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93 92 CRUZEI A FRONTEIRA PARA TER MEU FILHO AQUI Conheça a história de haitianas, grávidas ou com filhos pequenos, que deixaram tudo para trás e, guiadas por coiotes, enfrentaram os perigos de uma rota que atravessa a Amazônia para chegar ao Brasil, na esperança de oferecer uma vida menos sofrida às suas crianças Reportagem Maria Clara Vieira / Fotografia Guilherme Zauith “Estava vivendo nas ruínas da nossa própria casa, coberta com plásticos. Não há dinheiro nem trabalho”, diz a auxiliar de enfermagem Néricia Delion, 27 anos, grávida de sete meses ESPECIAL

especialeditora.globo.com/premios/2014/assets/BRASIL/crescer_ed...por coiotes que chegam a cobrar US$ 4 mil para levá-las até o táxi que cruzará a fronteira com o Brasil. Segundo

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cruzeia fronteirapara termeu filho

aquiConheça a história de haitianas, grávidas ou com filhos pequenos, que deixaram tudo para trás e, guiadas por coiotes, enfrentaram os perigos de uma rota que atravessa a Amazônia para chegar ao Brasil, na esperança de oferecer uma vida menos sofrida às suas crianças

Reportagem Maria Clara Vieira / Fotografia Guilherme Zauith

“Estava vivendo nas ruínas da nossa própria casa, coberta com plásticos. Não há dinheiro nem trabalho”, diz a auxiliar de enfermagem Néricia Delion, 27 anos, grávida de sete meses

especial

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Fim de tarde na Chácara Aliança, em Rio Branco, capital do Acre. A paisagem bucólica fica imersa em um som quase en-surdecedor: centenas de cigarras cantam alto enquanto o sol some entre as árvores. Algumas crianças brincam no grama-do e nas gangorras do parquinho. Outras têm que entrar, por-que as mães começam a chamar para o banho. O local, com ampla área verde e construções labirínticas, repletas de cômo-dos transformados em quartos improvisados, costumava ser alugado para eventos, mas agora abriga temporariamente imi-grantes que vêm ao país em busca de vida nova. Eveline, Né-ricia, Minusca... Elas são poucas, menos de 20% dos cerca de 900 haitianos que chegam por mês, mas fazem parte de um grupo que cresce a cada dia, em busca, principalmente, de um futuro melhor para os filhos, mesmo que eles ainda es-tejam na barriga. Nos últimos cinco me-ses, 26 grávidas passaram por lá, fugin-do da miséria, numa travessia longa e perigosa. Que mãe não faria o mesmo?

Na prática, apenas dez horas de voo separam Porto Príncipe, a capital do Haiti, de Brasília (DF). No entan-to, sem visto para entrar no Brasil, as haitianas precisam se submeter a rotas dignas de filme de suspense. Levam de

especial

sete a 12 dias de travessia pela floresta amazônica, escoltadas por coiotes que chegam a cobrar US$ 4 mil para levá-las até o táxi que cruzará a fronteira com o Brasil. Segundo o Ministé-rio da Justiça, 25.627 homens e mulheres haitianos entraram no país de janeiro de 2012 a abril deste ano. Estima-se que mais de 20 mil tenham vindo ilegalmente.

As primeiras levas desses imigrantes eram de homens que buscavam emprego. Agora, é crescente o número de mulhe-res que vêm encontrar os maridos. Ou de grávidas que deixam seus filhos e companheiros no Haiti para dar condições mais favoráveis ao bebê que nascerá. Elas vêm sozinhas, com uma barriga de seis, sete meses, pouco dinheiro, muito medo, mas também muita esperança. Veem no Brasil um mundo de pos-sibilidades: trabalho, educação, saúde e moradia. Itens bási-cos, mas raros no Haiti desde o terremoto que o destruiu em 2010. Os haitianos que se mudam para cá têm assegurados to-dos esses direitos sociais. Mas não podem ocupar cargos pú-blicos nem votar. No entanto, se o bebê nasce aqui, ele terá os mesmos direitos que os demais cidadãos brasileiros, expli-ca Camila Asano, da ONG Conectas. É por esse motivo, e pe-lo fato de pagar aos coiotes apenas a travessia de uma pessoa (além da praticidade de viajar sem uma criança de colo), que as gestantes se arriscam tanto.

Esse foi o caso da cabeleireira Eveline Louis Charles, 26 anos. Ela chegou sozinha ao Acre, no sétimo mês de gestação, e foi acolhida no abrigo mantido pelo governo do estado. Na cháca-ra, os imigrantes são divididos por sexo e dormem em colchões espalhados pelo chão. As gestantes recebem os melhores apo-sentos: geralmente suítes com cama e ar-condicionado antigo, mas que ajuda no alívio de um calor que, mesmo no inverno, não costuma ser menor que 24°C.

O NasciMeNTO NO BRasilAs haitianas que chegam grávidas ao Acre podem optar por seguir viagem para as cidades de destino ou permanecer no abrigo para ter o bebê. Caso queiram ficar, são levadas a uma das duas maternidades de Rio Branco quando entram em trabalho de parto: a Barbara Heliodora ou a Santa Juliana, que dispõe de um Centro de Parto Normal (CNP). Desde 2010, no entanto, esse número foi muito pequeno: apenas seis nascimentos na cidade, já que a maioria segue para outras capitais. Nem todas, porém, fazem acompanhamento pré-natal. Mesmo nas grandes metrópoles brasileiras, onde o atendimento público hospitalar nem sempre é o ideal, as haitianas parecem aprovar o serviço. Isso porque no país delas a realidade é bem diferente: com o terremoto, muitos hospitais não foram reerguidos. Iniciativas internacionais tentam aliviar a situação. O Brasil, por exemplo, em parceria com Cuba, ONU e Organização Pan-Americana de Saúde, entregou no início de 2014 um complexo hospitalar no Haiti, com 52 leitos para internação.

seNTi dORes a NOiTe iNTeiRa e Meu filhO Nasceu [NO aBRigO] de MaNhã. Meu MaRidO aiNda NãO O cONhece.

Eveline Charles, 26 anos, cabeleireira

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ção com o menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) das Américas: a expectativa de vida é de apenas 54 anos e a população estuda, em média, menos de cinco anos. Não bas-tasse isso, estima-se que 38% dos habitantes não têm acesso a água e saneamento e, diariamente, cerca de 30 pessoas são infectadas com cólera. Diante desse cenário, o “quase vizi-nho” Brasil e seu posto de sétima maior economia do mundo, parecem promissores para quem decide recomeçar do zero.

Quatro anos após ver sua casa ir ao chão por causa do ter-remoto, a auxiliar de enfermagem Néricia Delion, 27 anos, grávida de sete meses, decidiu se arriscar por um futuro melhor. Ela e o marido Josué, encanador, viajaram juntos, cruzaram a fronteira brasileira e decidiram passar alguns dias no abrigo do Acre até resolverem para onde ir. “A vi-da no Haiti ainda está muito difícil, as coisas estão desor-ganizadas. Todo mundo perdeu tudo. A gente estava viven-do nas ruínas da nossa própria casa, coberta com plásticos. Não tinha como reconstruir. Não há dinheiro nem traba-lho”, lembra Néricia, que tem uma irmã vivendo aqui, mas não sabe onde, pois perdeu o contato.

Eles não querem muito. “Não sonho nem planejo nada além de trabalhar. E, para as minhas filhas, quero estudo”, diz o pedreiro Micarnold Hector, 33 anos, que trouxe con-sigo a mulher, Lusanie, e as filhas Djepjei, 9, e Redjira, 10. Gastou US$ 4 mil para vir com toda a família, numa viagem de oito dias cheia de riscos. “Chegamos cansados. Sabemos que algumas pessoas sofrem roubos no caminho dentro do Peru, mas não aconteceu nada com a gente”, conta. Eles, pe-lo menos, já escolheram seu destino: Cuiabá (MT), onde um amigo informou que há emprego.

o trajeto ilegalOs haitianos têm a possibilidade de pleitear na Embaixada do Brasil no Haiti o visto humanitário para viver legalmen-te no país. Desde 2012, foram concedidas quase 9 mil au-torizações desse tipo, mas a demanda é bem maior. Por es-se motivo, quem não consegue o documento arrisca a vida cruzando a América do Sul com coiotes. O trajeto é quase sempre o mesmo: eles saem do Haiti em um voo comercial comum, com duração de quatro horas, em direção ao Equa-dor. De lá, pegam um ônibus até o Peru, em um trajeto de um dia e uma noite. Outro ônibus cruza o Peru por quase uma semana, passando pela capital Lima, a cidade turística Cuzco e pequenos povoados no meio da floresta amazônica, até chegar próximo ao Acre. O último passo é atravessar a fronteira de táxi, por US$ 20, e finalmente pisar no Brasil, nas pequenas cidades de Brasileia ou Epitaciolândia. Todo

peRcuRsO dOs iMigRaNTes ilegais

iMigRaNTes legais

24%

4%

SÃO PAULO

Destino daqueles que entram pelo Acre

Perfil dos imigrantes que conseguiram visto brasileiro no Haiti em 2013

Vistos concedidos em 2012 e 2013 para reunião familiar

CURITIBA

13%

420

181

6%

MANAUS

VIERAM ENCONTRAR

SEUS MARIDOS

VIERAM ENCONTRAR

SUAS MULHERES

PORTO VELHO

2.114HAITIANOS CONSEgUIRAM

VISTO, SENDO:

HOMENS SOLTEIROS

MULHERES SOLTEIRAS

HOMENS CASADOS

MULHERES CASADAS

quito

HAiti

LiMABRASiLEiA

Rio BRANCo

CuZCo

1.341

370

217 186

BRASiL

PERu

EquAdoR

Foi em uma das noites quentes de julho, após o habitual can-to das cigarras, que Eveline começou a sentir as dores do parto. Sem familiares, acabou sendo acalmada pelas amigas que co-nheceu ali. Foi uma madrugada de contrações e gemidos. Não havia nenhum funcionário para chamar, nem número de tele-fone para quem ligar. Ao amanhecer, Eveline não tinha mais forças. Mas seu filho tinha pressa. “Quando olhei, vi a cabeci-nha, o bebê já estava coroando”, lembra, emocionada, Francis-ca Brota, encarregada da limpeza do abrigo, a primeira a chegar naquele dia. Ela acabou fazendo o parto. “Ele era lindo. Eu lim-pei, entreguei para a mãe e liguei para a ambulância.”

A equipe médica veio em seguida e levou os dois para a ma-ternidade, onde cortaram o cordão umbilical e fizeram os exa-

mes necessários. A dupla estava bem e logo teve alta. O meni-no recebeu o nome de Djeson. “Ele é a coisa mais importante da minha vida.” Infelizmente, ela conta, o marido ainda não viu o filho, pois continua no Haiti, onde trabalha como eletricista. “Não sei quando ele vem, porque precisa juntar dinheiro.” Eve-line tem amigos em São Paulo (SP) e Curitiba (PR), mas ainda não sabe onde vai viver – o que é comum entre os imigrantes, que chegam aqui sabendo muito pouco do Brasil e ficam, mui-tas vezes, consultando o mapa pendurado no abrigo.

O destino incerto não é um problema para quem viu seu pa-ís afundar com o terremoto que matou mais de 200 mil pes-soas e deixou cerca de 2 milhões sem casa, segundo a ONU. A economia, que já era fraca, ficou estagnada. O Haiti é a na-

As crianças passam o dia brincando

no parquinho da Chácara Aliança, em

Rio Branco (AC)

especial

Fonte: MRE, SINCRE, MTE.

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esse caminho é tortuoso, hostil e cheio de surpresas – mui-tas vezes desagradáveis.

“Minhas lembranças são tristes, porque eu estava grávida e sozinha na viagem”, recorda Minusca Saintilme, 28 anos, que trabalhava como recepcionista e estudava enfermagem no Haiti. Enquanto lavava as roupas da filha recém-nascida em uma pia do abrigo acreano, a mulher contou sua história à CRESCER: “Uma agência falsa me enganou. Viajei até o Equador e me disseram que, de lá, pegaria um avião para o Peru. Mas não tinha voo nenhum. Era um ônibus comum, e a viagem levaria dias. Fiquei com muito medo. Eu estava grávida de sete meses e era a única haitiana no ônibus”. Ela pagou US$ 3 mil para os coiotes, que incluem brasileiros.

“O ônibus parava só de vez em quando para a gente com-prar comida (normalmente arroz puro) ou para dormir em hotel na beira da estrada. Mas, na maioria dos dias e das noites, seguia viagem. Foi difícil. A vida é isso, é lu-ta. Agora, tudo o que quero é trabalho para mim e educa-

a Vida NO aBRigOPorta de entrada para os ilegais, o Acre acaba acolhendo os imigrantes, fornecendo-lhes abrigo temporário, documentos, alimentação e passagem até que sigam seu caminho. Mensalmente, o estado gasta R$ 20 mil no aluguel da Chácara Aliança, onde serve três refeições diárias. Mesmo assim, basta cair a noite para ver pequenas labaredas iluminarem a escuridão. São as famílias cozinhando suas próprias refeições – batata e carne ensopada – em fogões improvisados com tijolos. Assim que decidem seus destinos, o estado fornece passagens aéreas ou de ônibus, em uma parceria com o governo federal, segundo o secretário Nilson Mourão, da Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos do Acre. “Os imigrantes não querem ficar aqui”, esclarece. Segundo ele, o abrigo reúne, em média, 200 pessoas, que ficam por lá de dez a 15 dias, prazo máximo, mas suficiente, para regularizar os documentos e seguir viagem. Gestantes e mulheres com crianças pequenas podem permanecer pelo tempo necessário. “Atualmente, chegam 30 pessoas por dia no abrigo. Mas já foram até 80 por dia”, informa Mourão. Há vans gratuitas para transportar os imigrantes até a Polícia Federal e ao Ministério do Emprego e Trabalho, onde tiram a carteira profissional e regularizam a situação.No abrigo não há aula de português nem escola, mas são oferecidas oficinas de artesanato para homens, mulheres e seus filhos, com direito a certificado. “Fazemos essa atividade para estimular e descobrir talentos”, conta Silvia Maria da Cunha, que ministra as oficinas. Durante o período em que ficam na chácara, as crianças não frequentam a sala de aula, pois estão lá só de passagem. Assim que chegam à cidade de destino, seus pais podem buscar uma vaga. “(As leis brasileiras) asseguram o pleno direito de toda pessoa à educação escolar no país”, explica Tatiana Waldman, mestre em Direito Humanos pela Faculdade de Direito da USP e autora de um estudo sobre o acesso à educação escolar de imigrantes. Apesar disso, é baixo o número de alunos matriculados na rede de educação básica no Brasil: apenas 163 haitianos, segundo levantamento do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), de 2013.

No abrigo, os adultos passam o dia assistindo à única TV existente, preparam a própria comida em fogões improvisados e consultam o mapa do Brasil para decidir seu destino final

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Djepjei Hector, 9 anos, veio com os pais e a irmã pela rota ilegal que atravessa a Amazônia. A família já tem destino certo: Cuiabá (MT), onde há emprego

especial

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esTOu feliz pOR esTaR aqui,

Mas Meu cORaçãO, NãO. deixei dOis filhOs e Meu MaRidO lá.

Elmicia Mildort, 29 anos, auxiliar de cozinha

ção para a minha filha”, desabafa Minusca. Em busca de um futuro melhor para a bebê, Farolita, que nasceu em julho no Hospital e Maternidade Santa Juliana, no centro de Rio Branco, a mãe deixou no Haiti a filha Betsaida, 5 anos, e o marido Faro, que é advogado. Ele está economi-zando para poder vir também.

enfim, o destinoDepois de viajar pela Amazônia, cruzar a fronteira e regula-rizar a situação no Brasil, os haitianos podem, finalmente, viajar até onde pretendem viver e trabalhar. Segundo o Mi-nistério do Trabalho e Emprego (MTE), as regiões que mais contratam essa mão de obra são o Sudeste e o Sul. Os três es-tados da região Sul foram responsáveis por 63% do total de haitianos empregados no Brasil em 2013, de acordo com o ministério. Para evitar situações análogas à escravidão, o ór-gão informou que são realizadas inspeções periódicas nos lo-cais de trabalho.

Em São Paulo (SP), a entidade católica Missão Paz abriga imigrantes que chegam à cidade, oferece aulas de português e promove encontros com empregadores. “As áreas que mais contratam os haitianos são construção civil, limpeza, restau-rantes e frigoríficos”, informa o padre Paolo Parise, que co-manda a missão. No entorno da Igreja do Glicério, onde ela atua, vivem muitos haitianos, a exemplo da família de Onise Fleuratin, comerciante, de 33 anos. Ela chegou ao Brasil em setembro de 2012, dois anos após o marido, que tra-balha na construção civil. O casal deixou três filhos com a avó em Porto Príncipe e, em breve, quer trazê-los. “Com o terremo-to, eu só perdi a casa. Mas vi muitas mulhe-res que perderam todos os filhos. Os meus sobreviveram”, diz ela, emocionada. No Bra-sil, Onise trabalhou por um ano como em-pregada doméstica e, agora, está realizando o sonho de ter o negócio próprio. “Há dois meses, abri meu restaurante. Muitos haitia-nos vêm jantar aqui depois do trabalho”, diz, enquanto mexe nas panelas a comida caseira bem temperada. Há um ano, ela deu à luz o seu quarto filho, Gabriel, na Santa Casa. Ela, o bebê e o marido vivem em uma pequena casa nos fundos do restaurante e estão ani-

especial

a saga da RegulaRizaçãOComo os haitianos que cruzam a fronteira pelo Acre não têm visto e a legislação brasileira sobre imigração é muito antiga, de 1980, eles devem cumprir uma longa saga para se legalizar. O primeiro passo é pedir refúgio na Polícia Federal. O pedido é encaminhado ao Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), onde é negado, pois eles não sofrem perseguição em seu país de origem. Porém, automaticamente é concedida a permissão de residência no Brasil por motivos humanitários, por um período de cinco anos, com direito a trabalho. Passado esse tempo, se ele comprovar que tem emprego e conseguiu se estabelecer, recebe a permissão permanente. “Trata-se de um remendo na lei. É a forma que se encontrou para permitir que eles possam ficar. Ainda está em vigência o Estatuto do Estrangeiro, que foi feito durante a ditadura militar, e que trata os imigrantes como assunto de segurança nacional”, explica Camila Asano, coordenadora do Projeto de Política Externa e Direitos Humanos da Conectas, ONG internacional que visa promover a efetivação dos direitos humanos. Segundo Camila, não há um departamento que se dedique totalmente a cuidar dos imigrantes no Brasil, o que torna o processo de legalização muito burocrático. “As questões de imigração estão dispersas, fragmentadas em vários órgãos (Ministério de Justiça, Polícia Federal, Ministério de Relações Exteriores e Ministério do Trabalho e Emprego)”, conta. Uma proposta de lei que cria um órgão único para atender os imigrantes foi entregue em Brasília no final de agosto e segue em análise.

Adeclat Dorcent, 41 anos, veio para o Brasil com visto

há dois anos. Recentemente, a filha Betjina, 8, e sua mulher

se uniram a ele. Dois filhos, no entanto, ficaram no Haiti

Leia mais sobre gravidez na

reportagem de capa desta edição

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mados. “Gosto muito do Brasil. Conseguimos trabalhar e tem creche para o meu bebê. Estou muito feliz, mas faltam meus outros filhos. Falo com eles por telefone e eles perguntam por que os deixei no Haiti. Eu digo que, quando tivermos mais di-nheiro, eles virão também”, conta.

O sofrimento não é menor para quem chegou ao país com visto. O pedreiro Adeclat Dorcent, 41 anos, veio há dois anos direto para São Paulo. Em 2014, ganhou a companhia da filha Betjina, 8, e da esposa Iviane, 36. A mulher trabalha como auxiliar de limpeza e a menina já foi matriculada na rede pú-blica. Mas ainda faltam os outros filhos do casal, Bedjino, 3, e Bedjilos, 10, que ficaram com os avós. “O salário mínimo no Brasil é baixo e a vida é cara. Vai demorar para conseguir tra-zer meus filhos”, diz o pai. Uma sensação que a auxiliar de co-

zinha Elmicia Mildort, 29 anos, já conhece bem. “Estou feliz por estar aqui, mas meu coração, não. Deixei dois filhos e meu marido lá”, conta ela, que veio sozinha e grávida de seis me-ses à cidade – o bebê está previsto para nascer no fim do ano. Elmicia ainda não decidiu o nome. Mas a gratidão e a vonta-de de criar raízes no Brasil têm influenciado até isso. “Tenho visto muitos bebês das haitianas sendo registrados como Ney-mar e Dilma. É a maneira deles de homenagear o país”, conta Monica Quenca, assistente social da Missão Paz. Em nota, o Ministério das Relações Exteriores “salienta a necessidade de tratar os imigrantes haitianos com espírito humanitário, pleno respeito a seus direitos humanos e a sua legítima intenção de iniciar nova vida em outro país”. Uma vida movida pela eter-na esperança de, um dia, conseguir reunir toda a família.

Para passar o tempo no abrigo da Chácara Aliança, as crianças brincam no campo improvisado de futebol. Enquanto isso,

seus pais correm atrás da documentação necessária para se regularizar no país

especial