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COLEÇÃO VIAGENS NA FICÇÃO Brasil | Portugal | Angola | Cabo Verde

COLEÇÃO VIAGENS NA FICÇÃO

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Page 1: COLEÇÃO VIAGENS NA FICÇÃO

COLEÇÃO

V I A G E N S N A F I C Ç Ã O

Brasil | Portugal | Angola | Cabo Verde

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Um livro vai para além de um objeto. É um encontro entre duas pessoas através da palavra escrita. É esse encontro entre autores e leitores que a Chiado Books procura todos os dias, trabalhando cada livro com a dedicação de uma obra única e derradeira, seguindo a máxima pessoana “põe quanto és no mínimo que fazes”. Queremos que este livro seja um desafio para si. O nosso desafio é merecer que este livro faça parte da sua vida.

www.chiadobooks.com

Brasil | Portugal | Angola | Cabo VerdeConjunto Nacional, cj. 205 e 206, Avenida Paulista 2073,

Edifício Horsa 1, CEP 01311-300 São Paulo, BrasilEdifício Chiado – Rua de Cascais, 57, Alcântara – 1300-260 Lisboa, Portugal

Espanha | América LatinaPaseo de la Castellana, 95, planta 16 – 28046 MadridPasseig de Gràcia, 12, 1.ª planta – 08007 Barcelona

Brickell Avenue 1221, Suite 900 – Miami 33131 Florida United States of America

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Brickell Avenue 1221, Suite 900 – Miami 33131 Florida United States of America630 Fifth Avenue – New York, NY 10111 – USA

ItáliaVia Sistina 121 – 00187 Roma

© 2018, Guilherme Bianchini e Chiado BooksE-mail: [email protected]

Título: Diário de um DetetiveEditor: Vitória Scritori

Composição gráfica: Vera SousaCapa: José Serrano

Revisão: Tatiana weber Mallmann

Impressão e acabamento: Chiado

P r i n t

1.ª edição: Julho, 2018ISBN: 978-989-52-2442-5

Depósito Legal n.º 436624/18

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Guilherme Bianchini

Diário De um Detetive

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SUMÁRIO

Um Caso de um Buda de Prata . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .7Um Caso de Corrupção . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .13Um Caso de Desconfianças . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .25Um Caso de Reflexões . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .37Um Caso de Poesia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .41Um Caso de Dentadura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .57Um Caso de Herança . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .65Um Caso a Mais de Reflexões . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .79Um Caso de Mosaicos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .83Dois Casos de Fim de Ano . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .93

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UM CASO DE UM BUDA DE PRATA

14 de janeiro

CASO INCIDENTE: O Buda roubadoVÍTIMA: Ideki Yakimoto

A ideia de contratar uma secretária ou adotar um poodle deu muito certo . Juanito é um cãozinho muito alegre e dócil . Faz a festa no escritório . Late, pega a bolinha, dá meia volta à esquerda, rosna, morde a bolinha... exatamente nessa ordem . Talvez ele tenha TOC, mas isso ainda não tenho toda certeza . Só sei que meus momentos depressivos melhoraram e hoje estou mais autoconfiante, tudo graças a esse poodlezinho . A única desvantagem de Juanito é que não atende muito bem os telefones . Talvez eu devesse não dar mais essa atribuição a ele .

Lembro muito bem do dia em que adotei Juanito e do caso no qual estive envolvido a semana toda . Naquela terça- -feira, estava eu no quinto copo de Gim Tônica . Faço essa receita de Gim sempre, com tônica, gelo e rodelas de limão para dar um tom refrescante (receita da bebida em anexo). Decidi parar no quinto copo e sair mais cedo para almoçar naquela manhã, pois à tarde eu ainda teria muito trabalho no escritório .

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Pois nem tive tempo de voltar . Enquanto comia no restaurante Morte Certa, fui abordado por um japonês, que não falava muito bem o português, O senhor Yakimoto era um homem baixo e magro. Pelos meus cálculos não tinha mais do que 57 anos e meio . Percebi suas bochechas mais rosadas, o que indicava um problema de pele, talvez um câncer, mas notei depois que estava no formato de lábios de mulher . Tentei investigar rapidamente o que era aquela marca, mas talvez jamais saberia . Certeza mesmo era que seus olhos mais fechados sugeriam um problema de visão .

Tive dificuldade, mas consegui entender o principal de sua história . Senhor Yakimoto disse que seu Buda de prata havia desaparecido . Até aí tudo bem, mas o japa não parava de repetir as palavras “Univelso Palalelo”, e isso me intrigou profundamente . Era um caso dos mais curiosos e misteriosos a ponto de eu cancelar todos os meus compromissos naquele dia . Inclusive a aula de tango que havia combinado com Mirtes .

Um Buda de prata era algo especialmente valioso, ainda mais para os asiáticos . Imagine ter uma estátua de talvez dois ou três metros roubada? E de prata? Sacrilégio! Eu estava furioso com a falta de respeito e intolerância com as religiões. Era questão de honra ajudar o japa a recuperar sua mascote .

Eram tantas perguntas que eu tinha naquele momento: O que ele queria dizer com universo paralelo? Havia uma dimensão alternativa como vemos nos filmes de ficção científica, e esse era o lugar de destino do Buda? O sobrenatural realmente existia? O que havia neste universo paralelo? Será que Gim Tônica existia lá? Não sabia por onde começar, mas deveria imediatamente iniciar as investigações.

Só sei que Schrödinger já previa a existência de universos paralelos com suas equações. Uma de suas

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experiências era a do gato dentro da caixa. Colocava o animal dentro de uma caixa fechada com um dispositivo que podia liberar gás, mortal ou não . Dizia que, aos olhos do observador, o gato estava vivo e morto ao mesmo tempo, o que permitia declarar que tudo no mundo havia infinitas possibilidades ou infinitos universos. O curioso é que Schrödinger insistia com a ideia de que o gato poderia estar vivo mesmo depois do cheiro de putrefação no ar .

Passei aquele restante de terça-feira acompanhando a rotina do senhor Yakimoto e descobri que ele comia tudo com hashi . Churrasco com hashi, coxinha com hashi, feijoada com hashi . A única coisa que o japa não comia de jeito nenhum era sushi . Quando retornávamos para o bairro japonês e estávamos quase a adentrar no seu iglu, chamou-me a atenção um oriental barbudo, mal-encarado nos observando . Senti o nervosismo de Yakimoto, que entrou rapidamente em casa . Tentei tirar algumas palavras dele, mas tudo o que ouvia era “univelso palalelo, univelso palalelo” .

Tinha de fazer algo em relação ao barbudo . Claramente era uma barba postiça, e o homem devia ser membro da Yakusa, a máfia japonesa, e estava ali disfarçado, querendo talvez mais Budas de prata ou mesmo assassinar o senhor Yakimoto. Aquilo era tão grave quanto o fim da trema.

Segui o homem. Tentei ficar numa posição que ele não percebesse que estava sendo seguido, mas que não prejudicasse minha caçada . Aprendi muito bem esse método na Escola de Detetives . A distância não deveria ser maior do que oito cavalos enfileirados quando pouco vento, e doze para um dia mais ventoso . Esse cálculo deveria ser feito com precisão, e eu já fazia de cor, sem maiores problemas . O barbudo entrou em sua casa . Tive dúvida . Entrava ou não? Não podia temer e tinha de enfrentar o homem que queria matar o senhor Yakimoto . Resolvi entrar com muito cuidado

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pela janela e logo dei de cara com a cozinha . Chamou-me a atenção o queijo gorgonzola em cima da mesa . Estranho e suspeito, pois o queijo estava pouco mofado, algo improvável para um gorgonzola . Isso não me cheirava bem . . . realmente aquele queijo não cheirava bem . De repente, o barba-falsa me viu e imediatamente ficou em posição de luta. Era a hora da verdade . Parti para cima, dei três socos de direita, o homem tonteou e tirei-lhe a barba postiça . O grito foi estrondoso . Neste momento, percebi que a barba não era postiça . Assustado, corri dali com a barba na mão . Pessoas vieram acudir o homem, e eu apenas ouvi algo do tipo:

“Padre, você está bem?” Bem, claramente o homem não era da Yakusa .Voltei para casa sem saber o que pensar, sem saber o

que fazer, sem saber como agir, nem saber o que comer . Era algo que realmente me preocupava, a geladeira estava vazia . Mas o Buda também me tirava o sono naquela madrugada . Universos paralelos e casos sobrenaturais não condiziam com minha experiência como detetive particular. Era algo totalmente novo e hoje confesso que me sentia um pouco inútil naquele momento .

No dia seguinte (odeio quartas-feiras), estava tão atordoado com aquele mistério, que queria apenas encontrar o senhor Yakimoto e dizer que aquilo era demais para mim . Pela primeira vez na minha história como detetive, iria desistir de um caso . Era tempo de reconhecer que havia perdido aquela batalha .

Bati na porta do Yakimoto . Ele atendeu com um leve sorriso no rosto quando me viu, mas que logo mudou para desespero quando olhou para a rua . O japa havia visto algo . Apontava e repetia as mesmas palavras de sempre:

“univelso palalelo, univelso palalelo .” Vi um homem correndo e senti que era a minha

chance de resolver aquele imbróglio . E corri . Fui atrás do

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homem a uma velocidade de 16 jardas por segundo, pulei em cima dele assim que o alcancei . Entramos em luta corporal . Dei um soco, mas levei dois . Idem para os chutes . Consegui controlar a briga com um golpe chamado carícia dos deuses, que consiste em algo parecido com o mata leão ao quadrado . O homem, já não aguentando a pressão, prontamente pediu desculpas e trégua . Libertei-o . Foi então que disse que era o Luisinho da loja Universo Paralelo e que devolveria imediatamente o Buda de prata . Finalmente! Tudo estava sendo esclarecido . O Buda de prata retornaria ao seu verdadeiro dono . E era esse o universo paralelo de que o senhor Yakimoto tanto falava . O nome da loja em que Luisinho trabalhava. Por fim, o homem tirou do bolso o que seria o Buda de prata . Confesso que não consegui evitar transparecer minha decepção . O Buda de prata era apenas um chaveiro . E nem era de prata . Era da mais barata bijuteria . Luisinho roubava bijus para revender na loja .

Hoje ainda me toca o sentimento que o senhor Yakimoto tem por aquele objeto . Quando devolvi, ele me agradeceu baixando e levantando a cabeça infinitamente, até tontear, cair e bater a cabeça no meio fio da calçada. Logo se levantou e como forma de agradecimento me ofereceu o filhote de poodle que sua cadela Sayonara havia parido. Foi então que adotei Juanito, que agora alegra o escritório com seu TOC e faz de cama a barba do padre .

Receita de Gim Tônica:- 50 ml de Gim (eu, particularmente, faço com 100

ml)- 150 ml de água tônica- Cubos de gelo- Rodelas de limão

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Num copo de sua preferência (de preferência grande) coloque os cubos de gelo . Adicione o Gim e as rodelas de limão . Complete com água tônica até a boca (vamos ser generosos).

Beba .

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UM CASO DE CORRUPÇÃO

21 de fevereiro

CASO 5-7-meiaINCIDENTE: Desvios monetários no cortiçoVÍTIMA: Cortiço Manhattan

Hoje foi um dia realmente cheio . Recebi um convite para ministrar uma aula na Escola de Detetives . Como já tenho meus anos de experiência, o diretor achou que eu seria uma boa escolha para falar sobre a dura vida das investigações. Eu não precisava daquilo para me promover, mas quis aproveitar a oportunidade para passar meus conhecimentos a jovens principiantes, também não poderia deixar de atender ao pedido dos amigos que fiz durante os anos em que passei na escola .

Comecei falando sobre o início da minha carreira, quando era inexperiente ao ponto de deixar me levar por uma bela moça que me roubou, me torturou e me fez cozinhar macarrão com atum ao anoitecer . Onde já se viu, macarrão com atum!?

Os alunos, atentos num primeiro momento, foram saindo da sala pouco a pouco, enquanto eu discorria sobre as quatro facadas, dois tiros e uma machadada na orelha esquerda que levei exercendo meu trabalho (por sorte,

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foi de raspão). Ficaram mais animados quando comecei a falar sobre os pagamentos, e mais animados ainda quando lhes disse de uma ocasião que uma senhora me pagou em bananas .

Ainda havia duas pessoas me ouvindo, e uma delas era o diretor . Decidi encerrar a palestra mais cedo, ainda tive que ouvir o diretor dizer que eu estava dando um prejuízo enorme para a escola .

Resolvi não ir ao clube com os rapazes, pois particularmente toda terça tenho dor de cabeça . E à noite tudo fica mais triste. Então resolvi vir ao escritório, onde tenho a companhia de meu pequeno poodle branco, Juanito . Enquanto conversava com Juanito, ele me lembrou daquele caso de corrupção que ocorreu no cortiço Manhattan . Talvez o maior caso de corrupção deste país . Não sei . Talvez nunca saberia .

Tudo começou quando eu estava com os rapazes no mercado de pulgas, e um menino apareceu choramingando à minha procura . Os rapazes se irritaram, pois estávamos aos risos bebendo vinho do Porto da safra 1992, e não queríamos ser incomodados . Senti pena do garoto e convidei-o para beber com a gente . Para minha enorme surpresa, o menino recusou a safra 92 e pediu um copo de leite . Ainda assim, resolvi dar créditos a ele e pedi para que me contasse sua história .

Tulinho era o seu nome . Disse-me que não aguentava mais a vida no Cortiço Manhattan . Vivia com a sua avó doente e sem dentes e, por ser um jovem pobre e frágil, acusaram-no de roubar dinheiro do escritório de contabilidade do condomínio . Ele jurava que não era o culpado .

Depois de eu tomar três garrafas de vinho, acompanhei o menino até o cortiço . Eu precisava conversar com as pessoas e tentar livrar a cara do pobre garoto inocente .

No caminho, Tulinho me contava que passava a maior parte do tempo sozinho, tal qual um maçarico-solitário . Às

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vezes, pelo descaso da avó, nem almoço e janta tinham, tal qual um maçarico-solitário . Falei para ele sobre o maçarico-solitário e o jovenzinho começou a chorar . Tentei consolá-lo dizendo que ele era apenas uma criança e que, quando crescesse, seus problemas se multiplicariam por mil e tudo ficaria pior. O choro aumentava... Tal qual um maçarico- -solitário .

Chegando ao cortiço, deveria primeiro falar com a síndica, a acusadora . O menino tinha muito medo dela, então falei para ir para sua casa e explicar a situação à avó. Dei um charuto para ele relaxar. Não abandonaria aquele menino jamais .

Cheguei à porta do apartamento da síndica . A cam-painha não funcionou . A aldraba estava quebrada . As batidas não se faziam escutar . Na tentativa de fazer a mulher me atender, dei murros e chutes até a porta rachar, quando descobri que não havia ninguém em casa . Foi o momento em que a síndica chegou .

Ficou furiosa pela porta, mas expliquei-lhe que era meu trabalho e estava em plena investigação . Ela não concordava e dei-lhe uma nota de 50 Barões para comprar uma porta nova. Não era quantia suficiente, então fiz um show de stand-up para cobrir o valor. Ela ficou com pena e me devolveu os 50 .

Dona Zilda, uma senhora de 56 anos, era síndica do cortiço Manhattan há 13 . Apesar do ocorrido com a porta, recebeu-me bem e, vendo que eu era de confiança, começou a me contar os “podres” dos habitantes, inclusive de Tulinho .

Ela afirmava com veemência a culpa do menino no roubo das verbas do condomínio, além de outras irregularidades, ditas por ela “tão graves quanto”, como brincar no parque sem camisa . Percebi a predisposição de Zilda em fazer fofocas e controlar todos os moradores . Quatro fofocas por minuto . Essa era a média que calculei

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rapidamente nos 48 minutos que fiquei lá. Afinal, não podia ser diferente, Zilda era eleita todos os anos para fazer o trabalho de controle e tinha o poder de impor decretos de todos os tipos à hora que quisesse . Suas leis iam desde multar quem comia rosquinhas nos corredores até punições a quem fazia frituras à noite . O que Zilda tinha contra rosquinhas e frituras? Fiquei com o pé atrás .

O regime totalitário de Zilda não vinha ao caso num primeiro momento . Mas logo voltaria a isso . Antes, deveria descobrir se era mesmo Tulinho que havia praticado o roubo .

Decidi conversar com outros moradores e funcionários . O que descobri me chocava profundamente . O zelador mostrava seu ódio extremo pela síndica, a síndica detestava a faxineira, a faxineira não suportava a senhora do 302, a senhora do 302 tinha raiva do zelador, e assim se formava o ciclo mais odioso do bairro . Tudo levava a uma rede de intrigas e conspirações, que deixava qualquer membro da CIA invejoso .

Eu estava no ninho de cobras, e já não sabia mais em quem confiar.

O sol ia se pondo e ainda tinha que passar no aparta-mento de Tulinho . No caminho, observava os ambientes, os habitantes do cortiço e anotava situações suspeitas. Numa delas, vi uma bela moça desfilando, com o andar tão ágil e fino que não consegui desviar minha atenção... Caí das escadas .

Roxana, de cabelos negros cacheados e olhos verdes, me fez tropeçar e parar num porão escuro . A bela mulher jogou seu ar de sedução de propósito para cima de mim só para eu cair? Senti algo de suspeito quando ela desceu as escadas e veio me acudir. Um turbilhão de emoções tomou conta de mim. Roxana era linda, charmosa e indecifrável. Não sabia se estava apaixonado, com medo, ou se eram apenas dores do tombo . Minhas mãos sempre suavam

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pelo temor, e a paixão fazia-me sentir calafrios na nuca. No momento, sentia as duas emoções ao mesmo tempo. O fascínio pela mulher desfaleceu imediatamente após ela começar a falar. Disse que era para eu ficar longe do cortiço, que o pior poderia acontecer e que ninguém iria estragar os planos de um futuro melhor .

“Não se meta com Roxana e com as filhas de Marx”, dizia ela .

A seriedade tomava conta de mim. Roxana fazia parte do grupo comunista “As Filhas de Marx” e tinha um plano de derrubar o regime totalitário da síndica, e, assim, implementar o comunismo, de igualdade para todos, sem leis capitalistas e autoritárias. As filhas de Marx já estavam comendo rosquinhas nos corredores e pondo sua agenda detalhadamente programada em execução. Tentei de todas as formas descobrir quando elas iriam brincar sem camisa no parque, mas não tive sucesso .

Mais uma inquietação em todo aquele caso complexo. Aliás, eram vários casos dentro de um só . Tulinho estava se tornando um grão de areia nas praias do universo . Eu deveria me manter tranquilo e não temer o perigo . Um detetive como eu jamais foge de suas obrigações. Eu não sou Sherlock Holmes, sei muito bem . Longe disso . Sou muito mais .

As bizarrices do dia não eram suficientes. Fui conhecer a avó de Tulinho .

O apartamento era simples e estranho . A avó não parecia lúcida, ficava horas sentada na poltrona da sala observando a vista da janela que dava para o pátio central, onde só havia macega . Realmente eram pobres e não tinham quase o que comer . Vi que Tulinho, em vez de fumar o charuto que lhe dei, o fez empanado e comeu com pão e molho rosé . Chamou o prato de “charupão” . O menino tinha de se virar como podia, já que a avó estava caquética . Além disso, para completar a estranheza do apartamento,

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os móveis se dispunham conforme as crenças do Feng Shui que, de acordo com os chineses, reequilibra as energias do ambiente . Até aí tudo bem, mas um sofá estava no teto e a lâmpada que iluminava todo o apartamento, dentro do armário . A TV estava longe da porta . Tulinho me contava que, segundo sua avó, os chineses praticam o Feng Shui desde os tempos remotos e há cinco mil anos sempre deixam a TV longe da porta . Eu não entendia nada de Feng Shui, então não quis discordar .

Tudo isso estava longe da minha realidade, mas o mais intrigante ainda nem havia acontecido . A velha se levantou da poltrona e veio até mim, como um zumbi, cambaleando e balbuciando algumas palavras, que só decifrei, assim como o seu cheiro, quando chegava mais perto:

“A resposta está no ‘Rau’, a resposta está no ‘Rau’, a resposta está no ‘Rau’ .”

Ela cheirava a conserva de rabanete com ovos . . . E que diabos significava “a resposta está no ‘Rau’ ”? Quem era esse tal de “Rau”? Era morador do cortiço Manhattan? O homem por trás de todas essas conspirações? Tulinho não tinha ideia do que era, e eu estava cada vez mais intrigado e perdido .

Voltei ao escritório e tentei organizar minha mente e botar as ideias em ordem . Eu tinha muita informação e pouca conclusão .

Já eram 2h da manhã e eu não conseguia mais pensar adequadamente . Sentia inveja de Juanito ao meu lado, dormindo como se não tivesse problema algum na vida . Apesar de ter comido duas moedas de 1 Barão horas antes, parecia não se preocupar como elas iriam sair no outro dia .

Preparei uma bebida e resolvi fazer uma lista das tantas perguntas não respondidas sobre o condomínio Manhattan .

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1 . Tulinho era realmente o culpado do desvio do di-nheiro? Nenhuma pista, só sua palavra .

2 . O ciclo odioso entre síndica, zelador, faxineira e a senhora do 302: O que havia por trás disso? Nenhuma ideia .

3 . O mistério está no “Rau” . . .??? Não vi este senhor no condomínio e ninguém o conhecia .

4 . Qual era o real perigo das filhas de Marx? Sabia que pessoas com certos ideais levavam seus planos até o fim.

E por último:5 . Quem iria pagar pelos meus serviços de

investigação? ;(

Eu necessitava descansar . O dia seguinte seria longo . Saí do meu úmido escritório e fui para o meu úmido apartamento . Dormi . . . Como um socó-dorminhoco .

No dia seguinte, já com a cabeça fresca, decidi ir cedo ao condomínio Manhattan. Logo na entrada, a faxineira me chamou num canto . Falou sobre o ódio que inundava o condomínio cada dia mais . A síndica era a cabeça de tudo que acontecia lá . A sua sede de poder a fez manipular, junto com a senhora do 302, todos os votos das eleições para síndico dos últimos 13 anos. Era por isso que a faxineira e o zelador as odiavam tanto. Elas formavam uma máfia que controlava as leis, propinas de jogos, drogas e contrabando . Fiquei tentado a perguntar se havia whiskies nesses contrabandos . Um absurdo desses deveria ser confiscado imediatamente. Mas me atentei ao caso. Já eram mistérios suficientes a serem desvendados.

Roxana tinha razão. O regime de dona Zilda era contra a lei. Manipulações, contrabando, propinas? Já estava achando que Tulinho era apenas um bode expiatório. O pequeno bode foi pego para levar os pecados das duas nas costas, e isso eu não podia deixar acontecer. Estava

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prestes a quebrar a cara das duas imediatamente . Mas algo aconteceu . . .

Ouvi um estrondo . . . Apaguei . . . Foi um tiro? Sim . Sofri um atentado ali mesmo, no pátio do cortiço

Manhattan . Quem fez isso não tinha escrúpulos . Arriscar-se para eliminar o investigador da situação só confirmava que tudo isso era muito mais grave do que eu pensava .

Foi de raspão . Acordei com o cheiro de rosquinhas de polvilho num quarto escuro, com as pernas amarradas a uma cama . As proibidas rosquinhas me despertaram, e eu sabia certamente de quem eram: as filhas de Marx... As únicas capazes de ludibriarem as leis . Eu estava sem café da manhã e comi com gosto. Roxana entrou, pedi um café preto para acompanhar . A resposta negativa foi com um tapa na cara . Fora o sermão sobre o café ser uma obra capitalista para desestabilizar o povo .

Mais duas comparsas entraram no quarto, temi pela minha vida. Mas tinha expectativas de sobreviver. Por que me deixariam comer rosquinhas para logo em seguida me matarem? Tentei explicar que meu propósito ali era o mesmo delas: reunir provas para prender a síndica . Acusaram-me de ser fantoche da elite e ainda disseram que a causa delas não era de ninguém, só delas. As filhas de Marx eram a esperança do povo, e eu deveria ficar fora disso . Tentei argumentar com fatos, mas elas pareciam estar num estado mental ilusório de utopia . Utopia era não poder tomar meu café com rosquinhas naquele momento .

Roxana ficou no quarto me vigiando, tomando suco de laranja . O estranho é que ela colocou cinco colheres de açúcar no suco, sendo que suco de laranja já é doce naturalmente . Era evidente que algo estava errado. Que tipo de monstro põe cinco colheres de açúcar num suco natural? Percebi que suas mãos estavam com a temperatura um pouco elevada, a íris do olho levemente

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aumentada, a respiração longa . O golpe seria dado naquele mesmo dia .

Elas queriam me tirar de cena até o golpe. Roxana saiu e me deixou algumas horas sozinho, no quarto escuro, apenas na companhia das rosquinhas . As amarras nas pernas eram fortes e eu não conseguia me desvencilhar . Não sabia quantos dias poderia ficar ali e já me preocupava com Juanito . Ele estava sozinho no escritório e não podia se sustentar apenas comendo moedas de 1 Barão .

O inesperado aconteceu . A porta se abriu e vi a silhueta de alguém com uma faca na mão . Juntei meus cinco dedos para dar um golpe certeiro, quando vi que Tulinho estava ali para me ajudar . Ele não sabia usar bem a faca e quase cortou minhas canelas, mas logo eu estava de pé e saímos imediatamente .

Para alguém que não toma vinho, o bravo jovem era muito corajoso .

No apartamento de Tulinho, eu refletia. Para onde eu deveria ir primeiro? Deteria as filhas de Marx? Interrogaria a senhora do 302? Ou socaria a cara da síndica?

Nem o Bourbon, que tinha gosto de beterraba, da velha avó de Tulinho me fazia pensar direito . Cogitei desistir e ligar para a polícia . Mas eles não levariam o caso a sério, ainda mais sem as devidas provas . E o menino precisava de mim. Se eu saísse dali, ele iria ficar ao léu, desprotegido, apenas com a avó moribunda como cuidadora, que não parava de gritar:

“A resposta está no ‘Rau’, a resposta está no ‘Rau’ .” Isso ainda me intrigava . . .Tulinho queria de todas as formas me ajudar no caso .

Mostrou-me seu estilingue calibre 17 e disse que não falhava nenhum tiro . Eu lhe disse que era muito perigoso e que era para ele ficar tranquilo no apartamento, comendo charutos empa-nados até que eu resolvesse o caso . Eu me sentia responsável

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pela liberdade do menino e gostaria muito que ele tivesse sua vida dura e triste longe do condomínio Manhattan .

Era o momento . Eu deveria enfrentar três inimigos perigosos e não sabia qual seria o resultado . Fui diretamente para o apartamento da síndica, pois sabia que era o primeiro lugar que as filhas de Marx atacariam.

Mas nada . . . não havia ninguém .Em seguida, me dirigi à residência da senhora do

302 . Misteriosamente a porta estava destrancada, mas não havia ninguém . Aproveitei para tomar um café delicioso que estava prontinho e ainda quentinho em cima do fogão . E me dei conta de que as Filhas de Marx poderiam já ter sequestrado a síndica e a senhora . Pela temperatura do café, fazia pouco tempo .

Preparei-me psicologicamente para, mais uma vez, enfrentar Roxana. A morena era feroz. Mas, para meu azar (ou sorte), seu apartamento também estava vazio.

O que havia acontecido? As pessoas estavam falando que algo estava acon-

tecendo no hall do condomínio . Hall . . . Rall . . . Rau . . . “A resposta está no Rau .” Então era isso? O “Rau” era o a entrada prédio? A velha com cheiro de conserva de rabanete com ovos sabia de tudo . . . E por que não me contou? Bem, contou, mas não sabia pronunciar corretamente a palavra . Erro meu que não percebi . Sherlock Holmes também não perceberia .

Ao chegar ao hall, fiquei sabendo o porquê de a resposta estar lá . Havia o escritório do condomínio, e Roxana estava mostrando para a multidão documentos que provavam os desvios e mutretas realizados pela síndica há 13 anos . Foi bonito de ver a cara de espanto das pessoas . Mais ainda a cara de bode da síndica . E a cara de bunda de bebê da senhora do 302 (estava com a boca suja de chocolate).

Não era mais trabalho meu . A pessoa a qual vim

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ajudar estava livre . E eu desejava sair dali o mais rápido possível... Roxana me dava arrepios.

Tulinho veio me agradecer e disse que queria confes-sar algo . Entendi o garoto quando ele me falou que pegou, sim, dinheiro do escritório para comprar molho rosé e ocasionalmente um ou outro jogo na internet . Como eu condenaria o garoto que passava fome? Prometeu-me que não faria mais aquilo, que ele poderia se tratar e teria todo o meu apoio. Indiquei o clube de pôquer para ele ficar longe da atmosfera maldosa que habitava o cortiço . No pôquer, ele poderia se viciar saudavelmente e ainda descolar uma grana para sustentar a avó . Ele disse que não precisava, que havia se arrependido de tudo que fez, e, vendo-me batalhando pelo seu bem, revelou-me que queria, em tempo vindouro, ser detetive. Fiquei feliz por ser exemplo para um jovem, mas preocupado com seu futuro . Já achava que esse menino teria uma vida triste, agora tinha absoluta certeza .

E no condomínio, o que sucedeu?A síndica sofreu impeachment, e suas leis caíram . As

rosquinhas e frituras foram liberadas novamente, e o povo comemorou com uma festa .

Descobriu-se que as filhas de Marx eram financiadas pela senhora do 302 com o intuito exclusivamente de derrubar a síndica e subirem ao poder .

Que bela surpresa . . .A senhora do 302 assumiu o controle, e Roxana

ganhou uma vaga como subsecretária .Mesmo eu sendo sequestrado, preso em cativeiro,

torturado e vendo colocar cinco colheres de açúcar no suco natural de laranja, aprendi a respeitar a morena de cabelos cacheados pela sua luta . Porém, o respeito logo se foi .

As leis que caíram, não caíram de fato . As rosquinhas só eram permitidas nos corredores para quem pagava . A fritura foi liberada para quem comprava o óleo próprio do

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condomínio . O ideal comunista e de igualdade para todos não fazia mais sentido algum na ocasião .

Eu não podia fazer nada, infelizmente . Aquela causa já não era minha . O povo estava feliz com o novo, diziam que tudo se dirigia para o melhor e que finalmente se livraram da corrupção no cortiço .

Antes de ir embora naquele dia, deixei uma garrafa de vinho do Porto para Tulinho . Ele não bebe agora, mas um dia precisaria .

O menino não desapareceu de minha vida . Ofereci algumas tarefas aqui no escritório para me ajudar, e ele, de muito bom grado, aceitou . Tulinho é muito bom em lidar com Juanito, que é um cão exigente. Gosta de ler o jornal às 7h em ponto e só come ração Extra Premium, além do chá das 17h que deve ser servido a 76ºC . Além de poder dar algo que eu não posso: carinho .

Neste momento, Tulinho tenta tirar as moedas de 1 Barão de Juanito . Não é uma tarefa fácil .

O menino é um bom companheiro . Consigo às vezes até emanar um sorriso com as trapalhadas dele e do cão . Pego-me com os lábios tortos de repente . E o garoto me acompanha . Como agora . Ele ri, eu sorrio, e Juanito late, deixando a vida fazer nossos próprios caminhos, sem pressões ou cobranças. Divertimo-nos como maçaricos- -solitários .

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UM CASO DE DESCONFIANÇAS

17 de março

CASO XX,5INCIDENTE: Mais uma traição conjugal?VÍTIMA: Augusta Bernardes (conhecida também

como Augustinha Treme-treme)

Para mim, as sextas-feiras de manhã são sempre sofríveis . As tarefas começam cedo, com a lavagem obrigatória de meus suspensórios bege-claros . Já tentou lavar suspensórios estando de ressaca? Não é nada bom . Mas o pior é lavar suspensórios pensando na sua vida melancólica, com picos de tristeza e felicidade, achando que está fazendo tudo certo e errado ao mesmo tempo e não ver um futuro viável neste mundo de ilusões. Veja bem, não estou vitimizando-me, achando que tudo conspira contra mim . Sei que cada um é responsável pela própria felicidade. Porém, há algo, particularmente nas sextas- -feiras, que me faz refletir um pouco mais sobre a vida. Talvez seja porque meus suspensórios saem todos manchados depois da lavagem . Que dó . Está aí algo que não ensinam na Escola de Detetives. Sextas-feiras sem suspensórios. Não há como ser eu mesmo nas sextas-feiras.

Mas o caso que transcrevo começou na quarta-feira . Um dia um pouco mais alegre . Dia de Clube do Baralho,

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onde trapaças são bem-vindas, desde que você deixe um rim .

Eu e os rapazes fazíamos a jogatina habitual . Jogar pife era sempre divertido, mas sempre havia alguém que batia trincas de naipes igual . O que levava a viradas de mesa, gritos e socos . Nada fora do normal que um jogo de baralho não proporcione .

Stanley, o dono do clube, tinha naquela ocasião um whisky Gold, 18 anos . Nunca havia tomado nada parecido, e era realmente sedutor, pois já estava na maioridade. Stanley sabia como bajular seus clientes. Stanley parece um nome incomum para esta região do país, mas a verdade é que todos os donos de clubes de baralhos da cidade se chamam Stanley. Sou associado ao clube da zona oeste, onde Stanley Zarolho é o proprietário. Stanley banguela é o dono do clube da zona norte, e Stanley maneta da zona leste. O nosso Stanley, do clube no qual eu estava, era apenas conhecido como Stanley Ricardo Pereira da Silveira . Além de ter bebidas de boa qualidade, servia ótimos petiscos como torresmo grelhado e pão com banha, a especialidade da casa . Recebia todos de braços abertos, até porque tinha uma envergadura de 2,15m . Inclusive recebia não-sócios e desconhecidos, apesar de estar preocupado com uma onda de assassinatos que estava a acontecer recentemente no bairro, onde o assassino deixava cartões com frases motivacionais no bolso de suas vítimas.

A tarde passava rápido . Eu já havia perdido quase 100 Barões e não estava nada satisfeito com meu jogo. Mais um dia de perdas . Teria de fazer o mercado no dia seguinte e, sem dinheiro, o café da manhã não estava garantido . Eu já estava acostumado a dejejuar com cinzas de charuto, mas Juanito não, exigia ração da melhor qualidade, e eu não sabia se poderia comprar .

O que parecia uma tarde perdida, com ventos revoltosos, se virou a meu favor . Uma bela senhora entra

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no clube à minha procura . Parecia jovial, mas tinha lá seus cinquenta e poucos anos . Bem apessoada, vestia roupas antigas e usava um colar egípcio que, pelos meus cálculos, possuía entre 4500 e 20 anos, aproximadamente. Seus cabelos eram voluptuosos, assim como seu peito, eu, confuso, não sabia para qual olhar . Havia uma pinta preta no lábio, que logo imaginei ser escorbuto . Suas mãos tremiam, o que confirmava a minha suposição (ou ela estava apenas nervosa e poderia apenas ser uma pinta comum, mas eu preferia ficar com o palpite de escorbuto). A senhora se chamava Augusta Bernardes . Os rapazes, mais tarde, confessaram-me que Augusta era conhecida antigamente como Augustinha Treme-treme e trabalhava como cafetina, tendo recebido diversos prêmios da prefeitura pelos serviços prestados, inclusive a chave da cidade . E, após uma longa jornada de labuta, aposentou-se pela previdência social, pelo código 553, serviços de cafetina ou similares .

Augusta sentou-se à minha frente e pediu as cartas . Os rapazes entenderam e afastaram-se . A jovem senhora estava me desafiando. Disse-me que tinha um caso para eu resolver e que poderia ser muito lucrativo . Eu dava as cartas e pensava no que poderia ser . Algum mistério no mundo obscuro da prostituição? Algum grande roubo? Espionagem? A idade exata do colar egípcio?

Não era nada disso . O grande caso que eu esperava era apenas uma suspeita de traição do marido . Augusta pegou suas cartas e olhou-as fixamente em silêncio. Uma lágrima caiu sobre um 4 de paus e logo tentei desvendar que tipo de tática era aquela . Augusta disse-me que o esposo saia de madrugada escondido e tinha certeza da sua traição e o que eu teria de fazer era seguir o vagabundo e comprovar o fato . Trabalho simples de, no máximo, um dia.

Conversamos sobre o pagamento, revelou que não havia como pagar em dinheiro, apenas em bens materiais e

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ofereceu-me seu colar egípcio . Aquele colar parecia muito valioso e poderia me tirar da miséria por algumas semanas . Aceitei prontamente. Após o combinado, Augusta baixou as cartas com uma sequência de nove ouros seguidos . Perdi o jogo, mas estava com o trabalho garantido . Queria iniciá-lo rapidamente, jogamos mais 15 rodadas, bebi mais 12 doses de whisky e fui imediatamente às tarefas do caso .

Após o clube, acompanhei Augusta até o Café Coffee Kafee para tomarmos um café e para ela me dar mais detalhes sobre o marido . Aparentemente era um homem comum, que caminhava no parque todas as manhãs e conversava com os amigos no fim da tarde. Mas nem todos são perfeitos nessa vida . Confessou-me que ele era um homem teimoso e impaciente e que, numa ocasião, quando estava no banco, ficou mudando de fila enquanto a do lado andava mais depressa que a outra e, assim, chegou a ficar dois dias na fila até ser atendido. Augustinha ainda me falou que um de seus maiores defeitos era ser viciado em café de prensa francesa. Ela tinha total razão em desconfiar dele. Mas nada disso se comparava ao fato d’ele sair às 2:34 da madrugada, em ponto, e voltar às 5:01, em ponto, e ela não achava motivos, a não ser para ter encontros extraconjugais com moças de penteados mais modernos . Augustinha Treme- -treme, poderia ter sido safadinha no passado, mas era muito insegura no presente .

O que eu deveria fazer era primeiro averiguar suas caminhadas e reuniões com amigos durante o dia e recolher o máximo de informações. E, assim, durante a noite segui-lo e saber exatamente quais eram os seus passos. A teoria que eu tinha era de que tipos como o marido de Augusta tinham o ego inflado e que a traição era certa. Com certeza ele não saía à noite para comprar bilhetes de loteria .

Mas, deixando as teorias de lado e pensando profissionalmente, como detetive particular e formado na

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Escola de Detetives, outra hipótese era de que o marido poderia sair à noite para esconder algo inocente, talvez uma surpresa para Augusta, como estar planejando uma festa surpresa, ou mesmo aprendendo a jogar pedrinha no rio, ou treinando para os próximos jogos olímpicos.

Mas nada disso estava ainda confirmado.Na manhã seguinte, acordei com uma leve dor de cabeça

e desconfio que a causa foi a salada que comi no dia anterior. Apesar de estar sem dinheiro, Stanley foi generoso comigo ao deixar eu comer algo e beber algumas doses de whisky no clube .

Estava na hora da caminhada do sujeito e seria uma boa oportunidade para eu levar Juanito passear . No café da manhã, comemos grãos de arroz com cascas de frutas, os únicos alimentos que havia em casa . Juanito não gostou muito da ideia e estava disposto a começar uma greve de fome . Relutei em aceitar e prometi que, após o caso resolvido, ele teria a ração Premium que tanto adora .

A manhã era fresca para a época e tive de usar meu chapéu Fedora com plumas . O vento era forte, em torno de 38 km/h, de acordo com meus cálculos provindos de uma difícil equação que aprendemos na Escola de Detetives . Depois de 1h38min calculando a equação, chegamos ao parque e logo identifiquei o marido de Augusta dando sua habitual caminhada com seu falso ar de inocente . Juanito não gostou nada do sujeito e rosnou . Não satisfeito, correu ao encontro do homem e mordeu-lhe os calcanhares . Tive de interceder e pedir desculpas . As plumas do chapéu tapavam meu rosto e dificilmente seria lembrado em um eventual reencontro. Expliquei a Juanito que não era a hora de tomarmos atitudes bruscas sem antes confirmarmos todos os fatos. Ele parecia ter entendido e logo abanou o rabo para duas cadelas Lhasa Apso que passavam por perto .

Continuamos a seguir o marido, que andou 50 metros e desviou o caminho normal . Saiu do parque e entrou na confeitaria Bolo no Forno .

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Por que a mudança de direção? A traição estava mais fácil de descobrir do que imaginava? Logo pensei que meu trabalho estava fácil demais e não precisaria esperar até a madrugada para desvendar esse dilema .

Achei que estava fácil . O esposo de Augusta apenas adentrou à confeitaria para comer bolos . De qualquer maneira, ele estava mentindo, o que provava sua má índole . Pediu quatro fatias, incluindo uma saborosa de chocolate com morangos silvestres e cobertura de ganache . Juanito sentia cada vez mais raiva do homem . Quando percebi, eu estava rosnando também, os bolos pareciam deliciosos e eu não tinha nada para comer em casa .

Cheguei ao escritório refletindo sobre esse homem cheio de mistérios . Alguém que enforca a caminhada para comer bolo deve ter muitos segredos guardados . Há uma referência incompreendida de Nietzsche que diz: “Bolo é a alma da vida, e a vida é... bolo.” Nietzsche era apaixonado por bolo de baunilha e passou os últimos anos de sua vida recluso, rejeitando comer qualquer alimento a não ser bolo . Há quem diga que a demência nos seus últimos anos de existência teria se iniciado depois de terem-lhe negado uma fatia de bolo de tapioca, também um dos seus preferidos . Assim como o pensador, o marido de Augusta devia ser um homem com seus vícios e manias, mas, obviamente, isso não provava nada .

Por isso decidi ir ao Bar Rabás no fim da tarde, ponto de encontro de senhores para bebericar cachaça e conversar sobre a crise de persianas que assolava o país . Entre esses senhores estava o Sr . Bernardes (mais conhecido como marido de Augusta). Eu deveria me aproximar, sem me identificar e puxar conversa com ele. E foi o que fiz.

O senhor conversava com amigos e se afastou para ir ao balcão pedir mais uma dose de cachaça . Cheguei perto e pensei num assunto para quebrar o gelo:

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“Que tipo de bar é este que não vende bolos?”Fez-se de desentendido e pareceu não gostar da

citação . Pedi desculpas e falei que estava em abstinência . O homem me olhou fixamente e, sério, disse:

“O espelho é a sua imagem ao reverso .” Enigmático . . .Perguntei-lhe algumas coisas sobre o ar fresco da

madrugada e se traições eram mais excitantes a partir das 2h da manhã, mas ele sempre respondia com frases obscuras do tipo:

“O sábio sempre sabia, mas não era sabiá, sabias? .” Eu começava a ficar nervoso e compreendia que não

tiraria nenhuma informação dali . Fiz mais uma pergunta, e ele respondeu-me com um:

“Espirres no escuro e eu não saberei para quem dizer saúde .”

Agradeci a companhia, ele despediu-se lembrando-me que talvez eu entenderia todas aquelas metáforas se usasse ceroulas cor-de-rosa . Ceroulas cor-de-rosa eram um símbolo Freudiano para ódio e vingança . Aquele homem era mais perigoso do que eu pensava . Estava me marcando e provavelmente sabia quem eu era . Não sei o que ele faria se me visse novamente . Eu daria uma surra nele ali mesmo, mas tinha um compromisso investigativo com Augusta e levaria essa averiguação até o fim.

A próxima madrugada era de sexta-feira. Sexta sem suspensório, o que me deixava inseguro. Pressentia algo ruim . Deveria desistir de segui-lo naquela madrugada? Eu não era homem de desistências, apesar de ter trancado quatro graduações e aula de banjo na metade dos cursos. Desisti também de clientes para ir ao Clube de Música Noir em algumas ocasiões, mas não faria desta vez.

Às 2h da manhã, posicionei-me em frente à casa de Augusta para esperar o dito cujo sair . Eu usava o suspensório

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do dia anterior, o que me deixava mais tranquilo. Comia amendoim torrado para matar tempo . Quatro pacotinhos não foram suficientes. Consegui os amendoins pela gentileza do seu Manoel, da padaria Pão Quentinho, que me dava, às vezes, alguns itens fora da validade. Algumas aflatoxinas não fariam mal ao melhor detetive particular .

Sr. Bernardes saiu de casa exatamente no horário indicado . Parou no portão da frente, pensou como que se lembrando do caminho que iria percorrer . No nervosismo de ver o homem ali parado, um amendoim entrou no caminho errado do meu corpo e engasguei . Não podia tossir naquele momento . O silêncio era vital . Prendi a respiração e sentia o sangue correr pelas minhas veias, assim como a água que jorra de uma cachoeira . Dei batidinhas no peito enquanto pensava que havia botado tudo a perder . O marido de Augusta já caminhava lentamente pela rua . E eu morria lentamente, sem expectativas de ver a solução para aquela tragédia.

Não aguentei . . .A tossida foi forte, ouvida em cinco quarteirões e

quiçá nos países vizinhos . O marido de Augusta parou desconfiado e virou o rosto em minha direção. O amendoim voou de minha garganta e aterrissou nos pés de Bernardes . No desespero, pulei atrás de um amontoado de lixo que cheirava a banheiro público de país de terceiro mundo . A má iluminação da rua (iluminação pública de terceiro mundo) favorecia minha camuflagem de chorume, mas o homem, desconfiado, forçava os olhos buscando a causa daquele ruído escandaloso . Por sorte, minhas tosses têm sons muito parecidos a chipanzés no cio . Dei mais um grito imitando a Chita . Suponho que o marido de Augusta achou normal ter macacos revirando o lixo da vizinhança, pois se virou e continuou seu rumo como se nada tivesse acontecido .

Segui-o com o cuidado de não ser percebido . Mantive uma distância segura, acompanhando-o enquanto o sujeito

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andarilhava pelas ruas do bairro . Já estava curioso do local onde ele encontraria a amante, pois parecia estar indo a lugar nenhum . Sem contar as 14 vezes que ele parou para fumar e duas para tirar a água do joelho . O mistério continuava, e eu já estava ficando cansado.

Pela posição das estrelas, eu calculava que já eram 3h54min . O homem testava minha paciência, minha vontade era de socar sua cara . Eu continuava atento quando meu telefone de bolso começou a tocar . Mais um susto, tudo dava errado . O toque do telefone era The Trooper do Iron Maiden e estava no volume máximo. Ainda bem que consegui atender prontamente e não houve nenhum desvio de atenção. Disse alô baixinho e, do outro lado da linha, a atendente me oferecia três caixas de maçanetas pelo preço de duas. Em plena Madrugada de sexta-feira? Mesmo assim, não podia perder esta oportunidade. Confirmei a compra, mesmo sem ter certeza de como pagaria . Mas estava feliz pela nova aquisição .

Desliguei o telefone e continuei minha vigília . Mas onde estava o Sr . Bernardes?

Um caso que parecia dos mais simples em toda minha carreira como detetive particular estava se tornando um inferno . Perdi o homem e agora não sabia qual caminho seguir . O que estava acontecendo comigo? Estava perdendo meu ritmo para as investigações? Não podia dar tanta mancada e botar tudo a perder .

Segui pela rua principal observando os becos perpen-diculares .

E se ele já tivesse entrado na casa da amante? Não queria acreditar nessa possibilidade e continuei minha procura com uma pontinha de esperança, outra pontinha de nervosismo e outra pontinha de fome .

Passando por um desses becos, alguns ruídos chama-ram minha atenção . A penumbra tomava conta, tive cuidado

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ao me aproximar. Vi um homem com uma caneta na mão, não tive dúvidas: ali estava o marido infiel.

Sr. Bernardes escrevia um cartão. Aproximei-me mais um pouco e vi um corpo no chão .

Gelei .O homem havia acabado de matar uma pessoa e

colocava o cartão em seu bolso . A vítima era uma bela moça de cabelos castanhos com seus trinta e cinco anos . Causa da morte: estrangulamento .

Tudo se encaixava perfeitamente. O marido de Augusta era o assassino dos cartões das frases motivacionais. Se eu não tivesse parado para comprar maçanetas, poderia ter evitado o crime. Mas não era hora para lamentações. Eu estava ali e deveria parar aquele doente. Eu não o deixaria terminar seu ritual e colocar o cartão no bolso da vítima . Ele cheirou o ar e percebeu-me, por causa do cheiro de lixo orgânico. Ainda incrédulo com tudo aquilo, parti para cima do sujeito e entramos em luta corporal . Me reconheceu e vinha com fúria para cima de mim . Ele era realmente forte . Dei dois socos e ele revidou com oito . Imobilizou-me na parede e tentava enfiar uma frase motivacional pela minha garganta. Apenas consegui ler: “Aproveite a vida ao máximo antes que seja tarde” . Consegui empurrá-lo, mas ele veio para cima de mim e caímos no chão . Eu estava imobilizado, ele tentava me sufocar . Não conseguia mexer nem o dedo mindinho do pé esquerdo. Eu estava entre a vida e a morte. Um filme começava a passar pela minha cabeça e apenas conseguia ter um último desejo de tomar casquinha de sorvete de baunilha com chocolate .

Não desisti . Consegui livrar meu braço, peguei a caneta do Sr. Bernardes que estava no chão e enfiei com todas as minhas forças no seu olho . O grito foi ensurdecedor . Sangue correu pelo seu rosto e, não sei por que, lembrei-me de molho rosé com fritas . Ficou agoniando no chão enquanto eu levantava ainda desnorteado .

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A polícia não demorou a chegar . Contei todo o ocorrido e parabenizaram-me por descobrir e pegar o matador . Ainda ganhei um pirulito pela minha bravura . Pois bem, não sou grande fã de frases motivacionais e, como detetive particular, fiz de tudo para evitar que o assassino fizesse mais uma vítima: eu.

O dia amanhecia. O sol renascia como a fênix no horizonte . As cores dançavam ziguezagueando no céu como uma alegoria de carnaval . O galo anunciava o início de um novo tempo cantando sua música predileta: “Cocorococó” . Eu, exausto e machucado, apenas querendo sentir o calor dos meus lençóis úmidos e mofados, ainda tinha de dar a notícia triste à Augusta Bernardes .

Cheguei à sua casa, e ela já me aguardava ansiosa . Queria saber por que seu marido não havia voltado . Bem, falei que seria bem direto e que havia notícias más e boas . Suas lágrimas caiam a uma vazão de 0,59 mm³ por segundo, escolheu ouvir as más notícias primeiro .

Relatei que, em vez de dar sua caminhada matinal, ele ia comer bolos todos os dias na Confeitaria Bolo no Forno . A vazão do choro aumentou consideravelmente .

Continuei . . . Explanei que, se agora ele pedisse um prato com duas

fatias de bolo, enxergaria apenas uma, pois eu havia furado seu olho numa briga e, por isso, ele estava caolho . Augusta estava quase desmaiando . Tentei segurá-la, mas estava furiosa comigo por eu ter ferido seu amado .

Agora era hora das boas notícias . Augusta se acalmou e ouviu em silêncio . Eu lhe disse que a grande notícia era que ela não estava sendo traída, que ele apenas matava pessoas e provavelmente pegaria perpétua .

Estátua .Esperei uma reação da mulher, mas ela estava estática .

De repente, um sorriso se abre, e a alegria toma conta . Eu

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observava sem entender . Até que, depois do sorriso, vieram as palavras:

“Ele não me trai, ele não me trai, ele não me trai .” E assim repetiu a frase mais 284 vezes até sair

rodopiando pela sala como uma bailarina de Tchaikovsky. Voltou com o colar egípcio na mão e entregou-me dizendo que eu merecia muito mais .

Saí dali satisfeito . Tinha mais uma tarefa a fazer antes de voltar ao meu apartamento e desfrutar da minha confortável cama . Fui avaliar o colar e assim trocar por dinheiro . . . ou, talvez, barra de ouro .

O avaliador examinou bem, saiu e voltou com uma nota de 2 Barões e mais umas moedas nas mãos. O quê? O colar valia apenas 2,50? O senhor disse-me que o material era latão dos mais vagabundos e era tudo o que podia me dar . Perguntei-lhe se não era um colar da época dos faraós, ele respondeu-me que deveria ter no máximo passado pelo mandato de Hosni Mubarak .

O que faria com 2,50? Talvez desse para comprar dois pãezinhos e uma fatia de queijo . Desanimei . Decidi comprar uma casquinha de sorvete e já imaginava Juanito mordendo meus calcanhares por não levar a ração .

Um caso que se encerrou na sexta-feira, assim como hoje . Continuo sem ter muito o que comer . Digo que estou melhor hoje do que antes, mas consigo comer bisteca apenas quatro vezes por semana . Não sei o porquê, mas agora me deu uma vontade louca de fazer um bolo . . .

. . . . Embatumou . . . Juanito continua mordendo meus calcanhares .

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UM CASO DE REFLEXÕES

05 de abril

Isso não é um caso, apenas reflexões.Sempre que estou aqui no escritório, tenho vontade de

escrever neste pequeno diário . Tenho vontade também de ter um Porsche 911 Turbo, mas, enquanto isso, fico a escrever no diário .

Você deve estar se perguntando: Por que esse mar-manjão tem um diário? Nem eu sei . . .

Também não sei se alguém lerá isso, mas acho que funciona como uma fuga psicológica, uma liberação de medos e traumas que tenho colecionado ao longo da vida .

Agora você deve estar se perguntando: Esse imbecil tem um parafuso solto? Nem eu sei . . .

Mas já vi tanta coisa na minha carreira como detetive particular, que é difícil de esquecer . Sempre procuro dar mais atenção ao lado positivo das coisas, como naquela vez que Maria Antônia Barcelos ofereceu-me roscas de polvilho num fim de tarde frio e cinzento. Mas algumas vezes fico sozinho no escritório, a angústia chega devagar enquanto matuto sobre as massas ignorantes da sociedade e sua falta de forças para se libertarem de um sistema sanguinolento e aprisionador, como ter de beber vinho em taças de cristal e, se você não o fizer, Sofia dirá:

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“Você é um porco, está tudo acabado entre nós .”Agora você deve estar se perguntando: Ele tem de ser

tão bipolar? Nem eu sei . . .Mas o fato de eu estar assim hoje é que, lendo o jornal

nesta manhã, descobri que o Clube de Música Noir irá fechar . Minhas quartas-feiras não serão mais as mesmas . No começo, fiquei meio desnorteado, girando em círculos pelo escritório, mas Tulinho fez-me um chá de ervas verdes (não sei que tipo de ervas eram essas) e fiquei bem relaxado. O golpe é duro, mas devemos seguir em frente .

As reuniões com os rapazes no clube eram a melhor coisa que acontecia na semana . Eram sensacionais os acor-des desafinados do contrabaixo, as mágicas do barman Paulo e as discussões sobre quem sairia vencedor numa luta de MMA: Schopenhauer ou Kant . Sem contar quando tudo isso acontecia ao mesmo tempo: discussões desafinadas enquanto o barman Paulo lutava MMA com o contrabaixo.

Encontros amorosos também aconteciam no clube . Muitas das minhas paixões passaram por lá: Sofia, Beatriz, Augusta, Norma, Caroline, Sofia, Amanda, Rosa, Violeta, Azul, Amarela . . . São muitas as mulheres, mas poucas realmente se apaixonaram por mim. E, pelo contrário, me perdi por elas totalmente .

Não que eu esteja procurando casamento, mas quem não sente falta de ter alguém ao seu lado de manhã cedo acordando irritada e aos berros, pois você não parou de roncar a noite inteira?

Sofia talvez seja a mulher que mais me marcou. Era meiga, inteligente e numa manhã me acordou irritada e aos berros, pois não parei de roncar a noite inteira . Nos conhecemos depois de ela ter contratado os meus serviços para desvendar o sumiço do pai, que reapareceu depois de ficar 9 dias consertando o carro na garagem. Saímos algumas vezes ao clube e, mais tarde, descobri que ela também saía

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com o pipoqueiro . Eu realmente não teria como competir com o pipoqueiro, suas pipocas eram doces e crocantes . Mas o fim doeu.

Tudo passa nessa vida. O universo não deixa vácuos. Se eu vivo essas experiências, é porque tenho de tirar algum ensinamento delas . A vida é uma eterna evolução . Aristóteles pregou a busca pelo equilíbrio . Admito que meus polos estão pendendo, mas como posso estar emocionalmente equilibrado com o fechamento do Clube de Música Noir? Nem Aristóteles estaria .

Quem venceria uma luta de MMA? Aristóteles ou Kant? Talvez nunca mais haja esse tipo de discussão .

. . .Acabei de telefonar para os rapazes, faremos um

protesto à frente do clube hoje à noite com faixas, bandeiras, baralhos, dados e cachaça 12 anos . Protestaremos contra o encerramento das atividades. Deixarei todos os meus compromissos por hora .

. . .Acabamos de voltar do protesto. O dono nos expulsou

e disse que está fechando o clube por causa de nossas badernas, bebedeiras, brigas e discussões sem cabimento. Tivemos de jogar cartas e beber em outro lugar .

Fomos até a praça, ligamos a vitrola com a música Noir, jogamos, bebemos e discutimos sobre quem venceria uma corrida de colheres com ovo . Vivaldi ou Brahms?

Percebi que nos divertimos tanto quanto se estivés-semos no clube . Algo que não havia me dado conta, estava eu tão preocupado com o local dos nossos encontros que não percebi que apenas o fato de estarmos juntos e fazendo o que gostamos era realmente o mais importante . Até o barman Paulo nos acompanhou desta vez . Sugeri aos rapazes que ele fizesse parte do grupo, o que foi aceito de muito bom grado, desde que o contrabaixista viesse junto.

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. . .Dito isso, acabei de ser chamado para um caso . Vou

parar de escrever lamúrias e partir para o trabalho . O clube fica no passado, e é lá que devemos deixá-lo. Há novos casos, novos clubes, novos jogos de cartas e dados para experenciarmos e apreciarmos.

Agora você deve estar se perguntando: Qual é o problema desse idiota? Nem eu sei . . .

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UM CASO DE POESIA

11 de junho

CASO 18, versículo 2INCIDENTE: O filho poeta problemáticoCLIENTE: Rosana Queiroz

Sempre gostei muito de livros, tenho o princípio de que a leitura molda o caráter e o destino de um cidadão . Você não precisa dar a desculpa de que não tem oportunidades, de que a vida é cruel consigo, ou que seu chefe não gosta de você . Se você tiver um livro em mãos, jogue na cabeça dele .

Não gosto de falar do meu passado, mas eu mesmo tive motivos para desistir de tudo e virar algo cruel, como . . . showrunner de série televisiva . Cresci na pobreza, não tive uma pessoa que guiasse meu aprendizado e me desse, pelo menos, um livro que me ensinasse que 2+2 são 5 .

Mas deixo os detalhes de lado. Hoje estou aqui, detetive particular, formado na Escola de Detetives mais renomada da cidade, vencedora dos prêmios mais importantes em relação aos métodos de ensino utilizados . Métodos que utilizo hoje e que me ajudam a resolver situações das mais difíceis. Se não fosse a Escola de Detetives, jamais desconfiaria de que Sofia me traía com o pipoqueiro .

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Aprendi muito nas ruas e talvez daí veio o tino para as investigações. Posso dizer que transpus obstáculos traumáticos, mas posso admitir que hoje tenho os principais atributos que uma pessoa precisa para afirmar o sucesso: inteligência, café Mogiana no armário, whisky na prateleira e charuto no bolso .

E o dinheiro? Isso depende de como você enxerga o sucesso. Para mim, o sucesso figura a moral, ética e preferência por camisas brancas em vez das lilases com bolinhas amarelas .

Mas não mudemos de assunto . . .Escrevo sobre livros porque ultimamente tenho me

interessado por belas histórias e poesias . Entrei para o Clube do Livro e por vezes me aventuro a escrever algumas estrofes . No início, não entendia muito bem a linguagem figurada presente nos poemas, mas, com o passar do tempo, percebi que, quando falam de “partir o coração”, não quer dizer literalmente um coração dividido ao meio, hemorragia interna, ruptura de vasos sanguíneos, hipoperfusão, sudorese, queda da pressão sistólica, flacidez esfincteriana, entre outros sintomas . Mas há um sentimento que está presente em qualquer que seja a circunstância: sofrimento, muito sofrimento . Sempre há sofrimento . Sempre sofrimento .

A certa altura, fui convidado para ministrar um sarau de poesia no Clube do Livro . As coisas não saíram como eu imaginei depois que acusei um senhor de ter plagiado “Os Homens Ocos” de T .S . Eliot . Na verdade, seu poema era intitulado “Os Homens Ogros”, em que ele fazia uma autobiografia de seus relacionamentos fracassados, tendendo ao sarcasmo contemporâneo e o politicamente incorreto . Sei que tenho ainda muito a aprender .

Comecei a me interessar por poesias faz pouco tempo, após ter participado de um complicado caso, particularmen-te difícil e cheio de reveses .

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Rosana Queiroz era a mãe de um poeta incompreen-dido . Uma mulher estranhamente calma que, no momento em que se sentou no meu escritório, dormiu . Acordei-a com umas palmadinhas no ombro e recebi um tapa no rosto como recompensa. A julgar pela sua atitude, identifiquei claros sintomas de depressão pós-parto, mesmo seu filho tendo nascido há 32 anos .

A mulher precisava urgente de minha ajuda . Como eu já havia percebido, disse-me que não tinha boa relação com o filho e que ele escondia um tesouro seu que não queria devolver . Insisti por mais detalhes, ela contou-me sobre “O Livro Dourado de Gaia”, que guardava o maior tesouro da humanidade e era o único exemplar no mundo. Perguntei-a que tesouro era esse, ela negou dar qualquer conhecimento, dizendo que eu não estava preparado para receber esse tipo de informação .

Ok, tudo bem . Eu não precisava mesmo saber, apenas aceitar o trabalho e recuperar o livro .

Ela continuou o relato afirmando que seu filho poeta, louco, desnorteado, maltrapilho e demente, estaria louco, desnorteado, maltrapilho e demente, e talvez um pouco fora de si, e havia escondido o livro para que ninguém o pegasse .

Após me dar poucos detalhes sobre “O Livro Dourado de Gaia”, Rosana pediu licença para tirar uma soneca . Permiti que se deitasse na caminha de Juanito, enquanto saí para buscar o poeta .

O poeta morava em um hotel de quinta categoria . Enquanto me encaminhava para o lugar, pegando

três ônibus, dois metrôs e um táxi, matutava sobre o livro. Na mitologia grega, Gaia significava a Mãe-Terra, espírito gerador. Também usada como termo filosófico referente à natureza, à Mãe-Natureza; o “dourado” supunha que se referia à riqueza, ao conhecimento ou, talvez, à marca de cerveja . No livro em questão, tinha certeza de que possuía

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segredos irreveláveis sobre o planeta e talvez um modo de salvá-lo dos desmatamentos, mudanças climáticas e todos os males a que a humanidade o submete, como partidos políticos .

Quatro horas depois, cheguei ao local .Uma espelunca do mesmo nível do meu apartamento .

Um hotel, mas muito parecido com um zoológico . Até o recepcionista tinha cara de lontra . Falei que era do seguro- -desemprego e perguntei-lhe sobre o poeta . Falou-me que estava hospedado no apartamento 612 e que eu poderia passar tranquilamente, que não era hábito pedir identificação, apesar dos 16 assassinatos da última semana no bairro . Se eu dissesse que era trapezista de circo, ele acreditaria e me deixaria entrar mesmo assim. Como recompensa, dei-lhe uma lata de sardinha .

Adentrei no quarto 612, e o poeta estava meditando . Logo despertou e recebeu-me com uma paz espiritual que eu só havia visto até agora em uma alface . Antes de nos apresentarmos, disse-me que só conseguia meditar acompanhado de uma panela com mandiocas fritando .

“Existe algo mais relaxante que o som da fritura?”, perguntou-me .

Segundo ele, o som mais próximo de Deus. Refleti sobre isso e realmente não consegui pensar em algo que trouxesse maior paz de espírito que o ressoar de mandiocas na fritadeira . A partir daí, comecei a usar o método do poeta de meditação, o que me trouxe muitos benefícios... exceto o colesterol alto.

Tentei observar o quarto e buscar pistas sobre o livro . Xícara de café no chão, cama desarrumada, armário aberto com roupas bagunçadas, banheiro imundo . Nada fora do normal de um quarto de uma pessoa normal . Sem sucesso no reconhecimento, decidi me concentrar apenas no rapaz .

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O jovem poeta era alto e magro (calculei seu peso em 3,5 arrobas), cabelos até os ombros e tinha um rosto rosado que lembrava muito Maria Antonieta de bigode, além de ter o hábito de espirrar toda a vez que alguém falava a palavra “coqueteleira” .

No começo, para me aproximar e pegar a confiança do poeta, ensinei-lhe a receita de vários coquetéis e ressaltei a importância da boa pegada na coqueteleira . Ele ensinou- -me um drink sensacional que leva morangos silvestres e maracujá, nomeado antigamente como “drink de morangos silvestres com maracujá” (receita em anexo).

Depois de ele me contar a piada do papagaio, a conversa foi tomando um ar de seriedade . Resolvi falar sobre poesias e livros, e ele me disse que sua obra favorita era “Cuecas Falantes”, em 4 Volumes . O poeta não gostava apenas de livros sobre cuecas, mas também de sungas, biquínis e maiôs, e uma das obras que ele mais admirava era a “Enciclopédia Britânica de Trajes de Banho” . Concordei que havia livros que tinham suma importância na história da humanidade . Inclusive esses citados, que serviam muito bem como pesos de porta .

Senti a confiança fluir no poeta e achava que já era hora de mencionar “O Livro Dourado de Gaia” .

Ele acreditava que eu estava ali pelas suas poesias, mas, logo que citei o livro, senti o desconforto vindo do poeta . Percebi que o assunto trazia mais efeitos colaterais no corpo do poeta do que falar a palavra “coqueteleira” . O jovem suava e deu-me a desculpa de que fazia muito calor para aquela época do ano, apesar dos 7ºC .

Eu concordava com o dia quente, mas percebi o cheiro do nervosismo no poeta . As pálpebras dilatadas, a boca seca e a tremedeira nas mãos . Também utilizei uma técnica infalível que aprendi na Escola de Detetives onde medimos o tempo de uma respiração e a média total por

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minuto, multiplicando o teor de rubor das bochechas (de 1 a 10) elevado ao quadrado, podemos descobrir se uma pessoa está a esconder algo ou não (fórmula em anexo). O cálculo deu errado, então fiquei na suposição mesmo.

Ele tinha algo a esconder . . .Quando o pressionei, primeiro negou . Voltou a negar .

Depois me ofereceu rosquinhas, as quais eu neguei . Depois ele negou as rosquinhas, e eu as aceitei . Após, emocio-nalmente aturdido, revelou-me quase tudo . O livro estava muito bem escondido, e não revelaria onde . Disse-me que escreveu quadras poéticas que levavam ao esconderijo, caso acontecesse algo com ele. O poeta explicou-me que sua mãe o odiava e queria o livro de qualquer maneira . Os segredos contidos ali não deveriam nunca se revelar .

Ele continuou falando sobre a mãe . Disse que a mulher tratava os outros como objetos e que ele próprio era tratado por ela como um candelabro . Disse-me ainda que ela fazia tortura psicológica e ameaçava-o de sequestro se não entregasse o livro . A mulher tinha um medo absurdo que ele usasse o conteúdo do livro contra ela .

Apesar disso, ele preservava um inocente amor de filho e confessou-me que, quando ela morresse, iria empalhá-la e deixá-la de enfeite no banheiro das visitas.

Ele já tinha a minha confiança e pediu para que eu trabalhasse para ele na proteção do livro . Tive de recusar, pois meu trabalho era recuperar o livro, não protegê-lo . O poeta se fechou e não quis falar mais nada . Saí para poder respirar .

No caminho de volta, após quatro ônibus, dois táxis, dois metrôs e 5 horas de percurso, tentei organizar as ideias e tirar algumas conclusões. Mas só perguntas surgiam. Senti o desespero do poeta como real, mas quem falava a verdade? Qual o grande segredo desse livro? Foi a mãe que me contratou, não ele . Eu estava em dúvida em qual sentido seguir . Nesse momento da investigação, havia certeza de

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apenas uma coisa: morangos silvestres definitivamente combinam muito bem com maracujá .

No dia seguinte, dia estranho e seguinte ao anterior também estranho, recebi uma estranha ligação . Era Rosana, mãe do poeta . Ligou do seu trabalho e, calmamente desesperada, disse que seu filho não estava no hotel e com toda a certeza havia sido sequestrado . Perguntei-lhe por que ela achava aquilo e ela respondeu-me que ele não havia levado seu nebulizador junto . Ele nunca saía sem o nebulizador .

Mais um mistério no ar . A questão do nebulizador me deixou desconfiado, mas por que alguém teria interesse em sequestrar o jovem? A única parte interessada era a própria mãe, que queria recuperar “O Livro Dourado de Gaia” . Ela estava mentindo?

Questionei-a:“Você não odeia seu filho?”“Eu?”“Sim, a senhora . . .”“Aceita o dobro de queijo por mais 1 Barão?”“ . . .”“Não... não odeio meu filho. Ele está desequilibrado,

e eu preciso recuperar o livro . Se esse livro cair em mãos erradas, o futuro de Gaia corre perigo .”

“Qual é o grande segredo que esse livro guarda?”“Aceita o queijo ou não?”Tu tu tu tu tu . . .Fui rapidamente para o hotel e confirmei o que eu temia,

pegar um ônibus a mais só aumenta o tempo de percurso .O jovem realmente não estava lá, apenas o nebulizador .

Perguntei para os funcionários, e ninguém pôde me dizer o seu paradeiro . O senhor lontra queria muito mais uma lata de sardinha, mas não conseguiu me ajudar . Agora eu tinha dois problemas: o caso do livro e o caso do suposto sequestro do poeta . Será que iriam me pagar em dobro?

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Eu poderia chamar a polícia para resolver um dos casos, mas não poderia envolver terceiros . Ao que tudo parecia, o livro era um segredo mundial .

Tentei achar algo que talvez pudesse ter sido deixado pelos sequestradores . Dei mais uma procurada no quarto e encontrei os poemas .

Era isso! As quadras que o poeta escreveu como pistas para

encontrar o livro talvez revelassem o paradeiro do poeta também . Talvez o poeta estivesse no local onde estivesse o livro. Talvez eu deveria ter aceitado o queijo extra.

Poetas são artistas de gênio difícil . Artistas em geral têm gênio difícil . Lembro muito bem das histórias que eu lia da época renascentista, quando Leonardo da Vinci e Michelangelo embelezavam Florença com sua arte descomunal. Os dois tinham uma rixa entre si. Certa feita brigaram na Piazza della Signoria por causa de um naco de polenta . A grande rivalidade entre os dois causava várias pegadinhas maldosas, porém hilárias, como a vez que Michelangelo trocou a lata de tinta de da Vinci por banha de porco, o que deu errado, pois dali saiu sua maior invenção: a sopa de folhas de nabo . O que quero dizer é que artistas têm suas mentes brilhantes e às vezes podem viver em um mundo à parte, e o poeta poderia estar fazendo birra, tentando chamar a atenção da mãe . A veracidade da história do sequestro me deixava cheio de dúvidas.

Não era momento de elucubrações, mas de agir. Estu-dei com atenção a primeira quadra:

O meio há três pombosQue faz lhes soar

Não encontro o lugar perfeitoProcuro um lugar para amar

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“Procuro um lugar para amar .” Eu não precisava ler o resto . Não havia nada de enigmático nessa quadra poética, e eu sabia exatamente para aonde ir.

O Bar do Carlos ficava ao lado da Praça dos Pombos e era o lugar perfeito para amar . Com certeza o local onde “O Livro Dourado de Gaia” estava . Aproveitei a ocasião para beber um Bloody Marry, mas Carlos não queria abrir o jogo . Falou que ali não havia livro nenhum e que ele nem sabia o que era isso . Insisti grosseiramente, joguei o drink em seu rosto e fui escorraçado por dois simpáticos seguranças . Talvez eu deveria ter lido o segundo poema antes de tirar qualquer conclusão. Foi o que eu fiz a seguir.

A segunda quadra dizia o seguinte:

Quatro quarteirões apenasO vento sul sopra mais forte

Caí de amores por tiO contrário do sul é norte

Não havia mais nenhuma dúvida . “Caí de amores por ti”, agora eu tinha absoluta certeza: Bar do Carlos .

Carlos continuou a dizer que ali não havia livro algum e que eu estava louco . Insisti para que falasse a verdade enquanto eu bebia um Cosmopolitan . Precisaram de quatro seguranças para me levar bondosamente até a porta e me jogar de cara na rua . Talvez eu devesse prestar mais atenção aos poemas. Foi o que eu fiz.

Parti para a terceira quadra:

Aqui o livro se encontraAqui está o segredo

Já me fizeste bastante sofrerNo alto do meu sossego

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“Já me fizeste bastante sofrer.” Era óbvio que estava a falar do Bar do Carlos... eu estava definitivamente confuso.

Desta vez, oito seguranças se amontoaram em cima de mim e simpaticamente me deixaram com um olho roxo e alguns dentes frouxos. Convenci-me de que o livro não estava no Bar do Carlos e, com mais calma, tentei analisar melhor os poemas .

Logo tudo se elucidou em minha mente .“O meio há três pombos .” Eu poderia ter procurado em

centenas de lugares em que havia pombos . A Praça dos Pombos, o Cinema Pomba-Gira e a Churrascaria Pombo no Ponto eram alguns desses locais . No entanto, o único lugar que eu conhecia que havia pombos permanentemente era a mansão Provolone . O antigo casarão, construído no século 18 pelo arquiteto genovês Lorenzo Provolone, estava abandonado há algum tempo e tinha a estátua de três pombos no portão principal . Diz-se que Lorenzo era colecionador de pombos-correios e morreu tragicamente atacado por uma trupe de pássaros que reclamava do não pagamento de horas extras e más condições de trabalho, além de discordâncias do período de férias . O arquiteto adorava pombos, ainda mais com alecrim e alho, contudo foi traído pela ganância . Após isso, várias famílias passaram pela mansão e, depois de um tempo, ficou abandonada aos malcuidados da prefeitura.

Uma breve ligação para Rosana confirmou que a família Queiroz foi a última a residir na casa .

Anoitecia e a temperatura caía . Eu precisava ser rápido .“Quatro quarteirões apenas / O vento sul sopra mais

forte .” Aqui comprova-se a veracidade do local . A mansão dos pombos está num terreno de quatro quarteirões, onde a maioria é mato . E está perto de um lago, onde o vento sul tem maior potência para chegar a casa em dias de inverno .

“O contrário de sul é norte”, faz referência às duas entradas da mansão, uma pelo lado sul, outra pelo lado norte .

Cheguei à mansão abandonada pelo lado norte . O portão estava muito bem fechado . Eu não acreditava que

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o poeta poderia ter entrado ali para esconder o livro . A muralha parecia intransponível . A penumbra do início da noite dificultava o meu trabalho. Eu teria de dar um jeito de entrar .

Um bom detetive particular sempre leva consigo o melhor suspensório . A qualidade conta muito para segurar as melhores calças, e esse não era diferente . Com os Suspensórios Segura-Rei-Momo, eu posso tudo . Desvesti o acessório e utilizei-o como corda, segurando uma ponta com as mãos e prendendo a outra na asa esquerda da estátua de pombo, acima do muro . A subida foi leve e agradável, e a descida confortável e suave .

Você encontra os Suspensórios Segura-Rei-Momo nas melhores alfaiatarias .

Talvez minha aventura de pular o muro pelo lado norte tenha sido inútil, já que percebi, após descer, que o portão do lado sul estava totalmente aberto .

A casa estava em escombros .Aproximei-me da porta da frente. Estava aberta. Entrei

com cuidado . Não sabia qual tipo de ameaça me esperava lá dentro . Ainda havia alguns móveis abandonados servindo de moradia para cupins e traças . Um jogo de copos de prata era utilizado como parque de diversões para duas baratas. Elas pareciam estar discutindo . Muito justo, pois uma furou a vez da outra . Contas a pagar descansavam na mesa de centro da sala, tristes e esquecidas, como que temendo os juros de 34% ao ano que as esperavam . O pó caía como neve do lustre no hall, e o ambiente se assemelhava ao quarto de hotel em que o poeta se hospedava . E esse era mais um motivo para achar uma ligação dele com aquela casa .

Entrei na cozinha e me deparei com uma cena horrível: louças sujas acumulavam por toda a pia . Tentei não olhar muito e saí logo em seguida . Eu não tinha estômago para isso .

“Já me fizeste bastante sofrer, no alto do meu sossego.”

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O que estava fazendo-o sofrer era o livro, certamente . O alto, supus que fosse os andares acima da mansão. Fui verificar.

Eram muitos quartos e banheiros . Mais banheiros do que quartos . Contei 14 no total . Não entendia por quê, mas cheguei à conclusão de que Lorenzo Provolone poderia sofrer de bexiga solta e construiu banheiros por todo o lado para não precisar se locomover por longas distâncias quando a bexiga apertava. Aproveitei que estava ali para tirar água do joelho .

Um rato me cumprimentou e acenei de volta, dando boa noite .

Os quartos estavam vazios . Minha busca estava sendo inútil . Havia uma escada ainda que seguia para um outro dormitório que estava acima de todos os outros . “ . . . no alto do meu sossego .” O aposento a nível mais alto, seria o antigo quarto do poeta? Exato.

A noite dominava o ambiente e se enxergava mal. Acendi a pequena lanterna do meu relógio de pulso, que focava em um alvo, contudo não chamava a atenção . É um acessório indispensável para qualquer detetive . Pude ter uma melhor visão do quarto . Fiz um rastreamento e consegui identificar apenas um objeto: “O Livro Dourado de Gaia”.

Sim, finalmente o localizei. Depois de um olho roxo e alguns dentes frouxos procurando no lugar errado, eu estava diante dele. Fui me aproximando e o livro ficava mais nítido. Tinha formato de livro, capa de livro, jeito de livro, a cor do livro dourado . . . mas . . . não era um livro .

Eu não acreditava . Após tanto esforço e sangue derra-mado (por minha parte, apenas), senti-me enganado. Era óbvio que o objeto era o que Rosana procurava, mas não era um livro . Eu ainda tinha esperanças de que o segredo estava ali dentro .

Era uma caixinha de madeira em formato de livro. A capa dourada enganava à primeira vista, mas logo se percebia que o objeto não possuía páginas . Por que haviam mentido

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para mim e não dado as informações corretas? Logo entendi o motivo: vergonha .

O grande segredo mundial que a caixa guardava não tinha nada a ver com a salvação do planeta . Abri-a e encontrei fotos um tanto constrangedoras de Rosana . Com roupas íntimas, nua, apenas de meia, roupas íntimas e meia, de cuecão e nua com meias . Em uma das fotos, estava escrito o “Gaia” e um número de telefone . Logo solucionei o mistério . Gaia era o apelido de trabalho de Rosana na juventude e trazia traumas para o filho nos dias de hoje . A mãe do poeta era dançarina stripper da famosa cafetina Augusta Treme-treme . Um trabalho que não deixava de ser menos honrado que qualquer outro, porém não era assim que pensava o rapaz .

Peguei a caixa e agora teria de me preocupar com o desaparecimento do poeta . Saía do quarto quando algo me ocorreu . Dei meia volta, posicionei-me diante da entrada e proferi:

“Coqueteleira!”Ouvi o som do espirro vindo de um canto do aposento .

Não havia sequestro algum, o jovem poeta estava ali, de cócoras e assustado .

Fui ao seu encontro para ajudá-lo, e ele me implorou para devolver a caixa. Disse-lhe que não poderia fazer isso, eu estava a serviço de sua mãe . O rapaz começou a chorar e disse que sentia falta do seu nebulizador . O sentimento de pena corroía minhas entranhas . Aquela situação me afetava mais que as louças sujas no andar de baixo.

Aquelas fotos eram motivo de brigas e chantagens entre os dois . A que nível poderiam chegar se continuassem com esse jogo sem sentido? Decidi por algo que faria bem tanto à mãe quanto ao filho: queimei as fotos e levei as cinzas junto com o poeta à sua mãe .

Pegamos três metrôs e quatro ônibus e, em apenas 3 horas e meia, chegamos lá . Já estava me acostumando .

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Gaia . . . digo, Rosana olhou chocada . Não sei se pelos hematomas em meu rosto, ou se pelas cinzas dentro da caixinha de madeira . Seus olhos lacrimejavam . Em um momento, seu olhar era reconfortante, como se houvesse tirado um peso de toneladas das costas . Até parecia mais ereta . Todos os traumas que pairavam sobre a sala haviam evaporado . Eu via leveza em seus rostos . O poeta já não suava mais .

Rosana Queiroz aproximou-se do seu único filho, deu-lhe um forte abraço e um beijo na testa úmida . Iniciaram um diálogo sereno e doce:

“Desculpe-me, meu filho”, disse a mãe.“Desculpe-me, mamãe”, disse o filho.“O pesadelo finalmente acabou”, disse a mãe.“Eu guardei cópias”, disse o filho.“Eu te mato”, disse a mãe .“Eu estou brincando”, disse o filho.“Me dá um abraço”, disse a mãe .Por fim, deixei a casa apenas pensando se conseguiria

pegar a Churrascaria Pombo no Ponto aberta .Consegui . A carne estava deliciosa .Alguns meses depois, encontrei Rosana no Clube de Gaita

de Boca e ela me disse que seu filho poeta lançou um livro intitulado “Antíteses de um Candelabro”, onde expõe de forma sintética o passado e, sem deixar de citar, as aventuras da mãe em forma de poemas .

Ou seja, a recuperação de “O Livro de Gaia”, ou “Caixa de Gaia”, ou o que lá seja aquilo, de nada adiantou. A mulher estava tranquilamente acabada, sua depressão pós- -parto havia voltado, seus olhos estavam semelhantes a duas jabuticabas murchas. O relacionamento mãe-filho havia degringolado novamente . Ainda me revelou que a tristeza a havia feito perder o emprego e agora estava de volta à ativa como stripper no baile semanal de idosos para poder pagar as contas .

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Ofereceu-me seus serviços e disse que faria qualquer coisa por 100 Barões. Gostei da ideia e pedi que ela consertasse minha cafeteira, já que um técnico custaria mais de 200 .

Ofereci uma dose de catuaba, ela aceitou prontamente . Iria lhe fazer bem. A vida é assim, feita de altos e baixos, talvez enfrentar traumas de cabeça erguida seja a melhor solução . No caso da mulher, naquela noite enfrentou bêbada seus traumas . Após dezoito doses de catuaba, aninhou-se num canto do salão e dormiu profundamente. Deixou o clube mais tarde com uma conta de 90 Barões para eu pagar. Eu não devia ter oferecido a primeira dose . . .

Toda esta história me fez relembrar de como é péssimo o transporte público nesta cidade . Hoje evito pegar casos que passem de 4km de distância .

Já são 3h da manhã, Juanito dorme ao meu lado . Pelo menos a cafeteira está funcionando e tenho companhia na insônia . Estou tentando me dedicar aos poemas, porém não passo da segunda estrofe . Nem todos têm talento como o jovem poeta para escrever .

Sobre este casoEu posso dizer

Pombos voandoMelhor esquecer

Tive percalçosDifícil entender

Apanhei no CarlosMas o livro encontrei

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ANEXO 1:Drink de Morangos Silvestres com Maracujá:Ingredientes:- 5 morangos silvestres- 1 maracujá- Cachaça (quantidade necessária [até terminar a

garrafa])- 4 colheres de açúcar- GeloPreparo:(Descrição de acordo com o que o poeta me passou)Corte os morangos e junte-os com todos os

ingredientes na coqueteleira (espirro). Faça movimentos com a coqueteleira (espirro), nas mãos em sentido horário. Agora chacoalhe bem a coqueteleira (espirro) de cima a baixo sem deixar cair no chão. Sirva em copos altos bico fino. Lave a coqueteleira (espirro) e desfrute o belo drink .

ANEXO 2:Fórmula do Algo a Esconder:

AE = (R + nR)/nR x RB²

Legenda:AE = Algo a EsconderR = RespiraçãoRB = Rubor de 1 a 10

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UM CASO DE DENTADURA

08 de agosto

CASO 32INCIDENTE: Onde está a dentadura?VÍTIMA: Helmut Schwarzschwein

O dia está cinza . Completou uma semana de céu nublado e já choveu

em torno de 300mm nos últimos dias . Gosto muito de dias assim, combinam com minha personalidade e humor, mas o fato de não lembrar mais qual é a sensação da luz do sol me deixa louco. O escritório já é naturalmente escuro e úmido; com chuva, o mofo fica assustadoramente vivo. Por engano, às vezes dou bom dia quando chego de manhã . Tulinho vem me ajudar no escritório e chega como um cãozinho molhado, coitado . Para melhorar os ânimos, dou-lhe uma boa dose de leite achocolatado quente . E, para mim, uma boa dose de leite achocolatado quente com rum .

A chuva acaba por espantar os clientes . Juanito também espanta clientes, porém a chuva faz um papel mais importante neste quesito . Se bem que não sei o que é pior: molhar-se na chuva, ou ser recebido com mordidas nos calcanhares .

Conheci outra pessoa que se irritava facilmente com mudanças do tempo . Helmut Schwarzschwein era um senhor

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que todo amanhecer ia até a janela e gritava impropérios para o sol . “Não se atreva a aparecer novamente . Se eu te pego, quebro suas pernas!”, dizia ele a cada manhã . Por isso, tinha problemas de falta de vitamina D .

Porém, não foi por causa do sol que tive o prazer de conviver com Helmut Schwarzschwein . O velho me contatou num dia quente, segunda-feira, pois perdeu sua dentadura no domingo, um dia em que ninguém gostava de perder dentaduras . Não tinha dinheiro para adquirir uma nova e precisava de uma investigação minuciosa para tentar recuperá-las . Será que teria dinheiro para me pagar?

O senhor tinha o estereótipo alemão, mas era suíço e falava italiano, o que me causou confusão no começo . Contudo, logo me acostumei, pois tudo pertencia ao Império Romano . O velho era alto, cara redonda e uma barriga protuberante . Tinha rugas por toda a face e pelos saindo nas orelhas . A partir dos ensinamentos que recebi na Escola de Detetives, calculei que Helmut poderia ter em torno de 194 anos de idade, talvez menos ou mais . A falta da dentadura estava trazendo muitas dificuldades para ele, pois não conseguia mais comer, rir e falar a palavra “paralelepípedo” .

Aliás, rir era algo que ele não fazia com frequência . Senhor Schwarzschwein era um homem rude, segundo sua esposa Helga. Pude confirmar isso na primeira conversa após nos contatar: cheguei a seu apartamento e ele reclamou pelo meu atraso de 38 segundos . Se eu tivesse um relógio suíço, talvez não me atrasaria . Era um homem tão amargo que descascava uma banana e comia a casca . Dizia que banana era doce demais para ele .

Sentamo-nos na sala para conversarmos e para eu poder reunir detalhes sobre a dentadura . Helga apareceu com uma bandeja de brownies de gengibre . Eu sempre odiei brownie de gengibre, mas Helga me obrigou a comê-los . As fibras secas e trituradas do gengibre davam a sensação de

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um brownie arenoso . Helga era uma senhora simpática, que só se irritava quando recusavam seus brownies . Calculei 165 anos, pois tinha um rosto jovial .

Então, pedi maiores informações sobre o caso. Helmut começou . Depois de servir na guerra pela Suíça, na qual sua

função como soldado era jogar damas, saiu do país por não aguentar mais contar tanto dinheiro . Chegou aqui e logo conseguiu um emprego como limpador de ouvidos na Avenida Principal . Helga foi sua primeira cliente e logo se apaixonaram.

Ok, mas e a dentadura?Tiveram problemas com a família de Helga, e Helmut

decidiu que dessa vez não ficaria neutro, brigou com o pai, da então jovem namorada, e lhe arrancou os pelos nasais um por um . Casaram-se e mudaram-se para o apartamento que compraram com as economias do trabalho de limpeza do senhor Schwarzschwein .

Ok, mas e a dentadura?Mais tarde, abriram a própria empresa com mais

sócios, Helmut & Helga & Klaus & Rogério Limpadores de Ouvidos LTDA . Logo se desfez por desacordos de como a empresa deveria ser guiada entre Helmut e Klaus . Klaus era um homem positivista, o que, para Helmut, era muito negativo . Apesar disso, os dois ainda conversam e mantêm uma amizade razoavelmente saudável . Hoje Helmut e Helga são aposentados, mas a renda não é suficientemente boa para viverem.

E a dentadura?Decidi ir direto ao ponto e mencioná-la . Helga reclamou:“O homem pisou na lua e não consegue fazer denta-

duras rígidas .”Helmut esbravejou, dizendo que o homem não havia

pisado na lua e que ninguém o faria acreditar em toda aquela baboseira que transmitiram na TV em 1969 .

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“Uma farsa, um cenário mal feito, uma bandeira tremulando . Há vento na lua?”

Ele tinha razão, porém eu já estava sem paciência . . .Finalmente o velho decidiu falar com objetividade .

Disse que adquiriu a dentadura no mercado de pulgas depois de ter quebrado os dentes numa briga no cais do porto, no verão de 84 . Elas serviram tão bem que nunca precisou de reparos . Só que infelizmente ele as perdeu após escová- -las . Ele tinha dúvidas se as tinha realmente perdido, ou se alguém as tivesse levado . Quem roubaria dentaduras?

Percorri todo o percurso que o suíço fazia todos os dias nos aposentos do apartamento . Nada de dentadura . Já começava a pensar em outras hipóteses . Que senhor Schwarzschwein havia perdido no vaso sanitário, ou mesmo engolido, talvez perdido em uma aposta . A hipótese de roubo já não era tão absurda .

Eu já estava a tarde toda de segunda-feira procuran-do dentadura . Apenas queria ir ao clube de remo e discutir com os rapazes sobre a chegada das folhas primaveris . Mas sentia que aquele dia não chegaria ao fim.

Certa altura da tarde, Klaus entra no apartamento para uma visita . Ele já sabia sobre a perda do amigo e disse que era óbvio que quem as tinha pegado era o colecionador de dentaduras do quarteirão ao lado . Helmut disse que Klaus só vinha para atrapalhar e mandou se calar . Klaus acusou o amigo de ser muito intolerante e recebeu a resposta de que intolerân-cia à lactose era algo sério. A discussão não tinha fim, entretanto eu tinha linhas vertentes mais interessantes a seguir .

Havia um colecionador de dentaduras aqui perto? Certamente tínhamos um suspeito . Não pensei duas vezes e fui direto à casa do sujeito .

O colecionador de dentaduras era conhecido como “O Colecionador” e colecionava dentaduras de várias cele-bridades do mundo afora .

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Cheguei à casa do sujeito, bati na porta . Um homem de meia idade atendeu. Segurei em sua gola e exigi a dentadura. O homem me olhou e disse que provavelmente eu estava falando do filho. Agradeci com gentileza, liberei-o e agarrei na gola do sujeito dentro da casa . Um leve engano, este era o irmão . Para evitar erros, perguntei onde poderia procurar o Colecionador . Indicaram-me a segunda porta à direita . Entrei sem bater e, assim que o vi, segurei em sua gola exigindo a devolução da dentadura do pobre velho Helmut Schwarzschwein .

“Devolva agora mesmo a dentadura . . . E não me diga que você não é você!”

O colecionador disse que não sabia quem era esse tal de Helmut, mas tinha a dentadura de Elvis Presley. Eu não queria saber de Elvis. Pressionei-o, ele me explicou que não tinha interesse nas dentaduras dos idosos do bairro, a não ser que algum deles havia vendido 600 milhões de discos. Helmut havia vendido apenas 12 .

Dei uma olhada em sua coleção e pude confirmar. O rapaz tinha em torno de 20 mil dentaduras, mas todas de pessoas que tiveram um nome importante na história do mundo, como Marlon Brando, Adolf Hitler, Júlio César e o Palhaço Bozo .

Saí de lá completamente frustrado . Não me sentia mais apto para continuar uma investigação em que os caminhos se afunilaram completamente, não sobrando uma réstia de esperança para os Schwarzschwein . Provavelmente essa dentadura já estava no lixão, servindo de alimento para corvos comedores de obturações. O que me restava era encerrar o caso e partir para o clube encontrar os rapazes .

Voltava à casa de Helmut, elucubrando sobre denta-duras, quando me surgiu uma nova ideia que trouxe uma nova ponta de fé para toda essa situação . Agora parecia tão óbvio . Helmut e Klaus sempre tiveram suas diferenças, no entanto

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nunca entrou na cabeça de Klaus a quebra da sociedade da antiga empresa . Klaus queria vingança . Frequentava o recinto do suíço se fazendo de “amigo” para aplicar seu golpe final, um ato horrendo, da forma mais baixa possível, surrupiando sua dentadura .

Cheguei ao apartamento com uma certa raiva . Chutei a porta e a quebrei . Helmut reclamou, Klaus riu, Helga ofereceu brownies . Queria esclarecer o assunto imediatamente .

Eu: “Você nunca desconfiou dele?”Helmut: “Quem?”Eu: “Klaus!”Klaus: “O quê?”Helga: “O homem pisou na lua e continua sendo

desonesto um com o outro .”Helmut: “O homem não pisou na lua!!!”Eu: “Klaus é o culpado!”Helmut olhou com desdém para Klaus e exigiu a

dentadura de volta . Klaus negou tudo e disse que jamais faria algo assim para o amigo . Helmut partiu para cima de Klaus e começaram uma briga feia, com socos e empurrões.

“Devolva minha dentadura!”“Eu não peguei sua dentadura!”Os velhinhos lutavam bem, apesar do reumatismo . Eu

e Helga ficamos de espectadores. Eu tinha uma leve torcida por Klaus, parecia mais fraco, o gancho de direita falhava constantemente . Os mais inaptos sempre me chamam mais a atenção pela polivalência . Peguei um brownie e comia enquanto os velhos partiam a cara um do outro . Essa sensação arenosa das fibras do gengibre seco me incomodava profundamente . Como eu odiava brownie de gengibre .

Areia? brownie? Gengibre? Dentadura?Como que na velocidade da luz (velocidade da

minha capacidade intelectual), um lufar de ideias encheu a

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minha mente. Entendi tudo. Sabia exatamente onde estava a dentadura . Perguntei à Helga quando ela tinha feito os brownies . Domingo . Gritei para que parassem aquela luta ridícula e sem sentido . Todos me olharam sem entender o porquê .

“A dentadura está aqui!”Levantei o brownie e cuspi o que tinha na boca . “Está aqui!”Então, como um solucionador de casos da mais alta

estirpe, comecei a explanar o que eu havia desvendado. Helga assou os brownies de gengibre domingo, mesmo dia do desaparecimento da dentadura . A sensação de areia nos brownies não era gengibre . Ou seja, era bem provável que a senhora Helga havia triturado a dentadura no liquidificador ao fazer a receita .

Mas como a dentadura foi parar dentro de um liquidificador? A fraca memória de Helmut elucidou tudo. Aconteceu que o suíço, no domingo de manhã, foi fazer seu suco de cascas de manga e, num descuido, colocou a dentadura dentro do liquidificador em vez do ingrediente principal . Logo após ocorrido o fato, teve um súbito entrevero estomacal e precisou ir às pressas ao banheiro, esquecendo- -se totalmente do suco, da manga, do liquidificador e da dentadura . Então Helga foi fazer seus brownies e bateu todos os ingredientes com a dentadura dentro .

Helmut olhou com vergonha para Klaus e pediu desculpas . Klaus sorriu e correu até o amigo para dar um forte abraço . Helga ofereceu brownies .

Tempos depois, Helmut telefonou para o escritório dizendo que havia perdido os óculos e fui prontamente atendê-lo . Desta vez, os brownies de gengibre estavam bons e havia suco de cascas de manga .

Desceu rasgando. Os óculos estavam no liquidifi-cador . Como odeio suco de cascas de manga .

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A chuva continua . Os brownies de gengibre estão saindo do forno,

cheirosos e quentinhos (receita em anexo). Percebi que gosto de gengibre, o que não gosto é de dentaduras . Tulinho também gostou dos brownies, mas Juanito prefere comer jornais úmidos .

Tulinho se encorajou a tomar banho de chuva . O menino não aguentou o tédio e saiu correndo porta afora . Não vou ficar aqui dentro o dia inteiro esperando a chuva passar . Vou enfrentá-la . Talvez lavar a alma com a esperança de dias ensolarados . Parar de reclamar de umas gotas de água e brincar com o que tanto me incomoda .

Eu adoro a chuva . Adoro gengibre . Adoro cascas de manga .

ANEXO

Brownie de GengibreIngredientes:- 5 colheres de farinha de trigo- 1 colher pequena de fermento- 3 ovos- 5 colheres de açúcar- 150g de manteiga- Uma pitada de sal- Gengibre raladoPreparo:Verifique se não há dentaduras no liquidificador. Bata todos os ingredientes, despeje em formas

pequenas e leve ao forno pré-aquecido a 180ºC por 25 minutos .

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UM CASO DE HERANÇA

29 de agosto

CASO FDJC-444-j72s123INCIDENTE: Complô contra a mãeCONTRATANTE: Judite Conway

Cheguei hoje ao escritório um pouco além do horário normal de trabalho, 16h . O escritório fecha às 17h . Quase não valeu a pena abri-lo, pois preciso de muito tempo para me concentrar no que costumo fazer todos os dias: nada .

Fechei às 16h30min e decidi tirar um tempo de folga, porque já é sexta-feira, e ninguém gosta de trabalhar nas sextas- -feiras . Tenho o sábado e domingo livres e enforcarei a segunda, pois, obviamente, ninguém gosta de trabalhar nas segundas .

Nada de clube hoje, nada de bebidas e conversas com os rapazes . Estou no meu úmido apartamento apenas escrevendo neste diário minhas angústias, acompanhado de um bom café Mogiana e Juanito .

Juanito está deitado ao lado, lendo uma matéria no jornal sobre tradução ribossômica citoplasmática . Nunca pensei que Juanito se interessasse por genética . Juanito acaba de fazer coisas em cima do jornal . . . parece que não gostou da matéria .

Há algumas semanas, até tive um certo reconhe-cimento da sociedade pelo meu incrível recente caso bem resolvido da dentadura . Todos queriam meus serviços . O

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escritório parecia um ninho de ratos de tanta gente . Além da presença habitual dos ratos, as pessoas faziam fila de dobrar a esquina (se bem que a esquina fica a dois metros do escritório). Tive de dispensar em torno de três quartos dos trabalhos, pois não dava conta de tudo e a sesta da tarde já estava ficando prejudicada. Entretanto, um deles fui obrigado a aceitar . Obrigado mesmo, pois dois homens entraram no escritório, deram-me uma coronhada na cabeça, desmaiei, puseram-me um capuz e me levaram para um lugar desconhecido . Nada como ter uma boa relação cliente/prestador de serviço logo de início .

Lembro apenas de sentir os trancos do carro e recla-mar do serviço de bordo ruim ao longo da viagem .

Paramos . Mesmo sem enxergar nada, meus instintos de detetive

me levavam a tirar algumas conclusões. O cheiro era estranho, supus que estávamos em um curtume . O homem que me levava pelo braço parecia ter comido risoto de camarão no almoço . O som dos pássaros cantando ao fundo eram sabiás-laranjeira . Sentaram-me numa cadeira e retiraram o capuz . Era um galpão enorme vazio, e o cheiro vinha de um dos capangas do local. O homem que me trouxe não era homem, era mulher . . . e que mulher! A mancha de molho tártaro na blusa indicava que o almoço não havia sido risoto de camarão . Os pássaros que cantavam eram caturritas . . .

Bem, é natural que um detetive erre uma ou outra vez . . .

Na minha frente, uma senhora séria e bem-apessoada me encarava . Estava junto com um jovem que segurava a sua mão, provavelmente seu filho ou gogo boy particular . Logo a reconheci da televisão, só que dessa vez sem borrões e chiados. Era a grande magnata das fraldas, Fraldas Descartáveis Conway, Judite Conway, e o jovem ao lado era seu mais novo namorado de 24 anos, Alessandro .

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Era uma mulher conhecida pelo poder e por fazer de tudo para alavancar sua marca, inclusive enterrar maridos . O que uma empresária tão conhecida queria comigo?

“Então, dona Judite . . .”“Senhora Judite Conway, a magnata das fraldas des-

cartáveis”, corrigiu-me .Teria de me referir a ela dessa maneira .Judite Conway foi direto ao assunto. Pediu desculpas

por ter de fazer eu passar por esse alvoroço, mas precisava ser discreta . O caso é que ela tinha uma fortuna bilionária, estava com a saúde debilitada e suspeitava de que um de seus herdeiros estava tentando envenená-la . Perguntei por que ela achava isso, respondeu-me que a nova sepultura dada pelos filhos no seu aniversário dizia tudo. Contrapus dizendo que era um bom presente, ainda mais se a sepultura tinha vista para o mar . Ela concordou, mas queria iniciar uma investigação mesmo assim .

As negociações foram rápidas. Aceitei o trabalho em troca de alguns Barões e vale fraldas. Combinamos que eu trabalharia cinco dias em sua mansão disfarçado de eletricista . Como a casa é afastada da cidade, dormiria no quarto dos empregados. Um pretexto para estar presente e vigiar todos os filhos e pessoas ao seu redor. Esses cinco dias longe queriam dizer que perderia o campeonato provinciano de bolão . Uma lástima .

Primeiro dia:Cheguei para iniciar minhas investigações devida-

mente trajado. Judite Conway, a magnata das fraldas descartáveis, estava reunida com seu bando na sala para uma reunião sobre as novas fraldas-paraquedas da empresa . Ela me apresentou a cada um, iniciando pelo casal de filhos proveniente do casamento com seu falecido marido Pitágoras: Cateto, o mais velho, 34 anos e Hipotenusa,

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28 anos (nomes comuns para filhos de pessoas chamadas Pitágoras). Mais um sobrinho morava com Judite, o jovem Renata, de 25 anos (nome um tanto exótico para homens, é verdade, mas isso não vinha ao caso). Ainda havia um mordomo, Jarbas (nome usual de mordomos), e também uma empregada chamada Samanta (nome apenas comum).

Logo fui arrumar as tomadas da sala e pude observar e escutar a todos. Judite Conway tinha total confiança em seu novo namorado, gerando a desconfiança dos filhos. Alessandro sempre dava seu pitaco sobre os planos da empresa e chegou a dar a ideia de que as novas fraldas- -paraquedas viessem com canivetes suíços, caso houvesse algum contratempo na mata . Cateto se mantinha reto, Hipotenusa já pendia a um ângulo de 30º . A única pessoa que parecia não se importar era o jovem Renata .

Renata era um rapaz de roupas extravagantes e, em vez de usar chapéu, colocava um bife à milanesa na cabeça, que pendia na testa fazendo o papel de franja . Logo antipatizei com ele, a carne era alcatra .

Hipotenusa saía e voltava diversas vezes da sala . Gostaria de saber aonde ia . Pegar o veneno para matar a mãe?

Judite tomava seu suco, mas não vi a filha adicionar nada dentro . A senhora mencionou que estava com dores de cabeça, e todos sorriram maliciosamente . Aí tinha coisa .

Continuei tranquilamente com meu serviço, quando de repente ouviu-se um grito .

Tomei um choque .Eu já temia por isso . Eu não entendia nada de

eletricidade e não tinha ideia do que estava fazendo naquela tomada . Todos na sala me olharam ressabiados, mas logo voltaram à reunião . Não sei se foi uma boa ideia ter escolhido a eletricidade para minha profissão de mentirinha. Talvez me daria melhor atuando como contador ou limpador de fossa .

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O primeiro dia transcorreu tranquilamente, mas com muitas suspeitas .

Segundo dia:Tirei a manhã para trabalhar na cozinha e aproveitar

para conversar com os empregados . Perguntei à Samanta se os patrões eram boa gente.

“Nove entre dez patrões são boa gente”, respondeu- -me .

“Lhe tratam bem?”“Não tenho o que reclamar, tirando Cateto .”“O que tem Cateto?”“É meio quadrado .”“Vejo ele linear .”“Nada é o que parece .”“Só você faz comida aqui?”“Todos fazem . Inclusive o novo namorado da Judite

Conway, a magnata das fraldas descartáveis. Adora trazer novos temperos” .

Interessante... a conversa estava ficando boa, mas parecia que Samanta não queria papear . Estranhamente começou a me seduzir a 28 piscadelas por minuto e muitas mordidas de lábio . Eu sei que eu era irresistível, mas a velocidade da piscadela ultrapassava o limite da sedução e entrava na margem do nervosismo . Apliquei a fórmula . Ela tinha algo a esconder .

O mordomo interrompeu e veio me cumprimentar com um aperto de mão longo e forte que excedia os termos convencionais de boa relação e se tornava intimidador . Daí percebi que ele não gostava de mim . Jarbas se incomodava com qualquer pessoa estranha nova na casa . Notei isso quando ele disse: “Eu me incomodo com qualquer pessoa estranha nova na casa”, e me recomendou sair imediatamente . Disse que sabia quem eu era e que não conseguiria nada ali sem sofrer as consequências .

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Senti como uma ameaça, apesar de ele ter sido amável e me servido um copo de suco . Eu disse que ele estava enganado e eu não sairia dali até consertar todas as tomadas de Judite Conway, a magnata das fraldas descartáveis.

Fui arrumar o micro-ondas para mostrar serviço e, em vez de esquentar, o aparelho começou a congelar . Quando de repente se ouviu um grito .

Tomei outro choque .O restante do dia transcorreu tranquilamente, apesar

de mais suspeitas .

Terceiro dia:Naquele dia, ajeitei bem a escada para arrumar o

lustre da sala . Subi com cuidado e comecei a tirar todas as 130 lâmpadas anexadas. Eu não sabia o que estava fazendo, mas tinha de fingir que fazia alguma coisa. Senti a escada balançar. Olhei para baixo e vi uma mão empurrando-a. Ouviu-se um grito .

Caí da escada .As costas doíam, eu não conseguia me levantar .

Alguém tentou me matar . Minha presença incomodava .Hipotenusa apareceu e me ajudou . Sentamos no sofá

e me fez uma massagem . Nossas mãos se encontraram . Hipotenusa sorriu . Piscou . Mordeu o lábio, mas numa velocidade mais sedutora . Eu não conseguia decifrar as intenções da mulher. Perguntei se ela havia visto o que acontecera. Mudou sua expressão e saiu repentinamente.

Recompus-me. Deixei o serviço do lustre para outro dia e fui ao quintal tomar um ar . Eu não conseguia descobrir nada, nenhuma conversa que me mostrasse se alguém tramava contra Judite . As piscadelas e mordidas de lábios ficavam cada vez mais misteriosas. Eu estava em um caso de extrema delicadeza. Tudo muito confuso. Tão confuso quanto comer strogonoff com tofu.

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Cateto apareceu e perguntou se eu não precisava de nada . Minha vontade era de uma caipirinha, porém eu tinha de manter as aparências e pedi cachaça pura . Ele deu uma piscadela e saiu .

Por que todo mundo estava tentando me seduzir?Logo após, Renata estava de saída para uma festa . O

bife parecia bem passado demais, o que deixava seu look meio chulo . Saiu e lembrou o mordomo sobre os remédios da tia . Todos eram suspeitos .

À noite, observei Judite Conway, a magnata das fral-das descartáveis, em seu escritório . Hipotenusa lhe serviu o suco e de repente pediu licença e saiu pela tangente . Mais uma saída repentina de Hipotenusa, sem calcular seno ou cosseno . Voltou logo depois com o remédio para a mãe, colocou Mozart para tocar no ambiente, a marcha fúnebre, e tornou a sair . A moça parecia um ioiô de tantas idas e vindas .

Fui ter uma conversa com Judite Conway, a magnata das fraldas descartáveis . Estava com sua habitual dor de cabeça e dores pelo corpo . Falei sobre o ocorrido na escada, ela minimizou a gravidade da situação, contudo falou-me para tomar cuidado, pois escadas frouxas e mãos furiosas não eram a melhor combinação . Ninguém era santo naquela casa, inclusive ela, disse-me com uma piscadela de canto de olho .

Aquela mulher rude, que aos olhos do povo era pode-rosa, agora estava triste e sozinha . A grande mulher de negócios, que se tornou empresária depois de duros anos tentando encontrar o melhor marido para financiar sua firma, estava frágil, e eu era o único que estava ali por ela .

“Você sabe quanto é doloroso perder um marido?”“Eu nunca perdi um marido .”“Então imagine perder oito .”Disse que não duraria mais muito tempo e me contou

a história da família, em que tinham um grave problema:

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todos os primogênitos morreram de tropeço . Estava na genética. Seu avô e pai eram primogênitos, e tiveram fim dessa forma . Seu avô faleceu após tropeçar numa cadeira de quatro pernas .

“Se a cadeira tivesse três, talvez ainda estivesse vivo”, lamentou .

Seu pai tropeçou no telhado enquanto limpava a calha . “Estranho, pois nossa casa não tinha calha . . . nem

telhado .”E ela achava que teria o mesmo fim. Tropeçar na

escada, num fio desencapado ou numa pedra solta na calçada. Desejava ter o mesmo fim de seus antepassados. Mas lhe trazia tristeza pensar que um de seus familiares poderia estar planejando seu assassinato . Queria apenas morrer em paz, em um tropeço qualquer numa manhã fresca de outono .

Pedi para que parasse de comer e beber tudo o que os outros traziam e que deveria preparar sua própria comida e remédios . Ela disse que não seria fácil administrar os 47 remédios diários, mas concordou .

Eu ainda não havia descoberto nada, mas pelo menos a senhora não ingeriria mais nenhum veneno .

O restante do dia transcorreu tranquilamente, apesar das milhares de novas suspeitas .

Quarto dia:Por enquanto, todos os membros da casa tinham algo

a ser desconfiado contra si próprios.De manhã cedo, fui arrumar o motor na casa da piscina .

Renata se aproximou. Era o único que não havia conversado comigo . A franja/bife à milanesa parecia malpassada, no ponto certo segundo o Comitê Internacional de Moda .

“Qual o problema com o motor?”“Parece que bebeu demais ontem à noite .”“Eu também .”

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“Vejo que você se preocupa com a saúde da sua tia .”“É minha obrigação, meu nome está no testamento”,

sorriu .“Hmm .”“Você está melhor da queda da escada?”“Eu estou, já a escada eu não sei .”“Tome cuidado . . .”Suspeito . . .O jovem Renata me encarava com um sorriso no rosto

e logo se iniciaram as piscadelas e mordidas no lábio . “Mais um”, pensei . Eu estava encurralado ali na casa da piscina, se ele quisesse me atacar, poderia fazê-lo facilmente .

Quando de repente ouviu-se um grito .A chave de fenda caiu nos meus pés .Renata riu e saiu caçoando do “eletricista mais idiota

que já vira” .Respirei, acalmei-me e tentei botar a cabeça para

funcionar, o que ainda não havia feito desde que chegara ali . A investigação não tinha pé nem cabeça . Todos eram suspeitos, todos me lançavam piscadelas . Por que queriam me seduzir? Por que tentaram me derrubar da escada? Alguém sabia que eu era detetive? Não descobrira nada e possuía apenas vagas suposições sobre os suspeitos.

Ao longo do dia, tirei um tempo para pensar e conser-tar mais alguns aparelhos defeituosos . Tentei arrumar o cortador de grama, e ele começou a fazer café expresso. Eu começava a fazer bons trabalhos como eletricista e já pensava em desistir das tarefas como detetive e abrir uma elétrica .

O restante do dia transcorreu tranquilamente, apesar de eu estar confuso, apavorado, aterrorizado, além das milhões de suspeitas a mais.

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Quinto dia:Era o último dia .01h23minSaí do meu quarto e fui para a cozinha . A casa parecia

dormir . Caminhei pelos aposentos, tudo estava calmo . Decidi voltar para a ala dos empregados e notei que não havia ninguém no quarto de Samanta . Andei mais um pouco, quando de repente se ouviu um grito .

NÃO ERA MEU .Em outro quarto, duas pessoas gemiam . E não estavam

jogando truco . Logo adiante, do lado de fora da casa, vi outros dois murmurando . E, acima na sacada superior, outras duas pessoas falavam baixinho.

Fiquei em choque, e não foi de eletricidade . Era de madrugada que as coisas aconteciam na mansão .

Tudo estava resolvido . A resposta de todas as perguntas havia sido respondida .

Voltei ao meu quarto, peguei meus gravadores Two Thousand Master, que ganhamos da Escola de Detetives quando nos formamos, e fui fazer meu trabalho . Ao ama-nhecer, Judite teria o caso esclarecido .

Passei o resto da noite em meu quarto refletindo e analisando tudo o que havia descoberto . Era a hora de revelar imediatamente à Judite Conway, a magnata das fraldas descartáveis . Mas logo depois da soneca .

Dormi até as 15h44min e, agora sim, fui ter imedia-tamente com Judite Conway, a magnata das fraldas des-cartáveis .

Recebeu-me nervosa em seu escritório, mas pedi para se acalmar (apenas dois tapas foram suficientes), que nada do que ela pensava estava acontecendo . Era muito pior .

Mostrei as gravações com 34 horas de material (tudo gravado naquela noite) e mandei a senhora providenciar pipoca . O show começaria .

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Gravação 1: Na ala dos empregados, em um quarto qualquer, os gemidos que eu escutara eram de Samanta e Cateto . Os dois tinham um caso e um plano nefasto de eliminar Hipotenusa . Sim, o irmão mais velho conjurava matar a irmã, pois era uma pedra no sapato da empresa e planejava colocar Samanta no seu cargo . Samanta havia me falado mal de Cateto, mas isso era um despiste para ninguém desconfiar do caso que tinham.

Judite estava chocada . . . A pipoca havia terminado .Gravação 2: No lado de fora da casa, conversavam

Jarbas e Hipotenusa . A gravação dizia respeito a mim também, mas antes disso falavam sobre um plano para assassinar Alessandro . Por quê? Assim como o mordomo Jarbas já havia comentado, ele se incomodava com qualquer pessoa estranha nova na casa, e Hipotenusa tinha certeza de que o jovem namorado da mãe queria dar o golpe do baú . Diziam que eliminar o rapaz traria novamente ordem e harmonia, assim como era na época das fraldas de pano . Sobre mim, Jarbas admitiu que foi ele quem havia empurrado a escada enquanto eu trabalhava no lustre .

Em um dado momento, Hipotenusa saiu como fazia corriqueiramente, de repente . Fui averiguar e não havia nada de suspeito nisso . Hipotenusa corria para o banheiro, provavelmente com uma desconjuntura intestinal .

Gravação 3: Esta gravação revelava mais um caso . O jovem Renata e Alessandro tinham um relacionamento amoroso . Apenas isso, não planejavam matar ninguém, porém parecia ter sido a pior das notícias para Judite . Seu amado Alessandro a traía .

Havia um complô generalizado . O ar da região proporcionava encontros amorosos dos mais variados . Talvez isso explicasse as piscadelas que recebia de todos os integrantes da mansão . Ou talvez a poeira que o vento trazia, muito comum nessa época do ano. Não sei. Prefiro pensar

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que as piscadelas vinham por causa de meu charme sedutor .Perguntei o que Judite queria fazer: ligar para a polícia,

ou fazer mais pipoca? Fizemos os dois .Judite ainda estava em dúvida . O que causava suas

dores de cabeça repentinas? Era óbvio que havia algo errado na comida. Expliquei-lhe que sim, havia algo errado... no suco . Judite colocava altas doses de cachaça em seu suco, o que ocasionava suas dores . Era ela própria que estava se envenenando . Recomendei-lhe parar com a bebida e me doar todas as suas garrafas, eu daria um fim apropriado a elas.

Meu trabalho ali havia terminado . Antes de sair, Judite ainda pediu para eu arrumar o controle remoto da televisão . O controle passou a ligar todos os aparelhos da casa, menos a televisão . Quando a polícia chegou, eu já estava a caminho do meu apartamento . Voltava para minha vida solitária e levava algumas fraldas-paraquedas que recebi como pagamento de Judite Conway, a magnata das fraldas descartáveis. A senhora disse que eu faria milhões com essas fraldas . Troquei-as por um trago de pinga e um pastel no Bar Rabás .

Judite morou sozinha a partir daí . A grande empresária, que fez de tudo para dominar o mundo, estava agora solitária e sem ninguém para ter um afago . Tempos depois, recebi a informação de que ela havia sofrido um acidente na fábrica ao tropeçar numa fralda e veio a falecer no hospital . Assim como seus antepassados, Judite finalmente estava em paz.

A noite é longa, ainda cabe acender muitos charutos . Os petiscos descem bem . O café está ótimo . Passado a 91ºC, mesma temperatura do meu apartamento . O aroma é indescritível . O aroma do meu apartamento também é indescritível .

Acabo de receber um telefonema de um potencial cliente que queria descobrir qual o sentido do positivo/negativo na fórmula de Bhaskara . Recusei .

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Juanito lê no jornal sobre o curioso estudo científico dos casos cada vez mais recorrentes de atrofia cerebral nos políticos do país . Juanito acaba de fazer coisas em cima do jornal . . . parece que não gostou da matéria .

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UM CASO A MAIS DE REFLEXÕES

23 de setembro

Isso não é um caso, apenas mais reflexões.Sabe quando você abre a caixa de correio e leva

aquele enorme susto? Sim, isso acontece muito com as contas a pagar, mas agora não é o caso . Há dois meses recebi uma carta de alguém que não vejo há muitos anos . Mais precisamente desde que nasci . Para minha surpresa, meu progenitor resolveu dar as caras agora que já estou crescido e educado (muito bem educado, por sinal). Minha avó e a rua conseguiram me guiar tranquilamente ao longo da vida, apesar das enormes dificuldades. Nunca precisei do meu pai para amarrar os tênis ou jogar pedra na vidraça da vizinha (desculpe dona Rosaura); no entanto, agora ele volta provavelmente para pedir dinheiro . Minha vontade é de socar a sua cara .

Ainda não li a carta . Há dois meses a raiva me impede de abri-la e quase a dei para Juanito comer . Ele adoraria . Mas já passou tempo demais . Lê-la-ei agora mesmo . Mas primeiro um copo de gim .

Transpasso a carta aqui:“Olá, meu filho! Gostaria de lhe revelar uma coisa:

você é meu filho. Isso quer dizer que sou seu pai, enquanto não provem o contrário. Há quanto tempo não nos vemos?

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Acho que apenas alguns meses, não é? 432 meses para ser mais exato. Mas o que são 432 meses para um pai e filho que se amam? Sempre tive vontade de lhe escrever, mas sempre estive ocupado com uma coisa ou outra, como fugir de credores. Agora finalmente arrumei um tempo para lhe enviar esta carta, apesar de os credores ainda estarem atrás de mim. Bem, queria lhe explicar as razões por não estar presente em sua vida. Como bem sabe, sua mãe, minha esposa, faleceu no seu parto. Eu poderia simplesmente lhe culpar por isso, me amedrontar e viver uma vida patética e infeliz. Foi o que eu fiz. Você não tem ideia do que uma pessoa transtornada é capaz de fazer. Fui covarde e hoje me arrependo. Peço desculpas por isso, meu filho, te abandonei e o deixei para aquela velha... perdão, sua avó... e sumi no mundo. A bebida e o cigarro me dominaram (aliás, conheço umas receitas maravilhosas de drinks), e assim tive que me virar do jeito que dava. Virei cambista de ingressos do circo russo. O circo está um pouco em baixa no momento, então tive que fazer uns bicos em outros ramos, como tradutor de papagaio. Mas com muito custo pude lhe ajudar por um breve momento. Sabia que a Escola de Detetives era tudo o que você sonhava, então poupei algum dinheiro que os papagaios me pagavam e quitei algumas parcelas para você (provavelmente a velha... perdão, sua avó, não lhe disse nada disso). Mas o caso é que já estou com uma idade avançada, meu filho. Sei que a velha... perdão, sua avó, já se foi, e talvez você não tenha alguém para compartilhar suas angústias. Eu logo também vou, não tenho muito tempo, talvez um mês, e gostaria de pedir desculpas por esses 432 meses perdidos. Me perdoe meu querido filho. Com amor, seu pai, Nei Pitoresco.

P.S.: Deixarei tudo o que tenho para você, como um ato de amor de pai.

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P.S.2: Infelizmente não tenho muita coisa, apenas um cadeado fechado sem chave. Mas, mesmo assim, espero que faça bom proveito.”

No fim, acabo entendendo-o. Quantas vezes fiz boba-gens por causa do medo que sentia . A mente entra num loop de incongruências, e você acaba tomando o caminho mais fácil para fugir . Meu pai fugiu para um lugar longe demais . Apesar da distância e da culpa que lhe dava, se não fosse por ele, talvez eu não estivesse aqui. Meu pai financiou boa parte da Escola de Detetives, sem que aquela velha . . . perdão, minha avó me contasse. Apesar de tudo, fico feliz por isso.

Já se passaram dois meses e provavelmente ele não está mais aqui. Não deixou endereço, talvez por receio da minha reação . Quiçá ele gostasse de saber que me sinto mais leve, apesar de ainda não ter ido ao banheiro hoje . Porém, é um leve espiritual, de alma . A raiva se foi, a amargura e a culpa também .

Agora pelo menos tenho a herança . E não vejo a hora de poder usar o cadeado fechado sem chave . Ele era do meu pai .

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UM CASO DE MOSAICOS

10 de novembro

CASO 1,618INCIDENTE: O mistério dos mosaicos que aparecem

repentinamenteRECLAMANTE: Comunidade Pau-Seco

Ontem tive bons momentos com os rapazes no Clube de Jazz, mesmo sendo quinta-feira . Um dos rapazes teve uma briga feia com Jacó do argumento por não concordar com as novas taxas fiscais sobre o queijo parmesão.

“E agora? Minha macarronada terá menos queijo? Absurdo!”

“São medidas importantes para o país controlar a inflação.”

Aplicou um golpe carícia dos deuses, que nada mais é que um mata- leão ao quadrado, muito bem ensinado por mim . Jacó do argumento tonteou e caiu sem qualquer argumento .

O resto da noite ocorreu tranquilamente com muito jazz, algumas doses de piña colada e assuntos que variavam entre abduções extraterrestres e se Charlie Chaplin era um extraterrestre. Acreditávamos nas duas possibilidades. Jacó do argumento também .

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Agora, estou finalmente em casa. São 4h44min. Jacó do argumento me acompanhou até o apartamento e disse que eu não deveria deixar papéis em cima do fogão, com o argumento de que qualquer descuido poderiam pegar fogo e causar uma tragédia no prédio, recomendou-me guardá- -los na geladeira . Ensaiei uma carícia dos deuses, e Jacó concordou que, em cima do fogão, era o lugar perfeito para se guardar documentos . Ainda discordamos se a essa hora dávamos boa noite ou bom dia .

“Se você chega é bom dia . Se vai embora é boa noite .”“Pois vejo o contrário . . .”Jacó do argumento foi embora dando apenas tchau .Eu poderia deitar e ficar na cama pensando em Sofia,

mas me motivei a escrever no diário. O assunto extraterrestre me lembrou de um caso interessante que ocorreu há alguns meses, e eu não poderia dormir sem rememorá-lo .

A comunidade Pau-Seco me chamou em uma manhã fria, onde a geada cobria os campos, e o sorveteiro fazia promoção, para verificar o aparecimento recente de misteriosos geoglifos em um campo de areia da região . Saí com três chapéus Trilby ao mesmo tempo e suspensórios de pelúcia para aguentar o frio . Não consegui tomar café da manhã e tive a ideia de passar no Supermercado Preços Ótimos para comprar pão de queijo . Percebi que os Supermercados Preços Ótimos são os mais caros da cidade . Tomei só água .

Chegando lá, fui recebido pelo senhor Nestor Armando Ferreira, uma espécie de síndico da comunidade e muito bem conhecido como Nestor Lopes Armando Ferreira de Andrade . Senhor Ferreira, ou Andrade, disse que os moradores estavam aflitos e não entendiam o que poderiam significar aquelas marcas que estavam aparecendo no chão. A prefeitura, a Polícia Federal e responsáveis pela Área 51 já haviam rejeitado o caso, e Nestor disse que eu era a

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última alternativa, pois não haviam achado nada melhor . Fico lisonjeado pela lembrança .

Alguns chamavam aquilo de maldição; uns de mensagem Divina; e outros, apenas de Maria Clara . Esses geoglifos começaram a surgir há algumas semanas e apareciam da noite para o dia com inscrições e formatos que ninguém entendia . Já li muito sobre os Crop Circles em plantações inglesas feitos por extraterrestres, segundo especialistas (meu porteiro, seu José) e é difícil não acreditar (Seu José é um excelente profissional). Claro que poderia ser real, ainda mais aquele Crop Circle com as inscrições #TasteTheFeeling que diziam ser de Sirius . Entretanto, eu estava cético até vê-lo de fato .

Enquanto íamos à cena do acontecimento, Nestor me apresentava aos cidadãos que tinham moradia na localidade . Dona Márcia, que tinha uma afta de estimação chamada Pris-cila; o velho Aristídes, que tinha um vício ferrenho de escovar os dentes . Não escovava apenas uma vez por dia, mas por qualquer motivo: depois das refeições, após um drink e principalmente após o resultado da loteria esportiva . Havia também os jovens . Nestor alertou-me sobre Dinho, que invadia casas alheias à noite para redecorá-las . Também morava lá Jucileu, que uma vez ficou com tanta vergonha que cavou um buraco na terra para se esconder. Levou exatos 100 dias e, quando terminou, a vergonha já havia passado. Nestor falou para não confiar em Ricardo, pois era abstêmio e não reciclava o lixo. E, como toda comunidade, também havia um bêbado, Miguel . E aquele que era meio-bêbado, Gabriel, só bebia em horas pares . Hora ou outra apareciam de olho roxo, provavelmente por brigas nos vilarejos vizinhos. Para finalizar, também morava lá Fernando Fernandes, amigo de Rodrigo Rodrigues, que era primo de Bernardo Bernardes e conhecido de Ana Ânus .

A ficha da comunidade estava completa, mas o caso não . Chegamos ao campo, e a decepção tomou conta de

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mim, o geoglifo estava lá, impotente e perfeito, mas meu sapato estava cheio de areia .

Realmente era impressionante . O desenho estava em forma de círculo e tinha um raio de quase 5 metros . Os desenhos ao centro tinham ainda pedaços de vidro e madeira em forma de um mosaico circular . Possuíam uma simetria perfeita, porém era algo indecifrável, impossível de ter sido obra de seres humanos . Talvez o anúncio de uma civilização desconhecida . O mistério pairava no ar . O medo também . Nestor tremia, e eu dava risadas histéricas devido ao nervosismo . Engasguei . Nestor deu tapinhas leves em minhas costas e me acompanhou no riso . Caímos na gargalhada . Não estávamos felizes .

Iniciei uma análise precisa da marca. Verifiquei minuciosamente com a lupa extravisualizadora e tirei medidas com uma trena eletrônica a gás que eu carregava sempre comigo . Algumas medidas do interior do desenho (em centímetros) davam uma importante pista:

1, 1, 2, 3, 5, 8, 13, 21

Para um leigo, essas medidas poderiam não ter importância alguma, porém para uma pessoa estudada, que frequentou a Escola de Detetives, esses números tinham relevância: dispostos na ordem crescente, formavam uma das mais misteriosas sequências já descobertas .

“Fibonacci .”“Fibonacci reside na comunidade ao lado .”“Impressionante . . . é a Sequência de Fibonacci .”“Farei imediatamente uma reclamatória .”Eu estava sem ação . Um ser muito inteligente e de

capacidades extraordinárias estava tentando dizer algo através desses desenhos e utilizou a Sequência de Fibonacci para a comunicação .

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Essa sequência foi muito bem citada por Leonardo Fibonacci, um matemático italiano da Idade Média, conhecido também como “Léo das réguas” . Fibonacci tinha alergia a números romanos; assim, introduziu os números arábicos à Europa, causando uma grande revolução matemática na época, inclusive nas liquidações de lojas de varejo. Esses números estão simplesmente em tudo, na natureza, na fauna, na flora, na arte. Alguns exemplos são conchas, flores de girassol, proporção de fêmeas e machos em uma colmeia de abelhas e principalmente em porpetones de carne moída . Ao se dividir qualquer número pelo anterior, chega-se a um número chamado de proporção áurea, ou número divino . Mais precisamente 1,618 . Até parece que é algo orquestrado por uma inteligência superior e pincelado em nosso mundo sutilmente . Inclusive Juanito obedece a essa proporção, dando passos pausados seguindo a sequência de Fibonacci antes de encontrar um local adequado para a evacuação . Sempre achei que fosse TOC, mas agora percebo que não .

Voltamos à comunidade Pau-Seco . Sentamos em um bar, eu precisava de um momento para respirar e molhar o gogó . Nestor Lopes Armando Ferreira de Andrade insistia que aquilo era trabalho para o governo e que não poderíamos lutar contra seres que não conhecíamos sozinhos, a não ser que Jucileu nos ajudasse a cavar um buraco para nos escondermos . O velho Aristides queria transformar aquele areal em ponto turístico, disse que Maria Clara era um orgulho para a localidade . Após dar sua opinião, foi escovar os dentes . Ricardo disse que aquilo era obra de simples seres humanos mesmo. Ninguém confiava em Ricardo e muito menos em sua opinião . Naquela manhã, ele havia jogado o lixo orgânico no latão do lixo seco. Sua atitude era medonha . . . que homem desprezível . No outro lado do bar, Miguel e Gabriel jogavam bola-de-gude e não pareciam interessados em participar da conversa . Resolvi

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me aproximar para trocar uma ideia com o bêbado e o semi bêbado .

“Todos estão preocupados, menos vocês .”“Temos compromisso com a bola-de-gude sempre às

18h em ponto .”“Não ouviram falar do geoglifo?”“Ouvimos, prefiro o meu malpassado, por favor!”“E esse olho roxo onde conseguiu?”“Ganhei num sorteio hahahaha!!!”Muito engraçadinho . Sinceramente aqueles dois não

me levariam a lugar algum . Assim como Ricardo, não seriam de valia alguma. Porém, Ricardo não reciclava o lixo. Se eu pudesse lhe partia a cara .

A única saída que eu via ali era ficar no vilarejo, aguardar a noite toda e tentar descobrir o mistério dos geoglifos na areia . Faríamos uma vigília no areal . Não era o programa mais empolgante para a madrugada, mas pelo menos não cobravam ingresso . Chamei Nestor, pegamos duas cadeiras reclináveis, pastéis de palmito, brigadeiros para a sobremesa e os óculos 3D .

“Precisamos de algo para não ficarmos com frio.”“Tenho cobertores .”“Não! Aqui . . . Cabernet Sauvignon .”A temperatura diminuía a 0,24ºC a cada 13 minutos, e

eu previa uma noite congelante . Não tínhamos certeza se os visitantes extraterrestres apareceriam.

“Independente de aparecerem ou não, vamos apro-veitar mesmo assim, como uma festa do pijama”, disse Nestor .

Nestor vestiu seu pijama e nos encaminhamos para o areal . Sentamo-nos no interior, onde só se sentia areia por todos os lados, inclusive dentro das cuecas . Não tínhamos o que fazer a não ser esperar nervosos pelo misterioso evento .

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A primeira hora se passou e algo desagradável acon-teceu: os pastéis de palmito haviam terminado .

A segunda e terceira horas só serviram para dar fim ao brigadeiro e ao vinho . Logo depois, foi a vez de o charuto acabar . Eu já me sentia entediado . Sem mantimentos, eu não tinha mais vontade de continuar ali, mas Nestor insistiu para que ficássemos mais um pouco, prometendo pagar uma rodada extra de pastéis assim que retornássemos. Que tipo de extraterrestre faria geoglifos naquela hora da madrugada tendo que levantar cedo de manhã para trabalhar? Nenhum .

Meu traseiro já dormia, recomendando o resto do meu corpo a fazer o mesmo . Levantei-me, mesmo com os protestos de Nestor, e já estava dando meia volta para retornar à comunidade, quando escutamos algo . . .

Ao longe, ouviu-se o barulho de vidro se quebrando . Voltei minha atenção ao areal. A atmosfera foi ficando estranha . Nestor colocou os óculos 3D, mas de nada adiantou . A escuridão dominava o ambiente e, naquele momento, eu já não sabia se minha cueca cheia de areia continuava limpa .

Estava acontecendo . . .Nestor estava tão perplexo quanto eu. A areia se

movia de cima para baixo como mágica. Pedaços de madeira flutuavam no ar. A escuridão nos fazia perder a noção do que estava acontecendo, e só enxergávamos penumbra. Estava realmente acontecendo . Aquilo era tão real quanto a província Cisplatina. Deveríamos nos aproximar.

Claro que o medo nos dominava . O medo do desconhecido e de não saber o que aconteceria . Eram mesmo extraterrestres? Monstros? Ou garotas alienígenas nuas de peito grande? Eu estava confuso . . . Porém, toda a comunidade apostava suas fichas em mim. Só eu e Nestor poderíamos voltar com alguma resposta . Eu não poderia desistir, deveria encará-los como todos os desafios que enfrentei em toda a minha vida . Eu nunca havia conversado

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com extraterrestres e tinha o maior medo de que me pedissem dinheiro emprestado .

À medida que caminhávamos, a cena ia ficando mais nítida . O momento era tenso . Dávamos passos curtos, eu só pensava o quanto sentiriam minha falta no Clube de Jazz se algo acontecesse . Eu era o cliente mais querido . Nós nos aproximávamos. Cada vez mais perto, cada vez mais nítido. Tudo estava se esclarecendo . O círculo estava lá sendo formado . Areia voava para todos os lados e . . . dois bêbados brigavam na nossa frente .

Não posso negar que fiquei surpreso. Miguel e Gabriel trocavam socos no areal, quebrando garrafas e cadeiras dentro de um círculo perfeito .

Não estávamos acreditando . . .“Estes bêbados são os extraterrestres?”“São muito parecidos com ETs, mas não são .”O caso era mais simples que o imaginado . Miguel e

Gabriel sempre exageravam na bebida durante o jogo de bola-de-gude, saíam por aí, discutiam, e a noite acabava em briga . Assim como no jogo, faziam um círculo e se soqueavam para resolver suas diferenças, que ainda incluía quebradeira de garrafas e cadeiras, o que explicava o vidro e a madeira. A minha única pergunta era o porquê da presença dos números de Fibonacci no círculo . A única resposta plausível que eu tinha era o “acaso” da sincronia perfeita, apenas a sincronia perfeita da natureza fazendo o seu trabalho . A mesma que rege o mundo e coloca seus números em absolutamente tudo e, claro, em dois bêbados brigando .

No fim foi Ricardo que havia dado a opinião mais sensata de que aquilo foi feito por humanos . Mas, mesmo assim, Ricardo continuou não sendo respeitado na comunidade. Ricardo não reciclava o lixo.

A lenda do vilarejo se perpetuou . Pessoas de todo o mundo vêm visitá-lo e acreditam em toda a história de

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extraterrestres que Nestor conta, menos em Ricardo. Ninguém acredita em Ricardo .

Nem tudo na vida é culpa de extraterrestres, apenas quando eu perco no jogo de canastra, daí sim a culpa é deles .

São 5h30min e já está tarde . . . ou cedo? Em relação a essa hora, dizemos que está cedo ou tarde? Dúvida .

Jacó do argumento acaba de bater na minha porta . Disse que está muito preocupado com meu fogão e não conseguiria dormir se não fizesse algo. Apliquei-lhe uma carícia dos deuses e agora dorme tranquilamente envolvendo em seus braços Juanito . A razão das grandezas entre o braço de Jacó e Juanito é 1,618 .

Prefiro não ficar me alongando e deixar meu boa noite . . . ou bom dia?

Ah, sei lá . . . Tchau!

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DOIS CASOS DE FIM DE ANO

21 de dezembro

CASO 9-8-7-6-5-4-3-2FATO: Cooperação conjunta com a Polícia Municipal .

Eu fui roubado .Sim, o que mais era valioso para mim me foi tirado

como um filho das entranhas da mãe. Minha máquina de escrever Remington desapareceu como um passe de mágica do meu escritório, sem deixar quaisquer vestígios. Tulinho disse que talvez ela tenha se cansado e saído para tomar um sorvete, mas máquinas de escrever não gostam de sorvete . Tive de começar a escrever com lápis e pena, inclusive neste diário . Onde já se viu em pleno século 21 ter de escrever à mão? Uma máquina de escrever faz tremenda falta .

Eu estava desolado .Esse fim de ano tem sido particularmente difícil para

mim. Primeiro porque devemos fingir uma felicidade e solidariedade pérfidas que a sociedade impõe nessas datas, sendo que, no resto do ano, a mesma sociedade impõe que devemos passar por cima de nossos oponentes para sobreviver ao mundo . Essa nossa alienação é algo “normal”, mas se você começa a questionar qual o sentido de tudo isso, talvez uma pílula, uma vez ao dia, resolva seu “problema” .

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Segundo por que é dezembro. Mais uma vez em que o fim de ano cai em dezembro .

Porém, sempre temos a esperança de que o Papai Noel escolha sua casa para deixar presentes ao lado da lareira e do pinheirinho enfeitado . Eu não tenho lareira, muito menos pinheirinho enfeitado . Meu apartamento continua escuro e úmido, e as únicas luzes de Natal que piscam são as do semáforo que refletem da rua abaixo.

Em dezembro todos saem de férias . Aproveitei para dispensar Tulinho de seus serviços até o próximo ano para ficar com sua avó (espero que Juanito pare de comer moedas até lá). Dei-lhe alguns charutos de boa qualidade para ele poder aguentar essas datas horríveis que estão por vir .

Em dezembro, sempre me dói o ciático .Juanito também parece odiar fins de ano. Já atacou

quatorze papais-noéis até agora na rua, inclusive esfacelou o saco de um, dias atrás . “Descobrimos”, então, que o velhinho carregava cocaína . Dizia que era farinha para fazer biscoitos para as crianças . Imobilizei-o e foi preso prontamente, assim como espancado pelos policiais . Dias depois, descobri que o conteúdo do saco era realmente farinha .

Os rapazes também viajaram com suas famílias . Eu pensava em férias, mas eu tinha um caso . O caso . Precisava recuperar minha Remington urgentemente . Enfurnei-me no escritório . Juanito e a música Noir me faziam companhia . De vez em quando, Gilvana, a vizinha do outro lado da rua, trazia bolinhos de polvilho . Gilvana sabia como me agradar . Era boa menina, não tinha o charme de Sofia, mas seus trinta e três gatos a faziam ter um encanto particular .

No dia em que minha máquina desapareceu (terça- -feira), tudo estava perfeitamente no lugar (boletos não pagos na mesa, livros espalhados pelo chão e poeira nos móveis). Nenhuma pista. Eu não sabia em que me ater. Verifiquei as janelas e a porta. Todas devidamente vedadas,

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tirando os buracos dos ratos . No corredor nada de anormal . Na escrivaninha também . O café passado da semana anterior nem fora tocado . Muitos papéis pelo aposento, porém um deles me chamou a atenção . Um papel com letras que não eram minha, nem de Juanito . A primeira pista: um bilhete escrito,

“Sua máquina está comigo.” A indignação tomou conta de mim . Tremi . O bilhete

caiu de minha mão, e Juanito se antecipou em comê-lo . Quem estaria brincando comigo? Alguém poderia estar querendo se vingar? Este ano desvendei muitos mistérios e fiz alguns inimigos. Síndicas de cortiços, assassinos de bilhetes motivacionais, poetas, entre outros poderiam estar querendo a minha cabeça e poderiam fazer qualquer coisa para me ver mal. Eu ainda desconfiava do pasteleiro da esquina, pelos 8 meses de pastéis que eu devia . Eu já estava contando as únicas moedas que tinha para pagar o resgate . Mas como encontrar o sequestrador de máquinas de escrever com apenas um bilhete como pista?

Os dias iam passando . Já era quarta e depois quinta . Cancelei o jogo de críquete da sexta-feira e a lavagem dos suspensórios . Passava os dias sentado em meu escritório tentando desvendar esse bilhete . Eu só pensava na Remington .

Naquela sexta, adentrou no escritório um senhor de meia idade . Não o reconheci no primeiro momento, mas depois vi que ele era policial, pelo logo costurado na calça, jaqueta, boina e botas da Polícia Municipal . O que um policial fazia aqui?

“Quer beber algo?”“Nunca gostei de quem bebe .”“Um charuto?”“Não suporto .”“Pizza?”“Odeio gordura saturada .”

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Ele não conhecia o lado bom da vida . Veio-me à memória e reconheci aquele senhor dos jornais . Era famoso na cidade por seus serviços prestados . O policial Ribeiro já participou das mais variadas investigações da polícia e era visto como um profissional ético e exemplar. Prendia desde ladrões de galinhas a políticos corruptos, e vice- -versa, não necessariamente nessa ordem, dependendo da propina . Seguia a linha de policial durão, via-se isso pelo tamanho do bigode, uma polegada e meia . O meu bigode ficava acanhado ao lado do dele. Além disso, era sedoso e brilhante . Mantinha-o bem penteado e aparado e percebia-se que passava a loção cremosa contra raios ultravioleta .

Era um homem muito elogiado na comunidade, com grandes feitos em seu currículo . Suportou a epidemia de soluços de 79 e foi o responsável pela introdução de solos de guitarra em cânticos religiosos da igreja . Era um homem à frente do seu tempo. Entretanto, no fim de ano, ele se aposentaria e tinha ainda um último caso para resolver .

Ribeiro contou-me que conhecia a minha fama de detetive fanfarrão e detestava-me por isso, mas era o que ele precisava no momento, precisava de minha ajuda para um caso, já que o leiteiro havia recusado .

“O comediante mais famoso da cidade foi assassinado .”“Ele era tão ruim assim?”“Sim . . . mas não é por isso .”A esposa do comediante disse que um dia saiu para

nadar e não retornou no horário marcado . Nem uma hora depois . Muito menos um dia após . E nem depois de três dias . Ele nunca se atrasava mais de três dias . Tinha certeza de que o haviam assassinado .

“Qual a certeza que ele esteja morto, se não há corpo?”O caso era mais complexo do que eu imaginava.

Segundo a esposa, o comediante estava recebendo constantes insultos por telefone do tipo: “Vou matá-lo” ou, o mais grave,

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“a entrega sai por 49,99” . Inclusive disse que um dia foi atacado, no centro, por um homem com uma baguete, mas conseguiu fugir dando mordiscadas até terminar o pão, e ainda reclamou da falta de manteiga . Tudo isso porque ele pretendia, em breve, tornar pública uma acusação contra a prefeitura de desvios de verba da cultura . Inclusive o prefeito poderia estar envolvido .

Grave! Nem todos têm coragem de encarar os pode-rosos. E quem encara dificilmente sai vivo.

Eu sempre defendi os mais fracos, e não era agora que fugiria . Estamos acostumados a ver os mais fortes vencerem sem piedade . Digo isso por ver tantas vezes os carteiros sofrerem nas mãos dos cães . Era óbvio que o prefeito poderia ter feito algo contra o comediante, que era um lutador da classe artística . Se eu o encontrasse naquela hora, daria umas boas bofetadas .

O caso vinha se arrastando, e o policial já estava desistindo . Seus superiores não o apoiavam, até cancelaram seu serviço de buffet. Ele não conseguia mandados, nem intimações. Já tratavam Ribeiro como um velho aposentado, e o caso havia sido encerrado . Como bom detetive particular, Ribeiro queria minha opinião .

Era interessante, mas eu não podia negar que minha única preocupação era a máquina de escrever . Eu não poderia pensar em outra coisa . Era como se estivesse a traindo . Mas por que não unir o útil ao agradável?

“Eu o ajudo se você me ajuda .”“O quê?”Pedi para que o policial me ajudasse na minha inves-

tigação particular, que eu o ajudaria na dele . Precisei de 8 horas para convencê-lo de que seria uma boa ideia . Mas, por fim, um pouco contrariado, Ribeiro aceitou me auxiliar a encontrar minha Remington . Tínhamos dois casos de extrema dificuldade em mãos, e um ajudaria o outro em suas respectivas resoluções.

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Apesar de não termos pistas, o primeiro a fazer era recolher os depoimentos dos suspeitos . No momento, havíamos três: o prefeito, o empresário e, claro, a mulher do comediante . Iríamos sem alarde, para não criar rebuliço na imprensa . Havia um jornaleco de quinta na cidade, chamado “Jornaleco de Quinta”, que adorava um sensacionalismo .

De pronto saímos para encontrar a mulher .Recebeu-nos em seu apartamento duplex a bela

jovem de 1,73m, cabelos longos louros e olhos castanhos, de arrebatar qualquer detetive particular formado na Escola de Detetives . Tinha os lábios inchados . Supus que tivesse feito um procedimento estético, mas minha opinião final é de que havia beijado um porco espinho. Ela estava chorosa (2mm por minuto). Abaixava a cabeça e balbuciava uma reza com frequência . Disse que estava muito brava com seu marido, pois morreu sem avisar . Disse ainda que ele queria largar essa vida insana da comédia para abrir um negócio revolucionário, que mudaria a vida e o jeito de pensar das pessoas: uma agência de viagens .

“Havia desvios de dinheiro na prefeitura . Ele queria expor tudo isso para a imprensa.”

“A senhora sabe o valor desviado?”“O valor deste duplex, mais a champagne .”“Entendo .”“Por que isso acontece comigo? Perdi outro membro

da família recentemente, meu papagaio .”“Sentimos muito .”“E se ele levou um tiro?”“O papagaio?”“Meu marido . . .”“Um ponto positivo é que um tiro melhora a circulação

sanguínea .”“(Choro)”

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“Pense pelo lado bom. Morto ele não ficará sabendo do aumento dos juros .”

“(Mais choro)”A mulher baixou a cabeça e rezou palavras não

identificáveis. Não parecia culpada, mas era a única beneficiada da morte do comediante. Ficou com toda a sua fortuna, e sua reação (limpando as lágrimas em lencinhos de seda e tomando champagne) parecia exagerada. Seu único objetivo ali era chorar e entrar em desespero . Talvez para desviar a atenção . Depois da nossa conversa, foi fazer um sanduíche de Rivotril, e nós partimos sem nenhuma pergunta respondida .

Como de costume, eu sempre ia, no fim do expediente, ao bar 24h e convidei meu parceiro Ribeiro para se juntar a mim .

“Vamos nos apressar que o bar fecha às 21h .”“Que sorte eu tenho de trabalhar com um bêbado .”“Pois convide ele também .”O bar ficou para outra oportunidade. Aproveitamos o

resto do dia para conversar com o empresário do comediante, Gonçalves .

Gonçalves tinha um escritório na Avenida Principal e era o homem da trapaça e dono da Trapaçaria Gonçalves LTDA . Também conhecido como faca no bucho, Gonçalves, além de dar golpes em senhoras da terceira idade, representava apenas um grupo artístico, comediantes e pequenos delinquentes que roubavam lojinhas de conveniência e queriam expandir seu negócio. Ribeiro já chegou pressionando, como um bom policial faz .

“O senhor sabe que eu poderia lhe prender agora mesmo .”

“Eu não sei de nada .”“A polícia sabe .”“Só sei que nada sei .”

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“Mas estamos aqui por outra questão .”“Também sei nada sobre as drogas .”“Que drogas? O comediante . . . quero saber do come-

diante .”“Eu não sei .”“Quanto é 3 + 3?”“Eu nada sei .”Apesar de ser um homem com negócios ilícitos,

aparentava que Gonçalves sabia de nada . Apenas contou que viu o comediante pela última vez há 3 semanas após um show .

Ribeiro não estava satisfeito . Não havíamos provas e nem rastros do comediante . Marcamos para nos encontrarmos no Clube do Remo na manhã seguinte, onde o prefeito treinava todas as quartas-feiras .

Eu não havia esquecido da minha Remington . Ribeiro deu a desculpa que tínhamos de acordar cedo e prometera me ajudar no caso assim que falássemos com o prefeito . Fui para o escritório e me deparei com outro bilhete na escrivaninha:

“Sou sua admiradora secreta. Sua máquina está bem cuidada.”

Que absurdo . Agora eu já sabia que era uma mulher e que ela estava fazendo joguinho comigo . Claro que era honroso ter uma admiradora secreta, mas estava com minha máquina de escrever . Meu sentimento era um misto de raiva e felicidade . Eu esbravejava e sorria ao mesmo tempo . Estava confuso . Comi uns bolinhos de polvilho de Gilvana e fui dormir .

Às quartas-feiras, sempre refresca o tempo .O prefeito praticava remo por causa de seu recente

problema de coração . Foi descoberto um cisto no órgão e, depois da tentativa frustrada de expulsá-lo por Impeachment, a única saída foi a cirurgia . A operação durou 48 horas e foi tão cansativa que o médico morreu, pois seu coração parou .

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Mas o prefeito sobreviveu, e diziam que seu coração era de pedra . E agora desviava dinheiro da cultura como se fosse nada . Ele tinha todos os motivos para matar o comediante . Eu não gostava nada dele . Ainda mais porque ele era freudiano, e eu, junguiano . Minha vontade era de pegar um remo e dar leves remadas em seu traseiro . Era o que eu faria, mas o policial Ribeiro me convenceu do contrário . Deveríamos conversar como dois detetives civilizados e, se nada desse certo, partiríamos para a porrada .

No entanto, o prefeito não estava lá . Como todo bom político, parece que sabia a hora e o local certo para não aparecer . Recomendei a Ribeiro discutirmos o assunto no Bar 24h, mas mais uma vez ele recusou . Ribeiro estava desgostoso . Não havia provas, e os depoimentos não serviam nem para uma intimação . O policial estava se aposentando, e seu último caso era um fracasso . Sem rumo, ele queria encerrar o caso . Tentei convencê-lo do contrário, dizendo que sempre no fim há uma recompensa (sobremesa), mas Ribeiro não gostava de doces .

Sem indícios para continuar a investigação, fomos à delegacia arquivar o caso .

“Agradeço por seus serviços detetive . Você não serviu para nada .”

“Eu é que agradeço .”“Você não leva nada a sério .”“Você ainda não viu os demônios da minha mente .”“Você precisa rezar mais .”“ . . . Rezar . . .”“Aposto que não sabe . . .”“Sim . . . rezar . . .”Lembrei do modo estranho como a mulher do come-

diante rezava . Suspeitei de algo .“Não feche o caso, precisamos voltar .”“Não quero ir ao Bar 24h .”

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Convenci o policial a me acompanhar . Precisávamos voltar ao duplex do comediante e falar com a mulher novamente . Minhas suspeitas estavam prestes a serem desvendadas .

Pegamos o carro da polícia, modelo do ano (de 30 anos atrás) e partimos para o apartamento do comediante. A mulher nos atendeu com uma cara de quem havia chupado um cano de PVC . Seus lábios estavam ainda maiores do que antes . Ela não entendeu o motivo de estarmos ali mais uma vez . . . E começou a rezar .

“Para quem você reza?”Ela parecia confusa .“Como assim para quem? Ahm . . . para o Judeu?”“Você sabia que Árvore Maria é Ave Maria?”“O que importa é a intenção .”“Ou a intenção é falar com seu marido, o comediante?”“Ele está morto!”“Se eu disser que não?”O policial Ribeiro estava perplexo. Eu me antecipei,

parti para cima da mulher e tirei o ponto dos seus ouvidos . Ela rezava para o ressuscitado . Ressuscitado não, porque nunca morreu. A mulher passava informações ao comediante via ponto de comunicação eletrônico . Imobilizei-a, Ribeiro deu voz de prisão . Minhas suspeitas estavam corretas . A mulher participava do esquema de des-vios de dinheiro junto com o morto, agora vivo, comediante .

“Onde ele está?”Ela nem precisou responder . O comediante saiu de trás

das cortinas com uma arma calibre 38 em mãos apontada para nós . Eu preferiria que ele estivesse apontando uma baguete .

“Não se pode mais desviar dinheiro em paz nesta cidade?”

O comediante, que não estava nada engraçado, confessou que desviava toda a verba da cultura para si e

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culpou o governo de toda a desgraça que acontecia na classe artística. Forjou sua morte para ninguém desconfiar e ficava por dias escondido atrás das cortinas para não levantar suspeitas de que estava vivo .

Ribeiro não se intimidou e deu voz de prisão mais uma vez . O comediante estava irritado, não cederia fácil . Tentamos de todas as maneiras convencê-lo a se entregar, inclusive oferecendo filé malpassado ao molho de funghi e gorgonzola (ninguém resiste a um filé malpassado ao molho de funghi e gorgonzola), mas nada o fazia desistir.

A mulher gritava para atirar, o policial gritava para não atirar, eu gritava pela minha mãe .

Quando todas as opções de convencimento haviam se esgotado, policial Ribeiro, numa agilidade incrível, tirou o seu revólver da cintura e atirou .

Infelizmente o comediante foi mais rápido . Acertou Ribeiro . O policial caiu . O comediante, assus-

tado, jogou sua arma no chão. Essa foi a deixa para eu agir. Eu não tinha revólver para atirar, então peguei um vaso na mesinha de centro e joguei na cabeça do homem, que caiu desmaiado . A mulher botou as mãos no rosto apavorada .

“Meu vaso Chinês!”Fui atrás da mulher e, com os fios da toalha de mesa

de seda, pude amarrá-la e imobilizá-la .“Minha toalha de seda!”Tropecei e derrubei uma garrafa que se quebrou no

chão .“Minha champagne!”Não era seu dia de sorte .Agora eu tinha de acudir Ribeiro . Havia sangue . Ele

estava no chão desacordado . Dei tapas no rosto para fazê- -lo reagir . Sem resposta, tentei fazer respiração boca a boca . Recebi um soco como resposta . De qualquer maneira, deu certo . O meu método de respiração “boca a boca Príncipe

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Guilherme Bianchini

Encantado” que aprendi na Escola de Detetives era infalível . O velho policial acordou e parecia bem, mas ainda fraco . O tiro havia atingido o braço .

“Eu sempre quis encerrar minha carreira como num filme clichê norte- americano, mas sem a parte que eu morro .”

“Um ponto positivo é que um tiro melhora a circula-ção sanguínea .”

O reforço policial chegou logo em seguida, e o come-diante e sua mulher foram presos .

“Aquela oferta do filé ainda está de pé?”Agora era tarde .O policial Ribeiro foi medicado e logo estava melhor .

A bala passou de raspão . Demos nossos depoimentos e fomos liberados . Em seguida, o prefeito apareceu para nos felicitar pela bravura . Seguiu o protocolo meio a contragosto e logo foi embora . Ele não era culpado de nada, mas eu ainda tinha vontade de dar umas remadas em seu traseiro .

Acompanhei Ribeiro até o carro . Eu tinha mais um caso a resolver, o sequestro da minha máquina de escrever Remington . Ribeiro estava ferido, e eu agora deveria seguir meu caminho sozinho .

“Sem você meu final de ano seria um desastre.”“O meu será mesmo assim .”“Não diga isso, temos mais um caso a resolver .”“Temos?”“Positivo! Mas antes daremos uma passada no Bar

24h para tomar um drink .”“Já fechou .”Não era problema, Ribeiro me acompanhou até o

escritório . Aqui eu tenho as mais variadas bebidas que um escritório de detetive deve ter para o horário de expediente.

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Diário De um Detetive

Era bom ter o policial Ribeiro comigo para desven-dar o mistério da máquina de escrever e da admiradora secreta . Fazíamos uma dupla e tanto . Mas, para a minha surpresa, quando abri a porta do escritório a Remington estava lá . Como? Um grande mistério . Parecia que nunca tinha saído de cima da mesinha . Estava intacta, um pouco suja de farinha de polvilho e havia um bilhete em cima:

“O meu amor é muito grande para lhe fazer sofrer, aqui está sua Remington.”

Nunca em toda a minha carreira profissional como detetive particular um caso se resolveu sozinho . Eu estava radiante .

Sentamo-nos ao redor da escrivaninha e servi um Scotch 18 anos sem gelo . Ribeiro se mostrou um homem alegre e gentil fora do ambiente de trabalho. Gilvana trouxe bolinhos . Ribeiro cochichou .

“Você tem de ser muito idiota para não saber quem roubou sua máquina de escrever .”

“Talvez seja melhor assim .”Convidei Gilvana para se juntar a nós .A porta se abriu e, para minha surpresa, Tulinho

apareceu com um sorriso no rosto . Disse que o leite coalhado da sua avó não era bom e sentia falta do leite achocolatado que só eu sabia fazer .

A Remington deu lugar na mesa para as comidas e bebidas, e nos sentamos ao redor .

Todos temos nossos dias de luz e escuridão, ninguém foge a isso. O fim de ano faz transbordar esses sentimentos. Mas também é verdade que nós mesmos que fizemos crescer o que alimentamos, seja ódio ou alegria . Dominar a mente e buscar o equilíbrio não é uma tarefa fácil e, se fosse diferente, não teria a menor graça . Gilvana, Ribeiro, Tulinho, Juanito e eu estamos aqui, comendo, bebendo e rindo, como numa reunião de família em um fim de ano sem solidão. Hoje estamos bem . E amanhã? Teremos novas batalhas .

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