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htervenção clínica quanto à violação dos Direitos Humanos: por uma prática desnaturalizadora na teoria, na ética, na política Cecília Maria Bouças Coirnbra Jorge rcia Pel-eira de Andrade Maria Beatl-iz Sá Leitão VeraVital Brasil "Atiro-a contr:t as quinas erguidas desta madrllgada, . contra estes edifícios enormes, parados contra o cinza do céu sujo como osabão que lava o piso dos botequins ao fim da noite. Atiro-a contrao cansaço domundo, contra o 'meu próprio einenarvel cans,lço, atiro-a em nomeda utopia que é minha, atua, a nossa utopia, atiro-a com raiva. sem estratégia, se,m pruncia, como hcm()rra[':ia quese esvai e tinge a c:liçada com o esguicho do seu incêndio rubl'O Atiro-ap,lra l1é1da, parao nenhum result:tdo do grito que precede o baque do corpo atropelado na rua, z.tirc·;lno ,1r do m,lr, 11;1 curva corrosiva do azul, à porta dos orfar:latos e prostíbu Ias, atiro-a ao ch,io comobile sanglli)1(>!entaqueeSC0rre, como q:b~m cospe um dente<lrrancad0 por um mllrro na boca. NLls atiro-a, flcch;l rurva, esperaéle nojo, vida e lera, atiro-a com este punho fechado, com esta sedeeesta fome, atirc-~ com a funda mais funda do meu sonho mais profundo, atiro-a contra argentários efundiários, opressores e ditadores, atiro-aemmeunome eem nome dos queainda não têm nome, e em nome dos que em dores e cólicas acordam para o sell nome, (: ao rés-da-chão. emplel10 pó, o desentranham."

Clínica e política

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htervenção clínica quanto à violação dos Direitos Humanos: por umaprática desnaturalizadora na teoria, na ética, na política

Cecília Maria Bouças CoirnbraJorge Márcia Pel-eira de Andrade

Maria Beatl-iz Sá LeitãoVera Vital Brasil

"Atiro-a contr:t as quinas erguidas desta madrllgada,. contra estes edifícios enormes, parados

contra o cinza do céu sujo como o sabão que lava o piso dos botequinsao fim da noite.

Atiro-a contra o cansaço do mundo,contra o 'meu próprio e inenarrável cans,lço,

atiro-a em nome da utopia que é minha, a tua, a nossa utopia,

atiro-a com raiva. sem estratégia, se,m prudência,como hcm()rra[':ia que se esvai e tinge a c:liçada

com o esguicho do seu incêndio rubl'O

Atiro-a p,lra l1é1da,para o nenhum result:tdodo grito que precede o baque do corpo atropelado na rua,

z.tirc·;l no ,1r do m,lr, 11;1 curva corrosiva do azul, à porta dos orfar:latos eprostíbu Ias,

atiro-a ao ch,io comobile sanglli)1(>!enta que eSC0rre,como q:b~m cospe um dente <lrrancad0 por um mllrro na boca.

NLls atiro-a, flcch;l rurva, esperançél e nojo, vida e cólera,atiro-a com este punho fechado, com esta sede e esta fome,

atirc-~ com a funda mais funda do meu sonho mais profundo,atiro-a contra argentários e fundiários, opressores e ditadores,

atiro-a em meu nome e em nome dos que ainda não têm nome,e em nome dos que em dores e cólicas acordam para o sell nome,

(: ao rés-da-chão. em plel10 pó, o desentranham."

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1 - Introdução: Movimentos sociais, direitos humanos e práticas psí nosànos 1970 no Brasil

Os agenciamentos estão interceptados: foram grampeados. Éterminantemente proibido fazer uso da língua a fim de cunharmatéria de expressão para as intensidades atuais: o gestocriador foi desautorizado e quem ousa esboçá-Ia não só serátaxado de traidor, o que é pior, estará correndo perigo devida [...]. É proibido o gesto criador, este debilita-se, transmuta-se e é substituído pelo medo e o medo aumenta ainda mais atimidez do gesto criador. Desencadeia-se um círculo viciosono qual o desejo vai enfraquecendo cada vez m~is a suapotência de eferuação (ROLNIK, 1989, p. 194,196).

A história dos movimentos de direitos humanos no Brasil está ligada aocrescimento e ao fortalecimento dos diversos movimentos sociais surgidos nos anos1970 em plena vigência dos chamado's "anos ele chumbo". É no seio da ditaduramilitar que começam a se gestar, subterraneamente, novas formas de resistência,produzindo novos sujeitos políticos (SADER, 1988).

Queremos apontar que não é somente na década de 1980 - após a "distensâolenta, gradual e segura" de Geisel e a "abertura" de Figueiredo (últimos generaispresidentes que implementaram políticas de "redemocratização") - que os diferentesmovimentos sociais se organizam e se fortalecem. É 110 período mais repressivo daditadura militar que novas Rráticas vão se gestando. Pr~lticas que rechaçam osmovimentos tradicionalmente instituídos, que politizJm o cotidiano dos lugares detrahal ho c moradia, que inventam novas formas de fazer política.

Tais processos de singularizaçãol surgem, principalmente, das crises da Igreja,lbs esquerdas e do sindicalislpo, que a ditadura militar brasileira aprofunda e acirra.

Os movimentos de direitos bumanos fortalecem·se principalmente através dasdellúnl:Ías sobre a situação de presos políticos, sobre suas rnortes e desaparecimentos.SmgclIl, ,l'sim, as organizações de bmiliares que, posteriormente, irão dar origem;::-.,5 CO:llir(;s Br;lsileiros pela Anistia e ao Movimento Feminino pela Anistia:f,Jrta!cccm-se ulll1bém, ligadas à Igreja, as Comissões de Justiça e Paz.

/lpes:1r d,] massiva produção de subjetividade dominante2 nos anos· 1960 eJ970, que concorreu ativamente para que o terrorismo de Estado se sustentasse e seexpandisse, esses movimentos singulares conseguem se afirmar.

Se os anos 1960 preparara'il1, os 1970 consolidar:llll uma de'terminada formade penS:lr, sent'ir e agir, principalmente nas classes médias urbanas brasileiras, e estasserãb ávidas consumidoras das práticas psi em curso.

As subjetividades então produzidas e fortalccidas traduzem-se pela importânci;:)que é dada ao consumismo, à necessidade de se :lscender socialmente. Acredita-se l}aex~clência do sistema e dissemina-se a crença de que "subir na vida" depende dasVirtudes pesso::is, dos méritos de cada um. Há uma aceitação quase unânime dasregras d() :;istema e, principalmente a classe média, além de seus sonhos de ascensãosocial, acclta passivamente que compete ao governo a resolução dos problemas. Ada cornpcte trabalhar e/ou estudar, e não se imiscllil: em política. Há, nesse momento,

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grande preocupação com a família: fala-se da sua importância como mantenedorade uma sociedade saudá el onde a disciplina e o controle devem estar presentes.fortalece-se o modelo de .família que compra, investe, viaja e ascende socialm,ente,enfatizando-se a responsabilidade individual de cada membro. A importância daprivacidade é apregoada intensamente e a culpabilização produzida massivamente.

O privado, o familiar torna-se refúgio contra os terrores da sociedade: nega-se,portanto, o que acontece fora e volta-se para o que acontece dentro de si e de suafamília.

Essa visão intimista da sociedade1 produz pessoas interessadas apenas nashistórias de suas próprias vidas e em suas emoções particulares. Aumentam apreocupação e o investimento com as questões "interiores", e o auto-conhecimentotorna-se uma finaliclade. Acredita-se que a aproximação, a descoberta de si mesmo,a liberação das represséles, a busca da autenticidade e do calor humano são essenciaispara a mel horia das relações e para uma socieebde mais saudável.

As categorias políticas são transformadas em categorias psicológicas; oimportante não é o que se faz, como se faz ou para que se faz, mas o que se senfe. Háum esvaziamento político, há uma psicologização do cotidiano e da vida social,produzindo-se uma oposição entre os domínios público e privado.

Investe-se permanentemente 110 domínio do priveldo, do familiar, e opsicologismo fornece uma legitimação "científicJ" à tecnologia do ajustamento. Paraessa família em "crise" há que se ter especialistas; qualquer angústia ~u sentimentode mal-estar existencial são imediatamente remetidos para o território da "falta",onde os especialistas psi estão vigilantes'e atentos para resgatar suas vítimas.

Diferente do padre e do médico, estes profissionais, com sua providencial"nel1tr~diebde" esoutam o desejo de seu cliente, buscando seu engendramento nas

. fantasias pessoais, tomelclas como universais. Enquadra-se o desejo em um mundofantasmático, onde se aprende que desejar é só desejar.

Dentre as pr,íticas psi, uma certa leitura da psicanálise torna-se hegemônica.Esse modo de pensar a psicanálise produz práticas que trazem como efeitos nãosomente a reprodução, mas o fortJlecimento dessas subjetividades dominantes.Produzem-se e natur;1Iizam-se, com isso, demandas ligadas às instituições4 dohmiliarismo, intimismo, especialismo, neutralismo e cientificismo.

Nos anos 1980 esse panorama tende a mudar: novas questões trazidas pelos;~lOvimentos sociais, ainda na década anterior, repercutem nas classes médias urbanas-FIe, pelo próprio processo recessivo por que passa o país, aliam-se às diferentes:urJS nascidas nas periferias. Assim, l1:lS práticas fJsi verificaram-se também:"ilUvimentos ele singularização. Dêsde, o final dos anos 1970, COI11() exílio da chamada'cgul1(h geração de argentinos, começa a se expandir uma outra leitura da psicanálise.Concorrem, também, as contribuições da Análise lllstitucional de origem francesa, do:'ênsamcnto de Guattari, de Deleuze e de Foucelult, que tentarão desnaturalizar as~~cmandas então produzi(las e pensar as subjetividades como produções histórico-sociais.

Da mesma forma que os movimentos sociais, ainda nos anos 1970, enfrentam::11 seu coiidiano a velha polític;1 ainda dominante, essas outras práticas fJsi também:;;,lIltêlll um embate com a ortodoxia e o autoritarismo presentes na subjetividade:,·~letiv<id:ls demais pr;íticas psi.

Essas outras pr5ticas fJsi pretendem produzir novas questões, novas

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problematizações, nOvOs territórios, agenciamentos e subjetividades que não sejammeras -reproduções, mas que consigam afirmar-se no campo da singularidade,

2 - O Grupo Tortura Nunca Mais/RJ e o Projeto Clínico-Grupal ""o Grupo Tortura Nunca Mais/R] surgiu em 1985, quando o mamemo

político brasileiro evidenciava um certo esvaziamento das questões relativas aoterrorismo de Estado dominante nos anos 1970, A Lei de Anistia, de 1979, não foi"ampla, geral e irrestrita" como exigiam os movimentos sociais. Os ComitêsBrasileiros pela Anistia praticamente deixaram de existir, apesar de todo aparatorepressivo continuar presente. Inúmeros torturadores permaneceram - comopermanecem - em cargos públicos; diversas formas de tortura prosseguiram - eprosseguem - sendo exe'rcidas; grupos paramilitares e de extermínio cominuamatuando impunemente. Nos anos 1980, entretanto, é quando as pessoas começam afalar publicamente. O destrave da líf\gua se sucedia, lento e comovente, aos "anosde chumbo". É nesse contexto que surge, inicialmente no Rio de Janeiro, o GrupoTortura Nunca Mais, estendendo-se, posteriormente, p'ara outros estados:Pernambuco, São Paulo, Minas Gerais e Goiás.

De um modo geral, o Grupo Tortura Nunca Mais/R] tem desenvolvido suaIUL1 em cima de alguns. eixos:

- O esclarecimento das mortes e dos desaparecimentos políticos ocorridosdurante o período da ditàdura militar, como forma necessária e cap'az de resgataruma parte de nossa história;

- Afastamento de torturadores de cargos públicos e punição para aqueles que,de alguma forma, deram seu respaldo técnico para o funcionamento da repressão,como, por exemplo, médicos, a-dvogados, etc.;

- A luta contínu3 contra a impunidade, denuncÍ;1ndo para a sociedade em geralo que foram e o que cçmtinuam sendo os horrores da tortura e de qualquer outraforma de violência.

Entendemos que a não punição de todos aqueies que participaram direta ouindiretamente do massacre cometido nos anos 1970 tem contribuído decisivamentepara que novas violações de direitos humanós sejam cometidas. Acrescenta-se a issoa m<lssiva produção de subjetividades feita através da mídia que aplaude e apóia osextermínios, linchamentos, naturalizando, com isso, diferentes formas de violênciae/ou produzindo o que chamamos "política da indiferença".

Dentre outras atividades, desde 1990, o Grupo Tortura Nunca Mais/R] vemdesenvolvendo um projeto pioneiro de apoio psicológico, médico e de reabilitaçãosocial para vítimas da tortura. O projeto também tem o objetivo de contribuir paraa formação de profissionais que se voltam para a temática da tortura, violência edesrespeito aos direitos humanos.

No Brasil não há, ao que se saiba, trabalho similar e, para o Grupo TorturaNunca Mais/R], ele se constitui como necessário e prioritário.

Necessário e prioritário, posto que a violência do cotidiano no Brasil tem,ocorrências assustadoras e múltiplas, configurando contínuas violações aos direitqshumanos, Denlincias são feitas diariamente, com revelações novas e contundentes,inclusive sobre torturas praticadas durante o período da ditadura militar. O público-

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.iivo .remete a pessoas que experimentaram a violência, direta ou indiretamente,como ex-presos políticos e seus familiares, familiares de mortos e desaparecidos:lolíticos, ex-exilados, prisioneiros torturados por delitos comuns, familiares de.:Jessoas assassinadas pela violência policial, testemunhas ameaçadas por ações de::xtermínio, minorias sociais, vítimas da violência indiscriminada (social, racial,'cxual), portadores do vírus HIV e familiares com questões emergenciais, vítimas dediscriminação, inclusive, por órgãos de assistência à saúde. Evidenciam-se, nessas?essoas, graves danos e alteFações emocionais decorrentes de formas violentas de;l1arginalização compulsória da cidadania. A maioria dessas pessoas não têm condiçõesmínimas para custear um tratamento, o qual só se oferece em âmbito privado. Adeterioração crescente do sistema de atendimento público, distanciado da população:rabalhadora, a ausência de priorização nas áreas de saúde e educação, a ausênci? edesvios de recursos complementam um quadro de violência indiscriminada. O.::ontexto dos àtendimentos 01' outro lado remete à te tão da forma ão dopro issionais marca da or uma dissocia - olítico-social e obre quantodO question o éti ectivasi'11divídualizantes/intimistas/ rivadas.

projeto; atualmente em curso, é realizado na medida das possibilidades, jáque o Grupo Tortura Nunca Mais/R] é constituído exclusivamente de voluntários eos recursos obtidos em órgão internacional- a ONU - para o projeto são insuficientespara o atendimento da demanda, necessitando-se obter outros apoios e dotaçõespara sua ampliação e continuidade. .

O Grupo Tortura Nunca Mais/R] identifica os beneficiários a partir da históriaressoal de cada um, suas relações e testemunho de outros grupos. Essas pessoas sãoencaminhadas aos profissionais que compõem o projeto - médicos, psicoterapeutas,acompanhantes psiquiátricos e reabilitadores - com formação e experiênciaprofissional e, também, participantes de movimentos sociais na área de direitoshumanos. Estes têm vinculação com o Grupo Tortura Nunca Mais/R], participandode suas reuniões, hem como trabalhando em conjunto~na discussão do processo detrabalho, em regime contínuo.

Os atendimentos são individuais e grupais e, desde o início, O projeto enfatizouo trabalho terapêutica grupal, entendendo que este institui um vetor privilegiado oe.iJ1álisedas produções de subjetividades e agenciamentos no campo social. Tal enfoqqeconsti tu i-se em u 111facdi tador por exce lência do trabalho, promovendo umaintensificação da solidariedade e dos processos de transformação.

Desde os primeiros momentos do projeto, vários questionamentos se colôcaram,tais como: trabalhar com pessoas que vivenciaram a violência se constituiria emUil1aespecialidade? _Críticos do especialismo e da instituição do cientificismo - queopera através de dogmas e se apresenta detentora do saber e de verdades"inquestionávcis" e absolutas -, temos aprendido e construído o trabalho junto comos pacientes. Entre outras aprendizagens, ressaltamos a constatação de que estesenfrentaram a violência c são sobreviventes dela: antes de vítimas, são guerreiros dae pela vida. Portanto, trabalhar junto com é trabalhar ao lado do guerreiro e do

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resistente; é concorrer para a pot(;l1cializaçi1o desses devires, marcados pela~wsitivida(k e não pela falta. Por outro bdé.', 0 conhecimentolreconhecimento ebviolência em seus corpos, suas afccçõcs c as p05sibilid;des de construção de relaçõesprodutivas prazerosas só teriam sentido se cofltextualizados nos agenciamentos dasproduções dessas violências: de onde vêm, como vêm, para que vêm, quem as porta,quem as produz, quais o momentos em que presentificam ... Não havia, pois,propostas de trabalho prontas, mas perguntas, elucidações, construção continua deacontecimcntos e ações produzidas no acontecimento - atendimento. Não caberia,no trahalho, a perspectiva da neutrafid:::de: a estreiteza do exerclcio de uma tarefaque separJ. indivíduo e atos político-sociais, a cidadania da análise, a análise dapolífica e " política dos acontecimentos.

Estivemos desde sempre engajados, Sim, nUIT,a perspectiva em que asubjetividade é entendida dent o do contexto dinâmico das produções sociais: nãoaceit.amos () conceito de estrutura psíquica universal, mas a capacidade de não somenteagir e reagir, mas também de_buscar caminhos diferenciados. Eles podem instituirtantü padrõc:; dominantes, desde o org;mizo.dn e estahelecido, como formas desingubri:>.:lç50 qtic irrn:npem e inauguram formas múl:iplas de vida e ação. , Em

()pos;ç:1~) 0,; sllbjetiviebdes que uniformizam e assujeitam, sabemos que o desejo podeser rev'_'~u:·~ion;.írio.Nesse sentido, nossa questão não é se o desejo é o desejo da falta,mas o que c\:.:vemos <"Ir desejo. Buscamos então construir Ullla perspectiva na qual,:Itravés do processo terapêutico, fosse possível trabalhar outras formas deenfrentamento. Isso implica:

. A) Investigação dos agenciamentos5 que constituem modos desejantes, ·atravésde diversos campos de s'lbjetivação, isto é, como as formas de perceber, pensar,sentir, illtuir, viver e agir no mundo são construídas social e historicamente e, port;;nto,passlveis de transformação;

B) Construção de intervençôes possíveis, isto é, a construção de dispositivos eestratégi:1S capazes de tr.l7.er à tena outros investimentos desejantes c outras formasde reJaçôes e prábcas. Ne~se sentido, estar ao lado e com os pacientes nesse processoseria cst:\r em busca de relações ativas e produtivas" evidenciadas pela análise dasimplicaçôes(', pela utilização de analisadores7, ao invés de en!a<;armo-nos em cipósilltirnisLas que remetem ao mundo de fantasias intr:1 e interpessoais psicologizantes.

Entendemos que a grande barreira para as inaugl'fações, pessoais e grupais,constitui-se nos processos de naturalização. É como se as pessoas passasse!TI a ser algo- o fragi!i/.ado, a vítima, o triste ... Cristalizam-se e perpe.:uam-se estados transitórios'que n;'1opermitem a diversidade, mas a semelhança, a repetição e a exclusão. Naturaliza-se tudo; é COIl1Use fosse sempre assim~ intrínseco ao sujeito e não se tratasse de produçõesele todos historic:lmente. Em nossa prática, tentamos trahalhar com uma propostadistinta: 3 de desnaturalização, que procura possibilidades de singularização. Entretanto,é apenas através de uma intencionalidade político-ética e não tecnicista-neutra que épossível, ao nosso ver, interrogar essas produções de opacidade social, produções ativasele invisibilidade que redundam em um suposto oculto.

Quanto maiores os índices de transversalidadex e a possibilidade de reconhecerfluxos e atravessamentos institucionais - modos de produção -, maior a instauração

, , 'de possibilidades. Trata-se, então, de enfocar a questão do co!etivo-em-nós emoposição ao individualismo e ao autoritarismo.

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As referências teóricas da Análise Institucional, as idéias de Deleuze, Guattari eroucault, uma Psicanálise revisitada constituíram, então - ao lado de'outras

,perspectivas - o caráter transdisciplinar do trabalho, Fundamentalmente construído,como afirmamos, no próprio acontecimento terapêutica, em cada momento dorrabalho, posto que ali conhecimentos diversos se presentificam e, ainda, se constróiconhecimento, se indaga e disparam-s/e possibilidades de novos acontecimentos,

Tomemos a história de um paciente que vivenciou a clandestinidade, fugindocios órgãos de repressão, perdendo o contato com o trabalho, amigos e atividadesculturais, o qual, preso, também vivenciou privação de sono e repouso, de alimentos,jgua e contato com familiares; que sofreu ameaças de morte pessoal e decompanheiros; humilhações, isolamento total, convivência prolongada com sons"ltos, ruídos, luz e animais ameaçadores; pau-de-arara; choques elétricos em váriaspartes do corpo, choques térmicos; injeções de éter; surras e socos com objetoscontundúites, sufocação e afogamentos. Em conseqüência, esse paciente sofreu perda:emporária de visão, desmaio$, esmagamento parcial de ossos das mãos, dedos, faceç traumatismo craniano. Sugerem, ainda durante a prisão, que este tenha atendimentomédico, sem que nunca tenha se efetivado. Torturaram-no enquanto tinha febre,decorrente de malária.

Como trabalhar com tal paciente, o qual, após essa histórià de torturas, passoua ter manifestações epiléticas com crises convulsivas e desmaios? Já fora medicadocom pesados psicofármacos e passara por urna internação psiquiátrica. Comocumpliciar-se com suas possibilidades de viver produtivamente, se sua angústia edepressão, sua vontade de morrer parecem ser sua única forma de expressão? Alguémque não consegue trabalhar, que se desencontrou de companheiros, da família, perdeu- ,se de alguns de seus rcferencias políticos, não encontrando outros ou se permitindorevisitá-Ios? Atribuiríamos sua vontade de morrer à pulsão' de morte, a uma forma demasoquismo, a fantasias 'onipotentes, à imersão no mundo narcísico pela impossibilidadede viver a falta, à negativa de entender que o desejo é o desejo do desejo?

Para nós, aprender e construir com o paCiente outras relações e práticas de\'ida tem se constituído em percorrer os agenciamentos que provocam suasintümarcilogia, aliar-se aos seus desejos de construçz.o, desnaturalizar um viés"mortífero" que não era seu, mas est'ava vivo na privação da cidadania, no sistemamédico-hospitalar e nos grupos. Agregamos, aos componentes que constroem apotência da vontade e aos devires., que instituem, a vontade de viver. Ao não nosagenciarmos com os especialisl110s e com o distanciamenro da neutralidade, estam osnos implicando com os direitos humanos, com a ética de plena' cidadania, com uma

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política que privilegia o coleti,vo. Compartilhamos com esse paciente os espaços deatividades do Grupo Tortura Nunca Mais/RJ, em seus eventos e outrosacontecimentos. Percebemos, então, que tentamos não trabalhar com conceitosfechados, que esse proceSso de trabalho é inacabado, que a análise das implicações épermanente e que construir é, de fato, o próprio processo de vida,

Est<l perspectiva questiona, necessariamente, a noção de vitimologja. Cremosque a conscruçiio do lugar de vitimado fàz funcionar um movin\ento de

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despotencialização política e uma rede de transformação das violências sociais emproblemáticas individuais que favorecem o isolamento, constituído no silênciosolitário. Nessa linha de silenciamento se produzem, historicamente, o "doentemental" e o "subversivo", que são comumente percebidos, o primeiro, desde uma"falta de razão normal" - paradigma construído pela ordem médico-psicológica - eo segundo, desde a "falta de uma razão política" - paradigma elaborado pela ordemjurídico-política. A ambos se destina um tratamento moral.

A proximidade torturante entre a psiquiatrização e a tortura não é um acidente,mas uma estratégia na construção de mundos totalitários, já que o "doente mental"está tutelado e é considerado incapaz - neste caso, de compreender as "necessidades"da ordem existente. De qualquer modo, os "perdedores" são sempre aqueles quedeslegitimam ou desreconhecem os meandros microscópicos do poder legalizado.

Uma nova noção de vida equivalente, somente, à sobrevida, como umaalternativa à morte, é algo para ser questionado pelos sobreviventes e, também, portodos nós. A violência ~ue ameaça a sobrevivência acaba por transformar a vivênciaem sobrevi da. As lutéls pela vida, no entanto, apontam para muito mais: para umavivência absolutamente possível, potente, prazerosa e inventiva.

ROLNIK,S. C(lrtografia Sentimental: Transformações Contemporânea~ do Desejo. SãoPaulo: Estação Liberdade, 1989.SADER, E. Quando novos personagens entraram em cena. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1998.GUATTARI, E; ROLNIK, S. Micropolítica: Cartografias do desejo. Rio de Janeiro:Vozes, 1986.COIMBRA, C. t\'1. B. Gerentes da Ordem: Algumas práticas psi nos anos 70 no Brasil.Rio de Janeiro: Oficina do Autor, 1995.SENNETT, R. O Declíl1io do Homem Público. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.GUATTARI, F. Revoluções Políticas do Desejo. São Paulo: Brasi!iense, 1987.RODRIGUES, H.li.C. Psicanálise e Análise Institucional. 111: RODRIGUES, H.E.C.;LEITÃO, i\1.P>.S.;Barros, R.D.n. Grupos e Instituições em Análise. Rio de Janeiro: Rosados Tempos, 1990, p. 42-55.

1 P.rocesso de singu!arização é uma l:oção utilizada por Guat:ari para designar os processosdisruptores no c:llnpo c9 produção do desejo: trata-se dt movimentos de protesto doinconsciente contra a subjetividad~ capitalística, através da :lfirmação de outras maneirasde ser, outras sensibilidades, outra percepção, etc. (GUATTARI, F.; ROLNIK, S., 1986,p.45).2 No conceito de subjetividade dominante ou hegemônica, Guattari mostrà que " ... aprodução de subjetividades constitui· matéria-prima de toda e qualquer produção. Asforças sociais que administram 'o capitalismo hoje entendem que a produção desubjetividades talvez seja mais importante que qualquer outro tipo de produção [...]

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visto produzirem esquemas dominantes de percepção do mundo". (GU.\TTARI;ROLNIK, 19??, p. 40). Sobre o assuntO produção de subjetividades nos anos 1960 e1970 no Brasil, consultar Coimbra (1995).3 Sobre o assunto ver SENNETT (1998).4 A Ilação de instituição para a Análise Institucional de origem francesa difere da deorganização ou estabelecimento. Instituição é onde as relações de exclusão, de dominaçãoe exploração estão instituídas de maneira aparentemente natural, eterna e necessária enão onde o jurídico se manifesta.5 Agenciamento, para Guattari e Deleuze, é uma montagem produtora de inovaçõesque constituem acontecimentos. Cada um de nós é uma espécie de processador-agenciador, ao invés de indivíduos independentes das produções sociais. (GUATIARI,1987).6 Análise das implicações, noção advinda da An,'ílise Institucional, surge a partir dacontra transferência, opondo-se à posição neutro-positiva, e vai nos falar do intelectualimplicado, aquele que analise as implicações de suas pertenças e referências institucionais,analisando também o lugar que ocupa na divisão social do trabalho, da qual é um doslegitimadores. Portanto, esta noção leva a uma análise do lugar que se ocupa nas relaçõessociais em geral, e não apenas no âmbito da intervenção que se está realizando.7 Analisador, dentro da Análise Institucional, são situações espontâneas ou produzidasque realizam G! análise, sem necessidade de "peritos" para esclarecê-Ias. São formas deintervenção ao nível do vivido, resgatando acontecimentos que podem ser fontesautênticas d_econhecimento e de transformações sociais. "Ou melhor dizendo, reva!orizama experiência direta, o 'saber das pessoas', como possíveis caminhos para a análise política,para o inconsciente político, para o acesso ao que foi e é ativamente reprimido e para osmecanismos sociais envoltos nesta repressão" (RODRIGUES, ] 990, p. 42-55).8 A noção de transversalidade, criada por Guattari c muito utilizada em Análiselnstitucional, representa a clareza que se tem dos entrecruzamentos, das pertenças ereferências de todos os tipos (político, econômico, social, cultural, sexual, libidinal, etc.)que atravessam nossas vidas; as relações transversais são, em geral, inconscient~s, nãosabidas e descon hecidas.