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CLASSES SOCIAIS E CONSTRUÇÃO DA HEGEMONIA DAS CLASSES SUBALTERNAS
Franci Gomes Cardoso1
RESUMO
Aborda categorias analíticas centrais do pensamento de Gramsci e da tradição marxista (Classes Sociais, Classes subalternas, Hegemonia e transformação Social) reconstruindo-as na configuração histórico-conceitual do objeto de estudo: Classes Sociais e Construção da Hegemonia das Classes Subalternas. Parte da premissa inspirada, fundamentalmente, na visão gramsciana: é exigência histórica do processo de transformação social a ruptura, pelas classes subalternas, com a ideologia dominante e a construção de uma concepção de mundo própria que constitui a base de ações vitais.Essa premissa se constitui eixo condutor para a reconstrução do objeto deste estudo.
Palavras-chave: Classes sociais. Classes subalternas.
Hegemonia.
ABSTRACT
It addresses central analytical categories of Gramsci's thinking and Marxist tradition (Social Classes, Subaltern Classes, Hegemony and Social Transformation) by reconstructing them in the historic-conceptual configuration of the object of study: Social Classes and Construction of the Hegemony of the Subaltern Classes. Part of the premise inspired fundamentally in Gramsci's view: it is a historical requirement of the process of social transformation to break the subaltern classes with the dominant ideology and the construction of a conception of their own world that forms the basis of vital actions. This premise constitutes the guiding gaxis for there construction of the object of this study.
Keywords: Social classes. Subaltern classes. Hegemony.
1 Doutora em Serviço Social: Políticas Sociais e Movimentos Sociais pela PUC/SP; Professora
aposentada, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da UFMA. Professora Visitante do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Socioespacial e Regional da UEMA.
1 INTRODUÇÃO
É possível que, em face do fracasso das experiências socialistas no final do
século XX, levantem-se questões quanto à pertinência do objeto deste estudo pelas suas
perspectivas teórica e política, bem como quanto à possibilidade que teria o pensamento
gramsciano de contribuir para o desvelamento de questões postas, hoje, pela ordem social.
Mas essas questões podem ser efetivamente respondidas. Gramsci inclui-se entre os
pensadores cuja proposta está fundada no pensamento de Marx e muitas das ideias
difundidas, tanto na produção gramsciana quanto na marxiana, podem estar insuficientes
para esclarecer problemas deste século.
Entretanto, isso não significa que as teorias por eles fundadas tenham deixado
de ser um instrumento fundamental para apreender a realidade atual. A perspectiva teórico-
metodológica dos dois teóricos revolucionários é a que permite o conhecimento das
determinações da vida social na ordem burguesa, desvelando os processos que a
engendram e as totalidades que a constituem.
No contexto dessa opção teórico-metodológica e política, a prioridade dada a
Gramsci se justifica pela contemporaneidade de seu pensamento, por ser a prática política o
eixo central de sua preocupação teórica e, sobretudo, pela importância que assume em sua
produção, a reforma intelectual e moral- a formação de uma nova cultura pelas classes
subalternas – como condição de hegemonia dessas classes.
As contribuições, neste estudo, de pensadores da tradição marxista e de
Gramsci, em particular, constituem referências básicas e genéricas para pensar a realidade
social como totalidade histórica e para apreender o movimento do real e reproduzi-lo
idealmente. Priorizei neste estudo as fontes bibliográficas, entendendo que: se é verdade
que a história de um problema é um problema da história, ou seja, que a história do
tratamento de um objeto passa a fazer parte desse objeto, então as reproduções ideais
também se materializam, o teórico se converte em objeto prático.
A sistematização de parte dos resultados dosmeus estudos, aqui estruturada em
forma de artigo, compõe-se de dois grandes itens, com pequenos desdobramentos: no
primeiro, debato o conceito de classe social, a partir de Marx e busco precisar o meu
entendimento sobre classes subalternas inspirada, fundamentalmente, em Gramsci e nas
contribuições de Sartriani; no segundo estabeleço relações entre as categorias consciência
de classe, organização e hegemonia, evidenciando o significado que têm no processo de
superação pelas classes subalternas, de sua condição de subalternidade. Concluo a
exposição recuperando aspectos relevantes do confronto das classes subalternas com o
Estado e classe dominante no processo de construção de um novo bloco histórico e aponto
alguns elementos fundamentais da atual conjuntura brasileira fundamentada em Gramsci,
mostrando a atualidade do seu pensamento.
2 CLASSES SOCIAIS E CLASSES SUBALTERNAS: do conceito clássico ao debate
contemporâneo
Tanto na literatura universal quanto na nacional há profundas divergências sobre
a questão das classes, seja em termos de sua conceituação, seja quanto à sua existência.
Daí, a importância da investigação e debate desse conceito.
Parto, inicialmente, das formulações de Marx, sobre classe social, por ser este
teórico revolucionário a fonte mais relevante dessa relação conceitual e histórica e amplio a
discussão com o conceito de classes subalternas e com outras formulações
contemporâneas que pertençam ao mesmo campo teórico, enquanto procedentes de
analistas da tradição marxista.
Entre 1844 e 1846 Marx vincula-se ao movimento operário, tanto do ponto de
vista político quanto do teórico. Com essa vinculação começa a surgir a determinação de um
projeto revolucionário que se destaca como ponto fundamental no itinerário de Marx. É
naquele período que se verificam os encontros de Marx com a economia política, com a
possibilidade de revolução e com a ultrapassagem da filosofia especulativa. Surgem aqui, as
categorias de classe e revolução.
No Manifesto Comunista, 1848, a acepção usada, por Marx, do termo classe
refere-se aos amplos conjuntos de sujeitos históricos que se constituem segundo um critério
objetivo: por manterem relações similares com os meios de produção. Dito de outra forma, o
termo classe, no Manifesto Comunista, refere-se aos
[...] agrupamentos de exploradores e explorados que, em virtude de razões puramente econômicas são encontrados em todas as sociedades humanas que ultrapassassem a fase primitiva comunal e, como argumentaria Marx, até o triunfo da revolução proletária (HOBSBAWM, 1988, p.36).
São classes diferentes e antagônicas que emergem com a dissolução das
comunidades primitivas: a burguesa constituída pelos capitalistas modernos, proprietários
dos meios de produção que empregam o trabalhador assalariado; e o proletariado
constituído pelos trabalhadores assalariados modernos, que, não possuindo meios de
produção próprios, são obrigados a vender a sua força de trabalho para sobreviver.
Nessa acepção de Marx, sobre classe social, dois elementos importantes se
destacam: a propriedade dos meios de produção e a consequente condição de
assalariamento de setores da sociedade que não possuem esses meios. É, portanto, a partir
das relações econômicas que esses grupos se definem enquanto classes. Numa segunda
acepção usada por Marx ele introduz um elemento subjetivo no conceito de classe – a
consciência de classe - cuja discussão é feita em O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte.
Com esse elemento, uma classe, em sua acepção plena só vem existir no momento
histórico em que começa a adquirir consciência de si como tal.
Partindo dessas reflexões e reafirmando meu ponto de vista quanto à existência
das classes sociais, minha referência neste estudo, é a concepção de classes sociais como
Grupos que se definem, enquanto classe, pelas relações de propriedade com os meios de produção (proprietários ou não proprietários) e pela identidade no modo de pensar e de agir, consolidando-se, efetivamente, como tal, à medida que desenvolvem sua consciência de classes. Ou seja, à medida que o movimento da história é tornado consciente pelo conhecimento dos grupos antagônicos de sua situação de classe (CARDOSO, 1995, p.61).
Sobre as classes subalternas, para precisar meu entendimento, parto da
premissa de que a condição de subalternidade é determinada pelo lugar que segmentos
dessas classes, numa sociedade capitalista, ocupam no conjunto das relações de produção
e nas relações de poder. Segundo Sartriani,
Quando nos ocupamos de uma sociedade em que os meios de produção são propriedade privada, a distinção primeira e fundamental que se opera é entre classe capitalista [...] a que detém a propriedade dos meios de produção e classe proletária [...] que não possuindo tal propriedade, é constrangida a vender a sua força de trabalho aos detentores do capital, com isso se alienando (produzindo mais valia para a outra classe por meio do trabalho alienado) (SARTRIANI, 1986, p.98-99).
Feita essa distinção, acrescenta, ainda, a necessidade de inclusão dos
trabalhadores improdutivos, os desempregados e desocupados, os quais se encontram à
margem da própria divisão classista da sociedade burguesa, mas, a meu ver, na condição
de subalternidade. Nesse ponto de vista, incluem-se no âmbito das classes subalternas,
todos os segmentos da sociedade capitalista que não possuem os meios de produção e
estão, portanto, sob o domínio econômico, político e ideológico das classes que
representam o capital no conjunto das relações de produção e das relações de poder:
assalariados dos setores caracterizados como primário, secundário e terciário ( elementos
dos setores produtivo e improdutivo); os que exercem atividade manual e os que exercem
atividade não manual e intelectual. Incluem-se, ainda, os segmentos não incorporados ao
mercado de trabalho, que são os trabalhadores em potencial, inclusive o exército industrial
de reserva, que é um segmento extremamente funcional para o capitalismo.
No pensamento gramsciano, a relação entre classes dominantes, classes
dirigentes e classes subalternas só se explicita quando se tomam, dialeticamente, as
categorias sociedade política ou Estado e sociedade civil. Gramsci estabelece duas grandes
esferas na superestrutura: a esfera da sociedade civil e outra da sociedade política ou
Estado. Ambas as esferas superestruturais formam, em conjunto, o que Gramsci define
como “Estado no sentido integral: ditadura + hegemonia”, ou, como o próprio teórico
revolucionário escreve em outro contexto, “sociedade política + sociedade civil”. Assim
concebendo, as duas esferas do Estado
Servem para conservar ou promover uma base econômica de acordo com os interesses de uma classe fundamental. Mas o modo de encaminhar essa promoção ou conservação varia nos dois casos: no âmbito e através da sociedade civil as classes buscam exercer sua hegemonia, ou seja, buscam ganhar aliados para suas posições mediante a direção política e o consenso; por meio da sociedade política, ao contrário, as classes exercem sempre uma ditadura, ou, mais precisamente, uma dominação mediante a coerção (COUTINHO, 1988, p.77).
Quando uma classe controla o Estado e impõe-se às demais classes através do
aparato jurídico-político, ela se torna dominante. Mas pode, também, ser dirigente quando
estabelece relações orgânicas com a sociedade civil. É a capacidade que tem uma classe
de ser, ao mesmo temo tempo dominante e dirigente, hegemônica que consolida a unidade
histórica de determinada(s) classe(s).
As classes subalternas necessitam, de modo geral, dessa unidade histórica
porque não dispõe do controle sobre o Estado nem exercem a hegemonia sobre as demais
classes. Entretanto, essa unidade é construída e a sua consolidação supõe, inclusive, que
as classes se tornem dirigentes, antes mesmo de serem dominantes.
Para Gramsci, entre os grupos subalternos um tenderá a exercer a hegemonia
sobre os demais através do partido, concebido como intelectual coletivo. O grupo a que
Gramsci se refere é o proletariado industrial, à medida que consegue criar um sistema de
aliança com os demais grupos e frações de classes afins e mobilizar o conjunto dessas
classes contra o capitalismo e o Estado burguês.
3 SUPERAÇÃO PELAS CLASSES SUBALTERNAS DE SUA CONDIÇÃO DE
SUBALTERNIDADE, NO PROCESSO DE TRANSFORMAÇÃO SOCIAL
Neste item tomo como ponto de partida a categoria hegemonia, por considerá-la
ponto de referência conceitual básico, no pensamento político de Gramsci, no qual essa
categoria é pensada sob diferentes óticas, sendo a ótica da reforma intelectual e moral a
mais pertinente ao objeto deste estudo.
No pensamento gramsciano, a formação da consciência nacional popular
depende da capacidade das classes subalternas, da cidade e do campo, de se constituírem
em uma alternativa de reorganização social e política da sociedade. Essa questão está
relacionada a uma perspectiva que coloque na ordem do dia o problema da construção de
uma hegemonia de novo tipo.
Assim o tema da hegemonia é central entre as preocupações de Gramsci, em
relação às possibilidades de as classes subalternas se tornarem protagonistas históricos,
dotados de vontade coletiva própria. Nesse sentido, a hegemonia se refere à capacidade de
uma dessas classes que aspire a dirigir o conjunto da sociedade em trabalhar os interesses
do conjunto dos grupos subalternos, em termos de um projeto universal que contemple a
organização e a participação relacionadas á política como dimensão pedagógica.
Essa noção de hegemonia tem um cunho cultural que não opera apenas no
âmbito intelectual, mas informa toda a cotidianidade dos sujeitos. Desse modo, participar de
forma organizada da política, numa perspectiva pedagógica, é manifestarcapacidade de
intervir no processo de transformação social e político de modo consciente.
É nesse sentido que entendo a organização e a consciência de classe como
condições para a conquista da hegemonia pelas classes subalternas.
3.1 O conceito de hegemonia em Gramsci
Na dialética do pensamento gramsciano a questão da hegemonia – a partir da
qual e para a qual o teórico e militante marxista pensa a política – é trabalhada em diversos
ângulos, entre eles: um, que toma a questão das alianças de classes (operários e
camponeses) como central; outro que destaca o partido político como intelectual coletivo, ao
qual é atribuída a tarefa de estabelecer o nexo entre intelectuais e massa, cultura científica e
cultura popular, no sentido da construção de uma vontade coletiva nacional popular, ou seja
da constituição das classes subalternas como sujeitos da ação histórica; e um terceiro, que
examina o processo de construção da hegemonia como reforma intelectual e moral, ou seja,
como construção de uma nova cultura..
Esses ângulos de discussão estão estreitamente imbricados, mas constituem, ao
mesmo tempo, eixos de análises diversificados de um conjunto unitário. Portanto, é possível
aos analistas do pensamento gramsciano, enfatizarem um ou outro eixo de acordo com os
interesses de estudo, sem perder de vista as relações existentes com a totalidade da
construção teórica da categoria de hegemonia, feitas pelo autor.
Com esse entendimento, examino aqui o conceito de hegemonia enfatizando o
eixo de análise referente à reforma intelectual e moral, à perspectiva de construção de uma
nova cultura.
Nessa perspectiva de construção de uma nova cultura, a reforma intelectual e
moral é um processo que se realiza na prática política e é um “terreno para um ulterior
desenvolvimento da vontade coletiva nacional popular, no sentido da realização de uma
forma superior e total de civilização” (GRAMSCI, 1989, p.8-9).
Considerada a partir desse eixo de discussão, a hegemonia, no pensamento
gramsciano tem uma função eminentemente pedagógica, enquanto processo de
constituição ideológica das classes subalternas, que se realiza tanto para afirmar a direção
dessas classes quanto para superar a sua condição de subalternidade, construindo uma
nova ordem social.
se refere
Nos termos colocados, é evidente que o caráter pedagógico da hegemonia não
[...] às relações especificamente escolares, pelas quais as novas gerações entram em contato com as antigas e lhes absorvem as experiências e os valores historicamente necessários, „amadurecendo‟ e desenvolvendo uma relação própria e culturalmente superior. Esta relação existe em toda a sociedade no seu conjunto e em todo indivíduo com relação a outros indivíduos, bem como entre camadas intelectuais e não-intelectuais, entre governantes e governados, entre elites e seguidores, entre dirigentes e dirigidos, entre vanguardas e corpos do exército. [...] É uma relação ativa de vinculações recíprocas (GRAMSCI, 1987, p. 37).
que provoca mudanças no modo de pensar e agir dos sujeitos e onde há
negação/superação de hierarquias.
Gramsci concebe a constituição da ideologia das classes subalternas como uma
condição essencial para a conquista da hegemonia dessas classes, na medida em que
conseguem romper com a dominação ideológica das classes adversárias. Esse rompimento
não se efetiva independentemente das transformações econômicas, mas não há, por outro
lado uma dependência absoluta dessas.
No pensamento gramsciano a ideologia é uma “concepção de mundo que se
manifesta implicitamente na arte, no direito, na atividade econômica, em todas as
manifestações da vida individuais e coletivas” (GRAMSCI, 1978, p.16). A ideologia tem,
portanto, um peso decisivo na organização da vida social, pois se realiza concreta e
historicamente, resultando do movimento da estrutura social.
Para Gramsci, essa manifestação da ideologia, enquanto concepção de mundo,
objetiva-se em graus diversificados que ele procura demonstrar em suas reflexões sobre o
processo de elaboração de uma concepção de mundo crítica e coerente. Estabelece,
nessas reflexões, a relação entre filosofia, senso comum e religião, situando esses
elementos no interior desse processo de elaboração.
Ao tratar a filosofia, Gramsci ressalta que há um preconceito bastante difundido
de que ela seja algo muito difícil a que apenas uma determinada categoria de cientistas
tenha acesso, insistindo que tal preconceito seja destruído. Isso porque, para Gramsci,
todos os homens são “filósofos”, na medida em que – mesmo sem terem consciência -, na
mais simples manifestação da atividade intelectual está contida uma concepção de mundo,
ou seja, está implícita uma ideologia.
Segundo o teórico marxista, essa filosofia tem limites porque é espontânea. Mas
é acessível a todo mundo, manifestando-se
[...] na própria linguagem, que é um conjunto de noções e de conceitos determinados e não simplesmente de palavras gramaticalmente vazias de conteúdos; no senso comum e no bom senso; na religião popular e, consequentemente, em todo o sistema de crenças, superstições, opiniões, modos de ver e agir que se manifestam naquilo que se conhece geralmente por „folclore‟ (GRAMSCI,1978,p.11).
Nessas formas pelas quais são manifestadas concepções de mundo que,
segundo Gramsci, são espontâneas, podem ser avaliados os graus de elaboração
ideológica; ou seja, a maior ou menor complexidade da concepção de mundo de cada um e
qual o grupo a que pertence: se o de “homemmassa ou de “homem coletivo”. Pois o grau de
concepção de mundo pode revelar a tendência a um ou outro grupo, respectivamente.
Para Gramsci:
[...] pela própria concepção de mundo, pertencemos sempre a um determinado grupo, precisamente o de todos os elementos sociais que partilham de um mesmo modo de pensar e agir. Somos conformistas de algum conformismo, somos sempre homens-massa ou homens-coletivos. (...) Quando a concepção de mundo não é crítica e coerente, mas ocasional e desagregada, pertencemos simultaneamente a uma multiplicidade de homem-massa, nossa própria personalidade é composta de uma maneira bizarra: nela se encontram elementos dos homens das cavernas e princípios da ciência mais moderna e progressista; preconceitos de histórias passadas e intuições de uma futura filosofia que será própria do gênero humano, mundialmente unificado. Criticar a própria concepção de mundo, portanto, significa torná-la unitária e coerente e levá-la até o ponto atingido pelo pensamento mundial mais desenvolvido (GRAMSCI, 1978, p.12).
Desse modo, a consciência de nossa historicidade, de sua fase de
desenvolvimento e de sua relação com outras concepções de mundo é condição
fundamental para a constituição de uma filosofia crítica e coerente. A construção dessa
filosofia superior ou a criação de uma nova cultura significa, além de todo um processo
crítico e de descobertas originais, a difusão e socialização de verdades já desvendadas para
torná-las a base do agir das classes subalternas, “[...] o elemento de coordenação é de
ordem intelectual e moral” (GRAMSCI, 1978, p.14).
A hegemonia – enquanto reforma intelectual e moral – é, precisamente, a
criação de homens capazes de
[...] pensar coerentemente e de modo unitário o real presente, tornando uma nova cultura patrimônio de todos. Este é um fato filosófico bem mais importante e original do que a descoberta, por parte de um „gênio filosófico‟, de uma nova verdade que permaneça patrimônio de pequenos grupos intelectuais (GRAMSCI, 1978:14).
Situando os elementos históricos, filosofia, senso comum e religião no processo
de elaboração de uma nova concepção de mundo, Gramsci entende a filosofia como uma
ordem intelectual, por ser, ao mesmo tempo, crítica e superação dos demais elementos.
Nesse sentido, a filosofia coincide com o bom senso, que se contrapõe ao senso comum.
Mas, lembrando o argumento de Gramsci, ao afirmar que “todos os homens são filósofos”
porque na mais simples atividade intelectual existe uma concepção de mundo, é importante
ressaltar que a diferença fundamental entre esses fenômenos é o nível de elaboração
crítica. Seguindo o raciocínio do teórico marxista, tanto a religião quanto o senso comum (
que também não coincidem, mas o primeiro é um elemento do segundo) expressam
concepções de mundo, mesmo que os sujeitos não tenham consciência do que expressam.
Ademais, o próprio Gramsci, na passagem de Cadernos do cárcere em que reflete sobre a
relação entre ideologia e filosofia, parte da concepção de religião como concepção de vida e
a relaciona ao conjunto das ideologias.
Para o teórico marxista, se a religião é uma concepção de mundo (filosofia) com
uma moral (norma de conduta) correspondente, não pode existir diferença entre religião e
ideologia e, em última análise entre ideologia e filosofia, embora uma religião, uma filosofia
ou uma ideologia, todas possam manifestar-se, historicamente, como fatos individuais.
Essa análise pode se estender para a relação entre filosofia e senso comum,
uma vezque ambos constituem concepções de mundo e ambos manifestam-se como
fenômenos históricos individuais, sobretudo pela diferença de nível de elaboração e de
criticidade existente entre eles.
Enquanto concepção fragmentária, o senso comum manifesta a coexistência de
filosofias diferenciadas que são explicitadas na contradição entre o pensar e o agir, ou seja,
há uma concepção de mundo que se expressa através do fato intelectual e outra que se
manifesta na ação efetiva. Essa contradição será superada com a elevação do senso
comum ao plano crítico que, segundo Gramsci, faz-se através da luta concreta, nos
cotidiano das classes subalternas, a partir dos problemas por elas enfrentados. Assim, as
classes subalternas poderão chegar a um nível cultural superior e crítico. Mas Gramsci vai
mais além em seu projeto revolucionário. Para ele não se trata apenas de realizar uma
reforma intelectual e moral dos estratos sociais culturalmente atrasados, mas de realizar
umprojeto educativo capaz de tirar as massas da passividade e de construir a sua
hegemonia e uma nova ordem social.
Portanto, se o senso comum é passível de transformações, realizar sua crítica e
a sua superação, pela filosofia, significa desenvolver um processo pedagógico e político,
referenciado na prática histórica das classes subalternas.
Assim, se o modo de pensar e a organização política ocupam um lugar decisivo
na conquista da hegemonia, no pensamento gramsciano, também é decisivo o papel que o
teórico marxista confere aos intelectuais e ao partido na construção de uma nova cultura.
Gramsci entende que “uma massa humana não se distingue e não se torna
independente „por sí‟, sem organizar-se; [...] e não existe organização sem intelectuais, isto
é, sem organizadores e dirigentes [...]” (GRAMSCI, 1978, p.21).
Nos termos aqui expostos, a preocupação de Gramsci com a passagem
dasclasses subalternas à posição hegemônica está vinculada à necessidade do
desenvolvimento de um novo projeto cultural que seja capaz de propiciar a elaboração de
uma concepção de mundo própria das classes subalternas,autonomizando-a em face do
domínio ideológico das classes dominantes. Ou seja, liberando-a da racionalidade
capitalista.
3.2 Consciência de classe e Organização: determinações básicas na construção da hegemonia das classes subalternas
A consciência de classe, no pensamento marxiano, se constitui como um
processo histórico e dialético, constituído por homens concretos inseridos em determinado
modo de produção e relações sociais correspondentes:
[...] os homens são os produtores de suas representações, de suas ideias etc., mas os homens reais e ativos, tais como se acham condicionados por um determinado desenvolvimento de suas forças produtivas (MARX; ENGELS, 1991, p.36-37).
A consciência de classe está, portanto, diretamente vinculada à atividade
material e coletiva dos homens, sendo impossível concebê-la em cada homem isolado no
conjunto das relações sociais.
A consciência é, antes de tudo, a consciência do meio sensível imediato e de uma relação limitada com outras pessoas e outras coisas situadas para o indivíduo que toma consciência; é, simultaneamente, a consciência da natureza que inicialmente se depara ao homem como uma força francamente estranha, toda poderosa e inatacável, perante a qual os homens se comportam de uma forma puramenteanimal e que os atemoriza tanto como aos animais; e, por conseguinte, uma consciência da natureza puramente animal (MARX; ENGELS, 1991, p.36).
Por outro lado, na medida em que o homem toma consciência da necessidade
de estabelecer relações com os indivíduos que o cercam, isto marca, para ele, a tomada de
consciência de que vive efetivamente em sociedade. Mas o elemento chave determinante
da constituição da consciência humana é o trabalho. Pois ao contrário do que acontece com
o trabalho animal, o produto do trabalho humano já está contido na imaginação do
trabalhador. Este imprime ao material o projeto que, conscientemente, tem como alvo. Diz
Marx:
[...] na produção social da própria existência os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade; estas relações de produção correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forçasprodutivas materiais. O conjunto dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo social, político e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência. (MARX, 1978, p.129-130).
Nessa perspectiva, a consciência de classe é determinada por forças motrizes
estruturais (forças relativamente permanentes) e por elementos conjunturais que se
apresentam como ocasionais,imediatos ou espontâneos em contextos determinados e
momentos históricos dados. Mas sejam quais forem esses contextos, (desde que em
sociedades de classes), entendo que a organização das classes subalternas é uma
exigência fundamental, porque é na luta organizada que os segmentos subalternos da
sociedade elevam sua consciência e sua solidariedade, e expressam suas vontades
coletivas.
Para Gramsci, o proletariado pode, na perspectiva da revolução:
[...] tornar-se classe dirigente e dominante na medida em que consegue criar um sistema de aliança de classes (operários e camponeses), que lhe permita mobilizar, contra o capitalismo e o Estado burguês, a maioria da população trabalhadora – o
que significa, na Itália, dadas as reais relações de classes, existentes, que o proletariado pode se tornar classe dirigente e dominante na medida em que consegue obter o consenso das amplas massas camponesas (GRAMSCI,1987,139).
Mas, para isso, Gramsci (1989 a) insiste em que o proletariado abandone modos
de pensar corporativistas e supere interesses imediatistas e particularistas. Pois, a partir
dessa superação, vai desenvolvendo-se o processo de formação de uma consciência – a
consciência de classe – que se manifesta na prática política. Nesse processo, são
destacados pelo autor três momentos ou graus de relação de forças nas análises histórico-
políticas, que, fundamentalmente, são os seguintes: o primeiro é a relação de forças ligada à
estrutura objetiva; o segundo é a relação das forças políticas, onde é apreendida a formação
da consciência e organização dos grupos sociais; o terceiro é o da relação das forças
militares - o militar, num sentido estrito ou técnico-militar e o político militar. O primeiro grau,
que é o mais elementar, é denominado de econômico-corporativo, havendo uma unidade
entre um determinado grupo profissional, mas não ainda uma unidade do grupo social mais
amplo. O segundo grau corresponde ao momento em que se adquire a consciência da
solidariedade de interesse entre os membros do grupo social, mas ainda no terreno
meramente econômico. O terceiro grau, momento propriamente político, evidencia a
passagem da estrutura para a esfera das superestruturas complexas. Essa passagem da
estrutura para a superestrutura, que se efetiva no terceiro momento da consciência política
coletiva, é denominada por Gramsci de catarse. É o momento em que o proletariado deixa
de ser “classe em si” e se torna “classe para si” e consegue elaborar um projeto político para
toda a sociedade, cujo objetivo é conquistar a hegemonia, elevando ao máximo de
universalidade o ponto de vista das classes subalternas.
Convicto de que apenas a situação objetiva não impulsiona essa classe à
revolução e da exigência de uma análise concreta dos processos históricos, Gramsci
entende que o partido enquanto locus da organização do proletariado,precisa de um aparato
teórico para desvendar a realidade social e atuar sobre ela.
A abordagem feita por Gramsci sobre a aliança de classes é na perspectiva de
construção de um novo bloco histórico, na construção de novas relações de hegemonia que
se fundam na unidade de força das classes aliadas – proletariado e as grandes massas
camponesas – na luta contra a classe dirigente.
4 CONCLUSÃO
A apreensão feita das questões aqui expostas me permitem concluir pensando a
atualidade da sociedade brasileira que vivencia, neste momento histórico, uma profunda
crise estrutural e, fundamentalmente política, onde a luta das classes se tornou mais
explicita com o excessivo avanço do pensamento conservador das elites reacionárias do
país.
Essas elites reacionárias têm o Estado sob controle e impõe-se às demais
classes, em particular às classes subalternas, através do aparato jurídico-político e
coercitivo, mantendo-se dominante pela força e atos golpistas, destruindo processos
democráticos com argumentos farsantes de combate à corrupção, da qual são os principais
protagonistas.
Feita esta breve reflexão, fundamentada nos ensinamentos de Gramsci e
demonstrando a sua atualidade, retomo a premissa que norteou este estudo, agora como
tese, reafirmando que: é exigência histórica do processo de transformação social a ruptura,
pelas classes subalternas, com a ideologia dominante e a construção de uma concepção de
mundo própria que constitui a base de ações vitais.
REFERÊNCIA
CARDOSO. Franci Gomes. Organizações das classes subalternas: um desafio para o
Serviço Social. São Paulo, Cortez: Editora da Universidade Federal do Maranhão, 1995.
COUTINHO, C. N. e NOGUEIRA, M. A. Gramsci e a América Latina, 2. Ed. Rio de
Janeiro, Paz e Terra, 1988
GRAMSCI, Antônio. A questão meridional. Trad. Carlos Nelson Coutinho e Marco Aurélio
Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
. Concepção dialética da história. Trad. Carlos Nelson Coutinho. 3 ed., Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
. Maquiavel, a política e o Estado moderno. Trad. Luiz Mário Gazzaneo. 7ed.,
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989.
. Os intelectuais e a organização da cultura. 7 ed., Rio de Janeiro: Civilização
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HOBSBAWM, (org). História do Marxismo. Vol. VI. “O marxismo na época da Terceira
Internacional: da internacional comunista de 1919 às frentes populares”, trad. Carlos
Nelson Coutinho, Luiz Sérgio N. Henriques e Amélia Rosa Coutinho. 2. Ed. Rio de Janeiro,
Paz e Terra 1988.
MARX, Karl. Para a crítica da economia política. Trad. José Arthur Giannotti e Edgar M.
São Paulo: Abril Cultural, 1978 (Coleção Os Pensadores)
MARX, Karl & ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo: Hucitec, 1991.
SARTRIANI, Luigi M. Lombardi. Antropologia cultural e análise da cultura subalterna,
trad. Josildeth Gomes Consorte. São Paulo, Hucitec, 1986
O Caderno 25 de Gramsci
Lincoln Secco
Resumo
Este artigo apresenta uma leitura dos estudos sobre os grupos
subalternos de Gramsci à luz de questões atuais como: o
feminismo, racismo e a pluralidade da classe trabalhadora.
Palavras - Chaves: Gramsci - Estudos Subalternos - Cadernos do
Cárcere
Abstract
This article presents a reading of Gramsci's subaltern studies under
perspective of current issues such as: feminism, racism and plurality
of the working class.
Key Words: Gramsci -Subaltern Studies - Prison Notebooks
1. INTRODUÇÃO
Podem os subalternos falar? A questão que gerou ampla discussão na historiografia
recuperava uma ideia de Antonio Gramsci que estivera virtualmente esquecido. As minúcias
filológicas dos vários conceitos gramscianos têm sido objeto de profundas investigações.
Termos como “hegemonia” e “sociedade civil” já sofreram o escrutínio de autores de
diferentes perspectivas teóricas durante meio século ou mais. Já o conceito de subalternos
foi discutido amplamente depois que a escola de historiadores indianos criou os chamados
Subaltern Studies, em torno principalmente da leitura do famoso Caderno 25 do Cárcere, em
que Gramsci concentra suas passagens sobre os que estão “à margem da história”.
Em seguida, o conceito ganhou a adesão dos estudos culturais dos EUA. Portanto, o tema
se difundiu mundialmente por causa das primeiras abordagens em língua inglesa. Massimo
Modonesi e Guido Liguori fizeram uma revisão do conceito e mostraram como a forma da
edição inglesa dos textos selecionados de Gramsci e erros de leitura condicionaram aquela
recepção indiana e estadunidense (Del Roio, 2017).
A subalternidade ainda tem uma tradução espacial, de resto já presente em seu último texto
pré-carcerário, “Alguns Temas da Questão Meridional” (1926). O Mezzogiorno é, na Itália, a
própria expressão da subalternidade de uma classe ou conjunto de fragmentos de classes
oprimidas e, de alguma forma, exploradas pelo capital industrial do norte. Como bem nota
Marcos Del Roio, os grupos subalternos podem ser compreendidos como periferias das
classes dirigentes. Por baixo do espaço supostamente homogêneo de um Estado Nacional,
é possível vislumbrar as verticalidades (como diria Milton Santos) do capital transnacional
que geram desigualdades sociais mais ou menos visíveis no território.
2. DESENVOLVIMENTO
Discute-se se ao trocar o uso de “classes” por “grupos” Gramsci estaria fugindo à censura
carcerária. Ainda que o termo classe apareça muito, é notável que em seus Cadernos do
Cárcere as expressões lotta de classe e lotta di classi sejam utilizadas somente nove vezes
e lotte di classe uma só vez.
Nas únicas quatro vezes em que aparece nos Cadernos o termo classes instrumentais está
vinculado aos intelectuais ou ao tema da escola unitária. A Classe operária é citada só três
vezes ― os termos “operário” e operária” como substantivos ou adjetivos aparecem bem
mais. Mas não é pelo mero registro quantitativo que se pode atribuir a importância de um
conceito, embora sua recorrência seja um índice importante da direção que a pesquisa
gramsciana seguiu.
Gramsci, por exemplo, define uma única vez as classes fundamentais. O sentido é bem
preciso: elas são produtivas e se dividem em borghesia capitalistica e proletariato moderno.
Apenas em mais dois momentos escreve sobre os “grupos principais das classes
fundamentais” e a relação destas com os intelectuais.
Os subalternos, sempre no plural, não possuem uma definição precisa. Eles não substituem
o proletariado, embora possam contê-lo. A razão disso é que eles se definem em relação a
outros grupos homogêneos. Os subalternos são tudo menos homogêneos e se caracterizam
pela desagregação, a espontaneidade, a falta de organização permanente (leia-se bem: não
de qualquer organização!).
A pesquisa dos subalternos está subordinada ao vasto empreendimento teórico de Gramsci:
compreender como se transforma a estrutura em ação, a espontaneidade em direção
consciente.
De volta à questão do início, os subalternos podem falar, é evidente. Ainda que emudeçam
(muitas vezes propositalmente). Eles tendem a se unificar, mesmo que a tendência seja
rompida sistematicamente pela ação das classes dominantes; e até mesmo podem se
organizar, ainda que de modo episódico. Traços de sua direção própria e consciente se
mostraram ao longo da história em seus levantes desagregados e descontínuos. Com um
desses casos Gramsci inicia seu Caderno 25: a trajetória de Davide Lazzaretti.
Os seguidores de Lazzaretti atuavam no sudoeste da Toscana no século XIX.
Curiosamente, naquela região, em 1953, o Partido Comunista da Itália obteve sua maior
votação percentual: 48,8%. Lazzaretti nasceu em 1834. Era um carregador, vendedor
ambulante etc. Em 1848 tem uma visão e vinte anos depois, durante uma das piores safras
da Itália, com aumento de impostos sobre os camponeses, ele teve uma crise espiritual.
Torna-se santo e tem apoio extra-oficial da Igreja para combater o liberalismo laico.
Em 1870 ele profetizou o aparecimento de um novo chefe e monarca, vindo do Sinai, que
desceria o monte Amiata com os camponeses, para libertá-los. Formou a milícia do Espírito
Santo e colônias “comunistas” nas montanhas. Os fiéis ergueram uma igreja. Sua doutrina
evolui e se descobre que ele mesmo é o Messias. Ele irá descer a montanha no fim do
Reino da Graça (o pontificado de Pio IX). Mas ele morrerá, rezava a profecia.
Tais acontecimentos tiveram como pano de fundo um papado de reação ao socialismo e ao
liberalismo condenados em 1864 no documento “Sílabo dos Erros de Nossa Época"
(Syllabus Errorum). Dez anos antes haviam sido proclamados os Dogmas da Imaculada
Conceição e o da Infalibilidade Papal e em 1858 o milagre de Lourdes veio a reforçar a
política católica da Imperatriz Eugênia na França, consorte de Napoleão III. Quando em
1870 Roma tornou-se capital do Reino da Itália o Papa declarou-se prisioneiro no Vaticano e
proibiu os católicos italianos de votar nas eleições.
Em 1878, Pio IX e o rei Vittorio Emanoelle morreram. Lazzaretti havia retornado da França,
onde tinha adeptos abastados e reuniu 3 mil pessoas no dia da Assunção (14 de agosto).
Dias depois, ele desceu com a multidão e a bandeira de Cristo e da República para a aldeia
de Arcidosso. Os carabinieri mandaram que eles voltassem. Lazzaretti disse: “Se vocês
querem paz, eu lhes trago a paz; se vocês querem comiseração, eu lhes trago comiseração;
se vocês querem sangue, aqui estou eu”. Foram fuzilados. Lazzaretti morreu assassinado
cruelmente, como Gramsci sublinha. Os outros foram condenados à prisão e o movimento
despareceu aparentemente.
Hobsbawm (1970), a quem em parte se deve o relato acima, mostra, entretanto, que quando
houve a tentativa de assassinar Palmiro Togliatti em 1948, os comunistas ameaçaram pegar
em armas, mas foram contidos pela direção do Partido Comunista Italiano. Algumas aldeias
se sublevaram e Arcidosso estava entre elas.
Mais tarde, um dirigente comunista que conhecia a história de Lazzaretti, citou o profeta num
comício naquela localidade. Depois do comício foi levado à parte por algumas pessoas que
estavam contentes com a citação do profeta. Eram... seguidores do profeta! Eram também
comunistas, porque o profeta certamente teria apoiado o PCI, mas eles não sabiam que o
partido valorizava a luta do profeta. O movimento subsistira na clandestinidade. Para
Hobsbawm o movimento milenarista tinha sido absorvido por uma direção política moderna:
o comunismo.
Em Gramsci, diferentemente de Hobsbawm, parece haver maior consideração para com a
espontaneidade. Esta aparece correlacionada à palavra “popularidade”, às formas
elementares, às ideias republicanas (misturadas ao fanatismo religioso).
O próprio Lazzaretti era leitor insaciável, embora não seja preciso que os opúsculos
populares cheguem em grande tiragem aos camponeses, como acentua Gramsci. Suas
visões são fruto de experiências reais com reminiscências literárias e tradições medievais. A
essas se associam “máximas socialistóides”.
A espontaneidade por si só não permite explicar, por exemplo, de que maneira os
camponeses anarquistas andaluzes na mesma época da Rebelião do Monte Amiata levaram
a cabo greves gerais e insurreições coordenadas. O fato dos anarquistas rejeitarem a
disciplina administrativa, não quer dizer que não estavam organizados como argumentou
Temma Kaplan em sua crítica da ideia de milenarismo.
A teoria milenarista não mostra como uma ideologia “pré-moderna” se transformava em ação
política (Kaplan, 1977, p.231). Os anarquistas construíram sindicatos, tentavam ocupar
fabricas e organizar a produção em situações revolucionárias. A espontaneidade porém não
atingiu níveis organizativos maiores. A sociedade imaginada pelos anárquicos seria mais
factível num modelo de sociedade agro letrada, embora os testemunhos do zapatismo, por
exemplo, revelem planos de auto-organização econômica e aliança com operários urbanos.
O mesmo se pode dizer de experiências autogestionárias na Espanha.
Ocorre que depois de 1968, uma crítica radical não comunista apresentou características
avançadas. Ela é expressão de sociedades industriais e pós industriais e não mais agrárias
e questiona a alienação como um processo de estranhamento não tanto no processo
produtivo, mas na esfera do consumo de massa; a repressão psico-ideológica; e a
exploração do tempo livre propiciado pela mais valia relativa. Por fim, apela ao
subproletariado urbano (recrutado em todas as classes, como se afirmava no Manifesto
Comunista) para além de uma classe operária (vista como integrada) e do campesinato,
virtualmente desaparecido na Europa Ocidental. Numa conjuntura assim é que se deu a
recepção do Caderno 25 em países da periferia, onde o campesinato era importantíssimo,
caso da Índia.
Toda a rebeldia autônoma dos subalternos é de grande valia ao historiador integral, diz
Gramsci na sequencia de seu Caderno 25. Até mesmo as monografias locais, cujas fontes
são raras, contribuem para resgatar o seu passado de suposto silêncio.
Gramsci chega a tangenciar o problema da opressão racial quando cita grupos subalternos
de outra raça, cultura e religião (como os escravos da Roma antiga). Mas em todos os seus
cadernos são incipientes as referências ao racismo.
Há interessantes notas sobre as diferenças entre trabalhadores nacionais e estrangeiros,
mas não muito. O mesmo sobre as mulheres. Além de naturalizar comportamentos
femininos e atribuir a elas a frivolidade e a fragilidade psicológica em suas Cartas do
Cárcere, ele chega a escrever no Caderno 25 que “a questão da importância das mulheres
na história romana é similar à dos grupos subalternos, mas até um certo ponto: o machismo
só pode ser comparado a um domínio de classe em um certo sentido”. O problema é que ele
também escreve que isso “tem mais importância para a história dos costumes que para a
história política e social”.
Mesmo sendo homem de sua época, portanto não isento de preconceitos, Gramsci foi além
das classes fundamentais do capitalismo e descobriu no silêncio da história das camadas
subalternas as dimensões culturais que não podiam ser simplesmente incorporadas ao
conceito de um proletariado europeu, branco, masculino e heterossexual.
Ele não abandonava a centralidade operária definida pela sua inserção nas relações de
produção capitalistas. A subalternidade era uma dimensão a mais que permitia entrecruzar
as diversas formas de sujeição de trabalhadoras e trabalhadores em sentido amplo. Abria-se
a perspectiva de compreender a opressão de gênero, étnica, regional, linguística e outras
tantas sem esquecer a de classe, reconfigurando-a.
Mas por que foi necessário criar outra categoria ao lado do proletário? Ambos (subalternos e
operários) são dominados, mas o locus da subordinação de um é interno ao processo de
produção, enquanto o do outro é predominantemente externo. Marx já havia estabelecido
uma minuciosa estratificação dos subproletários que tinham uma relação intermitente com o
trabalho produtivo, seja como exército de reserva de mão de obra ou como parte de uma
das categorias da superpopulação relativa (excedente) tratadas em O Capital (no capítulo
“A Lei Geral da Acumulação Capitalista”).
Gramsci não abandonou a natureza econômica da subalternidade, mas ampliou sua
dimensão cultural. O fato de muitas causas feministas serem incorporadas pela Ordem, por
exemplo, é antes um atestado de seu caráter antagônico ao capital do que de seu lugar
secundário face à “luta de classes”. É por isso que há a preocupação em cooptá-las! Toda
luta operária percorreu historicamente uma trilha estreita entre a integração e a repressão.
As diferentes demandas dos novos sujeitos da subalternidade, outrora marginalizadas pelos
próprios marxistas, tem forte relação com o recorte da classe social, mas desde que a
classe seja vista em sua pluralidade cultural.
Gramsci permitiu a ampliação da classe sem negá-la e indicou dimensões que ele mesmo
não podia expandir. Os subalternos estão além do espaço de dominação fabril sem deixar
de portar a primordial subordinação econômica (direta ou indireta) ao lado de outras formas
de sujeição, tão importantes quanto aquela. O “econômico” aqui refere-se à dominação
sobre aquele que é impedido de produzir livremente o seu mundo material e espiritual.
Giorgio Baratta chamou a atenção para o fato de que entre o operário e o marginalizado
surge uma vizinhança muito próxima. Afinal Gramsci cita a convivência do trabalhador
nacional com os imigrantes de outras etnias, por exemplo.
Gramsci, porém, não ignorou as limitações da subalternidade. Às vezes com rigor excessivo.
Como os camponeses, para ele os subalternos não criaram seus próprios intelectuais
orgânicos, os seus dirigentes, e nem assimilaram intelectuais tradicionais. Embora na Itália
parte dos intelectuais tivesse origem camponesa.
Em primeiro lugar, a própria contraposição entre intelectuais orgânicos e tradicionais perdeu
sentido com a penetração de todas as instituições de pesquisa e ensino pelo capital. Há até
mesmo uma distinção no interior da intelectualidade trabalhadora. Algumas áreas da
pesquisa são relegadas a uma situação “periférica” diante de outras que produzem ciência
aplicada de ponta. São elas que impõem ao conjunto das ciências puras e das artes os seus
critérios de mensuração da produtividade.
Em segundo lugar, a história revelou levantes cuja liderança foi exercida por minorias ativas
não permanentes, criadas no próprio “teatro de operações”. Elas sempre definiram uma
tática nova. Mas é uma ilusão achar que fossem desorganizadas e agrupadas ad hoc.
A espontaneidade, característica dos grupos subalternos, não seria antes um traço
revalorizado no século XXI depois que organizações tradicionais da classe operária se
burocratizaram por cem anos ou mais? A esquerda social democrata perdeu a capacidade
de manobrar no terreno da luta cotidiana. Por outro lado, o protesto autônomo esgota-se em
si mesmo, eventualmente com uma vitória e outras vezes não. E o faz não por uma “falta”,
mas porque essa é a sua “natureza”: é sempre um grupo organizado que desata um dos nós
da rede de poder, esperando com isso que outros se organizem em seguida para desfazer
outros pontos. A forma do movimento é horizontal quando vista em conjunto.
O traço espontâneo pode ser uma resistência a grupos políticos para os quais (como já
lembrava Rosa Luxemburg em seu artigo “Questões Táticas”) basta mobilizar as massas de
vez em quando como se elas fossem “reservistas” de um corpo de oficiais burocratas.
Como escreveu Gramsci num trecho de sua obra intitulado “Espontaneidade e direção
consciente”, a “experiência cotidiana iluminada pelo senso comum” não pode estar em
oposição à teoria marxista: “entre uma e outras há diferença quantitativa, de grau, não de
qualidade” e tem que ser possível uma passagem de uma à outra reciprocamente.
O Caderno 25 talvez sugira mesmo uma crítica aos rumos da própria Revolução Russa.
Afinal, Gramsci diz que “só a vitória 'permanente' rompe, e não imediatamente, a
subordinação”. O autor parece dar relevo ao advérbio de tempo (imediatamente). Além
disso, o substantivo “vitória” é adjetivado com uma palavra entre aspas: “permanente”.
Uma vanguarda num país simultaneamente moderno e atrasado como a Rússia não parece
ter rompido a subordinação. A este respeito, num mar revolto de relatos do período,
poderíamos nos remeter às Memórias de Vitor Serge, que conheceu o processo
revolucionário e os seus líderes, incluindo Gramsci. E compreendeu o quanto as condições
dadas, aliadas às escolhas políticas da Revolução, não permitiram a “vitória permanente”.
Isso faz recordar a carta em que Gramsci conta sua viagem à Ilha de Ustica para esperar o
seu julgamento. Alguém o reconhece como o chefe do comunismo italiano e indaga se ele
seria o líder do país caso o seu partido vencesse. E Gramsci responde que, sendo sardo, a
ele seria destinado no máximo um posto de sub-chefe nos correios, cargo normalmente
destinado a pessoas como ele... Decerto, há uma blague. Mas ela pressupõe que mesmo
depois da vitória da Revolução muitos traços de subalternidade persistem.
Na época moderna, entretanto, há uma hegemonia ativa do grupo dirigente e dominante que
abole qualquer autonomia dos subalternos. Esta renasce de outra forma como partidos,
sindicatos, associações de cultura. Aludindo provavelmente ao fascismo, Gramsci diz que as
ditaduras contemporâneas suprimem legalmente essas novas organizações autônomas e
tentam incorporá-las à atividade estatal numa forma totalitária.
Entrementes, cabe ressaltar que a manutenção da hegemonia dos grupos dominantes
depende do nascimento de partidos novos para “manter o consenso e o controle dos grupos
subalternos”. Ou seja, a classe hegemônica torna-se Estado (força) e se mantêm também
como partidos (consenso). Ao mesmo tempo impede, quando pode, os subalternos de
serem partido e, por extensão, Estado.
Seria a hegemonia objeto de uma disputa? Ou ela seria antes uma totalidade? Nos
movimentos sociais é comum se falar em contra-hegemonia. Mas haveria a possibilidade de
duas hegemonias? A hegemonia é um fato total e dentro dela se estabelecem os limites que
permitem a existência organizada das próprias forças que se consideram contrárias à
hegemonia existente.
Um governo é forte porque representa o interesse aparente de um conjunto amplo de
valores dominantes na sociedade civil. E porque ao mesmo tempo garante a expectativa de
que os representantes dos subalternos podem exercer o poder dentro das regras existentes.
Dir-se-ia mais: que o seu governo de fato implementaria mudanças estruturais na sociedade.
Além de esterilizar os subalternos em níveis “pré-políticos”, pode ser que o grupo
hegemônico tenha que aceitar a organização partidária dos subalternos dentro da ordem,
embora isso não seja previsto no Caderno 25.
A unidade dos grupos dominantes se faz no Estado e sempre que a subalternidade se ergue
contra eles, sua autonomia é abolida, incorporada e esterilizada num nível corporativo e
vigiado. Não seria a própria Democracia um mecanismo de perda da autonomia quando a
“oposição” é legalizada?
3. CONCLUSÃO
Para estudar a história dos subalternos Gramsci propõe determinados passos na pesquisa:
formação objetiva dos grupos subalternos no mundo da produção econômica; sua
mentalidade; reivindicações; tentativas de influenciar os grupos dominantes etc.
Para Gramsci “em todo movimento 'espontâneo' há um elemento primitivo de direção
consciente”. Mas há que se lembrar a outra face da moeda: a exigência de uma auto-
educação das camadas subalternas e de uma direção que, não lhe sendo exterior, não pode
simplesmente se confundir com elas. Este debate continua indispensável.
Numa página do Caderno 25, Gramsci cita uma história de Tácito: um senador propôs que
todos os escravos vestissem um uniforme. O Senado Romano recusou a proposta porque
os escravos poderiam se dar conta de que eram a maioria. Os subalternos são a maioria
desagregada. Sua autonomia depende da unificação consciente de suas lutas.
Podem os subalternos falar? A pergunta devia ser dirigida a eles.
Bibliografia
Barata, G. Antonio Gramsci em Contraponto. São Paulo: Unesp, 2011.
Del Roio, Marcos T. (Org). Gramsci: Periferia e Subalternidade. São Paulo: Edusp, 2017 (no
prelo).
Gramsci, A. Quaderni del Carcere. Torino: Riunitti, 1977.
Hobsbawm, E. Rebeldes Primitivos. Rio de Janeiro: Zahar, 1970.
Kaplan, Temma. Origines Sociales del Anarquismo en Andalucia. Barcelona: Grijalbo, 1977.
A QUESTÃO PEDAGÓGICA E A PERSPECTIVA DE HEGEMONIA DAS CLASSES
SUBALTERNAS2
Marina Maciel Abreu3
RESUMO
Aborda com base em Gramsci, a questão pedagógica na organização política das
classes subalternas e a mediação dos intelectuais nos processos de formação de uma
nova e superior cultura, na luta pela hegemonia, como estratégia revolucionária. O
conteúdo desdobra-se em dois eixos: a) elementos histórico-conceituais da formação
da cultura pelas classes subalternas na luta pela hegemonia, fundantes de novas
relações pedagógicas; b) relações pedagógicas na formação de uma nova cultura: a
dialética intelectual-massa e o trabalho como princípio educativo. Conclui com a indicação
de desafios pedagógicos da formação de uma nova cultura.
PALAVRAS–CHAVE: Questão Pedagógica, Cultura, Ideologia, Hegemonia, Intelectuais.
THE PEDAGOGICAL QUESTION AND THE PERSPECTIVE OF
HEGEMONY OF THE SUBALTERN CLASSES
ABSTRACT
It deals with Gramsci, the pedagogical question in the political organization of the subaltern
classes and the mediation of the intellectuals in the processes of formation of a new and
superior culture, in the struggle for hegemony, as a revolutionary strategy. The content
unfolds in two axes: a) historical-conceptual elements of the formation of culture by the
subaltern classes in the struggle for hegemony - the thematic nucleus of new pedagogical
relations; b) pedagogical relations in the formation if a new culture: the intellectual-mass
dialectic and work as an educational principle. It concludes with the indication of the
pedagogical challenges of the formation of a new culture.
KEYWORDS: Pedagogical Question, Culture, Educational Principle, Hegemony,
Intellectuals.
1- INTRODUÇÃO
Este trabalho parte da tese gramsciana: “toda relação de „hegemonia‟ é necessariamente
pedagógica” (GRAMSCI,1999,p.399), mediante a qual Gramsci vincula as relações pedagógicas às
relações de hegemonia e, assim, as demarca conceitual e historicamente, para além das relações
2 Este texto é uma versão revista e ampliada do artigo “A Questão pedagógica na luta pela Hegemonia em
Gramsci”, publicado nos Anais do IX Simpósio Nacional Estado e Poder: Gramsci na Pesquisa Histórica, realizado na UFF, Gragoatá/Niterói, outubro de 2016, acesso http://9simposioestadoepoder.blogspot.com.br/. Busca adensamento do estudo sobre a temática na particularidade da questão pedagógica na organização da cultura e a perspectiva da luta das classes subalternas pela hegemonia na sociedade. 3
Doutora em Serviço Social, Professora aposentada, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da UFMA. E-mail: [email protected]
http://9simposioestadoepoder.blogspot.com.br/mailto:[email protected]
especificamente escolares. Pode-se entender as relações pedagógicas na análise gramsciana
elaboradas no conjunto das relações sociais constitutivas da cultura na luta pela hegemonia, em que o
conceito do trabalho é o princípio educativo, mediante o qual é estabelecido um tipo de conformismo
social. Toda hegemonia expressa em seu desenvolvimento uma cultura, como sociabilidade sustentada
em um determinado conformismo social, isto é, um certo equilíbrio psicofísico (adequação entre a
atividade intelectual e as necessidades da produção e do trabalho), que pode ser imposto pelos
interesses da acumulação do capital sobre as classes subalternas e, por isso, base de uma cultura
alienada e alienante, ou estabelecido por essas classes, conformismo próprio, dinâmico, sustentáculo da
organização de uma cultura emancipada. Para Gramsci,
pela própria concepção de mundo, pertencemos sempre a um determinado grupo, precisamente o
de todos os elementos sociais que compartilham de um mesmo modo de pensar e de agir. Somos
conformistas de algum conformismo, somos sempre homens-massa ou homens coletivos. O
problema é o seguinte: qual é o tipo de histórico de conformismo, de homem–massa do qual
fazemos parte? (GRAMSCI,1999,p.94)
Em sua análise do “Americanismo e Fordismo” (GRAMSCI,2000b), Gramsci acentua que
“os métodos de trabalho são indissociáveis de um determinado modo de viver, de pensar e de sentir a
vida; não é possível obter êxito num campo sem obter resultados tangíveis no outro.”
(GRAMSCI,2001,p.266). Considera o fenômeno do americanismo, a partir do padrão fordista/taylorista,
“o maior esforço coletivo realizado até agora para criar, com rapidez incrível e com uma consciência do
fim jamais vista na História, um tipo novo de trabalhador e de homem” (GRAMSCI,2001,p.266),
adequado ao novo padrão de produção e trabalho. Na crítica profunda desenvolvida por Gramsci, desse
movimento, encontram-se elementos da sua reelaboração do conceito de trabalho como princípio
educativo, como base de um novo conformismo, nexo entre a construção de um padrão produtivo e de
trabalho e a organização de uma ordem intelectual e moral pelas classes subalternas; princípio que se
funda na necessidade histórica da constituição de um processo mais amplo de superação da
racionalidade da produção capitalista e instauração de uma nova e superior cultura – uma nova
sociabilidade. Para Gramsci, não se pode esperar a nova ordem dos grupos sociais „condenados‟ por
ela, só se pode esperar dos grupos sociais que estão criando, “por imposição e através do sofrimento,
as bases materiais desta nova ordem: estes „devem‟ encontrar o sistema de vida „original‟, e não de
marca americana, a fim de transformarem em „liberdade‟ o que hoje é „necessidade‟.”(GRAMSCI,
2001,p.281)
Nessa perspectiva de análise, os movimentos culturais traduzem um amplo trabalho de
elaboração de uma concepção de mundo, de uma filosofia e sua difusão na perspectiva de
transformá-la “em bases de ações vitais, em elemento de coordenação e de ordem intelectual.”
(GRAMSCI,1999,p.96). Equivale dizer, produzir uma atividade prática e uma vontade, nas quais essa
concepção de mundo esteja contida como premissa teórica implícita, ou seja, como uma ideologia.
Trata-se de um processo mediado pelos intelectuais e instituições de cultura, dentre elas, a escola e a
religião (catolicismo) são historicamente as mais importantes, além das instituições de organizações
política das classes sociais, em que o partido político é a culminância, como intelectual coletivo. Inclui-se
também a preocupação de Gramsci com a comunicação (jornais, revistas, e outros meios destacados à
época) como instrumento principal. São medições mediadas pela relação entre o Estado e a sociedade
civil, considerando-se que o Estado tem como uma de funções fundamentais, “educar a grande massa
da população para um certo nível cultural e moral, nível (ou tipo) que corresponde às necessidades de
desenvolvimento das forças produtivas e, por conseguinte, aos interesses das classes
dominantes.”(GRAMSCI,2000b,p.284).
Na formação de uma nova cultura pelas classes subalternas, esse movimento requer novas
e originais relações pedagógicas adequadas ao rompimento com a ideologia dominante que se tornou
senso comum, fonte de acomodação e de passividade, no desenvolvimento e transformação do núcleo
sadio do senso comum, o bom senso, em uma concepção de mundo própria, unitária e coerente, capaz
de “conservar a unidade ideológica em todo o bloco histórico que está cimentado e unificado justamente
por aquela ideologia.” (GRAMSCI,1999,p.99). Este é para Gramsci, o problema fundamental desse
movimento cultural.
2- ELEMENTOS HISTÓRICO-CONCEITUAIS DA FORMAÇÃO DA CULTURA PELAS CLASSES SUBALTERNAS NA LUTA PELA HEGEMONIA - núcleo temático de novas relações pedagógicas
A necessidade histórica da construção da hegemonia pelas classes subalternas como
estratégia revolucionária recoloca a formação de uma nova cultura como uma necessidade no processo
de reforma intelectual e moral, na luta e conquista da emancipação político-ideológica dessas classes e
alteração das relações de força para a conquista do poder do Estado. Esses processos, de natureza
ideológica/política/militar, são constitutivos do amplo movimento de transformações estruturais e
superestruturais de superação da ordem burguesa.
Há que se considerar que as articulações entre esses processos nas formulações
gramscianas nos marcos da estratégia revolucionária da “guerra de posição” na luta pela hegemonia,
suscitam ambiguidades e polêmicas, considerando, sobretudo, a ênfase dada à reforma intelectual e
moral como condição necessária, mas não suficiente à tomada do poder estatal, que, para muitos
intérpretes e críticos, aparece como centralidade da luta e, por isso mesmo, tratada equivocadamente
como única expressão das funções de hegemonia e, consequentemente, chancela a crítica à análise
gramsciana como politicista e voluntarista. Em contraposição a essa tendência de interpretação,
concorda-se com o entendimento de que o movimento de constituição de uma nova hegemonia envolve
a conquista da direção, primeiro no âmbito da própria classe e depois direção+domínio4, e entre esses
“momentos há um interregno de ruptura, pois nenhuma classe social armada e dominante cede seu
poder militar e seus privilégios só por convencimento.” (SECCO,1996,p.86).
Deste modo, a reforma intelectual e moral como um amplo movimento de crítica e
destruição da cultura dominante “significa criar o terreno para um novo desenvolvimento da vontade
coletiva nacional-popular, no sentido da realização de uma forma superior e total de civilização
moderna.” (GRAMSCI,2000b,p.18). Assim, a formação de uma vontade coletiva, como expressão de
um processo de reforma intelectual e moral desenvolvido pelos subalternos, significa a “consciência
operosa da necessidade histórica como protagonista de um drama real e efetivo.”
(GRAMSCI,2000b,p.17). É, portanto, um processo complexo onde se evidenciam os nexos
contraditórios entre a base econômica e a superestrutura na constituição de um novo bloco histórico, de
uma nova hegemonia5, e se apresenta como “possibilidade inscrita na totalidade social”
(DIAS,1996,p.14).
Na perspectiva de desvendar a hegemonia burguesa para melhor instrumentalizar a
construção da hegemonia das classes subalternas, tendo presente a relação orgânica e dialética entre a
estrutura e a superestrutura, Gramsci elabora, em contraposição ao economicismo e ao liberalismo, a
“noção geral de Estado” ou do Estado integral (GRAMSCI,2000b, p.354), na qual “entram elementos
que devem ser remetidos à noção de sociedade civil (no sentido, seria possível dizer, de que Estado =
sociedade política + sociedade civil, isto é, hegemonia couraçada de coerção).” (grifos do autor).
(GRAMSCI,2000b,p.244). Nessa formulação, Gramsci (2000b) atenta para o fato de que as funções do
Estado não se resumem às atividades coercitivas desenvolvidas pelo aparato do governo executivo e
instituições jurídico-policiais ou sociedade política = Estado no sentido estrito, mas inclui funções de
consenso ou educativas a cargo dos organismos privados da sociedade civil. Distinguem-se os
“elementos constitutivos do Estado em sentido orgânico e mais ampliado (Estado propriamente dito e
sociedade civil),” (GRAMSCI,2000b, p.244). A concepção gramsciana do Estado abrange, portanto,
4 Importa considerar que o conceito de hegemonia, inicialmente construído como um dos lemas políticos centrais no
movimento social-democrata russo do fim dos anos 1890 a 1917 (ANDERSON,1986,p.16), expressando o papel
preponderante do proletariado na revolução burguesa russa como protagonista de uma perspectiva revolucionária
na luta pela libertação de todas as classes e de todos os grupos oprimidos, reduz-se à função de direção no interior
dessa classe. Amplia-se, posteriormente, para explicar a dominação burguesa, passando a contemplar as funções
de direção e domínio (supremacia).
5 Sob este ângulo de análise, é entendido o enraizamento do aparelho de hegemonia na sociedade civil
considerada em sua dupla dimensão, isto é, político-ideológica e econômica, na medida em que para Gramsci, “a
hegemonia nasce da fábrica e necessita, apenas, para ser exercida, de uma quantidade mínima de intermediários
profissionais da política e da ideologia” (GRAMSCI,2001,p.247); e, a concretização das funções de direção e
domínio nas mediações que corporificam a relação entre a sociedade civil e o Estado. As funções de hegemonia
(direção e domínio) na concepção gramsciana dão conta das estruturas de poder burguês no ocidente e das
possibilidades de destruição/construção das mesmas estruturas pelas classes subalternas, estando essas funções
associadas à relação orgânica entre Estado e sociedade civil.
“todo o complexo de atividades práticas e teóricas com as quais a classe dirigente não só justifica e
mantém seu domínio, mas consegue obter o consenso ativo dos governados” (GRAMSCI,2000b,p.331).
Daí, a crítica de Gramsci da tendência de identificação entre Estado e governo, como “uma
representação da forma corporativo-econômica, isto é, da confusão entre sociedade política e sociedade
civil” (GRAMSCI,2000b,p.244). Além disso, interpretações equivocadas da relação entre sociedade
civil e sociedade política, constitutiva da noção geral de Estado, envolvem inúmeras polêmicas6 e
banalizações da análise gramsciana, sobretudo em relação à concepção de sociedade civil que tende a
ser confundida e reduzida a “uma associação de associações amorfa, desestruturada, sem cortes e sem
contradições, homogeneizadas” (NETTO, 2004), em contraposição ao Estado, restrito a governo,
também homogeneizado e isento de contradições. Diferente do que acentua Gramsci, ao se referir às
„iniciativas privadas‟ para caracterizar a sociedade civil nos terrenos da atividade econômica e das
atividades político-ideológicas7, na unidade dialética da relação com o Estado. Afirma Gramsci que,
uma das funções mais importantes do Estado burguês, é a de educação da grande massa da
população, para a adesão e consentimento ao projeto dominante. Desta forma, o Estado cria
mecanismos e instituições próprias, dentre elas, são as mais importantes historicamente,
a escola, como função educativa positiva, e os tribunais, como função educativa repressiva e
negativa, (...) na realidade, tendem para este fim uma multiplicidade de outras iniciativas e de
outras atividades ditas privadas que formam o aparelho da hegemonia política e cultural das
classes dominantes. [...] Mas, na realidade, só o grupo social que coloca o fim do Estado e o seu
próprio fim como objetivo a atingir pode criar um Estado ético, tendendo a pôr termo às divisões
internas em que implica a dominação etc. e a criar um organismo social unitário técnico-moral.
(GRAMSCI, 2000b,p.284).
Tais processos difundem-se na sociedade na perspectiva da unidade entre o Estado e a
sociedade civil, unidade consubstanciada numa relação contraditória de negação e afirmação, na qual é
plasmado o conteúdo “ético” do Estado, base da unidade do bloco histórico. Na totalidade do bloco
histórico, é que a cultura se expressa, cujo desenvolvimento está ligado a uma dialética intelectual-
massa em que a compreensão crítica do homem ativo de massa, em relação a uma nova cultura,
é obtida (...) através de uma luta de „hegemonias‟ políticas, de direções contrastes, primeiro no
campo da ética, depois no da política, atingindo, finalmente, uma elaboração superior da própria
concepção do real. A consciência de fazer parte de uma determinada força hegemônica (isto é, a
consciência política) é a primeira fase de uma ulterior e progressiva autoconsciência, na qual teoria
e prática finalmente se unificam. (GRAMSCI,1999,p.103).
6 Ver BOBBIO,1987; ANDERSON, 1986; DIAS et all,1996; COUTINHO,1992, dentre outros.
7 Algumas formulações gramscianas, se tomadas isoladamente, deixam margem a interpretações da sociedade
civil referida apenas à superestrutura. Buci-Glucksmann (1980,p.99) oferece uma contribuição sobre o conceito
gramsciano de sociedade civil captado em sua dupla dimensão: “Por um lado, ele diz respeito às „sociedades
capitalistas‟, ou seja, às condições materiais, ao sistema privado de produção. Por outro lado, ele implica os
aparelhos ideológicos-culturais da hegemonia, o aspecto educador do Estado.”
Nessa linha de discussão, a ideologia tem centralidade como o cimento do bloco histórico e,
o conceito de hegemonia representa além do “progresso político-prático, um grande progresso filosófico,
porque implica e supõe necessariamente uma unidade intelectual e uma ética adequada a uma
concepção do real que superou o senso comum e tornou-se crítica, mesmo que dentro de limites ainda
restritos. (GRAMSCI,1999,p.104). Para Gramsci,
( [...] toda filosofia tende a se tornar senso comum de um ambiente, ainda que restrito (de
todos os intelectuais). Trata-se, portanto de elaborar uma filosofia que – tendo já uma
difusão ou possibilidade de difusão, pois ligada à vida prática e implícita nela – se torne um
senso comum renovado com a coerência e o vigor das filosofias individuais. E isto não pode
ocorrer se não se sente, permanentemente, a exigência do contato cultural com os
„simples‟).(GRAMSCI,1999,p.101).
É importante demarcar que para Gramsci,
Uma filosofia da práxis só pode apresentar-se, inicialmente, em uma atitude polêmica e
crítica, como superação da maneira de pensar precedente e do pensamento concreto
existente (ou mundo cultural existente). E, portanto, antes de tudo, como crítica do „senso
comum‟ (e isto após basear-se sobre o senso comum para demonstrar que „todos‟ são
filósofos e que não se trata de introduzir ex novo8 uma ciência na vida intelectual de „todos‟,
mas de inovar e tornar „crítica‟ uma atividade já existente); e, posteriormente, como crítica
da filosofia dos intelectuais, que deu origem à história da filosofia e que, enquanto individual
(e, de fato, ela se desenvolve essencialmente na atividade de indivíduos singulares
particularmente dotados), pode ser „culminâncias‟ de progresso do senso comum, pelo
menos do senso comum dos estratos mais cultos da sociedade e, através desses, também,
do senso comum popular (GRAMSCI,1999,p.101).
É evidente na análise de Gramsci que “a relação entre filosofia „superior‟ e senso
comum é assegurada pela „política‟.”(Gramsci,1999,p.100). Isto porque, a unidade orgânica da
relação estrutura e superestrutura, em que a determinação da estrutura não é mecânica, supõe a
posição ativa da superestrutura, exatamente na medida em que as superestruturas reagem sobre a
estrutura e a política sobre a economia. Significa o processo político-pedagógico de superação da
dicotomia entre o pensar e o agir como devir histórico, como expressão “da luta perpétua”
(GRAMSCI,1999) e conquista da unidade na relação entre teoria e prática, cindida pelas relações de
dominação e alienação. A dicotomia entre o pensar e o agir na sociedade capitalista em relação às
classes subalternas, é uma necessidade da reprodução da ordem burguesa, e se manifesta na
consciência contraditória do homem ativo de massa, ou seja, é possível dizer que ele tem duas
consciências:
uma implícita na sua ação, e que realmente o une a todos os seus colaboradores na
transformação prática da realidade; e, outra, superficialmente explicita ou verbal, que ele herdou do
passado e acolheu sem crítica. Todavia esta consciência verbal não é inconsequente: ela liga a um
grupo social determinado, influi sobre a conduta moral, sobre a direção da vontade, de uma
maneira mais ou menos intensa, que pode até mesmo atingir um ponto no qual a contraditoriedade
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Grifado pelo autor
da consciência não permita nenhuma ação, nenhuma escolha e produza um estado de
passividade moral e política. (GRAMCI,1999,p.103).
O senso comum, portanto, expressa a consciência contraditória, reflete uma concepção de
mundo ocasional e desagregada com momentos de lucidez sobre a própria realidade de vida, que bem
traduzem expressões populares de uma filosofia, e despertam para a “superação das paixões bestiais e
elementares numa concepção da necessidade que fornece à própria ação uma direção consciente.”
(GRAMSCI,1999,p.98). Para Gramsci, “este é o núcleo sadio do senso comum, que poderia ser
chamado de bom senso e que merece ser desenvolvido e transformado em algo unitário e coerente”
(GRAMSCI,1999,p.98), em nova concepção de mundo, base de uma nova e superior cultura, que
requer e consubstancia novas e originais relações pedagógicas.
Gramsci refere-se a esse movimento na relação estrutura e superestrutura como “catarse”,
para indicar “a passagem do momento meramente econômico (egoístico-passional) ao momento ético-
político, isto é, a elaboração superior da estrutura em superestrutura na consciência dos homens. Isto
significa também a passagem do „objetivo ao subjetivo‟ e da „necessidade à liberdade'."
(GRAMSCI,1999,p.314).
3- RELAÇÕES PEDAGÓGICAS NA ORGANIZAÇÃO DE UMA NOVA CULTURA: a dialética
intelectual-massa e o trabalho como princípio educativo
Para Gramsci todos os homens são intelectuais na medida em que todos são filósofos,
ainda que a seu modo, inconscientemente, pois “até mesmo na mais simples manifestação de uma
atividade intelectual qualquer, na „linguagem‟ está contida uma determinada concepção de mundo”
(GRAMSCI,1999,p.93), todavia, chama atenção para o fato de que “nem todos os homens têm na
sociedade a função de intelectuais” (GRAMSCI,2000a,p.18). A função intelectual encontra-se contida
não no que é intrínseco a essas atividades, mas no conjunto do sistema de relações no qual se
encontram os indivíduos que as personificam, isto é, na função social da categoria profissional dos
intelectuais na organização da cultura, mediante exercício das funções subalternas da hegemonia social
e do governo político, que equivale dizer, nas funções de coerção e consenso (direção e domínio). Deste
modo, evidencia-se, na análise gramsciana, a vinculação orgânica entre intelectual e classe social, que
marca a necessidade histórica de unidade entre teoria e prática, como uma questão política dos
intelectuais. Isto por que a autoconsciência crítica significa,
histórica e politicamente, criação de uma elite de intelectuais: uma massa humana não se
„distingue‟ e não se torna independente „para si‟ sem organizar-se (em sentido lato); e não existe
organização sem intelectuais, isto é sem organizadores e dirigentes, ou seja, sem que o aspecto
teórico da ligação teoria-prática se distinga concretamente em um estrato de pessoas
„especializadas na elaboração conceitual e filosófica. (GRAMSCI,1999,p.104).
Gramsci considera que a classe detentora do capital, em seu processo de constituição,
desenvolve as mais amplas camadas de intelectuais. Ela não apenas desdobra na maioria das vezes,
suas funções essenciais em novas especializações profissionais, como cria - para qualificar técnicos
para o desempenho dessas funções - o mais complexo sistema educativo de formação dos intelectuais,
onde a escola é a principal e a mais importante instituição. Além disso, o próprio mundo da produção é
instância formadora desse intelectual. Assim, como assinala Dias (1991), seja na escola, seja no mundo
da produção, “todos os elementos vitais do processo produtivo nada mais são, em última análise, do que
racionalizações do processo vital da classe dominante; (o que é „prática‟ para a classe fundamental se
torna „racionalidade‟ e especulação para seus intelectuais). (DIAS,1991,p.10). Sob o ponto de vista das
classes subalternas, a formação de seus intelectuais se efetiva apesar e contra o sistema político-
ideológico dominante. Em contraposição à cultura política da burguesia viabilizada nos diferentes
espaços da sociedade capitalista, as classes subalternas formam seus intelectuais em espaços
diferenciados, em que o partido, o sindicato e outras instâncias de organização são as “academias”. A
esses intelectuais compete o trabalho de reforma intelectual e moral, ou seja, de elaboração de um
pensamento superior ao senso comum, mantendo sempre uma relação educativa formativa com a
massa tendo em vista a sua elevação intelectual e cultural, condição necessária na formação de uma
nova cultura. Gramsci sublinha a importância do partido político, como intelectual coletivo, na elaboração
e difusão das concepções de mundo e como elaboradores das intelectualidades integrais e universais,
representa “o crisol da unificação da teoria e prática entendida como processo histórico real.”
(GRAMSCI,1999,p.105). Nesse processo, constitui uma mediação essencial, na medida em que
com o crescimento dos partidos de massa e com a sua adesão orgânica à vida mais íntima
(econômico-produtiva) da própria massa, o processo de estandardização dos sentimentos
populares, que era mecânico e casual (isto é, produzido pela existência ambiente de condições e
pressões similares), torna-se consciente e crítico.(GRAMSCI,1999,p.148).
A formação do intelectual vinculado às classes subalternas, especialmente ao operariado
fabril, Gramsci (2000a) considera – contrariando a tese taylorista do desenvolvimento de atitudes
maquinais no trabalhador fabril - que “a educação técnica, estreitamente ligada ao trabalho industrial,
mesmo ao mais primitivo e desqualificado, deve constituir a base do novo tipo de intelectual” e ressalta
que,
o modo de ser do novo intelectual não pode mais consistir na eloquência, motor exterior e
momentâneo dos afetos e das paixões, mas numa inserção ativa na vida prática, como construtor,
organizado, „persuasor permanente‟, já que não apenas orador puro – mas superior ao espirito
matemático abstrato; da técnica – trabalho, chega à técnica – ciência e à concepção humanista
histórica, sem a qual permanece „especialista‟ e não se torna „dirigente‟ (especialista+ político).
(GRAMSCI,2000a,p.53).
Assim, o processo da crítica e da formação de uma nova cultura supõe a elaboração de
uma nova concepção de mundo e requisita relações pedagógicas originais, criativas, orientadas pelo
conceito do trabalho criador, trabalho concreto, como devir histórico e princípio educativo, em detrimento
do trabalho alienante, trabalho abstrato. Deste modo, as relações pedagógicas ai construídas fundam-se
em um novo principio educativo centrado no trabalho, a partir de uma nova lógica entre o padrão de
produção e de trabalho e a necessidade histórica de uma nova cultura, na luta pela hegemonia; ou seja,
busca modificação entre a atividade intelectual e o esforço muscular nervoso para o estabelecimento de
um novo equilíbrio – conformismo -, na perspectiva de uma nova cultura. Trata-se do conceito de
equilíbrio
entre ordem social e ordem natural com bas