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Executiva Nacional dos Estudantes de Enfermagem 28 ° ENEEN ENCONTRO NACIONAL DOS ESTUDANTES DE ENFERMAGEM BRASIL: AS IDÉIAS CORRESONDEM AOS FATOS? COLETÂNEA DE TEXTOS PREPARATÓRIOS PARTE I SÃO PAULO – 2005 DE 16 A 23 DE JULHO

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Executiva Nacional dos Estudantes de Enfermagem

28 ° ENEENENCONTRO NACIONAL DOS

ESTUDANTES DE ENFERMAGEM

BRASIL: AS IDÉIAS CORRESONDEM AOS FATOS?

COLETÂNEA DE TEXTOS PREPARATÓRIOSPARTE I

SÃO PAULO – 2005DE 16 A 23 DE JULHO

Os Estatutos do Homem (Ato Institucional Permanente)A Carlos Heitor Cony

Artigo I Fica decretado que agora vale a verdade.

agora vale a vida, e de mãos dadas, marcharemos todos pela vida

verdadeira.

Artigo II

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Fica decretado que todos os dias da semana, inclusive as terças-feiras mais cinzentas, têm direito a converter-se em manhãs de domingo.

Artigo III Fica decretado que, a partir deste instante, haverá girassóis em todas as janelas, que os girassóis terão direito a abrir-se dentro da sombra; e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro, abertas para o verde onde cresce a esperança.

Artigo IV Fica decretado que o homem não precisará nunca mais duvidar do homem. Que o homem confiará no homem como a palmeira confia no vento, como o vento confia no ar, como o ar confia no campo azul do céu. Parágrafo único: O homem, confiará no homem como um menino confia em outro menino. Artigo V Fica decretado que os homens estão livres do jugo da mentira. Nunca mais será preciso usar a couraça do silêncio nem a armadura de palavras. O homem se sentará à mesa com seu olhar limpo porque a verdade passará a ser servida antes da sobremesa.

Artigo VI Fica estabelecida, durante dez séculos, a prática sonhada pelo profeta Isaías, e o lobo e o cordeiro pastarão juntos e a comida de ambos terá o

mesmo gosto de aurora.

Artigo VII Por decreto irrevogável fica estabelecido o reinado permanente da justiça e da claridade, e a alegria será uma bandeira generosa para sempre desfraldada na alma do povo.

Artigo VIII Fica decretado que a maior dor sempre foi e será sempre não poder dar-se amor a quem se ama e saber que é a água que dá à planta o milagre da flor.

Artigo IX Fica permitido que o pão de cada dia tenha no homem o sinal de seu suor. Mas que sobretudo tenha sempre o quente sabor da ternura. Artigo X Fica permitido a qualquer pessoa, qualquer hora da vida, uso do traje branco.

Artigo XI Fica decretado, por definição, que o homem é um animal que ama e que por isso é belo, muito mais belo que a estrela da manhã.

Artigo XII Decreta-se que nada será obrigado nem proibido, tudo será permitido, inclusive brincar com os rinocerontes e caminhar pelas tardes com uma imensa begônia na lapela. Parágrafo único: Só uma coisa fica proibida:

amar sem amor.

Artigo XIII Fica decretado que o dinheiro não poderá nunca mais comprar

o sol das manhãs vindouras. Expulso do grande baú do medo, o dinheiro se transformará em uma espada fraternal para defender o direito de cantar

e a festa do dia que chegou.

Artigo Final. Fica proibido o uso da palavra liberdade, a qual será suprimida dos dicionários e do pântano enganoso das bocas. A partir deste instante a liberdade será algo vivo e transparente como um fogo ou um rio, e a sua morada será sempre o coração do homem.

Santiago do Chile, abril de 1964

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ÍNDICE

Sobre Política e Jardinagem – Rubem Alves Página 04

Conjuntura – ENEENF Página 06

Um Olhar sobre a Conjuntura Política – Stédile Página 08

Conjuntura – César Benjamin e Ricardo Gebrim Página 11

Análise de Conjuntura – Stodz Página 14

Conjuntura - Plinio de Arruda Sampaio e Ivan Valente Página 16

Corrupção, Esquerda e Direita – Emir Sader Página 17

Democracia, Ética e Ação Crítica – Marilena Chauí Página 19

Por que Discutir Gênero? – Alessandra Terrebile Página 29

Educação – ENEENF Página 32

Casa – A Escola – Rubem Alves Página 34

Concepção Bancária da Educação Como Instrumento de Opressão: Seus

pressupostos, Sua Crítica – Paulo Freire Página 36

A Universidade Pública Sob uma Nova Perspectiva – Marilena Chauí Página 47

Notas Preliminres Sobre o Anteprojeto - Roberto Leher Página 57

ANDES Critica Nova Versão, UNE Apóia Com Ressalvas – Jonas Valente Página 59

Extensão - Benedito Barraveira Página 66

Extensão Universitária – Doris Farias Página 69

SOBRE POLÍTICA E JARDINAGEM

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Rubem Alves

De todas as vocações, a política é a mais nobre. Vocação, do latim vocare, quer dizer chamado. Vocação é um chamado interior de amor: chamado de amor por um ‘fazer’. No lugar desse ‘fazer’ o vocacionado quer ‘fazer amor’ com o mundo. Psicologia de amante: faria, mesmo que não ganhasse nada.

‘Política’ vem de polis, cidade. A cidade era, para os gregos, um espaço seguro, ordenado e manso, onde os homens podiam se dedicar à busca da felicidade. O político seria aquele que cuidaria desse espaço. A vocação política, assim, estaria a serviço da felicidade dos moradores da cidade.

Talvez por terem sido nômades no deserto, os hebreus não sonhavam com cidades: sonhavam com jardins. Quem mora no deserto sonha com oases. Deus não criou uma cidade. Ele criou um jardim. Se perguntássemos a um profeta hebreu ‘o que é política?’, ele nos responderia, ‘a arte da jardinagem aplicada às coisas públicas’.

O político por vocação é um apaixonado pelo grande jardim para todos. Seu amor é tão grande que ele abre mão do pequeno jardim que ele poderia plantar para si mesmo. De que vale um pequeno jardim se à sua volta está o deserto? É preciso que o deserto inteiro se transforme em jardim.

Amo a minha vocação, que é escrever. Literatura é uma vocação bela e fraca. O escritor tem amor mas não tem poder. Mas o político tem. Um político por vocação é um poeta forte: ele tem o poder de transformar poemas sobre jardins em jardins de verdade. A vocação política é transformar sonhos em realidade. É uma vocação tão feliz que Platão sugeriu que os políticos não precisam possuir nada: bastar-lhes-ia o grande jardim para todos. Seria indigno que o jardineiro tivesse um espaço privilegiado, melhor e diferente do espaço ocupado por todos. Conheci e conheço muitos políticos por vocação. Sua vida foi e continua a ser um motivo de esperança.

Vocação é diferente de profissão. Na vocação a pessoa encontra a felicidade na própria ação. Na profissão o prazer se encontra não na ação. O prazer está no ganho que dela se deriva. O homem movido pela vocação é um amante. Faz amor com a amada pela alegria de fazer amor. O profissional não ama a mulher. Ele ama o dinheiro que recebe dela. É um gigolô.

Todas as vocações podem ser transformadas em profissões O jardineiro por vocação ama o jardim de todos. O jardineiro por profissão usa o jardim de todos para construir seu jardim privado, ainda que, para que isso aconteça, ao seu redor aumente o deserto e o sofrimento.

Assim é a política. São muitos os políticos profissionais. Posso, então, enunciar minha segunda tese: de todas as profissões, a profissão política é a mais vil. O que explica o desencanto total do povo, em relação à política. Guimarães Rosa, perguntado por Günter Lorenz se ele se considerava político, respondeu: ‘Eu jamais poderia ser político com toda essa charlatanice da realidade... Ao contrário dos ‘legítimos’ políticos, acredito no homem e lhe desejo um futuro. O político pensa apenas em minutos. Sou escritor e penso em eternidades. Eu penso na ressurreição do homem.’ Quem pensa em minutos não tem paciência para plantar árvores. Uma árvore leva muitos anos para crescer. É mais lucrativo cortá-las.

Nosso futuro depende dessa luta entre políticos por vocação e políticos por profissão. O triste é que muitos que sentem o chamado da política não têm coragem de atendê-lo, por medo da vergonha de serem confundidos com gigolôs e de terem de conviver com gigolôs.

Escrevo para vocês, jovens, para seduzi-los à vocação política. Talvez haja jardineiros adormecidos dentro de vocês. A escuta da vocação é difícil, porque ela é perturbada pela gritaria das escolhas esperadas, normais, medicina, engenharia, computação, direito, ciência. Todas elas,

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legítimas, se forem vocação. Mas todas elas afunilantes: vão colocá-los num pequeno canto do jardim, muito distante do lugar onde o destino do jardim é decidido. Não seria muito mais fascinante participar dos destinos do jardim?

Acabamos de celebrar os 500 anos do descobrimento do Brasil. Os descobridores, ao chegar, não encontraram um jardim. Encontraram uma selva. Selva não é jardim. Selvas são cruéis e insensíveis, indiferentes ao sofrimento e à morte. Uma selva é uma parte da natureza ainda não tocada pela mão do homem. Aquela selva poderia ter sido transformada num jardim. Não foi. Os que sobre ela agiram não eram jardineiros. Eram lenhadores e madeireiros. E foi assim que a selva, que poderia ter se tornado jardim para a felicidade de todos, foi sendo transformada em desertos salpicados de luxuriantes jardins privados onde uns poucos encontram vida e prazer.

Há descobrimentos de origens. Mais belos são os descobrimentos de destinos. Talvez, então, se os políticos por vocação se apossarem do jardim, poderemos começar a traçar um novo destino. Então, ao invés de desertos e jardins privados, teremos um grande jardim para todos, obra de homens que tiveram o amor e a paciência de plantar árvores à cuja sombra nunca se assentariam. (Folha de S. Paulo, Tendências e Debates, 19/05/2000.)

CONJUNTURA ENEENF

Nada Mudou?!?O MUNDO HOJEO mundo tem 2,14 bilhões de pessoas excluídas socialmente. Essa população de excluídos

vive em 60 países com os piores índices de exclusão social. Esses países, que concentram 35,5% da população mundial, detêm apenas 11,1% de toda a riqueza produzida no mundo.

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No lado oposto, 871,7 milhões de pessoas, ou seja, só 14,4% da população global, possui 52,1% do PIB (Produto Interno Bruto) mundial, estimado em US$ 45 trilhões. A cada 3,6 segundos, uma pessoa morre de fome. Por dia, são vinte e quatro mil. Quase todas são crianças desnutridas.

E, todavia, o mundo produz mais alimentos de quanto seria necessário para sustentar todos os moradores do planeta. Mesmo assim, há 820 milhões de famintos.

O BRASIL HOJE:Um terço da população brasileira vive em condições miseráveis (com oitenta reais por mês), Produzimos mais de 120 milhões de toneladas de grãos em 2004... E temos mais de 50

milhões de famintos… Temos atualmente 53 milhões de miseráveis,Aumento exponencial da dívida externa,No Brasil, 1% dos proprietários possuem 44% das terras.Enquanto isso... Mais da metade (53%) dos proprietários detém apenas 3% das terras !!!!!Cidades superpovoadas, falta de infra-estrutura, Desenvolvimento Rural Excludente: grandes propriedades: expulsão dos pequenos

proprietários e desemprego dos trabalhadores ruraisPrioridade para os gastos com juros, para os banqueiros em prejuízo dos gastos sociais

(Saúde, Educação, Reforma Agrária...)Cada vez mais aumenta a concentração de renda : 1% da população brasileira é mais rica e detêm a mesma renda da metade de toda a

população! É perceptível: a situação está feia, grotesca, horrorosa...

Por quê?Desde que o mundo é mundo existem 2 grupos: uns que exploram e outros que são

dominados, explorados. O primeiro grupo se mantém nesta posição por diversas estratégias e ideologias que se perpetuam ao longo da história.

Vejamos alguns exemplos históricos:No início das civilizações os que ganhavam as guerras escravizavam os perdedores;No feudalismo os servos trabalhavam nas terras de seus senhores em troca de alimento

produtivo;Na Idade Média e por muito tempo a Igreja seguiu manipulando ideologicamente a

população. No feudalismo esta instituição detinha aproximadamente um terço das terras da Europa.A universidade surgiu para os filhos da elite que antes iam estudar na Europa. Hoje as

Universidades ainda não atendem as necessidades da população;No Brasil a escravidão sobreviveu por aproximadamente quatro séculos deixando uma

marca de preconceito, desigualdade e exclusão social que se perpetua até hoje só que de forma velada.

Com a revolução Industrial uma classe passa a vender sua força de trabalho. Surge o capitalismo!

O capitalismo gera a:*Lei da oferta e da procura. E aí pense individualmente: se você for dono de uma fábrica

não seria melhor ter muitas pessoas procurando emprego e dispostos a trabalhar por qualquer salário em quaisquer condições?

*Desemprego: mais fácil obter mão-de-obra barata, individualista e competitiva. E isso se reflete na vida de todo mundo. Pense você, sua sala, seu curso, sua vida! Competimos diariamente...

*Investimento precário em saúde e educação: é muito mais fácil governar, explorar, manipular... um povo esclarecido e saudável ou uma população miserável e sem acesso à educação. Você pensa direito quando está com fome? Imagina quem passa fome...

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*Individualismo: é muito conveniente para as classes dominantes o fato das pessoas se preocuparem só com suas necessidades individuais e se esquecerem do coletivo. Por que será? “A união faz a força” e a elite não quer forças contrárias as suas ideologias.

Será que é interessante oposição contra as desigualdades?*Desigualdade sócio-econômica gritante. Alguns tem muito dinheiro e poder, a grande

maioria não tem muito e várias pessoas não possuem quase nada, Os desfavorecidos social e economicamente: será que tem pouco porque são burros, preguiçosos e sem iniciativa ou na vida não tiveram a mesma oportunidade dos bem-sucedidos?

*Se você tivesse que sustentar sua família aos 12, 13 anos continuaria estudando? E teria base para chegar a Universidade.

*Corrupção e injustiça: Quanto menos às pessoas tem oportunidades e acesso a informação, mais fácil manter os interesses da elite.

*Conformismo e fatalidade: o mundo está assim, sempre foi assim desde que o mundo é mundo. Nada mudou? Ou será que nada mais deva ser mudado? Com o advento da Revolução Industrial os trabalhadores eram expostos a horas exaustivas de trabalho por um salário de fome. Hoje ainda rola muita injustiça mas algo mudou porque pessoas se mobilizaram e reagiram. E as elites não acharam isto nada interessante... Assim como vários outros exemplos: escravidão, preconceito, ditadura militar, machismo e tantos outros que você convive diariamente.

*Neoliberalismo e uma onda de privatizações sem precedentes. Isso favorece aquele velho ditado conformista e sem perspectiva: “a corda arrebenta sempre do lado mais fraco.”

*Violência: uma conseqüência do capitalismo que pode afetar qualquer um, mas prejudica mais as pessoas que não tem dinheiro para contratar um pesado sistema de segurança e sim rebolar diariamente para sobreviver...

* Banalização: vê-se tantas injustiças, preconceito, fome, mortes absurdas... Que tudo fica comum banal, “é triste mas acontece”. Se protestássemos e reivindicássemos mais certas coisas não aconteceriam tanto. Ex.: você está satisfeito como o valor da passagem dos ônibus? Todos reclamam que o transporte é caro, o buzão demora muito, anda lotado... Mas quantos se mobilizam? Tanta matéria, professores que estamos insatisfeitos, mas só criticamos.

Resumindo: os milionários nunca lucraram tanto! E nunca se teve tantos miseráveis em meio a tanta riqueza mal distribuída...

Poderíamos ficar aqui falando de tantas outras coisas que rolam nesse mundo, nesse Brasil, no nosso curso, aos nossos olhos. Muitos se indignam com essa realidade e a lógica perversa de sistema atual. Mas é necessário algo mais! Precisamos de reação de organização coletiva para mudarmos o que tanto criticamos com compreensão do coletivo e das singularidades. Só assim construiremos um caminho efetivo e participativo de mudança.

UM OLHAR SOBRE A CONJUNTURA POLÍTICAPor João Pedro Stédile

Cenário Internacional e a América LatinaA atual crise brasileira tem um pano de fundo: o recrudescimento da política dos Estados Unidos para a América Latina. Alertado por seus aliados na região (as burguesias locais e seus representantes, como Fernando Henrique Cardoso), o governo de George W. Bush, agora em seu segundo mandato, está preocupado com a instabilidade e as resistências de massa, no continente, que em diversos paises adquirem caráter de ofensiva e levaram a instabilidade institucional.Um exemplo disso é a posição que os Estados Unidos estão tomando ao proteger o agente da CIA Luis Posada Carriles, condenado à prisão por terrorismo contra Cuba, Chile e Venezuela. Ligado à máfia anticastrista de Miami, Carriles é considerado um dos principais terroristas do continente.

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Esteve envolvido em atentados, como o assassinato do chanceler chileno Orlando Letelier em Washington (1973) e a derrubada de uma aeronave da Cubana Aviação (1976), deixando 73 mortos. Outro indicativo desse endurecimento dos Estados Unidos é a postura agressiva da secretária de Estado, Condoleezza Rice, contra Cuba e Venezuela. Rice acusou o presidente Hugo Chávez de estar por trás da crise na Bolívia, uma hipótese que nem a própria direita boliviana acredita.

Crise de modeloO capital estadunidense está tentando manter a estabilidade política para seguir controlando o petróleo, o gás, os recursos naturais da biodiversidade, as sementes transgênicas. E tentar também impor o livre comércio por meio tratados bilaterais ou regionais - como o negociado com a América Central (Cafta) - e assegurar a liberdade total de circulação do capital financeiro no continente. Para isso, precisa de estabilidade, de governos aliados. Submissos.Os quinze anos de neoliberalismo e de espoliação total da riqueza do continente latino-americano produziram uma dominação total do capital internacional que bloqueou alternativas de modelos econômicos, mesmo dentro do sistema capitalista. Como resultado, há uma grave crise de modelo econômico. Há estudos que revelam que, nesse período, nosso continente enviou um trilhão de dólares em remessas para os Estados Unidos e para a Europa.Essa crise de modelo se transforma em crise política permanente. Hoje, estão se esgotando as formas tradicionais de dominação e manipulação institucional (eleitoral) do povo. A burguesia não tem tido o mesmo sucesso para apaziguar ânimos internos por meio das manobras dos partidos e das eleições. As sucessivas quedas de presidentes, sob forte pressão popular, em alguns países como Equador e Bolívia demonstram que a simples troca de nomes não constitui mais saídas alternativas.Já as tradicionais "saídas militares", de golpes e repressão, utilizadas pelas burguesias e pelo império no passado, agora, não conseguem se apresentar como alternativas possíveis. Isso porque a verdadeira saída estaria na mudança de modelo econômico.Certamente, no Brasil, o capital internacional de origem estadunidense e o governo Bush aumentaram sua interlocução com aliados (como tucanos, PFL , sócios nas empresas, gerentes de transnacionais, etc.). Seu objetivo é colocar limites claros na política do governo Lula, em especial no tocante à política externa e em relação à Área de Livre Comércio das Américas (Alca). É só lembrar das cobranças públicas que Rice fez ao governo brasileiro para assinar esse acordo. Sabe-se também dos vínculos permanentes que há dos serviços de inteligência que operam no Brasil, com setores ou ex-agentes da Agência Brasileira de Inteligência (Abin, ex-SNI), Polícia Federal, e os serviços do império (CIA-FBI). E como atuam sempre, com operações extra-estado, extragovernos.

A situação política do Brasil – Os antecedentesO povo votou em Lula para mudar a política econômica. No entanto, as alianças eleitorais e os compromissos da Carta ao Povo Brasileiro, em 22 de julho de 2002, fizeram com que tivéssemos um ministério de composição com os interesses do capital e a manutenção de uma política econômica claramente neoliberal. Política essa que está baseada em três pilares: altas taxas de juros, garantia do superávit primário e estímulo permanente às exportações realizada (em sua maioria pelas corporações transnacionais).O governo priorizou suas articulações, para buscar a governabilidade e estabilidade, no apoio da imprensa burguesa e nas alianças com os partidos da

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direita. Esqueceu-se de construir uma sólida base de apoio popular, a partir de medidas concretas de mudanças sociais.Ao privilegiar as negociações de cúpula, se afastou dos movimentos sociais de suas decisões. Tentou agradar o mercado financeiro, a mídia, mas esses têm a sua classe: tucano por tucano, preferem o original.Refém deste tipo de pratica política, o governo acabou perdendo, cada vez mais, apoio das forças progressistas e dos setores populares organizados. Internamente, foi perdendo coesão e unidade. Como o governo não tem um projeto de desenvolvimento nacional, isso impede que os ministros tenham uma política unitária, rumo a um mesmo objetivo.

Os objetivos da classe dominante nesse momentoO que quer a classe dominante brasileira em "criar" uma crise política agora,  em torno do tema da corrupção? Primeiro, querem inviabilizar um segundo mandato de Lula. Pretendem derrotá-lo agora, antes que consolide sua base política. (E aqui entram as sugestões do império para que seus aliados locais recuperem o controle absoluto do poder político). Não por acaso, a direita mais afoita e insensata chegou a propor impeachment de Lula ou defender em jornais José Alencar como presidente.Outro objetivo é fazer um novo pacto com o Lula. As classes dominantes somente aceitariam sua reeleição com um novo acordo: mais políticas para a direita e sem alterações na política econômica. A idéia é garantir que o governo Lula complete o ciclo de implementação de todas as mudanças neoliberais, mantendo o povo sob controle, e fazendo novas privatizações (não à toa, são ventiladas propostas de se privatizar Os Correios, como forma de evitar a corrupção). Além disso, a crise serve para a elite impor uma derrota política e ideologicamente à toda esquerda brasileira. Querem criar condições para a criminalização dos movimentos sociais, evitando um processo de reascensão do movimento de massas, como vem ocorrendo em países vizinhos.

Reflexões para a esquerda socialDiante desse quadro, as forças sociais estão diante da necessidade de ter uma tática que decifre o enigma colocado: nem ser conivente com atos de corrupção nem se somar às iniciativas da direita para isolar o governo. E a dificuldade em resolver esse enigma, hoje, é que as forças sociais não conseguem mobilizar o povo, pois estamos vivendo um contexto de descenso do movimento de massas, de apatia das massas.Diante desse quadro é importante que as forças sociais se aglutinem, sobre a base de uma mesma política, como:1 - Exigir apuração total até as últimas conseqüências de todas as denúncias de corrupção. Exigir investigação policial, nos casos respectivos, e parlamentar, quando envolve congressistas. Mas exigir que essas investigações atinjam também o período do governo Fernando Henrique Cardoso, em que não se investigou as compras de voto para emenda da reeleição, dos processos de privatização, da instalação do Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam); etc.2 - Denunciar de que a corrupção é o método clássico das elites governarem. Sempre praticam corrupção para dividir o botim do estado, mesmo para se eleger. As doações fantásticas das empresas (os "caixas dois" de campanha) são uma forma muito pior de corrupção. Garantir que o estado repasse elevadas somas ao sistema financeiro é uma forma de apropriação legal, mas ilegítima de recursos públicos.3 - Denunciar que os verdadeiros problemas do povo estão relacionados com a atual política econômica, neoliberal. E, portanto, é hora de aproveitar essa crise de alianças do governo para que o governo crie coragem e mude a política econômica, encaminhando mudanças no modelo

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neoliberal; e consiga então recursos necessários para implementar soluções para os problemas do povo, de terra, trabalho, educação, moradia.4 - Exigir que, no bojo dessa crise, a sociedade discuta a necessidade da reforma política. O sistema atual, de representação partidária, eleitoral e parlamentar, está falido. Precisamos de novas formas de democracia direta, de representação popular, de financiamento público e único de campanhas.  E aprovação do direito do povo de convocar plebiscitos sobre temas relevantes da sociedade, conforme projeto já em andamento de iniciativa da OAB-CNBB e apoiado pelos movimentos sociais da CMS.5 - Debater com a sociedade a necessidade de um novo projeto de desenvolvimento nacional, que reoriente a economia para resolver os problemas do povo, de trabalho, terra, educação, saúde e moradia;6 - Levar esse debate para a população utilizando todos os meios possíveis: programas de radio, televisão, jornais e organizar atos políticos para debater essas questões; e exigir as mudanças necessárias.

CONJUNTURA -Revista Sem Terra Ano VII/nº 30Por César Benjamin e Ricardo Gebrim

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Se algo unificou toda a militância da esquerda brasileira é o fato que, ao longo dos últimos 20 anos, em algum momento de nossa vida, todos ajudamos a construir a vitória de Lula. Eis porque, exatamente a conquista desta metasíntese, materializa o esgotamento de todo um ciclo político.

Os principais esforços e acúmulos da esquerda brasileira foram canalizados para a conquista de espaços eleitorais. Essa centralidade tática marcou profundamente a cultura política da esquerda brasileira. Nenhum setor do movimento popular ficou imune aos efeitos desta metasíntese.

Daí porque a frustração com a vitória de Lula não pode ser minimizada. Seu impacto atinge profundamente os setores populares mais conscientes, alimentando uma desconfiança que fecha as portas para novos intentos nos mesmos moldes.

Mas o equívoco principal dessa centralidade tática foi a de tornar toda uma geração desarmada ideologicamente diante da democracia burguesa. A concepção da esquerda he-gemônica disseminou a visão do estado brasileiro como uma espécie de entidade neutra

Bastaria uma vitória eleitoral para que o estado passasse a servir aos trabalhadores. Tal concepção, arraigada profundamente na militância, tornou natural e inquestionável que qualquer decisão política sempre se oriente pela conquista eleitoral do governo. Para essa cultura política, o trabalho de base, o acúmulo de forças, as ações de propaganda e os enfrentamentos de massa são apenas pontos de apoio para fortalecer um projeto eleitoral.

O rápido desmantelamento dos estados nacionais com as aceleradas privatizações, tanto nas áreas estratégicas da economia, quanto na prestação de serviços públicos, aprofundou a dependência econômica externa. A dependência foi cristalizada por instrumentos jurídicos que blindaram tal situação. O Estado esvaziado não tem mais capacidade de gerar empregos e de interferir nos rumos econômicos. Qualquer decisão de um estado nacional somente subsiste quando avalizada pelo sistema financeiro nacional e internacional. Esse quadro contribuiu para determinar que o horizonte da política enquanto "arte do possível" se rebaixasse ainda mais.

Por outro lado, a arquitetura institucional brasileira e a configuração estrutural do nosso capitalismo, no período atual, deixam espaços exíguos para políticas redistributivas minimamente eficazes, feitas de cima para baixo. Pois o Estado tornou-se refém da acumulação financeira, e as instituições políticas - embora conservando características formais de uma democracia - perderam a conexão com as demandas por uma nação mais digna e uma vida melhor. Temos um Estado forte para favorecer e corromper, porém fraco para liderar e mudar.

"A despolitização cresce a cada eleição..."Neste contexto, as vitórias eleitorais pouco acumularam em relação ao avanço do nível de

consciência e organização popular. Entregues a marqueteiros, as campanhas eleitorais trocaram idéias por espertezas. Política também se tornou mercado. A despolitização cresce a cada eleição, que agora quase não mobiliza militantes-cidadãos, cada vez mais dispensáveis, do ponto de vista dos aparatos de profissionais. Problemas estruturais da sociedade tornam-se problemas administrativos a serem resolvidos pelos políticos nos marcos institucionais existentes, cabendo ao povo brasileiro o papel de agente passivo. As relações de poder que moldam por dentro a sociedade ficam intocadas, como se fossem imutáveis, exatamente como as elites desejam. No máximo, levanta-se a bandeira da ética.

O que era um meio tornou-se um fim em si mesmo. Assim enquadradas, as eleições têm sido um momento privilegiado para difundir maciçamente a ideologia conservadora. Em nada contribuem para desenvolver o sentido crítico do povo em relação ao sistema e fortalecer sua capacidade de mobilização, ou seja, sua vontade de tomar para si a constru-ção do próprio destino. Se não há grandes alternativas em jogo, então não há lugar para engajamentos coletivos movidos a entusiasmo e esperança.

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O povo sabe que esse jogo político não lhe é claro nem acessível e não transformará a existência real de ninguém, marcada pelo cotidiano de luta pela sobrevivência, esmagamento e alienação. O resultado é um amplo descrédito na atividade política. Todos parecem mais ou menos iguais.

Grande parte da esquerda brasileira tem sido cúmplice dessa situação. O político tradicional - seja conservador, seja progressista; esteja ou não no exercício de mandatos - tem de curvar-se ao que a sociedade é, ou parece ser. O revolucionário pensa sempre no que ela não é, nem parece ser, mas pode vir a ser.

O político tradicional é escravo da "opinião pública", uma entidade difusa que expressa o que se publica na imprensa, o que dizem as elites, o que pensa a classe média ilustrada, muitas vezes progressista. O revolucionário tenta identificar os sentimentos profundos do povo - sentimentos que raramente ganham a forma de uma "opinião" articulada, respeitável e bem-pensante, ou seja, uma "opinião pública" -, para descobrir neles os ele-mentos, mesmo confusos, que podem impulsionar uma reorganização da vida social.

O político tradicional tende a considerar-se importante, quando, na verdade, nada ou quase nada fez, a não ser alugar uma vaga para participar do espetáculo. O revolucionário faz muito, mas sempre considera insuficiente o que fez.

O político pensa no curto prazo; atua através da imprensa; busca o máximo de visibilidade individual; pontua sua trajetória em torno de mandatos e cargos; constrói relações verticais; não precisa viver o que diz; vê a sociedade a partir da mídia e do Estado; valoriza "propostas práticas", ou seja, soluções administrativas para os problemas. Avesso a derro-tas, cede de antemão; por isso, mesmo quando vence, quase sempre seu projeto original é perdedor".

"O Movimento Consulta Popular surge a partir de 1997 para ..."O revolucionário aceita remar contra a correnteza, se necessário. É um agente da mudança.

Busca despertar vontades adormecidas, mas latentes. Fiel a princípios corre o risco de derrotas. Mesmo quando perde, ajuda a acumular forças para um projeto maior.

O Movimento Consulta Popular surge a partir de 1997 para desestabilizar, confrontar idéias, rever práticas, chacoalhar a rotina. Rompendo com a lógica da centralidade na luta eleitoral, gera profundos incômodos, pois sua prática, cobra responsabilidades, exige esforço, criatividade, paciência e ousadia. Os militantes da Consulta, na sua maioria já tendo passado pela militância sindical e partidária, sabem que não estão preparados ainda para uma tarefa de tal envergadura, pois têm que enfrentar três crises fundamentais que se instalaram no seio da esquerda nos últimos anos: a crise de valores, de prática e de pensamento.

Ou seja, para enfrentar as elites e suas políticas de desconstrução da nação, a Consulta Popular tem que enfrentar antes, ou ao mesmo tempo, os problemas internos à própria esquerda, resgatando a idéia de projeto coletivo, coerência, humildade, lealdade e a capacidade de pensamento abrangente, de longo prazo, estratégico que ultrapasse os calendários eleitorais.

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Nos últimos anos, trabalhando com enorme restrição de recursos, o Movimento Consulta Popular foi um dos poucos espaços, na esquerda brasileira seriamente dedicados a cumprir três tarefas que consideramos essenciais: elaborar política e teoricamente uma alternativa para o Brasil, formar e articular lutadores do povo, e apoiar os movimentos sociais. Obtivemos alguns êxitos: milhares de companheiros freqüentaram cursos de boa qualidade, de diferentes níveis, alguns com meses, outros com um ano, outros ainda com dois anos de duração; nossa série de cartilhas destinada ao trabalho de base imprimiu mais de 200 mil exemplares; reproduzimos cerca de 30 mil cópias de 25 fitas de vídeos especialmente produzidos como instrumentos de formação; o livro Opção Brasileira atingiu 20 mil exemplares vendidos e se tornou referência no debate em todo o País, ultrapassando amplamente os limites da esquerda. A caminhada que realizamos entre Rio de Janeiro e Brasília, com 1.800 km, e a grande assembléia que se seguiu, com 5 mil lutadores, foram marcos na nossa militância. Tivemos presença importante, embora o mais das vezes exercida com discrição, nos principais episódios de luta do povo brasileiro nos últimos anos.

"... a esquerda brasileira necessita de um instrumento político novo..."Porém, o atual momento exige uma resposta com outra qualidade organizativa. Tornou-se

evidente que a esquerda brasileira necessita de um instrumento político novo, capaz de recuperar os aspectos positivos da história anterior, mas de propor outro caminho, com uma interpretação renovada de nossa realidade. Um instrumento político que seja radical, pois a crise brasileira exige soluções radicais, sem ser sectário, de modo a conter dentro de si a diversidade, a generosidade, a espiritualidade e a alegria do povo, condição para ser parte dele.

Esta foi à resolução construída na II Assembléia Nacional dos Lutadores do Povo, em Goiânia, entre os dias 3 e 6 de março. Assumimos o compromisso de dar um salto de qualidade na organização da Consulta Popular. Passaremos a ter uma vida orgânica muito mais regular, com princípios, regras e disciplina bem-definidos, no interior de uma estrutura democrática e flexível. Buscaremos melhores métodos de trabalho, a serem adaptados em cada local pelos núcleos militantes. Estabeleceremos metas. Concentraremos nossos esforços em tarefas multiplicadoras, com destaque para a formação de novos lutadores, o aprofundamento de nossa compreensão teórica e política da crise brasileira, o desenvolvi-mento de múltiplas formas de comunicação e diálogo com o povo, e o fortalecimento dos movimentos sociais. Prepararemos milhares de militantes para atuarem decisivamente, junto do povo, quando este decidir tomar em mãos o seu próprio destino.

Na "Carta de Goiânia", aprovada durante a II Assembléia Nacional, convidamos lutadores e lutadoras a realizar o balanço crítico dos erros cometidos e, principalmente, a construir uma organização política que, sempre atuando junto do povo, possa disseminar amplamente uma nova interpretação do Brasil e propor ao país um programa de transformações estruturais. Isso é mais do que somar reivindicações de cada movimento social. Por isso, a Consulta não substitui nem concorre com as diversas formas de coordenação e de articulação de movimentos já existentes.

"Reconhecemos e valorizamos o legado deixado pelos lutadores do passado. Porém, tarefas novas demandam soluções novas, a serem construídas no caminho. A Consulta não parte de uma fórmula pronta. A organização se constrói na ação pensada. A base inicial dessa organização política, que começa a constituir-se, é formada, principalmente, pelos milhares de militantes dos movimentos sociais, que são um importante patrimônio acumulado pela esquerda brasileira e que serão incentivados a assumir como seu objeto de reflexão e de prática, de forma ainda mais plena, o Projeto Popular para o Brasil. Essa militância social será agora chamada a organizar-se politicamente em torno da causa comum da realização da Revolução Brasileira”.

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ANÁLISE DE CONJUNTURAStodz

O governo do PT, entre o inferno e o céu. E nós com isso? Diante do escândalo da compra de deputados pelo governo do PT e da instauração da CPI dos Correios pela oposição lembrei-me de um velho amigo que se disse estar decepcionado por Lula não exercer um papel pedagógico na sociedade brasileira. Sua expectativa baseava-se na trajetória de Lula como sindicalista e candidato a presidência da república desde 1989. Talvez pensasse no discurso de posse como presidente quando Lula declarou que vinha para mudar, advertindo porém o povo a ter paciência pois as mudanças seriam lentas. Mas a decepção do amigo é injustificável. Pois dada a natureza dos compromissos de governo, Lula e a equipe ministerial impediram-se de exercer este papel. Quando, em 2003, muitas vozes se ergueram para exigir do governo um ?plano B? que viesse a expressar a mudança na política econômica vigente sob o governo de Fernando Henrique Cardoso, um economista fez questão de desfazer as ilusões ao declarar que em 1998 ?teve início um grande e prolongado esforço de ajuste fiscal, que culminaria no início do atual governo, com o estabelecimento de uma meta de superávit primário de 4,25% do PIB? (Antonio Barros de Castro , O plano B começou em 1998. Instituto de Economia da UFRJ ? Infomacro - www.ie.ufrj.br, outubro de 2003). A primeira reforma, a da previdência, como sabemos, estava nesta perspectiva. Ficou um estreito caminho que o governo poderia usar graças ao capital político eleitoral obtido nas urnas (60% dos votos) em 2002. Mas não quis trilhar e ampliar. Do ponto de vista político, o Partido dos Trabalhadores, sob a batuta de José Genoíno, articulado ao ministro José Dirceu, encarregou-se de garantir a assim chamada governabilidade, isto é, o apoio para aprovar as decisões do governo no Senado e na Câmara dos Deputados. Para traduzir em miúdos um grande imbróglio, um partido com uma tradição de esquerda e um viés moralizante (PT) começou a compor-se com os partidos ?da banda podre? da política brasileira, isto é, o PMDB e o PTB que historicamente se definem como ?nacionalistas?, definição cujo sentido político mais preciso sempre foi o defender a intervenção do estado para assim auferir vantagens políticas e pessoais. Com isto, o próprio PT queimou atrás de si a ponte para retomar um papel autônomo em relação ao governo e à governabilidade. Também ele não pode desempenhar um papel pedagógico na sociedade brasileira. Embrenhou-se no sistema político que, desde o fim do regime militar, funciona na base da corrupção partidária. Ironizando a situação do governo Lula, o cronista José Veríssimo escreve na crônica ?Haja tapete? que talvez o partido se pergunte porque a corrupção no governo anterior funcionou para reeleger FHC e não funciona com ele, Lula. O ?patriciado? não quer Lula (e o PT), mesmo pintado de branco e apesar de não ser um governo de esquerda (O Globo, 9/06/2004). Uma nova pedagogia política tem de considerar a crônica dos fatos políticos sob uma perspectiva crítica. Que não precisa ser desinteressante do ponto de vista literário. Assim, proponho aqui a leitura da conjuntura política baseada no poema A Divina Comédia, de Dante Alighieri. Para quem achar mais interessante o cinema, vale a interpretação dantesca feita por Jean-Luc Godard no filme Notre Musique (Nossa Música, França, 2004). Assim, a corrupção característica do nosso sistema político-eleitoral ? denunciada por articulistas insuspeitos de posições de esquerda, como Tereza Cruvinel e Merval Pereira, de O Globo ? pode ser vista como a repetição interminável do mesmo, ou seja, a esfera do inferno. Vale destacar o comentário ?O elo essencial?, no qual Tereza Cruvinel (?Lula acorda e a base se enrola?, O Globo, 8/6/2005) sonha com a renovação da política a partir de uma ?força exógena? (aí a articulista descobriu a importância dos movimentos sociais!) , capaz de por um fim à infidelidade partidária, ao financiamento privado de campanhas, ao voto uninominal ? e, acrescentaríamos ? à troca de voto por cargos e suborno, ao saque sistemático dos recursos públicos, inclusive instituído legalmente nas emendas parlamentares. O inferno é

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o mundo do ?atraso? (palavras de Fernando Henrique Cardoso), onde reinam absolutamente soberanas as forças clientelistas e fisiológicas. Para sair do inferno e chegar ao paraíso, Lula e o PT devem (Merval Pereira, ?Lula vai à luta?, O Globo, 8/6/2005) punir os culpados da corrupção e o PT deve arrepender-se de sua ambição de governar sem a oposição. Mas apenas Lula vai adentrar na sacrossanta esfera do paraíso, isto é, porque então ele será o guardião da democracia. O paraíso é a esfera onde, tal como no inferno, não tem vigência o tempo e a história. Contudo, diferentemente do inferno, no paraíso não há lugar para interesses em interminável conflito. O paraíso da democracia é a esfera das idéias puras, incorruptíveis, da essência platônica das coisas. Como guardião da democracia, diz Merval Pereira, Lula está ?acima dos partidos e da ideologia?. É a abstração ? a separação completa ? das idéias em relação às forças clientelistas e fisiológicas por meio das quais os interesses de classe se compõem e direcionam, na realidade corruptível, a máquina do estado. Os nosso articulistas são os modernos oráculos, seguidores da tradição de Carlos Castelo Branco que privava dos segredos de estado nas ante-salas da ditadura militar e as soprava para a sociedade na sua coluna diária no Jornal do Brasil. A imprensa, tal como o rádio e a televisão, sob o controle de meia dúzia de grandes proprietários, ajuda a compor a visão da única realidade possível, isto é, da democracia como fim em si, abstração do inferno no qual se vive cotidianamente na sociedade organizada com base no sistema capitalista. Qual é a intenção? Trata-se de impedir a busca de outro caminho, algo desejado por milhares de militantes e por muitos movimentos populares em nosso país ao aspirar uma sociedade igualitária e participativa. Então o que se quer fazer ouvir exclusivamente é a voz ?arrazoada? da oposição ao governo (mas não ao ?sistema?), ou seja, dos Aécio Neves, Borhauusen, Fernando Henrique Cardoso, Alckin e o restante da turma do PSDB e PFL, a exigir de Lula a preservação da democracia pela entrega dos cargos públicos aos ?técnicos? e o encaminhamento das reformas tributária e política. Em resumo, o governo Lula e o PT devem transferir para o Congresso Nacional a capacidade de governar, quer dizer, de dirigir a sociedade (sem consultá-la). É a única rota admissível para escapar do inferno e chegar ao paraíso. A estas alturas, vou perguntar ao meu velho companheiro, se ele não acha estarmos vivenciando, nesta conjuntura, uma verdadeira escola de política. Existe melhor pedagogia sobre como funciona uma democracia burguesa do que esta que o conjunto das forças políticas e dos meios de comunicação estão a nos oferecer? E nós, cidadãos, militantes, ativistas e intelectuais comprometidos com a luta dos trabalhadores contra a exploração e a opressão, o que temos a ver com isto tudo? Qual é a nossa posição? Nós temos o potencial de ser a verdadeira oposição ? aquela oposta ao sistema capitalista, às forças do mercado e à máquina de estado burguesa. Por isto nos encontramos no purgatório, a esfera na qual o tempo existe mas transcorre lentamente. Ali se encontram os que refletem sobre o passado e esperam a redenção da alternativa na qual acreditam a partir do amadurecimento das forças sociais antagônicas ao sistema capitalista. Uma possibilidade inscrita na própria trajetória do PT, como nos supõe Plínio de Arruda Sampaio em entrevista concedida à revista Caros Amigos, de maio de 2005 (?O sonho de um resgate?). Nem todos estão de acordo com esta posição de Plínio, a exemplo da Consulta Popular que propõe aos ativistas políticos da esquerda socialista dirigir-se ao povo nas escolas, fábricas, fazendas, ruas, discutindo seus problemas e buscando soluções por meio de assembléias populares. Ambas expressam tentativas de gestação do futuro.

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ANÁLISE DE CONJUNTURAPPLÍNIOLÍNIO DEDE A ARRUDARRUDA S SAMPAIOAMPAIO EE I IVANVAN V VALENTEALENTE

“Hoje é patente que as divergências internas quanto aos rumos do Partido dos Trabalhadores chegaram a um ponto extremo. Agravadas pela crise aguda envolvendo a governabilidade e questões éticas, essas divergências estão impedindo a unidade da ação partidária. Elas têm origem na ilegitimidade das posições assumidas pela maioria da direção do partido ao desrespeitar as resoluções do Encontro de Olinda, em 2001, e, mais que isso, ao desrespeitar toda a história do PT. Na verdade, as divergências agravaram-se muito após a posse de Lula na Presidência da República, em razão, especialmente, das políticas que ele adotou no plano econômico e no plano das alianças políticas. Logo no inicio do governo, um grupo de amigos do presidente, perplexos com os rumos da administração, enviaram-lhe uma carta solicitando mudanças de rumo. Não foram sequer recebidos. Um pouco mais adiante, 300 economistas do partido lançaram um manifesto com críticas severas à condução da economia e propostas de mudança. Igualmente não foram recebidos. Não demoraram as demissões de auxiliares muito próximos do presidente, sempre muito discretas, mas nem por isso menos significativas. Finalmente, vieram as "insubordinações" e defecções de deputados, senadores e militantes -algo inédito em uma bancada caracterizada até então pela estrita disciplina. Note-se que essas divergências são todas políticas e que precedem, de muito, os problemas que surgiram agora com as denúncias de corrupção. As vacilações da direção partidária no enfrentamento dessas denúncias -ora recomendando aos parlamentares que impedissem a constituição de CPI para apurá-las, ora sugerindo que todos assinassem os pedidos de convocação- são sinais evidentes de perda de controle sobre os acontecimentos. Por isso, estamos propondo, com base no estatuto, a convocação imediata de um Encontro Nacional Extraordinário, a fim de revisar a posição do partido em relação às duas políticas anteriormente mencionadas: a política econômica e a política de alianças. Não cabe na cabeça dos petistas que, após dois anos e meio de governo, o modelo econômico de FHC não tenha sido alterado na essência e, em alguns casos, tenha sido mesmo agravado, como no caso do superávit primário, que economiza R$ 44 bilhões em quatro meses para "honrar" contratos com o capital financeiro e tranquilizá-lo, enquanto os contratos com o povo ficam sem recursos para a reforma agrária, a educação, a saúde, o saneamento e a infra-estrutura do país. É inaceitável que se impeça o desenvolvimento do país, a geração de emprego e a distribuição de renda pagando a maior taxa de juros do mundo - para alegria dos rentistas-, enquanto somos campeões em concentração de renda, de terra e de riqueza. Fica difícil, também, explicar uma política de alianças com forças políticas retrógradas, contrárias à mudança social, incrustadas no aparelho do Estado para permanentemente parasitá-lo pelo fisiologismo e pela corrupção. Em nome dessa governabilidade, que dispensa o movimento social organizado e a pressão popular legítima, o governo sofreu inúmeras derrotas no Congresso, inclusive a perda da presidência da Câmara de Deputados. Governabilidade com partidos que não comungam nem irão concordar com as propostas do nosso projeto democrático e popular se afastariam, imediatamente, se assumíssemos, de frente, nosso projeto transformador. Daí a necessidade de rever a política de alianças. Isso requer um esclarecimento preliminar: toda pessoa é inocente até que se prove o contrário, de modo que a proposta de revisão da política de alianças que estamos fazendo não implica a aceitação de que algum membro do PT haja atuado de modo inconveniente. Trata-se de uma objeção política: o regime de governo é presidencialista e a Constituição confere ao presidente da República atribuições suficientes para governar mesmo sem dispor de maioria no Congresso. Ele dispõe do veto, da iniciativa das leis que envolvem gastos e, sobretudo, da faculdade de dirigir-se a qualquer momento à opinião pública. A experiência histórica demonstra que o Congresso jamais deixou de aprovar um projeto que conseguiu obter apoio na opinião pública. Portanto, o presidente Lula, eleito com 53 milhões de votos, tem tudo de que precisa para executar seu programa de governo, sem necessidade de constranger a si próprio e aos seus companheiros de partido com alianças que provocam escândalo em seus eleitores. A demissão do ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, é o reconhecimento da gravidade da hora e da crise da proposta capitaneada pela maioria no PT e no governo. Daí a urgência de decisões coletivas e de mobilização da nossa militância.

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CORRUPÇÃO, ESQUERDA E DIREITACORRUPÇÃO, ESQUERDA E DIREITAPor Emir Sader

A direita afirma que, diante da corrupção, direita e esquerda desapareceriam. A polarização seria entre honestos e corruptos. A luta da esquerda contra a corrupção, ao contrário, não abole direita e esquerda. Quem reduz a luta política à luta contra a corrupção é de direita. Ou a esquerda se livra desse tipo de prática ou contribui à alienação do povo.A direita se deleita em afirmar que, como o PT está envolvido em corrupção, tudo é possível, nada é melhor, tudo é igual. Podem perpetuar suas práticas, porque estariam na natureza da política. Mas principalmente se deleita em afirmar que, diante do supremo crime da corrupção, direita e esquerda desapareceriam. A polarização seria entre honestos e corruptos. Bastaria eliminar os corruptos – ou aqueles pegos em flagrante –, fazer reforma política, tomar algumas medidas contra nomeações dos governos e pronto. O saneamento permitiria que tudo seguisse como antes: os ricos cada vez mais ricos, os pobres cada vez mais abandonados, os poderosos cada vez com mais poder, os humilhados e ofendidos,sem esperança que não a religião. “A vida para os fortes/ para os fracos a morte: e é bom que seja assim” – como diz o personagem de Brecht.Collor roubava porque era cleptomaníaco, porque os filhos das oligarquias nordestinas, criados em Brasília não respeitam os bens alheios. PC Farias fazia o trabalho sujo, porque sempre foi um mafioso. Já a privataria do governo FHC – a maior roubalheira da história brasileira – foi feita toda dentro da lei – para isso se comprou sistematicamente a maioria do Congresso, tudo dentro da lei, contando com a mídia, porque era por uma “boa causa”: a privatização. Parodiando o secretário de Estado dos Estados Unidos: “são corruptos, mas são nossos corruptos”. Afinal, o governo Bush definiu, com Posada CarrilesA, que há “bons e maus terroristas”, os “nossos e os deles”.A direita tenta despolitizar a política, tratando a corrupção como uma tentação da natureza humana. O máximo que se poderia fazer seria limitar os riscos, com leis, polícia, controle da imprensa (o terceiro poder que, como diria o Stanislaw, passou rapidamente para segundo). É o que prega o liberalismo, assim como as teorias foucaultianas, para as quais em toda relação humana há poder, dominação, corrupção de caráter.Para a esquerda, a corrupção significa um crime muito mais grave. Significa apropriação privada de bens públicos. Significa privatização do Estado, desvio de impostos arrecadados da massa da população para mãos privadas. Significa desideologizar a política, estabelecendo-se acordos em base a vantagens materiais. Significa sobretudo desviar recursos que deveriam ser canalizados para afirmar direitos do conjunto da população para vantagens pessoais.É, portanto, para a esquerda, muito mais do que simplesmente um crime pessoal. É um crime político. E quando é praticado pela esquerda, se torna ainda mais indesculpável, porque a iguala à direita, porque favorece a desqualificação da esquerda, porque desvia as atenções dos maiores problemas do país para um problema de corrupção. E porque se trata de políticos identificados com a esquerda apropriando-se de recursos públicos para objetivos privados.Um objetivo central da esquerda é a recuperação da política como atividade emancipatória, de construção da polis, da res publica, da esfera pública, dos bens comuns. O socialismo pode ser definido como a socialização dos bens materiais e espirituais, como a reconstrução da sociedade centrada na esfera pública.

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Essa luta inclui o resgate da militância política, da militância revolucionária, dessa atividade dedicada e desinteressada, de luta pelos ideais da humanidade, dos trabalhadores, da construção de uma sociedade sem classes e sem Estado, sem exploração, nem discriminação, nem opressão, nem alienação. Da militância como atividade ética, não remunerada, de entrega aos valores de luta pela emancipação de todos, pelos interesses dos mais pobres, dos mais humildes, dos humilhados e ofendidos.Do resgate da política e da militância como algo totalmente oposto a essa mercantilização da política, das campanhas eleitorais, dos partidos, da mídia. A luta contra a corrupção é também a luta contra a corrupção dos valores da esquerda, rebaixada a um realismo tão rasteiro que já não têm mais nada de esquerda, de luta pela emancipação. Ao contrário, reproduzem e multiplicam a alienação, a opressão, a exploração.A luta da esquerda contra a corrupção não abole a direita e a esquerda. Ao contrário, recoloca a luta entre direita e esquerda em outro patamar. Quem quer abolir direita e esquerda é de direita. Quem reduz a luta política à luta contra a corrupção é de direita. E quem reproduz a corrupção e a privatização da política não é de esquerda: é de direita. Ou a esquerda se livra desse tipo de prática e desse tipo de gente ou contribui à alienação do povo e acaba por atentar contra os ideais de emancipação – os que deram origem à esquerda e justificam sua existência, assim como os da militância e da prática política revolucionária.

DEMOCRACIA, ÉTICA E AÇÃO CRÍTICAMarilena Chauí

1. Considerações sobre a democracia

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O helenista Moses Finley descreveu o nascimento da política – a “invenção da política”, escreveu ele – como um acontecimento que distinguiu para sempre a Grécia e Roma em face dos grandes impérios antigos. A política foi inventada quando surgiu a figura do poder público, por meio da invenção do direito e da lei (isto é, a instituição dos tribunais) e da criação de instituições públicas de deliberação e decisão (isto é, as assembléias e os senados). Esse surgimento só foi possível porque o poder político foi separado três autoridades tradicionais: a do poder privado ou econômico do chefe de família, a do chefe militar e a do chefe religioso (figuras que, nos impérios antigos estavam unificadas numa chefia única, a do rei ou imperador). A política nasceu, portanto, quando a esfera privada da economia, a esfera da guerra e a esfera do sagrado ou do saber foram separadas e o poder político deixou de identificar-se com o corpo místico do governante como pai, comandante e sacerdote, representante humano de poderes divinos transcendentes.

Roma inventou a república; a Grécia, a democracia. Estamos acostumados a aceitar a definição liberal da democracia como regime da lei e da ordem para a garantia das liberdades individuais. Visto que o pensamento e a prática liberais identificam liberdade e competição, essa definição da democracia significa, em primeiro lugar, que a liberdade se reduz à competição econômica da chamada “livre iniciativa” e à competição política entre partidos que disputam eleições; em segundo, que há uma redução da lei à potência judiciária para limitar o poder político, defendendo a sociedade contra a tirania, pois a lei garante os governos escolhidos pela vontade da maioria; em terceiro, que há uma identificação entre a ordem e a potência dos poderes executivo e judiciário para conter os conflitos sociais, impedindo sua explicitação e desenvolvimento por meio da repressão; e, em quarto lugar, que, embora a democracia apareça justificada como “valor” ou como “bem”, é encarada, de fato, pelo critério da eficácia, medida, no plano legislativo, pela ação dos representantes, entendidos como políticos profissionais, e, no plano do poder executivo, pela atividade de uma elite de técnicos competentes aos quais cabe a direção do Estado.

A democracia é, assim, reduzida a um regime político eficaz, baseado na idéia de cidadania organizada em partidos políticos, e se manifesta no processo eleitoral de escolha dos representantes, na rotatividade dos governantes e nas soluções técnicas para os problemas econômicos e sociais.

Ora, há, na prática democrática e nas idéias democráticas, uma profundidade e uma verdade muito maiores e superiores ao que liberalismo percebe e deixa perceber.Que significam as eleições? Muito mais do que a mera rotatividade de governos ou a alternância no poder, elas simbolizam o essencial da democracia, ou seja, que o poder não se identifica com os ocupantes do governo, não lhes pertence, mas é sempre um lugar vazio que, periodicamente, os cidadãos preenchem com representantes, podendo revogar seus mandatos se não cumprirem o que lhes foi delegado para representar.Que significam as idéias de situação e oposição, maioria e minoria, cujas vontades devem ser respeitadas e garantidas pela lei? Elas vão muito além dessa aparência. Significam que a sociedade não é uma comunidade una e indivisa voltada para o bem comum obtido por consenso, mas, ao contrário, que está internamente dividida e que as divisões são legítimas e devem expressar-se publicamente.

Da mesma maneira, as idéias de igualdade e liberdade como direitos civis dos cidadãos vão muito além de sua regulamentação jurídica formal. Significam que os cidadãos são sujeitos de direitos e que, onde tais direitos não existam nem estejam garantidos, tem-se o direito de lutar

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por eles e exigi-los. A criação e conservação de direitos, exigidos por contra-poderes sociais, é o cerne da democracia.

O que é um direito? Um direito difere de uma necessidade ou carência e de um interesse. De fato, uma necessidade ou carência é algo particular e específico. Alguém pode ter necessidade de água, outro, de comida. Um grupo social pode ter carência de transportes, outro, de hospitais. Há tantas necessidades quanto indivíduos, tantas carências quanto grupos sociais.Um interesse também é algo particular e específico, dependendo do grupo ou da classe social. Necessidades ou carências, assim como interesses tendem a ser conflitantes porque exprimem as especificidades de diferentes grupos e classes sociais. Um direito, porém, ao contrário de necessidades, carências e interesses, não é particular e específico, mas geral e universal, válido para todos os indivíduos, grupos e classes sociais. Em outras palavras, se tomarmos as diferentes carências e os diferentes interesses veremos que sob eles estão pressupostos direitos.

Dizemos, então, que uma sociedade — e não um simples regime de governo — é democrática quando, além de eleições, partidos políticos, divisão dos três poderes da república, respeito à vontade da maioria e das minorias, institui algo mais profundo, que é condição do próprio regime político, ou seja, quando institui direitos e que essa instituição é uma criação social, de tal maneira que a atividade democrática social realiza-se como uma contra-poder social que determina, dirige, controla e modifica a ação estatal e o poder dos governantes.

Essa dimensão criadora torna-se visível quando consideramos os três grandes direitos que definiram a democracia desde sua origem, isto é, a igualdade, a liberdade e a participação nas decisões.

A igualdade declara que, perante as leis e os costumes da sociedade política, todos os cidadãos possuem os mesmos direitos e devem ser tratados da mesma maneira. Ora, a evidência história nos ensina que a mera declaração do direito à igualdade não faz existir os iguais. Seu sentido e importância encontra-se no fato de que ela abriu o campo para a criação da igualdade por meio das exigências e demandas dos sujeitos sociais. Por sua vez, a liberdade declara que todo cidadão tem o direito de expor em público seus interesses e suas opiniões, vê-los debatidos pelos demais e aprovados ou rejeitados pela maioria, devendo acatar a decisão tomada publicamente. Ora, aqui também, a simples declaração do direito à liberdade não a institui concretamente, mas abre o campo histórico para a criação desse direito pela prática política. Tanto é assim que a modernidade agiu de maneira a ampliar a idéia de liberdade: além de significar liberdade de pensamento e de expressão, também passou a significar o direito à independência para escolher o ofício, o local de moradia, o tipo de educação, o cônjuge, etc. As lutas políticas fizeram com que, em 1789, um novo sentido viesse acrescentar-se aos anteriores quando se determinou que todo indivíduo é inocente até prova em contrário, que a prova deve ser estabelecida perante um tribunal e que a liberação ou punição devem ser dadas segundo a lei. A seguir, com os movimentos socialistas, acrescentou-se à liberdade o direito de lutar contra todas as formas de tirania, censura e tortura e contra todas as formas de exploração e dominação social, econômica, cultural e política. Finalmente, o mesmo se passou com o direito à participação no poder, que declara que todos os cidadãos têm o direito de participar das discussões e deliberações públicas, votando ou revogando decisões. O significado desse direito só se tornou explícito com as lutas democráticas modernas, que evidenciaram que nele é afirmado que, do ponto de vista político, todos os cidadãos têm competência para opinar e decidir, pois a política não é uma questão técnica (eficácia administrativa e militar) nem científica (conhecimentos especializados

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sobre administração e guerra), mas ação coletiva, isto é, decisão coletiva quanto aos interesses e direitos da própria sociedade.

Em suma, é possível observar que essa abertura do campo dos direitos, que define a democracia, explica porque as lutas populares por igualdade e liberdade puderam ampliar os direitos políticos (ou civis) e, a partir destes, criaros direitos sociais — trabalho, moradia, saúde, transporte, educação, lazer, cultura —, os direitos das chamadas “minorias” — mulheres, idosos, negros, homossexuais, crianças, índios —; o direito à segurança planetária — as lutas ecológicas e contra as armas nucleares; e, hoje, o direito contra as manipulações da engenharia genética. Por seu turno, as lutas populares por participação política ampliaram os direitos civis: direito de opor-se à tirania, à censura, à tortura, direito de fiscalizar o Estado por meio de organizações da sociedade (associações, sindicatos, partidos políticos); direito à informação pela publicidade das decisões estatais.

A sociedade democrática institui direitos pela abertura do campo social à criação de direitos reais, à ampliação de direitos existentes e à criação de novos direitos. Eis porque podemos afirmar, em primeiro lugar, que a democracia é a única sociedade e o único regime político que considera o conflito legítimo. Não só trabalha politicamente os conflitos de necessidades e de interesses (disputas entre os partidos políticos e eleições de governantes pertencentes a partidos opostos), mas procura instituí-los como direitos e, como tais, exige que sejam reconhecidos e respeitados. Mais do que isso, na sociedade democrática, indivíduos e grupos organizam-se em associações, movimentos sociais e populares, classes se organizam em sindicatos e partidos, criando um contra-poder social que, direta ou indiretamente, limita o poder do Estado. E, em segundo lugar, que a democracia é a sociedade verdadeiramente histórica, isto é, aberta ao tempo, ao possível, às transformações e ao novo. Com efeito, pela criação de novos direitos e pela existência dos contra-poderes sociais, a sociedade democrática não está fixada numa forma para sempre determinada, ou seja, não cessa de trabalhar suas divisões e diferenças internas, de orientar-se pela possibilidade objetiva (a liberdade) e de alterar-se pela própria práxis. A sociedade democrática é, pois, aquela que não esconde suas divisões, mas procura trabalhá-las pelas instituições e pelas leis.

Todavia, no capitalismo, são imensos os obstáculos à democracia, pois o conflito dos interesses e´, na verdade, expressão do fundamento mesmo da divisão social, ou seja, a contradição entre o capital e o trabalho e, portanto, a exploração de uma classe social por outra. Assim, por exemplo, se é verdade que as lutas populares nos países do capitalismo central ou metropolitano ampliaram os direitos dos cidadãos e que a exploração dos trabalhadores diminuiu muito, sobretudo com o Estado do Bem-Estar Social, também é verdade, no entanto, que houve um preço a pagar: a exploração mais violenta do trabalho pelo capital recaiu sobre os trabalhadores dos países da periferia do sistema. Por outro lado, também é inegável, em toda parte, a fragilidade dos direitos políticos e sociais sob a ação do neoliberalismo e, portanto, do encolhimento do espaço público e alargamento do espaço privado ou do mercado, sob a forma da privatização e da chamada “desregulação econômica”. Além disso, ao abandonar os investimentos dos fundos públicos nos serviços e direitos sociais e ao destinar os fundos públicos ao aumento da liquidez do capital para o desenvolvimento das novas tecnologias, o Estado neoliberal põe em risco todos os direitos econômicos e sociais conquistados pelas lutas populares.

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O direito à participação política também encontra obstáculos, sob os efeitos da divisão social entre dirigentes e executantes ou a ideologia da competência técnico-científica, isto é, a afirmação de que quem possui conhecimentos está naturalmente dotado de poder de mando e direção. Iniciada na esfera da produção econômica, essa ideologia propagou-se para a sociedade inteira que vê, assim, a divisão social das classes ser sobredeterminada pela divisão entre “competentes” que, supostamente, sabem e “incompetentes” que nada sabem e apenas executam ordens. Fortalecida pelos meios de comunicação de massa que a estimulam diariamente, essa ideologia invadiu a política, que passou a ser considerada uma atividade reservada para técnicos ou administradores políticos competentes e não uma ação coletiva de todos os cidadãos. Isso significa que, em política, as decisões são tomadas por técnicos ou especialistas, via de regra, sob a forma do segredo (ou, quando publicadas, o são em linguagem perfeitamente incompreensível para a maioria da sociedade) e escapam inteiramente dos cidadãos, consolidando o fenômeno generalizado da despolitização da sociedade. Dessa maneira, não só o direito à representação política (ser representante) diminui porque se restringe aos competentes, os quais, evidentemente, pertencem à classe economicamente dominante, que, assim, dirige a política segundo seus interesses e não de acordo com a universalidade dos direitos.

Enfim, não podemos minimizar o obstáculo ao direito à participação política posto pelos meios de comunicação de massa, que inviabilizam o direito à informação – não só o direito de recebê-la como ainda o de produzi-la e fazê-la circular. Na medida em que os media são empresas capitalista, produzem (não transmitem) informações de acordo com os interesses privados de seus proprietários e das alianças econômicas e políticas destes com grupos detentores de poder econômico e político, criando obstáculos ao direito à verdadeira participação política.

Os obstáculos à democracia, entretanto, não inviabilizam a sociedade democrática. Pelo contrário. Somente nela somos capazes de perceber tais obstáculos e lutar contra eles e as eleições presidenciais brasileiras de 2002 dão testemunho disso.

2. Dificuldades para a democracia no Brasil

Por democracia, os brasileiros entendem a existência de eleições, de partidos políticos e da divisão republicana dos três poderes, além da liberdade de pensamento e de expressão. Por autoritarismo entendem um regime de governo em que o Estado é ocupado por meio de um golpe (em geral militar ou com apoio militar), não há eleições nem partidos políticos, o poder executivo domina o legislativo e o judiciário, há censura do pensamento e da expressão, além de prisão (por vezes com tortura e morte) dos inimigos políticos. Em suma, democracia e autoritarismo são vistos como algo que se realiza na esfera do Estado e este é identificado com o modo de governo.

Essa visão é cega para algo profundo na sociedade brasileira: o autoritarismo social. Nossa sociedade é autoritária porque é hierárquica, pois divide as pessoas, em qualquer circunstância, em inferiores, que devem obedecer, e superiores, que devem mandar. Não há percepção nem prática da igualdade como um direito. Nossa sociedade também é autoritária porque é violenta: nela vigoram racismo, machismo, discriminação religiosa e de classe social, desigualdades econômicas que estão entre as maiores do mundo, exclusões culturais e políticas. Não há percepção nem prática do direito à liberdade.

O autoritarismo social e as desigualdades econômicas fazem com que a sociedade brasileira esteja polarizada entre as carências das camadas populares e os interesses das classes

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abastadas e dominantes, sem conseguir ultrapassar carências e interesses e alcançar a esfera dos direitos. Os interesses, porque não se transformam em direitos, tornam-se privilégios de alguns, de sorte que a polarização social se efetua entre os despossuídos (os carentes) e os privilegiados. Estes, porque são portadores dos conhecimentos técnicos e científicos, são os “competentes”, cabendo-lhes a direção da sociedade.

Como dissemos há pouco, uma carência é sempre específica, sem conseguir generalizar-se num interesse comum nem universalizar-se num direito. Um privilégio, por definição, é sempre particular, não podendo generalizar-se num interesse comum nem universalizar-se num direito, pois, se tal ocorresse, deixaria de ser privilégio. Ora, a democracia é criação e garantia de direitos. Nossa sociedade, polarizada entre a carência e o privilégio, não consegue ser democrática, pois não encontra meios para isso.

Esse conjunto de determinações sociais manifesta-se na esfera política. Em lugar de democracia, temos instituições vindas dela, mas que operam de modo autoritário como se vê na tradição clientelista, que mantém relações de favor com seus eleitores, e na populista, que trata seus eleitores como um pai de família trata seus filhos menores. Via de regra, os representantes, em lugar de cumprir o mandato que lhes foi dado pelos representados, surgem como chefes, mandantes, detentores de favores e poderes, submetendo os representados, transformando-os em clientes que recebem favores dos mandantes.

A “indústria política” — isto é, a criação da imagem dos políticos pelos meios de comunicação de massa para a venda do político aos eleitores-consumidores —, aliada à estrutura social do país, alimenta um imaginário político autoritário no qual não somos realmente eleitores (os que escolhem), mas meros votantes (os que dão o voto para alguém).

As leis, porque exprimem ou os privilégios dos poderosos ou a vontade pessoal dos governantes, não são vistas como expressão de direitos nem de vontades e decisões públicas coletivas. O poder judiciário aparece como misterioso, envolto num saber incompreensível e numa autoridade quase mística. Por isso mesmo, aceita-se que a legalidade seja, por um lado, incompreensível, e, por outro, ineficiente (a impunidade não reina livre e solta?) e que a única relação possível com ela seja a da transgressão (o famoso “jeitinho”).

3. Governo Lula: disputa simbólica e ética pública

A essas dificuldades de fundo para a democracia no Brasil, acrescentemos duas que, nos dias de hoje, têm assumido um lugar proeminente na cena política brasileira. A primeira delas é a reafirmação da ideologia da competência pelos meios de comunicação de massa. Numa sociedade autoritária e hierárquica como a nossa, a eleição de Lula é, para a classe dominante e para os setores reacionários da classe média, um pedregulho atravessado na garganta. As primeiras tentativas para desqualificar o novo presidente da república consistiram em solicitar a “especialistas” (sociólogos e politólogos), que demonstrassem que estávamos diante da velha política populista e messiânica. Como essas tentativas foram mal-sucedidas (pois não havia fatos para comprovar as teorias), houve mudança de estratégia: passou-se à ideologia da competência e à profusa explicação da “falta de preparo” do novo presidente para o exercício do cargo (chegou-se ao ridículo de querer provar sua incompetência analisando sua linguagem e o fato de que, em seus discursos, Lula usa metáforas, analogias e provérbios, portanto, sinais indiscutíveis de pobreza de pensamento e de expressão!).

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O insucesso dessa segunda estratégia deu origem a uma terceira que vem ocupando grande parte da imprensa e dos comentários políticos de rádios e televisões brasileiros. Esta nova arremetida anti-democrática é mais profunda e menos ridícula do que as anteriores porque agora parte de um grupo político determinado e se refere à disputa simbólica. De fato, em política, há duas grandes disputas: a definidora da própria política, isto é, a disputa pelo poder; e a disputa simbólica, isto é, pela ocupação de um lugar onde se reconheça uma imagem definida por valores postos pela sociedade.

Do ponto de vista simbólico, o PT, ao definir-se não como um partido para os trabalhadores e sim dos trabalhadores, ocupou o lugar definido pela criação e conservação de direitos civis e sociais dos economicamente explorados, socialmente excluídos e politicamente subalternos. Na disputa simbólica, o campo dos direitos ou da cidadania plena definiu a imagem do PT. Em outras palavras, o PT definiu o campo simbólico da democracia como formação social fundada na criação e conservação dos direitos e na legitimidade do trabalho dos conlitos, recusando a violência da força em nome da lógica política.

Historicamente, porém, a disputa simbólica recebeu um acréscimo. De fato, a oposição ao governo Collor introduziu o tema da ética na política e as circunstâncias ( a concepção da probidade pública, defendida pelos militantes e presente na a atuação exemplar dos parlamentares e prefeitos petistas) fizeram com que esse lugar simbólico também fosse ocupado pelo PT. Hoje, é esse lugar que está em discussão e é nessa disputa que o PT e o governo Lula estão sendo questionados tanto pelos próprios petistas como pelas oposições políticas e pelos meios de comunicação enquanto formadores da opinião pública.

Desse ponto de vista, há dois aspectos que merecem nosso exame e nossa tomada de posição: o primeiro se refere à relação entre ética e política e, como veremos, à necessidade da reforma política; o segundo se refere ao reaparecimento do imaginário da crise.

A) Ética pública e reforma política

Entre muitas falhas institucionais, as do sistema de representação e do financiamento de campanhas justificam a urgência de uma reforma política.No final da ditadura, quando o MDB poderia superar a ARENA com maioria parlamentar, o problema foi resolvido conseguindo novos parlamentares arenistas, entre outros meios, pela transformação dos territórios em estados e pela criação de novos estados com o desmembramento de alguns existentes. A seguir, o sistema partidário e eleitoral levou à distorção da representação tanto pela super representação dos estados recém-criados como pela proliferação de partidos artificiais ou de aluguel. O resultado tem sido a impossibilidade do partido vitorioso no executivo conseguir eleger uma maioria parlamentar, ficando às voltas com o chamado “problema da governabilidade”. Este acaba levando ou a alianças partidárias artificiais (que desagradam a todos os representados) ou, quando tal não ocorre, à distorção de uma prática própria da democracia parlamentar, isto é, a negociação entre executivo e legislativo, ( “concedo x desde que você conceda y”). Passa-se da negociação ao negócio, isto é, à corrupção por meio da compra de votos parlamentares. A CPI, instrumento essencial da moralidade pública, tem-se mostrado inócua neste ponto porque atinge indivíduos e não o sistema, o efeito e não a causa.

Por sua vez, o financiamento privado das campanhas eleitorais acarreta pelo menos três graves improbidades públicas: a) desinformação social , pois candidatos e partidos publicam

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gastos que não correspondem à realidade; b) segredo, pois candidatos e partidos, à margem de seus programas e compromissos públicos, se comprometem com interesses privados dos financiadores, favorecendo os economicamente poderosos às custas dos direitos das outras classes sociais; c) possibilidade de enriquecimento ilícito dos que se apropriam privadamente dos fundos de campanha. Novamente, a CPI, instrumento essencial da moralidade pública tem-se mostrado inócua, a prova estando na repetição contínua dos mesmos problemas, a cada novo governo da república.

Ora, a improbidade no tratamento da coisa pública atinge uma sociedade de maneira catastrófica, seja porque esse tipo de conduta se torna natural na política e se espalha por todas as ações sociais (como se viu na fase final da ditadura brasileira), seja porque despolitiza os cidadãos (que perdem qualquer esperança de que a política seja a atividade que realiza a vida cívica). No entanto, a improbidade pública se torna terrível quando praticada pela esquerda porque avilta a luta de classes, destrói os valores que orientam a busca de ações transformadoras e mata a esperança de justiça, igualdade e liberdade.

Todavia, a discussão sobre a relação entre ética e política, quando feita pela esquerda, não pode cair na confusão entre ética privada e ética pública, pois essa confusão despolitiza a política, como se vê nas concepções pré e pós modernas da política.

Situando-se à distância da democracia grega e da república romana, a concepção medieval da política, nascida da teocracia hebraica e da teologia política cristã, rompeu com o núcleo da política como espaço público autônomo. Por isso, a concepção pré-moderna da política considera o governante não como representante dos governados, mas de um poder mais alto (Deus, a Razão, a Lei, a Humanidade, etc), que lhe confere a soberania como poder único de decisão pessoal, pois o soberano é considerado “filho da justiça” e “pai da lei” . Para ser digno de governar, o dirigente deve possuir um conjunto de virtudes que atestam seu bom caráter do qual dependem a paz e a ordem. O governante virtuoso é um espelho no qual os governados devem refletir-se, imitando suas virtudes – o espaço público é idêntico ao espaço privado das pessoas de boa conduta e a corrupção é atribuída ao mau caráter ou aos vícios do dirigente. Em outras palavras, nunca são analisadas as instituições políticas, nunca são levadas em conta as qualidades ou os defeitos das ordenações públicas, pois tudo se resume à ética privada de governantes e governados.

Por sua vez, a concepção pós-moderna da política aceita a submissão da política aos procedimentos da sociedade de consumo e de espetáculo. Torna-se indústria política, dando ao marketing a tarefa de vender a imagem do político e reduzir o cidadão à figura privada do consumidor. Para obter a identificação do consumidor com o produto, o marketing produz a imagem do político enquanto pessoa privada, apresentando-o por características corporais, preferências sexuais, culinárias, literárias, esportivas, hábitos cotidianos, vida em família, bichos de estimação, etc. Em outras palavras, a indústria política produz a privatização das figuras do político e do cidadão e privatiza o espaço público. Por isso a avaliação ética dos governos não possui critérios próprios a uma ética pública e se torna avaliação das virtudes e vícios dos governantes; e, como no caso pré-moderno, a corrupção é atribuída ao mau caráter dos dirigentes e não às instituições públicas.

Para compreendermos uma outra concepção, oposta às duas anteriores e que julgamos dever ser a nossa, precisamos nos lembrar da causa que introduziu, na sociedade moderna e

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contemporânea, a discussão sobre a relação entre ética e política. Sabemos que a regra de ouro da ética é a de que os fins não justificam os meios e sim determinam os próprios meios: uma finalidade ética só pode ser alcançada por meios éticos. Essa regra parece opor-se àquela que, desde Maquiavel, foi julgada a regra de ouro da política: os fins justificam os meios. Exatamente a oposição entre a regra ética e a regra política abriram, para a modernidade e para a sociedade contemporânea, a discussão sobre a relação entre ética e política. A resposta moderna foi clara: tanto na ética como na política a qualidade dos fins deve determinar a qualidade dos meios. Em outras palavras, há uma ética pública.

Mas a novidade moderna consistiu em afirmar que os meios éticos da política não dependem das qualidades morais dos governantes e sim da qualidade das instituições públicas.

A concepção moderna da política funda-se, portanto, na distinção entre o público e o privado – ou seja, na idéia de república – e volta-se para as práticas da representação e da participação – ou seja, para a idéia de democracia, entendida como criação sócio-política de direitos, aberta à legitimidade dos conflitos e ao controle público da ação governamental. Dessa maneira, a concepção moderna da política introduz efetivamente a idéia e a prática de uma ética pública, tanto porque afirma que as qualidades e defeitos da ação governamental não depende do caráter do governante, mas da natureza das instituições políticas, quanto porque age para criar e conservar um espaço público de participação, representação e controle sócio-político, por meio dos quais a sociedade fiscaliza e julga os governos.

O exemplo mais contundente da concepção moderna pode ser encontrado na abertura de um texto clássico, o “Tratado Político”, de Baruch Espinosa.

Todos os que até então escreveram sobre a política, diz ele, nada trouxeram de útil para a prática por causa do moralismo, que os faz imaginar uma natureza humana racional, virtuosa e perfeita e execrar os seres humanos reais, tidos como viciosos e depravados (porque movidos por sentimentos ou paixões). Tais escritores, “quando querem parecer sumamente éticos, sábios e santos, prodigalizam louvores a uma natureza humana que não existe em parte alguma e atacam aquela que realmente existe”.

Ora, prossegue Espinosa, por natureza, e não por vício, os seres humanos são movidos por paixões, impelidos por inveja, orgulho, cobiça, vingança, maledicência, cada qual querendo que os demais vivam como ele próprio. Mas também são impelidos por paixões de generosidade e misericórdia, amizade e piedade, solidariedade e respeito mútuo. Pretender, portanto, que, na política, se desfaçam das paixões e ajam seguindo apenas os preceitos da razão “é comprazer-se na ficção”.

Por conseguinte, um Estado cujo bem-estar, segurança e prosperidade dependam da racionalidade e das virtudes pessoais de alguns dirigentes é “um Estado fadado à ruína”. Para haver paz, segurança, bem-estar e prosperidade “é preciso um ordenamento institucional que obrigue os que administram a república, quer movidos pela razão quer pela paixão, a não agir de forma desleal ou contrária ao interesse geral.” Pouco importam os motivos interiores dos administradores públicos; o que importa é que as instituições os obriguem a bem administrar. Virtudes e vícios do Estado não são virtudes privadas e vícios privados dos dirigentes e dos cidadãos, mas virtudes públicas, isto é, a qualidade das instituições, ou vícios públicos, isto é,

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deficiências institucionais. Assim, a crítica moralizante à corrupção cede lugar à crítica cívica das instituições, isto é, à moralidade pública.

É para alcançarmos essa verdadeira dimensão da ética pública que a reforma política se torna urgente e deve ser exigida pela sociedade e pelo Partido dos Trabalhadores.

B. O imaginário da crise

Há, no Brasil, um imaginário da crise que se assenta numa atitude atávica da classe dominante brasileira, com efeitos políticos devastadores, atestados por nossa história. A palavra “crise”, como se sabe, vem da língua grega, derivando-se do verbo krino, que significa: separar ou distinguir entre o bom e o mau, o verdadeiro e o falso, de onde vem o sentido de escolher e preferir, de onde vem o sentido de decidir e julgar para tomar uma posição e, por fim, disso vem o significado de resolver, explicar e interpretar. Krísis significa ação de distinguir, ação de escolher, ação de decidir, ação de explicar e interpretar. A crise é o momento no qual o sentido de um processo se manifesta e pede que ações determinadas de escolha, julgamento, decisão e interpretação sejam realizadas para que o processo se desdobre até o fim e que a ação a ser realizada seja aquela que permita a compreensão e o término do processo. Eis porque, de krísis derivam-se as palavras critério e crítica.

Na origem, essa palavra pertencia a três vocabulários principais: o da medicina, o da filosofia e o da política. Na medicina, a crise era o momento no qual a doença alcançava seu ponto máximo e indicava ao médico qual a ação imediata e precisa que deveria realizar naquele exato momento para conseguir a cura. Na filosofia, significava o momento no qual as contradições e os conflitos entre idéias indicavam os erros e limitações delas exigindo do filósofo que as julgasse, avaliasse, afastasse algumas e mantivesse outras de maneira a chegar a um pensamento novo e coerente. Finalmente, na política, crise significava o momento no qual os conflitos se explicitavam e indicavam as várias direções possíveis para sua solução, cabendo aos cidadãos não só a compreensão do sentido de tais conflitos, mas também a invenção de ações capazes de resolvê-los para o bem de toda a sociedade. Como se observa, a palavra crise possuía um sentido positivo, afirmativo, indicando a capacidade de distinguir, julgar, escolher e decidir numa situação de conflito e de contradição, que pede a ação dos seres humanos.

Ora, no Brasil, porém, a palavra crise pertence sobretudo ao vocabulário e ao ideário autoritário e conservador. Entre nós, ela perdeu todo o sentido originário que possuía e passou a significar desordem e perigo, um mal a ser combatido. Por conseguinte, se democracia é legitimidade do conflito e criação de direitos, podemos concluir que a incompreensão do sentido da crise é um dos mais fortes obstáculos à democracia no Brasil.De fato, visto que a idéia e a palavra crise são inseparáveis da percepção do conflito e da contradição, no Brasil, tanto os conflitos como as contradições tornam-se sinônimo de desordem e perigo e não podem ser politicamente trabalhado, mas autoritariamente abolidos, isto é, reprimidos. Assim, em nossa sociedade, desaparece a crise como momento de compreensão do sentido de um processo conflituoso/contraditório e como busca de ações criadoras e inventivas que produzam mudança numa situação dada e, em seu lugar, surge o fantasma ideológico da desordem e o uso político da repressão.

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Não é, pois, casual que, hoje, o imaginário da crise – mobilizado por uma falsa concepção da ética pública -- esteja sendo tão profusamente revivido, pois indica a única maneira que a classe dominante encontra para explicar para si mesma sua perda de poder e de controle sobre a sociedade e a política. Do ponto de vista da classe dominante, o governo Lula é a crise em sua forma plena.

Assim como não podemos embarcar nas concepções pré e pós modernas da política, também não podemos embarcar no imaginário da crise. Tudo está pronto para assumirmos o sentido originário e profundo da crise: reforma política e mudança nos rumos da economia são nosso critério, no sentido verdadeiro da palavra.

POR QUE DISCUTIR GÊNERO? Alessandra Terrebile

"Não digam nunca: isso é natural!Para que nada passe por imutável"

(Bertold Brecht)Questionar e redesenhar as relações sociais entre homens e mulheres é tarefa nada fácil.

O senso comum diz que as desigualdades de gênero foram superadas, e que as mulheres já encontraram seu lugar. Essa compreensão equivocada renova a acomodação de mulheres sem perspectivas e o conforto de homens com a prerrogativa da decisão.

Mas quem pára para refletir sobre isso facilmente constata que a realidade é outra. Por que a maior parte dos casos de violência contra a mulher é praticada dentro de casa? Por que ainda há mulheres sofrendo violência sexual? Por que as mulheres são minoria nos cargos de direção do mercado de trabalho? Por que 70% da população pobre do mundo é constituída por mulheres?

Isso tudo e muito mais representam a ponta do iceberg de uma construção histórica e social que determinou um lugar social para as mulheres que não era o de sujeitos políticos, de protagonistas históricas, mas de inferioridade em relação ao homem. Pensemos bem... quais as características associadas ao masculino? Virilidade, força, bravura, racionalidade. E ao feminino? Ternura, cuidado, zelo, atenção, carinho, fragilidade. É aí que se encontra o conceito de gênero.

O termo "gênero" é usado para designar a construção social feita do que é masculino e do que é feminino. A utilização desse termo nos leva a refletir sobre o caráter essencialmente social das desigualdades e da hierarquização das relações sociais entre homens e mulheres; e além disso, uma vez que são construções sociais, ou seja, elaboradas ao longo da história pelos seres humanos, essas relações não são naturais, e podem – e devem – ser transformadas.

Gênero e identidadeUma menina nem sabe, mas, simplesmente por ser mulher, já pode haver muitos

caminhos pré-determinados na sua vida. Ela vai brincar de boneca, de casinha, de comidinha, não porque essa atitude é intrínseca a ela, mas porque existe um contexto social que a leva a isso. Assim, ela vai aprendendo a ser uma mãe zelosa, uma esposa dedicada, uma mulher recatada. Dificilmente ela será engenheira ou matemática, é mais provável que seja professora ou enfermeira.

Como podemos perceber, a identidade de meninos e meninas vai sendo modelada desde muito cedo. Simplificando bastante, o menino é ensinado a ser forte e protetor, enquanto a

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menina é ensinada a ser frágil e protegida. Esse binômio já nos leva a perceber a hierarquização que está presente nas relações sociais entre homens e mulheres.

As referências colocadas pela mídia dialogam e reafirmam esse imaginário social excludente. Expõem-se padrões de comportamento que são ainda mais rígidos no caso das mulheres. Se aos 7 anos ela quer ser a Cinderela, doce, frágil, que nunca levanta a voz nem desafia ninguém; aos 15, para ser aceita, ela se espelha na Tiazinha, a mulher sensual, sedutora, que nunca nega sexo. E o que há de comum entre a Cinderela e a Tiazinha? A fragilidade, a ternura, a sensualidade são características diretamente associadas à submissão.

Passa a caber às mulheres, portanto, um papel secundário na transformação do mundo e das relações políticas e sociais, e uma vez assumido esse "segundo lugar", a opressão de gênero ganha cada vez mais força. Enquanto as mulheres não se reconhecerem e não se organizarem enquanto sujeitos políticos, sua própria libertação fica comprometida. Afinal, não se sabe de um único episódio na história moderna da humanidade em que direitos tenham sido dados por alguém. Direitos não são presentes, são conquistas. Olha aí a importância de discutirmos gênero.

As estudantes e a luta das mulheresPortanto, para que, de fato, caminhemos rumo a uma sociedade igualitária, livre de

opressões de gênero, raça ou classe, é preciso que o setor oprimido protagonize sua própria emancipação. E como será que o movimento estudantil pode intervir nessa construção?

A cultura sexista que observamos nas diversas esferas da nossa sociedade também se manifesta no movimento estudantil. Numa entidade, por exemplo, geralmente, as mulheres cumprem tarefas de organização interna, enquanto os homens se expõem e se tornam referências como figuras públicas. Num fórum de discussão, como uma assembléia, a imensa maioria dos falantes são homens, e, muitas vezes, as mulheres que "ousam" tomar a palavra são limitadas por assobios, gracejos, piadinhas e tantas outras formas de desrespeito e desqualificação.

Aqueles que contribuem para a manutenção desse cenário, algumas vezes, mal se dão conta do quão nociva é a sua atitude, e assim, acabam referenciando a política no masculino, desqualificando a intervenção feminina, excluindo as mulheres e reproduzindo toda uma cultura de opressão que nós observamos hoje.

É preciso romper com uma lógica de pré-determinação dos lugares sociais de homens e mulheres. Depois de algum exercício de percepção e reflexão, vemos que a mulher é educada para o espaço privado, enquanto o espaço público é majoritariamente composto por homens, ganhando características masculinizadas, como se não coubessem mulheres ali.

Eis aí mais uma barreira a ser rompida. A presença das mulheres no espaço público – o da política, por exemplo – é fundamental para a transformação de um imaginário social que submete as mulheres aos homens, e para a transformação de uma sociedade que legitima e reproduz esses valores discriminatórios a todo instante.

Aí reside a importância das ações afirmativas. A UNE (União Nacional dos Estudantes) reserva 30% de seus cargos às mulheres. Mas por quê? Não soa artificial demais?

Pode ser. Mas por meio de medidas artificiais, como as cotas, nós estamos afirmando que a igualdade de gênero não existe, e que precisa ser buscada. Além disso, o combate ao machismo nas diversas esferas da sociedade passa também por desconstruir um senso comum que exclui as mulheres desses espaços públicos, que as torna invisíveis. As cotas representam, portanto, um mecanismo de inserção política que dá visibilidade à luta das mulheres.

E a universidade?Logicamente, a universidade não é uma ilha isolada do resto do mundo, e portanto, as

desigualdades postas para além dos seus muros também se reproduzem dentro dela. A diferença

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qualitativa é que a universidade, como espaço de formulação, de crítica e de compreensão histórica, deveria ser um dos instrumentos contra essas opressões.

Alguém que se classifica como "libertário", que, na universidade, luta em defesa da educação de qualidade, transformadora da realidade, que condena o autoritarismo dos poderosos, esse alguém não é coerente, pior, não é sequer um real ator político no processo de transformação social, na medida em que reproduz vícios machistas e contribui para manter a exploração, a "coisificação" e a opressão das mulheres. Se entendermos a universidade como espaço privilegiado para a disputa de pensamento, de hegemonia, de construção da sociedade que queremos, passa por esse espaço, necessariamente, a superação das opressões de gênero.

A participação das mulheres no processo de educação como um todo pode ser representada por uma pirâmide, sendo a base a educação infantil e o ápice, a universidade. As mulheres são quase exclusivamente responsáveis pela educação infantil, e sua presença ainda é majoritária no ensino fundamental. Na universidade, as professoras são minoria, e essa minoria se reduz ainda mais quando falamos de posicionamento na carreira (professoras titulares são poucas). Ou seja: as carreiras de mais prestígio e onde estão os melhores salários são menos ocupadas por mulheres.

E a produção de ciência e tecnologia? A presença feminina em cargos de direção em institutos e comissões de pesquisa nas universidades é bastante reduzida, mas pode-se dizer mais. Será que essa ciência e essa tecnologia que nossas universidades têm produzido atendem às demandas diferenciadas das mulheres? Será que os hospitais universitários estão preparados para oferecer atenção integral à saúde da mulher?

No caso das estudantes, rapidamente identificamos problemas referentes à discriminação. Na assistência estudantil, por exemplo. Quantas universidades no Brasil apresentam creches para que as mães estudantes possam concluir seus estudos sem serem prejudicadas? Quantas universidades no Brasil levam em consideração a maior dificuldade que as mulheres têm de deixar suas casas para estudar? Isso sem falar nos campi onde ocorrem estupros com freqüência, ou em casos explícitos de assédio sexual que ficam sem solução.

Aonde vamos?Mas o que nós queremos, então, como mulheres e como estudantes?As diferenças entre homens e mulheres não podem ser hierarquizadas, reservando um

lugar de destaque para um, enquanto a outra cumpre papel coadjuvante. O sociólogo português Boaventura de Souza Santos, em palestra no III Fórum Social Mundial, lançou uma reflexão interessantíssima: temos o direito de sermos iguais quando as diferenças nos inferiorizam, e de sermos diferentes quando as semelhanças nos descaracterizam.

A emancipação das mulheres será obra das próprias mulheres. Por isso, é importante que o movimento estudantil, como elemento transformador não só da universidade, mas da sociedade na qual se insere, abra espaço e fortaleça essa discussão. Nos fóruns estudantis, desde os eventos nacionais até os localizados, é importante que o debate de gênero seja estimulado, oferecendo-se, assim, instrumentos para a organização das mulheres para as suas lutas.

É preciso questionar atos e hábitos cotidianos, estando atento à reprodução despercebida do machismo na nossa sociedade. Piadas, brincadeiras, musiquinhas, camisetas e qualquer elemento que reafirme a opressão das mulheres sob a pele da "brincadeira" precisa ser denunciada, precisa ser combatida. Afinal, é em espaços eminentemente simbólicos que as desigualdades de gênero encontram respaldo para se reforçar e se reproduzir.

Sendo essa uma luta dos estudantes, vale lembrar que nenhuma transformação vai acontecer enquanto houver opressões de gênero, de raça, de classe. Transformar o mundo passa por combater essas opressões. Caso contrário, não há compromisso. Há ilusão.

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EDUCAÇÃOENEENF

Há uma inversão de valores na educação, esta que deveria ser pensada para conscientizar, ampliar conhecimentos e despertar uma reflexão critica, hoje se resume ao ato de depositar , ou de narrar , ou de transferir, ou de transmitir “conhecimento” e valores aos educandos que neste contexto são meros pacientes da ação de educar. O “saber” tornou-se uma doação dos que se julgam sábios(educador) aos que julgam nada saber (educando), doação esta que serve de instrumento da ideologia da absolutização da ignorância Neste contexto a educação não está referenciada na produção do saber, na criatividade , na transformação, na superação dos conhecimentos , e sim reprodução dos conhecimentos que são frutos da experiência social e cultural da humanidade. Esta realidade é verificada tanto no setor público quanto no privado do ensino primário , fundamental -- sendo que este último setor corresponde ao mercado no que refere a aprovação no vestibular-- e no ensino superior.

Quanto ao ensino superior a nossa universidade é uma instituição jovem que ainda engatinha diante dos olhos influentes , porém distantes da velha Universidade Européia em sua busca milenar de autonomia , inicialmente ; no seu nascedoro , em relação a igreja , posteriormente ao Estado , na época Moderna e , presentemente as forças econômicas e gorvenamentais .Tais questões definem para universidade brasileira, parâmetros e referenciais no espectro do colonialismo cultural.

Nos países centrais capitalistas , como no países periféricos , ciência e a tecnologia tornaram-se fator de produção ou força produtiva , assim as atividade e os resultados acadêmicos são reduzidos e configurados como mercadorias , valores de troca , desviando –se do seu caminho supracitado da autonomia , das construção social do compromisso social e ético com o povo brasileiro e a humanidade no sentido democrático , libertário e emancipatório.

O modo de produção capitalista desde a década de 80 segue a lógica do modelo econômico e ideológico neoliberal , que desrenponsabiliza o estado por setores fundamentais para a sociedade , corta gastos sociais e têm um amplo programa de privatização .

A reforma universitária , apresentada pelo o governo LULA, segue este mesmo viés, que foi adotado nos governos anteriores e faz parte da reforma do estado proposta em 1995, no governo FHC onde este age de forma semelhante as empresas , adotando os princípios de administração pública gerencial .Deste modo as atividades exercidas por universidades , hospitais , centros de pesquisa e museus que são:educação , saúde e pesquisa passam a ser consideradas atividades não mais exclusivas do estado , transformando-as de direito do cidadão em serviço público não estatal, susceptível de ser privatizado.

Assim a responsabilidade do Estado pela Educação superior , é transferida para o mercado e a sociedade civil , cabendo a este apenas as atividades de supervisão e regulação aprofundando a lógica de formação para o mercado e não para sociedade .

É neste contexto que a reforma universitária foi apresentada de forma fatiada, através de medidas provisórias como a Lei de Inovação Tecnológica , a Lei sobre fundações , o PROUNI, a Lei Orgânica da Educação Profissional e Tecnológica , o SINAES, a Lei de responsabilidade Fiscal, os dispositivos de Desvinculação de recursos da União (DRU)- que retira recursos de educação e o ante–projeto que vem consolidar a lógica neoliberal de priorização da iniciativa

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privada , já revelada nos documentos anteriores, negligenciando as reais necessidades do povo brasileiro.

A sociedade brasileira precisa responder qual universidade que deseja e necessita .O povo brasileiro, na atual dinâmica social, está dizendo coisas para estimular o pensar na universidade. O povo apontou, de modo mais claro , em 2002 , o desejo e as vontade de mudanças sociais , políticas , econômicas e também mudanças culturais .Os universitários estão desafiados e empreender mudanças na instituição acadêmica. A universidade , também por esta nova dinâmica, está em questão . Hoje, principalmente , a universidade é estimulada a responder á necessidade de construção da utopia de uma nova Universidade Pública para um nova sociedade , solidária ,humana e justa , de igualdade e liberdade . de homens e mulheres emancipados . Ser universidade que contribua para realização desta sociedade.

É por reconhecer a importância da educação, das universidades e se identificar pelos anseios de mudança do povo brasileiro que a Executiva Nacional dos Estudantes de Enfermagem (ENEENF) luta e disputa por uma educação pública de qualidade e uma universidade pública, gratuita, laica e referenciada socialmente e conclama a todos que queiram a fazer parte desta luta.

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CASA - A ESCOLARubem Alves

Uma professora me escreveu pedindo-me que eu lhe desse algumas dicas sobre como despertar o interesse dos seus alunos sobre a sua matéria. Sua pergunta brotava do seu sofrimento. Preparava suas aulas como havia aprendido nas aulas de didática - mas a sua aula não era capaz de seduzir a imaginação dos seus alunos. Numa situação como essas o mais fácil e o mais comum é culpar os alunos: eles são indisciplinados, não querem aprender, são psicologicamente incapazes de concentrar a atenção. Essa professora não culpava os alunos. Culpava a si mesma. Devia haver algo de errado em suas aulas para que os alunos não prestassem atenção.

Uma aula é como comida. O professor é o cozinheiro. O aluno é quem vai comer. Se a criança se recusa a comer pode haver duas explicações.

Primeira: a criança está doente. A doença lhe tira a fome. Quando se obriga a criança a comer quando ela está sem fome, há sempre o perigo de que ela vomite o que comeu e acabe por odiar o ato de comer. É assim que muitas crianças acabam por odiar as escolas. O vômito está para o ato de comer como o esquecimento está para o ato de aprender. Esquecimento é uma recusa inteligente da inteligência. Segunda: a comida não é a comida que a criança deseja comer: nabo ralado, jiló cozido, salada de espinafre... O corpo é um sábio. Etimologicamente a palavra sábio quer dizer "eu degusto". O corpo não é um porco que come tudo o que jogam para ele, como se tudo fosse igual. Ele opera com um delicado senso de discriminação. Algumas coisas ele deseja. Prova. Se são gostosas, ele come com prazer e quer repetir. Outras não lhe agradam, e ele recusa. Aí eu pergunto: "O que se deve fazer para que as crianças tenham vontade de tomar sorvete?" Pergunta boba. Nunca vi criança que não estivesse com vontade de tomar sorvete. Mas eu não conheço nenhuma mágica que seja capaz de fazer com que uma criança seja motivada a comer salada de jiló com nabo. Nabo e jiló não provocam a sua fome.

As crianças têm, naturalmente, um interesse enorme pelo mundo. Os olhinhos delas ficam deslumbrados com tudo o que vêem. Devoram tudo. Lembro-me da minha neta de um ano, agachada no gramado encharcado, encantada com uma minhoca que se mexia. Que coisa fascinante é uma minhoca aos olhos de uma criança que a vêem pela primeira vez! Tudo é motivo de espanto. Nunca estiveram no mundo. Tudo é novidade, supresa, provocação à curiosidade.

Visitando uma reserva florestal no Espírito Santo a bióloga encarregada de educação ambiental me contou que era um prazer trabalhar com as crianças. Não era necessário nenhum artifício de motivação. As crianças queriam comer tudo o que viam. Tudo provocava a fome dos seus olhos: insetos, pássaros, ninhos, cogumelos, cascas de árvores, folhas, bichos, pedras. Alberto Caeiro disse que foram as crianças que o ensinaram a ver. Disse que a criança que o ensinou a ver era Jesus Cristo tornado outra vez menino: "A mim ensinou-me tudo. / Ensinou-me a olhar para as coisas. / Aponta-me todas as coisas que há nas flores. / Mostra-me como as pedras são engraçadas / Quando a gente as tem na mão / E olha devagar para elas./

Quando eu era jovem e não sabia que os olhos das crianças eram diferentes dos olhos dos adultos eu ficava bravo com meus filhos quando a gente viajava. Eu olhava para fora do carro e ficava deslumbrado com cenários que via: montanhas, lagos, florestas. Queria que eles gozassem aquela beleza. Mostrava para eles, e era como se ela não existisse. Eles nem ligavam. E eu ficava com raiva. "Como podem ser insensíveis a tanta beleza?"

Eu não sabia que os olhos das crianças não tem fome de coisas que estão longe. Os olhos das crianças têm fome de coisas que estão perto. As crianças querem pegar aquilo que vêem. Cenários não podem ser pegos com a mão. Quando são bem pequenas elas olham, pegam, e levam à boca: querem comer, sentir o gosto da coisa. O bichinho de que gostam é aquele que elas podem acariciar, colocar no colo: o coelhinho, o cachorrinho, o gatinho. Nunca vi crianças com interesse especial por peixes em aquários. Peixinhos não podem ser agradados, não podem ser colocados no colo. E nem

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por pássaros. A menos que os pássaros possam ser agradados. Conheço uma menina que tinha como seu bichinho de estimação uma galinha. Mas a galinha dela era diferente: vinha quando era chamada e gostava de ser agradada.

Todos os objetos que podem ser pegos com a mão são brinquedos para as crianças. E por isso elas gostam deles. Estão naturalmente motivadas por eles. Querem comê-los. Querem conhecê-los. Com sete anos de idade tive a minha primeira experiência fracassada com a engenharia mecânica. Secretamente desmontei o relógio de pulso de minha mãe. Infelizmente não consegui juntar as engrenagens de novo. Com sete anos eu sabia que os objetos são interessantes e que a gente os conhece não de longe, mas mexendo neles, desmontando e montando.

Para mim esse é um princípio fundamental da aprendizagem: a fome de aprender acontece na fronteira entre o corpo e o ambiente. As crianças não se interessam por montanhas, lagos e florestas porque estão longe dos seus braços. Mas têm prazer em subir em árvores, apanhar frutas, descobrir ninhos, brincar nos remansos, pescar. As crianças se interessam por objetos com os quais os seus corpos podem estar em contacto, que podem ser manipulados. Elas não têm um interesse natural por operações matemáticas abstratas. Mas se estão vendendo pipas na feira, elas se interessam logo por somar e diminuir para contabilizar preços e trocos. E que dizer da forma como elas aprendem a falar, coisa mais assombrosa não existe! Elas não aprendem a falar abstratamente. Aprendem os nomes dos objetos e das pessoas ao seu redor, os verbos que indicam as atividades que fazem. Quando a criança diz "mamãe" ela está chamando para si um objeto querido. A princípio, toda palavra é uma invocação.

Aí elas vão para as escolas. Aí a aprendizagem sai da vida e passa para os programas. Programas são séries de conhecimentos organizados abstratamente numa ordem lógica. Mas a ordem dos programas, por terem sido preparados abstratamente, não segue a ordem da vida. Aparece então o descompasso. O que elas têm de aprender não é aquilo que o corpo delas quer aprender, pela simples razão de que a vida não segue programas. Aí surge a pergunta: como motivá-las a comer nabo e jiló? Vocês podem imaginar como é que se ensinaria uma criança a falar, seguindo-se um programa? Ela não aprenderia nunca.

Não gosto de laboratórios nas escolas. Sua função não é ensinar ciência. Sua função é seduzir os pais. Os pais querem sempre o melhor para os seus filhos e o que é moderno deve ser melhor. Uma escola que tem laboratórios com aparelhinhos deve ser uma boa escola. Mas os laboratórios, antes que os estudantes entrem nele, já ensinaram uma coisa fatal para a inteligência científica: que ciência é algo que acontece dentro daquele espaço. A ciência não começa com aparelhos. Ela começa com olhos, curiosidade e inteligência.

Sonho com uma escola que tenha a casa de morada da criança como seu laboratório. A casa é o seu espaço imediato. Ela está cheia de objetos e ações interessantes. Pensar a casa é pensar o mundo onde a vida de todo dia está acontecendo. Numa casa não poderia haver um currículo pronto porque a vida é imprevisível: não segue uma ordem lógica. Os saberes prontos ficariam guardados num lugar, como as ferramentas ficam guardadas numa caixa. As ferramentas são tiradas da caixa quando elas são necessárias para resolver problemas. Assim são os saberes: ferramentas. Ninguém aprende ferramenta para aprender ferramenta. O sentido da ferramenta é o seu uso na prática. O sentido de um saber é o seu uso na prática. Se não pode ser usado não tem sentido. Deve ser jogado fora.

E por falar nisso, a palavra "dígrafo" que todas as crianças têm de aprender, serve para que? Assim são os nossos programas, cheios de "dígrafos" sem sentido... Por isso as crianças não aprendem.

A CONCEPÇÃO BANCÁRIA DA EDUCAÇÃO COMO INSTRUMENTO DE OPRESSÃO: SEUS PRESSUPOSTOS, SUA CRÍTICA

Paulo Freire” Pedagogia do Oprimido”

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Quanto mais analisamos as relações educador-educandos, na escola, em qualquer de seus níveis, (ou fora dela), parece que mais nos podemos convencer de que estas relações apresentam um caráter especial e marcante – o de serem relações fundamentalmente narradoras, dissertadoras.

Narração de conteúdos que, por isto mesmo, tendem a petrificar-se ou a fazer-se algo quase morto, sejam valores ou dimensões concretas da realidade. Narração ou dissertação que implica num sujeito – o narrador – e em objetos pacientes, ouvintes – os educandos.

Há uma quase enfermidade da narração. A tônica da educação é preponderantemente esta – narrar, sempre narrar.

Falar da realidade como algo parado, estático, compartimentado e bem comportado, quando não falar ou dissertar sobre algo completamente alheio à experiência existencial dos educandos vem sendo, realmente, a suprema inquietação desta educação. A sua irrefreada ânsia. Nela, o educador aparece como seu indiscutível agente, como o seu real sujeito, cuja tarefa indeclinável é "encher” os educandos dos conteúdos de sua narração. Conteúdos que são retalhos da realidade desconectados da totalidade em que se engendram e em cuja visão ganhariam significação. A palavra, nestas dissertações, se esvazia da dimensão concreta que devia ter ou se transforma em palavra oca, em verbosidade alienada e alienante. Dai que seja mais som que significação e, assim, melhor seria não dizê-la.

Por isto mesmo é que uma das características desta educação dissertadora é a “sonoridade” da palavra e não sua força transformadora. Quatro vezes quatro, dezesseis; Pará capital Belém, que o educando fixa, memoriza, repete, sem perceber o que realmente significa quatro vezes quatro. O que verdadeiramente significa capital, na afirmação, Pará, capital Belém. Belém para o Pará e Pará para o Brasil.

A narração, de que o educador é o sujeito, conduz os educandos à memorização mecânica do conteúdo narrado. Mais ainda, a narração os transforma em “vasilhas”, em recipientes a serem “enchidos” pelo educador. Quanto mais vá “enchendo” os recipientes com seus “depósitos”, tanto melhor educador será. Quanto mais se deixem docilmente “encher”, tanto melhores educandos serão.

Desta maneira, a educação se torna um ato de depositar, em que os educandos são os depositários e o educador o depositante.

Em lugar de comunicar-se, o educador faz “comunicados” e depósitos que os educandos, meras incidências, recebem pacientemente, memorizam e repetem. Eis aí a concepção “bancária” da educação, em que a única margem de ação que se oferece aos educandos é a de receberem os depósitos, guardálos e arquivá-los. Margem para serem colecionadores ou

fichadores das coisas que arquivam. No fundo, porém, os grandes arquivados são os homens, nesta (na melhor das hipóteses) equivocada concepção “bancária” da educação. Arquivados, porque, fora da busca, fora da práxis, os homens não podem ser. Educador e educandos se arquivam na medida em que, nesta destorcida visão da educação, não há criatividade, não há transformação, não há saber. Só existe saber na invenção, na reinvenção, na busca inquieta, impaciente, permanente, que os homens fazem no mundo, com o mundo e com os outros. Busca esperançosa também.

Na visão “bancária” da educação, o “saber” é uma doação dos que se julgam sábios aos que julgam nada saber. Doação que se funda numa das manifestações instrumentais da ideologia da opressão – a absolutização da ignorância, que constitui o que chamamos de alienação da ignorância, segundo a qual esta se encontra sempre no outro.

O educador, que aliena a ignorância, se mantém em posições fixas, invariáveis. Será sempre o que sabe, enquanto os educandos serão sempre os que não sabem. A rigidez destas posições nega a educação e o conhecimento como processos de busca.

O educador se põe frente aos educandos como sua antinomia necessária. Reconhece, na absolutização da ignorância daqueles a razão de sua existência. Os educandos, alienados, por sua vez, à maneira do escravo na dialética hegeliana, reconhecem em sua ignorância a razão da existência do

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educador, mas não chegam, nem sequer ao modo do escravo naquela dialética, a descobrir-se educadores do educador.

Na verdade, como mais adiante discutiremos, a razão de ser da educação libertadora está no seu impulso inicial conciliador.

Daí que tal forma de educação implique na superação da contradição educador-educandos, de tal maneira que se façam ambos, simultaneamente, educadores e educandos.

Na concepção “bancária” que estamos criticando, para a qual a educação é o ato de depositar, de transferir, de transmitir valores e conhecimentos, não se verifica nem pode verificar-se esta superação. Pelo contrário, refletindo a sociedade opressora, sendo dimensão da “cultura do silêncio”, a “educação” “bancária” mantém e estimula a contradição.

Dai, então, que nela:a) o educador é o que educa; os educandos, os que são educados;b) o educador é o que sabe; os educandos, os que nãosabem;c) o educador é o que pensa; os educandos, os pensados;d) o educador é o que diz a palavra; os educandos, os que a escutam docilmente;e) o educador é o que disciplina; os educandos, osdisciplinados;f) o educador é o que opta e prescreve sua opção; oseducandos os que seguem a prescrição;g) o educador é o que atua; os educandos, os que têm a ilusão de que atuam, na atuação do

educador;h) o educador escolhe o conteúdo programático; oseducandos, jamais ouvidos nesta escolha, se acomodam a ele;i) o educador identifica a autoridade do saber com suaautoridade funcional, que opõe antagonicamente à liberdade dos educandos; estes devem

adaptar-se às determinações daquele;j) o educador, finalmente, é o sujeito do processo; oseducandos, meros objetos.Se o educador é o que sabe, se os educandos são os que nada sabem, cabe àquele dar,

entregar, levar, transmitir o seu saber aos segundos. Saber que deixa de ser de “experiência feito” para ser de experiência narrada ou transmitida.

Não é de estranhar, pois, que nesta visão “bancária” da educação, os homens sejam vistos como seres da adaptação, do ajustamento. Quanto mais se exercitem os educandos no arquivamento dos depósitos que lhes são feitos, tanto menos desenvolverão em si a consciência critica de que resultaria a sua inserção no mundo, como transformadores dele. Como sujeitos.

Quanto mais se lhes imponha passividade, tanto mais ingenuamente, em lugar de transformar, tendem a adaptar-se ao mundo, à realidade parcializada nos depósitos recebidos.

Na medida em que esta visão “bancária” anula o poder criador dos educandos ou o minimiza, estimulando sua ingenuidade e não sua criticidade, satisfaz aos interesses dos opressores: para estes, o fundamental não é o desnudamento do mundo, a sua transformação. O seu “humanitarismo”, e não humanismo, está em preservar a situação de que são beneficiários e que lhes possibilita a manutenção de sua falsa generosidade a que nos referimos no capítulo anterior. Por isto mesmo é que reagem, até instintivamente, contra qualquer tentativa de uma educação estimulante do pensar autêntico, que não se deixa emaranhar pelas voes parciais da realidade, buscando sempre os nexos que prendem um ponto a outro, ou um problema a outra.

Na verdade, o que pretendem os opressores “é transformar a mentalidade dos oprimidos e não a situação que os oprime”, e isto para que, melhor adaptando-os a esta situação, melhor os domine.

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Para isto se servem da concepção e da prática “bancárias” da educação, a que juntam toda uma ação social de caráter paternalista, em que os oprimidos recebem o nome simpático de assistidos”. São casos individuais, meros "marginalizados”, que discrepam da fisionomia geral da sociedade. “Esta é boa,

organizada e justa. Os oprimidos, como casos individuais, sãos patologia da sociedade sã, que precisa, por isto mesmo, ajustálos a ela, mudando-lhes a mentalidade de homens ineptos e preguiçosos”.

Como marginalizados, “seres fora de” ou “à margem de”, a solução para eles estaria em que fossem "integrados”, “incorporados” à sociedade sadia de onde um dia “partiram”, renunciando, como trânsfugas, a uma vida feliz...

Sua solução estaria em deixarem a condição de ser “seres fora de” e assumirem a de “seres dentro de”.

Na verdade, porém, os chamados marginalizados, que são os oprimidos, jamais estiveram fora de. Sempre estiveram dentro de. Dentro da estrutura que os transforma em “seres para outro”. Sua solução, pois, não está em “integrar-se", em “incorporar-se” a esta estrutura que os oprime, mas em transformá-la para que possam fazer-se “seres para si”.

Este não pode ser, obviamente, o objetivo dos opressores. Dai que a “educação bancária”, que a eles serve, jamais possa orientar-se no sentido da conscientização dos educandos.

Na educação de adultos, por exemplo, não interessa a esta visão “bancária” propor aos educandos o desvelamento do mundo, mas, pelo contrário, perguntar-lhes se “Ada deu o dedo ao urubu”, para depois dizer-lhes enfaticamente, que não, que “Ada deu o dedo à arara”.

A questão está em que, pensar autenticamente, é perigoso. O estranho humanismo desta concepção “bancária” se reduz à tentativa de fazer dos homens o seu contrário – o autômato, que é a negação de sua ontológica vocação de Ser Mais. O que não percebem os que executam a educação “bancária”, deliberadamente ou não (porque há um sem-número

de educadores de boa vontade, que apenas não se sabem a serviço da desumanização ao praticarem o "bancarismo”) é que nos próprios “depósitos”, se encontram as contradições, apenas revestidas por uma exterioridade que as oculta. E que, cedo ou tarde, os próprios “depósitos” podem provocar um confronto com a realidade em devenir e despertar os educandos, até então passivos, contra a sua “domesticação”.

A sua “domesticação” e a da realidade, da qual se lhes fala como algo estático, pode despertá-los como contradição de si mesmos e da realidade. De si mesmos, ao se descobrirem, por experiência existencial, em um modo de ser inconciliável com a sua vocação de humanizar-se. Da realidade, ao perceberem-na em suas relações com ela, como devenir constante.

A contradição problematizadora e libertadora da educação. Seus pressupostosÉ que, se os homens são estes seres da busca e se sua vocação ontológica é humanizar-se,

podem, cedo ou tarde, perceber a contradição em que a “educação bancária” pretende mantê-los e engajar-se na luta por sua libertação.

Um educador humanista, revolucionário, não há de esperar esta possibilidade. Sua ação, identificando-se, desde logo, com a dos educandos, deve orientar-se no sentido da humanização de ambos. Do pensar autêntico e não no sentido da doação, da entrega do saber. Sua ação deve estar infundida da profunda crença nos homens. Crença no seu poder criador.

Isto tudo exige dele que seja um companheiro dos educandos, em suas relações com estes.A educação “bancária”, em cuja prática se dá a inconciliação educador-educandos, rechaça

este companheirismo. E é lógico que seja assim. No momento em que o educador “bancário” vivesse a superação da contradição já não seria “bancário”. Já não faria depósitos. Já não tentaria domesticar. Já não prescreveria. Saber com os educandos, enquanto estes soubessem com ele, seria sua tarefa. Já não estaria a serviço da desumanização. A serviço da opressão, mas a serviço da libertação.

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A concepção “bancária” e a contradição educadoreducandoEsta concepção “bancária” implica, além dos interesses já referidos, em outros aspectos que

envolvem sua falsa visão dos homens. Aspectos ora explicitado, ora não, em sua prática.Sugere uma dicotomia inexistente homens-mundo. Homens simplesmente no mundo e não

com o mundo e com os outros. Homens espectadores e não recriadores do mundo. Concebe a sua consciência como algo especializado neles e não aos homens como “corpos conscientes”. A consciência como se

fosse alguma seção “dentro” dos homens, mecanicistamente compartimentada, passivamente aberta ao mundo que a irá “enchendo” de realidade. Uma consciência continente a receber permanentemente os depósitos que o mundo lhe faz, e que se vão transformando em seus conteúdos. Como se os homem fossem uma presa do mundo e este um eterno caça,dor daqueles, que tivesse por distração “enchê-los” de pedaços seus.

Para esta equivocada concepção dos homens, no momento mesmo em que escrevo, estariam “dentro” de mim, como pedaços do mundo que me circunda, a mesa em que escrevo, os livros, a xícara de café, os objetos todos que aqui estão, exatamente como dentro deste quarto estou agora.

Desta forma, não distingue presentificação à consciência de entrada, na consciência. A mesa em que escrevo, os livros, a xícara de café, os objetos que me cercam estão simplesmente presentes à minha consciência e não dentro dela. Tenho a consciência deles mas não os tenho dentro de mim. Mas, se para a concepção “bancária”, a consciência é, em sua relação com o mundo, esta “peça” passivamente escancarada a ele, a espera de que entre nela, coerentemente concluirá que ao educador não cabe nenhum outro papel que não o de disciplinar a entrada do mundo nos educandos. Seu trabalho será, também, o de imitar o mundo.

O de ordenar o que já se faz espontaneamente. O de “encher” os educandos de conteúdos. É o de fazer depósitos de “comunicados” – falso saber – que ele considera como verdadeiro saber. E porque os homens, nesta visão, ao receberem o mundo que neles entra, já são seres passivos, cabe à educação apassiválos mais ainda e adaptá-los ao mundo. Quanto mais adaptados, para a concepção “bancária”, tanto mais "educados”, porque adequados ao mundo.

Esta é uma concepção que, implicando numa prática, somente pode interessar aos opressores que estarão tão mais em paz, quanto mais adequados estejam os homens ao mundo. E tão mais preocupados, quanto mais questionando o mundo estejam os homens.

Quanto mais se adaptam as grandes maiorias às finalidades que lhes sejam prescritas pelas minorias dominadoras, de tal modo que careçam aquelas do direito de ter finalidades próprias, mais poderão estas minorias prescrever. A concepção e a prática da educação que vimos criticando se instauram como eficientes instrumentos para este fim. Dai que um dos seus objetivos fundamentais, mesmo que dele não estejam advertidos muitos do que a realizam, seja dificultar, em tudo, o pensar autêntico. Nas aulas verbalistas, nos métodos de avaliação dos “conhecimentos”, no chamado “controle de leitura”, na distância entre o educador e os educandos, nos critérios de promoção, na indicação bibliográfica, em tudo, há,sempre a conotação “digestiva” e a proibição ao pensar verdadeiro.

Entre permanecer porque desaparece, numa espécie de morrer para viver, e desaparecer pela e na imposição de sua presença, o educador “bancário” escolhe a segunda hipótese.

Não pode entender que permanecer é buscar ser, com os outros.É con-viver, simpatizar. Nunca sobrepor-se, nem sequer justapor-se aos educandos, des-simpatizar. Não há, permanência na hipertrofia. Mas, em nada disto pode o educador “bancário" crer.

Conviver, simpatizar implicam em comunicar-se, o que a concepção que informa sua prática rechaça e teme.

Não pode perceber que somente na comunicação tem sentido a vida humana. Que o pensar do educador somente ganha autenticidade na autenticidade do pensar dos educandos, mediatizados

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ambos pela realidade, portanto, na intercomunicação. Por isto, o pensar daquele não pode ser um pensar para estes nem a estes imposto. Dai que não deva ser um pensar no isolamento, na torre de marfim, mas na e pela comunicação, em torno, repitamos de uma realidade.

E, se o pensar só assim tem sentido, se tem sua fonte geradora na ação sobre o mundo, o qual mediatiza as consciências em comunicação, não será possível a superposição dos homens aos homens.

Esta superposição, que é uma das notas fundamentais da concepção “educativa” que estamos criticando, mais uma vez a situa como prática da dominação.

Dela, que parte de uma compreensão falsa dos homens, – reduzidos a meras coisas – não se pode esperar que provoque o desenvolvimento do que Fromm chama de biofilia, mas o desenvolvimento de seu contrário, a necrofilia.

“Mientras la vida (diz Fromm) se caracteriza por el crecimiento de una manera estructurada, funcional, el indivíduo necrófilo ama todo lo que no crece, todo lo que es mecánico. La persona necrófila es movida por un deseo de convertir lo orgánico en inorgánico, de mirar la vida mecanicamente, como si todas las personas vivientes fuezen cosas. Todos los procesos,

sentimientos y pensamientos de vida se transforman en cosas.La memoria y no la experiencia; tener y no ser es lo que cuenta. El invididuo necrófilo

puede realizar-se con un objeto – una flor o una persona – únicamente si lo posee; en consecuencia una amenaza a su posesión es una amenaza a él mismo, si pierde la posesión, pierde el contacto con el mundo”. E, mais adiante:

“Ama el control y en el acto de controlar, mata la vida”. A opressão, que é um controle esmagador, é necrófila. Nutre-se do amor à morte e não do amor à vida. A concepção “bancária”, que a ela serve, também o é. No momento mesmo em que se funda num conceito mecânico, estático, especializado da consciência e em que transforma por isto mesmo, os educandos em recipientes, em quase coisas, não

pode esconder sua marca necrófila. Não se deixa mover pelo ânimo de libertar tarefa comum de refazerem o mundo e de torná-la mais e mais humano.

Seu ânimo é justamente o contrário – o de controlar opensar e a ação, levando os homens ao ajustamento ao mundo.É inibir o poder de criar, de atuar. Mas, ao fazer isto, ao obstaculizar a atuação dos homens,

como sujeitos de sua ação, como seres de opção, frustra-os.Quando, porém, por um motivo qualquer, os homens se sentem proibidos de atuar, quando

se descobrem incapazes de usar suas faculdades, sofrem.Este sofrimento provém “do fato de se haver perturbado o equilíbrio humano” (Fromm).

Mas, o não poder atuar, que provoca o sofrimento, provoca também aos homens o sentimento de recusa à sua impotência. Tentam, então, “restabelecer a sua capacidade de atuar” (Fromm).

“Pode, porém, fazê-lo? E como?”, pergunta Fromm. “Um modo, responde, é submeter-se a uma pessoa ou a um grupo que tenha poder e identificar-se com eles. Por esta participaçãosimbólica na vida de outra pessoa, o homem tem a ilusão de que atua, quando, em realidade, não faz mais que submeter-se aos que atuam e converter-se em parte deles”.

Talvez possamos encontrar nos oprimidos este tipo de reação nas manifestações populistas. Sua identificação com lideres carismáticos, através de quem se possam sentir atuantes e, portanto, no uso de sua potência, bem como a sua rebeldia, quando de sua emersão ao processo histórico, estão envolvidas

por este ímpeto de busca de atuação de sua potência.Para as elites dominadoras, esta rebeldia, que é ameaça a elas, tem o seu remédio em mais

dominação – na repressão feita em nome, inclusive, da liberdade e no estabelecimento da ordem e da paz social. Paz social que, no fundo, não é outra senão a paz privada dos dominadores.

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Por isto mesmo é que podem considerar – logicamente, do seu ponto de vista – um absurdo “the violence of a strike by workers and (can) call upon the state in the same breath to use violence in putting down the strike”.

A educação como prática da dominação, que vem sendo objeto desta critica, mantendo a ingenuidade dos educandos, o que pretende, em seu marco ideológico, (nem sempre percebido por muitos dos que a realizam) é indoutriná-los no sentido de sua acomodação ao mundo da opressão.

Ao denunciá-la, não esperamos que as elites dominadoras renunciem à sua prática. Seria demasiado ingênuo esperá -lo.

Nosso objetivo é chamar a atenção dos verdadeiroshumanistas para o fato de que eles não podem, na busca da libertação, servir-se da

concepção “bancária”, sob pena de se contradizerem em sua busca. Assim como também não pode esta concepção tornar-se legado da sociedade opressora à sociedade revolucionária.

A sociedade revolucionária que mantenha a prática daeducação "bancária” ou se equivocou nesta anutenção ou se deixou "morder” pela

desconfiança e pela descrença nos homens. Em qualquer das hipóteses, estará ameaçada pelo espectro da reação.

Disto, infelizmente, parece que nem sempre estãoconvencidos os que se inquietam pela causa da libertação. É que, envolvidos pelo clima

gerador da concepção “bancária" e sofrendo sua influência, não chegam a perceber o seu significado ou a sua força desumanizadora. Paradoxalmente, então, usam o mesmo instrumento alienador, num esforço que pretendem libertador. E há até os que, usando o mesmo instrumento alienador, chamam aos que divergem desta prática de ingênuos ou sonhadores, quando – não de reacionários.

O que nos parece indiscutível é que, se pretendemos alibertação dos homens, não. podemos começar por aliená-los ou mantê-los alienados. A

libertação autêntica, que é a humanização em processo, não é uma coisa que se deposita nos homens. Não é uma palavra a mais, oca, mitificante. É práxis, que implica na ação e na reflexão dos homens sobre o mundo para transformá -lo.

Exatamente porque não podemos aceitar a concepção mecânica da consciência, que a vê como algo vazio a ser enchido, um dos fundamentos implícitos na visão “bancária” criticada, é que não podemos aceitar, também, que a ação libertadora se sirva das mesmas armas da dominação, isto é, da propaganda, dos slogans, dos “depósitos”.

A educação que se impõe aos que verdadeiramente se comprometem com a libertação não pode fundar-se numa compreensão dos homens como seres “vazios” a quem o mundo “encha” de conteúdos; não pode basear-se numa consciência especializada, mecanicistamente compartimentada, mas nos homens como “corpos conscientes” e na consciência como

consciência intencionada ao mundo. Não pode ser a do depósito de conteúdos, mas a da problematização dos homens em suas relações com o mundo.

Ao contrário da “bancária”, a educação problematizadora, respondendo à essência do ser da consciência, que é sua intencionalidade, nega os comunicados e existência à comunicação. Identifica-se com o próprio da consciência que é sempre ser consciência de, não apenas quando se intenciona a objetos mas também quando se volta sobre si mesma, o que

Jaspers chama de “cisão”. Cisão em que a consciência é consciência de consciência.Neste sentido, a educação libertadora, problematizadora, já não pode ser o ato de depositar,

ou de narrar, ou de transferir, ou de transmitir “conhecimentos” e valores aos educandos, meros pacientes, à maneira da educação “bancária”, mas um ato cognoscente. Como situação gnosiológica, em que o objeto cognoscível, em lugar de ser o término do ato cognoscente de um sujeito, é o mediatizador de sujeitos cognoscentes, educador, de um lado, educandos, de outro, a educação problematizadora coloca, desde logo, a exigência da superação da contradição educador-educandos.

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Sem esta, não é possível a relação dialógica, indispensável à cognoscibilidade dos sujeitos cognoscentes, em torno do mesmo objeto cognoscível.

O antagonismo entre as duas concepções, uma, a “bancária”, que serve à dominação; outra, a problematizadora, que serve à libertação, toma corpo exatamente aí. Enquanto a primeira, necessariamente, mantém a contradição educadoreducandos, a segunda realiza a superação.

Para manter a contradição, a concepção “bancária” nega a dialogicidade como essência da educação e se faz antidialógica; para realizar a superação, a educação problematizadora – situação gnosiológica – afirma a dialogicidade e se faz dialógica.

Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo

Em verdade, não seria possível à educação problematizadora, que rompe com os esquemas verticais característicos da educação bancária, realizar-se como prática da liberdade, sem superar a contradição entre o educador e os educandos. Como também não lhe seria possível fazê-lo fora do diálogo.

É através deste que se opera a superação de que resulta um termo novo: não mais educador do educando do educador, mas educador-educando com educando-educador.

Desta maneira, o educador já não é o que apenas educa, mas o que, enquanto educa, é educado, em diálogo com o educando que, ao ser educado, também educa. Ambos, assim, se tornam sujeitos do processo em que crescem juntos e em que os “argumentos de autoridade” já, não valem. Em que, para ser-se, funcionalmente, autoridade, se necessita de estar sendo com as liberdades e não contra elas.

Já agora ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo: os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo. Mediatizados pelos objetos cognoscíveis que, na prática “bancária”, são possuídos pelo educador que os descreve ou os deposita nos educandos passivos.

Esta prática, que a tudo dicotomiza, distingue, na ação do educador, dois momentos. O primeiro, em que ele, na sua biblioteca ou no seu laboratório, exerce um ato cognoscente frente ao objeto cognoscível, enquanto se prepara para suas aulas. O segundo, em que, frente aos educandos, narra ou disserta a respeito do objeto sobre o qual exerceu o seu ato cognoscente.

O papel que cabe a estes, como salientamos nas páginas precedentes, é apenas o de arquivarem a narração ou os depósitos que lhes faz o educador. Desta forma, em nome da “preservação da cultura e do conhecimento”, não há conhecimento, nem cultura verdadeiros.

Não pode haver conhecimento, pois os educandos não são chamados a conhecer, mas a memorizar o conteúdo narrado pelo educador. Não realizam nenhum ato cognoscitivo, uma vez que o objeto que deveria ser posto como incidência de seu ato cognoscente é posse do educador e não mediatizador da reflexão critica de ambos.

A prática problematizadora, pelo contrário, não distingue estes momentos no que fazer do educador-educando. Não é sujeito cognoscente em um, e sujeito narrador do conteúdo conhecido em outro.

É sempre um sujeito cognoscente, quer quando se prepara, quer quando se encontra dialogicamente com os educandos.

O objeto cognoscível, de que o educador bancário se apropria, deixa de ser, para ele, uma propriedade sua, para ser a incidência da reflexão sua e dos educandos.

Deste modo, o educador problematizador re-faz, constantemente, seu ato cognoscente, na cognoscibilidade dos educandos. Estes, em lugar de serem recipientes dóceis de depósitos, são agora investigadores críticos, em diálogo com o educador, investigador crítico, também.

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Na medida em que o educador apresenta aos educandos, como objeto de sua “ad-miração”, o conteúdo, qualquer que ele seja, do estudo a ser feito, “re-admira” a “ad-miração” que antes fez, na “ad-miração” que fazem os educandos.

Pelo fato mesmo de esta prática educativa constituir-se em uma situação gnosiológica, o papel do educador problematizador é proporcionar, com os educandos, as condições em que se dê a superação do conhecimento no nível da “doxa” pelo verdadeiro conhecimento, o que se dá, no nível do “logos”.

Assim é que, enquanto a prática bancária, como enfatizamos, implica numa espécie de anestesia, inibindo o poder criador dos educandos, a educação problematizadora, de caráter autenticamente reflexivo, implica num constante ato de desvelamento da realidade. A primeira pretende manter a imersão; a segunda, pelo contrário, busca a emersão das consciências, de que resulte sua inserção crítica na realidade.

Quanto mais se problematizam os educandos, como seres no mundo e com o mundo, tanto mais se sentirão desafiados. Tão mais desafiados, quanto mais obrigados a responder ao desafio. Desafiados, compreendem o desafio na própria ação de captá-lo. Mas, precisamente porque captam o desafio como um problema em suas conexões com outros, num plano de totalidade e não como algo petrificado, a compreensão resultante tende a tornar-se crescentemente crítica, por isto, cada vez mais desalienada.

Através dela, que provoca novas compreensões de novos desafios, que vão surgindo no processo da resposta, se vão reconhecendo, mais e mais, como compromisso. Assim é que se dá, o reconhecimento que engaja.

A educação como prática da liberdade, ao contrário naquela que é prática da dominação, implica na negação do homem abstrato, isolado, solto, desligado do mundo, assim também na negação do mundo como uma realidade ausente dos homens.

A reflexão que propõe, por ser autêntica, não é sobre este homem abstração nem sobre este mundo sem homem, mas sobre os homens em suas relações com o mundo. Relações em que consciência e mundo se dão simultaneamente. Não há uma consciência antes e um mundo depois e vice-versa.

“A consciência e o mundo, diz Sartre, se dão ao mesmo tempo: exterior por essência à consciência, o mundo é, por essência, relativo a ela”.

Por isto é que, certa vez, num dos “círculos de cultura” do trabalho que se realiza no Chile, um camponês a quem a concepção bancária classificaria de “ignorante absoluto”, declarou, enquanto discutia, através de uma “codificação”, o conceito antropológico de cultura: “Descubro agora que não há mundo sem homem”. E quando o educador lhe disse: – “Admitamos, absurdamente, que todos os homens do mundo morressem, mas ficasse a terra, ficassem as árvores, os pássaros, os animais, os rios, o mar, as estrelas, não seria tudo isto mundo?”

“Não! respondeu enfático, faltaria quem dissesse: Isto é mundo”. O camponês quis dizer, exatamente, que faltaria a consciência do mundo que, necessariamente, implica no mundo da consciência.

Na verdade, não há eu que se constitua sem um não-eu. Por sua vez, o não-eu constituinte do eu se constitui na constituição do eu constituído. Desta forma, o mundo constituinte da consciência se torna mundo da consciência, um percebido objetivo seu, ao qual se intenciona. Daí, a afirmação de Sartre, anteriormente citada: “consciência e mundo se dão ao mesmo tempo”.

Na medida em que os homens, simultaneamente refletindo sobre si e sobre o mundo, vão aumentando o campo de sua percepção, vão também dirigindo sua “mirada” a “percebidos” que, até então, ainda que presentes ao que Husserl chama de “visões de fundo”, não se destacavam, “não estavam postos por si”.

Desta forma, nas suas “visões de fundo”, vão destacando percebidos e voltando sua reflexão sobre eles.

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O que antes já existia como objetividade, mas não erapercebido em suas implicações mais profundas e, às vezes, nem sequer era percebido, se

“destaca” e assume o caráter de problema, portanto, de desafio.A partir deste momento, o “percebido destacado” já é objeto da “admiração” dos homens, e,

como tal, de sua ação e de seu conhecimento.Enquanto, na concepção “bancária” – permita-se-nos a repetição insistente – o educador vai

“enchendo” os educandos de falso saber, que são os conteúdos impostos, na prática problematizadora, vão os educandes desenvolvendo o seu poder de captação e de compreensão do mundo que lhes aparece, em suas relações com ele, não mais como uma realidade estática, mas como uma realidade em transformação, em processo.

A tendência, então, do educador-educando como dos educandos-educadores é estabelecerem uma forma autêntica de pensar e atuar. Pensar-se a si mesmos e ao mundo, simultaneamente, sem dicotomizar este pensar da ação.

A educação problematizadora se faz, assim, um esforço permanente através do qual os homens vão percebendo, criticamente, como estão sendo no mundo com que e em que se acham.

Se, de fato, não é possível entendê-los fora de suas relações dialéticas com o mundo, se estas existem independentemente de se eles as percebem ou não, e independentemente de como as percebem, é verdade também que a sua forma de atuar, sendo esta ou aquela, é função, em grande parte, de como se percebam no mundo.

Mais uma vez se antagonizam as duas concepções e as duas práticas que estamos analisando. A “bancária”, por óbvios motivos, insiste em manter ocultas certas razões que explicam a maneira como estão sendo os homens no mundo e, para isto, mistifica a realidade. A problematizadora, comprometida com a libertação, se empenha na desmitificação. Por isto, a primeira nega o diálogo, enquanto a segunda tem nele a indispensával relação ao ato cognoscente, desvelador da realidade.

A primeira “assistencializa”; a segunda, criticiza. A primeira, na medida em que, servindo à dominação, inibe a criatividade e, ainda que não podendo matar a intencionalidade da consciência como um desprender-se ao mundo, a “domestica”, nega os homens na sua vocação ontológica e histórica de humanizar-se. A segunda, na medida em que, servindo à libertação, se funda na criatividade e estimula a reflexão e a ação verdadeiras dos homens sobre a realidade, responde à sua vocação, como seres que não podem autenticarse

fora da busca e ria transformação criadora.

O homem como um ser inconcluso, consciente de sua inconclusão, e seu permanente movimento de busca do ser mais

A concepção e a prática “bancárias”, imobilistas, “fixistas”, terminam por desconhecer os homens como seres históricos, enquanto a problematizadora parte exatamente do caráter histórico e da historicidade dos homens. Por isto mesmo é que os reconhece como seres que estão sendo, como seres inacabados, inconclusos, em e com uma realidade, que sendo histórica também, é igualmente inacabada. Na verdade, diferentemente dos outros animais, que são apenas inacabados, mas não são históricos, os homens se sabem inacabados. Têm a consciência de sua inconclusão. Aí se encontram as raízes da educação mesma, como manifestação exclusivamente humana. Isto é, na inconclusão dos homens e na consciência que dela têm. Daí que seja a educação um que-fazer permanente. Permanente, na razão da inconclusão dos homens e do devenir da realidade.

Desta maneira, a educação se re-faz constantemente na práxis. Para ser tem que estar sendo. Sua “duração” – no sentido bergsoniano do termo – como processo, está no jogo dos contrários permanência-mudança.

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Enquanto a concepção “bancária” dá ênfase à permanência, a concepção problematizadora reforça a mudança. Deste modo, a prática “bancária", implicando no imobilismo a que fizemos referência, se faz reacionária, enquanto a concepção problematizadora que, não aceitando um presente “bem comportado”, não aceita igualmente um futuro

pré -dado, enraizando-se no presente dinâmico, se faz revolucionária.A educação problematizadora, que não é fixismo reacionária, é futuridade revolucionária.

Daí que seja profética e, como tal, esperançosa. Daí que corresponda à condição dos homens como seres históricos e à sua historicidade. Daí que se identifique com eles como seres mais além de si mesmos – como “projetos” – como seres que caminham para frente, que olham para frente; como seres a quem o imobilismo ameaça de morte; para quem o olhar para traz não deve ser uma forma nostálgica de querer voltar, mas um modo de melhor conhecer o que está sendo, para melhor construir o futuro. Dai que se identifique com o movimento permanente em que se acham inscritos os homens, como seres que se sabem inconclusos; movimento que é histórico e que tem o seu ponto de partida, o seu sujeito, o seu objetivo.

O ponto de partida deste movimento está nos homens mesmos. Mas, como não há homens sem mundo, sem realidade, o movimento parte das relações homens-mundo. Dai que este ponto de partida esteja sempre nos homens no seu aqui e no seu agora que constituem a situação em que se encontram ora imersos, ora emersos, ora insertados.

Somente a partir desta situação, que lhes deter-mina a própria percepção que dela estão tendo, é que podem mover-se. E, para fazê-lo, autenticamente, é necessário, inclusive, que a situação em que estão não lhes apareça como algo fatal e intransponível, mas como uma situação desafiadora, que apenas os limita.

Enquanto a prática “bancária”, por tudo o que dela dissemos, enfatiza, direta ou indiretamente, a percepção fatalista que estejam tendo os homens de sua situação, a prática problematizadora, ao contrário, propõe aos homens sua situação como problema. Propõe a eles sua situação como incidência de seu ato cognoscente, através do qual será possível a superação da percepção mágica ou ingênua que dela tenham. A percepção ingênua ou mágica da realidade da qual resultava a postura fatalista cede seu lugar a uma percepção que é capaz de perceber-se. E porque é capaz de perceber-se enquanto percebe a realidade que lhe parecia em si inexorável, é capaz de objetivá-la. Desta forma, aprofundando a tomada de consciência da situação, os homens se “apropriam” dela como realidade histórica, por isto mesmo, capaz de ser trans-formada por eles.

O fatalismo cede, então, seu lugar ao ímpeto de transformação e de busca, de que os homens se sentem sujeitos. Seria, realmente, uma violência, como de fato é, que os homens, seres históricos e necessariamente inseridos num movimento de busca, com outros hom ens, não fossem o sujeito de seu próprio movimento.

Por isto mesmo é que, qualquer que seja a situação em que alguns homens proíbam aos outros que sejam sujeitos de sua busca, se instaura como situação violenta. Não importa os meios usados para esta proibição. Fazê-los objetos é aliená-los de suas decisões, que são transferidas a outro ou a outros.

Este movimento de busca, porém, só se justifica na medida em que se dirige ao ser mais, à humanização dos homens. E esta, como afirmamos no primeiro capítulo, é sua vocação histórica, contraditada pela desumanização que, não sendo vocação, é viabilidade, constatável na história. E, enquanto viabilidade, deve aparecer aos homens como desafio e não como freio ao sto de buscar.

Esta busca do ser mais, porém, não pode realizar-se ao isolamento, no individualismo, mas na comunhão, na solidariedade dos existires, dai que seja impossível dar-se nas relações antagônicas entre opressores e oprimidos. Ninguém pode ser, autenticamente, proibido que os outros sejam. Esta é uma exigência radical. O ser mais que se busque no individualismo conduz ao ter mais egoísta, forma de ser menos. De desumanização. Não que não seja fundamental – repitamos – ter para ser.

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Precisamente porque é, não pode o Ter de alguns converter-se na obstaculização ao ter dos demais, robustecendo o poder dos primeiros, com o qual esmagam os segundos, na sua escassez de poder.

Para a prática "bancária”, o fundamental é, no máximo, amenizar esta situação, mantendo, porém, as consciências imersas nela. Para a educação problematizadora, enquanto um que-fazer humanista e libertador, o importante está, em que os homens submetidos à dominação, lutem por sua emancipação.

Por isto é que esta educação, em que educadores e educandos se fazem sujeitos do seu processo, superando o intelectualismo alienante, superando o autoritarismo do educador “bancário”, supera também a falsa consciência do mundo.

O mundo, agora, já não é algo sare que se fala com falsas palavras, mas o mediatizador dos sujeitos da educação, a incidência da ação transformadora dos homens, de que resulte a sua humanização.

Esta é a razão por que a concepção problematizadora da educação não pode servir ao opressor. Nenhuma “ordem” opressora suportaria que os oprimidos todos passassem a dizer: “Por quê?”. Se esta educação somente pode ser realizada, em termos sistemáticos, pela sociedade que fez a revolução, isto não significa que a liderança revolucionária espere a chegada ao poder para aplicá-la. No processo revolucionário, a liderança não pode ser “bancária”, para depois deixar de sê-lo.

A UNIVERSIDADE PÚBLICA SOB NOVA PERSPECTIVAMarilena Chauí

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I.A universidade é uma instituição social e como tal exprime de maneira determinada a estrutura e o modo de funcionamento da sociedade como um todo. Tanto é assim que vemos no interior da instituição universitária a presença de opiniões, atitudes e projetos conflitantes que exprimem divisões e contradições da sociedade como um todo. Essa relação interna ou expressiva entre universidade e sociedade é o que explica, aliás, o fato de que, desde seu surgimento, a universidade pública sempre foi uma instituição social, isto é, uma ação social, uma prática social fundada no reconhecimento público de sua legitimidade e de suas atribuições, num princípio de diferenciação, que lhe confere autonomia perantre outras instiuições sociais, e estruturada por ordenamentos, regras, normas e valores de reconhecimento e legitimidade internos a ela. A legitimidade da universidade moderna fundou-se na conquista da idéia de autonomia do saber em face da religião e do Estado, portanto, na idéia de um reconhecimento guiado por sua própria lógica, por necessidades imanentes a ele, tanto do ponto de vista de sua invenção ou descoberta como de sua transmissão. Em outras palavras, sobretudo depois da Revolução Francesa, a universidade concebe-se a si mesma como uma instituição republicana e, portanto, pública e laica. A partir das revoluções sociais do Século XX e com as lutas sociais e políticas desencadeadas a partir delas a educação e a cultura passaram a ser concebidas como constitutivas da cidadania e, portanto, como direitos dos cidadãos, fazendo com que, além da vocação republicana, a universidade se tornasse também uma instituição social inseparável da idéia de democracia e de democratização do saber: seja para realizar essa idéia, seja para opor-se a ela, no decorrer de Século XX a instituição universitária não pôde furtar-se à referência à democracia como uma idéia reguladora. Por outro lado, a contradição entre o ideal democrático de igualdade e a realidade da divisão e luta de classes, obrigou a universidade a tomar posição diante do ideal socialista.

Vista como uma instituição social cujas mudanças acompanham as transformações sociais, econômicas e políticas, e como instituição social de cunho republicano e democrático, a relação entre universidade e Estado também não pode ser tomada como relação de exterioridade, pois o caráter republicano e democrático da universidade é determinado pela presença ou ausência da prática republicana e democrática do Estado. Em outras palavras, a universidade como instituição social diferenciada e autônoma só é possível em um Estado republicano e democrático.

Postos os termos desta maneira, poderia supor-se que, em última instância, a universidade, mais do que determinada pela estrutura da sociedade e do Estado, seria antes um reflexo deles. Não é, porém, o caso. É exatamente por ser uma instituição social diferenciada e definida por sua autonomia intelectual que a universidade pode relacionar-se como o todo da sociedadee com o Estado de maneira conflituosa, dividindo-se internamente entre os que são favoráveis e os que são contráriosà maneira como a sociedade de classe e o Estado reforçam a divisão e a exclusão sociais, impedem a concretização republicana da instituição universitária e suas possibilidades democráticas.

Se essas observações tiverem alguma verdade, elas poderão nos ajudar a enfrentar com mais clareza a mudança sofrida por nossa universidade pública nos últimos anos, particularmente como a reforma do Estado realizada no último governo da república. De fato, essa reforma, ao definir os setores que compõem o Estado, designou um desses setores como Setor de Serviços não exclusivos do Estado e nele colocou a educação, a saúde e a cultura. Essa localização da educação no setor de serviços não exclusivos do Estado significou: 1) que a educação deixou de ser concebida como um direito e passou a ser considerada um serviço; 2) que a educação deixou de ser considerada um serviço público e passou a ser considerada um serviço que pode ser privado ou privatizado. Mas não é só isso. A reforma do Estado definiu a universidade como uma organização social e não como uma instituição social.

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Uma organizaçãoA difere de uma instituição por definir-se por uma prática social determinada por sua instrumentalidade: está referida ao conjunto de meios (administrativos) particulares para obtenção de um objetivo particular. Não está referida a ações articuladas às idéias de reconhecimento externo e interno, de legitimidade interna e externa, mas a operações definidas como estratégias balizadas pelas idéias de eficácia e de sucesso no emprego de determinados meios para alcançar o objetivo particular que a define. Por ser uma administração, é regida pelas idéias de gestão, planejamento, previsão, controle e êxito. Não lhe compete discutir ou questionar sua própria existência, sua função, seu lugar no interior da luta de classes, pois isso que para a instituição social universitária é crucial, é, para a organização, um dado de fato. Ela sabe (ou julga saber) por que, para que e onde existe.

A instituição social aspira à universalidade. A organização sabe que sua eficácia e seu sucesso dependem de sua particularidade. Isso significa que a instituição tem a sociedade como seu princípio e sua referência normativa e valorativa, enquanto a organização tem apenas a si mesma como referência, num processo de competição com outras que fixaram os mesmos objetivos particulares. Em outras palavras, a instituição se percebe inserida na divisão social e política e busca definir uma universalidade (ou imaginária ou desejável) que lhe permita responder às contradições impostas pela divisão. Ao contrário, a organização pretende gerir seu espaço e tempo particulares aceitando como dado bruto sua inserção num dos pólos da divisão social, e seu alvo não é responder às contradições e sim vencer a competição com seus supostos iguais.

Como foi possível passar da idéia da universidade como instiutição social à sua definição como organização prestadora de serviços?

A forma atual do capitalismo se caracteriza pela fragmentação de todas as esferas da vida social, partindo da fragmentação da produção, da dispersão espacial e temporal do trabalho, da destruição dos referenciais que balizavam a identidade de classe e as formas de luta de classes. A sociedade aparece como uma rede móvel, instável, efêmera de organizações particulares definidas por estratégias particulares e programas particulares, competindo entre si. Sociedade e Natureza são reabsorvidas uma na outra e uma pela outra porque ambas deixaram de ser um princípio interno de estruturação e diferenciação das ações naturais e humanas para se tornarem, abstratamente, “meio ambiente”; e “meio ambiente” instável, fluido, permeado por um espaço e um tempo virtuais que nos afastam de qualquer densidade material; “meio ambiente” perigoso, ameaçador e ameaçado, que deve ser gerido, programado, planejado e controlado por estratégias de intervenção tecnológica e jogos de poder. Por isso mesmo, a permanência de uma organização depende muito pouco de sua estrutura interna e muito mais de sua capacidade de adaptar-se celeremente a mudanças rápidas da superfície do “meio ambiente”. Donde o interesse pela idéia de flexibilidade, que indica a capacidade adaptativa a mudanças contínuas e inesperadas.

A visão organizacional da universidade produziu aquilo que, segundo Freitag (Le naufrage de l’université), podemos denominar como universidade operacional. Regida por contratos de gestão, avaliada por índices de produtividade, calculada para ser flexível, a universidade operacional está estruturada por estratégias e programas de eficácia organizacional e, portanto, pela particularidade e instabilidade dos meios e dos objetivos. Definida e estruturada por nosmas e padrões inteiramente alheios ao conhecimento e à formação intelectual, está pulverizada em micro organizações que ocupam seus docentes e curvam seus estudantes a exigências exteriores ao trabalho intelectual. A heteronomia da universidade autônoma é visível a olho nu: o aumento insano de horas-aula, a diminuiçãodo tempo para mestrados e doutorados, a avaliação pela quantidade de publicações, colóquios e congressos, a multiplicação de comissões e relatórios, etc.

A A distinção entre instituição social e organização social é de inspiração francfurtiana, e é feita por Michel Freitag em Le naufrage de l’université, Paris, Editions de la Découverte, 1996.

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Nela, a docência é entendida como transmissão rápida de conhecimentos, consignados em manuais de fácil leitura para os estudantes, de preferência, ricos em ilustrações e com duplicata em CDs. O recrutamento de professores é feito sem levar em consideração se dominam ou não o campo de conhecimentos de sua disciplina e as relações entre elas e outras afins – o professor é contratado ou por ser um pesquisador promissor que se dedica a algo muito especializado, ou porque, não tendo vocação para pesquisa, aceita ser escorchado e arrochado por contratos de trabalho temporários e precários, ou melhor, “flexíveis”. A docência é pensada como habilitação rápida para graduados, que precisam entrar rapidamente num mercado de trabalho do qual serão expulsos em poucos anos, pois tornam-se, em pouco tempo, jovens obsoletos e descartáveis; ou como correia de transmissão entre pesquisadores e treino para novos de pesquisadores. Transmissão e adestramento. Desapareceu, portanto, a marca essencial da docência: a formação.

Por sua vez, a pesquisa segue o padrão organizacional. Numa organização, uma “pesquisa” é uma estratégia de intervenção e de controle de meios ou instrumentos para a consecução de um objetivo delimitado. Em outras palavras, uma “pesquisa” é um “survey” de problemas, dificuldades e obstáculos para a realização de um objetivo, e um cálculo de meios para soluções parciais e locais para problemas e obstáculos locais. O survey recorta a realidade de maneira a focalizar apenas o aspecto sobre o qual está destinada a intervenção imediata e eficaz. Em outras palavras, o survey opera por fragmentação. Numa organização, portanto, pesquisa não é conhecimento de alguma coisa, mas posse de instrumentos para intervir e controlar alguma coisa. Por isso mesmo, numa organização não há tempo para reflexão, a crítica, o exame de conhecimentos instituídos, sua mudança ou sua superação. Numa organização, a atividade cognitiva não tem como nem por que realizar-se. Em contrapartida, no jogo estratégico da competição do mercado, a organização se mantém e se firma se for capaz de propor áreas de problemas, dificuldades, obstáculos sempre novos, o que é feito pela fragmentação de antigos problemasem novíssimos micro-problemas, sobre os quais o controle parece ser cada vez maior. A fragmentação, condição de sobrevida da organização, torna-se real e propõe a especialização como estratégia principal e entende por “pesquisa” a delimitação estratégica de um campo de intervenção e controle. É evidente que a avaliação desse trabalho só pode ser feita em termos compreensíveis para uma organização, isto é, em termos de custo-benefício, pautada a idéia de produtividade, que avalia em quanto tempo,com que custo e quanto foi produzido. Reduzida a uma organização, a universidade abandona a formação e a pesquisa para lançar-se na fragmentação competitiva. Mas o que ela faz? Porque está privatizada e a maior parte de suas pesquisas é determinada pelas exigências de mercado impostas pelos financiadores. Isso significa que a universidade pública produz um conhecimento destinado à apropriação privada. Essa apropriação, aliás, é inseparável da mudança profunda sofrida pelas ciências em sua relaçãocom a prática.

De fato, até os anos 1940, a ciência era uma investigação teórica com aplicações práticas. Sabemos, porém, que as mudanças no modo de produção capitalista e na tecnologia transformaram duplamente a ciência: em primeiro lugar, ela deixou de ser a investigação de uma realidade externa ao investigador para tornar-se a construção da própria realidade do objeto científico por meio de experimentos e de constructos lógico-matemáticos – como escreveu um filósofo, a ciência tornou-se manipulação de objetos construídos por ela mesma; em segundo lugar e, como conseqüência, ela se tornou uma força produtiva e, comotal inserida na lógica do modo de produção capitalista. A ciência deixou de ser teoria com aplicação prática e tornou-se um componente do próprio capital. Donde as novas formas de financiamento das pesquisas, a submissão delas às exigências do próprio capital e a transformaçãoda universidade numa organizaçãoou numa entidade operacional

II. Tomada sob a perspectiva operacional, a universidade pública corre o risco de passar por uma modernização que a faça contemporânea do Século XXI, sem que se toque nas causas que deram origem a esse modelo universitário. Desse desejo de modernização acrítico e pouco reflexivo, são sinais duas idéias apresentadas com insistência crescente pelos organismos internacionais que

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subsidiam e subvencionam universidades públicas. A primeira idéia é a de sociedade do conhecimento; a segunda, uma nova concepção da educação permanente ou continuada.

A transformação do capital e da ciência, a que nos referimos acima, articulada às mudanças tecnológicas referentes à circulação da informação produziram a idéia de sociedade do conhecimento, na qual o valor mais importante é o uso intensico e competitivo dos conhecimentos.

Mas o que significa exatamente sociedade do conhecimento?Ao se tornarem forças produtivas, o conhecimento e a informação passaram a compor o

próprio capital, que passa a depender disso para sua acumulação e reprodução. Na medida em que, na forma atual do capitalismo, a hegemonia econômica pertenceao capital financeiro e não ao capital produtivo, a informação prevalece sobre o próprio conhecimento, uma vez que o capital financeiro opera com riquezas puramente virtuais cuja existência se reduz à própria informação. Entre outros efeitos, essa situação produz um efeito bastante preciso: o poder econômico se baseia na posse de informações e, portanto, essas se tornam secretas e constituem um campo de competição econômica e militar sem precedentes, ao mesmo tempo em que, necessariamente, bloqueiam poderes democráticos, os quais se baseiam no direito à informação, tanto o direito de obtê-las como o de produzi-las e fazê-las circular socialmente. Em outras palavras, a assim chamada sociedade do conhecimento, do ponto de vista da informação, é regida pela lógica do mercado (sobretudo o financeiro), de sorte que ela não é propícia nem favorável à ação política da sociedade civil e ao desenvolvimento efetivo de informações e conhecimentos necessários à vida social e cultural. Em resumo: a noção de sociedade do conhecimento, longe de indicar uma possibilidade de grande avanço e desenvolvimento autônomo das universidades enquanto instituições sociais comprometidas com a vida de suas sociedades e articuladas a poderes e direitos democráticos, indica o contrário, isto é, tanto a heteronomia universitária (enquanto a universidade produz conhecimentos destinados ao aumento de informações para o capital financeiro, submentendo-se às suas necessidades e à sua lógica) como a irrelevância da atividade universitária (quando suas pesquisas são autonomamente definidas ou quando procuram responder às demandas sociais e políticas de suas sociedades). O sinal da heteronomia é claro, por exemplo, na área das chamadas pesquisas básicas nas universidades latino-americanas, nas quais os objetos e métodos de pesquisa são determinados pelos vínculos com grandes centros de pesquisa dos países que possuem a hegemonia econômica e militar, pois tais vínculos são postos tanto como condição para o financiamento das pesquisas quanto como instrumentos de reconhecimento acadêmico internacional. O sinal da irrelevância, por outro lado, aparece claramente na deterioração e no desmantelamento das universidades públicas, consideradas cada vez mais um peso para o Estado (donde o avanço da privatização, da terceirização e da massificação) e um elemento perturbador da ordem econômica (donde a desmoralização crescente do trabalho universitário público).

Um outro aspecto que tem sido muito enfatizado pelos organismos internacionais que discutem o ensino superior é que a sociedade do conhecimento é inseparável da velocidade, isto é, a acentuada redução do tempo entre a aquisição de um conhecimento e sua aplicação tecnológica, a ponto dessa aplicação acabar determinando o conteúdo da própria investigação científica. Fala-se numa explosão do conhecimento, quantitativa e qualitativa, tanto no interior das disciplinas clássicas como com a criação de disciplinas novas e novas áreas de conhecimento. Segundo alguns autores, o conhecimento levou 1.750 anos para duplicar-se pela primeira vez, no início da era cristã; depois, passou a duplicar-se a cada 150 anos, depois a cada 50 anos e estima-se que, a partir de 2000, duplicará a cada 73 dias a afirma-se que a cada 4 anos duplica-se a quantidade de informação disponível no mundo.

No entanto, penso que é importante observar o seguinte. Penso que se poderia acrescentar aqui: as cifras sobre a quantidade e a velocidade dos conhecimentos, as cifras provenientes da publicação de artigos nos quais são apresentadas descobertas científicas, pode levar-nos ainda a uma outra reflexão, qual seja: a quantidade de descobertas implicou numa mudança na definição de uma

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ciência? Em outras palavras, a química, a matemática, a biologia e a história (para ficarmos com os exemplos mais freqüentes) foram redefinidas em termos de seus objetos, métodos, procedimentos, de tal maneira que poderíamos dizer, por exemplo, que, hoje, a mudança epistemológica na química equivaleria à mudança da alquimia para a química no século XVII? Ou que, hoje, a mudança epistemológica na história equivaleria àquela que, no século XIX, rompeu com a tradição historiográfica de narrativa dos memorabilia, levou a separar natureza e cultura, a considerar a historicidade como o modo de ser do homem e a buscar uma solução para o tema clássico (que define a história desde Heródoto e Tucídides) da alternativa entre contingência e necessidade? Ou ainda: sabemos que a mudança epistemológica fundamental entre a ciência clássica e a contemporânea (século XX) encontra-se, de um lado, no fato de que a primeira julgava alcançar as coisas tais como são em si mesmas enquanto a segunda não titubeia em tornar seus objetos como constructos, e, de outro, no fato de que a ciência clássica julgava operar com as idéias de ordem e conexão causais necessárias enquanto a ciência contemporânea tende abandonar a idéia de leis causais e a elaborar noções como as de probabilidade, regularidade, freqüência, simetria, etc. Ao falar em explosão do conhecimento e em explosão epistemológica, podemos dizer que a sociedade do conhecimento introduziu mudanças epistemológicas de tal monta que transformou as ciências? Houve mudança na estrutura das ciências nos últimos 30/40 anos?

Essas perguntas são suscitadas por dois motivos principais: 1) o fato, por exemplo, de que a química descubra novos elementos ou que a matemática desenvolva novos teoremas poderia ser considerado simplesmentecomo aumento quantitativo dos conhecimentos, cujos fundamentos não mudaram nos últimos 30/40 anos, aumento quantitativo decorrente tanto de novas tecnologias usadas nas pesquisas quanto do aumento do número de pesquisadores no mundo inteiro; 2) a quantidade de publicações precisa ser tomada cum grano salis, pois sabemos que essa quantidade pode exprimir pouca qualidade e pouca inovação porque: a) os chamados processos de avaliação da produção acadêmica, dos quais dependem a conservação do emprego, a ascenção na carreira e a obtenção de financiamento de pesquisas, são baseados na quantidade de publicação de artigos e do comparecimento a congressos e simpósios; b) a quantidade de “pontos” obtidos por um pesquisador também depende de que consiga publicar seus artigos nos periódicos científicos definidos hierarquicamente pelo ranking; c) os grandes centros de pesquisa só conseguem financiamentos públicos e privados se continuamente “provarem” que estão alcançando novos conhecimentos, uma vez que a avaliação deixou cada vez mais de ser feita pelos pares e passou a ser determinada pelo critério da eficácia e da competitividade (outro sinal de nossa heteronomia). Essas perguntas também se referem a um problema de fundo, qual seja, a mudança imposta ao tempo do trabalho intelectual e científico.

Sabemos que uma das características mais marcantes da cultura contemporânea é o que David Harvey denominou como compressão espaço-temporal.

De fato, examinando a condição pós-moderna, David Harvey (A condição pós-moderna, São Paulo, Loyola, 1992) analisa os efeitos da acumulação flexível do capital, isto é, a fragmentação e dispersão da produção econômica, a hegemonia do capital financeiro, a rotatividade extrema da mão-de-obra, a obsolescência vertiginosa das qualificações para o trabalho em decorrência do surgimento incessante de novas tecnologias, o desemprego estrutural decorrente da automação e da alta rotatividade da mão-de-obra, a exclusão social, econômica e política. Esses efeitos econômicos e sociais da nova forma do capital são inseparáveis de uma transformação sem precedentes na experiência do espaço e do tempo. Essa transformação é designada por Harvey com a expressão compressão espaço-temporal, isto é, o fato de que a fragmentação e a globalização da produção econômica engendram dois fenômenos contrários e simultâneos: de um lado, a fragmentação e dispersão espacial e temporal e, de outro, sob os efeitos das tecnologias da informação, a compressão do espaço – tudo se passa aqui, sem distâncias, diferenças nem fronteiras – e a compressão do tempo – tudo se passa agora, sem passado e sem futuro.

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Podemos acrescentar à colocação de Harvey que falar do presente como muitos hoje falam, como sendo a “era da incerteza” indica menos uma compressão filosófico-científica da realidade natural e cultural e mais a aceitação da destruição econômico-socialde todos os referenciais de espaço e de tempo cujo sentido se encontrava não só na percepção cotidiana, mas também nos trabalhos da geografia, da história, da antropologia e das artes. Em vez de incerteza, mais vale falar em insegurança. Ora, sabemos que a insegurança não gera conhecimento e ação inovadora e sim medo e paralisia, submissão ao instituído, recusa da crítica, conservadorismo e autoritarismo.

Na verdade, fragmentação e dispersão do espaço e do tempo condicionam sua reunificação sob um espaço diferenciado e um tempo efêmero, ou sob um espaço que se reduz a uma superfície plana de imagens e sob um tempo que perdeu a profundidade e se reduz ao movimento de imagens velozes e fugazes.

No caso da produção artística e intelectual (Humanidades), a compressão do espaço e do tempo transformou o mercado da moda (isto é, do descartável, do efêmero determinado pelo mercado) em paradigma: as obras de arte e de pensamento duram um “saison” e, descartados, desaparecem sem deixar vestígio. Para participar desse mercado efêmero, a literatura, por exemplo, abandona o romance pelo conto, os intelectuais abandonam o livro pelo “paper”, o cinema é vencido pelo vídeo-clip ou pelas grandes montagens com “efeitos especiais”. Para a ideologia pós-moderna, a razão, a verdade e a história são mitos totalitários; o espaço e o tempo são sucessão efêmera e volátil das imagens velozes e a compressão dos lugares e instantes na irrealidade virtual, que apaga todo contacto com o espaço-temporal enquanto estrutura do mundo; a subjetividade não é a reflexão, mas a intimidade narcísica, e a objetividade não é o conhecimento do que é exterior e diverso do sujeito, e sim um conjunto de estratégias montadas sobre jogos de linguagem, que representam jogos de pensamento. A história do saber aparece como troca periódica de jogos de linguagem e de pensamento, isto é, como invenção e abandono de “paradigmas”, sem que o conhecimento jamais toque a própria realidade.

A compressão espaço-temporal produz efeitos também nas universidades: diminuição do tempo de graduação e pós-graduação, do tempo para realização de dissertações de mestrado e teses de doutorado. A velocidade faz com que, no plano da docência, as disciplinas abandonem, cada vez mais, a necessidade de transmitir aos estudantes suas próprias histórias, o conhecimento de seus clássicos, as questões que lhes deram nascimento e as transformações dessas questões. Em outras palavras: a absorção do espaço-tempo do capital financeiro e do mercado da moda conduzem ao abandono do núcleo fundamental do trabalho universitário, qual seja, a formação.

E isso torna-se também muito evidente quando se vê a discussão da segunda idéia, qual seja, a educação continuada ou permanente. Afirma-se que diante de um mundo globalizado e em transformação constante, a educação permanente ou continuada é uma estratégia pedagógica indispensável, pois somente com ela é possível a adaptação às mudanças incessantes se se quiser manter-se ativo no mercado de trabalho. A educação permanente ou continuada significa que a educação não se confunde com os anos escolares, isto é, a educação deiza de ser preparação para a vida e se torna educação durante toda a vida.

Precisamos ponderar crítica e reflexivamente sobre essa idéia. De fato, não se pode chamar isso de educação permanente. Como vimos acima, a nova forma do capital produz a obsolescência rápida da mão-de-obra e produz o desemprego estrutural. Por isso, passa-se a confundir educação e “reciclagem”, exigida pelas condições do mercado de trabalho. Trata-se de aquisições de técnicas por meio de processos de adestramento e treinamento para saber empregá-las de acordo com as finalidades das empresas. Tanto é assim, que muitas empresas possuem escolas, centros de treinamento e reciclagem de seus empregados, ou fazem convênios com outras empresas destinandas exclusivamente a esse tipo de atividade. E essa atividade pressupõe algo básico, ou seja, a escolaridade propriamente dita. Muitas vezes também, a competição no mercado de trabalho exige que o candidato a emprego apresente um currículo com mais créditos do que outros ou que, no correr

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dos anos, acrescente créditos ao seu currículo, mas dificilmente poderíamos chamar a isso de educação permanente porque a educação significa um movimento de transformação interna daquele que passa de um suposto saber (ou sa ignorância) ao saber propriamente dito (ou à compreensão de si, dos outros, da realidade, da cultura acumulada e da cultura no seu presente ou se fazendo). A educação é inseparável da formação e é por isso que ela só pode ser permanente.

III. Se quisermos tomar a universidade pública sob uma nova perspectiva, precisamos começar exigindo, antes de tudo, que o Estado não tome a educação pelo prisma do gasto público e sim como investimento social e político, o que só é possível se a educação for considerada um direito e não um privilégio nem um serviço. A relação democrática entre Estado e universidade pública depende do modo como consideramos o núcleo da república. Este núcleo é o fundo público ou a riqueza pública e a democratização do fundo público significa investi-lo não para assegurar a acumulação e a reprodução do capital – que é o que faz o neoliberalismo com o chamado “Estado mínimo” – e sim para assegurar a concreticidade dos direitos sociais, entre os quais se encontra a educação. É pela destinação do fundo público aos direitos sociais que se mede a democratização do Estado e, com ela, a democratização da universidade.

A reversão também depende de que levemos a sério a idéia de formação.O que significa exatamente formação? Antes de mais nada, como a própria palavra indica,

uma relação com o tempo: é introduzir alguém ao passado de sua cultura (no sentido antropológico do termo, isto é, como ordem simbólica ou de relação com o ausente), é despertar alguém para as questões que esse passado engendra para o presente, e é estimular a passagem do instituído ao instituinte. O que Merleau-Ponty diz sobre a obra de arte recolhe o passado imemorial contido na percepção, interroga a percepção presente e busca, com o símbolo, ultrapassar a situação dada oferecendo-lhe um sentido novo que não poderia vir à existência sem a obra. Da mesma maneira, a obra de pensamento só é fecunda quando pensa e diz o que sem ela não poderia ser pensado nem dito, e sobretudo quando, por seu próprio excesso, nos dá a pensar e a dizer, criando em seu próprio interior a posteridade que irá superá-la. Ao instituir o novo sobre o que estava sedimentado na cultura, a obra de arte e de pensamento reabre o tempo e forma o futuro. Podemos dizer que há formação quando há obra de pensamento e que há obra de pensamento quando o presente é apreendido como aquilo que exige de nós o trabalho da interrogação, da reflexão e da crítica, de tal maneira que nos tornamos capazes de elevar ao plano do conceito o que foi experimentado como questão, pergunta, problema, dificuldade.

Pensando numa mudança da universidade pública sob a perspectiva da formação e da democratização, creio que podemos assinalar alguns pontos que são a condição e a forma dessa mudança:

1. Colocar-se claramente contra a exclusão como forma da relação social definida pelo neoliberalismo e pela globalização: tomar a educação superior como um direito do cidadão (na qualidade de direito, ela deve ser unviersal); defesa da universidade pública tanto pela ampliação de sua capacidade de absorver sobretudo os membros das classes populares quanto pela firme recusa da privatização dos conhecimentos, isto é, impedir que um bem público tenha apropriação privada. Romper, portanto, com o modelo proposto pelo Banco Mundial e implantado no Brasil com a pretensão de resolver os problemas da educação superior por meio da privatização das universidades públicas ou pelos incentivos financeiros dados a grupos privados para criar estabelecimentos de ensino superior provocou não só o desprestígio das universidades públicas (porque boa parte dos recursos estatais foram dirigidos às empresas universitárias) como a queda do nível do ensino superior, cuja avaliação era feita por organismos ligados às próprias empresas.

2. Definir a autonomia universitária não só pelo critério dos chamados “contratos de gestão”, mas pelo direito e pelo poder de definir suas normas de formação, docência e pesquisa. A autonomia é entendida em três sentidos principais: a) como autonomia institucional ou de políticas

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acadêmicas (autonomia em relação aos governos); b) como autonomia intelectual (autonomai em relação a credos religiosos, partidos políticos, ideologia estatal, imposições empresariais e financeiras); c) como autonomia financeira que lhe permita destinar os recursos segundo as necessidades regionais e locais da docência e da pesquisa. Em outras palavras, a autonomia deve ser pensada, como autodeterminação das políticas acadêmicas, dos projetos e metas das instituições universitárias e da autônoma condução administrativa, financeira e patrimonial. Essa autonomia só terá sentido: a)internamente houver o funcionamento transparente e público das instâncias de decisão; b) externamente as universidades realizarem, de modo público e em períodos regulares fixados, o diálogo e o debate com a sociedade civil organizada e com os agentes do Estado, tanto para oferecer a todos as informações sobre a vida universitária, como para receber críticas, sugestões e demandas vindas da sociedade e do Estado. Isso significa também que a autonomia é inseparável da elaboração da peça orçamentária anual, pois é esta que define prioridades acadêmicas de docência e pesquisa, metas teóricas e sociais, bem como as formas dos investimentos dos recursos. Para que haja autonimai com caráter público e democrático é preciso que haja discussão dos orçamentos por todos os membros da universidade, segundo o modelo do orçamento participativo. Finalmente, a autonomia universitária só será efetiva se as universidades recuperarem o poder e a iniciativa de definir suas próprias linhas de pesquisas e prioridades, em lugar de deixar-se determinar externamente pelas agências financiadoras.

3. Desfazer a confusão atual entre democratização da educação superior e massificação. Para isso, três medidas principais são necessárias:

a. Articular o ensino superior públixo e outrs níveis de ensino público: sem uma reforma radical do ensino fundamental e do ensino médio públicos, a pretensão republicana e democrática da universidade será inócua. A universidade pública tem que se comprometer com a mudança no ensino fundamental e no ensino médio públicos. A baixa qualidade do ensino público nos graus fundamental e médio tem encaminhado os filhos das classes mais ricas para as escolas privadas e, com o preparo que ali recebem, são eles que irão freqüentar as universidades públicas, cujo nível e cuja qualidade são superiores aos das universidades privadas. Dessa maneira, a educação superior pública tem sido conivente com a enorme exclusão social e cultural dos filhos das classes populares que não têm condições de passar da escola pública de ensino médio para a universidade pública. Portanto, somente a reforma da escola pública de ensino fundamental e médio pode assegurar a qualidade e a democratização da universidade pública. A universidade pública deixará de ser um bolsão de exclusões sociais e culturais quando o acesso a ela estiver assegurado pela qualidade e pelo nível dos outros graus do ensino público;

b. reformar as grades curriculares atuais e o sistema de créditos, uma vez que ambos produzem a escolarização da universidade, com a multiplicação de horas-aula, retirando dos estudantesas condições para leitura e pesquisa, isto é, para sua verdadeira formação e reflexão, além de provocarem a fragmentação e dispersão dos cursos, e estimular a superficialidade. É precisão diminuir o tempo em horas-aula e o excesso de disciplinas semestrais. Dependendo da área acadêmica, as disciplinas podem ser ministradas em cursos anuais, permitindo que o estudante se aprofunde num determinado aspecto do conhecimento. É preciso também não somente assegurar espaço para a implantação de novas disciplinas exigidas por mudanças filosóficas, científicas e sociais, como também organizar os cursos de maneira a assegurar que os estudantes possam circular pela universidade e construir livremente um currículo de disciplinas optativas que se articulam às disciplinas obrigatórias da área central de seus estudos;

c. assegurar, simultaneamente, a universalidade dos conhecimentos (programas cujas disciplinas tenham nacionalmente o mesmo conteúdo no que se refere aos clássicos de cada uma delas) e a especificidade regional (programas cujas disciplinas reflitam os trabalhos dos docentes-pesquisadores sobre questões específicas de suas regiões). Assegurar que os estudantes conheçam as questões clássicas de sua área e, ao mesmo tempo, seus problemas contemporâneos e as pesquisas

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existentes no país e no mundo sobre os assuntos mais relevantes da área. Para isso são necessárias condições de trabalho: bibliotecas dignas do nome, laboratórios equipados, informatização, bolsas de estudo para estudantes de graduação, alojamentos estudantis, alimentação e atendimento à saúde. Convênios de intercâmbio de estudantes entre as várias universidades do país e com universidades estrangeiras.

4. Revalorizar a docência, que foi desprestigiada e negligenciada com a chamada “avaliação da produtividade”, quantitativa. Essa revalorização implica em:

a. formar verdadeiramente professores, de um lado, assegurando que conheçam os clássicos de sua área e os principais problemas nelas discutidos ao longo de sua história e, de outro lado, levando em consideração o impacto das mudanças filosóficas, científicas e tecnológicas sobre sua disciplina e sobre a formação de seus docentes;

b. oferecer condições de trabalho compatíveis com a formação universitária, portanto, infra-estrutura de trabalho (bibliotecas e laboratórios realmente equipados);

c. realizar concursos públicos constantes para assegurar o atendimento qualitativamente bom de um número crescente de estudantes em novas salas de aulas (o processo de democratização aumentará o acesso às universidades);

d. garantir condições salariais dignas que permitam ao professor trabalhar em regime de tempo integral de dedicação à docência e à pesquisa, de maneira que ele tenha condições materiais de realizar permanentemente seu processo de formação e de atualização dos conhecimentos e das técnicas pedagógicas;

e. incentivar o intercâmbio com universidades do país e as estrangeiras, de maneira a permitir a completa formação do professor, bem como familiarizá-lo com as diferenças e especificidades regionais e nacionais bem como as grandes linhas do trabalho universitário internacional.

5. Revalorizar a pesquisa, eatabelecendo não só as condições de sua autonomia e as condições materiais de sua realização, mas também recusando a diminuição do tempo para a realização dos mestrados e doutorados. Quanto aos pesquisadores com carreira universitária, é preciso criar novos procedimentos de avaliação que não sejam regidos pelas noções de produtividade e de eficácia e sim pelas de qualidade e de relevância social e cultural. Essa qualidade e essa relevância dependem do conhecimento, por parte dos pesquisadores, das mudanças filosóficas, científicas e tecnológicas e seus impactos sobre as pesquisa. Quanto à relevância social das pesquisas, cabe às universidades públicas e ao Estado fazer um levantamento das necessidades do seu país no plano do conhecimento e das técnicas e estimular trabalhos universitários nessa direção, assegurando, por meio de consulta às comunidades acadêmicas regionais, que haja diversificação dos campos de pesquisa segundo as capacidades regionais e as necessidades regionais. As parcerias com os movimentos sociais nacionais e regionais pode ser de grande valia para que a sociedade oriente os caminhos da instituição universitária, ao mesmo tempo que esta, por meio de cursos de extensão e por meio de serviços especializados, poderá oferecer elementos reflexivos e críticos para a ação e o desenvolvimento desses movimentos. Ou seja, a orientação de rumos das pesquisaas pode ser feita segundo a idéia de cidadania.

6. A valorização da pesquisa nas universidades públicas exige políticas públicas de financiamento por meio de fundos públicos destinados a esse fim por intermédio de agências nacionais de incentivo à pesquisa, mas que sigam duas orientações principais: a) projetos propostos pelas próprias universidades; b) projetos propostos por setores do Estado que fizeram levantamentos locais e regionais de demandas e necessidades de pesquisas determinadas e que serão subvencionadas pelas agências. A avaliação dos projetos, para concessão de financiamento, e a avaliação dos resultados deve ser feita por comissões democraticamente escolhidas pelas comunidades universitárias, em consonância com a definição de um programa nacional de pesquisas, definido pelo conjunto das universidades após o levantamento das necessidades, interesses e inovações das

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pesquisas para o país. Além dessa avaliação do conteúdo, deve haver uma avaliação pública dos objetivos e aplicações das pesquisas e uma avaliação pública, feita pelo Estado, sobre o uso dos fundos públicos. Em outras palavras, a universidade deve prestar publicamente contas de suas atividades de investigação à sociedade e ao Estado;

7. adotar uma perspectiva crítica muito clara tanto sobre a idéia de sociedade do conhecimento quanto sobre a de educação permanente, tidas como idéias novas e diretrizes para a mudança da universidade sob a perspectiva da modernização. É preciso tomar a universidade sob a perspectiva de sua autonomia e de sua expressão social e política, cuidando para não correr em busca da sempiterna idéia de modernização que, no Brasil, como se sabe, sempre significa submeter a sociedade em geral e a universidades públicas; em particular, a modelos, critérios e interesses que servem ao capital e não aos direitos dos cidadãos.

NOTAS PRELIMINARES SOBRE O ANTEPROJETO: SEGUNDA VERSÃO  Roberto Leher

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  No mesmo dia em que a área econômica anunciou o maior superávit primário da história,

equivalente a 7,26% do PIB, o MEC apresentou por vídeo-conferência a nova versão do Anteprojeto Lei que Estabelece Normas Gerais da Educação Superior sem novos recursos para as instituições públicas. Apesar de todo o enorme aparato da mídia do ministério da educação, releases, assessores etc., os principais jornais on line do dia não repercutiram o anúncio. Desinteresse pela educação, mas também faro jornalístico: as mudanças foram no geral recuos em relação aos raros itens da versão anterior que regulava as mantenedoras.

  Como previsto em artigo anterior (O setor privado critica o Anteprojeto, logo o Anteprojeto é bom. Um mau silogismo para defender a contra-reforma ), o setor privado após fazer alguma pressão levou todas. As suas mantenedoras estão inteiramente livres de regulamentação. Nos termos de Haddad "o setor privado reclamou com razão" (O Globo, 31/5) e, assim, toda a seção I do capítulo 3 (Das mantedoras) da versão de dezembro simplesmente desapareceu. Na nova versão do texto, foram excluídas a criação dos conselhos administrativos e a necessidade de eleição direta de dirigentes das universidades e dos centros universitários particulares. Esses conselhos, que seriam responsáveis pela parte administrativa e acadêmica, teriam no máximo 20% de representantes das mantenedoras.

 As condições para a criação e transformação de IES privadas em universidades seguem generosas, brindado com o estímulo da venda de educação por meio de educação a distância (EAD). Se a instituição optar por ser universidade especializada (ou tecnológica) a conquista do status de universidade será banal. Embora preveja 25% ou 12,% de doutores, conforme o caso (universidade ou universidade especializada), o prazo para cumprir essa meta é amplo o suficiente para alcançar a meta sem mudanças bruscas: 8 anos!

  A nova versão amplia as prerrogativas das privadas, permitindo-lhes o reconhecimento dos cursos de pós-graduação feitos no exterior que poderão ser credenciados por universidades privadas que possuam cursos de pós-graduação reconhecidos e avaliados na mesma área de conhecimento e em nível equivalente ou superior. A abertura dos negócios educacionais aos investidores estrangeiros continua prevista no anteprojeto (Art. 13): "Pelo menos 70% do capital total e do capital votante das entidades mantenedoras com fins lucrativos deverá pertencer direta ou indiretamente a brasileiros natos ou naturalizados". Não está muito claro se o investimento estrangeiro é livre nas demais modalidades (comunitárias, filantrópicas e confessionais). O repasse de verbas públicas para as privadas comunitárias (comuns no estado de origem do ministro da educação) está previsto de modo completamente aberto (Art. 14: incentivo às instituições comunitárias inclusive com apoio de verbas públicas específicas). Cumpre registrar que as comunitárias podem ser confessionais ou filantrópicas. Os empresários que apostaram nos centros universitários também têm motivos para comemorar. A nova versão institucionaliza-os de modo definitivo e confere amplas prerrogativas de autonomia aos mesmos.

  A nova versão foi mais cuidadosa ao associar o fazer acadêmico com o mercado. O texto é mais sutil, evitando uma associação mecânica e linear dos fins da universidade com o mercado e o entorno local. Contudo, um exame mais de perto revela enormes retrocessos como a institucionalização da pós-graduação estrito senso instrumental. De fato, o Art.6 admite mestrados e doutorados profissionais, para júbilo do mercado educacional, cursos a distância e cursos tecnológicos de curta duração (2 anos).

 As reivindicações do Andes-SN e da Andifes, no que se refere ao financiamento foram completamente desconsideradas. A rigor, o financiamento das instituições federais encolheu em relação a versão anterior de dezembro de 2004 que implicitamente reconhecia que a subvinculação (75% dos 18% constitucionais) iria reduzir as verbas atualmente disponíveis e, por isso, continha a salvaguarda de que o orçamento nominal (não corrigido) não poderia ser inferior ao do ano imediatamente anterior. Na versão atual, não apenas esta já débil salvaguarda desaparece, mais uma vitória da área econômica, como das inexistentes verbas de outros custeios, as federais terão de retirar 5% para assistência estudantil. Importante: o MEC segue insistindo na "fezinha do povo", incentivando a jogatina para que os pobres possam ter assistência! 

Salvo em caso de difícil e improvável mudança constitucional as públicas federais terão de fazer o milagre da multiplicação das vagas – inclusive ampliando corretamente as vagas noturnas para pelo

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menos 1/3 do total, um porcentual já próximo ao existente atualmente, mas que está concentrado em algumas poucas carreiras - sem um novo padrão de financiamento (daí a regulamentação da EAD e o retorno triunfal das fundações de apoio privadas).

As políticas de quotas étnicas foram relativizadas, propiciando maior autonomia das instituições para que as ações afirmativas sejam implementadas, contudo, seguindo a tática de fatiamento da "reforma", o Mec patrocina um projeto de cotas que tramita no parlamento em regime de urgência que colide com o suposto respeito a autonomia universitária. O respeito a autonomia, no caso, é apenas aparente. Democracia governamental...

No que se refere a democratização da gestão, o anteprojeto impõe um retrocesso na prática estabelecida na maior parte das IFES de voto paritário, exigindo a maioria docente, e suprime a escolha de pelo menos um dirigente nas IPES por meio de eleição direta. A reeleição dos reitores não será permitida, porém os seus mandatos serão de cinco anos. Haverá polêmica com setores da Andifes. De outra parte, o governo confere um caráter a Andifes há muito sonhado por alguns de seus dirigentes: a entidade será uma espécie de agência reguladora que irá participar da redistribuição dos (improváveis) recursos adicionais (Art. 54).

Algumas questões requerem exame mais detido. Apenas para pontuar. Aparentemente as procuradorias serão definidas a partir da indicação da instituição e referendadas pela AGU. Os recursos para os aposentados não compõem o montante de 75% dos 18%, mas é preciso verificar se de fato estarão inseridos na folha do MEC e terão seus direitos garantidos. A contra reforma da previdência precisa ser considerada no exame da questão.

As aparentes cerejas do bolo, como a promessa de uma nova carreira para os docentes após dois anos da promulgação da presente lei, vão depender da reeleição de Lula. O MEC está engajado, portanto, no projeto reeleitoral do PT. Aos incautos, cautela: a nova carreira pode ser por instituição (algo explicitamente admitido no anteprojeto, tal como estava previsto no Estatuto da UFRJ na época de Vilhena e Nussensveig: as instituições devem ter sua própria carreira). O limite previsto no anteprojeto diz respeito tão somente ao respeito ao piso salarial.

Finalmente, uma questão crucial: a democracia. Não bastasse as lições advindas da tentativa de sufocamento da CPI dos correios e da bravata da ameaça de expulsão dos parlamentares que assinaram o pedido da CPI, o governo segue adotando um conceito de democracia inspirado nas cartilhas do diamat estalinista: discutirá o projeto apenas com os que concordam com os seus termos. Os demais são inimigos que devem ser silenciados. Com a palavra o ministro:

 "Com novas contribuições, que certamente nascerão do debate, o Ministério da Educação irá apresentar a terceira versão, que será submetida ao grupo de entidades que participaram da audiência pública com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e que foram designadas por ele como responsáveis pela sugestão de redação final da Lei de Educação Superior." 

Entidades como o Andes-SN, as universidades estaduais paulistas e tantas outras entidades que se posicionaram criticamente não serão escutadas. A opção pelo setor privado e pelas demandas dos mercadores da educação, entretanto, já foi feita. A exclusão é coerente, mas grave sob uma perspectiva democrática 

O caminho para um enfrentamento amplo, qualificado e massivo se ampliou com as novas contradições. Todo o esforço para articular os vastos setores que não irão compactuar com a rendição incondicional da educação aos grupos de pressão dos mercadores da educação será necessário. E para isso teremos de reforçar os encaminhamentos do último congresso. Temos que fortalecer os pólos de resistência constituídos pelos protagonistas da construção da grande Marcha do dia 25 de Novembro. É hora de colocarmos nossas bandeiras vermelhas nas ruas. Avante!

 

ANDES CRITICA NOVA VERSÃO, UNE APÓIA COM RESSALVAS Jonas Valente    04/06/2005, da Agência Cartamaior

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Brasília - Desde o anúncio da intenção do governo federal em fazer uma reforma no ensino superior, os movimentos da área de educação (professores, servidores, estudantes) e os empresários do setor travam acirrada disputa pelo formato final da proposta. Após a divulgação da segunda versão do anteprojeto de Lei Orgânica da Educação Superior, ocorrida esta semana, a avaliação geral de grande parte dos defensores da educação pública e gratuita é de que perderam mais uma batalha. Depois da aprovação das Parcerias Público-Privadas, do Programa Universidade para Todos e da Lei de Inovação Tecnológica, apesar do questionamento das organizações de trabalhadores e estudantes, o governo federal novamente acena uma permeabilidade maior às demandas dos empresários.

Na nova versão não constam mais os mencanismos de controle do Estado sobre as mantenedoras da instituições privadas de ensino superior. Foi extinta toda a seção I do capítulo 3, que previa, nestas escolas, a existência de um conselho administrativo composto por no máximo 20% de representantes das mantenedoras e no mínimo 30% de doutores ou profissionais com experiência educacional. O texto também estipulava a eleição de pelo menos um dirigente de forma direta e que qualquer alteração no patrimônio das emrpesas teria de ser comunicada e aprovada pelo Ministério da Educação.

Na nova versão do texto, foram excluídas a criação dos conselhos administrativos e a necessidade de eleição direta de dirigentes das universidades e dos centros universitários particulares. Esses conselhos, que seriam responsáveis pela parte administrativa e acadêmica, teriam no máximo 20% de representantes das mantenedoras. "Agora, volta a reinar a livre iniciativa sem restrições ou obstáculos aos negócios!", critica nota divulgada pelo Sindicato Nacional dos Docentes de Ensino Superior (ANDES-SN). A argumentação usada pelo Secretário-Executivo do MEC, Fernando Haddad, foi de que os mecanismos estabelecidos seriam inconstituicionais. Questionada pela Carta Maior, a assessoria do ministério não havia respondido quais medidas seriam inconstitucionais e por que até o fechamento desta matéria.

Para a professora da UFF, Marina Barbosa, presidente do ANDES-SN, o projeto fortalece a educação com fins lucrativos em uma série de outras medidas. Ela cita o prazo de oito anos que as faculdades irão possuir para se tornarem universidades e a baixa exigência de doutores, 25% para universidades e 12% para universidades especializadas em alguma área. A direção do ANDES-SN avalia negativamente também a instituicionalização da pós-graduação de cunho profissional e dos centros universitários. "A nova versão institucionaliza essas exóticas instituições [os centros] de modo definitivo e confere-lhes amplas prerrogativas de autonomia", afirma a nota da entidade.

Segundo Marina Barbosa, o governo irá incentivar a expansão do ensino pago também por meio da continuidade do recurso da isenção fiscal, muito usado no caso das filantrópicas. "Ao aferir isenção, o Estado deixa de aumentar o bolo orçamentário que é redistribuído por meio de serviços públicos", explica. Ela critica também o dispositivo do oferecimento de bolsas por meio de isenção, previsto no Prouni e ratificado pela Lei Orgânica. Para a professora, a isenção pode gerar inclusive graves distorções regionais, pois grande parte das empresas do Norte e Nordeste já operam nestes locais com isenção, pois foi este benefício que as levou a ir para lá e não para o Sul e Sudeste.

Falta de recursos para o ensino público

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Para o Andes-SN, em consonância com o fortalecimento do ensino pago, o governo opera um discurso de expansão da educação pública sem garantir condições para isso. A proposta do MEC prevê a recuperação da meta do Plano Nacional de Educação de participação do ensino público com 40% das vagas ofertadas até 2011. A principal crítica é a ausência de um novo padrão de financiamento que garanta isso. Marina Barbosa argumenta que a segunda versão retrocede em relação a primeira na única salvaguarda que exigia o aumento progressivo do orçamento anualmente. "A primeira versão previa que o montante de um ano não podia ser inferior ao do anterior, o que agora foi retirado", afirma.

Ela explica que a proposta de subvinculação de 75% dos 18% do orçamento da União reservados para a área não pode ser analisada sem considerar os problemas de arrecadação do governo e a Desvinculação de Recursos da União, aprovada em 2003 como parte da Reforma Tributária. A DRU prevê que o governo pode contingenciar 20% do orçamento anual da educação para pagamento da dívida externa brasileira. Segundo a professora, hoje os 75% dos 18% significariam menos do que o orçamento já destinado para a educação. "O MEC argumenta que não há recursos para expandir o ensino público, mas a destinação de 7,26% do PIB para pagamento de dívida [superávit primário anunciado esta semana] demonstra que falta vontade política em fortalecer o ensino público", diz. Hoje, a verba destinada para a educação soma 4,25% do PIB brasileiro, 58,5% do superávit primário (7,26%) informado pelo governo esta semana.

O MEC argumenta que o projeto avança no aumento de recursos, pois retira os servidores da folha do ministério, liberando mais verba para outros custos. O ANDES-SN questionou de onde sairia esta verba. Procurada pela Carta Maior, a assessoria do MEC também não se pronunciou sobre esta questão até o fechamento desta matéria. Outro ponto que traz receio aos professores na discussão sobre expansão do ensino público é a inserção da educação à distância na nova versão do projeto. Hoje, esta forma de ensino é a que gera maior aumento de vagas nas universidades públicas. O medo é de que seja por meio dela que o MEC e as instituições busquem a meta de reprsentar os 40% do total de vagas ofertadas até 2011.

Outra medida pensada pelo Ministério foi a possibilidade de converter dividendos dos Estados em investimentos na área da educação superior. Mas a proposta não encontra consenso nem dentro do próprio governo. No dia 31, o secretário-executivo do Ministério da Fazenda, Bernard Appy, criticou a parte do projeto que fala nesta possibilidade argumentando que seria uma forma equivocada de estimular o investimento em educação. Em nota de esclarecimento, o ministro Tarso Genro afirmou que "não há nenhuma comprovação empírica, nenhum precedente histórico e nenhum suporte teórico, acadêmico ou não, que aponte que investimentos em educação, de qualquer natureza, sejam prejudiciais à saúde macroeconômica do País".

Concepção de democracia

De acordo com Marina Barbosa, a concepção de democracia do MEC é bastante relativa, tanto no que toca aos pontos do projeto quanto ao processo de discussão dele. Ela critica o artigo que mantém o peso maior dos professores nas eleições para reitor, afirmando ser um retrocesso frente à reivindicação de eleições paritárias feita por servidores e estudantes. Em relação à discussão do anteprojeto, festejada pelo MEC como um exemplo de democracia, a professora afirma que o ministério só discute com quem concorda com sua política. "Se fosse

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assim, a maioria das mães abandonaria seus filhos aos cinco anos", brinca. O ANDES-SN e  outras instituições, como as estaduais paulistas, não foram chamadas para as negociações que vêm acontecendo com mais de 100 entidades da sociedade civil organizada sob a argumentação de que, se o sindicato é contra esta proposta, então não pode discuti-la.   

Para Barbosa, a disputa sobre os rumos da reforma será difícil. Ela diz que há peculiariedade do governo Lula e que isso gera conseqüências diretas nas entidades, que já não conseguem atuar com a mesma unidade da era FHC. De acordo com a professora, o ANDES-SN busca agora um esforço de rearticulação do Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública, espaço que congrega entidades como a União Nacional dos Estudantes, a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) e a Federação dos Servidores Universitários do Brasil (FASUBRA). "O trabalho já começa este fim de semana, no encontro da Associação Nacional pela Formação de Profissionais em Educação (ANFOPE), que tem interesse direto em pontos críticos do anteprojeto como a autorização da educação à distância para a formação de professores", informa.

A posição dos estudantes

Diferente dos professores, a direção majoritária da UNE faz uma avaliação geral postiva no projeto. "Mesmo com recuos, o texto melhora em relação ao que está colocado hoje, fortalece a universidade pública e estabalece controle sobre as privadas", afirma o presidente da entidade, Gustavo Petta. Ele critica a retirada dos mecanismos de controle sobre o ensino privado, principalmente no que se refere aos conselhos administrativos que seriam criados no âmbito das mantenedoras e à eleição de pró-reitores de forma direta nestas faculdades. 

No entanto, Petta avalia que a nova versão do projeto incorpora algumas das principais reivindicações dos estudantes, como a garantia de recursos para asssistência estudantil como restaurantes, moradia, bibliotecas qualificadas, creches, bolsas de permanência e transporte. A nova versão estipula que 5% do orçamento global das universidades deve ser destinado este fim. Apesar de considerar importante, o presidente da UNE assume que a verba é ainda insuficiente. "Vamos mobilizar os estudantes para aumentar este percentual, que deve ser de pelo menos 9%", afirma.

A preocupaçao de Petta tem fundamento. Se hoje a asssitência estudantil já é importante, se houver um real processo de inclusão de alunos de baixa renda no ensino superior por meio da expansão das vagas na rede pública isso irá demandar mais verba para manter estas pessoas na universidae e evitar a evasão, grande problema hoje nas instituições públicas. A presença destas pessoas, que estava mais assegurada na primeira versão, com a reserva de vagas para estudantes de escola pública, no novo documento virou uma meta para ser atingida em 10 anos. A argumentação do MEC é de que já há um projeto com este teor tramitando no Congresso e de que não havia necessidade de duplicar a proposta na Lei Orgânica. Para Gustavo Petta, a tática do governo tem chances de funcionar pois há mais possibilidade de o projeto de cotas passar sozinho do que atrelado ao anteprojeto do MEC. "Além disso, se aprovado ele terá validade imediata, e no projeto estava previsto um prazo longo, de 10 anos", defende.  

O dirigente estudantil também avaliou postitivamente a reserva de um limite mínimo de 1/3 das vagas para o ensino noturno e o aumento de 45 para 120 dias o prazo de anúncio por

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parte das direções de instituições privadas das propostas de reajuste na mensalidade. "Isso evita que os donos das faculdades anunciem os aumentos logo antes das férias, o que desmobiliza a resistência dos estudantes", analisa. Mas para a direção da UNE, ainda é preciso avançar mais. "A UNE acredita que deveria haver no Anteprojeto o condicionamento do reajuste a uma negociação obrigatória entre as instituições, o movimento estudantil, e as associações de pais, impossibilitando a simples imposição de aumentos abusivos nas universidades particulares, como ocorre atualmente", diz nota da entidade.

Para o diretor de Políticas Universitárias da UNE e representante do campo Contraponto (de oposição à majoritária), Rodrigo Pereira, a proposta do MEC possui viés progressista, mas conteúdo conservador. Assim como no caso do ANDES-SN, Pereira critica duramente o que chama de "falsa regulação do ensino privado", representada em medidas como a instituicionalização dos centros universitários e a ausência de mecanismos de controle real "para que as privadas não promovam aumentos abusivos de mensalidade". O estudante questiona também a incorporação do ensino à distância, pois considera ser de péssima qualidade e não incentivar o diálogo. "Com aulões como os telecursos, não há discussão, só decoreba de conteúdo", argumenta.

Segudo Rodrigo Pereira, um dos grandes problemas do projeto é a correlação de forças do Congresso Nacional. "Quando chegar no parlamento, os tímidos pontos positivos serão facilmente derrubados pelo lobby dos donos das particulares", prevê. Ele cita como exemplo a provável diminuição da limitação de 30% de presença de capital estrangeiro nas instituições públicas citando o caso do Programa Universidade para Todos. "O governo começou dizendo que seriam 20% de bolsas integrais e quando foi aprovado, o texto final falava apenas em 8%", lembra. Para o estudante, a UNE deveria lutar pelo não envio da proposta ao Congresso e não disputá-lo no governo e no parlamento. "Esta tática não unifica o movimento estudantil e enfraquece nossas mobilizações para garantir as bandeiras históricas", completa.

 Nota da Diretoria do ANDES-SN sobre a 2ª versão do Anteprojeto de Lei, de 30 de maio

de 2005, que regulamenta o ensino superior.No mesmo dia em que a área econômica anunciou o maior superávit primário da

história, equivalente a 7,26% do PIB, o MEC apresentou por vídeo-conferência a nova versão do Anteprojeto que "Estabelece Normas Gerais da Educação Superior" sem a previsão de novos recursos para as instituições públicas de ensino. Apesar do enorme aparato da mídia do Ministério da Educação, constituído por um grande número de assessores que seguramente enviaram centenas de releases para os diversos meios de comunicação, os principais jornais on line do dia não repercutiram o anúncio. Desinteresse pela educação, mas, também, faro jornalístico: as corajosas mudanças foram, no geral, recuos em relação aos itens da versão anterior que regulavam debilmente as mantenedoras. É interessante a mudança na argumentação do Ministro e de seu Secretário executivo: após sustentarem que as críticas dos empresários eram a prova irrefutável de que o anteprojeto de dezembro impunha um rigoroso controle social sobre as instituições privadas, reconhecem que, de fato, os empresários tinham razão. A pergunta óbvia é: como ficam os seus aliados que compraram o inconsistente discurso do MEC? Confirmando as análises anteriores do ANDES-SN, após fazer alguma pressão, o setor privado levou todas. As suas mantenedoras estão inteiramente livres de regulamentação. Nos termos de Fernando Haddad, Secretário executivo do MEC, "o setor privado reclamou com razão" (O Globo, 31/5) e, assim, toda a seção I do capítulo 3 (Das mantedoras) da versão de dezembro

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simplesmente desapareceu. Na nova versão do texto, foram excluídas a criação dos conselhos administrativos e a necessidade de eleição direta de dirigentes das universidades e dos centros universitários particulares. Esses conselhos, que seriam responsáveis pela parte administrativa e acadêmica, teriam no máximo 20% de representantes das mantenedoras. Agora, volta a reinar a livre iniciativa sem restrições ou obstáculos aos negócios! As condições para a criação e transformação de IES privadas em universidades continuam generosas. Se a instituição optar por ser universidade especializada (ou tecnológica), a conquista do status de universidade será banal. Embora preveja 25% ou 12% de doutores, conforme o caso (universidade ou universidade especializada), o prazo para cumprir essa meta é amplo o suficiente para alcançar a meta sem investimentos bruscos: 8 anos! Infelizmente, centenas de doutores continuarão perdendo os seus empregos por muitos anos. Como os concursos para as instituições públicas continuam raquíticos, o quadro é desalentador.

Quando os Estados Unidos (e Austrália, Inglaterra e Japão) reclamaram a inclusão da educação no Acordo Geral de Comércio de Serviços (AGCS) da OMC, indicaram que o principal filão é o comércio transfronteiriço que poderá ser conquistado por meio da educação a distância. Assim, o primeiro obstáculo a remover, conforme esses países, é a proibição, em muitos estados nacionais, da oferta de graduação e pós-graduação a distância. Quando o nosso País admite a graduação e a pós-graduação por meio da educação a distância, fica evidente a sua submissão a interesses de organismos internacionais. Junto com a abertura do setor educacional ao capital estrangeiro e a compreensão de que a educação é um abstrato bem público (não importando se ofertado pelo Estado ou pela iniciativa privada) quase toda a agenda da OMC está sendo cumprida, mesmo sem a assinatura do AGCS. 

A nova versão amplia as prerrogativas das instituições privadas, permitindo-lhes o reconhecimento dos cursos de pós-graduação feitos no exterior que poderão ser credenciados por universidades privadas que possuam cursos de pós-graduação reconhecidos e avaliados na mesma área de conhecimento e em nível equivalente ou superior. A abertura dos negócios educacionais aos investidores estrangeiros continua prevista no Anteprojeto (Art. 13): "Pelo menos 70% do capital total e do capital votante das entidades mantenedoras com fins lucrativos deverá pertencer direta ou indiretamente a brasileiros natos ou naturalizados". Não está muito claro se o investimento estrangeiro é livre nas demais modalidades de instituições (comunitárias, filantrópicas e confessionais), como chegou a sugerir o Ministro da educação em entrevista, ou se somente as empresariais poderão fazer associações. De todo modo, permanece válida a avaliação do ANDES-SN de que a barreira de 30% para o capital estrangeiro poderá ser facilmente derrubada no parlamento. O repasse de verbas públicas para as instituições privadas comunitárias está previsto de modo completamente aberto (Art. 14: incentivo às instituições comunitárias inclusive com apoio de verbas públicas específicas). Cumpre registrar que as instituições comunitárias podem ser confessionais ou filantrópicas. Os empresários que apostaram nos centros universitários também têm motivos para comemorar. A nova versão institucionaliza essas exóticas instituições de modo definitivo e confere-lhes amplas prerrogativas de autonomia. A nova versão foi mais cuidadosa ao associar o fazer acadêmico ao mercado. O texto é mais sutil, evitando uma associação mecânica e linear dos fins da universidade ao mercado e ao entorno local. Contudo, um exame mais de perto revela enormes retrocessos como a institucionalização da pós-graduação estrito senso instrumental, por exemplo. De fato, o art.6º admite mestrados e doutorados profissionais, para júbilo do mercado educacional.

Mais uma concessão à mercantilização, junto com os  cursos a distância e os cursos tecnológicos de curta duração (2 anos).

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As reivindicações do ANDES-SN e da ANDIFES, no que se refere ao financiamento, foram completamente desconsideradas. A rigor, o financiamento das instituições federais encolheu em relação à versão anterior de dezembro de 2004, que implicitamente reconhecia que a subvinculação (75% dos 18% constitucionais) iria reduzir as verbas atualmente disponíveis e, por isso, continha a salvaguarda de que o orçamento nominal (não corrigido) não poderia ser inferior ao do ano imediatamente anterior. Na versão atual, não apenas essa já débil salvaguarda desaparece (mais uma vitória da área econômica), como as instituições federais terão de retirar 5% das parcas verbas de outros custeios para assistência estudantil. Ainda mais preocupante, porque envolve uma questão de ética, é o fato de o governo submeter o financiamento da educação superior pública federal às vicissitudes das Loterias Federais existentes. (Art. 63)

As instituições públicas federais sem um novo padrão de financiamento terão de fazer o milagre da multiplicação das vagas, inclusive ampliando corretamente as vagas noturnas para pelo menos 1/3 do total, um porcentual já próximo ao existente atualmente, mas que está concentrado em alguns poucos cursos. Nesse contexto, insere-se a regulamentação da EAD e há o retorno triunfal das fundações de apoio privadas.

A ausência de um novo padrão de financiamento para as instituições de ensino superior públicas é determinada pela política econômica que limita gastos sociais e revela a desconsideração do MEC a propostas vindas de diferentes entidades em relação à sustentação das IFES. Dessa forma, o MEC divide a responsabilidade direta com o colegiado de dirigentes das IFES na distribuição dos recursos públicos que serão insuficientes em relação ao padrão de financiamento previsto.

As políticas de quotas étnicas foram relativizadas, propiciando maior autonomia das instituições para que as ações afirmativas sejam implementadas, como quer o ANDES-SN; contudo, seguindo a tática de fatiamento da "reforma", o MEC patrocina o Projeto de Lei nº 3.627/04, que tramita no parlamento em regime de urgência, que colide com o suposto respeito à autonomia universitária. A consideração ao preceito da autonomia, no caso, é apenas aparente.No que se refere à democratização da gestão, o Anteprojeto impõe um retrocesso na prática de voto paritário estabelecida na maior parte das IFES, exigindo a prevalência majoritária do voto docente, e suprime a escolha de pelo menos um dirigente nas IPES por meio de eleição direta. A reeleição dos reitores não será permitida, porém os seus mandatos serão de cinco anos. Algumas questões requerem exame mais detido. Apenas para pontuar. Aparentemente as procuradorias serão definidas a partir da indicação da instituição e referendadas pela AGU. Os recursos para os aposentados não integram o montante de 75% dos 18%, não está claro se de fato estarão inseridos na folha do MEC e, muito menos, se os aposentados terão seus direitos garantidos. A contra-reforma da Previdência precisa ser considerada no exame da questão. Quanto à Carreira, o Anteprojeto estabelece que o Poder Executivo encaminhará em dois anos, contados a partir de 1º de janeiro do ano imediatamente subseqüente ao da publicação da lei, projeto de lei instituindo novo plano de carreira do magistério superior das instituições federais de educação superior. Aos incautos, cautela: a nova carreira pode ser por instituição, algo explicitamente admitido no Anteprojeto. O único ponto comum previsto para as carreiras específicas no Anteprojeto diz respeito tão-somente ao piso salarial. Fica evidente a subordinação da carreira à regulamentação do ensino superior.

Finalmente, uma questão crucial: a democracia. Não bastasse as lições advindas da tentativa de sufocamento da CPI dos correios e da bravata autoritária da ameaça de expulsão dos parlamentares que assinaram o pedido da CPI, o governo continua adotando um conceito de democracia inspirado nas cartilhas do diamat estalinista: discutirá o projeto apenas com os que

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concordam com os seus termos. Os demais são inimigos que devem ser silenciados. Com a palavra o ministro: "Com novas contribuições, que certamente nascerão do debate, o Ministério da Educação irá apresentar a terceira versão, que será submetida ao grupo de entidades que participaram da audiência pública com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e que foram designadas por ele como responsáveis pela sugestão de redação final da Lei de Educação Superior." Entidades como o ANDES-SN, as universidades estaduais paulistas e tantas outras que se posicionaram criticamente não serão escutadas. A opção pelo setor privado e pelas demandas dos mercadores da educação, entretanto, já foi feita. A exclusão é coerente, mas grave sob uma perspectiva democrática O caminho para um enfrentamento unitário, qualificado e maciço, se ampliou com as novas contradições. Seguramente, muitas das entidades que estiveram na reunião presidencial mencionada acima não concordam com a institucionalização do status quo privado agora legitimado em lei. Todo o esforço para articular os vastos setores que não irão compactuar com a rendição incondicional da educação aos grupos de pressão dos mercadores da educação será necessário. O ANDES-SN conclama as entidades do Fórum Nacional em Defesa da Educação Pública a se engajarem em uma agenda consensuada a partir dos encaminhamentos do CONED e das Plenárias do Fórum. O ANDES-SN não medirá esforços na busca da construção política e de mobilizações no espaço público que resistam ao cerco que se fecha contra a educação pública. Nessas horas, as lutas são insubstituíveis. Vamos organizá-las a partir de amplas frentes unitárias e combativas, pautados nos princípios e no projeto de educação pública que sempre têm nos unificado.

Brasília – DF, 1º de junho de 2005.

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EXTENSÃOBenedito Barraveira

Discurso proferido na abertura do 2º Congresso de Extensão Universitária da UNESPBauru - novembro de 2002

Extensão se configura como uma das atividades mais complexas de uma universidade, já que é o elo de ligação entre a sociedade e a instituição. "Basicamente, as atividades extensionistas são iniciativas que promovem o levantamento e a solução dos problemas das comunidades locais e regionais",

Qual o real papel que a universidade exerce na sociedade?

As atividades de extensão são imprescindíveis para o desenvolvimento do ensino e da pesquisa dentro das universidades. "As atividades extensionistas fornecem subsídios para os gestores acadêmicos elaborarem políticas de aprimoramento do ensino e da pesquisa, já que funcionam como uma ferramenta de identificação das demandas sociais.

A extensão universitária é azul! Azul, cor primária do arco-íris, cor do mar, do céu, da terra vista do infinito. O azul é profundo, é sereno e descansa os olhos de quem o admira. A partir dela e compondo-se com outras duas cores primárias podemos observar todas as infinitas possibilidades de beleza que a natureza nos oferece. Olhar para o azul do céu é possível ser feito durante horas a fio!

O poeta Machado de Assis relata em Memórias de Braz Cubas:

Era negra como a noite. O gesto brando com que, uma vez posta, começou a mover as asas, tinha um certo ar escarninho, que me aborreceu muito. Dei de ombros, saí do quarto; mas tornando lá, minutos depois, e achando-a ainda no mesmo lugar, senti um repelão nos nervos, lancei mão de uma toalha, bati-lhe e ela caiu... Também por que diabo não era azul? disse comigo...

E esta reflexão, uma das mais profundas que se tem feito, desde a invenção das borboletas, me consolou do malefício, e me reconciliou comigo mesmo... E termina o poeta... A manhã era linda, Veio por ali fora, modesta e negra, esparrecendo as suas borboletices, sob a vasta cúpula de um céu azul, que é sempre azul para todas as asas de borboleta...

Assim meus amigos, o azul transborda serenidade, grandiosidade e contribui para disponibilizar milhares de alternativas de composição das cores. O azul, com a especial parceria do verde e do vermelho, oferece todas as cores do arco-íris. Vejam senhores, o tripé das cores azul, verde e vermelho permite formar no universo, de maneira sempre equilibrada, infinitas possibilidades visuais. Este tripé, em equilíbrio sempre estável, sustenta todas as cores possíveis de serem visualizadas.

Meus amigos ! A Universidade também é constituída de um tripé - ensino, pesquisa e extensão. Trata-se de um conjunto harmônico e indissociável, pois é impossível trabalhar numa sem a parceria da outra. A composição equilibrada deste tripé permite, pelo menos teoricamente, a

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formação não apenas dos melhores profissionais, mas também a formação de um indivíduo capaz de exercer a cidadania plena.

Analisando pormenorizadamente o tripé ensino, pesquisa e extensão observamos algumas distorções que necessitam urgente correção de rota, sob pena de desequilibrarmos a universidade e termos não mais a formação de um verdadeiro cidadão.

Assim, o nosso docente DEVE (grifado) trabalhar pelo menos 8 horas por semana ensinando os seus alunos da graduação. Esta, como é o principal objetivo fim da Universidade, tem recursos disponíveis do próprio Estado. Além disso, o docente PODE (grifado) dedicar-se até 8 horas por semana à extensão universitária. Isto se, após um trâmite burocrático intenso, os diversos conselhos permitirem. Esta, além de ter um orçamento limitado, ainda não dispõe de fontes alternativas de recursos.

Mas, o docente, se quiser PODE (grifado) dedicar-se pelo menos 32 horas ou mais por semana à pesquisa. Ainda é permitido, se assim o desejar, candidatar-se a uma bolsa de produtividade em pesquisa do CNPq, sem a necessidade da anuência dos conselhos. Esta bolsa, além de proporcionar ao docente recursos alternativos, ainda permite rechear o seu currículo com um belo índice Pesquisador número X do CNPq. A pesquisa ainda conta com o estímulo da Universidade, de fontes de fomento Estaduais e Federais, além de agências gerenciadoras da pesquisa.

Vejam senhores, o tripé realmente está totalmente desiquilibrado! Dentro do contexto que ora se apresenta, ministrar aula na graduação tornou-se uma OBRIGAÇÃO (grifado). Fazer pesquisa tornou-se a única maneira de galgar postos superiores na carreira universitária. E ainda como prêmio o docente pode receber uma Bolsa de Estímulo. E a extensão? Bem, esta infelizmente está contemplada em apenas uma linha nos relatórios universitários como (grifo) - Prestou serviços de extensão universitária...

Precisamos rever esta situação urgentemente, haja vista que a sociedade atual está realmente preocupada com o destino das Universidades públicas principalmente em dois pontos a saber:

1-A sociedade quer o aumento no número de vagas que permitam novas oportunidades para os seus filhos;

2-A sociedade quer o retorno da Universidade. Este só será feito por meio da extensão universitária. Está evidente a necessidade de uma política extensionista rápida, agressiva e objetiva com especial participação da comunidade. O social faz parte hoje de qualquer discurso político!

Feito este diagnóstico, realmente preocupante para a continuidade da existência da universidade pública, alguns pontos necessitam ser corrigidos imediatamente, no âmbito da extensão:

1-Valorização da extensão universitária. Necessitamos convencer os nossos colegiados da necessidade da valorização urgente das atividades extensionistas. Isto porque elas tomam muito tempo do nosso docente, além do mesmo ter que manter um espírito elevado para chegar ao seu objetivo que na maioria das vezes trata-se de mudança comportamental. Falo isso, em especial para os programas que se relacionam intimamente com a comunidade. Um professor que ministra aulas para indivíduos adultos e carentes necessita de uma abordagem diferenciada. O profissional da saúde atendendo no seu ambulatório precisa manter o otimismo sempre presente para poder

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elevar o moral do paciente, frente as dificuldades que enfrenta na sua vida particular. A extensão meus amigos, é a grande Ouvidoria da Universidade frente à comunidade. A extensão lida com o ser humano, com as mazelas, com a dor, com as dificuldades do dia a dia, com a pobreza, com a injustiça, com a exclusão social, com a tragédia humana... Fazer extensão universitária desgasta sobremaneira a energia do docente além de dar muito trabalho e tomar muito tempo !!!

2-Criação de fontes de fomento. Necessitamos urgentemente da criação de fontes governamentais de fomento para a extensão universitária. Acredito que este seja o maior gargalo na valorização da extensão. Só para lembrar, este evento que hoje se inicia, só foi possível ser realizado graças a interveniência da nossa Universidade, das nossas Fundações e das Empresas patrocinadoras. Por incrível que pareça as empresas estão muito engajadas nesta luta e já perceberam a importância das ações sociais e da redistribuição de renda. Isto tanto é verdade que iremos em seguida diplomar 25 empresas cidadãs. Empresas estas que voluntariamente estão contribuindo com a UNESP na formação da cidadania dos nossos alunos carentes. Lamentavelmente nenhum recurso veio das Agências oficiais de fomento, em que pese terem sido solicitados com a devida antecedência. Neste sentido,não vejo nenhum problema em se criar Agências oficiais de fomento dedicadas integralmente à Extensão Universitária, mesmo porque as existentes atualmente tem metas, objetivos e finalidades que não contemplam a extensão universitária. Neste sentido, Magnífico Vice-Reitor esta semana o senhor presenciou a entrega formal do Programa de Responsabilidade Social das Universidades Públicas do Estado de São Paulo ao senhor secretário de Ciência e Tecnologia Ruy Altenfelder. O senhor secretário ficou sensibilizado e satisfeito com a iniciativa da UNESP e prometeu discutir o assunto com o senhor Governador Geraldo Alkimin o mais rápido possível. Em última análise, o que queremos é uma Agência de Fomento dedicada exclusivamente à extensão universitária. Esta é e será a nossa maior bandeira de luta!Magnífico Vice-Reitor. Praticamente dois anos já se passaram desta nova gestão. Gestão marcada pelo pioneirismo, pelo dinamismo, pela controvérsia, pelo arrojo e pela busca de soluções de grandes problemas. Discussões acaloradas tem surgido periodicamente - sempre com um único objetivo - a preservação do nosso ente mais querido - a UNESP. O diagnóstico da extensão universitária está feito! Apesar de todos estes problemas e desafios a Extensão universitária continua sendo azul. Ela é doce, mansa, agradável, dá prazer e sempre manifesta ao final do dia a sensação do dever cumprido! Ela amadurece o nosso espírito, ela acalenta os nossos sonhos, ela lapida a pedra bruta de cada ser humano participante, ela eleva o espírito de fraternidade, ela proporciona a reflexão do desafio da igualdade, ela ensina o uso da liberdade com responsabilidade, ela forma o Cidadão (grifado) para o mundo! Vale a pena continuar esta luta !

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EXTENSÃO UNIVERSITÁRIADoris FariaO artigo reflete as idéias e os conceitos sobre a atividade de extensão universitária na sociedade.

        "Extensão Universitária: do assistencialismo à autonomia, do mercado ao social", Doris Santos de FARIA

        Considerada como uma função diferenciada do ensino e da pesquisa, a extensão universitária passou por diferentes fases históricas, refletindo a própria contextualização histórica da universidade brasileira. Desde suas origens até o período de redemocratizaçâo do país, foi uma extensão eminentemente assistencialista, utilizada como fonte de prática discente no bojo de projetos tanto de cunho nacional, como na época da ditadura militar, quanto eleitorais, na época da redemocratização do país.

        Mais ou menos nacionalistas ou socialistas, mais ou menos estatais ou comunitários, mais ou menos populistas ou personalistas, o fato é que a extensão universitária, então, ao atender a algumas demandas das comunidades por serviços sociais, buscava capacitar a universidade a responder pela articulação de duas grandes pressões daqueles tempos: a do aluno, por poder desenvolver alguma prática profissional, e a das comunidades, por poderem ver atendidas algumas necessidades que tinham, principalmente quanto a ensino e saúde.

        Com a redemocratização do país, implementam-se especialmente projetos de desenvolvimento comunitário, os quais vão dar origem a processos cada vez mais intensos de conscientização da população sobre a problemática social. No âmbito da universidade, este perfil mais comunitário pressiona pela democratização da gestão institucional, cuja conseqüência maior foi à busca da representação social nas instâncias do poder universitário – até hoje pouco representado –, talvez menos devido às dificuldades formais deste tipo de atuação e mais devido à excessiva falta de compromisso da universidade com a sociedade.

        O fato é que o assistencialismo da extensão universitária não se faz originalmente em função do aprimoramento da cidadania, mas em função dos interesses relativos ao Estado. Portanto, se de início a extensão apresentava perfil bastante diretivo, "rico" e autoritário, como no período de exceção política, foi este perfil minimizado posteriormente, quando o Estado se tornou mais deficitário, ainda que mais democrático. É possível que, com o recrudescimento do empobrecimento estatal dos tempos atuais e o conseqüente desinvestimento nos programas sociais restantes, a extensão venha a sofrer novas pressões assistencialistas, dado não só à ausência de atendimento a que se verão submetidas as comunidades, mas também ao fato de que o Estado deverá buscar descarregar seus compromissos em outras instituições, neste caso principalmente nas universidades.

        No geral, entretanto, é o crescente clamor pelo comprometimento social da universidade, que faz com que a extensão comece a ser realmente reconhecida como atividade-fim da instituição universitária, legitimamente acadêmica, com identidade própria, como eram o ensino e a pesquisa. Tal fase termina por culminar, bem no final dos anos oitenta, com a reivindicação da indissociabilidade do ensino, da pesquisa e da extensão, promulgada pela nova Constituição brasileira, imprimindo caráter mais universalista, mais comprometido com a cidadania e propiciando condições para que a extensão assumisse mais importância junto às instituições

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universitárias públicas, onde se dava o exercício das três atividades-fim. É claro que a extensão, também assistencial, era feita por instituições de natureza confessional, filantrópicas, dissociada senão do ensino, pelo menos da pesquisa, quando esta existia.

        Em face da atual reorganização jurídica do sistema universitário público federal – com a regulamentação de que somente poucas instituições serão reconhecidas como universidade, portanto, tendo de desenvolver ensino, pesquisa e extensão –, a tendência será que aquelas que assim não se caracterizarem não deverão desenvolver a extensão, a menos que esta seja exclusivamente para captação de recursos. Em outras palavras, a julgar pelas tendências atuais, somente poucas instituições deverão desenvolver a extensão orientada por política social e, ainda assim, haverá pressão do Estado para que volte a se agravar o caráter assistencialista.

        Assim, a nosso ver, dois movimentos passam a ser decisivos para o entendimento da extensão universitária no Brasil de hoje: o primeiro, que a vai colocar em contexto de desresponsabilização do Estado e mercantilização dos processos econômico-sociais; e o segundo, político-conceitual, relativo não só à organização jurídica do sistema universitário público, mas também à concepção de atividade acadêmica, logo, à própria identidade da extensão universitária.

        Primeiramente, a mercantilização das atividades acadêmicas, especialmente da extensão, já se opera, tanto no nível institucional, por meio da prestação de serviços com exclusiva determinação financeira, quanto individual, mediante consultarias privadas de mesma motivação. Em ambos os casos, a força motriz não se dá quer por interesses sociais, quer institucionais, de investimento na estrutura acadêmica.

        Erradamente se supõe ser a captação aquilo que responde pelo processo de privatização do produto acadêmico, mas não é exatamente isso, pois a distribuição do recurso poderia ter destinações sociais e de melhoria das condições do trabalho acadêmico coletivo, como investimento na estrutura, em equipamentos ou em novos projetos mais apropriados a instituições universitárias públicas. Nesse sentido, quem privatiza e é privatizado é o docente, que se desliga do projeto institucional maior, de maneira análoga à ação assistencialista, a qual também pode estar desconectada de verdadeiro projeto de valorização social.

        Além dessa dimensão contextual, a extensão universitária tem a dimensão conceitual pouco explicitada. De atividade quase marginal, na origem, institucionalizou-se e passou a ter identidade, concebida como prestação de serviços, sem vinculação propriamente acadêmica, mas eminentemente assistencial. Assim, existir no tripé ensino-pesquisa-extensão, por si só, não implicou que houvesse interatividade das atividades-fim, muito menos que fossem indissociáveis e menos ainda que elas tivessem destinação social mais direta. Para tal, teria a extensão de estar muito bem articulada com o ensino e com a pesquisa, o que, por motivos variados, não acontece. Como, de fato, a extensão nada mais deveria ser do que o ensino e a pesquisa articulados como produto social, esta desarticulação revela que a universidade não se preocupa em ter destinação social.

        Em tempos pós-modernos, há o dilema fundamental que certamente definirá os rumos da universidade brasileira, portanto, da extensão: que dimensão dará ao seu engajamento nas perspectivas de mercado, de comprometimento social e/ou de dimensões variadas ao longo do amplo espectro de possibilidades entre estes dois extremos. Evidente é que a universidade pública, de investimento estatal e de destinação social, deve e precisa desenvolver um projeto

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social, ainda que possa ter aspectos determinados de atuação mais competitiva no mercado, desde que a destinação de recursos esteja dentro da perspectiva de investimento institucional e não só de apropriação privada dos recursos captados.

        A sociedade do século XXI viverá o drama da escassez de recursos de toda ordem, materiais, naturais, ou não (mas muito provavelmente humanístico-espirituais também). O acréscimo populacional, as limitações de fontes de recursos e a demanda excessiva por educação apresenta à universidade o terrível dilema de definir estratégias que lhe possibilitem sobreviver e atender às suas finalidades. Se não caminhar na direção da autonomia, certamente não terá condições de enfrentar essa situação. O encolhimento do Estado, o fortalecimento do mercado, o desenvolvimento de novas tecnologias, com especial referência às educacionais, por certo já são expressões dessa conjuntura.

        No caso do Brasil, o momento é exatamente o de definir a dimensão da autonomia das universidades, especialmente daquelas que dependem de recursos estatais. Ora, a extensão tem hoje o maior potencial de captação de recursos financeiros, estejam eles voltados ou não para alguma destinação institucional ou social. Sem dúvida, passa ela a ser foco do redirecionamento político da instituição universitária, por isso passa a ter papel prioritário na busca da autonomia. Este é o processo que podemos denominar de autonomização institucional.

        Pode acontecer mesmo sem qualquer comprometimento maior quanto à destinação social propriamente dita da universidade; mas, com a falta dos recursos e o aumento das tensões sociais, com certeza a destinação social do produto acadêmico-científico da universidade - recursos humanos ou conhecimento-, torna-se cada vez mais oportuna. Assim sendo, de instituição autônoma, pelo menos as universidades federais cada vez mais constituirão instituições voltadas para o social, competindo na parcela de recursos com este tipo de destinação – estatais, comunitários, de mercado, privados, individuais ou empresariais.

        Se assim for, ao processo de autonomização institucional estará associado o processo de socialização da universidade, do qual a extensão deverá ser o principal instrumento, porque deverá conseguir articular as produções acadêmicas do ensino e da pesquisa como produto social da universidade, o que definitivamente implica estabelecer vias de acesso da sociedade e para ela. De assistencial, transformar-se-á em autônoma. Em vez de restrita às leis de mercado, terá destinação social; de instituição sem projeto, estabelecerá sua política e disporá de estratégias de ação e, quiçá, conseguirá realmente comprometer-se com a sociedade, passando de fato a contribuir, de modo definitivo, para o desenvolvimento da nação.        FARIA, Doris Santos de. Extensão Universitária: do assistencialismo à autonomia, do mercado ao social, Revista do Decanato de Extensão da Universidade de Brasília. Brasília, v. 3, n. 4, p. 14, jul. 1999

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