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1 Antonio Carlos Silva Benvindo Universidade Federal de Minas Gerais COLETIVO SEMIFUSA: práticas sociais e a relação com a cidade RESUMO: Os coletivos culturais se desenvolveram nos últimos anos com contribuição de algumas mudanças, como os avanços tecnológicos e as Leis de Incentivo estabelecidas pelo Ministro da Cultura Gilberto Gil, em 2003.Tais mudanças contribuiram para que os grupos alterassem suas relações com a cidade, reconfigurando também as práticas culturais e sociais dos indivíduos, através de dinâmicas comunicativas nas quais se relacionam coletivamente em busca de dialogar a respeito dos problemas que os setores administrativos não conseguem solucionar, ou mesmo dar a essa instancia de poder as soluções viáveis para as demandas públicas. Assim, através de práticas mobilizadoras, o Coletivo Semifusa se destaca ao propor discussões relevantes para a localidade na qual estão inseridos, trazendo para o debate público questões do interesse de todos, articulado com as novas maneiras de produzir cultura e consequentemente a política. PALAVRAS-CHAVE: Coletivos culturais; Fora do Eixo; Práticas comunicativas mobilizadoras; Coletivo Semifusa; Debate público.

Coletivo semifusa práticas sociais e a relação com a cidade

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Page 1: Coletivo semifusa práticas sociais e a relação com a cidade

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Antonio Carlos Silva Benvindo

Universidade Federal de Minas Gerais

COLETIVO SEMIFUSA:

práticas sociais e a relação com a cidade

RESUMO: Os coletivos culturais se desenvolveram nos últimos anos com contribuição

de algumas mudanças, como os avanços tecnológicos e as Leis de Incentivo

estabelecidas pelo Ministro da Cultura Gilberto Gil, em 2003.Tais mudanças

contribuiram para que os grupos alterassem suas relações com a cidade, reconfigurando

também as práticas culturais e sociais dos indivíduos, através de dinâmicas

comunicativas nas quais se relacionam coletivamente em busca de dialogar a respeito

dos problemas que os setores administrativos não conseguem solucionar, ou mesmo dar

a essa instancia de poder as soluções viáveis para as demandas públicas. Assim, através

de práticas mobilizadoras, o Coletivo Semifusa se destaca ao propor discussões

relevantes para a localidade na qual estão inseridos, trazendo para o debate público

questões do interesse de todos, articulado com as novas maneiras de produzir cultura e

consequentemente a política.

PALAVRAS-CHAVE: Coletivos culturais; Fora do Eixo; Práticas comunicativas

mobilizadoras; Coletivo Semifusa; Debate público.

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Introdução

Os Coletivos surgem atualmente como potencializadores de cultura no Brasil. Suas

maneiras de trabalhar implicam a utilização dos novos meios de comunicação em massa

para disseminar a produção cultural e através dela construir e difundir significados para

os locais em que estão inseridos, ressignificando assim a relação do indivíduo com a

cidade. Sob esse aspecto, faz-se necessário avaliar a importância que os Coletivos

culturais possuem para a comunicação.

Esse trabalho tem o intuito de discutir como os Coletivos culturais, especificamente o

Coletivo Semifusa de Ribeirão das Neves, tendem a relacionar suas ações com o local

em que vivem, como utilizam das ferramentas de comunicação e tecnologias atuais para

produzir cultura – e engendrar discussões de caráter político - e como a cidade é vista

por eles, num processo mobilizador que tende a integrar a todos.

O artigo encontra-se dividido em quatro partes: em um primeiro momento discuto

como se caracterizam os coletivos culturais atualmente, como eles fazem suas parcerias

e quem são elas, quais são os suportes encontrados por eles para a produção cultural e

como isto é discutido, viabilizado e articulado. Mais a frente, na segunda seção, o artigo

apresenta o objeto especifico de análise, o Coletivo Semifusa de Ribeirão das Neves. O

grupo faz parte de uma Rede de Coletivos maior, mas as suas características o tornam

instigante, em virtude do local em que estão inseridos e de os problemas sociais,

políticos e culturais dessa cidade serem tão preementes. Pretendo apresentar os

principais eventos do Coletivo Semifusa, a maneira de trabalho, como apropriou as

novas tecnologias para colocaram em prática seus objetivos e conferirem visibilidade às

suas demandas. Na terceira seção, serão discutidas as relações que o grupo propõe com

a cidade, destacando a maneira como a cultura pode ser fundamental para as

articulações políticas.

Nas considerações finais irei ressaltar como o Coletivo Semifusa pode ser um agente de

mobilização social, pois através de suas práticas, utilizadas para defender a expressão

artística, ele articula outras causas inerentes a causa pública, tendo como viés

fundamental a cultura.

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1 – Caracterização dos Coletivos culturais

O crescimento dos coletivos culturais tem despertado o interesse de estudo de muitos

pesquisadores da área da comunicação (Herschmann e Kischinhevsky, 2011; Bentes,

2011; Maia, 2010; Mendonça, 2010; Paulino e Kafino, 2012; Silva e Salgado, 2012;

Vicente, 2006), em virtude de sua maneira de trabalhar as novas práticas culturais,

sobretudo com a utilização das ferramentas disponíveis na internet como os arquivos de

compartilhamento em “nuvem”, redes sociais para divulgação, e sua relação com o local

onde estão inseridos. Essas práticas são uteis para desenvolver uma produção e

disseminação de novos conteúdos simbólicos e, por consequência, alterar as interações

sociais que os integrantes dos Coletivos têm com a cidade, geralmente em uma tentativa

de mudar um quadro simbólico de desigualdade e depreciação.

Os coletivos têm como características principais a utilização dos padrões da economia

solidária, as relações de troca entre artistas e gestores, a habilidade de adaptação e

expressão proporcionada pelas novas tecnologias como algumas das vertentes que

permeiam suas ações coletivas.

A gestão de Gilberto Gil (2003) como Ministro da Cultura, na qual desenvolveu a

política de criar editais para fomentar empreendimentos e iniciativas culturais, facilitou

e estimulou a elaboração de projetos culturais pelo Brasil todo, principalmente junto aos

jovens artistas, e deu ênfase a iniciativas culturais populares e independentes. As

mudanças tecnológicas contribuíram muito junto com essa medida administrativa, pois

“a esfera digital passou a ser uma forma de alcançar visibilidade, criar identidades:

agora, os jovens se insurgem dentro e fora do campo virtual, um complementando o

outro” (MENDONÇA, OLIVEIRA, 2010, p. 3). Concretiza-se o que Castells (1999),

definiu como “sociedade em rede”, na qual as formas de trabalho são notadamente

marcadas por produções colaborativas, como alimentar blogs, sites e conteúdo de

release para imprensa organizada de maneira colaborativa, feita através da tecnologia de

“nuvem”, ou mesmo os inúmeros e-mails trocados para definir as ações de determinado

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evento. Além disso, as redes colaborativas também auxiliam os indivíduos e grupos a

fortaleceram suas identidades e a negociar com as diferenças de modo a promover

trocas pautadas pela tolerância e pelo respeito mútuo:

Hoje em dia os processos de contribuição de identidades tem se dado

através de projetos culturais onde pessoas vêm se organizando em

redes alternativas ou redes de solidariedade social, como forma de se

garantirem perante as relações sociais assimétricas e tomarem a

direção da constituição da sua identidade e o acesso a cidadania

(SILVA, GONZAGA, 2005, p.4).

Herschmann e Kischinhevsky (2011) definem que os novos festivais independentes,

utilizam estratégias interessantes como os recursos das leis de incentivo a cultura e

editais públicos, empregando um intenso uso das tecnologias com intuito de formação,

divulgação e mobilização de público. Sob tal aspecto, esse tipo de produção é essencial

para as práticas comunicativas dos coletivos culturais, uma vez que tem um baixo custo

e atinge um número amplo de pessoas, por exemplo, através das redes sociais. Afinal,

atualmente “grupos minoritários, na maioria das vezes invisibilizados, encontram na

internet importante espaço para a expressão pública de demandas, em detrimento dos

meios de comunicação tradicionais” (GARCEZ, p. 2, 2012).

Conforme Castells (1999), a internet, com sua arquitetura discursiva aberta, carrega uma

filosofia libertária, com aspiração colaborativa capaz de abrigar manifestações de

contracultura, que vai contra os anseios das corporações detentoras dos meios de

comunicação que definem o que deve ser consumido como cultura. Assim temos “uma

produção cultural emergente, marginalizada pelos espaços institucionais e que vinha

sobrevivendo em porões particulares, garagens e consumida apenas pelos amigos mais

próximos” (COSTA apud VICENTE, 2006, p.6), produção que ganha notoriedade

atendendo a outra demanda de público.

Os coletivos atuais desenvolvem ações que se baseiam, em grande medida, nos pilares

da Economia Solidária1, ou seja, as trocas são feitas com o propósito de desenvolver

1 Conforme Paul Singer (2002) a economia solidária é outro modo de produção, cujos princípios básicos

são a propriedade coletiva ou associada do capital e o direito a liberdade individual. A aplicação desses

princípios une todos os que produzem numa única classe de trabalhadores que são possuidores de capital

por igual em cada cooperativa ou sociedade econômica. Disponível em:

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ações em conjunto, geralmente baseadas em relações de reciprocidade, nas quais um

valor simbólico é estabelecido a partir de determinado trabalho executado pelo artista ou

gestor, a partir do trabalho executado por ele para o Coletivo. Podemos citar o seguinte

exemplo: um designer faz uma arte para um evento do Coletivo, é estabelecido um

preço para aquela arte, uma moeda “simbólica” e o grupo viabiliza uma maneira de

pagar esse designer, seja como patrocínio dos trabalhos do artista no site do Coletivo,

ou outra maneira viável. Como ressaltam Kafino e Paulino (2011), não transparece uma

preocupação com formas mais tradicionais de remuneração a partir do trabalho com a

música2, pelo contrário os participantes dos coletivos procuram associar suas práticas

abertamente a conceitos de cultura livre e de economia solidária.

Os coletivos usam plataformas atuais de compartilhamento em “nuvem” como Google

Docs e as Redes Sociais (como Twitter e Facebook) para sistematizar suas práticas. O

principal auxílio conferido, aos grupos aqui estudados vem da Rede Fora do Eixo. Essa

rede atua junto a várias parcerias como a Abrafin (Associação Brasileira de Festivais

Independentes), que gerencia os festivais musicais pelo Brasil todo e a plataforma

Toque no Brasil3, que disponibiliza o espaço para os artistas deixarem hospedadas suas

músicas. Podemos citar também o CMC (Circuito Metropolitano de Cultura), que tem a

proposta de construir uma rede de coletivos Culturais da Região Metropolitana de Belo

Horizonte e trabalhar de forma integrada. O CMC possui o objetivo de construir pontos

de circulação de artistas, participar das construções das políticas culturais de cada

cidade da Região Metropolitana de Minas Gerais. Com essas parcerias, os Coletivos

Culturais, principalmente os de Minas Gerais se desenvolvem de forma horizontal. Esse

Circuito é responsável pelo Circuito Mineiro de Festivais, uma plataforma cultural

ampla que busca realmente conectar os festivais com os territórios em que estão

inseridos4.

A Rede Fora do Eixo desenvolve suas ações estratégicas de apropriação tecnológicas

das redes, “inclusive apropriação de ferramentas como o Facebook, Twitter, e outras

http://www.incoop.ufscar.br/Links/textos/paul-singer-2002-fundamentos. Acesso dia 8 de Setembro de

2012. 2 A música é apenas um exemplo citado pelo autor mencionado, mas outras artes como audiovisuais,

poéticas, enfim outras artes ou mesmo trabalhos são pagos através da Economia solidária. 3 http://tnb.art.br/

4 Explicação dada verbalmente por Rodolfo Ataíde, membro do Coletivo Semifusa e um dos integrantes

do Circuito Mineiro de Coletivos, no dia 7 de Setembro de 2012.

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causas e objetivos próprios, como fizeram os árabes e os espanhóis, hackeando as novas

corporações pós-fordistas” (BENTES, 2011, online5). Segundo Bentes, o Circuito Fora

do Eixo é um “potente laboratório de experimentações das novas dinâmicas do trabalho

e das subjetividades” (Ibid). Baseado em questões como autonomia, liberdade e um

novo “comunismo”, que, segundo a autora, está atrelado à construção do comum, de

uma comunidade, de caixas coletivas, moedas coletivas, redes integradas, economia

viva e mercados solidários. O Fora do Eixo está “apontando para as novas formas de

lutas, novas estratégias e ferramentas, que inclui inclusive pautar as políticas públicas,

pautar o parlamento, pautar a mídia (...)” (2011, online). Muito embora, tenhamos que

ressaltar que a internet, ainda tem problemas de exclusão por não ser “ainda” acessível a

todas as classes sociais, além de utilizar de propriedades de grandes empresas como

Google e Facebook, assim os possíveis filtros exercidos por eles, e mesmo a

característica difusa da internet muitas vezes torna a produção por demais invisíveis,

ainda mais nas periferias da cidade.

Assim, os coletivos culturais têm o intuito de estimular a cena independente e formular

um projeto cultural no país. Madureira, Freitas e Fonseca (2011) argumentam que o

Circuito Fora do Eixo é uma rede que liga os coletivos com a intenção de estimular a

circulação de artistas, além de transformar o meio político e econômico em que a

difusão cultural se encontra no Brasil. O interesse do Circuito Fora do Eixo segundo os

autores supracitados é

promover uma mudança social e tecnológica nesse mercado cultural, abrindo

espaço para que pequenas comunidades possam desenvolver suas artes

através de sua respectiva cultura, mostrando a visão de mundo daquele lugar

e transferindo a mesma para todo o país( MADUREIRA, FREITAS E

FONSECA, 2011, p.3).

Sob esse aspecto, os coletivos culturais que estão atrelados a Rede Fora do Eixo se

desenvolvem e promovem a articulação dos bens culturais no país, a estruturação destas

redes busca promover a participação dos indivíduos e instituições que as compõem em

relações horizontais e colaborativas.

5 Disponível em: http://www.culturaemercado.com.br/pontos-de-vista/a-esquerda-nos-eixos-e-o-novo-

ativismo/

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2 – Coletivo Semifusa: contexto urbano e cena cultural

O Coletivo Semifusa atua em Ribeirão das Neves, cidade periférica que faz parte da

Região Metropolitana de Belo Horizonte, e possui cerca de 300.000 mil habitantes. A

cidade ganhou o estereotipo de “cidade presidiária e dormitório”, em virtude de seus

habitantes dependerem em grande parte de Belo Horizonte para trabalharem e pela

cidade possuir um número amplo de presídios de segurança máxima, o que ocasionou

no local nos últimos anos, um “boom” populacional.

Essa transformação aconteceu em virtude de muitas famílias terem se deslocado para

ficar próximas a seus parentes presos, ou mesmo pela chegada de imigrantes do interior

de Minas e de outros Estados Brasileiros em busca de uma vida diferente na cidade que

se desenvolvia. Como Belo Horizonte cresceu em torno da Avenida do Contorno, e

“expulsou” os recém-chegados para fora da cidade, a saída foi se locomover rumo a

Região Norte da cidade, que atendia os recém-chegados à capital em busca de condições

melhores de vida (SOUZA, 2008).

Embora tenha ocorrido esse avanço populacional, Ribeirão das Neves tem uma

deficiência enorme de oportunidades relacionadas à cultura, sobretudo no que se refere

a patrocínios financeiros e ocupação de espaços públicos, muito embora existam vários

produtores de cultura interessados em desenvolver projetos culturais e espaços que

poderiam ser apropriados para esses projetos culturais, como shows, peças de teatro e

intervenções culturais. Essa defasagem cultural não tem pontos definidos, mas se baseia

na falta de oportunidade para os atores culturais possam mostrar seus dotes artísticos.

Para poder mensurar a Secretaria de Cultura da cidade foi criada recentemente, e não

possui outras formas de financiamento, apenas uma parte ínfima do orçamento da

Prefeitura, que em 2012 não chegou a 1%, além de não ter leis de incentivos municipais,

ou seja, o processo ainda está lento na cidade.

Mas se de um lado o poder público não privilegia políticas culturais e, muitas vezes não

demonstra interesses por elas, de outro temos um grande envolvimento dos cidadãos em

propostas capazes de lhes proporcionar oportunidades de trabalhar e difundir suas

produções. Nesse sentido, em 2009 foi criado, o Coletivo Semifusa, formado em sua

maior parte por artistas que não tinham onde propagar suas atividades e produções

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artísticas. Com o passar dos anos, novos integrantes foram conhecendo as práticas do

Coletivo e se incorporando para auxiliar, agora há o envolvimento de pessoas com

formação distinta da artística, e mais ligadas a área de gestão.6

O Coletivo enuncia como um de seus propósitos a ação de mapear oportunidades

culturais, através de Leis de incentivo, ou mesmo negociar espaços com o poder público

espaços para a realização de apresentações culturais capazes de conferir notoriedade aos

artistas locais, sempre em discussão com o sistema administrativo da cidade. Nesse

espírito de diálogo entre representantes do governo e da sociedade civil, atualmente as

práticas do Coletivo têm se expandido cada vez mais, não só no âmbito cultural, mas

também difundindo discussões de cunho político e trazendo questões de interesse

público para serem debatidas por todos aqueles que são por elas afetados.

É possível dizer que o Coletivo quer propor uma visão menos estereotipada e

depreciativa da cidade de Ribeirão das Neves, contrariando a visão de que ela possui

apenas “presídios” e é marcada pela “violência”. Assim, o Coletivo propõe um

questionamento e uma revisão das “imagens” negativas associadas à cidade de Ribeirão

das Neves (e às pessoas que nela vivem), sem utilizar um discurso de vitimização.

Como seus integrantes mesmos mencionam “não queremos ficar reclamando, queremos

correr atrás para mudar os estigmas”7 (ATAÍDE, 2012), partindo desse pressuposto “a

dinâmica intersubjetiva da busca pela autorrealização perpassa a existência dos sujeitos,

mas para alguns, o reconhecimento implica em profundas rupturas com códigos e

valores sociais enraizados” (GARCEZ, 2012, p.4).

O surgimento deste grupo se deu frente à necessidade dos artistas de Ribeirão das Neves

criarem espaços de fomento e visibilidade para os artistas locais. Mas, com o seu

6 O Coletivo Semifusa tem membros que trabalham e/ou estudam, fazem faculdade ou ainda Ensino

Médio, que variam de 17 a 30 anos de idade, podemos dessa forma que sua maioria de integrantes é ainda

jovem. As ações do grupo são decididas quase que exclusivamente por email, através do Grupo do Gmail.

Muitas reuniões são realizadas on-line, utilizando ferramentas como o Skype, Gmail ou Messenger. Os

membros atuam no Coletivo no regime de voluntariado, já que nenhum deles usufrui de benefícios

financeiros para se dedicar às ações do Grupo. Essa questão vem apenas reforçar a identificação dos

integrantes com a cidade, pois por serem jovens eles poderiam ou tem mais condições de não morarem na

cidade, ou mesmo se desvincularem dela, reforçando os laços com o local. O intuito é mudar o local em

que vivem, atuando localmente e através de ferramentas como a cultura e a consequentemente fazendo

política através dela. 7 Citação verbal feita no Pá na Pedra 2012, pelo membro e Diretor Administrativo do Coletivo Semifusa,

Rodolfo Ataíde.

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desenvolvimento e sua integração à Rede Fora do Eixo, o grupo passou a exercer um

papel que vai além do simples interesse particular de alguns conjuntos musicais. O

Coletivo passou a fomentar conversações e processos de debate capazes de trazer para o

cotidiano questões políticas que demandam reflexão conjunta. Nesse sentido, investem

também em uma “discussão política essencialmente voltada para processos de troca

argumentativa, para a apreciação de cursos alternativos de tomada de decisão e para a

busca de fins coletivos” (MARQUES, MAIA, p. 149, 2008). Essa questão do

entrelaçamento da cultura e política será retomada mais a frente.

O Coletivo atualmente é responsável por três grandes eventos na cidade, “O Grito

Rock”, que é um movimento vinculado ao Circuito Fora do Eixo e articulado

simultaneamente com outros pelo Brasil e na América Latina. A maioria das questões é

decidida por email, ou por arquivo de compartilhamentos em “nuvem”, como o Google

Docs, cerca de 400 email’s foram trocados pelo grupo e poucas reuniões presenciais. O

evento passa pela questão de curadoria das bandas selecionadas para tocar no evento. A

divulgação é basicamente articulada pela Rede Fora do Eixo, e é um evento integrado

com outros pelo Brasil afora, no ano de 2012, ganhou uma notoriedade importante ao

ser divulgado em horário nobre pela Rede Globo de Televisão. O Grito Rock de

Ribeirão das Neves teve 5 bandas, duas delas locais, dentro do objetivo de sempre

priorizar as bandas da cidade, um dos artistas gravou um clipe de sua música no evento.

Além de música, teve um varal de poesias e exposição de um artista da cidade, sempre

no intuito de fomentar a cultura no local.

O Festival Neves Encena8 é o segundo evento, realizado no meio do ano, teve sua

primeira edição no ano de 2012, a primeira ideia do grupo foi convocar todos os artistas

de artes cênicas da cidade para discutir os parâmetros do Festival. A ideia do Coletivo

foi inserir todos na discussão, tendo em vista que o grupo não havia promovido nenhum

evento desse porte e com o apoio dos grupos ficaria mais fácil de saber os anseios dessa

classe artística local. O que se pôde perceber que a classe artística local também não

estava muito preparada para contribuir com o evento. Para exemplificar foi criado um

grupo no “Gmail” para as decisões serem tomadas, mas teve pouca participação dos

8 O evento articulado no espaço de tempo do dia 20 de Junho de 2012 até o dia da finalização das contas

do evento, finalizada 15 de Agosto de 2012, um total de 509 email’s foram trocados para definir a

organização do evento, cerca de 5 reuniões presenciais foram feitas, algumas reuniões foram realizada

utilizando ferramentas como o Skype, com vídeo e voz.

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grupos e no fim das contas às decisões mais importantes ficaram para os membros do

próprio coletivo decidir, talvez em função do Coletivo já tiver conhecimento das

ferramentas de trabalho, como os arquivos de compartilhamento em “nuvem”, ou pelos

grupos não terem vivencia na produção de eventos. 9

O terceiro evento é o “Festival Pá na Pedra”,10

realizado todo último trimestre do ano

com várias apresentações artísticas, como música, oficinas, workshops, etc. Cerca de

860 e-mails trocados, várias reuniões on-line e algumas presenciais apenas para

consolidar o que não se pode fazer utilizando a grande rede e fechar o evento. O

“Festival” que expressa as dificuldade de se fazer arte num local como Ribeirão das

Neves, em virtude do pouco apoio11

tanto no que se refere ao poder administrativo e a

dificuldade de divulgar, por não ter uma imprensa local forte, se relaciona com a ideia

de realmente “bater uma pá numa pedra”, literalmente os integrantes do grupo tem que

fazer “tudo” desde carregar o som até produzir a comunicação do evento.

Além desses eventos especiais, que acontecem com uma certa sazonalidade, o Coletivo

se encarrega de fazer eventos esporádicos, contando com a parceria de outros Coletivos

da Região Metropolitana, como o “Encontro de Compositores”, que é um momento no

qual artistas, fazem um show intimista, solo, de voz e violão com composições próprias

em determinados espaços como bar ou atelier.

Busca-se através desses eventos construir e dar visibilidade a um novo conjunto de

símbolos e representações de Ribeirão das Neves para a sociedade local e para o público

externo, criando assim novas práticas culturais para a cidade, e buscando desmitificar os

problemas que o local vive como foi supracitado.

Isto não significa que os membros do grupo deixaram de assumir uma postura crítica

frente às dificuldades enfrentadas pelo município. Segundo seus membros, o diferencial

9 O Coletivo conseguiu ocupar as praças de Ribeirão das Neves com o evento, trazendo teatro para os

mais diversos públicos gratuitamente, além de conseguir atingir um público amplo com a inserção do

evento em meios de massa como: Super Notícia, Itatiaia e Jornais locais. O público foi de cerca de 2.000

pessoas nos dias do evento e deu uma notoriedade muito interessante ao grupo, porque anteriormente o

Coletivo se restringia a projetos com bandas de música. 10 Outra atitude importante do evento nesse ano foi o “Percurso cultural”, um passeio pelos pontos

turísticos da cidade, algo que não se tem registro de ter feito no local, desde sua emancipação da cidade

de Pedro Leopoldo. Locais que nem a própria população tenha conhecimento da existência na cidade, mas

que remete para algo turístico no local. 11

A grande dificuldade está em encontrar apoio junto a empresas que não têm interesse em investir na

cidade, por não ser economicamente vantajoso.

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do “Coletivo Semifusa” está no fato de seus integrantes se organizarem politicamente

propondo discussões a respeito da cidade que venham através delas suprir as

necessidades que a sociedade necessita e, por meio disso apontar caminhos que

indiquem a superação desta condição, assumindo uma postura ativa em relação aos

desafios enfrentados pela cidade. Tal postura vai além de reivindicar frente ao poder

público políticas que atendam as suas demandas, pois os integrantes do coletivo

assumem o compromisso de participar efetivamente do processo de discussão e

implementação de tais políticas. Esses debates e a efetiva participação do Coletivo em

discussões acerca das políticas públicas e culturais destinadas à cidade acionam

estudiosos que tenham como tema a cidade de Ribeirão das Neves. Frequentemente seus

trabalhos visam temas recorrentes relacionados às políticas públicas da cidade. Esse

assunto será retomado mais a frente. Desse modo, o Coletivo Semifusa

torna possível que os cidadãos possam elaborar projetos coletivos que

reivindicam não só seu reconhecimento e a acolhida de suas propostas pelo

Estado, mas também a identificação legítima de seu status moral no seio da

sociedade (MAIA, MARQUES, MENDONÇA, p. 94, 2008).

O Coletivo tem se destacado não apenas em seu envolvimento em lutas culturais, pois

tem saído desse contexto para reivindicar soluções para questões que tocam interesses

mais abrangentes no que se refere à cidade em que estão situados, através de redes que o

próprio grupo tem feito e que os permite tecer vínculos colaborativos capazes de acionar

debates, afinal “por estarem mais próximas do cotidiano dos sujeitos, são capazes de

identificar situações de opressão invisibilizadas e tornar públicas tais situações por meio

de um vocabulário público comum” (GARCEZ, 2012, p. 9).

No Festival “Pá na Pedra” de 2011, foi lançada a campanha: “O Que Você Sabe Sobre

Neves?”. Segundo os integrantes do grupo, o evento buscou resgatar a memória do

município, realizando um levantamento histórico, falando sobre as figuras ilustres

nascidas no município, buscando catalogar os bens culturais existentes na cidade e

divulgar uma série de elementos que pretendem se contrapor às representações

negativas sobre o local, salientando a importância da construção de uma identidade

positiva sobre Ribeirão das Neves (SILVA, 2012). Essa campanha teve o intuito de

buscar construir novas representações sobre a cidade que como mencionamos

anteriormente, é reconhecida como “violenta” pelos altos índices de criminalidade. Essa

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caracterização procura ser alterada através de discussões em workshop’s nos quais os

participantes possam debater o tema e procurar soluções para questões que são vistas

como problemas para cidade, como aquelas ligadas à juventude, aos movimentos sociais

emergentes e ao próprio conceito da campanha.

No evento do ano 2012, o Coletivo incorporou o “Observatório” sobre a cidade no “Pá

na pedra”, uma iniciativa de alguns pesquisadores da cidade, entre eles o integrante do

Coletivo e estudante da UFMG, Marcos Antonio Silva e o advogado William Ferreira e

a Cientista Social Nayara Amorim. A intenção do Coletivo Semifusa e dos percussores

do Observatório é criar um grupo de estudos que discuta a cidade os problemas e as

soluções para esses problemas, através de pesquisas feitas por instituições ou

pesquisadores sobre o local.

Futuramente, a intenção é que o observatório paute políticas públicas para a cidade e

contribua ou promova discussões com o poder público soluções mais viáveis, para

problemas como o avanço populacional desordenado, falta de empresas no local para

atender a demanda de mão-de-obra do local, espaços e oportunidades de acesso a lazer e

cultura, dentre outras questões apontadas por autores que já estudaram a cidade12

.

Ou seja, em todas as suas ações o Coletivo busca disseminar novas práticas culturais e

políticas no intuito de visualizar a cidade como um local diferente do que foi

estabelecido por valores simbólicos depreciativos que pouco foram questionados pelos

poderes administrativos ao longo dos anos. As discussões promovidas pelo Coletivo

apontam que é importante revelar e ter consciência do problema, mas o fundamental é

buscar soluções para que a cidade e seus habitantes possam reconfigurar imagens e

signos que os prendem a um imaginário opressor e desvalorizante. É claro que alterar

estereótipos pode demandar muito tempo, mas é necessário que isso ocorra, pois não

adianta simplesmente criticar o local e não tentar reverter a situação. Esse pensamento

permeia os princípios do Coletivo Semifusa, e demonstra a capacidade dos sujeitos de

refletir e de desenvolver ações para alterar os quadros simbólicos que colocam a cidade

e seus moradores em uma situação de ausência de reconhecimento de suas potenciais

contribuições, seja no âmbito cultural, humano ou social.

12

Joseane Souza (2009), Paola Rôgedo (2010).

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Para isso o Coletivo sempre busca divulgar suas ações nos meios de comunicação de

massa, veículos com abrangência maior, para dar visibilidade, publicizar, reverberar

seus atos, pois “a visibilidade é um recurso essencial para que os sujeitos participem de

debates, proponham temas e posicionem seus interesses quanto aos temas debatidos”

(HENRIQUES, p.3, 2010). O Coletivo está sempre buscando expor suas demandas e

práticas, afinal as informações que fluem nas mídias “influenciam nossas percepções

sobre os vários problemas abordados” (HENRIQUES, p.4, 2010). Assim “através da

mídia, projetos de mobilização podem não só ganhar visibilidade pública como também

expandir a constituição de um novo público em formação” (MAFRA apud

HENRIQUES, P. 5, 2010).

É importante destacar aqui que nem sempre maior visibilidade significa maior volume

de debates e discussões acerca dos problemas definidos pelo Coletivo como dignos de

serem considerados por todos. Contudo, a visibilidade envolve não só estampar ações

na mídia, mas sobretudo fazer com que os participantes do Coletivo possam ser vistos

como interlocutores e como parceiros de diálogos em negociações mais abrangentes, ou

seja, que envolvam trocas comunicativas responsáveis por articular esferas

institucionais e cívicas. O importante é salientar que a visibilidade conferida a práticas

culturais do Coletivo também os permite serem reconhecidos como agentes portadores

de uma palavra, capazes de expressar publicamente as injustiças que sofrem, suas

demandas e reivindicações, além de justificar seu ponto de vista, procurando alterar

formas arraigadas e opressoras de poder.13

3 – Semifusa e práticas políticas

Ao longo de seus três anos de existência, os integrantes do Coletivo Semifusa acreditam

que além de lutarem por políticas culturais que os favoreçam, têm que reivindicar 13

Nesse sentido, a grande dificuldade percebida nos eventos e na publicização da causa, ainda é a pouca

visibilidade conferida aos eventos e discussões do grupo, motivos esses, que esse trabalho não tem

condições de mensurar e identificar, mas que podem estar associados à falta de um meio de comunicação

de massa na cidade; aos problemas geográficos de uma cidade que tem o modelo de um “arquipélago” ou

os próprios problemas de identificação da população, que prefere se vincular a Belo Horizonte e não

participar das decisões da cidade em que vivem, utilizando-a apenas para descanso.

Page 14: Coletivo semifusa práticas sociais e a relação com a cidade

14

alternativas para sanar outras deficiências existentes na cidade, como aquelas

relacionadas a mudar o estereotipo de “cidade violenta”, ressignificando a cidade onde

vivem e fazendo com que seus habitantes não sejam tratados com desprezo . Afinal o

local não pode ser reduzido a “apenas” um espaço violento: há outras questões de

natureza positiva, que também merecem visibilidade. O grupo assume essa postura

questionadora e de resistência porque estava cansado de ver a cidade sendo tratada com

desprezo pelo Estado ou mesmo pelos meios de comunicação de massa. Iniciam,

portanto, um processo de busca por reconhecimento, por valorização individual e

coletiva.

(...) reconhecimento é, assim, considerado uma necessidade vital para

os sujeitos e ultrapassa a mera tolerância ou cortesia (Taylor, 1992),

visto que é fundamental para a constituição das identidades e para a

percepção das pessoas como sujeitos dignos de valor e estima

(GARCEZ, 2012, p. 4).

O grupo sempre esteve ciente de que a cidade se expressa melhor como ator social na

medida em que realiza uma articulação entre instituições políticas e sociedade civil

(CASTELLS, BORJA, 1996). Essas relações entre governo e cidadãos são, em geral,

pouco dialógicas e conflituosas: um tipo de conflito marcado pela dificuldade de se

reconhecer o grupo como interlocutor digno de ser ouvido e atendido em suas

demandas. Isso acontece porque o Estado, na maioria das vezes, atende aos mais fortes

e tende a postergar (ou mesmo ignorar) os interesses dos setores mais “fracos” (ou seja,

aqueles marcados pela pouca visibilidade e pela ausência de reconhecimento) ou mais

desorganizados. Sabemos que os direitos são fruto de um processo de luta em que há

uma forte tensão entre poderes e interesses, e que a sociedade civil precisa estabelecer

formas de organização e manifestação que lhe garantam presença e voz nas esferas

públicas de debate. Partindo desse pressuposto as manifestações do Coletivo Semifusa

(...) se qualificam como uma atividade política numa abrangência

social e cultural diferenciada daquela de que se ocupa a esfera

institucional com um sentido singular não menos comprometido como

instrumento de uma coletividade, o que tem um valor político claro

(SOUSA, 2002, p. 3).

Assim, as práticas politicas colocadas em cena pelo coletivo questionam não só as

desigualdades oriundas de uma forma de opressão simbólica – que retrata Ribeirão das

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15

Neves e seus moradores sob o signo da pobreza, da violência e da marginalidade – mas

também as desigualdades comunicativas, que dificultam a percepção e o

reconhecimento das pessoas como parcerias válidas de debates e diálogos voltados para

a solução de problemas de interesse coletivo. Ao mesmo tempo, o coletivo questiona as

formas como os espaços públicos da cidade são utilizados e o cerceamento de sua

utilização para fins de divulgação da cultura, sobretudo aquela produzida por seus

próprios moradores. Nesse sentido, “partimos do princípio que a desigualdade não se vê

só no econômico, mas também nas distintas maneiras nas quais conhecem e se

apropriam da cidade e de suas ofertas culturais” (SILVA, GONZAGA, 2005, p.3). É

com base nesse pressuposto que, o grupo busca reverter esse quadro depreciativo e

articular uma mudança, pois

As pessoas têm uma necessidade premente de pertencimento /

reconhecimento em relação à comunidade ou grupo social no qual

estão inseridas. Nesse sentido, é no processo de organização em torno

de projetos comuns, sobretudo projetos culturais, em que os

indivíduos identificam e compartilham não só o mesmo território, mas

seus interesses e necessidades, constituindo suas identidades

individuais e coletivas.” (SILVA, GONZAGA, 2005, p.4 )

Essas iniciativas adotadas pelo Coletivo Semifusa estão intrinsecamente integradas à

convivência e relacionamento dos integrantes com a cidade e seus múltiplos grupos. A

maioria desses integrantes tem sua origem social na classe trabalhadora e negra,

intensificando experiências de injúria de desrespeito ligadas à vivência cotidiana em

uma cidade periférica, associada a representações negativas e desvalorizantes. Segundo

os próprios integrantes, eles são a “periferia da periferia”, pois moram numa cidade com

essas características e ainda não fazem parte das famílias tradicionais do local, a maioria

deles não nasceu na cidade, mas a adotou como sua a partir de algum momento da vida,

provavelmente por influencia dos pais que ali vieram morar (SILVA, 2012).

Nem sempre grupos e coletivos dão origem a movimentos sociais capazes de

desencadear lutas políticas, de questionar e mudar sanções sociais e políticas. Contudo,

assim como os movimentos sociais14

, é possível dizer que o Coletivo Semifusa traduz

14

Segundo Melucci, três características são necessárias para identificar um movimento social como

fenômeno empírico e como categoria de análise: a) “um movimento é a mobilização de um ator coletivo,

definido por uma solidariedade específica, b) que manifesta um conflito (luta contra um adversário para a

apropriação e controle de recursos valorizados por ambos) e c) e leva esse conflito para além dos limites

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16

questões específicas para a coletividade, colocando um problema para toda a sociedade,

desafiando a legitimidade de algumas políticas públicas, descortinando ações

consideradas injustas e configurando estratégias de ação que ultrapassam as redes

submersas da vida cotidiana para alcançar esferas públicas híbridas de conflito entre o

poder administrativo e os cidadãos, dando visibilidade ao conflito, traduzindo o que era

pontual em algo mais coletivo e abrangente.

Para exemplificar isso, no ano de 2012, o grupo criou uma pauta de políticas públicas

referente à cultura e solicitou que a Prefeita eleita assumisse o compromisso com essas

políticas ressaltadas por eles. Através dessas diferentes ações culturais, que são

permeadas por questões políticas, o Coletivo e suas redes, “têm desmitificado a cultura

política que insiste em fortalecer os interesses individuais e de grupos afirmando o

alcance da segurança e proteção social através das instituições e das suas leis” (SOUSA,

2002, p. 10).

Levando em consideração que a “mobilização não significa levar multidões as ruas”, o

Coletivo Semifusa tem conseguido articular “uma rede de pequenos grupos imersos na

vida cotidiana que requerem um envolvimento pessoal na experimentação e na prática

da inovação cultural (MELUCCI, 1989, p.61).

A mobilização existe quando todo um conjunto de reeditores15

, em seu trabalho

cotidiano, está tomando decisões, desenvolvendo discursos e atuando em função de um

imaginário” (MELUCCI apud HENRIQUES, 2010, p.4). O Coletivo Semifusa age

como reeditor em Ribeirão das Neves sob o viés que perpassa pela cultura e tem o

intuito de trazer uma discussão diferente, pois propõe trazer à tona os problemas da

cidade e juntamente articular as mudanças e como elas podem ocorrer na cidade sede do

Coletivo.

Desse modo, as ações culturais e políticas do coletivo denotam um novo panorama na

cidade, uma “voz dos excluídos”, seja através de um show, seja em um sarau, ou até em

debate sobre a cidade, o Coletivo quer propor uma demanda de reconhecimento para

Ribeirão das Neves e seus habitantes no sentido de devolver a auto-estima aos jovens

(gerando um local melhor para sua existência e seu desenvolvimento), através da

do sistema de relações sociais a que a ação se destina (rompe as regras do jogo, propõe objetivos não

negociáveis, coloca em questão a legitimidade do poder, etc) (2001, p.35). 15

O autor chama de reeditores todas as pessoas que possuem um público próprio sobre o qual têm

influência (não necessariamente lideranças formais). É uma “pessoa que pode negar, transformar,

introduzir ou criar sentidos frente ao seu público” (TORO, 1996, p. 32).

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17

valorização da cultura e das artes e apontando a eles que os caminhos para a mudança

exigem luta, conflito e disposição para o diálogo.

Considerações finais

Diante do que foi apresentado anteriormente, é possível dizer que o Coletivo Semifusa

se destaca, por seu viés “mobilizador” e sua dinâmica “político-cultural” de ação e

intervenção na cidade. Vimos que o grupo conseguiu mobilizar na cidade em 2012

instaurando um debate político com os candidatos à Prefeitura da cidade, no intuito de

dar condições à população para decidir qual candidato ela optaria nas urnas. Outra ação

importante, foi a produção de um “manifesto”, que foi chamado pelo grupo de

“Proposta à próxima gestão”, que tinha exatamente o intuito de indicar ao futuro

prefeito as ações que o grupo consideraria relevantes para sua causa, no caso a Cultura

como viés.

O manifesto foi assinado pela candidata à Prefeitura do PT, Daniela Corrêa pouco antes

das eleições, a candidata foi eleita, o que motivou o grupo cada vez mais a continuar o

trabalho, por considerar que terão apoio maior na próxima gestão. O Coletivo acima de

tudo, quer fazer política através da cultura, por acreditar que ela permeia a vida social, e

pode ser uma fator preponderante para termos uma sociedade mais justa e humana, ao

dar condições para um indivíduo “marginalizado” ou, como menciona Garcez (2012),

sem “reconhecimento” a ter acesso ou mesmo produzir arte. Por isso a cultura é vista

pelo Coletivo acima de tudo como um mobilizador social.

Podemos destacar essas ações e os eventos, bem como a tentativa de publicizar os

pontos positivos de Ribeirão das Neves como uma “constituição de causas de interesse

público” (HENRIQUES, p. 1, 2010). Henriques (2010) ressalta que, para que haja uma

mobilização pública em torno de problemas coletivos é preciso que o grupo, nesse caso

o Coletivo Semifusa, apresente questões que se enquadrem em algumas características

importantes como: concretude; caráter público, viabilidade e sentido amplo.

O Coletivo consegue propor questões e temas para reflexão pública que englobem essas

características, sobretudo se considerar seus eventos e ações cotidianas, ao trazer para

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18

diálogo os problemas da cidade e ouvir os moradores para que ele ajude a definir e a

expressarem um problema concreto; expõe o caráter público dos problemas de Ribeirão

das Neves e incentiva a formação de esferas públicas de discussão ao gerar argumentos

para a solução dos mesmos. O Coletivo constrói assim um processo mobilizador, que

insere as questões “num quadro de valores mais amplo, como ‘qualidade de vida’,

‘justiça’, ‘paz’, etc, o que tende a facilitar o compartilhamento de ideias e a criar um

horizonte mais amplo no qual a luta conjunta faz sentido para os que dela participam”

(HENRIQUES, p. 8, 2010).

A partir disso, podemos considerar o Coletivo Semifusa como, um grupo organizado,

mobilizador e articulador de políticas e lutas. Pois,

à medida que os sujeitos passam a articular suas experiências como

um problema de um grupo inteiro, por meio de uma semântica

compartilhada entre aqueles que vivenciam experiências semelhantes,

desenvolvem sua autonomia pessoal e política (Honneth, 2003a). Esse

elo suficientemente forte para estabelecer uma identidade coletiva,

traz possibilidade de engajamento cívico dos próprios concernidos em

direção às suas lutas por reconhecimento (GARCEZ, 2012, p.18).

O Coletivo Semifusa tem um intuito bem definido, fazer, ao lado dos seus parceiros,

Ribeirão das Neves um local melhor para todos; além de conseguir produzir uma

identificação maior da população com a cidade, desvinculando-se de um conjunto de

representações negativas tão impregnados no local ao longo dos anos.

Afinal, “as associações e movimentos, em grande parte dos casos, são organizadas

exatamente por sujeitos que lutam por reconhecimento e representam sujeitos que,

supostamente, experimentam os mesmos prejuízos morais” (GARCEZ, 2012, p.10). Ao

se apropriarem das novas tecnologias, Coletivos culturais como o Semifusa procuram

expandir suas demandas e conferir maior alcance às suas questões buscando parceiros

de discussão, pois a “internet, em sua diversidade, é um espaço potencialmente

democrático e permite a emergência de representações não eleitorais que podem, de

alguma maneira, trazer a público questões antes invisibilizadas” (GARCEZ, 2012,

p.12).

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