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1 UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU MESTRADO EM ARQUITETURA E URBANISMO COLETIVOS CULTURAIS E A RESSIGNIFICAÇÃO URBANA PERIFÉRICA NA VILA FLÁVIA SÃO PAULO BEATRIZ AMANDA DIAS ORIENTADORA: PROFA. DRA. ENEIDA DE ALMEIDA São Paulo 2018

COLETIVOS CULTURAIS E A RESSIGNIFICAÇÃO ......Dias, Beatriz Amanda. D541c Coletivos culturais e ressignificação urbana periférica na Vila Flávia / Beatriz Amanda Dias. - São

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UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU

MESTRADO EM ARQUITETURA E URBANISMO

COLETIVOS CULTURAIS E A RESSIGNIFICAÇÃO URBANA PERIFÉRICA

NA VILA FLÁVIA – SÃO PAULO

BEATRIZ AMANDA DIAS

ORIENTADORA: PROFA. DRA. ENEIDA DE ALMEIDA

São Paulo

2018

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BEATRIZ AMANDA DIAS

COLETIVOS CULTURAIS E A RESSIGNIFICAÇÃO URBANA NA VILA

FLÁVIA

Dissertação apresentada à Universidade São Judas Tadeu como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Arquitetura e Urbanismo, sob orientação da Profª. Dra. Eneida de Almeida, na linha de pesquisa Projeto, Produção e Representação.

São Paulo

2018

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Dias, Beatriz Amanda.

D541c Coletivos culturais e ressignificação urbana periférica na Vila Flávia /

Beatriz Amanda Dias. - São Paulo, 2018.

f.: il.; 30 cm.

Orientadora: Eneida de Almeida.

Dissertação (mestrado) – Universidade São Judas Tadeu, São Paulo,

2018.

1. Resistência. 2. Periferia. 3. Cidades. 4. Representação. I. Almeida, Eneida

de. II. Universidade São Judas Tadeu, Programa de Pós-Graduação Stricto

Sensu em Arquitetura e Urbanismo. III. Título

CDD 22 – 720

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca

da Universidade São Judas Tadeu Bibliotecária: Cláudia Silva Salviano Moreira - CRB 8/9237

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AGRADECIMENTOS

À Universidade São Judas Tadeu, pela bolsa de estudos concedida,

possibilitando o desenvolvimento desta pesquisa.

À Profa. Dra. Maria Carolina Maziviero e ao grupo de pesquisa “Processos

insurgentes em territórios populares: práticas de resistência ativa nas periferias

de São Paulo”. Meu interesse pelo tema se expandiu através de nossos

compartilhamentos e discussões a respeito das práticas do comum.

Aos integrantes dos coletivos Grupo OPNI, Coletivo Coletores e São Mateus em

Movimento, pela recepção e pelo estímulo à pesquisa. Em especial ao

pesquisador Toni William Barbosa dos Santos, pelo diálogo que estabelecemos

entre nossas vivências e pesquisas.

À pesquisadora Aline Lourenço Campanha, pelas discussões, companheirismo

e convívio, que tornaram o processo de pesquisa menos solitário.

À minha orientadora, Profa. Dra. Eneida de Almeida, pelo incentivo,

generosidade e ensinamento inspirador, que ultrapassam os limites da pesquisa

aqui apresentada.

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RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo abordar modos alternativos de discutir e produzir a cidade, com base na ação de grupos coletivos periféricos, oriundos da Vila Flávia, distrito de São Mateus, na Zona Leste, com atuações relevantes no cenário cultural da cidade de São Paulo. Pretende-se investigar a potência dos modos de atuação decentralizados e autogestionados em ressignificar territórios periféricos por meio da iniciativa comunitária, fortalecendo a relação entre cidadania, coletividade e espaço urbano. A verificação dos conceitos aponta para conexão entre os fatos materiais da cidade e os sentidos conferidos pelos cidadãos, evidenciando o papel do habitante como sujeito do espaço ao subverter a lógica tradicional da produção da cidade.

PALAVRAS-CHAVE: Insurgência. Resistência. Cidade. Periferia. Coletivos.

ABSTRACT

The present work has as objective to approach alternative ways of discussing and producing the city, based on the action of peripheral collective groups, coming from Vila Flávia, São Mateus district, in the East Zone, with relevant actions in the cultural scene of the city of São Paulo. The aim is to investigate the power of decentralized and self-managed modes of action in re-signifying peripheral territories through community initiative, strengthening the relationship between citizenship, community and urban space. The verification of the concepts points to the connection between the material facts of the city and the senses conferred by the citizens, highlighting the role of the inhabitant as subject of space by subverting the traditional logic of city production.

KEY WORDS: Insurgency. Resistance. City. Periphery. Collective.

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Figura 1: Localização da Vila Flávia. Base: Google Earth. Elaboração da autora. .................... 37

Figura 2: Sede do Grupo OPNI. Fonte: acervo pessoal. ............................................................ 40

Figura 3: Exposição fotográfica "Olhos da Caminhada". Junho de 2018. Fonte: acervo pessoal. ........................................................................................................................ 41

Figura 4: Exposição de obras da artista Crica. Março de 2018. Fonte: acervo pessoal. ........... 41

Figura 5: Exposição permanente do Grupo OPNI. Fonte: acervo pessoal. ................................ 42

Figura 6: Atelier e espaço para realização de oficinas e atividades com a comunidade. Fonte: acervo pessoal. ................................................................................................. 42

Figura 7: Córrego Cangueiras em fase de canalização do esgoto. Fonte: acervo Ciranda da Água de São Mateus. Acesso: 16 de setembro de 2018. ........................ 45

Figura 8: Córrego Cangueiras após a canalização do esgoto. Fonte: acervo pessoal. ............. 45

Figura 9: Vídeo projeção sobre as casas da Vila Flávia. Fonte: Santos et. al. (2014) p. 28-29. ........................................................................................................................... 53

Figura 10: Frames do artista Quinho QNH produzindo grafite para o vídeomapping do Coletivo Coletores. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=6BS7rZW6T6E>. Acesso: 30 de abril de 20 ............................................................................................................................ 54

Figura 11: Frames da performance de dança projetiva no estágio inicial, gravada no fundo chroma key e sua projeção sobre o grafite – Coletivo Coletores. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=6BS7rZW6T6E>. Acesso: 30 de abril de 2018. ....................................................................................... 55

Figura 12: Vídeo performance de dança projetiva coexistindo com o grafite elaborado pelo Grupo OPNI. Fonte: Santos et. al. (2014) p. 22. ................................................. 55

Figura 13: Coletivo Coletores: pixo digital. Fonte: Santos et. al. (2014) p. 17. ........................... 56

Figura 14: SP na rua – outubro de 2018. Projeção do Coletivo Coletores no edifício do Centro Cultural Correios (Vale do Anhangabaú). Fonte: acervo pessoal. .................. 58

Figura 15: SP na rua – outubro de 2018. Projeção do Coletivo Coletores no edifício do Centro Cultural Correios (Vale do Anhangabaú). Fonte: acervo pessoal. .................. 59

Figura 16: SP na rua – outubro de 2018. Frames da projeção do Coletivo Coletores no edifício do Centro Cultural Correios (Vale do Anhangabaú). Fonte: acervo pessoal. ........................................................................................................................ 59

Figura 17:SP na rua – outubro de 2018. Frames da projeção do Coletivo Coletores no edifício do Centro Cultural Correios (Vale do Anhangabaú). Fonte: acervo pessoal. ........................................................................................................................ 59

Figura 18: Frames da projeção do Coletivo Coletores no Edifício Maria Antônia - “Ecos de 1968”. Fonte: acervo pessoal. ...................................................................... 60

Figura 19: Frames da projeção do Coletivo Coletores no Edifício Maria Antônia - “Ecos de 1968”. Fonte: acervo pessoal. ...................................................................... 60

Figura 20: Frames da projeção do Coletivo Coletores no Edifício Maria Antônia - “Ecos de 1968”. Fonte: acervo pessoal. ...................................................................... 61

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Figura 21: Frames da projeção do Coletivo Coletores no Edifício Maria Antônia - “Ecos de 1968”. Fonte: acervo pessoal. ...................................................................... 61

Figura 22: Frames da projeção do Coletivo Coletores no Edifício Maria Antônia - “Ecos de 1968”. Fonte: acervo pessoal. ...................................................................... 61

Figura 23: Espaço independente São Mateus em Movimento. Fonte: acervo pessoal. ............. 63

Figura 24: Panfleto com a programação das atividades semanais no espaço São Mateus em Movimento. Fonte: acervo São Mateus em Movimento. .......................... 63

Figura 25: Articulação dos coletivos atuantes em São Mateus e principais influências na Zona Leste. A descrição dos coletivos está disponível no Anexo 1. Elaboração da autora. .................................................................................................. 65

Figura 26: Esquina com descarte de lixo antes da intervenção dos moradores. Fonte: acervo São Mateus em Movimento. Acesso: 18 de outubro de 2018. ........................ 66

Figura 27: Projeto “Esquina Limpa”. Espaço que fora destinado ao descarte de lixo e entulho após a intervenção dos moradores. Fonte: acervo pessoal. .......................... 66

Figura 28: Ato "Jornada de Lutas Periféricas" 19/04/2016. Fonte: acervo do Movimento Cultural das Periferias. Acesso: 22 de julho de 2018. .............................. 73

Figura 29: Diagrama da distribuição de recursos por área, segundo a Lei de Fomento às Periferias. Base Cartográfica: Mapa Digital da Cidade (MDC). Elaboração da autora. ..................................................................................................................... 74

Figura 30: Plataforma SP Cultura: agentes, coletivos e espaços na região de Vila Flávia, São Mateus. Fonte: SP Cultura. Acesso: 22 de julho de 2018. ....................... 77

Figura 31: Nuvem de palavras produzida a partir das entrevistas. Elaboração da autora. ........................................................................................................................ 107

LISTA DE TABELAS

Tabela 1: Coletivos e atuação conforme os editais contemplados. Elaboração da autora. .......................................................................................................................... 68

Tabela 2: Características dos editais de financiamento. Elaboração da autora. ........................ 76

Tabela 3: Quadro de sintetização da ação dos coletivos. Elaboração da autora. ...................... 93

Tabela 4: Estudos de caso relacionados com os possíveis cenários do urbanismo tático, baseados em Brenner (2016). Elaboração da autora. ...................................... 95

Tabela 5: Potencialidades e desafios das ações coletivas. Elaboração da autora. ................... 98

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SUMÁRIO

Introdução .......................................................................................................... 9

1. Insurgência e resistência na cidade ............................................................. 11

1.1. Movimentos sociais como modo de resistência ................................... 14

1.2. Coletivos culturais periféricos .............................................................. 17

1.3. Modos de organização coletiva: redes e rizomas ................................ 20

1.4. Inteligência coletiva e insurgência digital ............................................. 23

1.5. O princípio do comum .......................................................................... 29

2. Estudos de caso: Ressignificação territorial periférica ................................. 37

2.1. Critérios e sistematização da pesquisa ............................................... 38

2.2. Grupo OPNI ......................................................................................... 39

2.3. Coletivo Coletores ............................................................................... 53

2.4. Coletivo São Mateus em Movimento ................................................... 62

2.5. Programas de incentivo e editais públicos ........................................... 67

3. A experiência dos coletivos .......................................................................... 78

3.1. Comunicação ....................................................................................... 80

3.2. Participação social ............................................................................... 82

3.3. Recursos Financeiros .......................................................................... 85

3.4. Articulação ........................................................................................... 89

3.5. Desdobramentos ................................................................................. 91

Considerações Finais ....................................................................................... 96

Referências .................................................................................................... 100

Anexo 1: Descrição dos coletivos atuantes em São Mateus e principais

articuladores da Zona Leste. .......................................................................... 103

Anexo 2: Entrevistas e Depoimentos ............................................................. 107

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Introdução

O presente trabalho tem como objetivo abordar modos alternativos de discutir e

produzir a cidade, com base na ação de grupos coletivos periféricos, oriundos

da Vila Flávia, distrito de São Mateus, na Zona Leste, com atuações relevantes

no cenário cultural da cidade de São Paulo. Pretende-se investigar a potência

dos modos de atuação decentralizados e autogestionados em ressignificar

territórios periféricos por meio da iniciativa comunitária, fortalecendo a relação

entre cidadania, coletividade, identidade e espaço urbano.

O contato com o grupo de pesquisa “Processos insurgentes em territórios

populares: práticas de resistência ativa nas periferias de São Paulo”, coordenado

pela Profa. Dra. Maria Carolina Maziviero, possibilitou conhecer o território da

Vila Flávia, em São Mateus (Zona Leste de São Paulo) e estabelecer relação

com os coletivos locais, identificando os modos de organização e

particularidades de cada um.

A estrutura do trabalho apresenta, no primeiro capítulo, os conceitos a serem

trabalhados, através da contribuição de autores dos mais diversos campos do

conhecimento. Destaca-se a contribuição do antropólogo James Holston,

através da conceituação de insurgência, que remonta o processo de cidadania

à construção da cidade através das dinâmicas observadas na periferia, desde

1930. A contribuição a respeito dos movimentos sociais presentes no início do

século XXI são apresentadas sob a ótica do geógrafo Manuel Castells, que

aborda a influência das tecnologias e dos meios digitais na mobilização das

massas. A conceituação dos processos autogestionados é apresentada tanto

por intermédio do Princípio do Comum, de Dardot e Laval, quanto por meio do

fazer coletivo da multidão, de Hardt e Negri, reforçando o caráter de pluralidade

e multiplicidade nas ações.

A discussão avança, no segundo capítulo, mediante os estudos de caso: o Grupo

OPNI, o Coletivo Coletores e a rede de coletivos São Mateus em Movimento,

atuantes originalmente da Vila Flávia, Distrito de São Mateus, Zona Leste de São

Paulo. Os coletivos são apresentados com base na observação empírica e na

construção de uma trajetória insurgente, entendendo que tais ações permitem

pensar o território apoiadas na reformulação do conceito de cidadania.

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Apresenta-se a temática dos editais de financiamento como um desdobramento

do próprio contato com os coletivos, como uma discussão proposta pelos

agentes culturais que integram a rede de coletivos da Vila Flávia.

No terceiro capítulo vincula-se a experiência dos coletivos, apresentados como

estudos de caso, aos conceitos apresentados no primeiro capítulo, verificando

em cada caso as deficiências e potencialidades relacionadas aos quesitos

indicados a seguir: comunicação, participação social, recursos financeiros, modo

de articulação e desdobramentos das ações, relacionando a observação

empírica à narrativa dos sujeitos.

Os resultados apontam para a produção da cidade como consequência da ação

social, evidenciando que a ressignificação e a transformação do espaço urbano

estão além da lógica estatal e mercantil, atrelando-se diretamente aos processos

sociais que dizem respeito à autonomia de organização e produção dos

indivíduos em atividades comunitárias e coletivas, prezando por processos de

codecisão e colaboração, a fim de propor um contexto plural e democrático.

É importante assinalar o reconhecimento da bibliografia de estudos urbanos,

utilizada amplamente nos trabalhos de natureza urbanística que, no entanto,

fogem ao proposto por este trabalho. Nesse sentido, este estudo apoia-se em

outros campos de conhecimento, explicitados a seguir, com o propósito de

complementar as abordagens adotadas nos estudos urbanos. O método adotado

preza, portanto, por abordar o tema não sob a ótica da revolução urbana e do

direito à cidade, presente em Henri Lefebvre e David Harvey, mas sob os

aspectos imateriais que produzem a ressignificação de espaços fundamentada

na ação popular de base.

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1. Insurgência e resistência na cidade

A ação no território requer o entendimento das dinâmicas e dos fenômenos que

tensionam e influenciam a vivência urbana, percebendo potencialidades que se

manifestam por meio de brechas políticas e de apropriações criativas e coletivas,

a fim de propor uma aproximação a realidades mais justas e igualitárias.

O antropólogo James Holston1 aponta a deficiência da democracia, combinada

a agendas neoliberais, em prover igualdade social, criando abismos entre a

população de um mesmo território. O processo de periferização, segregação

espacial e diferenciação da cidadania urbana em São Paulo, como apontado por

Holston, sobretudo a partir de 1930, foram parte de um projeto de modernização

nacional e motivaram a insurgência que se nota desde a década de 1970,

quando a população se torna autora da própria cidade e os conflitos por terra

evidenciam a desigualdade.

O termo periferia, segundo Holston, se refere não apenas à forma de se construir

a cidade, mas se tornou análoga ao “lugar dos pobres” demonstrando o caráter

de persistência da segregação da pobreza, que se tornou o único lugar possível

de se morar quando as classes de baixa renda foram expulsas das áreas

centrais, na primeira metade do século XX, produzindo a dicotomia centro/

periferia2.

As políticas de cunho neoliberal se tornam uma forma de punição para a

população de baixa renda, conduzindo à maior segregação socioespacial3, uma

1 É fonte de consulta fundamental para a conceituação do fenômeno das insurgências urbanas, por intermédio de seu estudo, cujo título original é Insurgent Citizenship: Disjunctions of Democracy and Modernity in Brazil. Foi publicado em 2008. A edição consultada é uma tradução de Claudio Carina, publicada pela editora Companhia das Letras em 2013. [a nota deve referir-se ao autor, pois aparece depois do nome dele]

2 É importante considerar as discussões que questionam a dicotomia centro/periferia. Alguns autores referem-se à presença de padrões indicadores de periferia nas centralidades e que a existência de um único centro não é mais compatível com a própria condição da cidade contemporânea. Para aprofundar essa questão, consultar “Espaço Intra-Urbano no Brasil” (VILLAÇA, 2012) capítulos 10 e 11 e “A questão da centralidade em São Paulo” (FRÚGOLI, 2001).

3 A segregação socioespacial é entendida, por Villaça, como “um processo segundo o qual diferentes classes ou camadas tendem a se concentrar cada vez mais em diferentes regiões gerais ou conjuntos de bairros da metrópole” [grifo do autor] (VILLAÇA, 2012, p. 142). Esse conceito, que se interliga à noção de exclusão urbana, é o que se aplica neste trabalho.

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vez que as empresas provedoras de bens e serviços buscarão localizações mais

favoráveis sob o aspecto da disponibilidade de infraestrutura, com a tendência

de concentrar-se cada vez mais nos grandes centros financeiros.

As periferias, como apontado pelo autor, tornaram-se espaços densamente

habitados, um novo tipo de espaço político em que a participação cívica está

principalmente na mobilização por direitos que, no contexto brasileiro, está ligada

à diferenciação do tratamento, ou seja, uma cidadania diferenciada4. Uma vez

que a cidadania não é homogênea no território, a desigualdade e exclusão de

determinados grupos torna-se um projeto de manutenção de hierarquias e de

preconceitos sociais.

A experiência da cidade, segundo o autor, é estratégica sob o ponto de vista da

insurgência: as ruas misturam as identidades no território (raça, cultura, gênero,

religião) e os movimentos por direitos são potencializados pelas relações da vida

cotidiana, que são manifestadas na diversidade da cidade contemporânea.

O termo insurgência faz menção aos processos e movimentos de novos modos

de cidadania que contestam as formas tradicionais de associação. A insurgência,

segundo Holston, é um processo de ação na contramão, que desestabiliza o

presente. A insurgência não é imposta de cima pra baixo, mas irrompe a partir

de brechas e contradições, permitindo pensar o futuro a partir do passado.

As insurreições do início do século XXI, como apontado pelo autor, atingem

principalmente os espaços de circulação urbana e têm como pauta a inclusão

dos excluídos e a legitimação dos direitos que emergem das lutas diárias,

desafiando as políticas verticalizadas em prol do planejamento tático e

horizontal. Destaca ainda o papel das mídias digitais e da internet como

elemento de favorecimento da organização e da mobilização de maior alcance.

Holston analisa que, como na maior parte dos casos de dominação, a periferia

denota resistência e luta: a construção das casas, os conflitos de propriedade, a

4 Citam-se como exemplos: o direito de trabalhadores registrados a benefícios empregatícios; a garantia da cela especial às pessoas formadas em universidades; a prerrogativa de os policiais militares poderem ser julgados por tribunais militares; dentre outras condições de privilégio asseguradas pela legislação. Os direitos estão atrelados ao tratamento especial e, segundo Holston, a própria cidadania está formulada como meio de diferenciação entre cidadãos.

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ausência de serviços urbanos e uma série de questões que ficam à margem das

discussões políticas oficiais, mas que são eficazes na mobilização das classes

trabalhadoras e no desenvolvimento de suas identidades culturais.

Na insurgência, os interesses e reivindicações têm como fonte as demandas do

cotidiano. A mobilização e a participação se manifestam coletivamente, de

maneira horizontal, através do diálogo, da cooperação e da coobrigação, criando

uma atmosfera de comunidade e solidariedade.

As periferias, aponta Holston, são resultantes de um processo de transformação:

originadas nos episódios de autoconstrução iniciados na década de 1970, as

regiões distantes tornaram-se bairros urbanizados. Os movimentos das

periferias constituíram uma insurgência que transformou, segundo Holston, a

democratização nacional: a cidadania insurgente desestabiliza a manutenção

dos privilégios, apresenta uma ruptura nas hierarquias e denota persistência

frente ao desamparo das políticas públicas.

A cidadania insurgente, como apresentado por Holston, rompe os modos

estabelecidos de governo, desestabilizando as hierarquias. Porém, ao

instabilizar os modelos predefinidos, produzem reações que geram novas

desigualdades e injustiças, mas, em contrapartida, potencializa novos modos de

combatê-las. Dessa forma, os mesmos fatores que produzem uma cidade

desigual, mobilizam a insurgência dos habitantes.

O sociólogo Manuel Castells ([2012] 2017)5 sugere que as relações de poder são

elementos inerentes à construção da sociedade, uma vez que os detentores de

poder instauram as instituições segundo seus valores, interesses e visão de

mundo e que a sociedade, por seus conflitos de interesses, se torna

contraditória.

Pode-se dizer que onde há poder há também contrapoder, através da

reivindicação da sociedade por representação. O autor aponta o exercício de

contrapoder dos movimentos sociais por meio da comunicação autônoma e

5 Título original: Networks of outrage and hope: Social movements in the internet age. Foi publicado em 2012. A edição consultada é uma tradução de Carlos Alberto Medeiros publicado pela editora Zahar em 2017.

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horizontal, livre de monopólios e do controle exercido pelas instituições. Enfatiza

também, que os movimentos sociais são as alavancas da mudança social,

originados das condições degradantes e precárias da vida cotidiana e induzidos

pela crise de representação e descrença nas instituições políticas e públicas.

1.1. Movimentos sociais como modo de resistência

Manuel Castells, em seu estudo sobre os movimentos sociais na era da internet

([2012] 2013)6, argumenta que a confiança é um dos elementos que possibilita a

articulação do contrato social de um povo. Destaca que as relações de poder

são constitutivas da sociedade, mas que, uma vez que a sociedade se torna

contraditória e conflitiva, o contrapoder desafia e reivindica a representação de

seus valores e interesses.

O autor indica que os movimentos sociais foram responsáveis, ao longo da

história, por produzir novos valores e, em consequência disso, transformar as

instituições a fim de representar e organizar a vida social. Observa-se que os

movimentos de resistência são denominados, pelo autor, como contrapoder, nas

palavras do autor, destacando a capacidade de coordenar as ações de maneira

autônoma.

A capacidade dos movimentos sociais de ocupar os espaços da cidade, segundo

Castells, tem o papel fundamental de envolver a população e de gerar

significado, através do simbolismo que há em reivindicar o direito de uso do

espaço urbano, transformando-o em um espaço político.

Castells argumenta que, dentre os principais conjuntos de causas que incitam

os movimentos sociais, encontra-se o enfrentamento de uma dominação como

alicerce de uma ordem social que propaga desigualdade (seja ela de ordem

econômica, social, racial, cultural, religiosa, sexual, etc.). O autor sustenta ainda,

que a condição essencial para o encadeamento de movimentos sociais de

6 Título original: Networks of Outrage and Hope. Foi publicado em 2012. A edição consultada é uma tradução de Carlos Alberto Medeiros publicada pela editora Zahar em 2017.

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resistência é a comunicação, tema que será tratado com maior ênfase

posteriormente.

Os movimentos sociais apresentam como característica, segundo Castells, a

experimentação ideológica, ou seja, é um instrumento político que gera ideias

com base na experiência dos participantes, são redes de resistência – ou de

contrapoder, que detém a capacidade de reprogramar a organização política e

social por meio de ações continuadas de empoderamento da população não

representada dentro de um determinado contexto.

Os autores Hardt e Negri ([2012] 2016)7 afirmam que a resistência frente ao

exercício do poder não é apenas uma reação, ou seja, não é posterior ao modo

de poder, mas é inerente à própria liberdade.

Os autores enfatizam que os modos tradicionais de resistência não são

suficientes no âmbito biopolítico8. Destaca-se que a pauta precisa ser concebida

de maneira ampla, abordando não apenas a produção econômica, mas as

relações sociais e as formas de vida, uma revolução na vida, da vida, nos termos

referidos pelos autores (HARDT; NEGRI, 2016, p. 266).

Dentre as mudanças observadas no contexto biopolítico, segundo Hardt e Negri,

está a recusa da exploração que se volta contra a totalidade da sociedade do

capital. Desse modo, a resistência dos movimentos sociais reorganiza-se em

virtude da mudança no padrão de produção das cidades: além das alterações

nas divisões dos espaços de produção, a divisão temporal também tem sido

concebida de maneira fluida. Os autores defendem a resistência proposta como

um modo de vida, uma vivência cotidiana não manifestada exclusivamente em

ocasiões preestabelecidas, mas que se coloca no mesmo horizonte da vida

social comum.

7 Título original: Commonwealth. Foi publicado em 2012. A edição consultada é uma tradução de Clóvis Marques, publicado pela editora Record em 2016.

8O conceito de produção biopolítica, aqui apresentado, tem como principal referência a obra dos

autores Hardt e Negri. Há que se destacar que o termo é uma referência ao biopoder, de Michael Focault. Desse modo, biopoder seria a forma de poder que regula a vida social de modo a reorganizá-la e a biopolítica, o poder da vida de resistir e determinar uma produção alternativa de subjetividade (HARDT; NEGRI, 2016, p.74).

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Hardt e Negri apontam que todos os movimentos sociais estão ancorados na

questão da identidade, argumentando que a identidade se tornou um veículo da

resistência aos modos de poder. Nesse sentido, sustentam que a identidade se

baseia na propriedade e na soberania: o domínio da propriedade é um modo de

criar identidade e de manter hierarquias, entrelaçadas principalmente às

questões de raça e de gênero. Partindo desse pressuposto, os autores destacam

que a resistência está presente na manifestação de grupos atingidos pela

invisibilidade, revelando as estruturas de uma sociedade hierárquica e desigual.

Os autores apontam a tendência democrática evidenciada nas revoltas,

resistências e revoluções, como meio de organização em rede, priorizando as

relações sociais horizontais, em substituição às organizações verticais.

Destacam que a reivindicação por democracia não assegura sua concretização,

mas é uma demanda com poder de ação concreta.

Holston (2016) aponta que os movimentos do início do século XXI9 apresentam

como característica comum a ocupação dos espaços de circulação urbana, a

rejeição das políticas verticalizadas e da democracia representativa, a demanda

por inclusão social, utilizando-se das mídias digitais como meio de mobilização

e organização horizontal:

A interseção entre (1) “fazer a cidade acontecer” ( (2)

“ocupar a cidade” ( ) e (3) “reivindicar direitos”

gerou movimentos por novas formulações de cidadania que eu chamo

de insurgentes, as quais, simultaneamente, demonstram e fazem valer

novas formas de democracia direta (HOLSTON, 2016, p. 192) [grifo do

autor].

O autor destaca que as diversas pautas desses movimentos apresentam a

principal característica, que segundo o autor foi o responsável pela mobilização

social, a compreensão da falha do sistema urbana em prover os direitos, de

diversos tipos.

9 O autor menciona, a título de exemplo: Buenos Aires (2000), El Alto (2003), Paris (2005), Atenas (2009), Tunísia, Cairo, Nova Iorque e Madri (2010-2011), Santiago (2012), Istambul e São Paulo (2013) e Caracas (2014).

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Holston aponta que as demandas não são para a ampliação dos direitos e

recursos nos moldes existentes, mas o reconhecimento dos processos de luta

vivenciados por uma camada da população, articulados a um novo modo de

produzir cidade, subvertendo as instituições existentes e reivindicando o

processo político como um produto coletivo.

Desse modo, segundo o autor, a principal diferença das mobilizações do século

XXI em relação às mobilizações que precederam esse momento é a

demonstração de uma alternativa, ou seja, as manifestações se estruturam a

partir de características que gostariam de incorporar nas políticas públicas.

Cita-se, como exemplo, a rejeição à representatividade política, pela criação de

redes horizontais como estratégia de viabilizar a participação popular.

Demonstra-se, desse modo, uma nova forma de organização social sem a

necessidade de uma liderança instituída, rejeitando não apenas as políticas

existentes, mas a criação de novas políticas nos mesmos moldes atuais.

1.2. Coletivos culturais periféricos

Dentre os movimentos sociais de relevância na atualidade, destaca-se o papel

dos grupos coletivos que se multiplicaram, no Brasil, principalmente após as

Jornadas de Junho de 201310, desenvolvendo ações, a priori, desvinculadas do

poder do Estado.

As falhas do planejamento urbano e das políticas públicas em prover qualidade

de vida à população periférica, somada aos modos de insurgência

característicos do início do século XXI, são possivelmente responsáveis pelo

10 As Jornadas de Junho foram mobilizações desencadeadas, no primeiro momento, pela luta do Movimento Passe-Livre, contra o aumento das tarifas anunciadas em 2013, através da organização por meio de redes sociais digitais. Posteriormente as mobilizações ganharam pautas distintas entre si. Para aprofundar no tema, consultar “Cidades Rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil” (MARICATO [et al.], 2013). Destaca-se que ainda hoje tais manifestações reverberam no campo social e político do país, influenciando o modo como as pessoas se apropriam das redes sociais digitais e o modo como se dá o processo de comunicação em massa. Convém também ponderar que essas mobilizações iniciais foram de certo modo sequestradas por forças conservadoras, que passam a apresentar uma infinidade de novas demandas desconexas e contraditórias entre si, usurpando a linguagem e as estratégias dos protestos originais.

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surgimento dos coletivos culturais como meio de propor uma cidadania fora do

alcance do Estado:

Particularmente significante é a mobilização digital de “coletivos” que

hoje organizam a juventude – sobretudo estudantes, mas não somente

– em torno de questões de identidades temáticas, como identidade

negra, LGBT poesia, grafite, justiça e meio ambiente. Esses coletivos

são relativamente novos como fenômeno de massa, e eles enfatizam

a associação horizontal e sem liderança (HOLSTON, 2016, p. 200).

Ressalta-se que o contexto periférico já se organiza nessa formatação, sendo

verificada facilmente nos grupos de cultura Hip-Hop, através das crews e das

posses11, sobretudo a partir da década de 198012.

Observa-se que não há uma definição consensual para o conceito de coletivo,

mas as ações apresentam-se como não-hierárquicas, prezando pela

organização horizontal e independente, através da colaboração e do

compartilhamento de informações e de decisões.

Os grupos não se apresentam com uma formação fixa, mas organizam-se por

meio das atividades propostas e das afinidades entre os participantes, não sendo

caracterizados diretamente pelos participantes, mas sim pelas ações.

O professor de sociologia e estudos metropolitanos, Neil Brenner, traz uma

reflexão sobre tais ações, intituladas como urbanismo tático, apresentadas no

Museu de Arte Moderna (MoMA) de Nova York, na mostra “Uneven Growt:

Tatical Urbanisms for Expanding Megacities” entre 2014 e 2015, na qual se

debateu a condição urbana atual, em que Harvey relata a intensificação da crise

urbana e o despontar do urbanismo tático como solução alternativa para os

problemas urbanos contemporâneos, pautados pelo neoliberalismo, sobretudo

como um meio poderoso de conquistar “justiça social na concepção e

apropriação do espaço urbano” (BRENNER, 2016, p. 8).

11 Crew: Grupo de grafiteiros que se reúne para pintar juntos. Posses: associação de dois ou mais grupos de rap para realizar ações sociais nas comunidades.

12 Dados apresentados na oficina “Trajetória Poéticas: Hip-Hop, Saraus, Slams”, com a participação de Lews Barbosa, Victória Sales e Coletivo Perifatividade, realizado em 18 de novembro de 2017, no espaço São Mateus em Movimento.

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Sobre as orientações expostas, o autor encontra pontos de convergência, aqui

assinalados, em certas estratégias de mobilização, que colaboram para uma

definição de urbanismo tático: nascem dentro de uma crise de governança,

denunciando a falha estatal dos serviços públicos; não são movimentos

unificados, pois têm caráter experimental e provisório; são mobilizados pela

sociedade civil, sem vínculos com instituições ou partidos políticos; atuam em

escala local e em períodos curtos; promovem a reestruturação urbana através

da base, por meio da reapropriação do espaço pelos usuários.

Brenner questiona se o urbanismo tático é capaz de combater efetivamente o

urbanismo neoliberal, destacando que a relação entre as múltiplas formas de

urbanismo tático e urbanismo neoliberal são mais diversas e complexas. O autor

ilustra as possibilidades, valendo-se de cinco cenários possíveis: reforço;

entrincheiramento; neutralidade; contingência; subversão.

O reforço está associado ao alivio às falhas de governança do urbanismo

neoliberal, sem ameaçar o desenvolvimento urbano; o entrincheiramento diz

respeito à internalização da agenda neoliberal: diminui-se o papel das

instituições públicas e estende-se a força de mercado, contribuindo para o

enraizamento do urbanismo neoliberal; a neutralidade está ligada ao urbanismo

tático que coexiste com o urbanismo neoliberal, sem ser parasitária, ameaçadora

ou funcional; a contingência é o espaço da experimentação regulatória que, em

determinados aspectos, contribuem para a subversão dos programas neoliberais

e, em outras condições, isso não ocorre; a subversão está associada à

interrupção das lógicas de governança urbana orientada para o crescimento e

orienta-se para alternativas baseadas em equidade social, democracia de base

e justiça espacial.

De maneira geral, os coletivos se organizam em grupos distintos que prezam

pela horizontalidade e autogestão. No caso das periferias, como já mencionado,

estão diretamente ligados aos processos de autoconstrução do território,

contribuindo para a formação e fortalecimento da identidade local apoiados em

criações coletivas e na ressignificação dos movimentos de reivindicação do

direito à cidade (HOLSTON, 2013).

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É habitual, entre os coletivos, a aproximação à cultura maker que permite a

colaboração e reformulação de bens materiais, fazendo uso do

compartilhamento de informações facilitado pela internet por meio das mídias

participativas, recorrente nas redes sociais, pressupondo que o compartilhar

gera multiplicidade, pluralidade e diversidade nas ações e que a ampliação da

propriedade intelectual tem a potencialidade de questionar a lógica hegemônica.

A cultura maker é uma extensão da cultura “Faça-Você-Mesmo”, baseada na

possibilidade de pessoas comuns construírem e modificarem diversos tipos de

objetos e projetos, sob o pressuposto de criar, construir e compartilhar13. É por

meio das tecnologias de comunicação que se possibilitou não apenas a troca de

informações, mas o ato de pensar coletivamente mesmo em espaços distintos e

formular conjuntamente projetos que permitam a produção cooperativa.

A flexibilidade dos grupos aponta para uma caracterização dada por projetos e

ações em comum em detrimento da composição dos grupos que podem se

reorganizar em função da situação e do caráter da produção coletiva.

1.3. Modos de organização coletiva: redes e rizomas

A cultura de colaboração presente nos coletivos permite a cooperação entre

grupos distintos de coletivos. A colaboração entre grupos pode estar associada

à temática das ações, ao território em que se situam, ao objetivo, ao público alvo,

dentre outras coisas. As abordagens aqui apresentadas apontam para dois

modos de colaboração principais: a articulação em rede e a articulação em

rizoma.

O sociólogo Manuel Castells ([1996] 1999)14 desenvolve um estudo sobre A

Sociedade em Rede, defendendo que os avanços tecnológicos e o cenário

geopolítico, podem impulsionar novos modos de organização da sociedade. O

autor afirma que grupos se conectam através de redes informacionais em função

13 Atualmente as iniciativas da cultura maker são facilitadas por softwares de criação e impressão em 3D, reformulando e subvertendo a produção de bens materiais através da tecnologia digital.

14 Título original: Rise of The Network Society. A primeira edição foi publicada em 1996. A edição consultada é uma tradução de Roneide Venancio Majer, publicada pela editora Paz e Terra em 1999.

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de características em comum. O conceito de rede, segundo o sociólogo, diz

respeito a uma organização de nós interconectados. As redes se caracterizam

por serem

(...) estruturas abertas capazes de expandir de forma ilimitada,

integrando novos nós desde que consigam comunicar-se dentro da

rede, ou seja, desde que compartilhem os mesmos códigos de

comunicação. Uma estrutura social com base em redes é um sistema

aberto altamente dinâmico suscetível de inovação sem ameaças ao

seu equilíbrio (CASTELLS, 1999, p. 566).

O autor aponta que o modo de organização em rede não é exclusivo da era da

tecnologia da informação, mas que é potencializada através dos novos modos

de comunicação, expandindo-se para toda a estrutura social.

Castells defende que a constituição de redes é operada pelo ato de

comunicação, considerando que a comunicação seja o compartilhar e a troca de

informações em um processo contínuo de construção de significados através da

diversidade. Nesse sentido, o modo de organização em redes subverte o

conceito de individualidade ao buscar meios de conexão baseados no

compartilhamento dinâmico.

O autor destaca que, quando uma rede desliga o ser individual de outras redes

torna-se uma relação de dominação (como exemplo, cita-se grupos

fundamentalistas religiosos) e de exclusão social, opondo-se ao conceito de

compartilhamento e construção social.

Os autores Deleuze e Guattari ([1980] 1995)15 apresentam outro modo de

estruturação através da metáfora dos rizomas, termo científico que caracteriza:

Um rizoma como haste subterrânea distingue-se absolutamente das

raízes e radículas. Os bulbos, os tubérculos, são rizomas. Plantas com

raiz ou radícula podem ser rizomórficas num outro sentido inteiramente

diferente: é uma questão de saber se a botânica, em sua

especificidade, não seria inteiramente rizomórfica. (...) O rizoma nele

mesmo tem formas muito diversas, desde sua extensão superficial

15 Título original: Mille plateaux: capitalisme et schizophrénie. Foi publicado originalmente em 1980. A edição consultada é uma tradução de Ana Lúcia de Oliveira, publicada pela editora Edições 34 em 1995.

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ramificada em todos os sentidos até suas concreções em bulbos e

tubérculos. (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 14).

Deleuze e Guattari apontam que as características dos rizomas são expressas

através de princípios: o princípio da conexão e da heterogeneidade, em que

qualquer ponto da estrutura pode ser conectado aos demais, apresentando-se

como um sistema decentralizado; o princípio da multiplicidade, destacando que

a multiplicidade não tem sujeito ou objeto, é caracterizada pelas determinações,

ou seja, o crescimento das dimensões de um rizoma está atrelado ao

crescimento de suas conexões, não havendo pontos, apenas linhas; o princípio

da ruptura a-significante, apresentando a estrutura rizomática como passível de

rompimento em qualquer lugar mas que pode ser retomado a partir de novas

linhas e conexões a fim de reorganizar e reestruturar o conjunto; o princípio de

cartografia e da decalcomania aponta que a estrutura rizomática não está

relacionada com “eixos”, ou seja, não é uma unidade pivotante que organiza o

seu entorno, mas a um “mapeamento” que está relacionado a uma

experimentação, a uma construção em todas as dimensões, opondo-se ao

decalque.

Segundo os autores, o rizoma opera através de impulsos e produções, tendo

como característica mais importante a existência de múltiplas entradas. Através

das estruturas rizomáticas, como apontado por Deleuze e Guattari, o território se

expande por desterritorialização, ou seja, os rizomas são ramificações que, ao

se desterritorializar, através de suas conexões, pode ser reterritorializado.

Considerando as abordagens aqui apresentadas a respeito dos modos de

organização, destaca-se algumas particularidades nas estruturas: as redes são

formada por nós conectados, gerando equilíbrio na estrutura, enquanto os

rizomas são formados apenas por linhas conectadas em todos os sentidos

formando bulbos; o rompimento das redes pode gerar desequilíbrio no sistema,

uma vez que os nós não estão completamente ligados entre si, mas nas

estruturas rizomáticas, o rompimento em determinado ponto da estrutura não

afeta o equilíbrio do conjunto, pois apresenta como característica a possibilidade

de ligação dos pontos entre si; As redes podem apresentar sobreposição de

camadas, evidenciando que são lidas apenas em duas dimensões, enquanto os

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rizomas são conectados em todas as direções, apresentando-se como uma

organização tridimensional.

Do mesmo modo, nota-se pontos em comum em ambas estruturas: as conexões

podem ser lidas como sistemas de comunicação ou de transporte de matéria; as

redes e os rizomas estão atrelados ao conceito de território e espaço; são

sistemas abertos, baseados no compartilhamento; são dinâmicos no que diz

respeito à subversão do conceito de individualidade, operando em conjunto para

o equilíbrio geral.

1.4. Inteligência coletiva e insurgência digital

O filósofo Pierre Lévy ([1994] 2015)16 aponta que as decisões relativas aos

equipamentos de comunicação digital (técnicas, normas, regulamentos, tarifas,

políticas, etc.) seriam responsáveis por moldar a infraestrutura e inteligência

coletiva, gerando impactos diretamente nos modos de se relacionar em

comunidade.

Lévy destaca que a evolução das tecnologias de comunicação emerge da

inteligência coletiva, uma vez que são necessárias redes internacionais de

mobilização e coordenação. Enfatiza-se que os instrumentos de comunicação

coletiva só podem ser reinventados a partir da reinvenção da democracia: a

produção sistemática de ferramentas que permitem a constituição de

inteligências potencialmente coletivas.

Segundo Lévy

(...) a inteligência coletiva visa menos ao domínio de si por intermédio

das comunidade humanas que a um abandono essencial que diz

respeito à ideia de identidade, aos mecanismos de dominação e de

desencadeamento dos conflitos, ao desbloqueio de uma comunicação

confiscada, a voltar a trocar entre si pensamentos isolados (LÉVY,

2015, p. 17) [grifo do autor].

16 Título original: L’intelligence collective: Pour une anthropologie du cyberspace. Foi publicado originalmente em 1994, pela editora Éditions La Découverte. A edição consultada é uma tradução de Luiz Paulo Rouanet, publicada pela editora Edições Loyola em 2015.

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O autor aponta que a inteligência coletiva está por toda parte, pois o saber está

espalhado em pessoas singulares, de modos diferentes, reconhecendo e

mobilizando competências de modo que seja possível desencadear uma

dinâmica inovadora de identidade social, sendo culturalmente produzida de

maneira não mecânica ou pré-programada.

Segundo Lévy, a abertura do ciberespaço17 permitiu a concepção de modos de

organização – tanto econômica, quanto social – focadas na inteligência coletiva,

enfatizando que o uso das tecnologias em grupos auto organizados está

diretamente ligado a quantidade de indivíduos relacionados, o que não se verifica

na atualidade, uma vez que a comunicação digital pode ser a articulação inicial

que resultará na concepção de novos grupos organizados em torno de objetivos

comuns.

O autor destaca que os meios de comunicação em massa contemporâneos

abrem possibilidades de questionar os modos de organização tradicionais,

baseados na mídia unidirecional, que não se utilizam da capacidade de

cooperação existente na interação de ideias e, a partir do aparato tecnológico,

estão propensos a se dissolver enquanto reduto isolado. Segundo o autor, o

ciberespaço é potencialmente um meio de discussão plural, de discussão de

problemáticas, de tomada de decisão coletiva e de avaliação de resultados:

O uso socialmente mais rico da informática comunicacional consiste,

sem dúvida, em fornecer aos grupos humanos os meios de reunir suas

forças mentais para constituir coletivos inteligentes e dar vida a uma

democracia em tempo real (LÉVY, 2015, p. 64).

Dentre os benefícios do avanço tecnológico da comunicação, o autor enfatiza

que a democracia do ciberespaço possibilita o discurso plural, sem o intermédio

de representantes, criando um espaço dinâmico de ideias e práticas coletivas,

não necessariamente uniformes, mas tendo a experimentação e a contribuição

como principais caraterísticas.

17 Ciberespaço é uma palavra de origem norte americano que designa o universo das redes digitais, sendo utilizada, pela primeira vez em 1984, por William Gibson, autor de ficção científica (LÉVY, 2015).

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Segundo o autor, os dispositivos que contribuem para a produção da inteligência

coletiva são os instrumentos que favorecem o desenvolvimento do laço social

através da troca e do saber, sistemas de comunicação capazes de integrar e

restituir a diversidade (em oposição à difusão midiática tradicional), os meios de

difusão do aprendizado autônomo e as tecnologias que valorizem a potência

simbólica acumulada pela humanidade.

Manuel Castells ([1996] 1999) analisa a dinâmica econômica e social por meio

da tecnologia de informação, afirmando que a sociedade tem se remodelado

aceleradamente através das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC).

O autor afirma que a busca de identidade18 – individual ou coletiva – torna-se a

fonte básica de significado social, uma vez que há uma deslegitimação das

instituições e descrença política (CASTELLS, 1999, p. 41 e 42), e assinala que

o informacionalismo foi moldado pela reestruturação capitalista de produção a

partir da década de 1980.

O autor identifica que a sociedade é organizada em uma estrutura de produção,

experiência e poder e que a relação e a comunicação gerada por intermédio

dessa estrutura são responsáveis pela identidade coletiva, em que a produção

diz respeito ao modo de ação sobre a natureza, a experiência é determinada

pelas relações sociais e culturais e o poder é a forma como as instituições

impõem o controle. Dessa forma, na era da tecnologia de comunicação e

informação, a produtividade, as relações sociais e o exercício do poder estão

diretamente ligados ao processamento da informação e à comunicação de

símbolos.

Cita-se que a Tecnologia da Informação e Comunicação foi essencial para o

processo de globalização, fundamental para conectar os territórios e gerar

concorrência entre as cidades – através do planejamento estratégico –

possibilitando e potencializando os efeitos da proposta da racionalidade

neoliberal. Castells destaca que a potencialidade que o capitalismo tem de se

18 O autor define: “Por identidade, entendo o processo pelo qual um ator social se reconhece e constrói significado principalmente com base em determinado atributo cultural ou conjunto de atributos, a ponto de excluir uma referência mais ampla a outras estruturas sociais” (CASTELLS, 1999, p.57 e 58).

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reerguer da crise e sua reestruturação, como apontado por Dardot e Laval19, é

possibilitado pela tecnologia da informação e comunicação e, na sua ausência,

o desenvolvimento do capitalismo seria limitado em relação à realidade atual.

Castells ([2012] 2017)20 assinala que a comunicação em massa, baseada em

redes horizontais e interativas na internet, tem se tornado a principal plataforma

de comunicação e que a partir de uma sociedade em rede é que os movimentos

sociais se constituem no século XXI.

A internet proporciona, segundo Castells, funções de coordenação e

relacionamento sem a necessidade de um núcleo físico e de liderança formal,

maximizando a participação construída sem fronteiras previamente definidas e

diminuindo as chances de burocratização, manipulação e repressão. O meio

digital também possibilita que os movimentos sejam, ao mesmo tempo, locais e

globais, uma vez que ressignificam o espaço urbano ao ocupar e intervir e se

tornam globais ao conectar essas ações com outras partes do mundo, através

da troca de experiências, do debate e do estímulo gerado por outras ações, além

de ser uma ferramenta de convocação em massa para participação conjunta e

simultânea. Aponta-se que os movimentos têm tendência a iniciar na internet por

ser um espaço de autonomia, além do controle dos governos e das empresas

que construíram um histórico de monopólio dos meios tradicionais de informação

e comunicação como alicerce de seu poder (CASTELLS, 2017, p.11).

A combinação de movimentos que se iniciam na internet por meio das redes

sociais e se tornam movimentos que ocupam o espaço urbano, segundo o autor,

constitui um terceiro espaço, que fora denominado por ele como espaço da

autonomia, como uma forma híbrida espacial criada nos movimentos sociais em

rede, desafiando a ordem institucional disciplinar ao reivindicar o espaço da

cidade para seus cidadãos.

19 “Ficou demonstrado que o neoliberalismo, apesar dos desastres que o engendra, possui uma notável capacidade de autofortalecimento. Ele fez surgir um sistema de normas e instituições que comprime as sociedades com um nó de forca. As crises não são para ele uma ocasião para limitar-se, como aconteceu em meados do século XX, mas um meio de prosseguir cada vez com mais vigor sua trajetória de ilimitação” (DARDOT; LAVAL, 2016, p.8 e 9).

20 Título original: Networks of Outrage and Hope. Foi publicado em 2012. A edição consultada é uma tradução de Carlos Alberto Medeiros publicada pela editora Zahar em 2017.

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Castells denomina as tecnologias e plataformas de comunicação digital e sem

fio como autocomunicação. Esse conceito abrange as seguintes características:

trata-se da comunicação em massa, com potencial de processar diversas

mensagens a uma multiplicidade de receptores; a produção da mensagem é

decidida com autonomia pelo remetente; baseia-se em redes horizontais de

comunicação que, na maior parte dos casos não podem ser controladas por

dispositivos de poder; fornece a autonomia da construção do ator social,

individual ou coletivo, desvinculados das instituições tradicionais.

O autor destaca a potencialidade das plataformas digitais para comunicação,

sugerindo que o Estado e o mercado não podem limitar a possibilidade de

liberdade oferecida por tais ferramentas e que as redes de poder o exercem por

meio da influência de massa, colocando as redes de comunicação como

elemento fundamental da construção de poder. Uma vez que as informações

contidas e propagadas nas plataformas digitais não podem ser monopolizadas,

limita-se a influência, exigindo outras estratégias de domínio e persuasão.

O papel da mídia digital facilitado pelas redes sociais é facilmente notado no

Brasil, por meio das mobilizações que culminaram com as Jornadas de Junho21

demonstrando engajamento cívico mediada pela tecnologia digital (HOLSTON,

2016). Holston enfatiza que os novos meios de comunicação substituem os

meios monopolizados e se tornam alternativas para a insurgência fora da alçada

do Estado e, ao se consolidar, tem a capacidade de expressar a organização

horizontal que representa a subversão das instituições hierárquicas pré-

existentes.

É importante enfatizar o papel da comunicação em rede como meio de desafiar

a dominação, através movimentos que se conectam, interagem e compartilham

experiências, mas a internet não é um meio indispensável e suficiente para a

prática de organização coletiva.

A Tecnologia da Informação e Comunicação, apresentada por Castells, como

meio de desafiar a dominação e os discursos hegemônicos pode ser contestada

através do conceito de mediações socias, apresentado pelo filósofo e

21 Ver nota de rodapé número 10 deste volume.

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antropólogo Martín-Barbero ([1987] 1997)22, que propõe partir das construções

sociais ao invés do meio propagação:

Assim a comunicação se tornou para nós questão de mediações mais

que de meios, questão de cultura e, portanto, não só de

conhecimentos, mas de re-conhecimento. Um reconhecimento que foi,

de início, operação de deslocamento metodológico para re-ver o

processo inteiro da comunicação a partir de seu outro lado, o da

recepção, o das resistências que aí têm seu lugar, o da apropriação a

partir de seus usos (MARTÍN-BARBERO, 1997, p. 16) [grifo do autor].

O filósofo aponta que a articulação e o uso da informação, ou seja, a mediação

é mais relevante para a disseminação de uma mensagem do que propriamente

a ferramenta utilizada para tal23.

O fluxo de informação criado pela internet impacta diferentes setores da vida

social, não podendo ser lido apenas como uma ferramenta de insurgência dos

movimentos sociais de base, mas sendo necessária uma leitura mais ampla do

contexto e das subjetividades da mediação.

Ressalta-se o papel da cultura como mediação propiciadora da comunicação

para além dos meios digitais:

Pensar os processos de comunicação neste sentido, a partir da cultura,

significa deixar de pensá-los a partir das disciplinas e dos meios.

Significa romper com a segurança proporcionada pela redução da

problemática da comunicação à das tecnologias (MARTÍN-BARBERO,

1997, p. 285).

O autor defende que as mediações culturais são a garantia de evitar uma

comunicação falsamente democrática, reconhecendo as mediações a partir dos

sujeitos.

22 Título original: De los medios a Ias mediaciones. Comunicación, cultura e hegemonia. Foi publicado em 1987. A edição consultada é uma tradução de Ronald Polito e Sérgio Alcides publicada pela editora UFRJ em 1997.

23 O autor não se refere diretamente ao papel das redes sociais como meio de comunicação em massa, porém é possível aproximar sua abordagem ao contexto atual, entendendo que o conceito de mediações pode ser aplicado aos mais diversos tipos de tecnologias da comunicação.

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Semelhantemente ao conceito de mediações, Holston (2016) questiona a falta

de problematização dos autores que tratam a insurgência digital como algo dado,

sem analisar o processo histórico da formação política dos grupos emergentes

e o contexto que se pretende reformular, vinculando a emergência política de

determinados grupos à exclusividade dos avanços tecnológicos.

Nesse sentido cabe destacar que a ideologia dominante também é um tipo de

mediação capaz de penetrar nos discursos disseminados através das

ferramentas de comunicação em massa, ressaltando que não há mais o

descompasso do Estado e do poder político em utilizar as ferramentas de

comunicação democráticas para difundir seus ideais24, causando profundas

alterações no modo de organização da sociedade.

1.5. O princípio do comum

A conceituação de Dardot e Laval25 sobre o princípio do comum parte da

possibilidade de oposição ao sistema que constrói novos sujeitos, capitaliza as

relações sociais e tudo opera objetivando o lucro e a alimentação da

concorrência global. Os autores apontam o potencial das ações e mobilizações

autogestionadas para opor-se à racionalidade neoliberal, à crise representativa

e às formas deterioradas das relações sociais.

A problemática apresentada aparece como fruto da incapacidade capitalista em

gerar igualdade social. Nesse contexto, o princípio do comum pode ser

entendido, equivocadamente, como uma reivindicação que opera baseada nas

teorias e práticas do sistema comunista e socialista. No entanto, essa afirmação

não se verifica na abordagem de Dardot e Laval, revelando o caráter falencial

dos sistemas citados. Os autores apontam que a proteção do Estado frente aos

mercados financeiros não passa de uma ilusão, enfatizando os retrocessos

24 Cita-se como exemplo a contratação de empresas para difundir conteúdo político nas redes sociais conforme o padrão de comportamento dos usuários, driblando o abismo que havia entre o dominador, que se utilizava dos meios de comunicação tradicionais para propagar sua ideologia, e o dominado, que apresentava descrença nos meios tradicionais de comunicação.

25 Título original: Commun: essai sur la révolution au XXI siècle. Foi publicado em 2014. A edição consultada é uma tradução de Mariana Echalar publicada pela editora Boitempo em 2017.

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sociais e ambientais pelos quais as nações são submetidas diante da dominação

estatal. Não se objetiva tratar aqui a fundação do comum, suas abordagens no

decorrer da história e a falência do sistema comunista. A obra de Dardot e Laval

cumprem esse papel com maestria. Aborda-se o comum sob a ótica da

possibilidade de um futuro não capitalista através das práticas plurais e coletivas.

Os autores sustentam que o modelo de produção neoliberal estabelece um

sistema de concorrência generalizada e que, nesse contexto, o Estado tem a

função de submeter a sociedade às exigências do mercado mundial, observando

que o Estado é produtor de vulnerabilidades e insuficiente para proteger as

classes de baixa renda. Observa-se ainda, que os elementos da vida cotidiana

– como, por exemplo: a educação, a saúde, o transporte, o acesso à cultura e o

uso dos espaços – são subordinados ao capital como condição básica e

intransponível para o desenvolvimento.

A discussão sobre a financeirização neoliberal não é sobre o que se destrói, mas

sobre o que se explora, o que se produz, e sua reverberação. Dessa forma, é o

próprio neoliberalismo que abre as portas para o comum, rompendo com a

ilusória dualidade entre mercado e Estado. Segundo Dardot e Laval “somente a

prática pode produzir um sujeito coletivo”, permitindo expressar uma variedade

de movimentos que se colocam contra a lógica neoliberalista (DARDOT; LAVAL,

2017, p. 53-54).

Os autores assinalam que mesmo com a ruina do comunismo no século XIX as

correntes de contestação do capitalismo não cessaram e destacam a

necessidade de uma recomposição da luta contra a ordem dominante, que se

faz presente por meio do comum. Desse modo, palavra comum se tornou

símbolo de mobilização e de resistência, marcando um novo momento nas lutas

contra o neoliberalismo em escala mundial e traduz novas formas de viver em

oposição aos processos acumulação, privatização e financeirização. Assim, as

lutas coletivas do início do século XXI aproximam-se do conceito de comum,

como “um regime de práticas, movimentos, lutas, instituições e pesquisas que

abrem as portas para um futuro não capitalista” capaz de “romper a falsa

alternativa especular entre Estado e mercado” (DARDOT; LAVAL, 2017, p. 15-

18).

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O termo comum tem como referência os Commons, que remetem ao processo

de apropriação de terras utilizadas coletivamente após a supressão dos direitos

habituais nas regiões rurais da Europa, através do “cercamento” de campos e

prados. Originalmente comuns seriam um conjunto de regras que permitiam o

uso coletivo de recursos naturais de uma mesma comunidade. O termo comum

faz referência a oposição do que foi percebido como “segunda onda de

cercamentos”, ou seja, retoma a reflexão a respeito de administrar coletivamente

recursos que estariam fora do âmbito do mercado e do Estado (DARDOT;

LAVAL, 2017, p. 17) e abrange tudo que pode se tornar alvo de privatizações e

exploração sem limites sob o pretexto do desenvolvimento, frequentemente

presente nos discursos oriundos da lógica neoliberal.

Lê-se que a segunda onda de cercamentos diz respeito à expropriação, à

despossessão e aos oligopólios privados de tudo que deveria ser de domínio

público26, marcada pela adoção das práticas neoliberais. A corrente defensora

da privatização dissemina que o Estado não possui capacidade financeira

suficiente para manter os bens de primeira necessidade e que as empresas

podem reunir meios desde que possuíssem liberdade para atribuir valores aos

serviços prestados, aumentando os preços de modo a aprofundar as

desigualdades sociais e acelerar os processos de segregação urbana.

Destaca-se que o movimento de cercamento na atualidade é comandado por

grandes empresas multinacionais com o apoio de Estados submissos à essa

racionalidade e que a sua denúncia enfatiza a tendência da globalização

capitalista. Os cercamentos contribuem para a produção uma sociedade cada

vez mais fragmentada, acelerando os desastres ambientais e transformando a

cultura em produto comercial por intermédio da criação de um mercado

consumidor e indiferente ao destino comum.

A reflexão se estende sobre como a propriedade privada se opõe ao conceito de

comum, pois o princípio do comum é o gerir coletivo e constante de pôr em

comum, então “se o comum tiver de ser instituído, ele só poderá sê-lo como

26 Cita-se como exemplo: produção e distribuição de água, gás, eletricidade, correios, telefonia e televisão; privatização parcial dos mecanismos de assistência social, aposentadoria, ensino superior, educação e saúde; introdução de mecanismos de concorrência e critérios de rentabilidade no conjunto dos serviços público (DARDOT; LAVAL, 2017, p. 104 e 105).

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inapropriável – em hipótese alguma como objeto de um direito de propriedade”

(DARDOT; LAVAL, 2017, p. 245). Argumenta-se ainda, que o comum político é

radicalmente exterior a propriedade e que, mesmo havendo bens comuns, o

comum não é um bem.

Evidentemente, o conflito entre o direito coletivo e a propriedade privada se

estendem para outras esferas, que fazem questionar o papel da democracia uma

vez que um Estado democrático dificilmente sustentaria a propriedade privada.

Os autores propõem a reformulação do direito à propriedade privada, no sentido

de possibilitar usos privados e coletivos coexistindo na mesma propriedade,

tateando limites progressivos ao direito existente na atualidade, a fim de

modificar os costumes da prática e transformar o modo de viver em sociedade.

O processo de despossessão continua a atuar nas periferias através da

aceleração da concentração de renda e da centralização dos recursos e serviços

de primeira necessidade, obedecendo a lógica predatória que se impõe pela

ação governamental em conjunto com as grandes empresas e com o capital

privado. O termo despossessão é usado habitualmente para designar o processo

de cercamento e de separação entre os indivíduos e as condições que

desenvolveram para viver de forma autônoma.

Dardot e Laval enfatizam que não foi a tecnologia que permitiu o trabalho em

rede, mas sim a decisão de trabalhar em cooperação mediante a troca de

informações e através da organização de comunidades que permitiu a criação

da internet27 e da noção de comuns do conhecimento, ou seja, a prática molda

a ferramenta, possibilitando sua expansão e disseminação. Os autores

defendem que as práticas das mídias participativas e colaborativas demonstram

que os fatores sociais têm papel fundamental na produção de bens e serviços.

27 A ARPANET (Advanced Research Projects Agency Network, 1960) foi uma rede estabelecida pelo Departamento de Defesa dos EUA que tinha como base a comunicação horizontal global composta por milhares de computadores, que originou a internet. Essa rede tinha como objetivo impedir a destruição do sistema norte-americano de comunicação pelos soviéticos, em caso de guerra nuclear. Como resultado, tem-se uma rede que não pode ser controlada a partir de nenhum centro (CASTELLS, 1999, p. 44).

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Comum: o fazer coletivo da multidão

Os autores Michael Hardt e Antonio Negri28 formularam teoria do comum

designando-a como autogoverno, uma forma de organização social, a

democracia da multidão.

Referencia-se o termo comum, de acordo com a abordagem de Hardt e Negri,

como à riqueza comum do mundo (os elementos inerentes à natureza), os

resultados da produção social (os afetos, os gestos, os códigos de comunicação

e informação, a produção de conhecimento, dentre outros), as práticas de

interação, cuidado e coabitação dos comuns (HARDT; NEGRI, 2016, p. 8).

Aponta-se, ainda nessa abordagem, que o comum, como conceito e alternativa,

foi alvo de uma exclusão, fruto da polarização entre público e privado,

destacando que num projeto de reconquista o primeiro passo é a expansão do

comum e do poder de democracia da multidão.

O conceito de multidão, segundo os autores, é caracterizado pelas suas

subjetividades: a multidão opõe-se ao individualismo como corpo social. Trata-

se de um corpo social aberto e inclusivo, caracterizado pela ausência de limites

em seu estado originário, de mistura entre grupos e camadas sociais. Aponta-se

que a multidão não é a identidade, como povo, e não é uniformidade, como

massa, mas é através das diferenças e singularidades que se deve produzir o

comum:

(...) A multidão designa um sujeito social ativo, que age com base

naquilo que as singularidades têm em comum. A multidão é um sujeito

social internamente diferente e múltiplo cuja constituição e ação não se

baseiam na identidade ou na unidade (nem muito menos na

indiferença), mas naquilo que tem em comum (HARDT; NEGRI, 2005,

p. 140).

Propõe-se multidão como um conceito que organiza as brechas nas relações

sociais para além do capital e gera a possibilidade do autogoverno dos comuns,

destacando a multiplicidade horizontal e coletiva. Ressalta-se que a multidão não

é um sujeito político espontâneo, mas um projeto de organização política. Nesse

28 Hardt e Negri: Multitude (2004), Commonwealth (2012) e Déclaration (2013).

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sentido, os autores apontam um deslocamento da perspectiva de ser multidão

para o fazer multidão, entendendo que esse processo está alicerçado no

princípio do comum.

Hardt e Negri apontam que a capacidade de organização autônoma da multidão,

a cooperação e produção coletiva são rebatidas diretamente no campo político,

utilizando-se do termo biopolítica29 para designar a produção baseada no comum

e que se resulta no comum. Sob esse aspecto, os autores demonstram que o

fazer da multidão excede os limites do poder, indicando sua incompatibilidade

com o sistema dominante30 (HARDT; NEGRI, 2016, p. 201).

Destaca-se o papel da metrópole como o ambiente que sustenta a atividade da

multidão, da produção biopolítica e do espaço do comum. Os autores sustentam

a importância da metrópole para a multidão, através da analogia: “a metrópole

está para a multidão como a fábrica estava para a classe operária industrial”

(HARDT; NEGRI, 2016, p.278). Aponta-se que a produção do comum tem se

tornado a vida da própria cidade, uma vez que a produção está por toda a parte,

inclusive na vida social, não existindo externalidades. Dentre as características

que contribuem para o fazer da multidão no território da metrópole, os autores

citam a dualidade existente: o imprevisível e aleatório, o encontro com a

alteridade, retratando um lugar de encontros, multiplicidades e singularidades. A

grandeza da metrópole está, de fato, na produção do comum.

É também na metrópole o espaço do antagonismo e da resistência. Destaca-se

que, no mundo globalizado, as cidades e metrópoles não são espaços

homogêneos em seu território total. As divisões geográficas se colocam como

meio de organização, mas a desigualdade se faz presente dentro do próprio

território. Dito isso, há que se destacar que a multidão é também desigual. Os

autores apontam que, através de redes informais de comunicação, mobilidade,

29 O biopoder situa-se acima da sociedade, transcendente, como uma autoridade soberana, e impõe a sua ordem. A produção biopolítica, em contraste, é imanente à sociedade, criando relações e formas sociais através de formas colaborativas de trabalho. (HARDT; NEGRI, 2005, p. 135)

30 Cita-se como exemplo da incompatibilidade do sistema dominante, as formas corrompidas do comum: hierarquias, instituições, divisões e limites que bloqueiam a produção do comum.

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troca e cooperação, utilizadas como estratégia de sobrevivência, encontra-se

recursos para a produção do comum por meio do fazer da multidão.

Além do aspecto político do fazer da multidão, os autores apontam as

possibilidades de produção econômica em que, no contexto da produção

biopolítica, a multidão transforma-se constantemente, expandindo as

possibilidades do comum e do autogoverno coletivo, demonstrando assim que a

produção do comum não está separada da produção econômica, mas é parte

integrante da produção capital.

Multidão, segundo Hardt e Negri, é a expressão da busca pelo comum,

possibilitando que todas as diferenças possam ser expressadas de maneira livre

e igualitária, seria uma rede aberta, que possibilita meios para o agir comum,

compondo-se de todas as diferentes configurações da produção social.

Desse modo, a cultura do comum possibilita repensar a ação política e

desenvolver estratégias de proteção e apropriação daquilo que pertence a todos

e abre portas para a ressignificação urbana por intermédio de uma organização

social baseada em princípios coletivos e colaborativos, em respeito à diversidade

e à promoção de formas democráticas de gerir recursos comuns, a fim de

alcançar uma sociedade mais justa e igualitária. Portanto, a multidão é composta

por singularidades que não conduzem à unidade, mas sim à autonomia em uma

rede de cooperação, ou seja, os autores apontam que “a fratura das identidades

modernas não impede que as singularidades atuem em comum” (HARDT;

NEGRI, 2005, p. 146).

A perspectiva de que a multidão não é um aglomerado de uma única identidade,

mas é composta de diferentes singularidades é, segundo Hardt e Negri, a

indicação do comum como um campo de multiplicidade. Os membros da

multidão são diferentes e não precisam abdicar de sua criatividade ao cooperar

entre si. A multidão é a inteligência coletiva que surge a partir da comunicação e

da cooperação da multiplicidade. O comum está na produção de subjetividades

inerentes às singularidades da multidão.

A abordagem do conceito da multidão evidencia que o comum é, cada vez mais,

uma produção coletiva, e menos um dado inerente – como os elementos

oriundos da natureza, por exemplo. Diante das questões apontadas como

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possibilidades do comum, o conceito de Multidão, como um conjunto de

singularidades composto pelas diferenças inerentes descobre-se, através do

comum, o que possibilita comunicar e agir conjuntamente. É através dessa

interação social que se produz o comum, ou seja, o comum é apresentado por

Hardt e Negri, como um fazer coletivo da multidão.

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2. Estudos de caso: Ressignificação territorial periférica

A partir da discussão apresentada até aqui, compreende-se o território periférico

como um espaço de insurgência, que se coloca como resistência às políticas

segregadoras, à cidadania diferenciada e opõe-se a manutenção das hierarquias

sociais.

Diante disso, optou-se por estudar os modos de ação na periferia de São Paulo,

mais precisamente na Vila Flávia, em São Mateus (Zona Leste), que foi

identificado como um importante expoente no que diz respeito aos modos de

organização coletiva, potencializado pela questão de identidade e do

pertencimento.

Este trabalho não tem a pretensão de promover ou fomentar a cultura periférica:

a produção cultural e coletiva já ocorre há anos. Desse modo, entende-se que o

objetivo é o reconhecimento das ações como caminhos possíveis a seguir, como

alternativa potente diante da polarização entre mercado e Estado. O interesse

está, principalmente na construção coletiva de uma trajetória que não se inicia

na formação de coletivos, mas está presente desde a autoconstrução territorial.

Figura 1: Localização da Vila Flávia. Base: Google Earth. Elaboração da autora.

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Para esse estudo a ação do Grupo OPNI, do Coletivo Coletores e da rede São

Mateus em Movimento foram escolhidas como ações representativas dos

processos de ressignificação da cidade, pois articulam discursos e imagens,

ações políticas e poéticas através de referências materiais e imateriais presentes

no território em que se inserem.

2.1. Critérios e sistematização da pesquisa

Como caráter de sistematização da pesquisa, apresenta-se os principais pontos

a serem abordados no estudo dos coletivos, objetivando a análise comparativa

das atuações a fim de observar particularidades e potencialidades presentes nos

diferentes modos de ação:

• Comunicação: o modo como o coletivo se comunica com a comunidade;

• Participação social: a aderência da comunidade às ações propostas;

• Recursos Financeiros: a fonte dos recursos que mantém o coletivo;

• Articulação: o modo em que o coletivo se relaciona com demais coletivos

e agentes culturais;

• Desdobramentos: resultados das ações propostas.

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2.2. Grupo OPNI

O grupo OPNI, fundado em 1997, promove uma galeria a céu aberto (Favela

Galeria) explorando novos olhares e sentidos, reinterpretando a visão corrente

dos temas cotidianos da periferia, utilizando as casas e muros como suporte das

escrituras da cidade, como pode-se observar por meio das figuras, explorando

uma impactante poética visual e, de forma criativa e coletiva, ressignificam e

constroem novas paisagens urbanas.

O graffiti apresenta-se como um instrumento com potencial pedagógico à revisão

crítica da história oficial, que reproduz o preconceito e a segregação, e como

representativo das relações sociais locais. Por meio da arte o grupo expressa a

invisibilidade sofrida pelo estereótipo periférico.

A referência para a elaboração das temáticas dos grafites são os próprios

habitantes, suas lutas e conquistas, por exemplo, a superação das altas

declividades como uma das dificuldades mais comuns dos processos de

autoconstrução das moradias em territórios periféricos.

A transformação do espaço urbano através de manifestações artísticas não é

algo novo. A cidade de São Paulo é conhecida mundialmente como capital do

grafite e recentemente o tema foi pauta de discussão ampla, devido à discursos

que problematizam formas de produção visual, relacionando-as com a

criminalidade.

No início de 2017, o programa de zeladoria da prefeitura da cidade de São Paulo

– “Cidade Linda” – adotou a medida de apagar amplos murais de grafite na

cidade – como o tradicional exemplo do mural a céu aberto localizado na Av. 23

de Maio, o maior da América Latina. A decisão é acompanhada da aprovação de

um Projeto de Lei (PL 56/2005) que especifica punições para pichadores. O

projeto exclui da punição os grafiteiros, evidenciando a cooptação do grafite por

parte do poder público após o conflito gerado pelo apagamento dos murais,

explicitado pela criação do Museu de Arte na Rua (MAR), que propõe 8 áreas a

serem contempladas com murais de graffiti.

Nessa discussão o graffiti é apontado como produção não erudita de arte, porém

há ampla aceitação popular, reconhecendo tais ações como modo pedagógico

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e espontâneo de arte urbana, legitimadas pelo poder comunicativo que as

imagens possuem. Em contraposição aponta-se a criminalização do picho,

prática essa que é interpretada como ato de rebeldia, uma prática não-artística.

O grupo possui uma sede física que não se encontra aberta constantemente,

devido à falta de recursos para manter o espaço. A sede dispõe de alojamento

para artistas externos, atelier, galeria de exposições e espaço destinado à

oficinas e atividades com a comunidade, onde são ministradas aulas de graffiti

(Figuras 2, 3, 4, 5 e 6).

Figura 2: Sede do Grupo OPNI. Fonte: acervo pessoal.

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Figura 3: Exposição fotográfica "Olhos da Caminhada". Junho de 2018. Fonte: acervo pessoal.

Figura 4: Exposição de obras da artista Crica. Março de 2018. Fonte: acervo pessoal.

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Figura 5: Exposição permanente do Grupo OPNI. Fonte: acervo pessoal.

Figura 6: Atelier e espaço para realização de oficinas e atividades com a comunidade. Fonte: acervo pessoal.

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• Comunicação:

O coletivo se utiliza das redes sociais digitais como principal meio de

propagar as atividades que realizam, dentro e fora da comunidade.

Nas atividades realizadas na Vila Flávia, a comunicação é potencializada

pelos próprios moradores, que se engajam nas propostas e difundem em

seus círculos de relacionamento.

• Participação social:

Nas atividades realizadas na comunidade (workshops, rodas de conversa,

oficinas de graffiti, etc) há muito envolvimento com os moradores. Nas

atividades realizadas em outras localidades, o envolvimento dos

moradores da Vila Flávia é menor, por outro lado, mobilizam as pessoas

de outras localidades, que acompanham o trabalho do grupo.

• Recursos Financeiros

O coletivo já foi financiado pelo edital ProAC Hip-Hop e também pelo edital

VAI. Atualmente, não tem o financiamento por nenhum edital ou fomento

elaborado pelo poder público. Os recursos financeiros oriunda das

atividades que desempenham, demonstrando como consequência a

dificuldade em manter aberto o espaço que foi alugado como sede do

grupo.

• Articulação:

O coletivo é integrante da rede São Mateus em Movimento, além de ser

responsável pela criação do espaço. Possui forte relação com os coletivos

e agentes culturais da região, e expande o repertório ao relacionar-se com

grafiteiros de outras localidades.

Em parceria com outros artistas, o grupo promove oficinas de grafite,

exposições e o programa “OPNI coMvida”, apresentando o projeto

“Favela Galeria” para expoentes da cultura periférica.

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• Desdobramentos:

O conjunto de graffiti nos muros e casas da Vila Flávia se tornou uma

galeria de arte a céu aberto, que recebe visitas semanalmente através do

circuito Favela Galeria31. Relata-se que já foram elaborados mais de 500

murais, mas como o grupo não tem o costume de fazer manutenção nas

obras, não se sabe ao certo quantos murais ainda existem.

O coletivo transforma o espaço da Vila Flávia para além das intervenções

e dos murais. Foi através do graffiti que se possibilitou a canalização do

esgoto que se misturava ao Córrego Cangueiras, diminuindo o risco de

transmissão de doenças e possibilitando a utilização do entorno do rio

como um espaço de lazer (Figuras 7 e 8).

A exemplo das transformações realizadas no entorno imediato do córrego

Cangueiras, o grupo busca parcerias para implementar outras melhorias

na Vila Flávia, como por exemplo a acessibilidade aos portadores de

mobilidade reduzida, uma concha acústica para a realização de shows e

eventos na comunidade, sistema de captação de energia através da luz

solar, etc.

31 Ver mapeamento elaborado pela autora – pag. 46 - 52.

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Figura 7: Córrego Cangueiras em fase de canalização do esgoto. Fonte: acervo Ciranda da Água de São Mateus. Acesso: 16 de setembro de 2018.

Figura 8: Córrego Cangueiras após a canalização do esgoto. Fonte: acervo pessoal.

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Mapeamento Favela Galeria

A galeria a céu aberto (Favela Galeria) nasce de modo natural, com a constante

produção de grafitti e intervenções nas edificações da Vila Flávia.

Com elaboração do espaço São Mateus em Movimento em 2008, formado por

influência do Grupo OPNI, juntamente com outros agentes culturais da região, o

percurso toma forma. A proposta inicial era que as ruas grafitadas fossem uma

indicação de caminho a se percorrer para chegar ao espaço cultural São Mateus

em Movimento.

Atualmente o Grupo OPNI indica a realização de mais de quinhentos murais de

graffiti na Vila Flávia, mas não se tem o número exato, uma vez que o coletivo

não mapeia as obras realizadas e não monitora as obras que ainda existem e as

que foram modificadas pelos moradores. O grupo encara a interferência dos

moradores nos murais com naturalidade, entendendo que é um processo de

mudança constante no território.

O mapeamento aqui representado não aborda todas as obras do grupo, mas se

atém ao percurso proposto pelo coletivo nas visitas guiadas no território da Vila

Flávia. O mapa está subdividido em trechos que facilitam a representação e

exposição das obras, reforçando que não foi o objetivo mapear todos os murais

existentes na Vila Flávia.

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Espaço São Mateus em Movimento

Galeria Grupo OPNI

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2.3. Coletivo Coletores

O Coletivo Coletores, fundado em 2008, atua por meio de duas linguagens

principais: a criação de objetos, através do design social, e as intervenções

gráficas de caráter midiático, transitando entre modos de fazer e diferentes

escalas. Inicialmente o grupo trabalhou com a criação de objetos, ligado à

cenografia, produção de jogos e interatividade do público, buscando a partir de

2010, processos vinculados ao digital, referenciando-se na cultura periférica, nas

artes visuais, no graffiti, no hip-hop, etc.

Tratam-se de vídeo performances projetivas32 que buscam evidenciar, de

maneira crítica, situações precárias vividas na periferia, evocando as memórias

estéticas, sociais e afetivas (Figura 9).

Figura 9: Vídeo projeção sobre as casas da Vila Flávia. Fonte: Santos et. al. (2014) p. 28-29.

32 Devido às limitações impostas pelo formato de entrega das pesquisas acadêmicas, indica-se a busca pelo material disponibilizado no Mini DOC idealizado e produzido pelo Coletivo Coletores, através do patrocínio do Programa de Valorização de Iniciativas Culturais (VAI). Enfatizo que a visualização do material disponível nas redes não substitui a vivência das ações, mas possibilita maior interação entre o objeto de pesquisa e as leituras aqui apresentadas. Disponível no canal do YouTube Coletivo Coletores e <instagram.com/coletivoColetores>.

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Utilizando a cidade como tema constante e como suporte das intervenções, as

ações são de caráter tecnológico, com tempo de duração mais curtos e de cunho

interativo/ participativo, transita entre o real e o midiático e se relaciona

diretamente tanto com o seu suporte, quanto com quem passa e faz do lugar um

espaço social de encontros, regidos pela casualidade.

A ação do coletivo é de cunho cultural que trabalha diretamente com o território,

trazendo um novo olhar ao espaço marcado pela vulnerabilidade, exclusão e

segregação histórica, ressignificando os espaços.

As ações interagem com os grafites existentes nos muros, sobrepondo outras

imagens momentâneas, mediante a criação de camadas que coexistem por

frações de tempo distintas, combinando imagens estáticas à movimentos

computadorizados (Figuras 10, 11, 12 e 13).

Figura 10: Frames do artista Quinho QNH produzindo grafite para o vídeomapping do Coletivo Coletores. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=6BS7rZW6T6E>. Acesso: 30 de

abril de 20

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Figura 11: Frames da performance de dança projetiva no estágio inicial, gravada no fundo chroma key e sua projeção sobre o grafite – Coletivo Coletores. Disponível em:

<https://www.youtube.com/watch?v=6BS7rZW6T6E>. Acesso: 30 de abril de 2018.

Os vídeos performances de dança evocam a cultura do HIP HOP, presente nas

posses da década de 1980, e trazem a pauta da representação das pessoas da

comunidade e o lado humano das intervenções. Nota-se o uso de elementos

intrínsecos à formação da identidade local para realização das ações projetivas

(Figuras 11 e 12).

Figura 12: Vídeo performance de dança projetiva coexistindo com o grafite elaborado pelo Grupo OPNI. Fonte: Santos et. al. (2014) p. 22.

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Figura 13: Coletivo Coletores: pixo digital. Fonte: Santos et. al. (2014) p. 17.

As intervenções do “pixo digital” desordenam os discursos hegemônicos em que

a pichação é esvaziada de sentido e criminalizada, diferentemente do que ocorre

com o Grafite. Entre os grafismos urbanos, a prática que é interpretada como um

dano ao imóvel – por manifestar uma rebeldia estética, opondo-se ao senso

comum e denotando uma forma não legítima de proposição artística – nesse

caso apresenta-se como um ato instantaneamente reversível (Figura 13).

Pode-se dizer que as vídeo-projeções fazem relação direta com os processos de

urbanização: o ritmo acelerado da variação das imagens e a linguagem pautada

por elementos presentes no cotidiano podem ser verificado em ambos os casos.

• Comunicação:

Utiliza-se os meios digitais como principal meio de comunicação das

atividades e através de flyers e painéis elaborados pela organização dos

eventos que participam, além da própria ação, que comunica no seu

entorno imediato.

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• Participação social:

A participação social está diretamente vinculada ao território em que são

feitas as intervenções e também às suas temáticas, não possuindo um

público-alvo, mas transitando entre espaços, faixas etárias, linguagens

produções e proposições.

• Recursos Financeiros:

O coletivo tem uma ampla participação em editais, produzidos pelo poder

público, porém não possui nenhum fomento em vigor, mantendo-se

através das atividades produzidas coletivamente e também das atividades

individuais dos integrantes.

• Articulação:

O Coletivo Coletores é um dos coletivos que integram a rede de São

Mateus em Movimento, apresentando forte relação com os grupos e

agentes locais, além de estabelecer trabalhos em parceria com coletivos

de outras regiões. O grupo trabalha com uma rede de apoio que varia

conforme o trabalho que está sendo realizado.

Estabelece contato com outros agentes culturais, possibilitando ampliar a

gama de trabalhos realizados. Dentre os trabalhos recentes

apresentados33 pelo coletivo, destaca-se o SP na Rua (2018), Ecos de

1968 (2018), Festa Literária Internacional de Paraty (2018), Virada

Cultural da Cidade de São Paulo (2018), Bienal de Dakar (2018), Maio

Amarelo (2018), reinauguração do Sesc Avenida Paulista (2018), SP

Urban Digital Festival (2017), dentre outros.

• Desdobramentos:

As ações do coletivo transformam o modo de relação das pessoas com

os espaços: a rua deixa de ser um espaço de circulação e passa ser um

espaço de percepção e de questionamento, uma vez que as ações são

propostas com mensagens de cunho reflexivo.

33 Imagens e vídeos disponíveis através do Instagram @coletivoColetores

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Projeção SP na Rua – Edifício Correios

A sexta edição do evento SP Urban Digital, realizada no dia 13 de outubro no

centro da cidade de São Paulo, apresentou como uma das atrações, a projeção

de vídeo mapping na fachada do edifício do Centro Cultural Correios (Vale do

Anhangabaú), propondo uma performance visual com cerca de dez horas

seguidas.

O Coletivo Coletores apresentou como proposta a linguagem encontrada no

centro da cidade: picho, estêncil, sticker, lambe-lambe, etc. Para além da

linguagem de rua, o grupo apresenta uma crítica ao estado dos museus em

território nacional, referindo-se a esses espaços como “inflamáveis”.

Figura 14: SP na rua – outubro de 2018. Projeção do Coletivo Coletores no edifício do Centro Cultural Correios (Vale do Anhangabaú). Fonte: acervo pessoal.

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Figura 15: SP na rua – outubro de 2018. Projeção do Coletivo Coletores no edifício do Centro Cultural Correios (Vale do Anhangabaú). Fonte: acervo pessoal.

Figura 16: SP na rua – outubro de 2018. Frames da projeção do Coletivo Coletores no edifício do Centro Cultural Correios (Vale do Anhangabaú). Fonte: acervo pessoal.

Figura 17:SP na rua – outubro de 2018. Frames da projeção do Coletivo Coletores no edifício do Centro Cultural Correios (Vale do Anhangabaú). Fonte: acervo pessoal.

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Projeção “Ecos de 1968” – 50 anos da batalha Maria Antônia

O Centro Universitário Maria Antonia (CEUMA) promoveu uma série de eventos,

entre os dias 2 e 5 de outubro, com a temática de resgatar alguns

acontecimentos ocorridos em outubro de 1968, conhecidos como a Batalha

Maria Antonia.

O Coletivo Coletores foi convidado a participar da inauguração desses eventos,

intervindo no edifício com a performance “Ainda Resistimos”, vídeo mapping que

retoma a luta popular através das manchetes de jornais, das pichações feitas no

edifício (em 1968), combinando texto e imagem, além da projeção de fotos feitas

por Hiroto Yoshika.

Figura 18: Frames da projeção do Coletivo Coletores no Edifício Maria Antônia - “Ecos de 1968”. Fonte: acervo pessoal.

Figura 19: Frames da projeção do Coletivo Coletores no Edifício Maria Antônia - “Ecos de 1968”. Fonte: acervo pessoal.

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Figura 20: Frames da projeção do Coletivo Coletores no Edifício Maria Antônia - “Ecos de 1968”. Fonte: acervo pessoal.

Figura 21: Frames da projeção do Coletivo Coletores no Edifício Maria Antônia - “Ecos de 1968”. Fonte: acervo pessoal.

Figura 22: Frames da projeção do Coletivo Coletores no Edifício Maria Antônia - “Ecos de 1968”. Fonte: acervo pessoal.

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2.4. Coletivo São Mateus em Movimento

O coletivo São Mateus em Movimento34 localiza-se na Favela de Vila Flávia e

nasce da efervescência cultural da região. As ações culturais no território de São

Mateus são marcadas pelas rodas de samba nos quintais, em meados dos anos

1970 e, posteriormente, os movimentos ligados ao Hip Hop. Esses movimentos

culturais apresentam como característica a pluralidade e a coletividade dos

sujeitos.

Herdeiros desse cenário, o espaço comunitário São Mateus em Movimento

nasce em 2008, a partir da influência dos integrantes de diversos coletivos e

agentes culturais, principalmente de Toddy (pertencente ao Grupo OPNI) e

Negotinho, apresentando-se desde o início como uma rede de colaboração.

A palavra movimento adicionada ao nome São Mateus tem a conotação da arte:

o movimento da capoeira, dança tradicional brasileira; o movimento do drible de

futebol, vencendo os obstáculos; o movimento dos instrumentos de percussão e

os gestos de artesãos: o movimento é a luta por justiça social.

O espaço físico foi cedido por uma moradora da Vila Flávia, Dona Vera (mãe de

Negotinho), que destinou parte de sua residência para a materialização desse

projeto. (Figura 23).

34 http://www.saomateusemmovimento.org/

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Figura 23: Espaço independente São Mateus em Movimento. Fonte: acervo pessoal.

• Comunicação:

O coletivo utiliza-se das redes sociais

como meio de propagar workshops,

rodas de conversa, eventos musicais e

culturais, além de utilizar panfletos e

painéis que divulgam as atividades

fixas: atualmente realizam-se oficinas

semanais, com a temática cultural e

artística (Figura 24). Os educadores

são, em grande parte, moradores

locais que se envolveram na proposta

do coletivo.

Figura 24: Panfleto com a programação das atividades semanais no espaço São Mateus em Movimento. Fonte: acervo São Mateus em Movimento.

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• Participação social:

Há ampla participação da comunidade – principalmente crianças e jovens

– nas atividades culturais que ocorrem semanalmente. Dentre os eventos

que mobilizam a comunidade, cita-se como exemplo o “Ensaio Geral”, que

possibilita que artistas locais possam se apresentar para a comunidade,

transformando a rua em um espaço de evento.

Há uma forte adesão dos jovens da região ao Cursinho Popular, realizado

desde 2015 através de uma parceria com a Uneafro35 e ministrado em

uma escola pública na proximidade (E.E. Chibata Miyakoshi).

• Recursos Financeiros:

O coletivo já recebeu auxílio por meio dos editais Redes e Ruas, ProAC

Territórios das Artes, Lei de Fomento à Periferia. Além dessas fontes de

recursos, o grupo disponibilizou o financiamento coletivo online, como

meio de agregar mais recursos para manter o coletivo.

O grupo tem se mobilizado para receber apoio financeiro dos

comerciantes regionais e estabelecer parcerias que fortaleçam a ação dos

coletivos e diminua a criminalidade da região, possibilitando um cenário

de maior segurança para os comércios locais.

• Articulação:

A rede de colaboração São Mateus em Movimento agrega coletivos

culturais da região, catalisando e difundindo ações que possibilitam o

encontro dos habitantes com ações culturais e sociais em caráter de

colaboração e coletividade (Figura 25).

O coletivo participa da ação educativa Estéticas das Periferias36, que tem

como característica a mobilização e experimentação artística das regiões

com maior índice de vulnerabilidade social.

35 Rede de articulação e formação de jovens e adultos moradores das periferias do Brasil. http://www.uneafro.org/

36 http://www.esteticasdasperiferias.org.br/

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Figura 25: Articulação dos coletivos atuantes em São Mateus e principais influências na Zona Leste. A descrição dos coletivos está disponível no Anexo 1. Elaboração da autora.

• Desdobramentos:

O coletivo São Mateus em Movimento, em parceria com agentes culturais,

artistas e moradores da região promoveu a ressignificação de um espaço

destinado ao descarte de lixo irregular, pelos próprios moradores. Após a

retirada do lixo e entulho que estava acumulado em uma das esquinas, o

espaço foi limpo, houve plantio de algumas mudas, pintura e produção de

graffiti, além da instalação de bancos, possibilitando a ocupação do

espaço de modo lúdico (Figuras 26 e 27).

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Figura 26: Esquina com descarte de lixo antes da intervenção dos moradores. Fonte: acervo São Mateus em Movimento. Acesso: 18 de outubro de 2018.

Figura 27: Projeto “Esquina Limpa”. Espaço que fora destinado ao descarte de lixo e entulho após a intervenção dos moradores. Fonte: acervo pessoal.

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2.5. Programas de incentivo e editais públicos

A temática dos programas de incentivo e dos editais de financiamento para

ações coletivas foi recorrente nos discursos dos agentes atuantes em coletivos

da Vila Flávia. Desse modo, verifica-se a importância da abordagem do tema,

por corresponder a um dos principais meios de viabilização financeira das ações

coletivas propostas pelos grupos aqui apresentados.

O enfoque dos editais será realizado sob a ótica do peso do Estado nas ações

coletivas, demonstrando que os incentivos viabilizam as ações, mas ao mesmo

tempo burocratizam a gestão coletiva, desestimulando as ações espontâneas.

O grupo OPNI recebeu auxílio nº35/2013 com o projeto “Galeria a Céu Aberto

de São Mateus: Graffiti e Rodas de Conversa” e o Coletivo Coletores recebeu

auxílio nº180/2014 com o projeto “Atelier Livre (media lab) Vídeo Performance

Projetiva” através do programa VAI (programa para valorização de iniciativas

culturais) que disponibiliza verba para que grupos ligados à cultura possam

viabilizar seus projetos a fim de estimular as dinâmicas culturais locais, em que

os projetos são selecionados por intermédio de um edital anual.

O Coletivo Coletores, em parceria com o programa Media Lab São Mateus em

Movimento, foi contemplado com o Edital Redes e Ruas (2015) para ação de

formação, intervenção e difusão da cultura digital.

O espaço São Mateus em Movimento foi contemplado recentemente com o

Edital ProAC Território das Artes, já tendo recebido outros auxílios em parceria

com os coletivos da região, conforme citado (Tabela 1). O grupo também

promove cursos de apoio, preparatórios para a montagem de projetos que

possam concorrer aos editais disponíveis.

É importante ressaltar que a articulação dos grupos artísticos periféricos, com o

auxílio do Movimento Cultural das Periferias37 conseguiu aprovar a Lei de

Fomento à Cultura da Periferia (Lei Municipal nº16.496/2016) em que os bairros

mais afastados tenham maior parcela de verba pública. O movimento exige que

37 O Movimento Cultural das Periferias (MCP) é composto por diversas coletividades, grupos, artistas e movimentos periféricos de organização comunitária e coletiva. https://.facebook.com/MovimentoCulturaldasPeriferias

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3% do orçamento da cidade – ainda em debate na Câmara Municipal – seja

destinado aos territórios periféricos e que 50% dessa verba sejam aplicados em

atividades culturais realizadas em regiões periféricas.

COLETIVO AÇÃO TEMPO DE

ATUAÇÃO

EDITAIS

CONTEMPLADOS

Grupo OPNI Graffiti Desde 1998

ProAC Hip-hop,

VAI, Fomento à

Periferia

Coletivo

Coletores

Vídeo-projeção e

design social Desde 2008

VAI 1 e 2, Redes e

Ruas

São Mateus em

Movimento

Espaço de

formação, apoio

e difusão cultural

Desde 2008

Fomento à Periferia,

ProAC Território

das Artes, Redes e

Ruas

Tabela 1: Coletivos e atuação conforme os editais contemplados. Elaboração da autora.

Os programas de incentivo e financiamento de ações culturais trazem a

perspectiva de fomentar ações de culturais de iniciativa popular. Há, também, o

reconhecimento de potencialidades nas ações, uma vez que cumprem o papel

de produtoras de experiências culturais, relacionadas à precariedade de ações

de cunho cultural e educativo nas regiões periféricas.

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Edital ProAC

O Programa de Ação Cultural (ProAC), instituído pela lei nº 12.268/2006 e

regulamentado pelo decreto 54.275/2009, através da Secretaria Estadual da

Cultura, tem como objetivo patrocinar a produção e difusão artística e cultural no

Estado de São Paulo.

O programa é apresentado em formato de edital desde 2016, dividindo-se em

categorias: Teatro, Dança, Artes Cênicas, Artes Visuais, Musica, Sarau,

Economia Criativa, Produção Audiovisual, Manifestações Culturais, dentre

outras.

Os projetos devem ser inscritos na plataforma do Edital, podendo ou não receber

a verba para a sua realização, segundo a comissão julgadora. A verba varia

conforme a categoria em que se encontra e deve-se realizar a prestação de

contas regularmente para o repasse das porcentagens acordadas no edital.

A categoria alcançada pelo Coletivo São Mateus em Movimento é Território das

Artes, destinada para espaços independentes de apoio cultural. Os projetos

contemplados nessa categoria recebem cerca de 100 mil reais para a realização

do projeto e devem apresentar atividades de formação e difusão de artes,

intervenções, workshops, debates e palestras pautadas pela cena cultural e

intercâmbio com artistas regionais.

O Grupo OPNI recebeu apoio do ProAC através do edital Hip-Hop, que tem como

objetivo fomentar as manifestações artísticas desse universo através de quatro

pilares: o DJ (Disc Jockey – artista responsável pela discotecagem da musica),

o MC (Mestre de Cerimônias – o artista que tem a função de cativar o público

através de suas letras e da improvisação), o Breaking (dança) e o Graffiti.

O edital apresenta como exigência a comprovação do espaço com sede há mais

de dois anos e seu histórico de atividades, o interesse e prática em diferentes

linguagens artísticas, a formação e difusão pública, a fim de decentralizar e

garantir a universalização da produção cultural no território estadual.

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Edital Redes e Ruas

O edital Redes e Ruas é uma iniciativa da Prefeitura de São Paulo por meio da

parceria entre as secretarias municipais de Cultura, dos Direitos Humanos e da

Cidadania e Serviços38 que apoia propostas de inclusão, cidadania e cultura

digital, que deverão prever, ações a serem desenvolvidas em praças do

programa WiFi Livre SP e em parceria com os Pontos de Cultura de São Paulo.

O programa seleciona até 47 projetos de cultura digital que propõem a relação

entre processo criativo, inclusão digital e ocupação dos espaços públicos,

contemplando ONGs e coletivos com aproximadamente 50 mil reais por projeto.

O edital aponta como um dos objetivos a identificação de novas tecnologias

como ferramenta de reivindicação do direito à cidade e da participação social.

Dentre os projetos selecionados, há quatro categorias de ação: Robótica livre,

desenvolvimento em software livre e internet das coisas (até 15 projetos);

Midialivrismo (até 12 projetos); Intervenção Digital (até 15 projetos); e Formação

em rede (até 5 projetos). Os projetos devem apresentar o plano de trabalho com

duração entre 7 meses e 10 meses, os objetivos a serem alcançados, o

orçamento detalhado e a indicação dos locais em que serão realizadas as ações.

Os projetos selecionados e contemplados com o recurso devem apresentar,

periodicamente, prestação de contas através de relatórios, planilha de gastos,

resultados alcançados e repercussão das atividades. São previstas penalidades

para o descumprimento das premissas propostas no edital.

O edital é um programa anual desde 2014, porém a última edição foi verificada

no ano de 2016, não se apresentando como programa efetivo desde a mudança

de gestão na cidade.

38 O edital apoia-se nos Decretos Municipais nº 51.300/2010, 49.539/2008 e 40.384/2001.

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Edital do Programa para Valorização de Iniciativas Culturais

O programa para a Valorização de Iniciativas Culturais (VAI) - lei 13.540 e

regulamentado pelo decreto 43.823/2003, de autoria do então vereador Nabil

Bonduki – apoia financeiramente grupos de baixa renda que se propõe a

promover cultura com a identidade local periférica. O programa tem como

objetivo estimular o desenvolvimento e a inclusão cultural de agentes locais que

são selecionados a partir de um edital anual, separado em duas modalidades.

A primeira modalidade contempla coletivos formados prioritariamente por jovens

de baixa renda com idade entre 18 e 29 anos. Os grupos não podem ser pessoas

jurídicas, devem comprovar residência na cidade de São Paulo por, no mínimo,

dois anos e devem apresentar projetos com duração entre oito meses e dez

meses, com orçamento máximo de quarenta mil reais, repassado em duas

parcelas. O benefício não pode ser aplicado em reforma e aquisição de bens

imóveis. O mesmo vale para a segunda modalidade do projeto, com a diferença

que o orçamento máximo não deve ultrapassar os oitenta mil reais, também

repassado em duas parcelas. A segunda modalidade permite a aplicação de

30% do valor total em bens imóveis desde que haja relação entre o uso e o

projeto apresentado.

Os grupos que já foram contemplados em outros editais de fomento a atividades

culturais não podem receber o auxílio. Uma vez selecionado para o recebimento

do recurso, os grupos devem prestar contas das ações desenvolvidas,

apontando os resultados previstos e os que se concretizaram, a estimativa de

custos e os custos reais, além da repercussão do projeto na localidade em que

se dispuseram a atuar. Uma equipe da prefeitura realiza o acompanhamento do

projeto, por meio de encontros periódicos e solicitação de relatórios, com o

objetivo de comprovar a realização do projeto e verificar a utilização dos

recursos, prevendo penalidades para o descumprimento das premissas

propostas no edital.

Esse edital é considerado pelos grupos como um incentivo inicial, uma vez que

os projetos apresentados são de curta duração e possuem baixo orçamento para

repasse aos coletivos.

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Edital da Lei de Fomento à Cultura da Periferia

O programa de fomento à cultura da periferia de São Paulo é instituído pela lei

municipal nº 16.496/201639, que regulamenta o apoio financeiro a projetos de

cunho cultural propostos por coletivos localizados nas periferias da cidade, com

o objetivo de ampliar o acesso aos meios de produção culturais, consolidar o

direito à cultura em localidades com altos índices de vulnerabilidade social,

fortalecer práticas sociais relevantes, descentralizar e democratizar o acesso a

recursos públicos, reconhecer e valorizar a pluralidade das ações, dentre outros.

Esse edital é considerado, pelos coletivos, como o mais importante dos editais,

uma vez que surge da articulação dos coletivos culturais periféricos. A primeira

proposta foi pensada na Zona Leste de São Paulo, na região de Ermelino

Matarazzo (ocupação Mateus Santos), com base na Lei de Fomento ao Teatro

e na Lei de Fomento à Dança. Foi, porém, a partir de 2013, com a articulação

gerada na Zona Leste, na 3ª Conferência Municipal de Cultura, os coletivos

periféricos das demais regiões se alinham juntos, no chamado Movimento

Cultural das Periferias. O texto da lei de Fomento à Cultura da Periferia foi

cunhado em reuniões coletivas, pensando em um programa que poderia, de fato,

dar estrutura e maior suporte às iniciativas coletivas periféricas.

Entre os anos de 2013 e 2016 o Movimento Cultural das Periferias organizou

uma série de atos de disputa institucional (Figura 28), na Secretaria de Cultura

e na Câmara Municipal de Vereadores, que reivindicavam a criação da Lei de

Fomento à Cultura da Periferia, sendo aprovada apenas em 21 de junho de 2016.

O texto da resolução (PL0624-2015) previa, inicialmente, verba total de vinte

milhões de reais para o fomento à cultura de periferia, com valores fixados

aumentando gradualmente, destinando porcentagens diferentes conforme os

bolsões de alto índice de vulnerabilidade social. Atualmente, o edital conta com

apenas sete milhões e quinhentos mil reais para repasse aos coletivos. O texto

inicial previa, também, que o edital fosse publicado como um prêmio, diminuindo

a burocratização na prestação de contas.

39 Lei Federal nº 13.019/2014, os Decretos Municipais nº 57.575/2016 e nº 51.300/2010 e demais normas aplicáveis.

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Figura 28: Ato "Jornada de Lutas Periféricas" 19/04/2016. Fonte: acervo do Movimento Cultural das Periferias. Acesso: 22 de julho de 2018.

A resolução categoriza três áreas da cidade, baseada no levantamento do IBGE

(2010), a fim de estipular proporcionalmente a destinação de recursos,

priorizando as áreas de alto índice de vulnerabilidade social, com mais de 20%

de domicílios com renda de até meio salário mínimo per capita (Figura 29).

Os grupos selecionados receberão entre 105 mil reais e 315 mil reais destinados

para cobrir as despesas do desenvolvimento do projeto – com duração máxima

de 24 meses – e despesas gerais, devendo apresentar cronogramas, plano de

trabalho, prestações de contas e relatórios para o repasse do valor. Um

representante da Secretaria Municipal da Cultura estará responsável por

monitorar os projetos contemplados e emitir um parecer técnico junto ao

processo administrativo. São previstas penalidades para o descumprimento das

premissas propostas no edital. Aponta-se como melhoria a escrita dos editais,

com o emprego de textos menos formais e da adoção do formato “pergunta-

resposta”, facilitando a compreensão e possibilitando maior aderência aos

editais.

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Figura 29: Diagrama da distribuição de recursos por área, segundo a Lei de Fomento às Periferias. Base Cartográfica: Mapa Digital da Cidade (MDC). Elaboração da autora.

Considera-se como coletivo, nesse caso, um agrupamento pessoas que atuem

culturalmente pelo menos nos três anos anteriores à inscrição. Os coletivos

devem apresentar a relação dos integrantes, contendo um núcleo principal de

três integrantes – responsáveis juridicamente pelo coletivo, apresentando o

Cadastro de Pessoas Físicas sem irregularidades – juntamente a ficha técnica

dos demais integrantes, os dados cadastrais de cada um, indicando em qual

área residem, histórico e portfólio das atividades exercidas nos últimos três anos,

juntamente com os objetivos do coletivo. Para o repasse da verba, estipula-se

um dos membros do núcleo do coletivo – denominado Proponente – como

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responsável para assinar a contratação do projeto junto à Secretaria Municipal

de Cultura, pelo recebimento da verba e pela prestação de contas.

Os critérios para escolha dos grupos apontam para a relevância do coletivo a

partir do histórico, a pertinência da sua continuidade, as dificuldades

econômicas, a diversidade da proposta e do público contemplado além da

coerência do plano de trabalho e orçamento previsto.

O foco do edital é o patrocínio de ações culturais com vínculo social, por meio

de intervenções relacionadas diretamente ao território em que se inserem e

proponham modos alterativos de diminuição dos índices de vulnerabilidade

social.

Uma das conquistas do Movimento Cultural das Periferias é que pelo menos um

dos avaliadores da Comissão de Avaliação seja indicado pelos coletivos. Ao se

inscreverem, os grupos podem indicar um nome para a comissão. Desse modo,

a composição da comissão é dada pelo número de coletivos inscritos: Se forem

até cem projetos inscritos, a comissão será formada por três integrantes em que

dois são representantes governamentais e um será o representante indicado

pelos coletivos. Para cada centena de projetos, a comissão agrega mais dois

representantes, sendo um representante governamental e um representante

indicado pelos coletivos.

O edital apresenta um caráter revolucionário, pois legitima a figura do coletivo

cultural, distribui os recursos de modo proporcional aos índices de

vulnerabilidade, possibilita o financiamento de projetos longos (Tabela 2) e

apresenta a possibilidade de representação na comissão avaliadora.

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ProAC Redes e Ruas Valorização de

Iniciativas Culturais (VAI)

Lei de Fomento à Cultura de Periferia

Abrangência Estadual Municipal Municipal Municipal

Resolução Lei 12.268/2006

Lei 51.300/2010

48.539/2008

40.384/2001

VAI 1 – Lei

13.540/2003

VAI 2 – Lei

15.897/2013

Lei 16.496/2016

Valor R$ 100 mil por

projeto

R$ 50 mil por

projeto

VAI 1 – De R$ 15

mil a R$ 40 mil por

projeto

VAI 2 – De R$ 40

mil a R$ 80 mil por

projeto

De R$ 100 mil a

R$ 300 mil por

projeto

Duração Até 8 meses De 7 a 10

meses De 8 a 10 meses

De 12 a 24

meses

Uso do subsídio

Varia conforme

a categoria em

que o projeto foi

inscrito.

Restringe-se o

uso do subsídio

para aquisição

de imóvel.

A compra de

equipamentos

não deverá

ultrapassar 20%

do valor total do

subsídio.

VAI 1 – vetado o

uso dos recursos

para adquirir

imóvel.

VAI 2 – possibilita

que até 30% do

subsídio seja para

aquisição e/ou

reforma de imóvel.

Permite que o

valor de subsídio

seja utilizado

para reformas e

manutenção de

espaço, desde

que seja

apresentada

notas fiscais dos

serviços

contratados.

Participação

Varia conforme

a categoria em

que o projeto foi

inscrito.

Podem se

inscrever

pessoas físicas

e pessoas

jurídicas sem

fins lucrativos.

VAI 1 – Restringida

a, no máximo,

duas vezes por

grupo.

VAI 2 – Grupos

com histórico de

ação comprovada

por no mínimo 2

anos.

Distribuição dos

recursos limitado

conforme a

região. Grupos

com histórico de

ação comprovada

por no mínimo 2

anos.

Tabela 2: Características dos editais de financiamento. Elaboração da autora.

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Plataforma SP Cultura

A plataforma SP Cultura40 é baseada no sistema colaborativo que permite

mapear o cenário cultural da cidade de São Paulo. Os agentes culturais se

cadastram online e gratuitamente, divulgando seus projetos, indicando a

localização dos espaços de cultura independentes e acessando agenda cultural

(Figura 30).

Figura 30: Plataforma SP Cultura: agentes, coletivos e espaços na região de Vila Flávia, São Mateus. Fonte: SP Cultura. Acesso: 22 de julho de 2018.

Através da plataforma, é possível acessar os programas de incentivo e os editais

públicos, podendo também cadastrar os grupos para concorrer ao recebimento

dos editais.

Os grupos periféricos apontam que a maior falha da plataforma é não possuir

formato para acesso remoto (através dos smartphones e dos tablets), o que

dificulta a utilização pela população de baixa renda, uma vez que parte dessa

população não tem acesso a computadores.

40 Disponível em: http://spcultura.prefeitura.sp.gov.br/

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3. A experiência dos coletivos

A cidade como um elemento dinâmico, plural e extremamente complexo, é uma

obra aberta, um produto coletivo. As intervenções apresentadas reforçam que o

sentido de pertencimento (e de formação identitária) predispõe uma ligação

inseparável entre os meios materiais e os elementos imateriais, e relaciona-se

diretamente com a ação coletiva no território, influenciando e modificando os

elementos materiais. Diante dessas perspectivas, importa reconhecer os

movimentos periféricos insurgentes como evidências da degradação do

urbanismo regido pelo capital, que estabelece regras a partir de áreas

abrangentes e ignora as potencialidades locais. Os coletivos se apresentam

como uma alternativa descentralizadora dos processos de produção urbana.

Os espaços periféricos enquanto espaço de mobilização política tem como

potencialidade a vida cotidiana que, diferentemente das centralidades,

comparece nas relações de cooperação e maior aproximação dos moradores,

mobilizando movimentos insurgentes a partir de um horizonte social comum e

fortalecendo o pertencimento e a identidade local.

Semelhantemente, o significado de coletivos culturais apontado por parte dos

integrantes, diz respeito às relações estabelecidas entre os participantes de um

mesmo coletivo. Destaca-se que a formação de um coletivo não é estática: está

atrelada a sua ação, à predisposição e engajamento das pessoas nas ações,

mas principalmente à construção de uma relação de troca.

Pra mim o pensamento de coletivo é quando você coloca mais de uma

pessoa... é... se propondo a uma ação de colaboração... basicamente

a partir de um objetivo comum e de uma necessidade comum

diferentes pessoas se organizam e pensam em uma ação conjunta.

Essa ação conjunta... ela pode ser uma ação de colaboração, uma

ação de coletividade e a partir de um conjunto de ações desses

mesmos grupos ou de ações que se aproximam da mesma temática,

você pode configurar aquela manifestação como um coletivo (Toni –

Coletivo Coletores).

Pra mim, coletivo seria esse trabalho feito, no nosso caso, feito à

muitas mãos. Essa junção de forças pra um bem em comum. No caso

da produção artística a gente gosta muito dessa junção de

singularidades, quando nós podemos ser nós mesmos, mas ao mesmo

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tempo sermos também uma coisa além, que é um trabalho onde a

finalidade acaba sendo conjunta e não sendo individual. É também,

desde o momento em que surgiu, também um questionamento com

relação a nossa sociedade cada vez mais individualista, que busca

mais o indivíduo ao invés do grupo, no sentido que não é ruim, mas ao

mesmo tempo que só se baseia em indivíduos, só se baseia em

individualidade e se perde muita coisa também. A ideia do coletivo

também é, ao meu ver, junção de forças e isso é um pouco da nossa

história. Pra mim o coletivo é um pouco da nossa história de

resistência. A resistência periférica, a resistência de quem tá a margem

e historicamente ela é coletiva, ela tem muitos indivíduos, mas ela é

uma história coletiva. É uma história das rodas, é uma história dos

quilombos, dos terreiros, das rodas de capoeira, das crews. A ideia de

se juntar, de tá junto faz parte um pouco dessa produção que a gente

encontra no nosso meio, o lugar que a gente vive, o lugar que a gente

defende. De um modo mais direto, coletivo é a resistência cultural das

periferias (Flávio – Coletivo Coletores).

A gente acredita que um grupo tem que viver por um objetivo. Não tem

essa questão da vaidade, a gente vive por um objetivo. Com certeza,

com o fato de a gente tá na linha de frente, a gente fica mais visado,

mas o principal não é nós, mas sim a nossa arte. Se essa arte tá se

comunicando para o nosso povo né (Val – Grupo OPNI).

Pra mim, trabalhar com coletivo sempre teve esse lance de entender a

opinião de cada um né, tentar sempre ter a participação, mas que sua

participação não seja só a sua ideia, o principal né, então tem que ter

alguns cuidados. Eu trabalhei com muitos que houve também

dificuldades, que não foi fácil você defender a sua ideia e as vezes as

pessoas estarem propondo outra que não se enquadra nem no que

você tem como proposito de trabalho. Ao mesmo tempo isso ajudou

também a fortalecer alguns coletivos pra trabalhar junto, entender

como cada um trabalha né (Quinho – Operação Tinta no Muro).

Verifica-se que o modo de organização coletiva não está relacionado apenas a

uma temática ou a uma ação, mas engloba o modo de pensar as relações entre

as pessoas, refletindo-se diretamente no espaço urbano.

A construção coletiva da cultura local, presente desde os movimentos de posse,

possibilita repensar a questão da representatividade periférica. Em muitos casos

observa-se a insurgência coletiva alcançando pessoas, nas comunidades, em

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que o poder público não foi capaz de alcançar. Através de ações culturais e

artísticas, com cunho pedagógico, com baixo recurso financeiro, a realidade de

uma parcela da população pôde ser ressignificada e transformada.

Não é raro observar que as ações propostas por coletivos que se desenvolvem

em um mesmo espaço territorial apresentem a complementaridade das ações,

construindo pontes e ampliando o diálogo através da pluralidade e do

fortalecimento das identidades periféricas.

Desse modo, ressalta-se o poder do cidadão em moldar, mesmo que de forma

discreta e singela, a realidade da cultura marginalizada, possibilitando a

transformação efetiva da vida cotidiana através da complementariedade de

narrativas e de ações.

3.1. Comunicação

As intervenções visuais são potentes no que diz respeito à comunicação em

massa, apresentando uma linguagem que é capaz de alcançar diferentes

contextos, classes sociais, faixas etárias, nível de instrução escolar, etc.

O papel das mídias digitais, enquanto meio de comunicação em massa, é

expresso como um aparato para transmissão de ideias, memórias, significados

e valores capazes de denunciar, através de uma singela construção habitacional,

a condição de segregação socioespacial que se repete por décadas.

Os movimentos sociais são conectados em redes multimodais. É essencial a

conexão mediada pela internet em um primeiro momento, mas, dentro do

movimento, são criadas redes por intermédio da prática continuada, uma vez

que a base dos movimentos seja o espaço urbano.

A internet cria condições de mobilizar, mas o instrumento de mudança está na

experiência e conexão real entre pessoas com os mesmos objetivos atuando no

espaço urbano em prol da reivindicação do direito à cidade e da superação de

uma dominação institucionalizada. O processo de comunicação em massa é um

dos elementos que compõem os movimentos sociais, mas a efetivação das

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ações se dá na ressignificação do espaço urbano, subvertendo a lógica

dominante.

As ferramentas de comunicação e informação, segundo o filósofo Pierre Levy,

incitam a reinvenção do laço social, através da do aprendizado recíproco e do

trabalho comum, integrando um processo social dinâmico capaz de formar a

inteligência coletiva. Nesse sentido, reforça-se que a comunicação tende a unir

grupos que estão dispersos geograficamente, através da mobilização social

facilitada pelos meios digitais.

Por outro lado, como enfatizado por parte dos autores aqui apresentados, as

ferramentas de comunicação digitais não são um fim em si mesmas, mas a

comunicação se dá, de fato, no espaço urbano, através das ações e

principalmente das mediações sociais que se encontram embutidas nos

discursos:

Hoje o Coletivo Coletores, ele trabalha com a plataforma corpo-a-corpo

e com as plataformas digitais. A plataforma corpo-a-corpo, ela funciona

muito a comunicação ali in-loco, quando a estrutura já tá montada. Às

vezes pode ser um evento que não tenham muitas pessoas, mas a

partir do momento em que a ação começa, quer seja de projeção, quer

seja uma oficina, quer seja um outro tipo de intervenção, ela se faz no

espaço e aí a gente consegue dialogar com diferentes pessoas e a

partir da relação com essas pessoas é... a gente cria uma comunicação

que essas pessoas viram mini redes e essas pessoas vão divulgando

o próprio trabalho né (Toni – Coletivo Coletores).

É um diálogo. Eu penso a imagem como um texto, de você poder fazer

a leitura. Então depende do que você tá propondo (Quinho QNH –

Operação Tinta no Muro).

Desse modo, ressalta-se a articulação da mensagem como algo que precede o

meio utilizado para a propagação, reafirmando a construção metodológica do

processo comunicativo, não sendo possível vincular a insurgência de grupos

exclusivamente aos avanços tecnológicos, mas entendendo os processos das

mediações através do contexto histórico em que se inserem.

As mediações, presentes na disseminação de uma mensagem, podem ser lidas,

no contexto dos coletivos aqui apresentados, como relações afetivas entre os

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habitantes e os sujeitos coletivos, demonstrando que os fatores envolvidos na

propagação de ideias são flexíveis e permeiam as questões de identidade e de

pertencimento, inerentes às articulações sociais estabelecidas no território.

Destaca-se a comunicação como um processo que se estabelece através de

simbolismos sociais, em que a informação está relacionada com a dimensão

geográfica ou política, considerando o território e contexto histórico social de um

povo, como mediação entre a mensagem a ser disseminada e a população a ser

atingida.

3.2. Participação social

A participação social se faz presente na ressignificação do espaço, ainda que

efêmera, mas com potencial questionador a ponto de modificar posturas e

leituras cotidianas. A ação dos coletivos trabalha diretamente com o território,

trazendo um novo olhar ao espaço marcado pela vulnerabilidade, exclusão e

segregação histórica, ressignificando os espaços.

O conceito de cidadania insurgente, apresentado por Holston, está diretamente

ligado à mobilização e reivindicação dos habitantes por demandas do cotidiano.

O autor aponta que a insurgência se inicia a partir da década de 1930, com o

início do processo de periferização. As demandas cotidianas, que inicialmente

eram por habitação, transformaram-se no decorrer do tempo:

(...) mas a gente vê que o ser humano tem outras necessidades. E a

gente viu que há a necessidade da arte além do nosso percurso social

que a gente tem aqui dentro da comunidade. Precisava ter um espaço

que poderia dialogar sobre a arte de uma forma de comercializar ela.

É onde a gente faz o espaço físico né, que é o espaço físico Favela

Galeria. Então a gente traz as pessoas, as pessoas vêm aqui, troca,

tem coisas vendendo sobre arte. Tem muita coisa pra gente evoluir

ainda, porque a gente nunca pensou que a Favela Galeria ia crescer

dessa maneira. (...) É poder ter essa troca pra comunidade, poder ser

um espaço turístico, mas de uma forma positiva. Não é rolê pra ver

como é a vida do pobre, isso jamais! Porque aqui, além das pessoas

que são fora do país ou pessoas ricas que as vezes pode vim aqui,

aqui vem muita escola estadual, municipal, sabe? Vem pessoas de

ONG pra fazer visita... então é uma coisa muito maior, é uma questão

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de educação essa tour que a gente faz aqui dentro da galeria, tanto a

física, como essa comunidade, onde a gente pintou várias fachadas

das casas (Val – Grupo OPNI).

O valor das práticas é atribuído pela comunidade local, destacando que a cidade

não é objeto de valor em si, mas é produto de ação humana que lhe confere

sentido através do fazer. O espaço urbano é o ponto de referência, nas ações

apresentadas, como meio de ressignificação de valores identitários.

Entender o campo da identidade como elemento potencializador das atividades

enfatiza a autonomia social em relação às narrativas contra hegemônicas. As

singularidades, propostas pelo conceito de multidão, englobam os diferentes

modos de expressão e de linguagem como um processo de articulação social

para enfrentar conflitos inerentes à ausência de políticas identitárias e

multiculturalistas.

Durante o processo de acompanhamento e aproximação dos coletivos aqui

estudados, notou-se a pouca participação feminina nos coletivos e nas ações,

demonstrando que a maior parte dos trabalhos desses coletivos são

protagonizados por homens:

Quando a gente iniciou, em 1997, tinha mais ou menos vinte moleques

no grupo. Bem masculino né?! Vinte moleques! (...) Porque o OPNI tem

meninas que fazem parte, tem minha irmã, a Leila faz parte do grupo,

do contexto do grupo né. Tem outras meninas que faz parte do

contexto, mas tipo assim... quem tá sempre de linha de frente do OPNI

ou da OPNI sempre somos nós que tamo aqui na Favela Galeria, o

Bone, o Nego, o Toddy e eu. (Val – Grupo OPNI).

(...) o coletivo, eu percebo que ainda a questão da mulher é uma parte

que ainda tá em construção né, porque existe ainda essa dificuldade

de relação da mulher entender o que é o coletivo. Não sei se é aquela

questão do machismo, de alguma coisa que a mulher ainda tem preso

e ainda não consegue entender como levar um coletivo adiante, como

né... Então eu acho que existe ainda uma grande dificuldade (Camila –

Coletivo Via).

Essas parcerias com diversos coletivos que atuam dentro dessa esfera

da arte, mas também do ativismo político, do ativismo LGBT, do

ativismo negro, acho que é muito importante porque é justamente onde

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a gente consegue grande parte dos nossos interlocutores, ou seja, a

gente tem um trabalho que especificamente lida com essas questões.

Estar inserido dentro desse universo, desses ambientes, dentro dessas

relações é muito importante pra fazer valer também esses discursos.

O artivismo rompe um pouco com a questão que seria só a arte

estética, só de uma exposição, só de uma exposição artística, ele vai

um pouco mais além, ele se insere um pouco dentro de outros espaços

e passa a ser outra coisa. A intervenção pra uma pessoa pode ser vista

só pelo lado estático, mas muitas vezes ela também questiona

diretamente alguns aspectos. Então eu acho que nesse sentido é muito

importante falar dessas parcerias (Flávio – Coletivo Coletores).

A reprodução de padrões presentes em outros âmbitos da sociedade ainda é

verificada na produção coletiva, que avança nos aspectos de colaboração e

transformação espacial, mas começa a repensar o papel de outras identidades

nas produções recentemente.

Pensando o conceito de multidão, de Hardt e Negri, como uma multiplicidade de

identidades, verifica-se ainda a falta de pluralidade na formação dos grupos, que

em muitos casos questionam padrões, mas não possuem integrantes que

representem tais identidades. Parte dos coletivos trabalha em parceria com

demais coletivos que representem os questionamentos de outras identidades,

da pluralidade no âmbito social.

O vínculo social tem o efeito de diluir os conflitos, demonstrando que a abertura

da possibilidade de propor atividades locais comunitárias envolve a população

na construção e na ressignificação do conceito de cidadania social:

A gente faz evento na rua, tanto que na festa do dia das crianças, a

moça aqui do lado, que era uma das pessoas que a gente tinha alguns

probleminhas, foi a pessoa que abriu a casa dela pra gente preparar

lanche, pra gente guardar os mantimentos, pra gente distribuir lanche,

pra gente distribuir bolo, pra gente distribuir refrigerante, entendeu? Eu

acredito que a questão maior de tudo é o diálogo. Senão tiver, não tem

como (Edlane – São Mateus em Movimento).

O envolvimento e interação da população nas atividades propostas demonstrou

que as ligações criadas a partir das identidades são o combustível de

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transformação territorial, o que viabiliza a articulação dos grupos e reforça os

efeitos das ações coletivas no território.

3.3. Recursos Financeiros

Em relação à aderência aos programas de fomento e editais, tratando-se de

coletivos periféricos, há diversas imposições do poder público para a prestação

de contas dos projetos viabilizados por meio dos editais públicos, que se tornam

barreiras para o cumprimento integral dos projetos. O próprio modo de

organização dos coletivos não comporta os moldes tradicionais das instituições:

E aí a gente vê a importância dessas políticas públicas, a gente

acredita nessas políticas públicas, mas eu acho ainda muito pouco. Eu

acho que é coisa que tem que ser estudada muito mais. Eu acho que

o poder público, ele tem que escutar muito mais os grupos dentro das

comunidades ou onde for que tá fazendo a arte... escutar os grupos

que realmente fazem a arte acontecer, porque se deixar solto, só pelas

pessoas que não fazem a arte construir esses editais, e tem que ficar

do jeito que eles acham que tem que ser, nunca vai ser uma coisa que

vai ser progressiva, vai ser tipo assim “não, a gente tem que entregar

aquela função que a gente escreveu no projeto”. E isso, a gente se

sente totalmente é... manipulado de alguma forma (Val – Grupo OPNI).

Os editais, como foi citado, eles contribuem até um certo ponto, nos

comprometem em outro determinado ponto, que foge um pouco da

nossa filosofia de trabalho, que é justamente essa independência, essa

busca alternativa de trabalho e de ação social (Macario – Grupo OPNI).

A priori o Coletivo Via, a primeira versão dele, foi formado por mim,

pela Daniela Cordeiro e pelo Shack. A gente mandou pra um edital só

que esse edital não foi contemplado e o coletivo ficou meio que parado

(Camila – Coletivo Via).

Diante disso, há uma inteligência criativa que permite que os coletivos se

adaptem ao modelo de edital proposto pelo Estado. O coletivo São Mateus em

Movimento, propôs uma oficina para escrita de projetos, com o objetivo de

decentralizar os recursos dos editais, ampliando o acesso da periferia aos modos

de fomento disponíveis, ampliando as possibilidades de ação.

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A metodologia proposta para escrita dos projetos em editais é denominada

Metodologia do Quadro Lógico (MQL)41. É o mesmo instrumento utilizado para

formação de gestores do Ministério da Cultura. A metodologia facilita o

acompanhamento das atividades através de uma análise sistêmica e lógica. É

utilizada como modo de orientar, organizar e mapear os objetivos e ações do

coletivo.

A metodologia é composta de nove passos que consistem em: definição dos

problemas (apontar causas, efeitos e soluções); dos objetivos (gerais e

específicos); da estratégia (causas e efeitos); dos resultados (produto direto,

tangível e específico das atividades); das atividades (passo a passo para

produzir os resultados); dos recursos (meios de implementar as atividades); dos

pressupostos (efeitos externos que podem afetar o projeto); da avaliação

(quantitativa e qualitativa). A partir desse mapeamento é possível traçar uma

estratégia e um recorte de ação para propor diferentes projetos para o

financiamento dos editais públicos. Desse modo, a estrutura lógica permite ser

avaliada com precisão, facilitando a montagem do projeto e sua prestação de

contas.

Ressalta-se o cenário de incertezas que é posto na mudança de gestão: a

possibilidade de não continuidade nos programas de incentivo e fomento, o

atraso no repasse dos recursos financeiros, o aumento da burocracia na

prestação de contas, dentre outros, que acontecem também em outros editais.

Destacam o excesso de burocracia na prestação de contas, alegando que muitas

exigências se colocam como obstáculos ao cumprimento integral do projeto.

Aponta-se como exemplo, um fiscal da prestação de contas que exigiu fotos de

toda alimentação comprada no período do financiamento do projeto pelo edital

(24 meses), alegando que não se atentariam à “burocratização das notas fiscais”,

mas impondo novas regras que não estavam estabelecidas no momento de

inscrição. Esse tipo de ação é uma prática recorrente, na tentativa de criminalizar

os movimentos culturais periféricos.

41 Dados apresentados na oficina “Escritas de Projetos”, com foco no 3º edital de Fomento à Cultura da Periferia, ministrado por Aluízio Marino, nos dias 21 e 22 de julho de 2018, no espaço São Mateus em Movimento.

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Os grupos que necessitam de um espaço físico para elaboração de atividades

encontram dificuldade em alugar um espaço que possa fornecer nota fiscal.

Tratam-se de imóveis que se encontram nos territórios da ilegalidade. Para os

grupos que possuem uma sede própria, sem a necessidade do aluguel, a

dificuldade está nas reformas. A questão da dificuldade de encontrar

profissionais que trabalham como Pessoa Jurídica em territórios periféricos se

estendem para outras esferas: o aluguel de vans, equipamentos, fornecedores,

prestadores de serviços, etc. Nesse ponto, ao preencherem o edital, trabalha-se

com uma ampla ficha técnica, ou seja, integrantes do coletivo que não estão no

núcleo principal (não são responsáveis juridicamente e financeiramente pelo

coletivo) ou prestadores de serviços, mas que podem receber parte da verba

como pagamento por serviço prestado, com comprovação via recibo simples.

A inscrição de projetos nos editais públicos é um elemento reestruturador dos

coletivos. A reestruturação ocorre em função do tipo de projeto a ser

desenvolvido, interesse pessoal dos integrantes, qualidade do relacionamento

entre os envolvidos, interação com o território, capacidade de administração dos

recursos financeiros, etc.

Relata-se que não é rara a formação de coletivos em função dos editais, mas

que finalizado o período de fomento, os grupos se desfazem. A implantação de

editais que exigem comprovação do histórico de atuação dificulta essa dinâmica,

pois objetiva-se estimular ações que já ocorrem e que se vinculam com o

território e os habitantes.

Os grupos apontam que a lógica de produção cultural por meio dos editais e a

dependência exclusiva desse tipo de financiamento é uma problemática a ser

enfrentada, potencializada pelo contexto atual que colabora para o desmanche

da produção cultural, uma vez que não há propostas de financiamento contínuo

e, em geral, os editais possuem pouco tempo de duração (de 8 meses a 24

meses). Nesse sentido, os coletivos são impulsionados a sempre buscar novos

editais, pois no contexto periférico dificilmente pode-se manter ações coletivas

de impacto social exclusivamente com a economia local, seja por financiamento

coletivo, seja por patrocínio de empresas locais.

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O modelo atual de produção cultural e de financiamento à cultura é questionado

por parte dos agentes coletivos, mostrando que a potência dos coletivos é

desperdiçada ao exigir uma lógica de produção que não se conecta ao território:

o processo contínuo de escrita de projetos, comprovação das atividades e

prestação de contas. Aponta-se que a prática cultural deveria ser fiscalizada e

controlada diretamente no território pela própria comunidade de maneira

permanente, diminuindo a estrutura administrativa. Desse modo, segundo os

integrantes dos coletivos, o principal desafio é romper com a estrutura

predeterminada, que não se relaciona com a cidade e não tem capacidade de

operar no modo de organização coletiva e em espaços periféricos.

Sugere-se ainda, que em algumas situações o poder público apoia-se no

conhecimento dos coletivos para elaborar editais e programas, demonstrando

por um lado, o reconhecimento da potencialidade das ações e, por outro lado, o

abismo existente entre os modos de organização hierárquicos da cidade legal e

os modos de autogestão coletiva, presentes na periferia.

Como exemplo, cita-se a primeira edição do edital Redes e Ruas, em que o

Coletivo Coletores, em parceria com o São Mateus em Movimento – Projeto

Media Lab São Mateus em Movimento - propôs um projeto relacionado à cultura

e letramento digital, que não estava previsto nos objetivos do programa. Na

segunda edição do edital, houve uma adequação em virtude do projeto proposto,

focando em diretrizes e ações que pudessem fortalecer a inclusão digital.

A lógica de captação de recursos, por intermédio dos editais de financiamento,

promove contradições inerentes ao modo de organização: o Estado trabalha

base em uma hierarquia predefinida, enquanto os coletivos prezam pela

horizontalidade. Nesse sentido, os editais obrigam que os coletivos cadastrados

tenham um CNPJ, seguindo moldes de organização empresariais, que retomam

a hierarquia, uma vez que é necessário indicar um responsável legal pelas

ações. A outra possibilidade, trazida pelo edital de fomento à cultura de periferia,

é a utilização do Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) do proponente, que

também trata um dos integrantes do coletivo como responsável legal. Em ambos

os casos, está presente a hierarquia, uma vez que apenas um integrante se

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responsabiliza em responder juridicamente pela ação de todos, colocando-o em

posição de liderança e decisão nas ações que serão realizadas.

Nota-se, por meio do contato com os coletivos, que o modo de financiamento

coletivo disposto nos editais gera um espaço de profissionalização, ou seja,

grupos com poucos integrantes se denominam “coletivos” a fim de capturar

recursos oriundos dos editais, como forma de impulsionar e diversificar a própria

produção artística e cultural, ainda que sejam uma dupla ou um trio, atuando em

conjunto com outros coletivos.

Considerando-se o cenário aqui apresentado, surgiu o questionamento a

respeito de outras possibilidades de captação de recursos financeiros para as

ações. Aponta-se que não é raro os coletivos se manterem por meio de recursos

pessoais, realizando projetos sem receber ajuda externa de custos. Ao

questionar o motivo desse engajamento, foi possível perceber que é por meio

dessas ações que se estabelecem redes de fortalecimento: um coletivo participa

de uma ação sem receber financeiramente por isso, mas possibilita que,

futuramente, outros coletivos possam fortalecê-los em suas propostas.

3.4. Articulação

Em uma produção coletiva, os integrantes apontam que a noção de direitos

autorais deve ser rarefeita, demonstrando a importância da coletividade em

detrimento da individualidade.

Verifica-se um modo de resistência que não está estabelecido diretamente no

campo econômico, mas apresenta-se como meio de vida, firmando-se no campo

das relações sociais através da vivência cotidiana. Assim, entende-se que a

autonomia das ações e sua representação estão relacionadas à construção

coletiva ao longo do tempo e à subjetividade das experiências dos indivíduos,

evidenciada através dimensões culturais e estéticas.

Destaca-se que a articulação entre agentes coletivos só é possível mediante a

comunicação e a troca, seja ela mediada por aparatos tecnológicos ou tomando-

se como base as relações sociais estabelecidas no território.

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Do mesmo modo que a formação de um coletivo está atrelada ao relacionamento

de seus integrantes, o estabelecimento de redes e rizomas seria a relação entre

diversos integrantes de diferentes coletivos, onde há troca e fortalecimento

mútuo, aumentando a visibilidade e a potencialidade das ações.

A ação do Coletivo Coletores, ela passou a se sustentabilizar não só

pela questão financeira, mas ela passa a se sustentabilizar por uma

ação de estar constantemente produzindo. Então a sustentabilidade

nossa é a oportunidade de continuar constantemente produzindo, o

que muitas vezes não se limita a você tá produzindo com recursos

financeiros. Muitas vezes é o espaço que é cedido, muitas vezes é uma

oportunidade que é cedida e é a partir daí que a ação se efetiva (Toni

– Coletivo Coletores).

Destaca-se o diálogo formado pelos grupos com o propósito de construir uma

nova narrativa periférica, em busca de maior visibilidade política e subvertendo

a lógica de formação territorial. As ações colocam em pauta a ação comunitária

artística e ativista que se constrói através do cotidiano.

Desse modo, aponta-se como principal potencialidade da articulação coletiva, o

estabelecimento dos vínculos entre diversos sujeitos, que fortalece a cooperação

e influencia a multiplicidade das ações através da pluralidade dos sujeitos

envolvidos. Tais vínculos reforçam o envolvimento da comunidade com o

território. A estrutura de colaboração entre coletivos não é um elemento

institucionalizado, ou seja, a organização dos coletivos não corresponde aos

modos tradicionais de associação e não impede o estabelecimento de processos

de criação e decisão horizontal.

Ressalta-se que os coletivos podem estar inseridos em ambos os tipos de

articulação, redes e rizomas, variando conforme a escala de observação dessas

relações. Nesse sentido, analisa-se o conceito de rede como a organização que

oriunda de um centro único, dissipando-se para as bordas, semelhantemente à

teia produzida por aranhas. O conceito de rizomas se apresenta como uma

estrutura de organização que ultrapassa duas dimensões: não se pode

determinar onde se inicia e onde termina.

Tais conceitos aplicados aos coletivos estudados podem ser lidos da seguinte

maneira: os coletivos apresentam-se como redes no contexto da Vila Flávia,

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manifestando o centro de organização como sendo o espaço São Mateus em

Movimento, responsável por aglutinar atividades e diferentes grupos locais.

Entretanto, não deixam de apresentar a organização rizomática, uma vez que

cada coletivo, em sua individualidade, apresenta ligações próprias com os

coletivos locais e também grupos de outras regiões.

Desse modo, pode-se concluir que os diferentes modos de organização não

eliminam outros modos, mas são utilizados simultaneamente, sem que essa

prática gere conflitos ou danos às práticas coletivas. Ao contrário, nota-se que a

utilização concomitante das organizações de redes e rizomas possibilitam o

fortalecimento dos grupos e, por consequência, das atividades por eles

propostas.

3.5. Desdobramentos

As intervenções produzidas pelos coletivos aqui estudados sugerem uma

reflexão ampla, no sentido de representar a identidade periférica sobre os

espaços públicos, sobre as narrativas históricas, políticas e sociais. Mas

principalmente demonstram o papel dos habitantes enquanto sujeitos da

transformação e produção narrativa e espacial, no contexto em que se

encontram (Tabela 3):

(...) porque o graffiti, mais do que uma ferramenta estética, ele tem

uma ferramenta, eu a considero e acredito que meus companheiros

também, uma ferramenta de transformação. Transformou a minha

vida, transformou a vida deles e hoje auxilia na transformação da

sociedade local, aqui do bairro (Macário – Grupo OPNI).

Ressalta-se que a mudança cultural que é produzida através das ações coletivas

não segue um rumo predeterminado, uma vez que há múltiplas expressões e

reverberações dessas atividades. Entretanto há predominância na produção de

uma sociedade democrática, através da produção de comuns.

O comum estabelece modos alternativos de transformação social, através de

uma vertente que não se apoia diretamente no Estado ou no mercado, mas que

propõe a ressignificação das associações populares, refundando a democracia

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social de base. Nesse sentido, o princípio do comum como o fazer coletivo da

multidão propõe uma reorganização das relações sociais, possibilitando as

ações horizontais e autônomas, sem a intermediação das estruturas

institucionalizadas, através do princípio da codecisão. A ausência de liderança

dos movimentos, característica do comum, pode ser lida como rejeição da

representação personificada, dada a desconfiança e descrédito tida por qualquer

forma de poder, revelando a crise de representatividade que se apresenta no

contexto nacional. Desse modo, a horizontalidade favorece aspectos que não

são observados na liderança formal: a cooperação e solidariedade como papel

fundamental em detrimento da desconfiança gerada pela competição habitual no

modelo de governança empresarial e estatal.

Os movimentos coletivos apresentam como legado a reconstrução da autonomia

cidadã nos processos de decisão, que incluem as minorias negligenciadas pelo

poder político, através da interação entre identidades e território facilitadas pelas

ferramentas de comunicação digital.

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Grupo OPNI Coletivo

Coletores São Mateus em

Movimento

Ação Graffiti Vídeo-projeção e

design social

Espaço de formação, apoio e

difusão cultural

Tempo de atuação

Desde 1997 Desde 2008 Desde 2008

Suporte das ações

Sede do coletivo, muros e

edificações

Espaço público e espaço privado (ruas, muros,

galerias, espaços culturais,

edificações, etc.)

Sede do coletivo e ruas da Vila Flávia

Comunicação

Redes sociais digitais e

divulgação corpo-a-corpo.

Redes sociais digitais,

panfletos, flyers dos eventos e

divulgação corpo-a-corpo

Redes sociais digitais, panfletos,

painéis de divulgação e corpo-

a-corpo

Participação social

Ocupação do espaço público,

oficinas de grafite e rodas de conversa

Ocupação do espaço público,

oficinas de plataformas

digitais e workshops

Ocupação do espaço público,

oficinas culturais e artísticas,

workshops e rodas de conversa.

Fonte dos recursos

financeiros

Majoritariamente projetos privados

Editais públicos e projetos privados

Majoritariamente editais públicos

Modelo de Gestão

Autogestão horizontal

Autogestão horizontal

Autogestão horizontal

Modo de articulação

Rede/Rizoma Rede/Rizoma Rede/Rizoma

Desdobramentos

Ressignificação do território através

da arte e desenvolvimento da infraestrutura

do Rio Cangueiras

Ressignificação do território

através da arte e cultura,

transformação do modo como o habitante se

relaciona com a cidade

Ressignificação do território através da

arte e cultura, urbanização e

desenvolvimento da infraestrutura local

Tabela 3: Quadro de sintetização da ação dos coletivos. Elaboração da autora.

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A intervenção em territórios que outrora foram ocupados pelo lixo e pelo esgoto

apresentam o caráter de ressignificação do espaço público e reeducação da

comunidade, que agora se torna responsável por manter a qualidade dos

espaços. Nota-se que, uma vez ressignificados os espaços, a população se

apropria valorizando a produção coletiva e fortalecendo o engajamento social em

cuidar dos espaços comuns.

O entorno do córrego Cangueiras tornou-se um espaço de brincadeiras das

crianças da comunidade, onde foi possível observar a subversão do significado

de um lugar que outrora fora destinado ao crime, às drogas e à poluição. O

espaço destinado ao descarte de lixo, ao se tornar uma praça, abriga o

entrosamento dos moradores e conversas nos finais de tarde, abrindo novas

possibilidades de vivenciar o espaço público.

Destaca-se que a vida em sociedade diz respeito ao modo em que as pessoas

se relacionam entre si e também o modo como se relacionam com os suportes

do espaço urbano, construindo constantemente o simbólico presente na

identidade e no pertencimento coletivo. Desse modo, pode-se dizer que a

reformulação de espaços públicos transforma a vida em comunidade, traz outros

sentidos à vida pública, potencializa o engajamento popular nas atividades e

possibilita um olhar crítico ao espaço em que se encontra, ressignificando as

memórias afetivas.

Diante das questões aqui apresentadas, retomando a discussão que Brenner

propõe a respeito dos possíveis cenários do urbanismo tático em relação ao

modo de poder oficial e hierárquico cabe analisar em qual cenário os coletivos

estudados se encontram.

Os grupos não apresentam o cenário de reforço, pois não têm características

que demonstram aliviar as falhas do urbanismo neoliberal. Também não

apresentam características de entrincheiramento, uma vez que não se diminui o

papel das instituições públicas reforçando a força de mercado. Não apresentam,

também, características de neutralidade em relação ao urbanismo vigente, pois

nota-se o constante questionamento das políticas públicas que vigoram em

relação à realidade periférica.

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O modo de organização do Grupo OPNI, Coletivo Coletores e São Mateus em

Movimento apontam à contingência como um cenário presente em todos os

casos: a experimentação dos grupos em levantar discussões a respeito da

identidade periférica juntamente com a população contribui para interrupção dos

processos de padronização presentes nos discursos dominantes. O Grupo

OPNI, o Coletivo Coletores e o coletivo São Mateus em Movimento são exemplos

disso ao utilizarem-se dos recursos dos editais para transformação do espaço

urbano. Ao modificarem espaços coletivos da comunidade, apontam para a

justiça espacial através de espaços democráticos, como apontado por Brenner

(Tabela 4). Porém, as atividades dos coletivos aqui estudados não apresentam

a característica de subversão, uma vez que não está ao alcance dos coletivos

possuírem meios para redistribuição de renda e produção de justiça social em

todos os contextos periféricos.

Grupo OPNI Coletivo

Coletores São Mateus em

Movimento

Reforço

Entrincheiramento

Neutralidade

Contingência

Subversão

Tabela 4: Estudos de caso relacionados com os possíveis cenários do urbanismo tático, baseados em Brenner (2016). Elaboração da autora.

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Considerações Finais

A periferia, enquanto espaço desprovido de equipamentos públicos de cultura e

arte, potencializada pelo alto índice de vulnerabilidade e de violência, cria uma

série de signos que se relacionam à identidade periférica e tenta suprir a

segregação que há entre a população de baixa renda e a produção cultural.

Do ponto de vista das políticas sociais, os serviços culturais são escassos em

relação a sua demanda. Os grupos que atuam nesses territórios reconstroem

sua realidade ao fomentar a visão crítica do contexto em que vivem e, em muitos

casos, acabam por suprir o baixo investimento estatal nos serviços de formação

cultural.

As ações dos coletivos evidenciam o papel do habitante como sujeito do espaço,

ao subverter a lógica tradicional de usufruto da cidade. Nesse sentido, os

coletivos culturais, ao se articularem horizontalmente, de maneira

autogestionada, possibilitam o protagonismo cidadão na produção e

ressignificação dos espaços públicos, intervindo diretamente no cotidiano

popular.

O valor das práticas é atribuído pela comunidade local, destacando que a cidade

não é objeto de valor em si, mas é produto de ação humana que lhe confere

sentido através do fazer. O espaço urbano é o ponto de referência, nas ações

apresentadas, como meio de ressignificação de valores identitários.

O princípio do comum, apresentado por Dardot e Laval, como um princípio

político emerge da insatisfação e da contestação da ordem dominante. Pensar o

comum como um princípio norteador para a efetivação das ações coletivas é

uma experimentação inovadora, que se embasa na administração coletiva de

recursos, espaços e narrativas.

A partir dessa perspectiva, lê-se o comum como uma forma de cooperação

concreta entre grupos livremente instituídos é uma forma de subverter os modos

de produção instituídos, potencializando o desenvolvimento individual ao permitir

que produza uma ação coletiva, por via da condição democrática em que se

encontra.

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Apresentam-se as potencialidades e desafios das atividades coletivas como um

eixo estruturador da pesquisa elaborada e uma formulação que pode ser adotada

para o planejamento de atividades e ações que envolvam processos coletivos

de ressignificação territorial (Tabela 5).

A comunicação social por meios digitais apresenta amplo alcance de pessoas,

porém a mediação feita no corpo-a-corpo potencializa o engajamento cívico nas

atividades propostas. É preciso considerar a comunicação social entre os

agentes coletivos e a população, como forças de mediação entre as ações e sua

concretização no território. A criação de mídias comunitárias pode estimular a

comunicação social entre diversos agentes no território, dinamizando as práticas

de transformação territorial.

A participação social é o elemento que potencializa os vínculos entre pessoas e

território. É notável a relação estabelecida entre os integrantes dos coletivos com

o espaço configurando um lugar de pertencimento e de identificação. É essa

condição de subjetividade que se articula a uma dimensão coletiva e potencializa

as ações de ressignificação, orientando a resistência desses grupos frente ao

desamparo das políticas públicas e, por fim, determinando a eficácia dos

discursos que reivindicam visibilidade, participação e atuação nos modos de

fazer cidade.

O estabelecimento de diversos grupos no mesmo território é marcado por

articulações que fortalecem as iniciativas. É através dos vínculos formados na

experiência de participação social que as atividades se tornam mais eficazes,

porém é preciso desconstruir a noção individual de produção para dar lugar à

produção coletiva.

Os programas de incentivo financeiro apresentam caráter de fomento e

reconhecimento das ações decentralizadas como formas insurgentes de

produzir cidade. Da mesma forma que o financiamento gera fomento, pode-se

dizer que gera concorrência entre os grupos. A burocratização dos editais afeta

as ações, provocando reformulação dos grupos em função dessa outra lógica de

produção coletiva.

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POTENCIALIDADES DESAFIOS

Comunicação

A comunicação por meios digitais possibilita maior alcance de pessoas e maiores distâncias em

relação aos meios tradicionais de

comunicação, além de proporcionar um

deslocamento para mídias coletivas e comunitárias.

Criar um fluxo de comunicação que não

dependa unicamente dos meios digitais, mas tenha

relevância dentro do público e do contexto que atua,

aumentando o engajamento e a participação social.

Participação social

Possibilita o estabelecimento de

vínculos entre a comunidade e o território

em que se insere, fortalecendo a identidade

local.

Estimular o sentido de pertencimento, a colaboração e a

solidariedade como meios de expressão, criação e

tomada de decisão coletiva que possam transformar as

relações com o espaço.

Articulação em redes/ rizomas

Estabelecimento de vínculos entre diversos grupos, fortalecendo o

cooperativismo e a pluralidade nas ações e no

território.

A rarefação da noção de “direitos autorais” em função de um objetivo

comum.

Editais

Legitima a figura dos coletivos como produtores culturais representativos

de cada localidade, financiando ações de relevância, além de

incentivar a colaboração e a coletividade na prática

criativa.

A burocratização dos editais influencia na

institucionalização da gestão coletiva,

desestimulando as ações espontâneas.

A descontinuidade de gestão causa atrasos no

repasse das verbas, dificultando a continuidade da agenda dos coletivos.

Tabela 5: Potencialidades e desafios das ações coletivas. Elaboração da autora.

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A atuação em nível local possibilita pensar e propor soluções para problemas

que ultrapassam o território imediato, visando subverter as fronteiras

econômicas e estatais. Desse modo, podem-se pensar os problemas urbanos

como uma ferida que só pode ser cicatrizada a partir das bordas, da periferia.

Evidencia-se que pensar o espaço e o lugar não é papel exclusivo do urbanista,

mas é um processo social, a fim de estabelecer novas relações com o meio e

com o cotidiano, para além da visão administrativa que se impõe por meio do

ordenamento da cidade e, tende a expandir e aprofundar a interação entre

sociedade e espaço.

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COLETIVO COLETORES. Disponível em: <http://www.dasding.org/Coletores/>. Último acesso:

26 de outubro de 2018.

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Último acesso: 30 de abril de 2018.

EDITAL REDES E RUAS. PREFEITURA DE SÃO PAULO. Disponível em:

<http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/cultura/fomentos/redes_e_ruas/index.php?p

=18367>. Último acesso: 28 de abril de 2018.

EDITAL REDES E RUAS. PREFEITURA DE SÃO PAULO. Disponível em:

<https://redeserua.wordpress.com/>. Último acesso: 28 de abril de 2018.

GRUPO OPNI. Disponível em: <http://site.grupoopni.com.br/>. Acesso: 27 de setembro de

2018.

MINI DOC COLETIVO COLETORES. EDITAL REDES E RUAS (2015). Disponível em:

<https://www.youtube.com/watch?v=DsfJrxseZV0>. Último acesso: 30 de abril de 2018.

MINI DOC COLETIVO COLETORES. PROGRAMA PARA A VALORIZAÇÃO DE INICIATIVAS

CULTURAIS – VAI (2014). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=6BS7rZW6T6E>.

Último acesso: 30 de abril de 2018.

MOVIMENTO CULTURAL DAS PERIFERIAS. Disponível em:

<https://facebook.com/MovimentoCulturaldasPeriferias>. Último acesso: 14 de abril de 2018.

PLANO DIRETOR ESTRATÉGICO. PREFEITURA DE SÃO PAULO. Disponível em:

<http://gestaourbana.prefeitura.sp.gov.br/marco-regulatorio/plano-diretor/>. Último acesso: 29

de julho de 2018.

PROGRAMA PARA A VALORIZAÇÃO DE INICIATIVAS CULTURAIS – VAI. PREFEITURA DE

SÃO PAULO. Disponível em: <http://programavai.blogspot.com.br/>. Último acesso: 24 de

março de 2018.

SÃO MATEUS EM MOVIMENTO. Disponível em: <http://www.saomateusemmovimento.org/>.

Último acesso: 17 de outubro de 2018.

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Anexo 1: Descrição dos coletivos atuantes em São Mateus e

principais articuladores da Zona Leste.

Sarau Comungar: O Coletivo Comungar é um movimento político e cultural auto organizado por

jovens da periferia e que há mais de 4 anos realiza o SARAU COMUNGAR na comunidade Vila

Flávia e também em escolas públicas, cursinhos populares, bibliotecas, ocupações de moradia,

CEUs (Centros Educacionais Unificados) e em demais eventos e atividades que acontecem nas

periferias de São Paulo.

Fonte: http://coletivocomungar.com.br/

Clã Destino: O Clã Destino é um coletivo que tem como foco contribuir para o protagonismo da

mulher periférica. Foi contemplado com o edital VAI no ano de 2016.

Fonte: @PaginaClaDestino

Coletivo Via: Coletivo que trabalha com o protagonismo feminino através de diferentes

linguagens artísticas, dialogando com tecnologia, arte urbana, cidade e sua memória.

Fonte: @coletivovia

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Casa de Cultura São Mateus: Ponto de cultura institucionalizado. Trabalha com oficinas

culturais de música, teatro, literatura, capoeira, animação, danças urbanas e graffiti.

Fonte: @casadeculturasaomateus

Mãe da Rua: Com estilo próprio a banda Mãe da Rua tem um propósito musical, social e cultural,

através de letras sociais, políticas e de grandes histórias vividas pelos integrantes.

Fonte: @maedarua

Cidades Sem Fome: A organização Cidades Sem Fome (CSF) é uma organização não

governamental (ONG) que desenvolve projetos de agricultura sustentável, baseados nos

princípios da produção orgânica. Seu objetivo é levar a autossuficiência financeira e de gestão

para os beneficiários dos projetos. Desenvolve projetos de Hortas Comunitárias, Hortas

Escolares e Estufas Agrícolas utilizando espaços, áreas públicas e particulares precárias que

não possuem uma destinação específica, para criar oportunidades de trabalho para pessoas em

vulnerabilidade social e melhorar a situação alimentar e nutricional de crianças e adultos.

Fonte: http://www.cidadessemfome.com.br

De Menos Crime: Grupo de rap com relevância para o contexto de São Mateus e Vila Flávia.

Fonte: @demenoscrimeoficial

DRR Posse: A Posse D.R.R foi fundada 1990, descontentes com as desigualdades sociais tais

como: repressão, falta de saneamento, falta de educação, falta de moradia, desemprego, saúde,

discriminação, o povo, pobre sem perspectiva de um amanhã melhor. Acreditando na revolução

da consciência com muita informação, humildade e respeito D.R.R vem acreditando na união

daqueles quem tem a mesma ideologia.

Fonte: @drrposseoficial

Samba Maria Cursi: Grupo tradicional de rodas de samba em São Mateus

Fonte: www.sambamariacursi.com.br

Berço do Samba de São Mateus: Uma manifestação cultural que traz em seu conteúdo o

samba com as mais variadas vertentes do gênero, representada por cerca de 25 integrantes

dividido entre músicos, compositores e intérpretes. Tem como proposta valorizar o compositor,

a presença feminina expressada através do canto e da dança, bem como preservar a memória

do bairro de geração a geração integrando os membros da comunidade.

Fonte: @berçodosambadesaomateus

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Som na Praça: O coletivo som na praça atua desde 2013 na região do Cj. Hab. Mal.

Mascarenhas de Moraes e entorno. As principais ações do coletivo envolvem eventos e

intervenções culturais em espaços públicos da região. O projeto busca fortalecer as ações já

desenvolvidas pelo coletivo Som na Praça, bem como, ampliar sua capacidade de intervenção

no território.

Fonte: https://coletivosomnapracatdh.wordpress.com/

Cinemateus: O Coletivo Cinemateus é uma Organização Social que utiliza o audiovisual como

ferramenta de transformação social em São Mateus - ZL de São Paulo.O Cinemateus vem ao

longo desses anos somando esforços para atuar na área de comunicação por meio de

produções, projeções de vídeos educativos e entretenimento, que expressem a realidade das

comunidades de São Mateus, Zona Leste da Cidade de São Paulo.

Fonte: http://www.cinemateus.com.br

Perifacine: Exibições itinerantes gratuitas de filmes e vídeos em diversas comunidades da

cidade.

Fonte: @perifacine

Movimento Cultural das Periferias: O Movimento Cultural das Periferias é composto por

diversas coletividades, grupos, artistas, cidadãos e movimentos periféricos.

Fonte: @MovimentoCulturaldasPeriferias

Fórum de Cultura da Zona Leste: O Fórum de Cultura da ZL resulta da união de coletivos

artísticos e militantes culturais da periferia da Zona Leste de São Paulo, que desenvolvem ações

culturais na região e lutam por políticas públicas de cultura que atendam, efetivamente, as

demandas da produção artístico-cultural plural e diversa presente nas periferias da cidade,

garantindo o reconhecimento, valorização, fomento e potencialização destas ações, assim como

o direito aos meios de produção, fruição e acesso. Organizando-se, desde o início de 2013, por

meio de encontros, formações, seminários dentre outras ações, o FCZL lança seu primeiro

informe, afim de documentar e compartilhar suas principais pautas de luta e discussão

permanente.

Fonte: http://forumdeculturadazonaleste.blogspot.com/

BAK Cultural: Encontros Culturais na Zona Leste de São Paulo

Fonte: @bakcultural

Casa de Cultura e Hip Hop Love CT: Projeto social fundado pela crew Love CT para ensinar

para crianças e adolescentes valores para a vida por meio da prática do skate.

Fonte: @linclusão.resgate

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Okupação Cultural Coragem: Coletivo De Ocupação e Revitalização, Arte, Graffiti, Educação

e Música C.O.R.A.G.E.M , criado a partir da união de ativistas da cultura, que há anos

desenvolvem de forma voluntária diversas ações culturais e artísticas sem fins lucrativos.

Fonte: http://spcultura.prefeitura.sp.gov.br/

Ocupação Mateus Santos: A Ocupação Cultural de Ermelino Matarazzo é um movimento de

ocupação de atividades culturais em um prédio público inativo e desativado há décadas. O

movimento é proposto por agentes, coletivos e grupos culturais do bairro e de várias regiões de

São Paulo, tendo como objetivo principal concretizar neste local a futura Casa de Cultura de

Ermelino Matarazzo e Ponte Rasa, sendo esta também administrada por um conselho popular.

Destacamos que as ações e atividades relacionadas à Ocupação Cultural, estão sendo

desenvolvidas de forma autônoma e independente, não sendo financiada ou guiada por qualquer

partido político ou gestão governamental.

Fonte: https://ocupacaoculturalermelinomatarazzo.wordpress.com/

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Anexo 2: Entrevistas e Depoimentos

Figura 31: Nuvem de palavras produzida a partir das entrevistas. Elaboração da autora.

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Toni William Santos – Coletivo ColetoresI

Toni, integrante do Coletivo Coletores, se apresente...

Eu me chamo Toni William, tenho alguns vulgos como artista... Como diretor de vídeo clipe eu

assino como Toni William Cross, como artista de hip-hop eu assino como Toni Baptiste. Tenho

34 anos, sou formado em artes visuais, pós-graduado em design e filosofia pela Faculdade de

Arquitetura e Urbanismo da USP, atualmente faço mestrado na Escola de Comunicação e Artes

da USP na Ciência da Informação. Faço parte do coletivo Coletores, que é uma iniciativa, uma

ação cultural que se iniciou em 2008 na Zona Leste de São Paulo, se consolidando a partir do

ano de 2010 como uma das primeiras iniciativas que pensam a cultura digital e o espaço público,

sobretudo na heterogeneidade da periferia... é... como artista e como Coletores a gente tem uma

ação com diferentes grupos coletivos como o Grupo OPNI, o São Mateus em Movimento, o

Quinho, o Odisseia das Flores, e por aí vai...

Como você define “coletivo”?

Pra mim o pensamento de coletivo é quando você coloca mais de uma pessoa... é... se propondo

a uma ação de colaboração... basicamente a partir de um objetivo comum e de uma necessidade

comum diferentes pessoas se organizam e pensam em uma ação conjunta. Essa ação conjunta...

ela pode ser uma ação de colaboração, uma ação de coletividade e a partir de um conjunto de

ações desses mesmos grupos ou de ações que se aproximam da mesma temática, você pode

configurar aquela manifestação como um coletivo.

Qual a principal dificuldade em manter um coletivo?

A principal dificuldade em se manter um coletivo, eu creio que é uma das principais dificuldades

que você tem em qualquer tipo de relação que você precisa manter, porque o coletivo, pra ele

se fazer, é necessário se criar diferentes tipos de relação... relação de interesse, relação afetiva,

relação financeira, é... relação de concordância e discordância e uma série de coisas que

permitam que um relacionamento se mantenha. A partir do momento em que você passa a não

ter esses diálogos, a relação definha, ela se enfraquece, e a chance de essa relação se manter

é mínima. Os coletivos funcionam da mesma forma... quando dentro de uma ação as pessoas

passam a pensar diferente, a descordar diferente, a não cooperar, ou simplesmente não ter

estrutura pra se manter conectada, pra se manter vivo, ou pra manter as ações, normalmente é

isso que faz com que as ações não prossigam, então essas são as dificuldades. No meu caso,

enquanto coletivo Coletores, a nossa maior dificuldade é uma relação de tempo, porque por conta

de você ter que sobreviver, e ter que criar formas de se manter financeiramente, muitas vezes

você não tem como focar cem por cento no coletivo, então isso faz com que você crie um

distanciamento da ação né. No nosso caso, por atuar a dez anos, a gente tem uma maturidade

pra saber balancear, mas pra muitos coletivos esse tipo de distância já provoca rupturas e

enfraquecimento, o que dificulta muito o coletivo ou a ação cultural se manter.

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Como surgiu o Coletivo Coletores?

O Coletivo Coletores, ele nasce a partir do diálogo meu, Toni William, e do artista Flávio

Camargo, em 2008. A gente se conheceu numa Universidade onde a gente estudou licenciatura

em artes visuais, uma Universidade aqui na Zona Leste. Inicialmente a gente teve uma conexão

por conta de um trabalho que uma professora havia nos proposto, de finalização de semestre e

que, a partir desse trabalho, o Flavio... a ideia era a gente criar um projeto que conectasse a arte

antiga e a arte nova. Eu tinha a ideia de fazer um livro e o Flávio tinha a ideia de fazer um site, e

o Flávio não tinha alguns recursos digitais que ele precisaria pra fazer o trabalho dele. Então ele

pediu pra que eu pudesse dar uma força pra ele com esse recurso e eu queria fazer um livro. Eu

tinha um livro diagramado, mas eu não tinha alguém pra encadernar. Aí eu fiz junto com o Flávio

uma troca e ele encadernou meu livro. Ambos os dois trabalhos foram muito bem aceitos, tiveram

bom olhar dentro da instituição, o que fez com que a gente tivesse benefícios dentro da faculdade

e ao mesmo tempo, fez com que a gente tivesse uma aproximação pois a gente viu que tinha

coisas em comum. A priori a gente começou com uma extensão de coisas que a gente já fazia,

que era o interesse em cidade e arte urbana, então a gente fazia muito grafite, pixo, intervenções

em lugares diferenciados e fotografia, porque a gente fotografava isso e fazia montagem com

esse material e... a ideia do nome, por a gente na época estar pesquisando os povos antigos, na

faculdade, a ideia de pesquisar os povos nômades né... a ideia inicial do coletivo era ser

nômades, porque a ideia principal dos nômades é que eles não tinham residência fixa, eles

trabalhavam em trânsito e como nem eu e nem o Flávio tínhamos condição de ter um atelier fixo

pra se reunir ou pra produzir, a gente produzia em trânsito. Então a priori o nome seria Coletivo

nômades. Ao mesmo tempo, o nome nômade, ele era muito batido, é um nome muito clichê, e

aí a gente pesquisando sobre os nômades, a principal coisa além de estar em trânsito era o ato

de coleta, porque esses povos, eles coletavam, eles não plantava, por onde eles andavam eles

coletavam é... plantas, frutas, verduras, legumes, pessoas, objetos e... a medida que eles iam

andando por esse território eles ganhavam experiências, então meio que foi isso que norteou a

criação do Coletores, de estar na rua, de tá no espaço público, de tá produzindo e coletando,

quer seja um muro, quer seja um graffiti, quer seja uma experiência, quer seja um diálogo e por

aí vai...

Vocês ganharam alguns editais. Quais ações foram os editais e quais ações feitas?

O coletivo Coletores ganhou o primeiro edital em 2009, foi o edital do programa VAI, da Prefeitura

de São Paulo, VAI 1. Na época só existia a modalidade 1 e o projeto que a gente fez nasceu

muito de uma ideia de tentar explorar e trazer a arte contemporânea pra diferentes contextos dos

quais estavam muito distantes pra quem vinha da periferia. Aí a principal ideia nossa era, além

da exposição, era a ideia de abrir os processos de arte contemporânea, então a gente criou um

projeto chamado “Atelier Livre”, e esse projeto consistia numa residência artística que a gente

fez na Casa de Cultura Raul Seixas, no Parque Raul Seixas. A ideia era fazer um processo

artístico aberto lá e esse projeto depois migrar pro centro, a produção. Fora isso, desde cedo a

gente já tinha uma preocupação em registrar os nossos trabalhos, então a gente passou a fazer

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o que... a gente passou a documentar o trabalho. Então logo no primeiro projeto a gente fez um

livro, então o primeiro projeto era um atelier de oficinas que virou exposição e depois virou um

livro. No ano seguinte a gente mandou novamente o VAI e ganhamos novamente e a ideia nossa

era de trabalhar em trânsito, de montar essa experiencia de residência, de produção em trânsito.

A gente fez o primeiro projeto no espaço Cuca da Uni, ali na região da Ana Rosa, depois o

segundo a gente fez lá no extremo Sul, na Monte Azul, e o terceiro momento a gente fez na

oficina cultural Osvaldo de Andrade. Então como no primeiro projeto a gente tinha trabalhado na

Zona Leste, o segundo a gente trabalhou no centro, trabalhou na Zona Sul e depois foi pra Zona

Norte, que foi uma ideia da gente finalizar o trabalho meio que, esse ciclo de trabalhos com esse

mapeamento da cidade e poder falar “ó a gente trabalhou na Sul, trabalhou na Leste” e poder

falar melhor sobre essa experiência. Nesse projeto o atelier livre rendeu um segundo livro e

também uma grande exposição. No segundo projeto a gente fez um projeto maior em 2011,

chamado “edital de primeiras obras”, a gente fez no CCJ, Centro Cultural da Juventude, hoje ele

chama Centro Cultural Juventude. E aí, nesse projeto a gente criou uma instalação que era a

ideia de dar continuidade aos ateliers abertos, a gente fez um atelier móvel que era um mix de

design, arquitetura e arte pública, intervenção urbana. No ano de 2011 a gente participou do

FILE, Festival Internacional de Linguagem Eletrônica, que também era um edital, mas não era

um Edital, era uma convocatória, mas tinha todas as coisas de um edital, de ter que escrever,

justificar proposta, mandar imagens e por aí vai. A gente mandou um projeto que a gente tinha

feito no VAI de 2010 que era o pinball e... a gente deu uma afastada dos editais e aí a gente

retomou os editais em 2014. Em 2014 o Coletivo Coletores, é... teve o início de um novo edital

do VAI, chamado VAI 2, que era voltado pra pessoas que já tinham ganhado o VAI 1 e tinham

alguns anos de atuação, tinha que ter no mínimo três anos de atuação. E aí a gente ganhou o

VAI, e aí nesse ano especificamente passou a trabalhar com arte e tecnologia de uma forma

mais profunda e pesquisando a ideia de vídeo mapping com intervenção urbana. É... em 2015 a

gente ganhou o edital do Redes e Ruas, via São Mateus em Movimento. A ideia era criar um

Media Lab em São Mateus e circular diferentes espaços da cidade pra falar de cultura digital. E

em 2016 a gente ganhou novamente o Redes e Ruas, porém como Coletivo Coletores e o São

Mateus em Movimento mandou um projeto individual e ganhou como São Mateus em Movimento.

O do Coletivo Coletores a ideia era circular a cidade pensando em espaços de memórias

apagadas, memórias refundadas e aí a gente nesse projeto, a gente foi pra um âmbito mais

poético, mas ao mesmo tempo mais ligado à história, foi bem bacana... e esse projeto virou um

documentário e um livro também. Nessa mesma época a gente mandou um ProAC, e no ProAC

a gente fez uma pesquisa de pós-graffiti. O nome do projeto chamava “Graffiti Digital” e a ideia

era fazer diferentes explorações com o graffiti. Então a gente fez o graffiti mapping, a gente fez

o Light Graffiti, que é a ideia de fazer um Light Painting com graffiti. Fizemos uma série de ações

pela periferia, porque a ideia era mostrar e empoderar a imagem da periferia e ao final fizemos

uma grande exposição. Feito isso, depois o Coletores não participou de mais nenhum edital,

desde 2016, então durante o ano de 2017 e o ano de 2018 o Coletores se volta pra uma ação

de sustentabilidade através de outros caminhos.

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Como funciona essa sustentabilidade?

Então, o trabalho com o passar do tempo, por a gente acreditar muito na documentação e investir

no trabalho, a gente acreditava que a sustentabilidade não se restringe à questão financeira né.

A sustentabilidade se amplia também pra ideia de você se auto documentar, você se auto

representar. Isso é importante pontuar porque a gente entende que a sustentabilidade depende

da maneira que você se coloca, que você é visto né. Então se eu tenho um filme, se eu tenho

um livro, são formas de ter meu trabalho relevante, de fazer meu trabalho circular mesmo

enquanto eu não estou trabalhando naquilo. Então a gente sempre fez investimento na

sustentabilidade pra que o próprio coletivo, mesmo sem tá trabalhando ele tivesse um folego pra

estar em diferentes lugares. Ao fazer isso o trabalho ganhou, começou a ganhar muita

repercussão. A gente começou acessar o circuito do Sesc, a gente começou a receber convites

de publicidade, convites de produtores independentes, de marcas, de bandas né, assim como

de outros coletivos. A ação do Coletivo Coletores, ela passou a se sustentabilizar não só pela

questão financeira, mas ela passa a se sustentabilizar por uma ação de estar constantemente

produzindo. Então a sustentabilidade nossa é a oportunidade de continuar constantemente

produzindo, o que muitas vezes não se limita a você tá produzindo com recursos financeiros.

Muitas vezes é o espaço que é cedido, muitas vezes é uma oportunidade que é cedida e é a

partir daí que a ação se efetiva. O Coletores tem uma... em sua estrutura de ação sempre estar

em trânsito, mas também sempre ter uma devolutiva pra cidade, tornar a saúde da cidade melhor,

e se a gente for depender só de projetos que são remunerados, provavelmente a gente não

conseguiria promover uma ação que de fato fosse efetiva pra sociedade. Então o que acontece

é que, a partir do momento em que o trabalho ganha relevância, mais pessoas querem acessar

o trabalho. Ai a gente começou a criar uma agenda e a partir dessa agenda começou a criar

caminhos de sustentabilidade, como por exemplo, de repente eu faço um trabalho pra uma

grande instituição que eu consigo tirar um grande recurso a partir dela e esse recurso me dá

base pra que eu possa fazer uma ação menor, numa área afastada, que de repente não tem

nenhum subsídio, no qual pra chegar lá eu tenha que gastar a gasolina do meu bolso, tenha que

gastar o estacionamento do meu bolso, gastar alimentação do meu bolso e, se eu tiver lá e

quebrar um cabo, quebrar qualquer coisa, eu tenho que bancar tudo isso do meu bolso. Mas isso

é possível porque a gente consegue separar financeiramente, se administrar financeiramente

pra que o trabalho possa continuar. O Coletores, há três anos se tornou uma empresa também,

então a gente hoje tem um CNPJ, não é uma MEI, é uma limitada e através dessa empresa a

gente passou a então a trabalhar com as nossas ações, as nossas intervenções numa escala

um pouco mais amplificada.

Como é a comunicação do coletivo com o público?

Hoje o Coletivo Coletores, ele trabalha com a plataforma corpo-a-corpo e com as plataformas

digitais. A plataforma corpo-a-corpo, ela funciona muito a comunicação ali in-loco, quando a

estrutura já tá montada. Às vezes pode ser um evento que não tenham muitas pessoas, mas a

partir do momento em que a ação começa, quer seja de projeção, quer seja uma oficina, quer

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seja um outro tipo de intervenção, ela se faz no espaço e aí a gente consegue dialogar com

diferentes pessoas e a partir da relação com essas pessoas é... a gente cria uma comunicação

que essas pessoas viram mini redes e essas pessoas vão divulgando o próprio trabalho né. Por

outro lado, a gente tem uma comunicação que a gente deixa aberta, que são as redes sociais. a

gente tem um site oficial, que tem a maior parte dos trabalhos que pontuam todas as fases do

coletivo é... nós temos um blog, onde lá nós costumamos postar alguns processos das obras,

making-off das obras, projetos, desenhos... temos um instagram, onde lá fazemos postagem dos

conteúdos que já estão processados, que já tem um conceito determinado e a gente organiza ali

em diferentes pautas do que vai ser postado e temos o facebook também, que é onde a gente

ali abre uma comunicação via Messenger, via comentários, muitas pessoas comentam e

compartilham as postagens, e ali é uma coisa mais de divulgação mesmo, que a gente posta os

flyers, os folders, e muitas pessoas ali, vendo aquelas informações que tão ali, elas vão atrás e

procuram o trabalho. Pra além disso, por a gente sempre documentar os trabalhos, a gente

sempre tem uma rede social de pdf, que chama issu, aí lá dois dos livros que a gente publicou,

a gente tem quatro livros publicados, mas dois deles encontram publicados projetos deles

abertos lá pra quem quiser ler ou pra quem quiser usar como pesquisa, ou até pra quem quiser

imprimir, ele tá disponível lá de forma gratuita. Nós temos o youtube, onde lá também nós

postamos minidocumentários do trabalho, onde tem nossas falas, onde tem ali uma breve

documentação ali, audiovisual que pontua e narra um pouco do nosso protagonismo dentro da

cidade.

E os trabalhos internacionais?

Então, o Coletores participou de exposições no Brasil, que são internacionais, que tinham

diálogos com artistas de outras partes do mundo. Então a gente já colaborou com a rede SP

Urban, com o FILE, com a Bienal de São Paulo, com a Bienal de Arquitetura de São Paulo, mas

também a gente teve a oportunidade de levar o trabalho pra fora ou de ir junto com o trabalho

pra fora. Então a gente tem trabalhos já expostos em Coimbra, em Portugal, no Fonard, Festival

Online de Artes Digitais. Tivemos um trabalho exposto na Colômbia, junto a Universidad Piloto,

junto com o Quinho. Nós temos trabalhos expostos na Bienal de Arte Contemporânea de Dakar...

o que mais... acho que por enquanto são esses mesmos.

Flávio Camargo – Coletivo Coletores

Minha formação é com artes visuais. Trabalhei bastante tempo com cenografia, bastante tempo

como ilustração. Tive uma formação técnica em desenho e só depois eu fui fazer uma

Universidade e tentar as artes visuais. Fiz depois uma pós-graduação em design, o que acabou

sendo bem interessante já, porque o coletores já existia e a gente fez essa fusão aí, queria fazer

essa fusão entre arte e design, pensava a arquitetura, pensava muitas outras coisas. O coletivo

coletores começou em 2008 e com uma ideia muito básica, muito simples, de trabalhar com a

arte e interatividade, de expandir um pouco pra fora dos ateliers, expandir pra fora do estúdio,

de pensar a rua, pensar a cidade. Já nasceu com essa proposta, mesmo trabalhando ainda com

formatos pequenos, com intervenções e instalações menores, a gente já tinha essa ideia. E

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também pensávamos bastante na ideia de arte e jogo, da ideia de uma relação entre as diversas

linguagens típicas e aí foi um pouco pano de fundo pra isso, tá. Também tem uma história muito

com a rua, de fazer estêncil, de fazer graffiti, então já tinha essa ideia, já trabalhava bastante no

espaço urbano, já participava muito de grupos de intervenção. Então isso também foi um

componente que também, de certa forma, entrou dentro do Coletores. O Toni também tinha essa

vivência, aí a gente acabou que juntando mesmo as forças pra fazer o coletivo. O Coletivo

Coletores trabalha numa relação arte, cidade e jogo, já trabalhamos com web art, com games,

fotografia, vídeo, vídeo projeção, que. trabalhamos atualmente bastante, também já fizemos

muito construções tridimensionais, instalações usando diversos tipos de materiais. Trabalhamos

no campo de uma construção coletiva, parte basicamente de a gente, enquanto uma dupla que

é disparadora de processos, mas que acaba agregando outras pessoas, acaba agregando outras

perspectivas. A gente também trabalhou bastante com uma ideia que era a arquitetura do

precário, ou o design do precário, onde a gente tentava ressignificar materiais achados nas ruas,

ressignificar materiais que estavam a nossa disposição, mas que podiam tomar outro corpo. E

dentro desse processo também pensar a arte e tecnologia, não a tecnologia como aquilo que

deriva de uma certa relação mais atual como a eletrônica, ou como o processamento de dados,

mas principalmente a tecnologia como um conceito mais amplo né, de mecanismo, a tecnologia

como um conceito de transformação do que é natural pra uma coisa mecânica ou como é que

se atinge processos artificiais, acho que esse é o sentido mais básico. E tem muito a ver com a

ideia do nome também, que justamente Coletores vem justamente dessa relação que a gente

tinha de pesquisar o nomadismo, como se comportavam, como era a ideia de andar pela rua, de

andar e produzir, andar e coletar coisas, viver daquilo que se coleta, por isso também tem muito

a ver com esse histórico de como nascem as coisas. Durante muito tempo a gente trabalhou e

pensou muito em como criar processos que revelasse essa mecânica das coisas. Isso tá

bastante presente em obras e em trabalhos que a gente já desenvolveu. Pra mim, coletivo seria

esse trabalho feito, no nosso caso, feito à muitas mãos. Essa junção de forças pra um bem em

comum. No caso da produção artística a gente gosta muito dessa junção de singularidades,

quando nós podemos ser nós mesmos, mas ao mesmo tempo sermos também uma coisa além,

que é um trabalho onde a finalidade acaba sendo conjunta e não sendo individual. É também,

desde o momento em que surgiu, também um questionamento com relação a nossa sociedade

cada vez mais individualista, que busca mais o indivíduo ao invés do grupo, no sentido que não

é ruim, mas ao mesmo tempo que só se baseia em indivíduos, só se baseia em individualidade

e se perde muita coisa também. A ideia do coletivo também é, ao meu ver, junção de forças e

isso é um pouco da nossa história. Pra mim o coletivo é um pouco da nossa história de

resistência. A resistência periférica, a resistência de quem tá a margem e historicamente ela é

coletiva, ela tem muitos indivíduos, mas ela é uma história coletiva. É uma história das rodas, é

uma história dos quilombos, dos terreiros, das rodas de capoeira, das crews. A ideia de se juntar,

de tá junto faz parte um pouco dessa produção que a gente encontra no nosso meio, o lugar que

a gente vive, o lugar que a gente defende. De um modo mais direto, coletivo é a resistência

cultural das periferias. A maior dificuldade em manter um coletivo, acho que a principal é a

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dificuldade financeira. Eu acho que ela é a que mais, de certa forma, nos compromete, de certa

forma, aquilo que nos traz dificuldades além, porque fazer junto tem uma demanda que,

obviamente, envolve uma estratégia, envolve um modo de operar, um modo de agir, não é

simples e requer, obviamente, se tem um custo pra isso. Muitas vezes você tem que afinar as

agendas, afinar os compromissos né. Pensar em um trabalho coletivo é sempre uma questão,

não só das afinidades né, no sentido da amizade, de tudo que se constrói né, de uma construção

de tudo que é familiar, familiar no sentido mais amplo também, mas são as dificuldades de

financiamento, de se manter, de manter um trabalho, as dificuldades de divisão. Eu acho que

isso é, pelo menos uma coisa que nos faz realmente ter que trabalhar um pouco mais e com

aspectos um pouco mais diferentes. É muito bom estar junto no sentido em que você também

acaba dividindo responsabilidades e dividindo também as dificuldades de realização. Aquilo que

você quebraria a cabeça sozinho, junto você faz, você consegue, rola uma sinergia muito maior,

rola uma energia de trabalho muito maior. Acho que a maior dificuldade de manter é essa,

conseguir que o grupo consiga se manter financeiramente, ou que cada um não seja atraído por

um trabalho individual, distante, em que a gente não consiga se encontrar, isso talvez seja um

aspecto mais difícil. Acho que uma marca registrada do Coletivo Coletores é a nossa produção

em trânsito, que eu acho que ela é fundamental, quer dizer, nós não temos um espaço de

produção, nós temos espaços em que a gente pode produzir, como a casa do São Mateus em

Movimento né, mas nós não temos um espaço fixo. E eu acho que isso talvez seja a maior marca,

a marca mais interessante desse projeto, a mobilidade em que a gente sempre produz, sempre

se encontra. A gente está em lugares diferentes, com grupos diferentes, com coletivos diferentes,

com propostas diferentes, algumas horas de uma forma mais comercial, outras horas de uma

forma mais artística tradicional, as vezes de um modo mais ativista né. Então eu acho que essa

relação entre mobilidade e produção artística é uma marca bem forte do grupo. O Coletivo

Coletores surgiu muito dessa proposta de trabalhar a cidade como um meio de ação, como um

tema, como uma temática, como um assunto a ser tratado, mas também como um suporte. Então

é essa ideia muito simples da cidade como um meio e suporte é uma coisa que também é muito

forte no trabalho. Então, de algum modo, a cidade tá inserida no trabalho, mesmo que a gente

fale de uma outra coisa diferente de cidade, a gente tá agindo dentro desse universo da cidade.

Ela é o que abraça essa produção do coletivo. Nessa trajetória de dez anos de coletivo, a gente

além dessa ideia da cidade como suporte, da ideia de mobilidade, a gente também tem uma

questão com a interatividade, com o trabalho que tenta ser, não sei se ele cumpre sempre essa

ideia, mas tenta ser interativo, que tenta estar além do que propõe o ambiente artístico

tradicional. Estar em espaços diferentes, criar possibilidades diferentes de interação, estar em

espaços que não são frequentemente habitados, mas que podem ser acessados por meio da

obra, acho que esses são aspectos muito importantes. O coletivo nasce um pouco dessa ideia

de repensar as posturas artísticas, a nossa postura, a postura artística dentro das artes visuais.

A gente sabe que é um ambiente extremamente, ainda, muito elitista, tanto o ambiente de

formação quanto o ambiente de produção, e nasce dessa ideia e a gente tenta romper. A gente

rompe trazendo essa tradição do graffiti, trazendo a tradição das artes de rua, da arte urbana

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que necessariamente não obedece a padrões né, que acontece de forma efêmera, muitas vezes

de forma despretensiosa, mas sempre com a ideia de liberdade de processos né. Nosso primeiro

edital foi o VAI, na época não existia o VAI 2, só existia o VAI 1 né. O edital VAI a gente conseguiu

renovar ele por mais um ano, então a gente ganhou duas vezes o edital. Depois ganhamos o

Primeiras Obras, que não me lembro agora... engano, era o Edital de Ocupação do CCJ (Centro

Cultural da Juventude). É um edital que eu acho que não existe mais e que ele não pagava, não

tinha um financiamento tão grande, mas era pra produção de um trabalho, era basicamente muito

parecido com o Primeiras Obras, em que você fazia um trabalho e ocupava o espaço com aquele

trabalho. Nós ganhamos também depois, o edital VAI 2, assim que ele surgiu a gente conseguiu

o edital. O VAI 2 não tinha as limitações de dois anos e nem tinha as limitações de idade, a gente

já tava em uma outra fase do nosso trabalho. Ele era um edital mais baseado na experiencia do

grupo, tentar trazer de volta aqueles grupos mais antigos né, que tinham ganhado e se formado

o edital 1. Ganhamos o edital de Redes e Ruas por duas vezes seguidas. Esse foi muito

importante pra nossa produção atual porque foi onde a gente especificamente trabalhou com a

vídeo projeção, com a arte digital. Ganhamos o ProAC. Foi um ProAC de ocupação e também

foi muito importante porque foi um edital muito difícil de conseguir. Se eu não me engano, na

época foram só doze grupos que ganharam. Então assim, foi importantíssimo a gente ter acesso

a esse edital. O que eu lembro são esses, talvez o Toni complemente essa questão. Quanto às

ações nesses editais, os dois primeiros, que foi o VAI 1 e o VAI 2 a gente baseou na ideia de

atelier livre. O projeto inclusive se chamava Atelier Livre, que era um projeto de montar um

espaço de trabalho, já dentro dessa questão de mobilidade, um espaço transitório mesmo que a

gente pudesse estar em alguns lugares da cidade de São Paulo produzido de forma aberta né.

Tanto o primeiro quanto o segundo tinham essa proposta. No primeiro a gente trabalhou muito

com essa questão gráfica, muito com uma produção visual que a gente já tinha mais

familiaridade, coisas que a gente vinha produzindo em termos de livros, pôsteres, gráficos, jogos

e um pouco de intervenção também nos espaços. No segundo a gente trabalhou com a ideia de

arte e jogo, que era justamente pensar essa produção em vários segmentos. Então a gente

desenvolveu uma produção mais física, criamos cabines construídas de madeira, em que você

pudesse entrar dentro e jogar, acoplamos computadores nessas cabines pra fazer essas cabines

funcionarem como games, um game de bar, um game de casa de jogos. Criamos dois games

funcionando dentro dessa cabine. Esse projeto foi interessante porque ele aconteceu, esse a

gente conseguiu fazer ir mais além do que no primeiro, que já tinha essa questão da mobilidade,

mas nessa a gente conseguiu realmente produzir no espaço que era a Vila Mariana, depois nós

fomos pra um espaço, pra Zona Sul, no Jardim Monte Azul, depois nós fomos pra uma região

mais central que era a Oswald de Andrade. Em cada espaço a gente produziu um tipo de obra

diferente, mas todas com a ideia de jogo, de interação né. No Monte Azul nós construímos o

Máquina-Brinquedo, que é um pinball de madeira. Hoje proliferou bastante a ideia do pinball de

madeira, tem vários coletivos construindo, artistas, oficinas... mas na época a gente não tinha

visto ainda nada parecido. Surgiu meio de a gente estar na periferia, a ideia era produzir um

pouco envolvendo as crianças que estavam lá, que participavam dessa associação lá no Monte

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Azul, e ele acabou surgindo dessa forma. Uma construção bem rudimentar, a gente pensou muito

em física, muito em questões da física do jogo né, de como o jogo se comporta. E foi muito

interessante porque esse trabalho acabou sendo exposto no FILE, na Galeria Olido, em várias

outras oportunidades. A gente não expôs mais esse trabalho pela questão mesmo de que ele é

um trabalho pesado, é difícil de locomoção, não é muito simples de trabalhar. Do primeiro edital

até 2014 nós trabalhamos bastante em vários projetos né. Surgiu aí um autônomo, surgiu um no

Hack Lab do Sesc Pompéia, surgiu outras coisas que a gente foi desenvolvendo. Em 2014 nós

retomamos a ideia, um pouco, que já era uma vontade nossa de trabalhar a ideia do graffiti,

tentar inserir uma visão do graffiti dentro da tecnologia, a gente pensava muito em um graffiti

digital. A gente pensava nesse nome e ainda não conhecia ninguém que trabalhasse dessa

forma, então a gente desenvolveu um pouco o projeto nesse sentido. Foi aí que surge a projeção,

que surge o vídeo mappin... mas a intenção era fazer esse graffiti digital, era tentar inserir alguma

coisa dentro desse espaço urbano. Daí então que surge essa nova produção que trabalha com

elementos que a gente já vinha desenvolvendo nesse tempo, mas eles vão ser inseridos dentro

da vídeo projeção. Essa ocupação no espaço, essa ação, isso tudo vai ser colocado dentro dessa

vídeo projeção. Nos outros dois editais a gente continua essa proposta só que aí pensando de

forma um pouco diferente. Na primeira a gente pensava no graffiti digital, no pixo digital, na vídeo

performance projetiva, que pode envolver dança, que pode envolver outros elementos. Na

segunda proposta a gente pensou mais em graffiti se unindo, também graffiti digital e graffiti

lighting painting, pensando algum tipo de variação nesse sentido. E no outro edital, que seria o

Edital Redes e Ruas, que foi o último que a gente participou, essa relação foi bem interessante

porque a gente criou e trabalhou um aspecto especifico que a gente já trabalha nessa produção,

que é a vídeo projeção de guerrilha, que é justamente a ideia de você se apropriar dos espaços,

não necessariamente é um lugar que você chega e pede autorização ou tem uma pré produção.

A pré-produção era muito mais no sentido de diálogo do coletivo, mas a intervenção é uma

intervenção feita na hora, nos espaços. Nós escolhemos espaços emblemáticos de São Paulo

pra ideia de resistência que foram bem importantes pra produção atual, onde a gente já tem

pensado mais a questão das heranças culturais, a questão afro, indígena, a questão da

resistência cultural das periferias, o artivismo que a gente tem também desenvolvido bastante.

Acho que ela é emblemática na nossa produção por isso, porque ela abre um pouco esse campo

atual de pesquisa, a questão da pichação, mas da pichação pensando em como ela lida, por

exemplo, com as palavras, como ela lida com as histórias culturais inseridas nessas palavras.

Quanto à questão da comunicação com o público, eu acho que como a gente tá dentro do

universo das relações baseadas em vários níveis né, a gente tem uma comunicação em vários

sentidos. Nós temos uma comunicação com o nosso público direto, esse que participa das ações,

esse que tem contato direto com as ações. As ações hoje, do coletivo, elas são muito efêmeras,

elas não são obras fixas em lugares fixos, elas são muito transitórias, são uma vídeo projeção

que acontece em um determinado tempo que é sempre um tempo muito pequeno né. Você pode

ficar duas horas fazendo uma projeção ou você pode, por exemplo, fazer essa projeção por meia

hora. Muitas vezes a gente, no trabalho de guerrilha, não estabelece um horário, uma agenda

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de trabalho até porque é muito circunstancial, é meio como que vai fazer uma pichação na

cidade, e não é marcar um dia né, não tem uma agenda de trabalho para as pessoas verem ele

fazendo isso. Então a gente trabalha um pouco nesse sentido, de explorar a cidade de forma

muito livre. As pessoas que passam naquele momento fazem suas interações, falam, comentam,

olham, fotografam né. Elas questionam o que tá sendo colocado, elas questionam muito a

questão se tem autorização, se não tem autorização, se faz parte de um evento oficial, não-

oficial. Essa é uma ideia muito interessante, a ideia do trabalho do artista é sempre pautada por

isso, a oficialidade ou não das nossas ações. Então essas são questões que acontecem muito.

Tem uma relação que eu acho que é importante, que é com o nosso material de divulgação, que

sejam os livros, a nossa página no Facebook, no Instagram. Então as pessoas se comunicam

muito com o nosso trabalho por esses canais, pelos vídeos. Então o público tem muita relação

com isso. É muito interessante porque as vezes a gente encontra pessoas que conhecem todo

o trabalho, conhecem a gente nas redes sociais, conhecem detalhes de cada trabalho inclusive,

mas que nunca viram ao vivo, nunca viram de fato acontecendo, mas que conhecem, conhecem

o coletivo, isso é muito interessante pra gente. Basicamente grande parte do que a gente tem

dos contatos que a gente tem pra trabalho, mesmo até pra questões mais comerciais ou pra

trabalhos mais de ativismo vem dessas relações nas redes sociais. Nós também seguimos uma

linha de trabalho não só de pensar a vídeo projeção, não só pensar o trabalho de arte, essa

produção artística, mas pensar também essa comunicação por meio da arte educação. A gente

sempre promove palestras, promove encontros, oficinas, diálogos, sempre nessa tentativa de

fazer essa junção, pensar nesse universo de forma mais ampla. A ideia de que essa produção

artística é parte de um processo que não é só a produção artística, mas que também é essa

entrada por esses meios. Tanto eu quanto o Toni somos professores, então eu acho que nesse

sentido é interessante fazer essa junção, pensar o artista também como aquele que faz, que leva

pra educação esse contexto, então ela também se dá por aí. Então acho que é um pouco por

onde a gente tem transitado. Quanto às viagens... foram muito importantes para o coletivo. Nossa

primeira saída de São Paulo foi pra Natal, a gente participou de um festival que chama “Vigésima

Dimensão”, que ele também tem um ciclo de debates e estudos que chama “Dez Dimensões”,

em Natal, com uma relação com a Federal de Natal. A gente levou pra lá o Autônomo. Aí depois

nós fomos pra Colômbia, num intercâmbio, na época tinha um edital de intercâmbio do Governo

Federal, a convite da Universidade Piloto, da Colômbia. Foi um momento interessante, em que

a gente tinha parceria com o Aluízio, tinha esse contato. Então era o Aluízio, o Coletores e o

Quinho, que já trabalhava com a gente no edital VAI 2, que era o edital em que a gente abordou

muito o graffiti digital. Então a gente levou um pouco dessa pesquisa pra lá. Foi interessante

porque teve o contato com a Universidade, então a gente participou também de alguns bate-

papos, de palestras, conhecemos vários lugares na cidade. Um pouco do trabalho que a gente

faz em São Paulo a gente acabou fazendo lá, um trabalho mais central, mas também fomos

conhecer a periferia, conhecer coletivos da periferia né. E transitamos bastante por lá. Foi

bastante rico no sentido dessa troca com os artistas, com os ativistas de lá e muito importante

ver o que a gente produz em outro espaço. Já pra Dakar, a gente tinha um convite pra participar

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de uma feira de livros, livros de arte, e levamos então a nossa última edição que foi a

“Insurgências”, um livro feito pelo Coletivo Coletores, também feito com o Aluízio Marino, dentro

do edital Redes e Ruas. Então nós lançamos o livro lá e também tinha a ideia de fazer as

performances de vídeo projeção. Nós fizemos em alguns lugares, foi interessante porque

estando lá a gente também fez um pouco de vídeo projeção de guerrilha, que nos abriu as portas

também pra outros espaços. A gente trabalhou muito com a ideia de rackear a Bienal, ou seja,

de se inserir nos espaços e propor algo além do que a gente tinha como convite e foi um trabalho

muito interessante por isso, por essa relação mesmo em outro espaço. Permitiu a gente alongar

um pouco também essa pesquisa que a gente vem realizando com a questão afro, porque nos

deu bastante elementos que contribuem bastante com a nossa pesquisa, conhecendo Dakar,

conhecendo um pouco da história do lugar, um pouco do Senegal. Foram poucos dias, mas deu

pra entender um pouco uma dessas raízes culturais nossas, então isso foi, pra gente, muito

importante. A gente tem uma parceria com um coletivo chamado “Lanchonete.org” que é um

coletivo que trabalha com questões de direito à cidade, LGBT, questões de reconhecimento,

identidade, então é um coletivo que é muito interessante. Então foi um pouco dentro dessa

parceria que a gente trabalhou lá, acho que isso é importante citar. Essas parcerias com diversos

coletivos que atuam dentro dessa esfera da arte, mas também do ativismo político, do ativismo

LGBT, do ativismo negro, acho que é muito importante porque é justamente onde a gente

consegue grande parte dos nossos interlocutores, ou seja, a gente tem um trabalho que

especificamente lida com essas questões. Estar inserido dentro desse universo, desses

ambientes, dentro dessas relações é muito importante pra fazer valer também esses discursos.

O artivismo rompe um pouco com a questão que seria só a arte estética, só de uma exposição,

só de uma exposição artística, ele vai um pouco mais além, ele se insere um pouco dentro de

outros espaços e passa a ser outra coisa. A intervenção pra uma pessoa pode ser vista só pelo

lado estático, mas muitas vezes ela também questiona diretamente alguns aspectos. Então eu

acho que nesse sentido é muito importante falar dessas parcerias.

Coletivo Via – Camila Alvarenga e Daniela Cordeiro

Coletivo Via, se apresentem...

Camila – Meu nome é Camila, eu sou formada em artes visuais. Antes de fazer a graduação de

artes, eu vim do magistério, trabalhei durante nove anos com educação infantil. E aí eu conheci

o Coletores né, através do Toni. E a priori eu comecei a fazer um trabalho individual né, fazendo

a parte de videomaker, captando alguns registros, e a partir de 2015 teve a ideia de formar o

Coletivo Via né. A priori o Coletivo Via, a primeira versão dele foi formado por mim, pela Daniela

Cordeiro e pelo Shack. A gente mandou pra um edital só que esse edital não foi contemplado e

o coletivo ficou meio que parado. E aí, eu e a Dani, a gente fez algumas ações lá no São Mateus

em Movimento, junto com a Talita. Foi um trabalho com as meninas que moram lá no Vila Flávia,

a Rafa, a Gabi... a gente teve a ideia de convidar as meninas e fazer um trabalho com Lighting

Painting, que é um trabalho que a Daniela já faz, fotografia, e a gente fez o registro, só que não

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existia ainda o Coletivo Via formalizado né, não tinha nada na rede social. Era mais um trabalho

que a gente fazia em dupla né. E aí a gente teve a ideia de montar o coletivo, porque a gente

percebeu que não tinha coletivo feminino na quebrada né. O coletivo que a gente via, o Odisseia

das Flores né, igual a gente tava conversando, e eu não lembro se o coletivo das meninas já

existia, o Clã Destino. E as meninas montaram o Clã Destino, elas já tavam fazendo algumas

ações, e aí a gente teve a ideia de montar o instagram, o facebook e começar a publicar nessas

redes os registros né. A ideia era trabalhar com intervenção urbana, misturar as linguagens,

intervenção urbana, lighting painting, escultura né, porque eu sou escultora e também faço

algumas coisas. E a gente começou com o lighting painting, que é fotografia, e a gente começou

a publicar. Desde então a gente tá fazendo alguns registros, fazendo a parte de mídia pro

Coletores, e a gente tá divulgando isso nas redes, mas a ideia mesmo é que o coletivo seja

aberto pra outras pessoas participarem, principalmente mulheres, e a gente poder fazer algumas

ações que contemple todas as linguagens né. A gente não quer fechar só pras artes visuais,

pode ser que seja uma mulher da arquitetura, pode ser que seja da pintura, não sei. Então a

ideia é essa. E assim... o coletivo, eu percebo que ainda a questão da mulher é uma parte que

ainda tá em construção né, porque existe ainda essa dificuldade de relação da mulher entender

o que é o coletivo. Não sei se é aquela questão do machismo, de alguma coisa que a mulher

ainda tem preso e ainda não consegue entender como levar um coletivo adiante, como né...

Então eu acho que existe ainda uma grande dificuldade. E assim, o coletivo já passou por

algumas transformações né “ah, não vamo mais ter coletivo, não vamo mais fazer” porque tem

as dificuldades, cada pessoa tem suas particularidades, tem seus compromissos e acaba tendo

uma divergência né, porque você as vezes não consegue conciliar, ter um coletivo e ao mesmo

tempo ter o seu trabalho particular. Mas mesmo assim a gente tá indo, o que dá pra fazer a gente

tá fazendo. E aí a gente, depois de publicar umas coisas na internet, a gente recebeu alguns

convites, a gente fez alguns trabalhos importantes. A gente fez um trabalho com aquele Giro da

Cultura, que a gente tá fazendo a parte de registro das Femicistas. Elas tão fazendo várias ações

nas casas de cultura de São Paulo e aí elas convidaram a gente pra fazer a parte de registro.

Então é isso que a gente tá publicando na internet né. A nossa colaboração através do registro

mesmo, porque da ação, da gente apresentar a nossa linguagem né, da escultura, ou da

fotografia, ainda não recebemos convites, ainda não tivemos a oportunidade de fazer ainda. Na

verdade, a gente tá pensando em projetos, a ideia é conseguir fazer alguma coisa com o coletivo

através de projetos.

Daniela – Meu nome é Daniela Cordeiro, sou formada em publicidade e em artes visuais.

Trabalho como professora de arte na rede pública de São Paulo. Dou aula de fotografia com

celular nos equipamentos culturais da prefeitura, trabalho como fotógrafa e artista visual. Eu

comecei a colaborar com o Coletores né, o meu envolvimento com a arte começou aí, porque eu

não tinha nenhum envolvimento com a arte. Então foi quando o Coletivo Coletores foi fundado

que eu comecei a me aproximar desse mundo da arte. Desde o primeiro VAI que eles ganharam,

eu comecei a produzir alguma coisa lá naquele primeiro VAI, e aí eu me interessei. Foi a partir

daí que depois de algum tempo eu fui fazer a faculdade de artes visuais. Então eu colaboro com

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os meninos desde o começo né. Então eu já fiz, teve o primeiro VAI que eles fizeram um pôster

de livro, eu produzi essa parte. No segundo VAI eu comecei a participar mais efetivamente

fazendo uma ação que era com game, então eu comecei a participar dessa parte. A gente fez

acho que dois games pra essa ação, e aí eu colaborei em um deles e o outro o Toni fez que era

de um outro software. Esse eu não participei, participei só de um. Participei da exposição que

teve também desse segundo VAI, é... e aí desde então eu comecei a participar. Participei quando

eles expuseram no FILE também. E até então eu comecei a fazer os registros deles nessa época,

mas com uma câmera bem simples, uma coisa bem descompromissada. Aí quando foi em 2012,

que a gente já tinha um equipamento melhor, uma câmera melhor, aí eu comecei a fazer mais

efetivamente esses registros né. Também já fiz registro muito do Grupo OPNI, como o Toni falou,

do São Mateus em Movimento. Comecei a fotografar aqui no Vila Flávia, nos eventos que tinham

de graffiti, o Ensaio Geral, que era do São Mateus em Movimento. Então a parte da fotografia

também tá ligada com esses coletivos aí que você tá estudando (risos). A oficina que eu faço,

que é aqui em São Mateus também, que você falou que descobriu meu instagram por causa das

fotos, você deve ter visto as fotos da oficina. Os alunos fotografam bastante aqui também, em

São Mateus, na Favela Galeria, tal... então sempre tá ligado. Aí, como a Camila falou, a gente

começou a fazer esses trabalhos ainda sem esse título de Coletivo Via né, mais

descompromissado né, então a gente fez esse primeiro trabalho com as meninas, a gente fez

um outro trabalho com a grafiteira Risca. Eu fazia a parte da foto e ela (Camila) fez o making off,

que a ideia era... essa menina que era grafiteira ela grafitava no corpo de uma outra pessoa, que

é o Body Painting. Aí ela fez e a gente fez o registro, tudo...

Camila – e também teve a da escultura, que a ideia era fazer a escultura do rosto dela e eu entrar

com a parte do objeto tridimensional e aí ela entrar com a parte da intervenção, pra interligar né.

Fazer aquilo que eu te falei, mesclar as linguagens.

Daniela – Daí ia sair dois trabalhos, dessa parceria né... O meu trabalho de foto, que aí a Risca

ia grafitar na menina e eu ia fazer as fotos e a Camila ia fazer o making off desse meu trabalho.

E a Camila ia fazer o trabalho dela, ela fez um molde do rosto da Risca, daí ia sair o rosto dela e

ela ia grafitar no próprio rosto dela né. E aí eu faria os registros dela, aí a gente fazia essa troca

no início. Então ela ia registrar os meus trabalhos e eu registrava os dela né. No lighting painting

também nasceu assim. Eu tive a ideia de fazer e ela veio pra registrar. E a partir daí, mais ou

menos nessa época teve a ideia de fazer o coletivo, ainda com o Diego, que é o Shack que ela

citou, aí depois parou essa ideia né, como a gente não ganhou o VAI ficou meio adormecido. E

aí depois, no ano seguinte, em 2016/2017, a gente voltou com a ideia de voltar com o Coletivo

Via, e aí inicialmente ia ser uma junção do meu trabalho de fotografia com o trabalho dela de

escultura e com o trabalho da Karina, que é a esposa do Flávio, com estêncil.

Camila – até esqueci!

Daniela - A ideia era a gente fazer a intervenção na rua, juntar as três linguagens né. Só que ai,

devido às particularidades de cada um, a vida vai encaminhando, leva a gente pra outras coisas,

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e aí a gente nunca conseguiu fazer efetivamente nenhum teste, nada, pra falar... mentira a gente

fez aquela máscara né, que ela fez o estêncil e só...

Camila – Aí foi as meninas do Rosas Periféricas, a Michele, que chamou a gente pra fazer o

primeiro trabalho. Aí a gente convidou uma tatuadora, que é a Aline, que é uma amiga em

comum, que a ideia era empoderar mulheres...

Daniela – e chamar outras mulheres...

Camila – a gente foi lá no espaço do Rosas Periféricas

Daniela – que é um grupo de teatro aqui do São Rafael

Camila – e aí eu fiz algumas esculturas, com vários seios e aí a tatuadora, a Aline, ia fazer o

processo de intervenção nesses seios com a linguagem dela né, da tatuagem

Daniela – linkado também com o feminismo e tudo...

Camila – isso, e a gente foi até esse espaço, que era um evento que ia ter no dia...

Daniela – era um sarau, e a intervenção acontecia lá...

Camila – era ao vivo a intervenção

Daniela – os peitos já estavam lá, ela levou pronto, mas a Aline Bueno, que era a tatuadora, ela

vinha tatuando né, os peitos...

Camila – tatuando o objeto tridimensional, e aí a gente fez uns lambes também sobre o feminismo

e sobre o Coletivo Via, e a gente foi fazer esses lambes nas paredes do espaço, intervindo no

espaço. E aí depois a gente publicou né, esse trabalho e tal, e aí num segundo momento, a gente

foi fazer um trabalho pro Coletores no Sesc Osasco

Daniela – é, a gente chegou a fazer uma projeção pra eles...

Camila – era eu, a Karina e a Dani. A gente foi pro Sesc Osasco porque eles foram fazer um

outro projeto...

Daniela – eles tavam na África, foi a época que eles foram pra África, então foi a gente que

projetou pra eles, mas esse trabalho foi como Coletivo Coletores porque o Sesc contratou o

Coletivo Coletores.

Camila – aí depois o Toni, como ele tem um trabalho independente né, de músico, ele foi fazer

um vídeo clipe e convidou o Coletivo Via pra ajudar nesse projeto. E aí a gente aproveitou o

espaço, que era um terreno de ocupação e a gente fez um trabalho de intervenção lá né...

Daniela – aí depois ficou mais na parte dos registros mesmo. A gente fez um trabalho com a

Mariana Felix...

Camila – aí a gente viu o trabalho da Mariana Felix e convidou ela pra fazer um projeto, a gente

fez uma reunião com ela, ela é poetisa, e a gente pensou de fazer esse trabalho de Lighting

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Painting, porque ela vai lançar um livro né, diz que vai lançar um livro em dezembro sobre

feminismo, sexo, drogas. E aí a gente fez esse projeto com ela, de fazer a intervenção com

lighting painting né, usando algumas palavras da poesia dela. Aí a gente também publicou, só

que foi tudo parceria né, a gente tava, a priori fazendo um trabalho em parceria. Aí depois que

veio esse projeto do Giro da Cultura, que a Michele, que é do Coragem... Olha como as coisas

tão conectadas né. Eu participei do projeto Agente Comunitário de Cultura em 2016. Ganhei esse

edital, foi individual e aí eu transformei a casa de cultura num atelier aberto, onde as pessoas

podiam vir, fazer um trabalho de toy art né, que era na linguagem do toy art, e a gente ficava

produzindo vários toy art, ensinava eles fazer molde... e aí a Michele eu conheci através desse

projeto, em 2016. E quando foi agora, em 2018, ela montou um coletivo, que é essa Femicistas

e convidou o Coletivo Via pra fazer a parte de registro desse Giro da Cultura que elas tão fazendo

em São Paulo...

Daniela – é, na Zona Leste, nas quatro casas de cultura da Zona Leste...

Camila – e aí depois, o outro trabalho que a gente fez foi esse que você viu, no SP na Rua, né,

que o Coletores convidou a gente pra fazer a parte do registro. Aí o que a gente pensa “vamos

aproveitar esse momento pra fazer os registros e publicar né”. Aí tá saindo algumas fotos lá no

instagram, é um registro mais artístico dessas pessoas que participaram desse evento...

Daniela – aí também o meu trabalho em colaboração com o Coletores teve também, fora a parte

de registro, teve em 2015/2016, quando eles ganharam o ProAC, a gente fez um trabalho que é

misturar graffiti com Lighting Painting, aí foi um trabalho de parceria eu, Daniela Cordeiro,

Coletivo Coletores e o Quinho. Então a gente... veio aqui em São Mateus mesmo, nos graffiti

dele e o Coletivo Coletores fazia o desenho com luz... o Coletivo Coletores fez a parte dos

desenhos e eu fiz a parte da fotografia, também rolou uma exposição, então eu tô sempre

acompanhando e contribuindo com o trabalho deles. A gente também já fez conteúdo de projeção

pra eles, a Camila fez alguns de 3D, eu fiz alguns de ilusão de ótica que eles usaram no Redes

e Ruas, nesse último Redes e Ruas que eles fizeram e também pro evento de Parati.

O que vocês consideram um coletivo?

Daniela – aí, não sei, acho que são um grupo de pessoas que estão em prol de alguma coisa...

Camila – com alguma coisa em comum...

Daniela – pode ser um trabalho de arte, ou como você mesmo falou do grupo das meninas do

Odisseia, que é um grupo de música, mas acho que pode ser também um coletivo.

Camila – eu acho que é assim, não vou dizer que pensa da mesma maneira né, mas acredita

em uma mudança, tem coisas em comum né, no coletivo a gente tem ideias em comum, que é

viver da arte, por exemplo né. Se você monta um coletivo você tem mais força pra conseguir né,

viver da arte ou empoderar pessoas, promover ações que mude o contexto que você tá inserido,

mude o contexto de outras pessoas, porque se for ver a gente veio da periferia, então nós

estamos numa categoria assim... privilegiada perto das pessoas que moram ao nosso entorno,

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então a gente sendo artista, tendo um coletivo a gente pode mostrar pra outras pessoas que elas

também podem né, que elas também são capazes de fazer algo importante, não sei muito bem,

acho que é isso.

Qual a principal dificuldade em manter um coletivo?

Camila – eu acho que é lidar com as individualidades de cada um. Porque muitas vezes a gente

não acredita que é possível fazer as coisas. E o foco. Eu acho que muitas vezes a gente sai do

foco devido às particularidades, o que cada um quer. Essa é a maior dificuldade de manter um

coletivo, é lidar com isso.

Daniela – eu acho que é a parte individual de cada um, porque as vezes cada um tá num

momento, as vezes aquela pessoa quer, mas o outro não quer, acho que a parte financeira

também porque as vezes tem coletivo que nessa parte tá resolvido, mas não tem a verba, o

recurso pra seguir em frente. Ou então ele faz né, através dos editais, mas quando chega no

momento que ele não consegue mais edital, aí ele para né... Acho que uma sede também né,

acho que ajuda, acho que é isso.

Quinho QNH (Marcos Borges Fonseca) - Operação Tinta no Muro

Pode se apresentar...

Quinho – Eu sou o Quinho QNH, conhecido também como Quinho Fonseca, no Facebook. Eu

sempre morei aqui em São Mateus, comecei a grafitar desde 1997, junto com o pessoal do Grupo

OPNI também, começamos aí na mesma época. Depois de um período eu parei de pintar, fiquei

trabalhando com outras coisas e tal, só que sempre desenhei, desde pequeno. Desde que eu

me entendo por gente eu desenho. E sempre me interessei pela estética da rua, da pichação, do

graffiti, até de arte contemporânea também, de visitar algumas exposições. Morei um tempo

depois na Bahia também, e quando eu voltei o Grupo OPNI tava num outro estágio do graffiti,

pintando mais, pintando murais, dialogando com a galera na rua, saindo em algumas revistas e

já tinham pedido alguns desenhos meus pra mostrar em algumas revistas também. E aí eu me

interessei de aprofundar mais nesse lance do graffiti mesmo. E desde então, tipo... me descabelei

de fazer né... e eu gosto de explorar outras coisas também né. Com o tempo... eu to encurtando,

tem uma linha do tempo aí de vinte anos de graffiti, tá ligado... dessa época que a gente começou

até hoje. E de um tempo pra cá, eu gosto mais de pesquisar outras coisas, colocar algumas

propostas de interpretação, alguns contestamentos, sabe... na ideia do que eu vou pintar. E tem

o Toni também, aqui da quebrada, um maluco que eu conheço das antigas, que pinta, que

também desenha, que faz várias outras coisas, que também me ajuda a explorar essas outras

coisas, de misturar o graffiti com projeção, ou envolver o graffiti com instalação, e explorar outras

vertentes de obra, performance.

Além do Grupo OPNI, você colaborou com o São Mateus em Movimento e com o Coletores...

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Quinho – O São Mateus em Movimento a gente se conhece também desde pequeno. A dona

Vera, que é a dona do espaço, foi umas das mais me incentivaram quando criança, que eu

pintava uns quadros e ela que comprava, desde moleque, ela tem umas coisas bem antigas

minhas. E o Negotinho, o filho dela, que é um dos cabeças, da linha de frente lá do espaço. E a

gente tá ali desde o começo. É muito louco que hoje em dia o espaço tá transformado né. Você

vê vários outros coletivos participando e criando propostas muito boas pro espaço, de ocupar ali,

fazer funcionar né, levar informação pra galera que mora ali no entorno. A gente sempre teve

muita dificuldade, as vezes pra conseguir atingir a galera dos adolescentes, a galera que mora

ali mesmo, que tá envolvida em alguma problemática grande. Porem tem a galera que é bem

participativa também, que é parente dessas outras pessoas sabe... que de uma maneira ou outra

acaba levando a informação pra dentro de casa. E é massa, velho. São quanto anos de espaço

já, Toni? Nove? Onze!

Toni – não, já tem dez anos... onze anos! Desde de 2007, estamos em 2018, tem onze anos!

Quinho – a gente tá lá desde o comecinho.

Toni – o espaço era uma laje só né... era só uma laje, a galera se juntava lá pra fazer um encontro.

E aí começou a ter uma aglutinação, uns ensaios pra galera pintar, tomar uma breja, já virou

baladinha, point. Aí virou um barracão, hoje é um espaço mesmo alí.

Quinho – e minha atividade era mais no meu bairro, de pintar aqui o entorno do espaço e a minha

rua. Eu cresci ali na rua do espaço do São Mateus em Movimento mesmo. Eu moro ali naquela

rua. Então sempre convidava amigos pra vim pintar aqui ou pra participar de alguma atividade

que tá tendo lá, ou pra ver só. Tipo “um camarada meu vai tocar, De Menos Crime” sei lá... tipo,

convida a galera do Rap, as vezes é Reggae. E aí os caras já vem, a gente já pinta por aqui, tem

um rolê lá depois, pra tomar uma breja, e depois a galera cada um vai pro seu canto. Então foi

criando acho que esse vínculo né. De as vezes calhar de ter um monte de grafiteiro no dia de

um evento, e as vezes não estar diretamente ligado ali com o pessoal que tá organizando o

evento. As vezes tem também um evento que tá com uma proposta maior e consegue trazer

também, abre pra convidar né, tem material, tem uma grana. Então é massa sempre tá

explorando isso.

E fora do contexto de São Mateus, você participa de algum coletivo? Faz ações fora daqui?

Quinho – Sim! Atualmente eu tô morando na Bahia e venho pra cá pra fazer alguns trabalhos,

pra trabalhar com alguns coletivos que eu participo. Eu participo de alguns lá da Cidade

Tiradentes. São dois coletivos lá: o OTM Crew, que é um coletivo de nove grafiteiros. A maioria

residente lá de Cidade Tiradentes mesmo. E a gente propõe também uma galeria a céu aberto

lá, a gente tem um trabalho de trazer outras pessoas pra pintarem lá, pessoas de outros estados,

outras crews também pra fortalecer essa ideia de grupo de graffiti. Então tem alguns painéis e a

gente também tem alguns projetos contemplados lá. Tem a Luz também, mas é um grupo mais

solto, tem a galera da pichação, outro é da fotografia, outros que não faz nada, só tumultua

(risos). E alguns do graffiti.

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Como você se vê dentro de um coletivo? Você vê alguma diferença em pensar o coletivo e pensar

a crew, ou é só o nome que muda?

Quinho – Pra mim, trabalhar com coletivo sempre teve esse lance de entender a opinião de cada

um né, tentar sempre ter a participação, mas que sua participação não seja só a sua ideia, o

principal né, então tem que ter alguns cuidados. Eu trabalhei com muitos que houve também

dificuldades, que não foi fácil você defender a sua ideia e as vezes as pessoas estarem propondo

outra que não se enquadra nem no que você tem como proposito de trabalho. Ao mesmo tempo

isso ajudou também a fortalecer alguns coletivos pra trabalhar junto, entender como cada um

trabalha né. O Coletores acho que foi com quem eu mais trabalhei, além da OTM né, que é o

crew-coletivo. A gente chama de “criu” aqui no Brasil, mas é “crul” né, que se pronuncia. É um

nome inglês. Mas... eu via diferença antes, tá ligado. Eu ligava muito ao graffiti esse negócio de

crew. Então era sempre essa relação de ter a ver com a rua e o graffiti e já era, tá ligado. Mas

trabalhando com projetos e todos esses desdobramentos de documentação, prestação de

contas, todo mundo acabou aprendendo um pouco essa parte né, de como montar e desenvolver

um projeto. Acho que a gente ficou mais com a visão de coletivo, de respeitar mais o outro, de

entender e discutir algumas ideias pro grupo, tirando que não seja o óbvio, a linguagem pessoal

de cada um. E eu acho que a assinatura tá no trabalho ali, tá embutido. Então você fazer um

trabalho que é junto com outras pessoas, sua assinatura é a sua participação, tá ali na parte

técnica né, na ficha técnica. De qualquer maneira serve pra divulgar seu trabalho, serve pro seu

currículo, serve como experiência pra você ter outros trabalhos com outros coletivos né. De você

olha e entender como cada pessoa trabalha ali e aplicar coisas positivas de cada um ali no seu

próprio trabalho. Muito louco, é um aprendizado monstro.

Como foi a experiência de fazer o graffiti pensando em uma vídeo projeção?

Quinho – Foi bem experimental, a gente discutiu algumas coisas, alguns temas sobre a arte,

sobre o que a gente tava vivendo, algumas questões que a gente associa o nosso trabalho, de

indagar algumas coisas, ou de violência, situação da rua mesmo, do território, que foi uma coisa

que a gente discutiu bastante. Então eu tentava entender né, que pegasse uma área que ficasse

pro Toni desenvolver também, então eu tentava criar algo que dialogasse com o que fosse vir,

sabe? E ao mesmo tempo eu também não tinha esse controle, sabe? Foi uma coisa meio

surpresa pra nós... então foi muito experimental né. Por mais que tinha todo o conceito, a gente

definiu muita coisa, mas ali na hora que veio ali pra desenvolver o desenho mesmo, algumas

coisas foram mais aplicadas. Porque foram várias né, trabalhos. Os primeiros veio mais nessa

bala de experimental, que a gente foi vendo “ó, a imagem nessa coisa que tem muita textura não

funciona muito bem, talvez se tivesse mais limpo...”. Acho que nos próximos foi ficando mais

fácil, talvez, de trabalhar.

E isso mudou a sua forma de pensar o graffiti? Como isso afetou seu trabalho?

Quinho – Trouxe novas percepções... agregou. Sinto que ajuda pra desenvolver outras coisas.

Era uma coisa que eu já tinha interesse, que eu tive a oportunidade de trabalhar junto e aprender,

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e mexer, e ver como funciona o software, tirar dúvidas. O Toni é muito bom pra ensinar né. Trazia

amigos pra poder entender também: “eu não entendo, mas meu mano entende!” (risos). É isso,

é uma troca. Ao mesmo tempo eu acho que eu também tô passando alguma coisa que eles

também aprendem. É massa, é sempre uma troca.

E a questão de vivenciar a cidade com os muros grafitados?

Quinho – Não sei. É um diálogo. Eu penso a imagem como um texto, de você poder fazer a

leitura. Então dependo do que você tá propondo. Tem vários trabalhos que você propõe a mesma

coisa, é uma coisa mais repetitiva. O cara tá explorando um lance de técnica, de estar sempre

na mesma bala. Tem outros que tem uma proposta mais políticas, outros mais de agredir mesmo.

Eu sempre gostei de pesquisar mesmo, mais por gostar sabe? Desde criança eu ando olhando

parede, em ônibus, na rua, no carro, sempre eu to nessa bala, em qualquer lugar que eu vou.

Onde não tem parede, eu ando procurando parede, tá ligado? Mas ao mesmo tempo eu não

sinto que há uma relação, é uma coisa que eu sinto meio solta. A parede é sempre o lado de fora

né. Então é muito louco, envolve muitas coisas né, que as vezes tem pessoas que se ofendem

com o que você faz, a ponto de chegar e interver, apagar ou quebrar a parede, ou mandar pintar

outra coisa, sei lá...

Você já foi censurado em algum trabalho seu?

Quinho – Já, em alguns. Geralmente eu questiono algumas coisas que as pessoas não gostam

muito de ver. Ou quando elas se veem naquilo, cria um conflito ali que elas simplesmente não

gostam. Muita gente fala que adora meu trampo, mas que não compraria pra pôr em casa. Aí eu

respondo, “mas meu trabalho não é pra ficar na sua casa!” (risos). Eu tô pintando em algum lugar

que é pra ficar onde tenha fluxo de pessoas, pras pessoas verem. Mas eu gosto, é bem solto.

Eu pinto, eu vendo, tento não me apegar tanto pra até me provocar a produzir mais também. E

as vezes eu não tenho controle pra onde vai. Às vezes alcança umas pessoas legais. Eu dei uma

gravura pro Edinho, um mano que tá lá em Portugal e tava falando com a gente. Eu dei pra ele

virar uma grana lá “ó, você pode vender essa gravura aí também”. Aí ele falou “mano, ao invés

de vender eu vou presentear um cara” e perguntou pra mim o que eu achava, que é um mestre

dele lá também, que tá ajudando ele, e ele acha que pode alcançar outro rumo a gravura, mais

do que simplesmente vender pra alguém que obteve só porque tem dinheiro. É louco isso né. Eu

acredito muito nessa questão do valor e do preço né. As vezes o lance do valor de doar, ou de

dar, ou de presentear é muito maior. O que pode alcançar, como a pessoa vai receber e explicar

pros outros e passar... de quem ele tá recebendo também, é muito louco. É bem massa onde a

arte chega, onde leva.

Toni – Às vezes a gente trocando ideia, pensando, sonhando no trabalho a gente fica “e se a

gente fizesse isso?”. Às vezes alguém já fez, já ultrapassou e tá em outro lugar, como a gente

quando a gente começou fazer graffiti digital. E tipo “ó Quinho, tem um bagulho louco aí”. A gente

propôs pros caras do OPNI e os caras falou não. A gente propôs pro Bone e ele falou não. Mas

os caras falou que o único cara louco o suficiente pra topar participar desse bagulho ia ser você.

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A gente já se conhecia de muito tempo, mas a gente tava distante. Ai a gente perguntou “é você?”

ele falou “demorou, vamo nessa!”, não perguntou nem se ia receber alguma coisa. Aí eu falei

“vai ter uma ajuda de custo, vai ter umas tintas”. Então ele falou “demorou, melhor ainda!”. Um

ano depois nós tava na Colômbia, apresentando um trampo lá, dando aula lá.

Quinho – Foi bem legal o trampo da Colômbia, foi a primeira vez que eu saí do país. Você

também né Toni?

Toni – Foi!

Quinho – Pra gente foi muito louco, conhecer outra cultura e ver que é tão próximo daqui também,

me lembrou muito a Bahia, algumas ruas, o clima, dormir de dia. As vezes o tempo de noite era

muito frio, outro rolê. Muito solto, mas interessante de ver. E ver a gente como América Latina,

porque o Brasil é muito grande, então isso eu acho que se perde um pouco né, a nossa

identidade. A gente se põe como brasileiro logo, ao invés de latino americano. E lá, acho que

deu pra ter uma perspectiva diferente com relação a isso. E é muito próximo, várias questões,

indagações, a política, de pensar na maneira de frequentar a rua a noite, o rolê, a malandragem

né, as relações que envolvem grana. Então acho que foi bem próximo, foi massa.

Houve algum trabalho seu que chegou onde você nem imaginava?

Quinho – Já teve alguns... esse do Coletores mesmo, acho que foi o primeiro assim, que teve

um registro, rolou um livro né, uma explicação de um conceito que fica, sei lá... o que eu defino

como pós-graffiti, traz o graffiti pra um outro aspecto artístico em termos técnicos e acadêmicos.

É diferente, eu acho louco isso, você atingir um professor dele, por exemplo, tá ligado? E tem

alguns lugares que eu já expus. O Memorial da América Latina, é um lugar que eu achava um

espaço massa, mas tem várias questões que passa meio batido as vezes. A primeira vez que fiz

xilogravura, que é uma técnica brasileira de impressão, achei bem massa. E aí foi pra fazer uma

exposição fora também. Ao mesmo tempo, não tenho muito controle... eu tava pensando em

estudar curadoria e esses negócios, me aprofundar e eu mesmo tentar fechar o bonde, ou trazer

outras pessoas pra trabalhar com isso aí. É que também tem muita gente que trabalha com esse

lance de levar a arte pra longe só que depois ela se perde, sabe? A galera pega seu trampo,

leva, mas depois não te dá um respaldo. Tinha um moleque da Austrália. Ele queria comprar uns

prints, só que aí era muito caro mandar os prints pra Austrália. Era mais caro o envio do que o

próprio print. E aí eu conversei com ele, pra fazer um kit. Só que as vezes eu sou meio

desorganizado com algumas coisas, eu esqueço. Vou continuando com quem tá trocando ideia

ali, os trabalhos que eu já tô mais envolvido e tal, e desenrolo o que é prioridade sabe? Algumas

coisas vai ficando na gaveta, e eu esqueci desse mano já tem uma cota. Tem mais de um ano

que a gente tá negociando pra enviar esses print. E eu tava pensando em criar uma história, tô

com vergonha de falar que tá na gaveta. Mas é muito louco esse lance de vender, as vezes tem

que desenrolar mesmo com a história pra vender o trabalho. O trabalho em si, pra algumas

pessoas, não fala o suficiente. Tem outros que não, é bem simples, vê, entende e é isso. Já tem

outros que precisa da história. Eu fiquei um tempo sem querer vender pra galeria porque eu não

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concordava com a porcentagem que as galerias ganham, de 50%. E comecei vender as coisas

marretando na internet, mandando pra algumas pessoas que eu vou conhecendo, postando e

falando que tá disponível. Aí comecei a encontrar um outro mercado também, que é uma coisa

nova que pode explorar bem né, pode conseguir, não desmerecendo o trabalho de nenhuma

galeria, mas a gente entende, o que eles tão fazendo é simples de entender. Então eu quero

buscar algo a mais e, dependendo do que eu conseguir, eu já entro nesse mercado aí e quem

sabe a gente não desenvolve um novo formato de vender arte e levar a arte pra outras pessoas.

Eu consigo vender arte através de amigos que também pintam. Essa semana eu mandei meus

desenhos pra França lá. O mano é carioca, mas mora lá na França e leva o trabalho de alguns

amigos daqui, que ele pretende expor lá, fazer alguma coisa junto. E ele tá vendendo uns

trampos, o que não tá vendendo ele vai guardando pra, mais pra frente, a gente fazer uma

exposição. Então tem que ir encontrando alguns meios. Porque também a gente tem que se

envolver, se ficar esperando, fica na mão dessa galera que tá cobrando 50% em cima de uma

parada que você fez sozinho.

E a Bienal de Graffiti?

Quinho – Eu pintei duas obras pra essa bienal e o conceito que eu coloquei nas obras era sobre

política e violência. Desenhei uma com referências aqui do Brasil, América do Sul e outra com

referência do Oriente Médio, que era um graffiti que eu já tinha feito há dois anos atrás, num

evento de graffiti, que já tinha sido censurado, pelo mesmo cara que era o curador dessa

exposição agora e me convidou. E aí eu aproveitei e abordei o mesmo assunto em uma dessas

obras. Aí ele vetou, falou que não podia, que era espaço público, semana de eleição, porque

continha política e violência... só que uma das obras entrou e a outra não e as duas tinham o

mesmo conteúdo. Aí a gente decidiu, vim pra fazer uma performance. E a performance era... eu

tava vestido dos personagens que eu pintei, eles têm cabeça de plástico. Eu coloquei a cabeça

de plástico e entreguei os panfletos com a obra que foi censurada, explicando que a obra estava

censurada e que podia ver nas redes, tava explicando. A gente fez essa performance porque

teve essa questão de que eles não avisaram o que podia e o que não podia, o tema era livre pra

você expor. Então eu abordei isso porque é uma linguagem que eu já venho trabalhando. Outra,

eu senti que ele levou pro lado pessoal, o curador no caso, e vetou o mesmo trabalho que em

outra oportunidade eu já tentei colocar em discussão, e ele não entendeu nem o conceito do que

eu tava tentando abordar. O conceito era o plástico em torno disso, da política, do consumo, da

violência do consumo. E ele anulava isso. Ele tava fazendo análise em cima do que ele tava

vendo e ele entendeu só esse ponto de vista dele, tentou anular, não tentou entender o conceito,

não quis se preocupar de passar pra outras pessoas que estavam trabalhando na produção do

evento. Aí a gente veio ver de perto, eu aproveitei e já fiz a performance. E foi massa porque eu

vi que tem obras que tem iluminação, uma tarjeta com o nome, tem obras que não. Aproveitei

pra poder fazer uma crítica à curadoria de uma pessoa que, na real, não é curador. Ele tá

pegando um projeto grande, uma exposição que era pra ser uma das mais relevantes de são

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Paulo sobre graffiti e ele colocando o cunho de Bienal... eu fiz uma crítica a isso nessa

performance.

Val (Valdemir Pereira Cardoso) – Grupo OPNI

O OPNI, ele iniciou em 1997 né, mas sempre a gente teve uma ideia muito na cabeça sobre

coletivos né. A gente tinha uma ganguezinha de bike que chamava Conexão das Bike... a gente

teve um grupo quando a gente tava, tipo, no primário mesmo, que era a Turma dos Olhos, que

era eu, o Toddy, aí tinha o Jean e o André, e cada um tinha uma tonalidade de cor de olho, por

isso era Turma dos Olhos. Um tinha o olho azul, que era o André, o Jean tinha o olho verde, o

Toddy tinha um castanho mais escuro e meu olho é um castanho mais claro. A gente inventou

que era a Turma dos Olhos. Aí a gente ficava fazendo desenho e tentava vender desenho de

porta em porta. Isso, sei lá, em 1993 saca? Esse foi nosso primeiro grupo, depois a gente formou

a Conexão das Bike, todo mundo tinha uma bike, Caloi Cross né... Aí depois, com o tempo, a

gente descobriu a arte urbana da sua forma mais transgressora da arte, que é a questão da

pichação, e aí a gente começa a pichar. Aí eu e o Toddy inventa o Grupo OPNI, que no início a

ideia era Objetos Pichadores Não Identificados, que foi bem na época do ET de Varginha, e a

gente se amarrava nessas ideia de ET, porque a gente sempre se via como ET, porque parecia

que a gente não fazia parte desse mundo né, até hoje a gente vê que a gente não faz muito parte

desse mundo. Porque a gente colava nos lugares, se sentia deslocado, não se sentia inserido

naquele espaço. Aí como já se sentia como ET mesmo, a gente inventou o OPNI, Objetos

Pichadores Não Identificados, que a gente se sentia como ET. E também porque tinha essa ideia

de pichar e as pessoas não saberem quem foi e a gente lá, tipo “os caras não tá nem ligado,

mano, esse aí é o OPNI”. E as pessoas sempre tinham curiosidade de saber se era uma pessoa

só, se eram mais pessoas. Mas a gente sempre teve essa desenvoltura de querer desenhar né,

aí a gente foi aplicando essa nossa história com o graffiti. Quando a gente iniciou, em 1997, tinha

mais ou menos vinte moleques no grupo. Bem masculino né?! Vinte moleques! Muito desses

moleques, alguns chegaram a ser homens né, adultos. Outros, nessa trajetória, igual meu primo,

foi assassinado né, porque ele foi pra um caminho mais perigoso, vamos dizer assim. Teve outras

pessoas que foram presas, outras pessoas que se regenerou dentro disso, outras vieram a

frente, outros viraram pai de família, outros virou contador. O novo contador da Favela Galeria

era um ex-integrante do Grupo OPNI né. Ele que tinha mais apetite de pichar, ele hoje é um

contador né... muito louco isso! E a gente sempre teve essa questão do desenho muito forte com

a gente né. E muita gente vinha falar tipo “pô mano, cês tem que desenhar, mano, é mais daora”.

A gente gostava e a gente foi pro graffiti até sem saber que o que a gente tava fazendo era o

graffiti. Apesar que, desde muito tempo a gente sabia o que era o Rap, até por causa do Nego

(Fernando Macario), o pessoal do Consciência Humana que é daqui. A gente via ele com aquele

estilão muito louco e a gente falava “caramba mano, os caras se vestem mó bem, calça larga

que cabe cinco de nós... a gente quer ser assim!”. A gente até dançava break na época... tentava

dançar né, no asfalto. E aí a gente começou entrar nesse mundo do graffiti através da pichação

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né, bem essa questão pejorativa do graffiti paulista né?! Muita gente começa por causa da

pichação. E conforme foi passando, a gente foi se inserindo nessa questão do Hip-Hop mas

também em outras questões culturais que rolava aqui dentro da nossa periferia. Tinha um

pessoal muito forte do Rock’n Roll né, onde a gente conheceu o Pixote, que fazia parte de um

outro grupo de Graffiti que a gente admirava muito, muito mais experiencia que a gente que era

os mais birutas. E o Pixote inventava uma ideologia que chamava “Sociedade Fantoche”. O

símbolo do Sociedade Fantoche era uma tesoura né, dois círculos escrito “Sociedade Fantoche”

e uma tesoura. E aquela tesoura serviria pra gente cortar as linhas imaginárias da manipulação.

E aí a gente pirou com essas ideias, gostava pra caramba de escutar Rigia Gangs e tal, colava

com eles. Aí nesse mesmo período a gente começou colar muito mais com o pessoal daqui que

fazia o Hip-Hop que nem o nego fazia, o graffiti e o próprio Consciência Humana, De Menos

Crime, porque os caras tava sendo muito famoso “caramba mano, tem uns artista lá na quebrada

que os cara é foda mano, os cara tá em tudo que é lugar, a gente quer ser igual os cara”. Ai teve

essa questão né, tanto do graffiti hip-hop quanto do graffiti Rock’n Roll, e também, conforme o

tempo foi passando, a gente teve muita influência das questões regionais, tipo da nossa família

que é do nordeste. Meu pai é baiano, minha mãe é pernambucana, eu nasci na Bahia. O Toddy

nasceu aqui em São Paulo, mas o pai e mãe dele é da Bahia. E todos nós sempre tivemos essa

vertente do Norte e Nordeste dentro do grupo né. E com isso, conforme foi passando nesse

caminho, a gente se aproximou do pessoal do Samba. Eu vejo o OPNI como se fosse uma

feijoada, vamos dizer assim né, uma coisa tão nacional, com tantas misturas, com uma

combinação tão gostosa, saca? E o OPNI teve essa questão com o samba e conforme foi

passando o tempo, quando a gente adquiriu essa ideologia chamada “Sociedade Fantoche” a

gente começou a mudar nosso nome né. De Objetos Pichadores Não Identificados, que a gente

viu que a gente tem mais coisa pra passar, mais do que só a indignação né. Então a gente foi

começando a mudar. Aí colocamos O Povo Nada Impõe, é... Os Prezados Nada Importantes...

o Ódio Produz Nossa Inspiração, Os Policiais Nos Incomodam... E aí começou ter muito sentido

dentro do nome. Hoje a gente vive numa época que a gente tirou todos os significados dentro do

OPNI e OPNI virou uma palavra de luta. Mas a gente vive num país super carente de diversas

coisas né... foi uma evolução natural do OPNI de virando essa palavra de luta, foi agregando

pessoas junto e fazendo parte de uma família, e a gente vê que OPNI não é simplesmente só

uma família, mas sim uma entidade que nós que fazemos parte temos que protegê-la, sabe?

Porque o OPNI tem meninas que fazem parte, tem minha irmã, a Leila faz parte do grupo, do

contexto do grupo né. Tem outras meninas que faz parte do contexto, mas tipo assim... quem tá

sempre de linha de frente do OPNI ou da OPNI sempre somos nós que tamo aqui, a Favela

Galeria, o Bone, o Nego, o Toddy e eu. E com isso, tudo que é lugar que a gente colou, sempre

chama de “A OPNI” e a gente nunca entendeu isso. Aí depois foi vendo “pô mano, esse negócio

tem uma parada de ancestral”. Eu acho que essa parada é uma parada meio mística. A gente

tem que cuidar dessa entidade, é uma entidade que tem muito poder. A gente nunca conseguiu

ganhar dinheiro, mas a gente consegue trazer algumas outras coisas que é inexplicável, que é a

coisa da energia, da aproximação, da expansão e contração do universo que nos traz até esse

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momento sabe? A gente sempre tenta fazer uma coisa muito bem de coração, a gente sempre

acreditou em fazer as coisas antes de ter dinheiro, fazer o negócio pelo coração. Eu acho que o

que nos fez a gente não parar até hoje foi por causa disso, por causa do nosso coração, por que

se fosse por causa do dinheiro a gente tinha parado há muito tempo né. Esse é o pouco da

história né. Muito desses meninos que iniciou saíram, mas muita gente foi se ajuntando dentro

dessa caminhada: o Bone, a minha irmã, o Nego, todo mundo fazendo parte. Quando eu vejo o

Nego, por exemplo, atuando numa série ou num filme, eu me sinto representado. Eu me sinto

que tô fazendo parte daquilo, sabe? E quando, eu tenho certeza, o Nego vê a gente pintando em

outros lugares, ele se sente parte disso também. A gente acredita que um grupo tem que viver

por um objetivo. Não tem essa questão da vaidade, a gente vive por um objetivo. Com certeza,

com o fato de a gente tá na linha de frente, a gente fica mais visado, mas o principal não é nós,

mas sim a nossa arte. Se essa arte tá se comunicando para o nosso povo né... Daí vem a Favela

Galeria, depois de pouco mais de dez anos de grupo, em 2009, a gente tenta formatar essa ideia,

de a gente pintar em diversos lugares e a gente pintava aqui dentro da quebrada, mas era meu

sonho “meu, vamo fazer um trajeto”. Aí a gente inventa a Favela Graffitada, mas a gente nunca

pensou em ter uma Tour, aí a gente vai criando. Você vê que é uma coisa que vai agregando,

que vai tendo essa energia. Aí a gente conheceu o Aluízio, que o Aluízio começou a apresentar

essas ideias para editais né. Mas o primeiro edital, quem ganhou aqui foi o VAI e foi o Bone por

si só. E a gente “ah mano, esses bagulhos aqui não é pra nós não mano”, com uma série de

preconceitos. Quem quebrou esse preconceito com editais foi o Bone. A gente participou de

alguns, mas nenhum edital, a gente crê que salvou. Talvez ele amplificou algumas coisas e nos

fechou outras. Porque quando você escreve um edital, a sua necessidade quando tá escrevendo

naquele momento é uma. Quando é aprovado, sua necessidade mudou. E quando você recebe

o dinheiro, você já nem sabe se quer o edital. E aí é onde que acontece, tipo assim, o edital as

vezes acaba fechando um pouco os grupos artísticos. Ele fomenta até certo ponto, mas como é

dinheiro público, tudo tem que ser justificado antes de ter essa aprovação, então isso não é

flexível. Porque a arte, eu vejo a arte não como uma forma geométrica, sabe? A arte não funciona

como um círculo, ou como um triângulo. Eu vejo que a arte, ela funciona mais como uma forma

abstrata, como nós somos. Porque a evolução nossa é uma evolução abstrata, a gente tá sempre

evoluindo, mas a gente nunca sabe o caminho que a gente vai levar nessa evolução. E aí a gente

vê a importância dessas políticas públicas, a gente acredita nessas políticas públicas, mas eu

acho ainda muito pouco. Eu acho que é coisa que tem que ser estudada muito mais. Eu acho

que o poder público, ele tem que escutar muito mais os grupos dentro das comunidades ou onde

for que tá fazendo a arte... escutar os grupos que realmente fazem a arte acontecer, porque se

deixar solto, só pelas pessoas que não fazem a arte construir esses editais, e tem que ficar do

jeito que eles acham que tem que ser, nunca vai ser uma coisa que vai ser progressiva, vai ser

tipo assim “não, a gente tem que entregar aquela função que a gente escreveu no projeto”. E

isso, a gente se sente totalmente, é... manipulado de alguma forma. Por isso a gente nunca

acreditou no dinheiro que vinha antes do que a vontade de transformar. Aí em 2009, com a

Favela Galeria, a gente viu a necessidade de ter uma galeria de arte dentro de uma comunidade,

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porque a gente via assim “pô mano, tem bar, tem igreja pra caramba”. Nada contra nenhuma das

duas coisas, porque a gente gosta de beber, gosta de uma cerveja, e toda hora a gente tá

pedindo ajuda para os céus né. Mas a gente vê que o ser humano tem outras necessidades. E

a gente viu que há a necessidade da arte além do nosso percurso social que a gente tem aqui

dentro da comunidade, precisava ter um espaço que poderia dialogar sobre a arte de uma forma

de comercializar ela. É onde a gente faz o espaço físico né, que é o espaço físico Favela Galeria.

Então a gente traz as pessoas, as pessoas vêm aqui, troca, tem coisas vendendo sobre arte,

tem muita coisa pra gente evoluir ainda, porque como a gente nunca pensou que a Favela Galeria

ia crescer dessa maneira. O OPNI também é grande pra caramba, então a gente fica maluco

com essas duas coisas. A gente tenta se dividir né. O Nego, em muitos momentos, tá mais na

linha de frente, com a Favela Galeria, ele que cuida das tour. Tem tour... só pra explicar um

pouco, essas tour é uma tour sobre arte que ele faz dentro da galeria, não é apresentando favela

pra gringo, é apresentando a arte urbana para as pessoas que tem interesse de conhecer a arte.

E a ideia de ser aqui dentro da comunidade é pra fomentar essa comunidade, pra titia conseguir

vender uma coxinha, o outro conseguir vender um geladinho, sabe? É poder ter essa troca pra

comunidade, poder ser um espaço turístico, mas de uma forma positiva. Não é rolê pra ver como

é a vida do pobre, isso jamais! Porque aqui, além das pessoas que são fora do país ou pessoas

ricas que as vezes pode vim aqui, aqui vem muita escola estadual, municipal, sabe? Vem

pessoas de ong pra fazer visita... então é uma coisa muito maior, é uma questão de educação

essa tour que a gente faz aqui dentro da galeria, tanto a física, como essa comunidade, onde a

gente pintou várias fachadas das casas. Eu acho que mais ou menos, resumidamente, é uma

ideia da história do OPNI e da Favela Galeria.

Macario (Fernando Macario) – Grupo OPNI

Eu, Fernando Macário, hoje aí com trinta e nove anos, há trinta me inseri dentro do viés artístico,

vamos dizer assim, desde muito moleque, aos nove anos eu comecei a me envolver no universo

do hip-hop, em sua primeira linha de existência né, isso em 1988 em média. Eu participava de

um grupo que chamava Geração Rap, onde eu auxiliava na produção ali né. Eu era uma espécie

de um holding, e com tudo isso eu fui começando a conhecer o universo do hip-hop. Sempre tive

uma vida, desde muito pequeno, uma personalidade um pouco alternativa, de certa forma pela

precocidade, sempre bastante independente nas opiniões né. Com tudo isso eu já tinha esse

envolvimento né. Pra mim era um universo, assim... de encantos né, porque eu tinha acesso a

artistas que eu admirava, nomes como Taíde, MC Jack, DJ 1, então pra mim era um prazer estar

ali, eu não ganhava, não era tanto pelo dinheiro que me vinha ali, que não era muito, mas era o

prazer e o desenvolvimento que ali eu tava adquirindo né. E com tudo isso eu tive acesso a um

vídeo que se chamava “Beat Street”. Foi onde eu conheci o universo do graffiti, da pintura. Achei

aquilo incrível né, já tinha problemas escolares né, porque ao invés de estudar eu ficava fazendo

desenho, ficava pintando, então já tinha a identidade garantida. E a partir daí eu me inseri no

universo também da pichação e... com aquilo ali eu fui, com o tempo, fazendo a minha escolha,

o que eu queria pra mim, que era correr os riscos da pichação ou fazer alternativas, talvez de

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ganho, com o graffiti, porque o graffiti, desde que tive a possibilidade, eu já tinha a intenção

comercial com as pinturas né, fazer pinturas pra ganhar alguma coisa. E com o passar do tempo,

como eu já disse, eu já tinha o conhecimento do Rap, eu comecei a fazer música, desde muito

moleque, aonde eu comecei a me identificar com o canto também né. Desde muito moleque já

fazendo música e, passados alguns anos, em 1997 eu conheci o Mago Abelha, que é membro

do grupo De Menos Crime, nos conhecemos na escola, e eu já era fã, porque durante muitos

anos andei de skate também. Fui skatista, tive chance até de me profissionalizar na área, mas

aquela coisa independente, de moleque de rua, não queria aquela coisa competitiva sabe.

Porque talvez você se limitava em alguns aspectos né, pela carência até mesmo ideológica. E o

Mago Abelha, pra mim era um puta ícone da música, como até hoje eu o considero, e passei a

acompanhar esse grupo. Nesse momento eu tive acesso aos meninos do OPNI né, porque eu já

era um pouco mais velho, eu tinha na faixa de uns quatorze, quinze, dezesseis em média, e eles

eram muito pequenos. O Val, o Toddy e o Cris andavam muito juntos, mais o Val e o Toddy. E

eu já via aqueles meninos com um puta talento. Eu já grafitava também, fazia parte de um grupo

chamado “Sábios Humildes” e eu via o Toddy e o Val como dois meninos de uma expansão

criativa muito forte. A gente começou a trocar ideia, eles de certa forma se referenciavam em

nós e eu, particularmente, neles. E é isso, por um certo momento nos distanciamos, dei

seguimento na minha carreira como Rapper né, cantando com o De Menos Crime, faço parte de

um coletivo que hoje não tem tanta atividade, mas que tem uma relevância na história que é o

“Homens Crânio”, que é a fusão né, De Menos Crime, Consciência Humana, Homem Negro,

Sistema Central Cerebral, eu e unidos formávamos o “Homens Crânio”. E com isso tudo, num

determinado momento, tivemos o conhecimento de que estaria sendo feita a produção de um

filme chamado Carandirú né, onde foram solicitados alguns membros desse coletivo, que no

caso foi o Mago Abelha, o Aplique e o WD pelo Sabotagem. E eu na escola, eu tinha menos foco

nos estudos e mais na arte, arteiro né. Então eu sempre tinha aqueles trejeitos, acabava fazendo

personagem de sala de aula, sabe? E a palavra cinema era uma coisa mística assim, sabe...

aquela coisa que a gente idolatrava. Ser artista de cinema... pô, é um sonho pra muita gente! E

no dia que eles foram convidados pra ir até uma preparação de elenco né, eu não fui convidado,

mas eu falei “eu vou! Eu não quero saber de nada não, nem que for pra mim ir lá e ver vocês

participando, eu quero conhecer esse universo!”. E chagando lá, o preparador que era o Sérgio

Pena, que hoje é preparador particular do Rodrigo Santoro, teve grande participação no Sete

Cabeças, o próprio Carandiru e vário outros filmes, é um nome muito forte. Ele me viu e falou

“pô, aqui ninguém tem cadeira cativa, chega também, vem participar, de repente você pode até

ser um dos selecionados”. Pra mim já foi uma vitória né. E dentro de todo esse processo de

formação de elenco, eu fui o único que participou efetivamente do filme. O Mago Abelho, o Preto

Aplique, os caras acabaram sendo convocados, filmaram, mas a edição os eliminou do filme, né.

E eu acabei tendo um papel muito presente do filme e dentro da equipe de forma geral. Eu

acabei, dentro das minhas experiências de vida, que de certa forma é um pouco ampla, eu acabei

contribuindo com a formação até de outros atores, o próprio Milhem Cortaz, que foi o 02 no Bope,

o próprio Wagner Moura, o próprio Santoro chegou um pouco retraído com aquele universo

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cadeia, muitos atores não-atores né, estavam lá com aquela puta energia, ele ficou um pouco

até retraído e eu cheguei, com a minha liberdade de expressão, cheguei e o interei dentro do

grupo, pra gente ter essa troca, ele com a experiencia dele e a gente com a nossa, de vida. E a

partir daí eu tive um estalo “pô, eu fui o único daqui do coletivo de São Mateus a participar do

filme”, dentro das imagens exibidas no conteúdo. A partir daí eu tive outras oportunidades, fiz

Turma do Gueto, depois fiz Cidade dos Homens, aí fiz Antônia, longa metragem e série, fiz

algumas novelas enfim... tive uma ampla expansão de trabalhos com cinema e televisão. E

dentro desse tempo todo, eu e o Grupo OPNI, nós nos reencontramos, dentro dessas propostas

do Rap, o Graffiti, as intenções sociais dentro da comunidade. E aí, inicialmente a gente começou

a trabalhar em prol de uma ONG que temos aqui no Vila Flávia que é o São Mateus em

Movimento né. Que aí a gente também tento entender até aonde poderíamos contribuir pra essa

transformação, porque o graffiti, mais do que uma ferramenta estética, ele tem uma ferramenta,

eu a considero e acredito que meus companheiros também, uma ferramenta de transformação.

Transformou a minha vida, transformou a vida deles e hoje auxilia na transformação da

sociedade local, aqui do bairro, onde a própria comunidade que frequenta o São Mateus em

Movimento tem acesso às oficinas de graffiti. Então todo esse trajeto né, o Grupo OPNI me

auxiliando e eu auxiliando eles de alguma forma, a gente foi tendo essas experiências né cara.

Então hoje a gente já tem ai dentro do cinema e da televisão, já tenho vinte anos de carreira,

ainda em atividade e agente vem trabalhando ainda dentro dessa proposta da Favela Galeria

hoje, e inicialmente nós tínhamos essa proposta de uma espécie de mapeamento mesmo, pras

pessoas que viriam nos visitar, saber como chegar no São Mateus em Movimento, que era seguir

as ruas grafitadas. Porque a gente é cercado por avenidas principais e talvez essas ruas que

ligam esse ponto à essas avenidas e a ONG, servissem como um mapa. Então a gente pensou

em grafitar essas ruas e falava para as pessoas que vinham visitar “só desce as ruas que estão

grafitadas e vocês vão chegar aqui, né”. Então servia como mapa. Passando um determinado

momento, a gente chegou de uma forma mais ampla, entendendo que poderíamos ter, aqui

dentro da comunidade, uma galeria a céu aberto né. Hoje a gente já tem uma proporção bem

considerável, talvez estando entre as quatro maiores da América Latina, hoje em termos de

quantidade de obras dentro da comunidade. E a gente vem ampliando, tentando se organizar o

máximo possível pra manter essa chama acesa né, esse trabalho ativo com todas as dificuldades

que a gente tem, principalmente no âmbito do capital financeiro, que como o próprio Val citou, a

gente não tem nenhum tipo de respaldo governamental, nenhuma entidade privada nos auxilia.

Os editais, como foi citado, eles contribuem até um certo ponto, nos comprometem em outro

determinado ponto, que foge um pouco da nossa filosofia de trabalho, que é justamente essa

independência, essa busca alternativa de trabalho e de ação social. Então hoje a favela galeria

tem também o espaço físico, que é onde a gente expõe obras de diversos artistas, tanto locais,

nacionais, como internacionais também. E a gente vem trabalhando, essa é uma proposta que a

gente vem se desdobrando aí, como eu disse, dentro das dificuldades, com muita resistência né.

Principalmente porque temos essa relação de família, né cara. A gente acaba passando muito

mais tempo junto do que com até mesmo com os nossos familiares, então acaba tendo várias

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divergências também, vários desencontros ideológicos e tem aquelas discussões, de alguma

forma enérgicas, mas sadias, sempre na busca de um desenvolvimento maior. Então é isso, a

gente tem essa participação. Eu tento trazer um pouco do meu conhecimento de vida aí, e como

ele mesmo falou, eu quando vou atuar eu tento levar a representatividade do meu bairro e dos

meus companheiros e eu, de fato, me sinto muito representado quando os vejo também em ação,

tanto dentro aqui da comunidade, quanto fora, as vezes eu não estando presente mas sabendo

que faço parte de tudo isso né. Então é isso aí, agente com todas essas experiências, ainda

temos muito a aprender, muito a crescer e a gente vai caminhando, de mãos dadas a gente vai

chegando longe.

Edlane Barbosa da Silva – São Mateus em Movimento

Pode se apresentar.

Eu sou a Edlane, tenho 31 anos. Sou coordenadora do São Mateus em Movimento há, mais ou

menos, quatro ou cinco anos. Moro aqui no Vila Flávia tem mais de vinte anos. Eu comecei a

participar do São Mateus em Movimento porque eu queria fazer alguma coisa que me fizesse

bem, sabe? Eu trabalhava numa empresa aqui perto, em Itaquera, só que sabe quando você

trabalha em um lugar em que você não se sente bem? Eu vivia doente, eu vivia estressada, eu

vivia agoniada. Eu tava a ponto de ter um surto. Aí o meu ex companheiro, ele conheceu o Toni,

os meninos, eles começaram a fazer algumas coisas juntos porque ele é fotografo também. Ai o

espaço tava passando por uma reforma... tava saindo daquela coisa de ser só um espaço de

capoeira e graffiti pra expandir para o que é hoje né, com as oficinas, e precisava de uma pessoa

pra ficar aqui, pra abrir, pra fechar, pra organizar, pra receber o pessoal que vinha. Aí ele

começou vindo e eu comecei a vir também, só que eu vinha depois do serviço. Eu saia do serviço,

passava aqui. Aí eu comecei a conhecer o pessoal, comecei a pegar uma intimidade maior com

os moradores, com as crianças. Aí eu resolvi sair do serviço, eu não aguentava mais e achei que

era minha deixa, de fazer alguma coisa que eu quero, dane-se dinheiro, apesar do dinheiro ser

uma coisa necessária né. Não é tudo na vida, não é a prioridade de viver o dinheiro. Aí fui

conversar com meu ex patrão, fui pedir pra ele me mandar embora. Ele me enrolou um ano pra

me mandar embora, porque ele não queria de jeito nenhum que eu saísse da empresa. Quando

eu consegui sair, o meu ex companheiro tava passado por uns problemas de saúde, aí eu falei

pra ele “pode ficar de boa que eu fico no seu lugar”. Aí eu comecei a ficar aqui, só eu. Comecei

a interagir mais com a comunidade. Eu consigo dialogar bastante com eles, tanto com os pais

quanto com as crianças. No começo, quando eu comecei a participar aqui, a gente tinha uma

dificuldade de dialogar com os moradores aqui da região, porque a gente fazia os eventos na

rua, algumas coisas o pessoal não gostava por causa de algumas coisas que aconteciam. E

como eu comecei a ficar aqui muito tempo, eu comecei a perceber essas coisinhas... o que a

gente podia melhorar, o que a gente podia fazer, o que a gente podia falar pro pessoal. Aí eu

comecei a falar com eles “o que que te incomoda? Por que você não gosta disso? Por que você

não deixa seu filho fazer aula lá?” Aí eles começaram a me falar, e eu falei “vamo fazer o

seguinte? Quando vocês tiverem alguma coisa que vocês não estão gostando ou que quiserem

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falar, chega em mim e fala que a gente conversa”. Ai de vez em quando, quando a gente tava

no evento, alguém vinha e me chamava “tem como falar pro fulano não fazer isso perto da minha

casa? Eu não gosto que fumem perto da minha casa. Ah, eu não gosto que fica muvuca no meu

portão”. Aí eu conversava com o pessoal e o pessoal saia. Isso me aproximou muito dos

moradores. Então hoje em dia a gente não tem mais problema. A gente faz evento na rua, tanto

que na festa do dia das crianças, a moça aqui do lado, que era uma das pessoas que a gente

tinha alguns probleminhas, foi a pessoa que abriu a casa dela pra gente preparar lanche, pra

gente guardar os mantimentos, pra gente distribuir lanche, pra gente distribuir bolo, pra gente

distribuir refrigerante, entendeu? Eu acredito que a questão maior de tudo é o diálogo. Senão

tiver, não tem como.

Como vocês se organizam pra fazer as oficinas e encontrar educadores?

Então, a maioria dos educadores, a maioria não né, todos os educadores que nós temos aqui,

exceto dois, eles que procuraram a gente. Eles ficaram sabendo do espaço pelas redes sociais,

ou algum amigo falou alguma coisa e eles procuraram a gente porque tinham o interesse de

ajudar de alguma forma. O Adriano, que é professor de flauta e violão, ele que procurou a gente.

O Vinícius, que dá aula de bateria, o Edgar, que dá aula de contra-baixo e é o professor da escola

de rock, que é uma banda de crianças que foi montada através da aula dele. Então os meninos

começaram a fazer aula de contra-baixo, aí o meu filho, Miguel, queria tocar guitarra. Aí o Edgar

começou a aprender a tocar guitarra pra ensinar ele. Aí ele começou a tocar e o Edgar dava aula

de contra-baixo/guitarra. O filho do Edgar fazia aula com o Vinícius, de bateria, que começou a

vir na aula do pai dele também. Aí ficou os três meninos: o Guilherme, o Miguel e o Juan, e

montaram uma banda. Eles já se apresentaram em dois eventos, que não foram do São Mateus

em Movimento, foram do Estéticas [da Periferia]. Dois anos consecutivos eles já se apresentaram

e se apresentam sempre quando a gente tem evento aqui. Então os educadores vêm pra cá pra

isso, igual eu falei, a gente sente a necessidade de fazer alguma coisa que nos faz bem, fazer

alguma coisa pelo próximo. E vêm oferecer aquilo que eles têm. Então tirando a Risca, que é a

professora de desenho, que veio através do ProAC, que nós convidamos ela pra dar aula aqui

no espaço e o Antonino, que é professor de samba rock. Os outros todos vieram procurar a gente

pra poder dar aula aqui.

Quais são os editais que vocês já ganharam e as atividades que vocês propuseram?

Então, todos os editais que a gente escreve, a gente escreve pra praticamente a mesma coisa,

que é manter a estrutura do espaço. Então a gente já teve um ProAC, acho que são dois... não

lembro direito. E a gente já teve um ponto de cultura né. E o espaço tomou essa cara que ele

tem hoje através do ponto de cultura, que fez reforma, a gente conseguiu comprar instrumentos,

a gente conseguiu arrumar realmente o espaço, pra ficar mais agradável pra eles, pras crianças,

e pras pessoas que vêm... pra gente também né, porque a gente tá aqui o tempo inteiro. E todos

os editais que a gente escreve é basicamente isso, é manter a estrutura que o espaço já tem

hoje. A gente não costuma sair muito disso, sabe? É uma coisinha ou outra. O ProAC que a

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gente tá agora, a única coisa de diferente que a gente fez foram algumas rodas de conversa,

algumas coisas assim, mas sempre mantendo a estrutura que a gente já tem.

O São Mateus em Movimento deu origem ao Clã Destino, que você fez parte...

Isso! O Clã surgiu em 2016, quem começou foi eu e a Rafaela. A gente participava... como eu

falei, quando eu vim participar do São Mateus em Movimento, eu vim porque eu conhecia os

meninos, então era muito homem. Basicamente só homem. Teve evento de eu ser a única

mulher. Eu olhava pro lado e falava “gente o que tá acontecendo? Não tem mulher aqui, só tem

eu no meio de cinquenta, sessenta, setenta homens”. E a gente começou a sentir falta disso.

Como assim a gente tá rodeada de mulheres e essas mulheres não participam, não frequentam,

não fazem nada? Aí a gente escreveu um VAI, a gente passou no VAI. E através desse VAI a

gente começou a fazer varias atividades voltadas para as mulheres aqui da comunidade. Então

a gente conseguiu trazer mulheres que moram aqui a vida inteira, na frente do espaço, mas

nunca tinham entrado aqui dentro. Na primeira atividade que a gente fez, a gente perguntou né...

“quantas de vocês já entraram aqui?”. Uma levantou a mão. Tinham trinta mulheres e apenas

uma tinha entrado aqui dentro. E eu fiquei chocada, o espaço existe há dez anos, vai fazer onze

anos agora em 2019... “como você nunca entrou aqui dentro?” elas diziam “a gente só via

homem, a maioria era homem, a gente não sentia vontade de entrar”. A partir daí elas

começaram a frequentar, tanto que se tiver alguma coisa aqui, quando sai a divulgação sempre

tem mulheres. A gente gravou um documentário também retratando todo o processo que a gente

tava passando, porque a gente nunca tinha escrito um edital, a gente nunca tinha participado de

um coletivo né, no qual a gente tivesse à frente mesmo né. A gente gravou um DVD relatando

isso aí, e no dia do lançamento do documentário, a gente fez aqui, e lotou, ficou lotado de gente

aqui dentro. Tanto é que depois os meninos comentaram “a gente nunca conseguiu isso”. A

gente nunca tinha visto esse espaço tão cheio de mulher. E muitas delas eram mulheres que

nunca tinham participado das oficinas, mas que vieram só pra assistir. Quando acabou o edital,

a gente ficou sem verba pra fazer as coisas. A gente ficou fazendo com parcerias, com algumas

pessoas que procuravam a gente pra fazer atividades, e elas sentiam falta, tanto é que algumas

vezes elas encontravam a gente na rua e cobravam atividades, e a gente falava “calma gente,

tá difícil a situação, a gente não tem grana, mas a gente tá correndo atrás de parcerias pra gente

poder fazer alguma coisa”. E quando tinha a gente avisava e uma vizinha chamava a outra.

Quando começava a atividade, uma amiga ia na janela e já gritava pra outra subir... então foi

muito louco pra gente, foi uma experiência única.

Vocês têm um projeto de vaquinha online. Como funciona?

A gente tem na plataforma do Benfeitoria, que é www.benfeitoria/smem. É como se fosse uma

vaquinha online em que a gente procura parceiros pra poder manter o espaço. Como eu falei, o

edital que a gente tá, que é o ProAC território das artes, vai só até novembro. Nós escrevemos

a Lei de Fomento à Periferia, mas apesar de a gente ter ficado com a nota de quase cem, a gente

não conseguiu entrar, a gente ficou com noventa e poucos e não conseguiu entrar. Muita gente,

eles deram um prazo, a gente ficou louco escrevendo porque a gente nunca tinha escrito. Quem

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escreveu foi eu, a Rafaela e o Jeferson. A gente nunca tinha escrito esse projeto, a gente ficou

se matando escrevendo, escrevendo, escrevendo. Porque a gente começou a escrever três dias

antes do prazo, porque a gente tava pesquisando, lendo edital, um monte de coisa. A gente

mandou o projeto e quando a gente foi verificar, eles tinham dado mais dez dias de prazo. A

gente ficou muito bravo, poderia ter escrito um projeto maravilhoso em quinze dias. A galera que

não tinha mandado ainda, que provavelmente não ia conseguir mandar no prazo, teve muito

mais tempo que a gente pra escrever né. Mas se passou é porque tá fazendo alguma coisa de

legal, é porque tá fazendo algo de bom. Então eu fico feliz por eles, entendeu? E que eles

continuem fazendo um projeto legal, porque se passaram é porque eles têm um projeto foda.

Como é a comunicação do coletivo com a população?

Então, a gente tem os folders, a gente tem uma página do Facebook, tem um Instagram e a

gente tem uma faixa aqui na porta. No folhetinho tem o número do meu celular, do meu

Whatsapp. Então depende muito, tem gente que manda mensagem na pagina perguntando de

atividade e a gente explica. Mas eu recebo muita mensagem no Whatsapp, então eu acho que

os folders funcionem bastante, porque todo mundo que vem aqui a gente dá três, quatro [folders].

A gente já saiu distribuindo também, a gente pede pras crianças levarem e darem para os

amiguinhos, pros parentes. Já aconteceu de eu acordar e ter cinquenta mensagens no Whatsapp

perguntando de oficina, ou de atividades. Igual no dia das crianças, a gente fez a festa do dia

das crianças e a parte da noite ia ter show. Eu acordei um dia antes e tinha mais de noventa

mensagens no Whatsapp perguntando se realmente ia ter. tinha muita gente perguntando. Acho

que é um pouco de tudo sabe? Quem a gente consegue atingir por Facebook, com a pagina do

Facebook, a gente atinge. Quem a gente consegue atingir com o Instagram, a gente atinge. Eu

acho que a gente consegue atingir um pouco de cada público. E eu acho que a gente consegue

muito no boca-a-boca. Então, eu mesma, quando eu saio e alguém fala alguma coisa eu falo “eu

faço parte do São Mateus em Movimento, tem um monte de oficina”. Já conversei na escola do

meu filho, já conversei na escola do meu irmão. Eu tenho um contato com o pessoal da escola

do meu filho, então quando tem uma brechinha eu vou lá e converso com a diretora, peço pra

entregar os folhetinhos nas salas. Depende muito.

I Em respeito a integridade dos discursos, as linguagens foram preservadas pois representam parte da comunicação e identidade dos grupos aqui apresentados.