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Luciene Regina Paulino Tognetta
Americana - SP2011
Suplemento especial parapais e professores
5
A história da menina e do medo da menina
“Ninguém pode fazer você se sentir inferior sem o seu próprio consentimento”.
Eleanor Rooservelt (1884-1962)
Eu já fui um pouco Serafina, confesso. Era uma menininha,
baixinha, magrela, na época em que as magras não faziam sucesso... Era
diferente por isso e por mais um motivo: era boa aluna e paparicada pelos
professores. O fato é que ninguém de nós, sejamos adultos ou crianças,
está livre do olhar atento de algozes que decidem, como única opção para
se sentirem também aceitos socialmente, atemorizar-nos com apelidos
pejorativos, ameaças, exclusões e tantas outras formas de cometer
bullying.
Sim, o texto de Serafina fala sobre vários aspectos da natureza
humana que estão presentes na escola e, dentre esses, o bullying.
Comecemos então pela explicação do fenômeno e suas características
contidas nas ações dos personagens de nossa história.
O que sofria Serafina? O fenômeno bullying
Bullying é um termo em inglês que significa intimidação. Do
inglês Bull, advém tal ideia de intimidar pela força. Força também é
central no núcleo de significação “vis” da palavra violência. Portanto,
uma força de intimidação violenta para com outrem. Temos encontrado
autores, principalmente entre os portugueses (ALMEIDA, A.; LISBOA, C.;
CAURCEL, M. J., 2005; 2007), que têm optado por uma tradução do termo
bullying à sua língua materna apresentando o fenômeno como maus-
tratos entre iguais. Concordamos com nossos colegas patrícios que uma
das características peculiares dessa forma de violência é o fato de que o
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colegas no espaço escolar por usar uma saia curta. Constrangida, a garota
só conseguiu sair da escola escoltada pela polícia. Rapidamente o fato
circulou pela mídia e muitos acreditaram ser um caso de bullying.
A questão é que não podemos considerar bullying se esse fato
é um ato isolado na vida desta garota. Foi, sem dúvida, uma forma de
violência, mas não de bullying se, antes desse acontecimento, ela não
havia sido vitimizada repetidas vezes por seus algozes. Essa é a razão
para não traduzirmos o termo como maus-tratos. O fenômeno bullying é
uma forma de maus-tratos, sem dúvida, mas cuja segunda característica
é a repetição, o que o torna de fato “fenômeno” que merece destaque
nos estudos sobre a violência na escola. Quem é alvo de bullying recebe
agressões, intimidações, gozações, ameaças, constantemente, o que torna
sua vida angustiante. É exatamente esse o problema que nos preocupa.
Não se trata de uma brincadeira isolada e sim de atos repetidos que
tornam a vida daquele que sofre os ataques um tormento. É violência,
sem sombra de dúvida. E toda violência é uma forma de desrespeito.
Toda violência “é uma forma de tratar o próximo como meio, e não como
fim em si mesmo” (...) toda violência “é negação da dignidade alheia. E
toda violência é ausência de generosidade, ausência de compaixão e, não
raras vezes, presença de crueldade.” (La Taille, 2007, p. 46)
Talvez Geysi, se não houvesse a repercussão do seu caso, fosse
um alvo fácil para bullying das próximas vezes, já que seus agressores têm
algo muito parecido com o que identificamos nos autores de bullying:
eles sofrem de falta de sensibilidade moral. De que se trata esse termo?
Segundo Smith (1999), esse “senso moral” se refere a um conjunto de
capacidades necessárias a uma ação moral: uma primeira capacidade diz
respeito a distinguir o certo e o errado a partir de uma hierarquia de valores
que são agregados à personalidade da pessoa. Essa primeira capacidade
é somada a outra também importante – a capacidade de atribuir valor a
outrem como alguém que ‘merece’ ser tratado com determinado valor
bullying se dá entre iguais. Isso significa que não se trata de bullying a
intimidação ou violência física e moral que um professor ou pai cometa
contra um aluno ou filho ou que esses cometam contra os adultos. Por
certo, humilhar uma criança na frente das outras, apelidá-la de algo que
a faça se sentir envergonhada são formas de violência à sua intimidade.
Da mesma forma, quando professores se queixam de ameaças que vêm
de seus alunos, de palavrões ou mesmo de agressões físicas ou morais
recebidas deles, não estão sofrendo bullying, embora não deixem de
sofrer uma forma também de violência. Infelizmente, tal confusão tem
sido expressada por alguns autores e pela mídia no Brasil quando, por
exemplo, circula-se a notícia de que 9% dos professores da rede de São
Paulo dizem já terem sido vítimas de bullying de seus alunos (Folha de
São Paulo, 17/06/2009). Se foram eles violentados em seus direitos de
cidadãos por parte dos alunos, sofreram intimidação e violência, mas
não bullying. Se foram ameaçados, intimidados, ofendidos por colegas,
então sofreram bullying no trabalho. Se foram ameaçados, ofendidos,
discriminados por uma autoridade, sofreram assédio moral.
O termo bullying é utilizado, assim, para caracterizar as relações
em que há violência entre crianças, adolescentes ou adultos que tenham
o mesmo “poder instituído” de agir e, portanto, não tenham diferenças
quanto à autoridade. Isso não significa que o autor, um dos personagens
do bullying, não tomará atitudes autoritárias e não tentará sobrepor sua
força física e moral sobre outro, como veremos a seguir.
Não concordarmos com que todas as formas de maus-tratos
entre iguais sejam denominados bullying: quanto a essa primeira
característica, entre iguais, estamos de acordo, porém não podemos
dizer que quaisquer tipos de maus-tratos (ainda que violentos, severos,
insensíveis e desumanos) sejam bullying. Houve um caso recente no
Brasil que nos chamou a atenção: uma garota, Geysi, estudante de uma
Universidade particular em São Paulo, foi ameaçada e ridicularizada pelos
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demais” (La Taille (2007,p. 46). E continua o autor: “isso é autoestima
heterônoma, não falta dela. Isso é pequenez, não necessariamente
infelicidade. É pequenez existencial e também pequenez moral.”
Ao contrário da heteronomia, um sujeito autônomo é aquele
que compreende o valor de uma regra moral, seu espírito, e por isso não
precisa ser vigiado por uma autoridade para agir bem. Ele mesmo é seu
próprio vigia.
Não é autônomo, portanto, aquele que justifica sua ação
culpabilizando o outro, como fizeram os agressores de Geysi, ao dizerem
que a constrangeram exatamente por ela os ter provocado por usar saia
curta.
Essa é, de fato, uma característica muitas vezes notada nas vítimas
de bullying: são vistas como “provocadoras”. Muitos professores notam
que grande parte das vítimas de bullying parece ter comportamentos que
concordam com o que seus agressores apontam: aquele que é chamado
de “chorão”, de fato, resolve seus problemas chorando; aquele que é
chamado de “bicha” demonstra comportamentos efeminados...
Mas o fato é que há entre elas, as vítimas, algo que precisamente
as caracteriza como alvos certos de bullying. São notadamente diferentes
dos estereótipos sociais vigentes: gordinhos, baixinhos, compridos,
magrelos como a Serafina, se saem bem nas aulas (chamados de “nerds”),
os tímidos, os que usam óculos, têm cabelos encaracolados (quando a
cultura prega o auge das chapinhas...). No entanto, essa não é a explicação
mais adequada para entendermos a sutileza do fenômeno em questão:
por que nem todos os que não pertencem aos estereótipos culturalmente
estabelecidos se tornam vítimas de bullying? Como se explica o fato de
que crianças a partir de três anos de idade2, mais ou menos, possam ser
vítimas ou agressores, se ainda não compreendem esses estereótipos
sociais?
2 Autores como RUIZ, R.; MORA-MERCHÁN, J. (1997) nos apontam para o fato de que desde a ‘tomada de identidade’ é possível que a criança passe a sofrer ou a ser autor de bullying.
moral. Seria, portanto, uma espécie de sensibilidade capaz de fazer o
sujeito olhar para o outro com olhos de quem se sensibiliza, se simpatiza1
com esse outro e o vê digno de receber uma ação justa, tolerante,
generosa, honesta ou respeitosa.
Diria La Taille (2007) que o autor de bullying, “para procurar
adquirir pontos positivos ao olhar dos outros, para manter sua ‘fama
de mau’ (...) é desprovido de senso moral, ou tem senso moral
demasiadamente fraco.” (p. 46)
Seria muito bom, por certo, se essa sensibilidade fosse estendida
para todos os seres humanos como desejou Kant e tantos outros que
afirmaram a necessidade de que tratássemos todos como gostaríamos
de ser tratados. Concordamos, pois, com La Taille que, mais do que ideal,
essa capacidade, em termos reais, pode ser fraca demais para algumas
pessoas, como no caso dos autores de bullying que não veem, em suas
vítimas, pessoas que devem ser respeitadas. São sofredores também,
porque, por algum motivo, como a falta de respeito vivida também
para com eles, tornaram-se pouco sensíveis ao outro. Falamos que eles
sofreram também uma falta de valor em termos de respeito e não que
houve problema de autoestima, pois a falta dessa última, os autores não
sentem. Aliás, veem-se com notado valor, mas valor fútil, passageiro,
valor que os leva a tudo para manter sua “fama”, manter sua “boa”
imagem diante dos outros. “Há covardia na agressão”, diria La Taille, pois
o autor “não corre risco” (p.45). Para os autores de bullying, continuaria
ele, “uma das formas de sentir-me bem consiste em rebaixar alguns e
adular outros”.
Podemos dizer que os autores de bullying, meninos e meninas
de oito, 18 ou de qualquer idade, são heterônomos, pois sua autoestima
“é constantemente medida em relação ao valor de outrem: sentem-se
fortes reforçando a fraqueza de uns e inclinam-se perante o prestígio dos
1 Em termos piagetianos ter simpatia por alguém significa, ainda que temporariamente, estar sensível a ele e vê-lo com “bons olhos”.
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Sim, pois não podemos negar a importância do público para que
haja o bullying. O público é o oxigênio que mantém a chama da vela ace-
sa. Os autores de bullying são fortes, viris, sádicos, tiranos, gozadores,
aos olhos de uma plateia. Não raramente, estes atacam seus alvos às es-
condidas, longe dos olhos das autoridades, mas sempre contando com
a presença dos colegas ou com o fato de que aqueles saibam o que fize-
ram com suas vítimas. Muitas vezes, meninos e meninas, espectadores,
se mantêm indiferentes à situação, por medo de se tornarem a próxima
vítima, quem sabe, ou porque também carecem de senso moral, preferin-
do ficar “do lado dos mais fortes”. Portanto, mais uma característica do
bullying: há sempre um público.
Pois bem, de posse dessas características e explicações para o
fenômeno é possível que nos indaguemos: todas as Serafinas terão forças
suficientes para superar sua condição de vítima? Não; infelizmente,
é a resposta. Contudo, tal negação nos impulsiona a pensar em ações
prementes que, enquanto professores e pais, podemos ter para ajudar
meninos e meninas a enfrentarem seus medos.
O que fazer? É a pergunta a ser respondida. Antes, porém,
gostaríamos ainda de aprofundar nossas reflexões sobre uma tarefa
que a escola não tem cumprido eficazmente e, por isso, tem favorecido
a permanência ou o surgimento de situações desse tipo de violência.
Bullying é, sem dúvida alguma, uma forma de exclusão social. Uma forma
de exclusão dentro de uma instituição que se apresenta como inclusiva.
A explicação nos parece bastante interessante: vítimas de
bullying, ainda que temporariamente, não têm força para lutar contra
o que sofrem porque se veem também diferentes. Têm uma imagem
de si empobrecida, que parece corresponder àquelas apontadas por
seus agressores. Dissemos “temporariamente”, pois podemos entender
a condição de vítima como estado: ela está alvo de bullying, pois pode
superar tal condição. Como? A resposta vem com outra pergunta: como
fez Serafina para se tornar parte do grupo que antes a excluía? Passemos
então para nosso segundo aspecto destacado na história da menina.
A menina tinha medos...
Na história de Serafina contamos sobre seu medo. Medonho
representa todos os medos que a menina, como qualquer ser humano,
tem. Para vencer o processo de vitimização a que foi submetida, Serafina
teve que buscar forças para superar seus medos. Onde ela pode buscar
essas forças? O próprio texto diz: dentro dela mesma, numa procura
com sucesso, Serafina encontra um pedacinho de si capaz de superar o
medo do Medonho. Certamente, dominar o medo que tinha foi possível
quando Serafina olha para si, pensa sobre seus medos, os enfrenta
porque os conhece. Conhece-os e conhece a si mesma. Então, as risadas
da criançada já não a incomodam, e, portanto, os autores de bullying já
não encontram alvo fácil para seus ataques em Serafina.
Mais do que isso, quando Serafina vence Medonho, vendo-o
então como pequenininho, ela se insere como igual num grupo daqueles
a que almeja pertencer. Ela sabia que causaria boa impressão com aquilo
que conseguia fazer e que isso corresponderia ao que seu grupo de
colegas também valorizava. Quando Serafina canta a canção de que todos
gostavam, ela se torna pertencente a esse grupo. E, então, atinge a todos,
seus antes agressores e o público, antes espectadores do bullying que ela
sofria.
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Novamente nos questionamos: quem são os diferentes? Nem
sempre são aqueles diagnosticados como portadores de necessidades
especiais. São também negros, índios, pobres, sujos, raquíticos e,
principalmente, os que não aprendem.
Soubemos outro dia de um caso. Contou-nos a professora de
uma sala numerosa, que acolhe 39 crianças de 5º ano, que 30% de seus
alunos foram diagnosticados por ela como ainda estando silábicos para
ler e escrever. São meninos e meninas, estigmatizados pela diferença
de idade do restante da classe, repetentes, aglomerados numa única
sala que recebeu a professora mais recentemente concursada, aquela
que menos pontos tinha para efetuar a escolha de onde começaria sua
carreira, aquela que é vista pelas outras (como ela mesmo nos relatou)
como a que “faz tudo para se mostrar”, já que está começando... O fato
é que essas crianças são altamente indisciplinadas. Por quê? A própria
professora tem a resposta. Explica ela: “comecei a notar que, na falta de
um material impresso, quando eu solicitava que os alunos copiassem da
lousa uma matéria, eles permaneciam em silêncio. Mas cada vez que
solicitava a resolução de um problema, a interpretação livre de um texto,
eles não o faziam, esperavam as respostas que possivelmente seriam
escritas na lousa para copiarem e passavam a conversar e bagunçar”. E,
continua ela, “compreendi que eram apenas ótimos copistas3, mas que
não sabiam pensar. Então, resolvi levar jogos e propor que ficassem em
duplas ou em pequenos grupos para que um ajudasse o outro nas tarefas
que propunha”.
Porém, trazer às aulas oportunidades de pensar não foi visto
como algo valioso pela direção da escola, que solicitou imediatamente
3 Estudos do Instituto de Estatística da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), realizados entre 2005 e 2007 em escolas primárias de 11 países da América Latina, da Ásia e África, chegam à conclusão de que o Brasil é um dos líderes na utilização de métodos mecânicos, pois 91,6 % colocam o conteúdo no quadro-negro para os alunos copiarem; 64,2% recitam tabelas e fórmulas e 63,8% das classes repetem sentenças.
Bullying e inclusão social na escola: um problema ainda sem
solução
Desde a Lei Federal nº 7.853 publicada em 24 de outubro de 1989,
a inclusão de pessoas com necessidades especiais na escola dita “normal”
foi assegurada pela legislação no Brasil. Uma conquista para uma escola
que pregava a democracia, mas que selecionava, dividia, separava e
excluía aqueles que eram “diferentes”.
Quem são aqueles que devem ser incluídos pela escola? Segundo
Corrêa (1990), os que possuem uma marca, um rótulo que os estigmatiza
em função do que é culturalmente aceito. Todo e qualquer ser humano,
continua a autora, que tem um “carimbo” limitando suas expectativas
de crescimento e tornando-o um humano prisioneiro. Quem são os
diferentes? Renomeados de diferentes formas e sob os mais diversos
rótulos: “‘pobre’, ‘sem condições de sobrevivência’, ‘descamisado’, ‘de
famílias desestruturadas’, ‘negligenciados’, ‘portadores de deficiência’,
‘pretos’, ‘doentes’, ‘homossexuais’, ‘descompensados’, ‘retardados’,
‘lentos’, etc...” (Santos, 2000, p. 47).
Entretanto, podemos nos indagar: será que, de fato, a inclusão
dos que são “diferentes” tem acontecido em nossas escolas? Sabemos
que a resposta é negativa para a maioria das instituições que educam
no Brasil. Meninos e meninas com dificuldades especiais são, a bem da
verdade, integrados ao sistema, e não incluídos. Transformá-los, adaptá-
los para pertencer a essa escola é o que chamamos de integração: nada
precisa se modificar para receber esse que é diferente. Por certo, como
diria Mantoan (2004), na perspectiva da integração “é papel do aluno se
adaptar à estrutura vigente na escola, aceitando as normas expostas pelo
sistema, sendo considerado objeto do currículo”. E continua: “o aluno
tem que se adaptar ao seu ambiente, como se ele ‘fosse culpado’ de suas
dificuldades” (Ibid).
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seus professores, são menosprezados quando o professor diz, a um de
nossos alunos estagiários, “eu dou aula para os que aprendem, porque
para os burros, os do fundão, não quero nem saber”?
O estigma de alvo é, muitas vezes, reforçado por ações não
intencionais, mas incisivas, de muitos professores: por acreditar que a
educação se dá por meio das críticas em público, por meio dos elogios
aos que se saem melhor, por meio das ameaças, pais e professores muitas
vezes reforçam o sentimento de menos valia de muitos de nossos alunos.
Da mesma forma, muitas vezes, o que deveria ser público se torna
uma ação particularizada que não promove a superação do problema de
violência entre os alunos. Em nosso livro anterior (Era outra vez o reizinho
... e seus vizinhos) discutimos o quanto uma “briga de galo” (quando dois
ou mais garotos brigam e outros assistem) precisa ser retomada com
todos os que estão envolvidos. Normalmente, o que se faz? Mandam-
se os “brigões” para a direção e que os outros se “dispersem”. O fato é
que os espectadores também participam do problema: são indiferentes,
e a indiferença é uma das piores inimigas de uma virtude como a
generosidade. “Não é comigo”, poderia dizer um aluno. Ou então “eu não
fiz nada, dona, só estava olhando”, diria outro. É exatamente aí que entra
nossa intervenção que desafia a exclusão social: é por não ter feito nada
que tantos meninos e meninas precisam ser questionados: e se fosse
com você? Como será que aqueles que apanharam se sentiram? Como
devem ser tratadas as pessoas? O que você poderia ter feito para ajudar
a solucionar o problema?
Infelizmente, a intervenção proposta pela escola é pontual:
chamam-se os pais, transfere-se o problema à polícia, suspende-se o
aluno que continua com raiva, com ódio do outro, indignado...
Por certo, não se trata de enxergar amigos onde há estranhos.
Uma proposta de inclusão implica necessariamente a “transformação
de relações sociais sedimentares, já que não se pode fazer uma lei que
à professora que voltasse as carteiras para o lugar em que sempre
estiveram: enfileiradas. Jogos? Segundo a diretora, a professora não daria
conta de dar todo o conteúdo do 5º ano, que não era fácil e que não
comportava “brincadeiras infantis”. E mais: se a única maneira de fazê-
los ficar em silêncio era propondo cópias da lousa, que isso fosse feito.
Infelizmente, a direção dessa escola está longe de entender que a criação
de condições para incluir “implica refletir de forma crítica sobre o papel
da educação, do projeto da escola, do sistema de avaliação etc.” (Fogli,
Silva Filho e Oliveira, 2008).
Por certo, meninos e meninas estigmatizados pelo fracasso
escolar são bons candidatos a alvos e mesmo a autores de bullying. São
excluídos da escola que não se adapta a eles, às suas necessidades. Esse é
um bom exemplo de integração e não de inclusão que acontece na escola.
Estigmatizados, estão com certeza todos os diferentes que não
aprendem na escola que não se renova e nem se preocupa em criar for-
mas de se adaptar às suas necessidades especiais. Notemos o olhar do
professor na sala de aula da Serafina: é voltado ao quadro, e não a quem
aprende. Até porque, infelizmente, perpassa pela cabeça de muitos pro-
fessores que o problema de bullying é uma brincadeira própria da idade.
Ou então, para outros, um problema que não é da escola. Mas convenha-
mos: ética não é um conteúdo da escola? Se sim, como afirmado pelos
parâmetros curriculares, é trabalho imprescindível do professor tratar
deste conteúdo em suas aulas. Se concordarmos com Ricoeur (1993) que
“ética é a busca de uma vida boa com e para o outro em instituições jus-
tas”, trabalhar com o tema da ética é trabalhar com as relações entre as
pessoas. É ajudá-las a buscar a “vida boa” como sinônimo de dignidade.
É possibilitar que meninos e meninas se vejam com valor, para então va-
lorizarem os outros.
Então nos questionamos: como tal tarefa tem sido realizada na
escola se, costumeiramente, crianças e adolescentes são humilhados por
16 17
de “veado”, claro que de maneira pejorativa, é um problema particular
dele. Sua afirmação foi convicta: “Estamos na escola pública e precisamos
dar conta do conteúdo programático”. Acreditamos que não será preciso
retomar o que já dissemos sobre ética ser um tema a ser trabalhado na
escola. Interessantemente, a escola desse diretor é uma das instituições
em que mais encontramos regras. Em escolas como esta, se gasta um
tempo considerável com regras convencionais que não garantem a
dignidade das pessoas que lá convivem...6 Falta, então, “tempo” e
entendimento de que o respeito para com uma criança ou adolescente
chamado de “bicha” é imprescindível.
O que fazer?
“As crianças são candidatas a humanidade”, diria Hanna
Arendt...
É, portanto, nossa tarefa, humanizá-las. E isso significa gastar
tempo com aqueles que precisam de pessoas em quem confiar, a
quem admirar...7 Sim, pois o papel do professor e dos pais continua
imprescindível. É ilusão acreditar que as crianças se educam moralmente
sozinhas. Precisam de um adulto que lhes apresente o espírito das regras,
que diga para aqueles que são autores de bullying “Isso não se faz. Como
você pode fazer para reparar o que fez com seu colega?” e que, ao mesmo
tempo, para os alvos que não encontraram, ao contrário de Serafina,
6 Encontramos nos regimentos das escolas visitadas por nossos alunos estagiários regras como: “Não é permitido nas dependências do colégio o uso de brincos, colares, ‘piercings’, tatu-agens ou qualquer outro tipo de adereço extravagante”, “não é permitido o uso de ‘pochete’ ou qualquer outro tipo de bolsa fora dos padrões da escola” e ainda “não é permitido se apresentar no colégio com penteados que caracterizem desleixo, exibicionismo ou modismo”. São exemplos de regras convencionais.
7 Por certo, como diria Parrat-Dayan: “Se eu me coloco no lugar do aluno, onde o aluno vai se colocar?” Silvia nos lembra de que nossa tarefa não é ser “igual” ao aluno e sim alguém a quem ele pode admirar.
obrigue as pessoas a gostar uma das outras” (Fogli, Silva Filho e Oliveira,
2008).
Portanto, não é possível exigir a alguém que goste e simpatize com
determinado colega da escola. Até porque generosidade não é algo cuja
ausência se possa cobrar. Mas é preciso que se exija justiça, e justiça se faz
ao se discutir os conflitos com quem é de direito (e não tornando público
um problema que é particular) e permitir que os mesmos envolvidos, os
alunos, possam chegar, com nossa ajuda, a possibilidades de solução para
os problemas que têm. Esse é o papel, por exemplo, das assembleias4.
Contudo, o fato de a ausência da generosidade não ser condenável
não faz dela uma virtude menor: a generosidade é imprescindível para que
se possa humanizar as relações entre as pessoas. É dela que precisamos
quando choramos pela perda de alguém, quando nos sentimos sós
ou quando nos sentimos angustiados por carregar um peso que nos
sobrecarrega... Sim, pois se a falta da justiça pode ser condenável, a falta da
generosidade é, no mínimo, desprezível e nos afasta de sermos humanos
(La Taille, 2008). Como temos ensinado a generosidade na escola? Não
temos. Está provado que generosidade não se ensina, mas se possibilita
pela experiência da convivência com aqueles que são diferentes, que têm
gostos, ideias, preferências, sentimentos, muitas vezes diferentes dos
nossos. Em outros trabalhos já demonstramos como a generosidade não
tem sido presente na escola5.
A questão é que comumente se invertem os papéis: diria um
diretor que nossos alunos de licenciatura conheceram em seus estágios:
“Não pode falar sobre bullying na escola”. Como explicar esse fato? O
diretor se justifica dizendo que o problema de certo aluno ser chamado
4 Maiores discussões sobre como propô-las e conduzi-las o leitor pode encontrar no livro “Quando a escola é democrática: um olhar sobre a prática das regras e assembleias na escola” (Tognetta e Vinha, 2007), Editora Mercado de Letras. 5 Ver “A construção da solidariedade e a educação do sentimento na escola” (Tognetta, 2003), Editora Mercado de Letras.
18 19
forças para vencer seus algozes, seja um adulto presente ao dizer “Por
que você deixou que lhe tratem assim? O que podemos fazer para que
isso não aconteça mais?”, ajudando a vítima de bullying a se indignar
pelos insultos recebidos, ajudando-a a perceber o quanto é importante e
o quanto precisa se dar valor e ser respeitada.
Simples ações como essas já são um caminho para que mais e
mais Serafinas possam estar presentes entre nós. Quando permitimos
que as crianças manifestem seus sentimentos, quando criamos espaços
para que elas possam falar sobre o que sentem, possam falar sobre o que
gostam, sobre o que não gostam, é seu valor que estamos ajudando-as a
construir. Isso para que elas se conheçam e se atribuam valor. Não se trata
de criar especulações para saber da vida das crianças. Se sofrem, se têm
problemas em casa, já sabemos quando elas se tornam vítimas ou autoras
de bullying. Temos insistido em dizer que jogos e atividades que falem de
si não são terapias de grupo. São momentos de encontro solitário, ou com
seus pares, escolhidos pelas crianças (Tognetta, 2003; 2009).
Assim como os alvos precisam de ajuda, os autores também
necessitam de nossa contribuição para superarem sua condição de
agressores. Como dissemos, sofrem de falta de senso moral. Por essa
razão, mais e mais necessários são os momentos em que se pense nas
regras da escola, nas assembleias semanais e na discussão conjunta do
que é respeito pelos outros, que são sempre diferentes. Por um lado,
“não basta reconhecer e aceitar a diferença” (Alves, 2008). Por outro
lado, negar que as diferenças existam significa “submeter-se a padrões
preestabelecidos, o que acarreta a perda da identidade. A perda da
identidade, por sua vez, amputa-nos a condição de ser sujeitos, nos
colocando na de sujeitável. É contra isso que temos que lutar nos espaços
com os quais nos relacionamos”(Ibid).
Enfim, vencer os nossos medos de transformar a escola numa
escola acolhedora é preciso. Vencer os próprios medos de arriscar uma
nova forma de educar crianças e adolescentes que possam pensar e se
sentir valorizados é para nós um desafio. Um desafio prenhe de muitos
frutos, ainda que o parto seja doloroso...
20 21
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