassassinatos j foram cometidos com facas e outros objetos cortantes, os cirurgies deveriamser proibidos de usar bisturis. Cumpre ressaltar que o Conselho Federal de Medicina, por meioda resoluo 1.640/2002, qualifica a eletroconvulsoterapia como um mtodo teraputicoeficaz, seguro, internacionalmente reconhecido e aceito. Nesse mesmo documento, o rgoestabelece quais os procedimentos tcnicos adequados e as principais indicaes clnicas daeletroconvulsoterapia.

    5 Egas Moniz recebeu, em 1949, o prmio Nobel de medicina e fisiologia, pelo desenvolvimento dalobotomia.

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    A PSIQUIATRIA NO BRASIL

    Alguns anos aps a chegada dos grandes navegadores portugueses ao territrio brasileiro,vieram as Irmandades de Misericrdia, associaes catlicas formadas por leigos, que ofereciamassistncia a doentes e invlidos. Com as Irmandades surgiram as primeiras instituies desade, chamadas Santas Casas de Misericrdia. A primeira delas instalou-se em Olinda, noano de 1539. Em seguida, foram criadas as de Santos (1543), So Paulo (1560) e Rio deJaneiro (1582). A assistncia prestada por essas instituies aos doentes mentais no era muitodiferente daquela adotada pelos hospitais gerais europeus. Os mais pobres e necessitados,que no tinham onde morar, eram confinados em pores, e os mais agitados eram surrados epresos com correntes, como se fossem criminosos.

    A transferncia da corte portuguesa para o Rio de Janeiro, em 1808, fez com que aassistncia doena mental no Brasil recebesse uma maior ateno, uma vez que D. Maria I,me de D. Joo VI, era considerada mentalmente insana. Entretanto, o descaso e os maus--tratos em relao aos doentes mentais continuaram. Em funo disso, em meados da dcadade 1830, a recm-formada classe mdica do Rio de Janeiro deu incio a uma srie de protestos,que propiciaram a construo do primeiro hospital psiquitrico brasileiro, inaugurado em 1852.Esse hospital, denominado Hospcio Pedro II, foi erguido na cidade do Rio de Janeiro e marcoua origem da psiquiatria no Brasil. Aps a proclamao da Repblica (1889), o hospital passoua se chamar Hospital Nacional de Alienados, nome que manteve at ser extinto, em 1944.

    Em seguida, surgiram outros hospitais psiquitricos. Destacam-se o Hospcio Provisriode Alienados de So Paulo, fundado tambm em 1852; o Hospcio da Visitao de SantaIsabel, em Recife-Olinda (1864); o Hospcio Provisrio de Alienados de Belm (1873); o Asilode Alienados So Joo de Deus, em Salvador (1874); o Hospcio de Alienados So Pedro, emPorto Alegre (1884); e o Asilo de Alienados So Vicente de Paulo, em Fortaleza (1886). Entretan-to, a falta de profissionais especializados fez com que os cuidados a esses pacientes em todasessas instituies continuassem precrios. Somente a partir de 1884, quando as faculdades demedicina da Bahia e do Rio de Janeiro criaram a ctedra de psiquiatria, que se observa umprogresso significativo no tratamento desses pacientes. Destaca-se, nesse contexto, a figurade Juliano Moreira, que dirigiu o Hospcio Nacional dos Alienados do Rio de Janeiro entre 1903e 1930, humanizando o tratamento e acabando com o aprisionamento dos pacientes.6

    As reformas implementadas por Juliano Moreira estavam calcadas no tratamento moralproposto por Pinel. Uma das principais caractersticas do tratamento moral era a prtica deatividades ocupacionais. Nesse contexto, surgem no Brasil instituies psiquitricas denominadascolnias de alienados ou hospitais-colnia, que se propunham a oferecer aos doentes mentais

    6 Juliano Moreira, que era negro, opunha-se ideia de que a doena mental seria consequncia da misci-genao racial, defendida pela Liga Brasileira de Higiene Mental, fundada em 1923 por Gustavo Riedel(1887-1934). Essa instituio propunha que a doena mental estaria fortemente associada a aspectoshereditrios, enfatizando, assim, a eugenia como forma de controle e preveno do adoecimento mental.

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    atividades de trabalho, principalmente na lavoura, com o objetivo de recuper-los e devolv-los sociedade. Esse projeto disseminou-se bastante no Pas. Foram construdos gigantescos hos-pitais psiquitricos, como a Colnia Juliano Moreira, no Rio de Janeiro. Em So Paulo, a Col-nia Agrcola Juqueri chegou a ter mais de 14 mil internos em 1958.

    Entretanto, o modelo hospital-colnia fracassou enormemente. Os pacientes recebiampouca ou nenhuma assistncia mdica, psicolgica ou social e viviam em condies muitoprecrias. Alm disso, eram mantidos na instituio por tantos anos que, mesmo que um diaviessem a receber alta, se tornavam incapazes de manter uma vida autnoma na sociedade. Aprecariedade dessas instituies fez com que vrios setores da sociedade se manifestassemcontra a internao de doentes mentais em instituies com caractersticas asilares.

    No incio da dcada de 1980, essas crticas incorporaram vrios princpios desenvolvidospela antipsiquiatria, gerando um movimento que ficou conhecido como reforma psiquitrica,ou luta antimanicomial. Esse movimento atingiu seu ponto alto em 1989, quando o deputadofederal Paulo Delgado apresentou um projeto de lei (3657/89) propondo a extino progressivade leitos psiquitricos, que deveriam ser substitudos por uma rede de unidades extra-hospitala-res, visando a reintegrao do paciente sua comunidade. Aps 12 anos de tramitao noCongresso Nacional, o projeto foi aprovado, mas com grandes modificaes, dando origem Lei Federal 10.216/2001. A lei no prev a eliminao dos hospitais psiquitricos, mas enfatizaa assistncia em sade mental em servios extra-hospitalares, como hospitais-dia e ambulatrios.De acordo com essa lei, o paciente acometido por um transtorno mental deve ser tratado,preferencialmente, em servios comunitrios de sade mental, com a devida participao dasociedade e da famlia, sendo a internao psiquitrica somente indicada quando os recursosextra-hospitalares se mostrarem insuficientes. Finalmente, a lei preconiza que o tratamentovisar, como finalidade permanente, a reinsero social do paciente em seu meio.

    O filme brasileiro Bicho de sete cabeas apresenta uma importante dennciasobre as pssimas condies da assistncia psiquitrica em vrios hospitais-colnia ou instituiesasilares em nosso pas, que no passado abrigavam, cada uma, centenas ou milhares de doentesmentais, deixados em um estado de total abandono.

    No filme, Neto (Rodrigo Santoro) internado duas vezes em hospitais psiquitricospelos pais por usar maconha. Recebe, indevidamente, o diagnstico de dependncia qumica.Na primeira instituio, fica sob os cuidados de um psiquiatra corrupto e inescrupuloso. Nasegunda, depara-se com um enfermeiro sdico e violento. Em ambas as instituies, ele submetido a tratamentos extremamente cruis e desumanos. Embora no sofra de nenhumtranstorno mental, obrigado a tomar medicamentos que o fazem engordar e o deixamabobalhado. Quando tenta reagir s agresses que sofre, recebe injees o chamado sossega-leo , trancafiado na solitria ou punido com eletrochoque na cabea.

    Embora ilustre alguns dos fatos que fundamentaram o movimento antimanicomial brasi-leiro, muitas generalizaes indevidas tm sido feitas a partir desse filme. Inicialmente, deve-seesclarecer que a internao psiquitrica nem sempre danosa. Muitas vezes essencial para o

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    tratamento de um episdio agudo de um transtorno mental, pois as alteraes psicopatolgicaspodem, em alguns momentos, representar um grande risco para as outras pessoas umcomportamento heteroagressivo, por exemplo ou para o prprio paciente automutilaoou suicdio. Alm disso, com frequncia, pacientes gravemente doentes no tm plena conscin-cia de seu estado mrbido e, dessa forma, no cooperam com o tratamento. Nesse caso, ainternao pode proporcionar uma maior adeso s medidas teraputicas. A hospitalizaodeve ser de curto prazo, durando apenas o tempo necessrio para o paciente sair da crise.Muitas vezes a internao, quando necessria, realizada contra a vontade do paciente, mascom o consentimento da famlia e de acordo com a avaliao de um mdico, a chamadainternao involuntria, respaldada e regulamentada pela legislao brasileira, especificamentepela Lei da Reforma da Ateno Psiquitrica (10.216/2001).

    importante, tambm, abordar a questo teraputica. Medicamentos podem causarefeitos colaterais indesejveis e muitos malefcios se prescritos para indivduos que deles nonecessitam. No entanto, hoje impossvel tratar adequadamente alguns transtornos mentais no todos sem o uso de psicofrmacos. Os antipsicticos comprovadamente melhoram osdelrios e as alucinaes de pacientes com esquizofrenia, reduzindo, portanto, o sofrimentodesses indivduos. A prescrio de um medicamento, contudo, no implica a impossibilidadedo uso combinado de outra forma de tratamento. Sem dvida, a associao entre psicofarmaco-terapia e psicoterapia tem se mostrado mais eficaz do que o uso isolado de uma dessas opesem diversos transtornos mentais.

    OS SISTEMAS DE CLASSIFICAODOS TRANSTORNOS MENTAIS

    Classificar consiste em agrupar elementos particulares em classes ou categorias de acordocom determinados critrios. O ato de classificar inerente cognio humana. Estamos constan-temente agrupando objetos que apresentam caractersticas em comum. Entretanto, algumascaractersticas aparentes desses objetos podem induzir distores em nossa atividade cognitivaou mesmo erros na formulao de sistemas de classificao. Por exemplo, parece mais naturalpensar que o golfinho um peixe, quando na verdade ele um mamfero. Dessa forma, importante desenvolver sistemas de classificao que utilizem critrios adequados, os quaispermitam, de fato, compreender a realidade nossa volta.

    Sistemas de classificao so extremamente teis, pois permitem organizar e compreenderuma grande quantidade de informaes acerca de um problema. A adoo de critrios clarose objetivos facilita, tambm, a comunicao entre as pessoas que estudam um mesmo proble-ma, permitindo, assim, que se possam fazer levantamentos estatsticos, comparar resultados eformular prognsticos adequados.

    Como j discutido anteriormente, a classificao das doenas mentais remonta a Hip-crates na Grcia Antiga, passando pelos mdicos da Roma Antiga, por Pinel e por Esquirol. Os

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    sistemas atuais de classificao dos transtornos mentais tiveram origem com Kraepelin,7 navirada do sculo XIX para o XX, considerado o pai da nosografia psiquitrica moderna. Coubea ele a clssica diferenciao entre demncia precoce e loucura manaco-depressiva, paranoiae parafrenia.

    Posteriormente, Karl Jaspers (1883-1969), o pai da psicopatologia fenomenolgica,8

    classificou os transtornos mentais em trs grupos. No primeiro grupo, estavam as psicosessintomticas, nas quais as alteraes mentais eram uma decorrncia direta de doenas cere-brais ou de doenas sistmicas que afetavam o crebro. No segundo, estavam as grandespsicoses, que viriam a ser conhecidas como psicoses funcionais: a esquizofrenia e a psicosemanaco-depressiva, alm da epilepsia genuna. Finalmente, no terceiro grupo, se incluam aspsicopatias: reaes anormais, neuroses e personalidades anormais. Jaspers estabeleceu, ain-da, uma hierarquia diagnstica, segundo a qual um diagnstico de um nvel superior deveriater precedncia sobre o de um nvel inferior. Essa hierarquia obedecia seguinte ordem, domais alto para o mais baixo nvel: sndromes psico-orgnicas, epilepsia, esquizofrenia, psicosemanaco-depressiva, neuroses e personalidades psicopticas. A classificao de Kurt Schneider(1887-1967) bastante semelhante de Jaspers. Nela, os grupos I, II e III de Jasperscorrespondem, respectivamente, s psicoses fundamentadas somaticamente, s psicoses nofundamentadas somaticamente e s variaes anormais do ser psquico.

    A tentativa de classificao nosolgica das doenas mentais resultou em uma seoexclusiva dedicada psiquiatria na Classificao internacional de doenas e problemas relacio-nados sade, em sua sexta edio (CID-6), publicada em 1948 pela Organizao Mundial daSade. Essa classificao mostrou-se insatisfatria para os psiquiatras dos Estados Unidos, deforma que a American Psychiatric Association publicou, em 1952, uma classificao independen-te, denominada Manual diagnstico e estatstico de transtornos mentais (DSM, do inglsDiagnostic and statistical manual of mental disorders). A CID e o DSM vm sofrendo uma sriede alteraes ao longo dos anos. O Quadro 1.1 apresenta os respectivos anos de publicaode cada uma das edies desses dois sistemas de classificao das doenas mentais.

    Uma grande transformao na classificao das doenas mentais ocorreu a partir de1980, com a publicao da terceira edio do sistema diagnstico da American PsychiatricAssociation, o DSM-III. Esse manual, criado para uso em pesquisas clnicas, teve como precursoresos critrios de Saint Louis (Feighner et al., 1972) e o Research Diagnostic Criteria (Spitzer;Endicott; Robins, 1978), alm do sistema pluridimensional do brasileiro Jos Leme Lopes (1904-

    7 possvel que o interesse de Emil Kraepelin em desenvolver um sistema de classificao das doenasmentais tenha sido estimulado por seu irmo mais velho, Karl Kraepelin (1848-1915), eminente classifi-cador de moluscos (Berrios, 2008).

    8 A psicopatologia fenomenolgica tem como base a fenomenologia, corrente filosfica criada por EdmundHusserl (1859-1938). Sua principal caracterstica a descrio compreensiva (ou emptica) das vivnciassubjetivas do paciente.

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    1990), publicado em 1954. O DSM-III foi elaborado para ser um sistema classificatrio descri-tivo, isto , baseado simplesmente na descrio de sinais e sintomas psicopatolgicos, seminferncias tericas quanto etiologia do adoecimento mental. Isso decorre do fato de que oconhecimento sobre a etiologia da doena mental ainda bastante incipiente, o que impediriaa formulao de uma classificao baseada nesse aspecto. Assim, o DSM-III, da mesma formaque a CID-10, optou por no usar o termo doena mental, j que o conceito de doena estligado ao conhecimento de suas causas e das alteraes estruturais funcionais que dela decor-rem. Como alternativa, utilizou-se o termo transtorno mental, que, no entanto, muito maldefinido. Um transtorno mental seria algo intermedirio entre uma doena e uma sndrome a qual representa uma associao de sinais e sintomas que costumam aparecer em conjunto.

    Outra caracterstica do DSM-III a utilizao de critrios operacionais para o diagnstico.Nesse sentido, em relao esquizofrenia, por exemplo, so listados seis itens diagnsticos(de A a F), e o paciente tem de se adequar a todos eles, sem exceo, para que tal diagnsticoseja formulado. Alm disso, o DSM-III prope uma avaliao multiaxial, que tenta contemplartanto a abordagem descritiva como a etiolgica. No eixo I, so codificados os transtornosmentais; no II, os transtornos da personalidade e do desenvolvimento; no III, doenas fsicas;no IV, estressores psicossociais; e no V, o mais alto nvel de funcionamento adaptativo no anoanterior.

    O DSM-III-R, o DSM-IV e o DSM-IV-TR mantiveram as caractersticas bsicas do DSM-III.Alm disso, o DSM-III-R influenciou amplamente a formulao da mais recente edio da CID,a CID-10. O sistema DSM tornou-se to importante que empregado em pesquisas em muitosoutros pases alm dos Estados Unidos, mas a CID-10 que tem valor oficial na formulao dediagnsticos no mundo todo, inclusive no territrio norte-americano, devendo ser a classificaoutilizada em documentos legais.

    Quadro 1.1ANO DE PUBLICAO DE CADA UMA DAS EDIES DOS DOIS PRINCIPAIS SISTEMAS DE CLASSIFICAO DOSTRANSTORNOS MENTAIS: A CLASSIFICAO INTERNACIONAL DE DOENAS E PROBLEMAS RELACIONADOS SADE (CID) E O MANUAL DIAGNSTICO E ESTATSTICO DE TRANSTORNOS MENTAIS (DSM)

    CID DSM

    Edio Ano Edio Ano

    6 1948 I 19527 1955 II 19688 1965 III 19809 1975 III-R 198710 1992 IV 1994

    IV-TR 2000

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    Na essncia, a CID-10 e o DSM-IV-TR so bastante semelhantes, embora existam algumasdiferenas importantes entre os dois. Por exemplo, h categorias nosolgicas encontradas naCID-10, como a esquizofrenia simples e o transtorno misto de ansiedade e depresso, que noaparecem no DSM-IV-TR. Alm disso, para uma mesma categoria nosolgica, podem existircritrios diagnsticos diferentes nos dois sistemas classificatrios. Enquanto no DSM-IV-TR adurao mnima exigida para o diagnstico de esquizofrenia de seis meses, na CID-10 bastaum ms. Consequentemente, no raro que um mesmo paciente receba diagnsticos diferentesdas duas classificaes (Cheniaux; Landeira-Fernandez; Versiani, 2009).

    Vrias limitaes so apontadas em relao s classificaes psiquitricas atuais. Emprimeiro lugar, como a sintomatologia algo bastante inespecfico um mesmo conjunto desintomas pode ocorrer em doenas diferentes , uma classificao baseada nesse aspecto considerada pouco vlida. Quando se diz que determinado transtorno mental que apenasum conceito pouco vlido, isso significa que ele dificilmente corresponde a uma doena nomundo real. Nesse sentido, no se pode afirmar, por exemplo, que a esquizofrenia de fatoexista embora, sem dvida, existam pacientes que preenchem os critrios para o diagnsticode esquizofrenia , que ela corresponda a uma nica doena e no a vrias ou que realmenteseja distinta do transtorno bipolar.

    Outras questes levantadas em relao ao DSM-IV-TR e CID-10 dizem respeito aoexcesso de categorias nosolgicas definidas, que chegam a algumas centenas, e a eliminaoda maioria dos critrios hierrquicos para a formulao dos diagnsticos, fazendo com queseja muito elevado o nmero de comorbidades, isto , pacientes que preenchem os critriosdiagnsticos de mais de um transtorno mental ao mesmo tempo. Sem dvida essas comorbi-dades possuem um carter altamente artificial. Quando encontradas, no se acredita que oindivduo sofra, de fato, de mais de uma doena. O mais provvel que as categorias nosolgicasestejam mal definidas e que a distino entre elas no esteja claramente formulada nos siste-mas classificatrios atuais.

    Por fim, apesar da criao de critrios operacionais a partir da dcada de 1970, considera-se que o diagnstico psiquitrico ainda possui um grau muito baixo de fidedignidade. Emoutras palavras, quando um grupo de avaliadores examina um mesmo paciente, a taxa dediscordncia entre eles quanto ao diagnstico muito alta. Isso se deve ao fato de o diagnsti-co dos transtornos mentais ser eminentemente clnico, isto , com base apenas na observaodos sinais e sintomas clnicos, e no contar com a ajuda de exames complementares para a suaconfirmao. Dessa forma, uma maior compreenso dos mecanismos subjacentes ao adoeci-mento mental ir contribuir para a criao de sistemas classificatrios mais vlidos e maisfidedignos.

  • Cinema e LoucuraConhecendo os Transtornos Mentais atravs dos Filmes

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