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COLETÂNEA DE TEXTOS INFORMATIVOS PROFESSOR: Lucas Rocha DISCIPLINA: Redação DATA: 08/04/2012 ————————————————————————————————————————————— 1 Nº 11 Panorama Mundial - O Balanço Eleitoral do México Hoje (JORGE CASTAÑEDA) Inicia-se o debate sobre o legado de Calderón: o julgamento político nas urnas, o julgamento legal perante os tribunais e o julgamento moral frente à história OS JULGAMENTOS dependerão de fatores internos e externos imprevisíveis. Mas Calderón será lembrado, elogiado ou condenado por um único aspecto de sua gestão: a guerra contra o narcotráfico. O julgamento político se dará nos comicíos presidenciais em julho deste ano. A eleição é um referendo sobre os 12 anos de governo do Partido de Ação Nacional (PAN), sob o comando de Calderón e seu antecessor, Vicente Fox, e em particular sobre os custos e resultados da guerra contra as drogas. Pesquisas realizadas em dezembro de 2011 pela Universal/Buendía & Laredo mostram que os mexicanos aprovam a estratégia de Calderón de recorrer à participação do exército na guerra contra as drogas, mas sua popularidade é ligeiramente inferior à de seus antecessores. No resultado das pesquisas dos candidatos presidenciais Josefina Vázquez Mota, do PAN de Calderón, está cerca de 20 pontos percentuais abaixo de Enrique Peña Nieto, do Partido Revolucionário Institucional (PRI) e quase empatado com Andrés Manuel López Obrador, do Partido da Revolução Democrática (PRD). Se o PRI não consegue evitar que os eleitores não se preocupem com seu retorno ao poder (depois de dominar a política mexicana durante sete décadas), e se não se registra uma grande vitória na luta contra o narcotráfico, é pouco provável que o partido de Calderón derrube uma desvantagem de 20 pontos. Esse será o julgamento político dos eleitores. A eleição » Nas prévias das eleições presidenciais no México, em 3 de julho de 2011, o Partido Revolucionário Institucional (PRI), principal força de oposição, conquistou uma vitória esmagadora no importante estado do México, o mais populoso, com 15,2 milhões de habitantes. Essa prévia foi considerada um indicador para a eleição presidencial, em julho de 2012. O resultado serviu para mostrar duas coisas importantes: primeiro, que o PRI saiu fortalecido como o partido mais bem posicionado para conquistar a presidência em 2012; segundo, que Enrique Peña Nieto, atual governador do estado do México, é agora o candidato com maiores possibilidades de suceder Calderón. Análise escrita por Irenea Renuncio, analista do México para Prime, um serviço de análise de riscos políticos. Em 2011, a Human Rights Watch divulgou um relatório severo sobre a guerra contra o narcotráfico: dos 35 mil homicídios cometidos pelo crime organizado, apenas mil tinham sido investigados pelas autoridades federais

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COLETÂNEA DE TEXTOS INFORMATIVOS

PROFESSOR: Lucas Rocha

DISCIPLINA: Redação DATA: 08/04/2012

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Nº 11

Panorama Mundial - O Balanço Eleitoral do México Hoje (JORGE CASTAÑEDA)

Inicia-se o debate sobre o legado de Calderón: o julgamento político nas urnas, o julgamento legal perante os tribunais e o julgamento moral frente à história

OS JULGAMENTOS dependerão de fatores internos e externos imprevisíveis. Mas Calderón será lembrado, elogiado ou condenado por um único aspecto de sua gestão: a guerra contra o narcotráfico. O julgamento político se dará nos comicíos presidenciais em julho deste ano. A eleição é um referendo sobre os 12 anos de governo do Partido de Ação Nacional (PAN), sob o comando de Calderón e seu antecessor, Vicente Fox, e em particular sobre os custos e resultados da guerra contra as drogas.

Pesquisas realizadas em dezembro de 2011 pela Universal/Buendía & Laredo mostram que os mexicanos aprovam a estratégia de Calderón de recorrer à participação do exército na guerra contra as drogas, mas sua popularidade é ligeiramente inferior à de seus antecessores.

No resultado das pesquisas dos candidatos presidenciais Josefina Vázquez Mota, do PAN de Calderón, está cerca de 20 pontos percentuais abaixo de Enrique Peña Nieto, do Partido Revolucionário Institucional (PRI) e quase empatado com Andrés Manuel López Obrador, do Partido da Revolução Democrática (PRD).

Se o PRI não consegue evitar que os eleitores não se preocupem com seu retorno ao poder (depois de dominar a política mexicana durante sete décadas), e se não se registra uma grande vitória na luta contra o narcotráfico, é pouco provável que o partido de Calderón derrube uma desvantagem de 20 pontos. Esse será o julgamento político dos eleitores.

A eleição » Nas prévias das eleições presidenciais no México, em 3 de julho de 2011, o Partido Revolucionário Institucional (PRI), principal força de oposição, conquistou uma vitória esmagadora no importante estado do México, o mais populoso, com 15,2 milhões de habitantes. Essa prévia foi considerada um indicador para a eleição presidencial, em julho de 2012. O resultado serviu para mostrar duas coisas importantes: primeiro, que o PRI saiu fortalecido como o partido mais bem posicionado para conquistar a presidência em 2012; segundo, que Enrique Peña Nieto, atual governador do estado do México, é agora o candidato com maiores possibilidades de suceder Calderón. Análise escrita por Irenea Renuncio, analista do México para Prime, um serviço de análise de riscos políticos.

Em 2011, a Human Rights Watch divulgou um relatório severo sobre a guerra contra o narcotráfico: dos 35 mil homicídios cometidos pelo crime organizado, apenas mil tinham sido investigados pelas autoridades federais

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Já o julgamento legal começou em 25 de novembro, quando ativistas mexicanos de direitos humanos pediram à Corte Penal Internacional (CPI), em Haia, para investigar Calderón. Eles garantem ter descoberto crimes cometidos pelo exército e pela polícia mexicana durante a guerra contra as drogas. A assessoria de Calderón reagiu com a ameaça de processar os acusadores por difamação. A campanha na CPI talvez possa não ser realista. Mas o contexto é compreensível: o imenso custo em vidas na guerra contra as drogas. Embora o governo tenha deixado de publicar os números de baixas, a imprensa mexicana entrega os chamados "executômetros" toda semana. O mais confiável deles menciona 45 mil homicídios relacionados com a droga de 2006 até agora. Em 9 de novembro de 2011, a Human Rights Watch divulgou um relatório severo sobre a guerra contra o narcotráfico: 35 mil homicídios cometidos pelo crime organizado entre dezembro de 2006 e janeiro de 2011, sendo que apenas mil tinham sido investigados pelas autoridades federais. Somente em um terço dos casos os suspeitos foram acusados - e apenas 22 condenados. Questionado sobre por que foram tão poucas sentenças de culpa, os funcionários mexicanos citam uma grande variedade de circunstâncias atenuantes. "No entanto", aponta o relatório, "vários procuradores confiaram à Human Rights Watch que os maiores obstáculos para investigar e julgar com eficácia tais casos são os abusos cometidos por soldados e policiais." Os inúmeros casos de tortura, assassinato e desaparecimentos forçados, a impunidade dos culpados e a rejeição sistemática de governo para promover mudanças que remediem essa situação estão lançando uma sombra que pode escurecer o futuro de muitos dos funcionários envolvidos. "Ninguém acusa Calderón de ter ordenado esses abusos, mas o presidente tolera uma série de políticas equivocadas", disse o diretor executivo da Human Rights Watch, Kenneth Roth, em uma entrevista ao Financial Times.

"No atual governo não se registra uma grande vitória na luta contra o narcotráfico. Portanto, é pouco provável que o partido de Calderón derrube uma vantagem de 20 pontos do adversário. Esse será o julgamento político dos

eleitores"

No México, há boatos de que Calderón, ao deixar a presidência, deseja ocupar um cargo na Organização das Nações Unidas (ONU) relacionado com as mudanças climáticas na sede de Nova York. Se realmente ele decidir residir nos Estados Unidos, poderá ser aplicado um precedente legal. Em setembro último, uma ação judicial alegando crimes contra a humanidade foi movida contra o presidente mexicano Ernesto Zedillo, que leciona na Universidade de Yale em New Haven, Connecticut. É quase certo que Zedillo não será submetido a um julgamento. Quando alegações semelhantes foram movidas contra o ex-presidente da Colômbia Alvaro Uribe, conferencistas convidados pela Universidade de Georgetown em Washington, da administração de Obama, sob pressão do governo colombiano, recomendaram que Uribe não fosse chamado para depor. No entanto, enquanto isso, Zedillo teve de explicar, contratar advogados e enfrentar a ansiedade de um julgamento. Se o massacre de Acteal pode gerar uma ação judicial depois de 14 anos, como poderiam reagir os parentes de 40 mil vítimas da guerra às drogas?

Massacre de Acteal » Assim cou conhecida a chacina de 45 indígenas tzotziles que aconteceu dentro de uma igreja na localidade de Acteal, no estado mexicano de Chiapas. As 45 vítimas, consideradas ativistas pela paz, rezavam no momento em que foram mortas, em 22 de dezembro de 1997. Há rumores de que o massacre teria sido executado por forças paramilitares opostas ao Exército de Libertação Nacional Zapatista (EZLN), mas nunca realmente identi cadas. A ação civil foi interposta em nome dos sobreviventes e famílias das vítimas. Zedillo era o presidente na época e os procuradores asseguram que a matança foi devida, em parte, pelas políticas de seu governo.

No caso apresentado contra Calderón, o governo dos EUA poderia estender uma imunidade semelhante à de Uribe - ou talvez não. A possibilidade de que Calderón seja acusado parece remota, se não impossível. No entanto, por vários motivos - políticas de animosidade, vingança ou verdadeira dor causada pela perda de um ente querido -, podem ser tentativas, mais ou menos responsáveis, mais ou menos bemsucedidas, para levá-lo a julgamento.

"A possibilidade de que Calderón seja acusado parece remota, se não impossível. No entanto, vários motivos - políticas de animosidade, vingança ou verdadeira dor causada pela perda de um ente querido - podem ser tentativas, mais ou menos responsáveis, mais ou menos bem-sucedidas, para levá-lo a julgamento"

E assim chegamos ao julgamento moral. O México tem sofrido um enorme custo em mortes e gastos com a guerra contra as drogas, assim como uma perda de prestígio fenomenal no mundo. Por que o México desperdiçou tantas vidas, tanto dinheiro e tanto prestígio? É provável que o governo do México seja derrotado nas urnas em julgamento político, ganhe o processo legal mas perca terrivelmente o julgamento moral - o pior de todos.

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Nas pesquisas dos presidenciais Jose na Vázquez Mota (foto), do PAN de Calderón, está cerca de 20 pontos percentuais abaixo de Enrique Peña Nieto, do Partido Revolucionário Institucional (PRI)

JORGE CASTAÑEDA foi ministro das Relações Exteriores do México. É cientista político, professor emérito da Universidade de

Nova York, colaborador do jornal New York Times, autor de diversos artigos e livros, entre eles o mais recente Ex Mex: From migrants to Immigrants. Tradução de Gláucia Viola. Revista SOCIOLOGIA, Março de 2012.

O ASSUNTO É A ARGENTINA SEGUNDO OS ARGENTINOS

Malvinas: enclave colonial no Atlântico Sul (LUIS MARÍA KRECKLER)

HOJE, completam-se 30 anos do conflito no Atlântico Sul. A Argentina toda homenageia com dor a memória dos caídos no enfrentamento e a usurpação sofrida já há 180 anos por parte de uma potência colonial extrarregional. A presença dessa potência não só fere a integridade territorial argentina, mas também a identidade da América Latina.

A recuperação das ilhas Malvinas é mais do que um anseio, é um dever irrenunciável, uma política do Estado argentino, plasmada na Constituição Nacional e prioridade do governo da presidenta Cristina Fernández de Kirchner. Não será encontrado um único argentino, de qualquer ideologia ou posição política, que não concorde, de coração, que somente quando as ilhas Malvinas sejam restituídas à Argentina, nosso território estará completo.

Tampouco será encontrado argentino algum que não esteja convicto de que sua recuperação somente será conseguida por meio da paz. O Brasil, desde 1833, acompanha a Argentina em sua reclamação de soberania. O governo e o povo argentino reconhecem o apoio incondicional que este país nos presta. O Brasil conhece as ambições estrangeiras sobre seus recursos naturais. Todos os países da região latino-americana compartilhamos a convicção de que os recursos de nossos espaços marítimos constituem um elemento vital para assegurar o desenvolvimento dos nossos povos.

Hoje temos uma base militar extrarregional no extremo do Atlântico Sul, promovendo a depredação pesqueira e a exploração ilegal de hidrocarbonetos. Se tem uma coisa que aprendemos na América do Sul é que podemos ter muitas diferenças, mas temos um destino comum. As declarações do Brasil, o apoio que tem cada ocasião oferecem as autoridades brasileiras, a preocupação e a ênfase que põe seu governo nos confirma, a cada dia, que estamos no caminho certo da integração.

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Nós estamos entendendo que somos donos do nosso destino, que temos que caminhar juntos e que neste projeto não cabe que potências coloniais de outrora continuem atuando como se o mundo não tivesse mudado nestes últimos séculos. Com vocação de paz, a Argentina apela ao diálogo para a reparação desta dívida histórica, que fere o meu país e a América Latina toda.

LUIS MARÍA KRECKLER, 57, sociólogo pela Universidade Nacional de Buenos Aires, é embaixador da Argentina no Brasil. Folha de São Paulo, Abril de 2012.

Aos EUA, as nossas lições sobre decadência (GABRIEL SAEZ)

TONY SOPRANO: "É bom fazer parte de algo desde o começo. Cheguei tarde para isso, eu sei. Mas ultimamente sinto a sensação de que cheguei no fim. A melhor parte já terminou."

Dra. Melfi: "Acho que muitos americanos têm essa sensação." Por mais de uma década eu tinha ouvido falar sobre como a série americana "Família Soprano" ("The Sopranos", no

original) era ótima. Então finalmente decidi experimentar. Fiquei chocado quando, após quatro minutos de episódio piloto, o diálogo acima aconteceu. Soou tão familiar... Afinal, é um sujeito de origem italiana reclamando que o presente, apesar de ser mais rico e confortável, é pior que o passado. Era a encarnação do espírito argentino.

Crescer na Argentina implica continuamente praticar o revisionismo histórico e ceder à nostalgia de nossa grandeza passada. Na realidade, é uma nostalgia da grandeza à qual sentimos ter direito, mas da qual, por alguma razão, fomos privados. A psique argentina reside na terra do "deveria, teria, poderia ter". Se o Brasil é o eterno país do futuro, a Argentina é o país do passado perenemente dourado.

Nós somos obcecados em olhar para trás, para um tempo (há um século, digamos) em que nosso PIB era comparável ao das potências europeias. Coçamos nossas cabeças tentando entender como pudemos fazer tudo errado desde então. Ah, se... A Argentina é a decana do clube de nações totalmente obcecadas por seu declínio. Logo, é um grande prazer para nós receber os Estados Unidos em nossa irmandade mal-humorada. Isso mesmo, podem ocupar seu lugar ali ao lado da França. Sejam bem-vindos, mas se preparem para muitos comentários sarcásticos. Pessoalmente, estou farto de ouvir que "o Japão é um exemplo do quanto é possível fazer com tão pouco; a Argentina é o contrário". Há o igualmente irritante "a Austrália é o que a Argentina poderia ter sido". Os brasileiros me dão aflição com o seu convite sutil para que a Argentina se torne "o seu Canadá".

Mas os tempos globais difíceis fazem a nossa experiência parecer relevante. Por isso, nossa presidente aproveita toda oportunidade para pregar sobre o "modelo argentino". Não é um modelo de desenvolvimento. É um modelo de resiliência. Sabe por que? Quando olhamos a Grécia, sorrimos. Sabemos imediata e instintivamente o que é aquela confusão toda. Vemos os "indignados" espanhóis como irmãos. "Ocupe Wall Street" nos parece ser a versão de Hollywood de "Que se vayan todos", movimento que afastou o presidente De La Rúa, há uma década, e nos permitiu o privilégio raro de ter cinco presidentes em uma semana.

Tá vendo, América? Vocês ainda têm muito chão pela frente. Não se preocupem: um declínio obsessivo não é de todo ruim. É uma dádiva para livreiros, psicanalistas e analistas políticos pessimistas. Converte taxistas em filósofos. Parece fazer maravilhas também pelo consumo de carne vermelha e vinho, sem falar nas conversas de café de final de noite, cheias de angústia existencial. Buenos Aires curte final de noite e angústia existencial como ninguém. Quem sabe o Kansas assista ao surgimento de sua própria dança melancólica que lembre o tango.

Mas, para que vocês americanos possam entrar para o clube das nações em declínio obsessivo, ainda há algo que precisam fazer. Guerras sem sentido, política fiscal insensata e decadência cultural não bastam. Vocês também precisam se livrar da sua fé na possibilidade de reinvenção. Sim, precisam desistir daquilo que Mangabeira Unger e Cornel West descreveram como "a religião americana da possibilidade". A ordem natural das coisas é que a democracia realize um ideal e que os próprios indivíduos se realizem? Esqueçam. Isso é um obstáculo ao gozo pleno do declínio, sempre acompanhado de fatalismo resignado.

A religião americana da possibilidade é o que nós, de outras partes do mundo, mais admiramos nos EUA ao longo da história. Nós, argentinos, estamos tão envolvidos em nosso drama histórico que é difícil perceber quão grandes fomos de fato. Mas pessoas de todo o mundo vieram para cá, sim, em busca de felicidade e realização. A maioria dos filhos delas ainda ama esta terra. Nossos vizinhos gostam de nós mais do que se dispõem a admitir. Quem sabe algum dia ainda possamos conquistar a grandeza - ou ao menos um ponto de equilíbrio entre humor e angústia existencial, tornando os nossos "poderíamos-ter-sidos" mais folclóricos e menos dolorosos.

Não seria exatamente reinventar a noção de reinvenção, algo que ainda pode estar ao alcance dos EUA, mas pode ser o suficiente para fazer com que o Tony Soprano que existe em nós se sinta um pouco melhor.

GABRIEL SAEZ, 38, mestre em relações internacionais pela Faculdade Latinoamericana de Ciências Sociais (Argentina), é assessor

na Câmara dos Deputados do país. Folha de São Paulo, Abril de 2012.

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Humilhação (MÁRCIA TIBURI)

A VERDADE da antipolítica de nossos dias é a humilhação. O verbo transitivo implica a ação ativa ou passiva de alguém: ou se humilha ou se é humilhado. Na origem, humilhar significa rebaixar e abater, desdenhar e submeter. O menosprezo, a desvalorização de alguém estão em seu cerne. Não se humilha um objeto, apenas um sujeito - uma pessoa, um grupo, um povo -, que, no ato da humilhação, é ―assujeitado‖, ou seja, destituído de si, dessubjetivado. Podemos dizer com tranquilidade que a política de nosso tempo não é mais política porque, em vez de ser laço em que as relações entre indivíduos e instituições são valorizadas constituindo a ação capaz de dar sustentabilidade à sociedade, se transformou no gesto de negar o outro, o gesto antipolítico por excelência. Mas que tipo de negação é a humilhação? O desprezo, o esquecimento ou a negligência que conhecemos tão bem

fazem parte da estratégia geral da humilhação que constitui a antipolítica. Contudo, o que caracteriza a humilhação elevada a ação antipolítica é uma pragmática bem simples: a pressão geral das instituições para que os cidadãos desacreditem deles mesmos e da própria coisa pública que os define como tais.

Contribuem para isso todas as instituições fundadas no poder e a grande maioria dos indivíduos que dela participam: a arma é discursiva e prática. Assim, igrejas, numa tática antiga, convidam à humilhação por meio de uma moral invertida, em que se tenta provar que o ruim é, na verdade, bom. Mais modernos, os meios de comunicação humilham a inteligência e a sensibilidade das pessoas com uma programação desrespeitosa, desde a propaganda para crianças até reality shows que brincam com a primitividade intelectual de quem assiste a eles, forçando-os a acreditar que não apenas desejam mas também merecem o que recebem.

O governo, por sua vez, é a prática da humilhação em seu sentido mais definitivo. Quando um povo elege um imbecil para um cargo político, ele prova o triunfo do sistema da humilhação no qual a ignorância e a esperteza dos agentes já não se diferenciam.

Resistência

Como ato que se dá entre sujeitos, a humilhação implica sempre um afeto. Somente a personalidade autoritária é capaz de humilhar. Humilhado é aquele que não pode corresponder com a mesma violência.

A humilhação vale para indivíduos, mas marca o caráter das instituições. Espinosa disse em seu Tratado Teológico-Político que governantes e sacerdotes precisam da tristeza de seus súditos. Se aquele filósofo pode dizer que somos formados por duas espécies de afetos, a alegria que leva à potência de agir e a tristeza que leva à impotência da ação, podemos hoje desconfiar de que as atitudes políticas prototípicas de nosso tempo pretendem a paralisia do povo. Que a depressão seja uma epidemia mental em nosso tempo explica a inação como seu correspondente ético-político em um sentido negativo.

Toda a experiência humana é marcada por afetos. Nietzsche entendeu que a razão poderia ser o mais potente dos afetos, o que significa que nos enganamos ao pensar na frieza da razão, que, em seu imo, move o mundo apaixonadamente. Inspirados em Nietzsche, podemos dizer que a política é a instituição que administra o mais impotente dos afetos, a humilhação. Sair da humilhação implica um grande esforço de resistência, implica entender racionalmente a estrutura que humilha para desmontá-la passo a passo.

O primeiro deles surgirá no momento em que compreendermos o que o escritor F. S. Fitzgerald quer dizer quando, ao refletir sobre o colapso e a necessidade de um combate contra o irremediável da vida, faz listas ―das vezes em que me deixei maltratar por pessoas que não eram melhores que eu em caráter ou capacidade‖. Só a velha consciência de si, como consciência do valor próprio de cada um, é capaz de frear o trem do destino infeliz dos humilhados. A ação que surge daí nega toda subserviência.

MÁRCIA TIBURI é graduada em filosofia e artes e mestre e doutora em filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Publicou as antologias As Mulheres e a Filosofia (Editora Unisinos, 2002), O Corpo Torturado (Ed. Escritos, 2004), e Mulheres, Filosofia ou Coisas do Gênero (Edunisc). Publicou os ensaios Uma outra história da razão (Ed. Unisinos, 2003).

[email protected]. Revista CULT (No site), Abril de 2012.

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Rio+20 e Amazônia (RUBENS RICUPERO)

QUANDO o presidente Sarney tomou a surpreendente decisão de oferecer o Brasil como sede da Rio 92, sua motivação tinha tudo a ver com a Amazônia. O fim dos anos 1980 coincidiu com o agravamento da destruição da floresta e da campanha internacional de denúncias.

A reunião se realizou sob o governo Collor, ocasião em que se conseguiu fazer da Rio 92 a "finest hour", o momento mais alto da diplomacia ambiental brasileira. Atuamos como país em desenvolvimento, sem esquecer a perspectiva dos interesses da humanidade, ameaçada por fenômeno global que afeta o planeta e a atmosfera acima das fronteiras. Se o governo brasileiro sob Sarney ou Collor não fugiu do problema amazônico, impõe-se agora seguir linha semelhante, enfrentando de forma proativa a ameaça que a mudança climática faz pesar sobre a região.

O último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) estimou que os aumentos da temperatura e as reduções na água provocarão a substituição da floresta tropical úmida por savana mais pobre que a do cerrado, de início na Amazônia oriental, onde mais intensa tem sido a deflorestação. No pior cenário, a elevação da temperatura pode chegar até a enormidade de 8ºC! Além da destruição da floresta, do aumento de frequência das secas e dos incêndios, uma elevação desse tipo nos arrastaria a terreno desconhecido, fora da experiência histórica da humanidade.

Um dos efeitos seria o impacto sobre o regime de chuvas desde Mato Grosso até Buenos Aires. São elas que contribuem para fazer da área uma das mais produtivas concentrações de produção agropecuária do planeta. A deterioração do balanço hídrico teria o potencial de aniquilar a principal vantagem comparativa do Brasil, da Argentina e de outros sul-americanos no comércio mundial. Reduziria a capacidade de produção de alimentos no momento em que a expansão da população torna cada vez mais crítica a oferta de calorias e proteínas.

A fim de enfrentar o perigo, falta-nos, no âmbito do Tratado Amazônico, um acordo para criar uma espécie de IPCC regional, a fim de analisar o conhecimento científico e chegar a um consenso sobre ações para combater a mudança do clima na região. Como na Amazônia o maior problema é a falta e inadequação do conhecimento científico, impõe-se também instituir uma rede de coleta de dados e pesquisa em todos os países da bacia.

Precisamos nos antecipar ao que certamente ocorrerá se nada fizermos: as cobranças, as críticas, os juízos condenatórios do resto do planeta. Nada melhor para aproveitar a oportunidade da Rio +20 do que demonstrar que o Tratado de Cooperação Amazônica está mais vivo do que nunca na sintonia com as preocupações de toda a comunidade internacional.

Uma decisão dos países amazônicos de estabelecer mecanismo para fomentar e sistematizar as pesquisas, o conhecimento e as propostas sobre a Amazônia será a prova mais irrefutável da determinação das nações amazônicas de proteger a Amazônia contra a destruição.

RUBENS RICUPERO é ex-ministro da fazenda e escreve para esta publicação semanalmente. Folha de São Paulo, Abril de 2012.

O crime no poder * (LEANDRO FORTES) *matéria de capa da Carta Capital desta semana.

Em conversas telefônicas, o bicheiro jacta-se da influência sobre Marconi Perillo e sempre recorria a Demóstenes Torres, vulgo "gordinho". Perillo (foto) nega relações com esquema. Foto: Gustavo Moreno/CB/D.A Press

RESTRITAS ao noticiário local de Goiânia, as informações sobre uma ―minirreforma‖ no secretariado do governador de Goiás, Marconi Perillo (PSDB), são o primeiro sinal de que suas ligações com o esquema -conjunto do senador Demóstenes Torres (DEM-GO) e do bicheiro Carlos Augusto Ramos, o Carlinhos Cachoeira, prometem levar a crise para dentro do governo goiano.

Transformado em menos de um mês em zumbi político, Torres agoniza pelos corredores do Senado, agora sob risco de ser cassado. Mas não deve naufragar sozinho, se as investigações da Polícia Federal forem aprofundadas. Novos documentos, gravações e perícias que integram o relatório da

Operação Monte Carlo, revelados com exclusividade por CartaCapital, apontam uma total sinergia entre o esquema do bicheiro, o senador e o governo de Marconi Perillo.

Em uma interceptação telefônica de 5 de janeiro de 2011, os agentes federais registraram uma conversa entre Cachoeira e seu principal auxiliar, Lenine Araújo de Souza, vulgo Baixinho. Na conversa, o bicheiro, a partir de um telefone em Miami, recebe a notícia de que um de seus indicados para o governo de - Goiás, identificado apenas por Caolho, acabou

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preterido, sem maiores explicações e aparentemente sem o conhecimento do governador. Segundo homem na hierarquia e braço operacional de Cachoeira, Souza administrava e operava o sistema de contabilidade da quadrilha. Também era responsável pelo pagamento de boa parte das propinas a agentes públicos, em troca de proteção e informação.

Torres considera-se um "cadáver político". foto: José Cruz/ABr

―Marconi, hora que souber disso (sic), vai ficar puto‖, reclama o bicheiro, no telefonema a Souza. E acrescenta, a seguir: ―Já mandei avisar ele (sic)‖. Mas adiante, revela, por duas vezes, a ordem dada ao senador Torres para entrar no caso e falar diretamente com o governador. ―O Demóstenes já está ligando para ele‖, garante Cachoeira. Mais adiante, no mesmo grampo, o bicheiro pede a Souza para tomar providências e entrar em contato com Eliane Gonçalves Pinheiro, chefe de gabinete do governador. Ela chegou ao cargo no início do ano passado, depois das eleições de 2010, na qual foi responsável -pela arti-culação do tucano para que prefeitos do PP aderissem à campanha do PSDB ao governo estadual. Até então, era ligada ao ex–secretário extraordinário de Assuntos Estratégicos de Goiás Fernando Cunha, importante liderança tucana no estado, falecido em novembro de 2011. Segundo as investigações da PF, uma filha de Cunha é casada com um irmão de Cachoeira. Outra interferência direta do bicheiro no governo, revelada nos grampos da PF, tem relação com a atuação do coronel Vicente Ferreira Filho, comandante do 3º Comando Regional da Polícia Militar, em Anápolis. Souza refere-se à preocupação de um certo

―Ananias‖, provavelmente um dos prepostos da jogatina na cidade, com a atuação do oficial. ―O Ananias está demonstrando preocupação com o Vicente em Anápolis, hein‖, avisa.

Cachoeira informa então a providência tomada. ―Já mandei (inaudível), inclusive vai falar com Marconi, hoje à tarde‖, diz o bicheiro. Em seguida, tranquiliza o auxiliar sobre a possibilidade de o coronel da PM atrapalhar os negócios em Anápolis, segundo a transcrição da PF. ―Não vai, não. Esse comandante pra nóis (sic), ainda vai ser bom. Cê vai ver (sic).‖ Não há, contudo, nenhuma acusação contra o coronel nos autos da Operação Monte Carlo.

Ciente da encrenca em que está metido, Perillo decidiu usar como desculpa a desincompatibilização do atual secretário de Meio Ambiente, Leonardo Vilela, candidato do PSDB à prefeitura de Goiânia, para mexer na equipe e apagar os rastros de Torres e Cachoeira em seus domínios. Assim, a amiga do bicheiro, Eliane Pinheiro, chefe de gabinete de Perillo, deverá deixar o cargo em breve, sob a improvável promessa de mudar de função. Outro que deve sair e colocar as barbas de molho é o secretário de Infraestrutura, Wilder Morais. Suplente de Torres, poderá assumir a vaga no Senado caso o titular venha a ser cassado.

Será uma vingança e tanto. A mulher de Morais, Andressa, o abandonou no ano passado para viver com Cachoeira. O drama matrimonial chegou a servir de desculpa para o senador Torres - justificar os 298 telefonemas que trocou com o bicheiro nos últimos seis meses. Morais também tomou medidas preventivas e afastou Leandro Gomes Candido do cargo de secretário-executivo da pasta. Candido é marido de uma irmã de Andressa.

Cachoeira se valia dos serviços do araponga Dadá (acima). Foto: Antonio Cruz/Abr

Outro da lista é o secretário da Indústria e Comércio, Alexandre Baldy, indicação pessoal de Torres. Baldy é genro do empresário Marcelo Limírio, sócio do senador do DEM em uma faculdade em Goiás. Ex-dono do Laboratório Neo Química, em Anápolis, segunda maior cidade do estado, o secretário mantém ainda uma sociedade com Cachoeira na ICF, empresa fornecedora de testes para laboratórios. Um deles, o Vitapan, de propriedade do bicheiro, era utilizado para lavagem de dinheiro do esquema de jogatina, segundo informações da PF. ―É assustador o alcance dos tentáculos da organização criminosa‖, escreveu em 23 de fevereiro deste ano o juiz Paulo Augusto Moreira Lima, da Vara Federal de Anápolis, responsável pela condução processual do inquérito. Segundo o magistrado, ―para dar suporte à exploração ilegal de máquinas caça-níqueis, bingos de cartelas e jogo do bicho em Goiás‖ a quadrilha de Cachoeira montou um incrível esquema de lavagem de dinheiro, evasão de divisas, contrabando, corrupção, peculato, prevaricação e violação de sigilos. Ainda de acordo com Lima, o grupo de Cachoeira era altamente ―profissionalizado, estável, permanente, habitual, estruturado, montado para cometer crimes graves‖. Para tal, mantinha uma ―estrutura organizacional e piramidal - complexa‖ que funcionava graças a uma ―estrutura estável, entranhada no seio do estado com, inclusive, a

distribuição centralizada de meios de comunicação para o desenvolvimento das atividades, com o objetivo de inviabilizar a interferência das agências sérias de persecução‖.

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Logo após ser preso, o juiz determinou que Cachoeira fosse transferido para um presídio federal de Mossoró (RN) porque, na petição à Justiça Federal, os procuradores do caso temiam que ele continuasse a comandar o esquema criminoso de dentro de uma prisão de -Goiás. ―Em mais de uma década, Carlinhos Cachoeira dedicou-se a comprar informações e proteção de agentes do estado vendíveis. Em outras palavras, tornou a sociedade e o próprio estado mais vulneráveis ao crime‖, escreveu Lima.

Os números listados na Justiça Federal falam por si só do tamanho da investigação que une os negócios de Cachoeira com a rotina do governo de Goiás. Ao todo foram identificados como integrantes da quadrilha do bicheiro 43 agentes públicos. Desses, seis delegados da Polícia Civil, 30 policiais militares, dois delegados da PF, um administrativo da PF, um policial rodoviário federal, dois agentes da Polícia Civil e dois servidores municipais. A Monte Carlo gerou 36 volumes de interceptação telefônica, 14 volumes de inquérito policial, três volumes de sigilo bancário e fiscal, além de uma centena de relatórios produzidos pela PF.

Procurado por CartaCapital, o governador Perillo respondeu, via assessoria de imprensa, não possuir nenhuma ligação com o bicheiro. Sobre indicações de Cachoeira para cargos no governo, saiu-se com essa: ―Que eu tenha sido informado, não‖. Também negou ter havido pressão de Demóstenes Torres para a nomeação de apadrinhados do bicheiro no governo estadual. Por fim, negou ter iniciado uma reforma no secretariado. Seriam ―apenas substituições pontuais de auxiliares que serão candidatos nas próximas eleições‖.

Interceptações telefônicas realizadas pela Polícia Federal mostram intervenção de Cachoeira no governo de Goiás. Foto: Gustavo miranda/ Ag. O Globo

Enquanto isso, a agonia de Torres parece não ter fim. Na sexta-feira 23, -CartaCapital revelou em seu site que a Polícia Federal sabia desde 2006 de suas ligações com Cachoeira. Três relatórios assinados pelo delegado Deuselino Valadares dos Santos, então chefe da Delegacia de Repressão a Crimes Financeiros da Superintendência da PF em Goiânia, revelam que Torres tinha direito a 30% da arrecadação geral do esquema de jogo clandestino, calculada em aproximadamente 170 milhões de reais nos últimos seis anos. A informação consta de um Relatório Sigiloso de Análise da Operação Monte Carlo, sob os cuidados do Núcleo de Inteligência Policial da Superintendência da PF em Brasília.

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Valadares foi um dos 35 presos em 29 de fevereiro na esteira da operação. Nas interceptações telefônicas feitas pela PF com autorização da Justiça, ele é chamado de Neguinho pelo bicheiro. Por estar lotado na delegacia de repressão a crimes financeiros, era responsável pelas operações policiais da Superintendência da PF em todo o estado. Ao que tudo

indica, foi cooptado para a quadrilha após descobrir os esquemas de Cachoeira, Torres e mais três políticos goianos também citados por ele na investigação: os deputados federais Carlos Alberto Lereia (PSDB), Jovair Arantes (PTB) e Rubens Otoni

(PT). Em outro grampo da PF, revelado agora por CartaCapital, de 13 de março de 2011, Cachoeira conversa com Idalberto

Matias de Araújo, o Dadá, sargento da reserva da Aeronáutica, também preso durante a Operação Monte Carlo. Ele era responsável por obter informações sigilosas de interesse da quadrilha de Cachoeira em troca de um pagamento mensal de 5 mil reais. No grampo, Dadá manda o bicheiro ―tranquilizar‖ Torres. Falava possivelmente da investigação da PF sobre o esquema criminoso.

A informação, proveniente de uma mulher não identificada na conversa, é tachada de ―exagerada‖ pelo araponga da Aeronáutica. ―Investigações a baixo nível, entendeu, só a termos de conhecimento‖, diz Dadá. ―Então, excelente, vou passar para o GORDINHO a informação‖, diz o bicheiro. O apelido, segundo a PF, era o código para se referir ao senador do DEM nas conversas entre os dois. Até 2009, Torres pesava 103 quilos. Perdeu 30 quilos após se submeter a uma cirurgia de redução do estômago.

Os deputados Lereia, do PSDB, e Otoni, do PT, também integrariam o esquema. Fotos: Beto Oliveira e Carlos Moura/D.A.Press

Uma série de outras reportagens divulgada nos últimos dias complicou ainda mais a vida do senador. O jornal O Globo publicou transcrições de interceptações telefônicas nas quais Torres pede ao bicheiro, com quem se comunicava por meio de um aparelho de rádio registrado em Miami, 3 mil reais para pagar despesas de táxi aéreo. O diário carioca revelou ainda que o parlamentar do DEM usou de seu prestígio para tentar remover, em 2009, um dos principais agentes de uma das investigações sobre a exploração ilegal de máquinas caça-níqueis e videopôquer chefiada por Cachoeira. Tratava-se do policial federal José Luiz da Silva. Torres solicitou ao então secretário de Assuntos Legislativos, Pedro Abramovay, a transferência do agente de Anápolis, área de atuação de Cachoeira, para Goiânia.

Uma reportagem do Jornal Nacional jogou mais cal sobre a cova do senador, que já admitiu estar ―morto politicamente‖ por causa das denúncias. Trechos de interceptações da Monte Carlo revelam que Cachoeira, em conversa com o contador Giovani Pereira da Silva, pode ter repassado mais de 3 milhões de reais ao senador do DEM.

É possível que em breve venha à tona outra faceta do grupo: o uso de meios de comunicação para atacar adversários. Sabe-se das boas relações de Cachoeira com jornalistas de Brasília, em especial o diretor da sucursal da revista Veja, Policarpo Jr. Segundo blogs da internet, a Polícia Federal teria interceptado mais de 200 telefonemas entre o jornalista e o bicheiro durante o curso das investigações.

Nos inquéritos aos quais CartaCapital teve acesso, Policarpo Jr. é citado mais de uma vez. Em um grampo de 8 de julho de 2011, Cachoeira instrui o sargento Jairo Martins, da PM de Brasília, -para -estancar as informações repassadas ao

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jornalista. O bicheiro teria se chateado com algum texto publicado na revista. Martins é um famoso araponga brasiliense, acostumado a prestar serviços clandestinos no submundo da comunidade de informações. Foi ele quem, por exemplo, gravou o vídeo em que o ex-funcionário dos Correios Maurício Marinho aparece a embolsar 3 mil reais de propina. Indicado pelo PTB, Marinho foi o estopim do escândalo do chamado mensalão.

O futuro de Torres depende da Pro-curadoria-Geral da República e do Congresso Nacional. Desde 2009, sem nenhuma explicação plausível, o procurador-geral Roberto Gurgel mantinha engavetado um relatório da PF referente à Operação Las Vegas, de 2008, na qual a ligação entre Cachoeira e o senador era -explicitada pela primeira vez em interceptações telefônicas autorizadas pela Justiça de Goiás. Diante da pressão provocada pelas revelações da Operação Monte Carlo, Gurgel foi obrigado, na quarta-feira 28, a dar seguimento à denúncia, enviada ao Supremo Tribunal Federal.

No Congresso, o destino de Torres está nas mãos do líder do PMDB, Renan Calheiros, e do presidente do Senado, José Sarney, que precisam recompor o Conselho de Ética do Senado. O órgão está acéfalo desde setembro de 2011, razão pela qual ainda não se pode apreciar a representação contra Torres apresentada na quarta-feira 28 pelo senador Randolfe Rodrigues (PSOL). Segundo Rodrigues, está claro que Cachoeira mantém relações ―amplas, gerais e irrestritas‖ com Torres e outras autoridades.

Tão logo o impasse burocrático seja resolvido, o processo de cassação do senador goiano, dado como certo até pelos aliados mais próximos, vai ser iniciado. Torres renunciou à liderança do DEM no Senado e corre risco de ser expulso do partido.

LEANDRO FORTES é jornalista e escreve para esta publicação. Revista CARTA CAPITAL, Abril de 2012.

Ataque à liberdade de informação (GABRIEL BONIS) - De Goiânia

MISTERIOSOS clientes se dirigem a diversas bancas de Goiânia, capital de Goiás, na manhã de domingo 1º. Minutos após os estabelecimentos abrirem, por volta das 8h da manhã, chegam com o objetivo de comprar, antes dos leitores da publicação, todo o estoque da edição 691 de CartaCapital, que traz reportagem de capa sobre a relação comprometedora do bicheiro Carlinhos Cachoeira com o governador tucano Marconi Perillo (a reportagem completa á a anterior nesta mesma coletânea). Conseguem em diversos pontos da cidade.

A edição, aguardada no estado após a divulgação de sua capa no site da revista, desaparece das bancas goianas ainda na manhã daquele dia – quando é entregue na cidade -, contam vendedores a CartaCapital. Quando o boato da misteriosa operação para comprar a revista se espalha, o público, curioso, sai à procura da publicação por todo o município. Não acham os exemplares, assim como a reportagem, que percorreu cerca de 100 quilômetros da capital para averiguar as principais bancas da cidade.

Vendedor tira cópias de exemplares que sumiram das bancas. Foto: Gabriel Bonis

Identifico, no entanto, o registro de venda ou tentativa de compra do lote inteiro da revista por apenas um cliente em metade das bancas visitadas. Há também um padrão: em todos os casos, a ação ocorreu poucos minutos após as lojas abrirem, por volta de 8h da manhã de domingo. Há também relatos de bancas que tiveram apenas a procura de leitores interessados em um exemplar da revista. ―Abri a loja às 7h da manhã e já havia fila do lado de fora‖, diz José Ribeiro Soares, de 30 anos, vendedor da Banca Paulista, situada nas ruas de um bairro nobre da cidade. Estranhamente, aquela parte da cidade não registrou tentativas de compra em grande quantidade. Ainda assim, ouço de uma fonte a seguinte afirmação: ―Essa edição vai encalhar. Sei aonde ainda há revistas e não te contarei.‖ A declaração soa estranha, e misteriosa. Vai de encontro aos relatos colhidos pela frase ouvida em cerca de 90% das bancas visitadas: ―Quando chega o próximo lote? Se enviarem, vendemos tudo com certeza.‖ ―A CartaCapital já chegou? Não acho em lugar nenhum‖, diz uma senhora na Banca Itaú. Na revistaria Almanaque, no Shopping Flamboyant, o vendedor responde a mais um cliente pelo telefone: ―Não tem, está esgotada há dias.‖ Chego a outra unidade de uma famosa franquia de bancas da cidade por volta de 10h da manhã de terça-feira. Pergunto se a edição 691 está disponível e a resposta é negativa.

A pessoa, que pede anonimato, responde que, antes mesmo de conseguir organizar o estoque recebido na manhã de domingo, um homem se aproximou para comprar o reparte deCartaCapital.

A pessoa descreve com surpresa que o homem avançou nos pacotes e começou a abrir as embalagens a procura de CartaCapital. Olhou todos, até encontrar. ―Disse que já havia reservado cinco exemplares para clientes, mas ele levou o resto e quis saber se aquele era mesmo o único reparte da revista.‖ Antes de sair, fez uma piada. ―Falou que a revista ia valer ouro e que eu poderia ganhar dinheiro no mercado negro.‖ Encontrei facilmente registros como estes em outras partes

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da cidade, inclusive em um shopping não muito distante dali. No local, uma pessoa entrou na loja, foi diretamente à prateleira de CartaCapital e comprou todos os exemplares pouco após a banca abrir.

Uma fonte, que também pediu anonimato, disse ter escutado uma parte da ligação recebida pelo cliente dentro da loja. ―Ele dizia que o avô dele era amigo do Demóstenes (Torres), por isso precisava comprar a revista.‖ Em outro estabelecimento, a tática não funcionou. Nara Rúbia Amorim, vendedora da Banca Leia, localizada dentro de um supermercado no Jardim Goiás, impediu que um ―cliente‖ levasse o lote inteiro das edições. ―Ele pegou todas as revistas da prateleira e colocou no caixa, mas disse que só vendemos uma por pessoa.‖

A dificuldade de encontrar a revista e o boato da misteriosa operação de compra da edição levaram a um episódio tenso no Shopping Flamboyant. ―Um senhor nos acusou de ter vendido os exemplares para uma mesma pessoa. Precisamos até chamar a segurança para controlar a situação caótica‖, conta Marcelo Pereira da Silva, de 28 anos, gerente da revistaria Almanaque, enquanto mostra o comprovante de venda de uma unidade por cliente. Quando o sequestro da revista não ocorria pessoalmente, interessados em grandes lotes da edição tentavam reservar a compra individual por telefone, sem se identificar. Foi o caso da loja comandada por Marcelo, que afirma ter recebido duas ligações de uma mulher interessada em 200 unidades da revista. ―Ela nos contatou na sexta-feira 30 e no sábado 31 (antes da edição chegar às bancas em Goiânia), mas recusamos devido ao compromisso com nossos clientes.‖

No Flamboyant, outra revistaria também foi contatada por uma mulher com o mesmo pedido. Marco Antônio Chamellet, de 44 anos, proprietário da Revistamania, declara que sua loja recebeu três ligações de uma mesma pessoa entre quinta-feira 29 e sábado. ―Percebe-se que a pessoa não queria que a revista fosse vendida. Ela me pediu para não vender o estoque, pois passaria aqui para pegar.‖ Em sua banca, a edição também esgotou em poucos minutos no domingo. ―Antes de abrir a loja já tinha gente olhando por debaixo da porta e brigando para conseguir comprar a revista‖, lembra Anderson Mattos, funcionário da loja.

Enquanto relata o grande interesse dos clientes pela edição, Chamellet segura um bloco de fotocópias da revista sobre o balcão. Com todos os exemplares vendidos, o estabelecimento recorreu à fotocópia da reportagem de capa para ―viabilizar a matéria às pessoas‖, justifica o comerciante, que diz ter cobrado 5 reais cada uma das cerca de cem cópias feitas desde domingo. ―A procura está grande.‖ Houve também uma tentativa de compra de um lote ainda maior diretamente na distribuidora. Era da Rádio 730, de propriedade de Joel Luiz Datena, filho de José Luiz Datena, apresentador de um programa de televisão policialesco na Rede Bandeirantes, premiado por um salário milionário. A rádio pretendia adquirir mil exemplares.

O veículo confirma, mas diz que a sondagem realizada pela conta de e-mail corporativo de Carlos Bueno Moraes, diretor-presidente da rádio, era de interesse exclusivo do funcionário. Moraes, por outro lado, afirma ter entrado em contato com a distribuidora após receber informação de que a revista corria o risco de ser comprada antes de chegar às bancas. ―Minha intenção foi descobrir de que forma isso poderia acontecer, mas não quis realizar a compra.‖ Sequestrada na cidade, a revista virou artigo dele luxo e interesse. ―Você não pode me arranjar uma não?‖, pede o taxista. Foi-se assim meu único exemplar.

GABRIEL BONIS é jornalista e escreve para esta publicação. Revista CARTA CAPITAL, Abril de 2012.

Páscoa (LUIZ FELIPE PONDÉ)

DUAS CRIANÇAS amarradas. Choravam. Nuas, sentiam frio. As cabeças doíam porque estavam meio abertas por pancadas que recebiam de vez em quando. O bando se ocupava com o cotidiano. Bater aos pouquinhos na cabeça de suas vítimas era um modo de preparar o cérebro para ser comido. Assim garantiam que estariam macios ao toque dos dentes.

Duas mulheres se acariciavam e se lambiam uma a outra, enquanto o filho de uma tentava em vão penetrar uma delas. Três homens chegavam ao lugar onde viviam e traziam consigo outras duas crianças, duas meninas arrastadas pelo chão. Gritaria e felicidade. Precisavam de quatro crianças. O jantar estava próximo. A fome era um desconforto profundo. Eles se perguntavam, às vezes, o porquê de sentirem fome. Não seria mais fácil a vida tranquila das pedras? Quando aquela dor invadia suas barrigas, as boas sensações desapareciam em meio a vontade furiosa de mastigar alguma coisa.

Sentiam uma estranha sensação de que o céu acima era poderoso, assim como a água que despencava dele. Olhavam horas para o céu, mas nenhuma voz saia daquela imensidão vazia. Uma menina chupava os dedos sujos do próprio sangue que escorria entre suas pernas. Outras crianças assistiam àquele gesto que já se tornara como que um hábito. Meninas faziam aquilo enquanto o velho estranho, dado a gritar, andava ao seu redor fazendo gestos com as mãos, que repetia o gesto da menina.

Em círculos, outras meninas começam a repetir o gesto da primeira, até que todas estivessem sangrando. Meninos, parados, devorados por um interesse estranho naquilo tudo, de vez em quando, corriam até o círculo das meninas e tentavam lamber o sangue delas também. Pedras jogadas por mulheres mais velhas expulsavam os meninos dali. De vez em quando, meninos e meninas se lançavam contra as duas crianças amarradas, tentando cortar pedaços delas, mas os mais velhos as seguravam. Eles precisavam entender que apenas quando caísse a escuridão do céu eles comeriam uma parte

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delas, e, mesmo assim, sendo aquele dia um dia especial -porque comeriam a carne de animais iguais a eles-, a ceia demoraria mais do que o normal porque a morte seria lenta, a fim de garantir que a carne do cérebro estaria macia.

Um pouco distante da fogueira grande, mulheres preparavam uma placa de pedra e a lavavam com sangue de animais mortos no dia anterior. Os três homens colocaram as duas meninas junto às outras duas crianças. Foram buscar água e lavaram as mãos, depois se aproximaram do velho estranho dado a gritar. O velho fez um gesto com a cabeça e deu para eles três pedaços de madeira pintados de uma tinta amarelada. Os três homens voltaram para as quatro crianças amarradas, pintaram elas com a mesma tinta e começaram a bater na cabeça das quatro, uma de cada vez, e cada vez um deles, ritmados e numa perfeição harmônica que fez todos ali pararem para assistir.

Silêncio absoluto. Fora os gemidos das quatro vítimas. As duas primeiras crianças já não choravam. Enquanto os três continuavam a bater ritmadamente na cabeça das duas crianças recém-chegadas, quatro mulheres se puseram a cortar o pescoço das duas primeiras, enquanto outras mulheres colhiam o sangue que jorrava do pescoço em cascos de frutas arredondados. Já dentro da noite, todos permaneciam em silêncio enquanto as mulheres terminavam de cortar o pescoço das duas últimas e escorrer o sangue. Em seguida, uma velha munida de uma pedra muito fina, arrancou o cérebro das quatro cabeças pela base do crânio, numa destreza maravilhosa. Todos esboçavam um sorriso de emoção diante daquela habilidade.

Ao final, todos ao redor da pedra comeram um pedaço do cérebro das crianças (começando pelos mais velhos até os mais novos, mesmo os bebês), primeiro das duas mortas, depois das duas últimas. Beberam o sangue das quatro. Os homens pegaram os quatros corpos sem cabeça e enterraram a distância de suas moradias. A velha colocou as quatro cabeças em linha reta por sobre uma pedra arredonda, e lá ficou por horas, como que meditando sobre o sentido da vida.

[email protected]. Folha de São Paulo, Abril de 2012.

A crise constante da segurança pública (RENATO SÉRGIO DE LIMA)

ENCERRADA a fase aguda que culminou nas greves de policiais antes do Carnaval, na Bahia e no Rio de Janeiro, o Brasil retoma a prática política de esquecimento dos problemas da segurança pública, relegando à própria sorte a população e as polícias, que continuam imersas em um cenário de intensas disputas políticas e institucionais.

Mas isso não acontece sem consequências ou custos! Em termos econômicos, o Brasil gastou, em 2010, de acordo com o Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, aproximadamente R$ 50 bilhões apenas com segurança pública. Esse valor significa algo como 1,4% do nosso PIB e quase 9% do total de impostos arrecadados por municípios, Estados, Distrito Federal e União. Ou seja, nosso sistema é caro, ineficiente, capacita e paga mal os profissionais encarregados de manter a ordem democrática e de garantir direitos da população.

Convivemos com taxas altas de criminalidade, de letalidade e vitimização policial. Há excesso de burocracia e não conseguimos oferecer serviços de qualidade ou reduzir a insegurança. No plano da gestão, paradoxalmente, várias iniciativas têm sido tentadas ao longo dos últimos anos: sistemas de informação, integração das polícias estaduais, modernização tecnológica, mudança no currículo de ensino policial, investimentos em novos equipamentos.

Elas dão sobrevida a um modelo na UTI, mas não atingem o cerne do problema, que é, sem meias palavras, político. Por exemplo: o Congresso há quase 25 anos tem dificuldades para fazer avançar uma agenda de reformas imposta pela Constituição de 1988. Até hoje existem diversos artigos sem a devida regulação, abrindo margem para enormes zonas de sombra e insegurança jurídica. Para a segurança pública, o efeito dessa postura pode ser constatado na não regulamentação do artigo 23 da Constituição, que trata das atribuições concorrentes entre os entes, ou do parágrafo 7º do artigo 144, que dispõe sobre os mandatos e atribuições das instituições encarregadas em prover segurança pública.

A ausência de regras que regulamentem as funções e o relacionamento das polícias federais e estaduais, e mesmo das polícias civis e militares, produz no Brasil um quadro de diversos ordenamentos para a solução de problemas similares de segurança e violência. Enquanto isso, não há grandes avanços em boa parte do território nacional. Não é surpresa, portanto, que o debate sobre segurança pública fique restrito à conquista de melhores salários pelos policiais e tipificação ou agravamento de crimes.

O Congresso não nos disse o que devem fazer as polícias brasileiras. Falta um projeto político que seja capaz de superar os corporativismos e pensar na polícia que o Brasil, moderno e democrático, precisa. O argumento de que a Constituição impede reformas substantivas não se sustenta. Há, com isso, um grande espaço de reformas legislativas que poderia ser percorrido se houvesse vontade política e mobilização social para a urgência de uma ampla revisão de normas, processos e leis anacrônicas que regulam esta área no Brasil.

Nosso drama é que, no pragmatismo reducionista da política brasileira, fica em aberto a pergunta sobre quem terá a disposição e a coragem política de liderar um vigoroso processo de reformas sem que uma crise dispare os alertas e as bandeiras eleitorais. É um problema de todos, mas não é assumido como responsabilidade política por ninguém.

RENATO SÉRGIO DE LIMA, 41, doutor em sociologia pela USP, é secretário executivo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Folha de São Paulo, Abril de 2012.

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Zona do euro tem maior desemprego desde 1997 - Mês de fevereiro registra 17 milhões sem trabalho, uma taxa de 10,8% - Estatísticas mostram ainda que produção industrial caiu pelo oitavo mês; até mesmo Alemanha teve queda

DAS AGÊNCIAS DE NOTÍCIAS

O DESEMPREGO na zona do euro atingiu seu nível mais alto desde 1997, com mais de 17 milhões de pessoas sem trabalho em fevereiro - uma taxa de 10,8%-, ao passo que a produção industrial caiu pelo oitavo mês consecutivo. Na opinião de economistas, esses números indicam que a região está entrando em recessão. São 162 mil desempregados a mais do que em janeiro e mais 1,48 milhão em relação a fevereiro de 2011. As maiores altas foram na Grécia e na Espanha. No conjunto da União Europeia, em um ano o índice de desemprego caiu em oito países, cresceu em 18 e ficou estável apenas na Romênia. Para Howard Archer, da consultoria Capital Economics, é alta a probabilidade de

que a zona do euro entre em recessão até o fim deste trimestre.

INDÚSTRIA

Os números da produção industrial mostram que a crise nos países periféricos se espalhou para as economias centrais, Alemanha e França. Economistas ficaram mais alarmados com a situação na França, onde a atividade industrial caiu no maior ritmo em três anos. Na Alemanha, o setor apresentou contração pela primeira vez neste ano. As únicas boas performances na zona do euro foram de Irlanda e Áustria, onde houve aumento na indústria. No caso irlandês, a produção industrial cresceu pela primeira vez desde outubro e no ritmo mais rápido em quase um ano.

O Reino Unido - que faz parte da União Europeia, mas não da eurozona - também teve um bom desempenho, com a produção industrial crescendo no ritmo mais rápido em dez meses.

NOTÍCIA. Folha de São Paulo, Abril de 2012.

O debate municipal é global (NIZAN GUANAES)

ESTE É O SÉCULO das cidades. Das grandes cidades. E, portanto, a era dos prefeitos. Dos grandes prefeitos. O prefeito de uma metrópole como o Rio é uma personalidade global. É um estadista. Já, já veremos nascer uma ONU das cidades. E os G8 e G20 das cidades terão tanto poder quanto os agrupamentos de países.

Alguns políticos brasileiros já perceberam isso. Se entrasse na política hoje, eu olharia a carreira de Eduardo Paes, o primeiro prefeito global do país. O homem que colocou o sarrafo da administração municipal lá em cima. Até porque o sarrafo dele é olímpico. Vejo isso no dia a dia, pois vivo entre Rio e São Paulo. E o que se discute no Rio é o que se discute em Londres, Nova York e Melbourne. O Rio caminha a passos largos para ser a metrópole do século 21. As metas de sustentabilidade do Rio são ambiciosas, claras e factíveis.

São Paulo, que é a cidade maior do país, não pode e não deve ficar para trás, discutindo na próxima campanha eleitoral aquela lenga-lenga de sempre. É obvio que os problemas são os "de sempre". Só que as soluções mudaram, e novos problemas surgiram. Qualidade de vida hoje em São Paulo é morar perto de onde você trabalha. Só que para isso os nossos candidatos a prefeito devem procurar ouvir a Marisa Moreira Salles e o pessoal do Arq.Futuro, e não apenas as pesquisas de opinião, porque o eleitor não pode antecipar necessidades que não sabe que tem.

Porque não dá pra querer comandar São Paulo sem ouvir o Philippe Starck. Que, aliás, trabalha uma semana por mês em nossa cidade. Está na hora de termos um plano urbano audacioso e à altura de São Paulo. Algo que traduza e produza a energia e a ambição desta cidade. Um Faria Lima 2. Que tal chamar o Alexandre Hohagen, do Facebook, o Fabio Coelho, do Google, e usar a capacidade da internet para repensar os serviços públicos e a organização urbana?

A maior empresa americana de pensar fora da caixa, a Ideo, trabalha hoje em São Paulo, seu time é de munícipes do futuro prefeito e vive ajudando as maiores empresas brasileiras a serem mundiais, pensarem de outra forma: inspiraria o debate municipal. Não é bom ouvir a Cisco, a HP, a Microsoft e a Apple sobre como melhorar o trânsito? Porque a tecnologia pode tirar muito mais gente do trânsito do que a velha engenharia de trânsito. Que tal construirmos um tecnoanel em paralelo ao Rodoanel? E se dermos isenção de impostos para as pessoas trabalharem à noite? Por exemplo, não pagam IPTU. É claro que eu já comecei a falar bobagem. Mas falar bobagem é o primeiro passo para chegar a coisas diferentes e revolucionárias.

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Um dos grandes passos é mudarmos do marketing político para o marketing público. O marketing político pensa o eleitor, o marketing público vai além e pensa o cidadão. O marketing político faz a campanha, o marketing público ajuda a pensar políticas públicas. Ou seja, o marketing tradicional pensa na venda, o marketing moderno, na experiência de comprar, no problema, na fidelização. São Paulo é a cidade mais energética do país. O novo ciclo de desenvolvimento do Brasil tem tudo a ver com a cidade. Seu "cluster" financeiro comanda nossa integração crescente e lucrativa com os fluxos de capital globais. Seus serviços de alta qualidade atraem gente do Brasil todo e de muitos países para seus hospitais, seus ativos culturais e muito mais.

Temos que tirar a arte dos museus e colocá-la nas ruas. Revigorar o nosso centro. Revolucionar a educação desta cidade e botá-la pra concorrer com Xangai e Bangalore. Enfim, tocar fogo no debate municipal. Para que os mais jovens assistam aos programas eleitorais. No dia 3 de outubro São Paulo vai eleger seu líder global: o prefeito de São Paulo, o homem que vai nos representar no planeta em plena era das cidades. Que vai conversar com Michael Bloomberg e com o prefeito de Londres. Que vai decidir quantas horas da minha vida eu vou passar no trânsito, o síndico deste megaprédio de 11 milhões de pessoas (um Portugal). Não há nada de municipal neste debate municipal. Ele é global. É bom os eleitores não esquecerem isso. E os candidatos e seus homens de marketing também.

NIZAN GUANAES, publicitário e presidente do Grupo ABC, escreve às terças, a cada 14 dias, nesta coluna. Folha de São Paulo, Abril de 2012.

Invasão de especialistas (ROSELY SAYÃO)

NO PRINCÍPIO, era a escola com seus alunos e professores. Uniformes impecáveis, comportamentos idem, disciplina militar, regras de todos os tipos, alunos em geral obedientes, passivos, temerosos. Quando o aluno cometia alguma falta, era imediatamente penalizado: era obrigado a escrever muitas vezes alguma frase, ficar no canto da sala, levar puxão de orelha etc. A suspensão e a expulsão também eram punições aplicadas de modo exemplar.

Há quem sinta uma certa nostalgia dessa escola, que assim permaneceu pelo menos até o início dos anos 60. O que não se costuma considerar é que essa escola era para poucos, bem poucos. Para os alunos que não precisavam que a escola, de fato, exercesse seu papel. Para bem funcionar, essa escola distribuía vereditos: alunos que não aprendiam como a média dos colegas eram simplesmente considerados inaptos para o estudo escolar. E ponto final.

Na década de 60 surgiram novas teorias da educação que traziam o anseio de alunos mais participativos em seu processo escolar e condenavam muitos dos castigos até então aplicados. Novos ares tomaram conta da escola. Nos anos 70, a instituição se abriu para muitos alunos novos que, antes, não tinham lugar na escola. Mudou muita coisa, mas quero chamar a atenção para uma nova presença no espaço escolar: a dos psicólogos. A proposta da entrada desses profissionais na escola era bem interessante: colaborar para que o ensino fosse democrático, ou seja, garantir que todo tipo de aluno pudesse aprender. Mas essa proposta não vingou. Diagnósticos "psi", atendimentos clínicos na escola e o mau uso de princípios teóricos da psicologia deram um ar moralista a essa disciplina do conhecimento no espaço escolar. Logo depois chegaram também os fonoaudiólogos, os fisioterapeutas, os psicopedagogos.... Não parou aí. Na sequência, os médicos foram convidados e/ou se convidaram a entrar na escola também e os diagnósticos médicos explicando e justificando as mais diversas questões dos alunos passaram a ter presença regular na instituição.

No princípio, era a escola com seus alunos e seus professores; agora temos alunos, professores, psicólogos, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais, psicopedagogos e médicos das mais diferentes especialidades. São os chamados especialistas. Você pensa, caro leitor, que vamos parar por aí? Nem pensar. Agora há outro profissional entrando pela porta da frente da escola e interferindo nela: os advogados.

Atualmente, muitos pais têm procurado advogados para que eles garantam o que consideram um direito do filho ou para que processem a escola por ter agido mal ou por não ter agido em situações bem diversas, como notas, relacionamento com colegas, relacionamento com professores, aprovações, retenções, fatos que repercutem nas redes sociais e envolvem alunos da mesma escola etc. Estamos vendo a inauguração de uma cultura escolar.

No princípio, era a escola com seus alunos e professores; agora temos a relação entre aluno e professor com a interferência de vários outros especialistas, inclusive médicos e advogados. Deveríamos nos interessar em saber como fica a relação que deveria ser a mais preciosa -entre professor e aluno- com a intervenção de tantos outros profissionais alheios à educação escolar.

ROSELY SAYÃO é psicóloga e autora de "Como Educar Meu Filho" (Publifolha). Folha de São Paulo, Abril de 2012.

De paciente na UTI a atleta olímpico (FREDERICO FLEURY CURADO)

A INDÚSTRIA foi o setor econômico no Brasil que mais sofreu com os movimentos macroeconômicos que o país e o mundo experimentaram nas últimas décadas. A participação da indústria de transformação brasileira na formação do

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Produto Interno Bruto retrocedeu de 35% para 15% nos últimos 30 anos e a situação atual poderia ser metaforicamente classificada como a de um paciente na UTI.

Para uma maior clareza da dimensão do problema, a Coreia viu seu PIB industrial evoluir de 9% para 38% no mesmo período, a China de 27% para 52%, e a Indonésia de 9% para 30%. O governo brasileiro não está contemplativo diante desse quadro negativo e tem utilizado três estratégias para criar um ambiente que permita a preservação e recuperação da indústria nacional: o Plano Brasil Maior, a redução dos juros associada a medidas prudenciais que tentam se contrapor ao processo de supervalorização do real e a sólida capacidade de investimentos do BNDES.

O Brasil precisa, entretanto, perenizar os meios e as condições para que sua indústria possa não apenas sobreviver, mas ter alta hospitalar, explorar todo seu potencial e vigor físico e evoluir para uma condição de atleta olímpico. Isso se dará através de uma política industrial inteligente, arrojada e longeva, que necessariamente deve se apoiar nos pilares da produtividade, do estímulo aos investimentos e da competitividade global da economia brasileira. A questão da produtividade envolve a qualificação da mão de obra, a inovação lato sensu, o desenvolvimento tecnológico e a modernização do parque industrial. Estado e empresas têm papéis complementares nesse esforço, sintonizando as suas prioridades, investindo de forma contínua, crescente e compartilhando riscos.

No que tange à competitividade global da economia brasileira, além de enfrentar a concorrência de importados no mercado doméstico, é preciso que a nossa indústria conquiste mercados de exportação. Os fatores sistêmicos são complexos, como câmbio, infraestrutura e custo de capital, mas é no anacrônico sistema tributário que reside o maior empecilho ao desenvolvimento econômico e social do país. Não é uma agenda simples, por certo, mas é rigorosamente necessária para fazer o Brasil deslanchar em definitivo. Assim como um atleta não consegue competir em todas as modalidades, o Brasil não será competitivo em todos os setores da indústria. Por outro lado, uma vez estabelecidas as condições de longo prazo, o foco nos segmentos industriais com real capacidade de competir globalmente surgirão naturalmente.

O momento é propício para se iniciar uma firme reversão das adversidades que afligem a indústria brasileira. Um país com a dimensão geográfica e populacional do Brasil não precisa fazer uma opção entre ser uma potência produtora de commodities e uma potência industrial, tendo todas as condições de ser ambos.

FREDERICO FLEURY CURADO, 50, é engenheiro e presidente da Embraer. É vice-presidente Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi). Folha de São Paulo, Abril de 2012.

Obstáculos para o ensino superior (CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ)

O PRESIDENTE DA CAPES, Jorge Guimarães, comentou aqui ("O ensino superior no país está crescendo", de 28 de fevereiro) uma análise minha sobre a mudança de tendência na evolução da educação superior no país, a partir de 2005. Com dados anuais do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais), observei notável redução na taxa de crescimento do número de concluintes após 2005.

Guimarães levanta a importância de considerar os concluintes em cursos de ensino à distância (EAD), além dos de cursos tradicionais. Bom ponto. Parece-me mais correto, entretanto, considerar o ensino à distância separadamente -pelo fato de ele ser diferente da modalidade presencial. Diferente não é melhor nem pior, significa que atende a uma clientela diferente, com objetivos diferentes. Entre os cursos à distância, há poucos de engenharia e medicina. Nem o Ministério da Educação computa concluintes de EAD junto com os presenciais (o INEP apresenta em tabelas de seções diferentes).

Os cursos presenciais demandam infraestrutura predial e laboratorial, investimentos em professores e permanência de estudantes. A adição dos concluintes em EAD, no entanto, não muda a reversão na taxa de crescimento. De 1995 a 2005, o número de concluintes em universidades públicas cresceu 8,3% ao ano. De 2005 a 2010, a variação foi de -0,4% ao ano (-2,2% sem os concluintes de EAD). Houve menos concluintes em 2010, comparado com 2005, mesmo com o EAD.

O crescimento no ensino privado também perdeu força; no total, juntas entidades públicas e privadas, a taxa de crescimento até 2005 era de 10,9% ao ano e caiu para 6,3% ao ano de 2005 a 2010. Quanto à baixíssima probabilidade (0,7%) de um jovem paulista com ensino médio completo poder cursar uma boa universidade federal em São Paulo, Guimarães menciona realizações importantes, mas ainda insuficientes, como a criação da UFABC. A resposta do MEC ao apontar para as vagas do sistema unificado federal fora de São Paulo basicamente diz aos jovens paulistas: "Vão embora de São Paulo para estudar em outros Estados". Ela não satisfaz, dada a dimensão da colaboração do contribuinte paulista com a arrecadação federal. O fato é que o número de concluintes nas universidades federais no Estado de SP em 2010 representou apenas 13% dos concluintes nas estaduais paulistas em 2010. Na pós-graduação, persiste a queda de crescimento anual. O Plano Nacional de Pós-Graduação da Capes, de 2005, previa em 2010 a titulação de 16.295 doutores. O resultado foi 11,3 mil, 31% abaixo da meta. Por que tudo isso aconteceu? Que políticas precisam ser revisadas para recuperar a taxa de crescimento necessária ao desenvolvimento do Brasil?

Para que o ensino superior se desenvolva em quantidade e qualidade, é essencial aumentar a frequência ao ensino médio no país, assim como a sua qualidade. Não adianta tapar o sol com a peneira: sem consertar o ensino médio, o ensino superior -presencial e à distância, público e privado, de graduação e de pós-graduação- enfrentará dificuldades crescentes.

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CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ, 53, é diretor científico da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São

Paulo). Foi reitor da Unicamp e presidente da Fapesp. Folha de São Paulo, Abril de 2012.

Código Florestal, paz e segurança no campo (MENDES RIBEIRO FILHO)

O BRASIL evoluiu e hoje as diferenças se resolvem no diálogo e não mais com o enfrentamento. Os esforços no Congresso Nacional para produzir um novo Código Florestal já duram 13 anos. Durante todo esse período, além dos debates internos na Câmara Federal, a sociedade foi chamada a discutir e a construir a nova proposta.

O novo Código Florestal representa um avanço para o país. A proposta que retorna à Câmara para a revisão final assegura a reserva legal nas propriedades privadas; busca garantir a consolidação de áreas de preservação permanente; introduz instrumentos econômicos para compensação para serviços ambientais e comercialização de produtos e subprodutos da floresta. Tudo para garantir segurança jurídica aos produtores e possibilidades de recuperar o passivo ambiental. Devemos propiciar ao produtor que ele agregue valor ao produto e que gere mais empregos e renda. A proposta do novo Código Florestal, tanto a votada inicialmente na Câmara dos Deputados, como a aprovada pelo Senado, resolve mais de 98% dos problemas que envolvem milhões de famílias de produtores rurais.

O deputado Paulo Piau é um político experiente, pesquisador e produtor rural. Tem assim todas as qualidades para apresentar um relatório de consenso e a serenidade indispensável para conduzir um processo dinâmico como se apresenta. É fundamental votarmos o Código Florestal para preservar o trabalho do relator e a construção democrática proveniente de mais de uma década de debates. O tempo necessário, só os deputados nos dirão. Os avanços obtidos durante esse processo foram além das expectativas de agricultores e ambientalistas. Não haverá vencedores ou vencidos. Da mesma forma que o novo código não necessariamente precisa se tornar uma obra pronta e acabada. Ajustes poderão ser feitos a cada intervalo de tempo. A economia mudou. A política se torna mais dinâmica a cada dia e a legislação não pode permanecer imutável.

Olhando para o passado, verifico que o processo de uso legal da terra no Brasil tem mais de cinco séculos. Nesse período, o ordenamento de seu uso teve legitimidade e ilegalidades. No século 20, as legislações posteriores sofreram diferentes aportes do Executivo por meio de medidas provisórias e decretos lei, trazendo uma legislação complexa e inviável, por não considerar áreas consolidadas no tempo. Nesse processo, milhões de agricultores e um número enorme de cadeias produtivas foram colocados na ilegalidade: produtores de arroz em várzeas, de uva nos morros e de leite e hortifrutigranjeiros em áreas de preservação permanentes ripárias.

Este é o momento de repararmos essas inconformidades. Os produtores rurais precisam ter segurança jurídica para produzirem com reconhecida competência no Brasil e no mundo. Precisamos levar paz e segurança para quem trabalha no campo, para quem alimenta 190 milhões de brasileiros e gera excedentes comercializados em mais de 200 destinos no mundo, trazendo uma formidável receita comercial de US$ 90 bilhões somente em exportações. Temos, hoje, 61% de espécies nativas preservadas através de terras indígenas, unidades de conservação da biodiversidade, áreas de preservação permanente e reserva legal. Somente 30% do nosso território é destinado à agropecuária.

Precisamos continuar produzindo com sustentabilidade, garantido a 30 milhões que vivem no campo emprego e renda. No Brasil há espaço para todos. Seja no campo ou na forma da lei, os que produzem e os que preservam estão lado a lado, ocupando o mesmo espaço.

MENDES RIBEIRO FILHO, 57, advogado, é ministro da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Folha de São Paulo, Abril de 2012.

'Não creu ni eu, se finou-se' (PASQUALE CIPRO NETO)

DOS MAIS de duzentos personagens do grande Chico Anysio, o meu favorito é o genial "Bento Carneiro", o impagável "Vampiro Brasileiro". Um dos bordões do vampiro se tornou popular e eterno: "Não creu ni eu, se finou-se". Aliás, ver seus escritos caírem na boca do povo é a glória das glórias para quem escreve, ainda que o povo (quase sempre "desatento") não saiba de quem são os escritos ou os ditos.

Quem é que sabe dizer, de bate-pronto, de quem é a letra de "Carinhoso", errada e preguiçosamente atribuída pelo público e por jornalistas, radialistas etc. a Pixinguinha, que é o autor da melodia? A letra é de João de Barro, o Braguinha. Para obter a informação, basta ler nos selos, nos encartes e nas contracapas dos discos o que está nos parênteses que vêm depois do nome da música. Quantas vezes vejo por aí camisetas em que se leem os versos que abrem a "Canção da América" ("Amigo é coisa pra se guardar debaixo de sete chaves, dentro do coração") atribuídos a Milton Nascimento, que é o autor da bela melodia. A letra é do querido Fernando Brant, mas para saber isso é preciso um baita esforço (ler os parênteses - ai, que preguiça!).

Brant confirma o que afirmei no fim do primeiro parágrafo. Modesto, diz que não se importa que atribuam ao melodista a autoria dos versos que ele, poeta, lavra. "Basta que cantem por aí, para todo o sempre", diz o autor da letra de "Maria, Maria", "Travessia", "Nos Bailes da Vida" e tantas outras maravilhas. Mas voltemos ao "Vampiro Brasileiro" e seu impagável bordão. Valendo-se da sintaxe popular, presente, por exemplo, quando o pronome reto "eu" assume a função de

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complemento verbal indireto (tanto de "creu", em "Não creu ni eu", quanto de "ri", em "E, para quem ri de eu, minha vingança sará maligna"), Chico Anysio confere a seu personagem legitimidade, realismo. A legitimidade e o realismo obviamente não se manifestam só pela linguagem e pela sintaxe; manifestam-se sobretudo pela carnavalização, pela deformação e pelo exagero que compõem o inesquecível personagem.

Chama a atenção a flexão verbal "creu", que, embora não seja comum no uso oral urbano, ocorre em alguns dialetos rurais. Essa forma nada mais é do que a terceira do singular do pretérito perfeito do indicativo do verbo "crer". É bom deixar claro que "creu" ocorre tanto no padrão formal da língua, sobretudo na escrita, quanto em algumas variedades dialetais. E como é a flexão completa do pretérito perfeito de "crer"? Vamos lá: "eu cri, tu creste, ele creu, nós cremos, vós crestes, eles creram". Eu cri? Sim, eu cri, assim como de "ler" se faz "eu li" e de "ver" se faz "eu vi". O fato é que, embora "explicável", a forma "cri" é daquelas que a gente vê ou ouve tão pouco que, quando vê ou ouve, para para pensar.

Sentiu falta do acento na forma verbal "para", caro leitor? Agradeça aos deuses do "(Des)Acordo Ortográfico". Aliás, por falar em "(Des)Acordo", fui convidado pela Comissão de Educação do Senado para participar, como expositor, de uma audiência pública sobre o glorioso. Na coluna da semana que vem, relatarei aos leitores os desdobramentos dessa audiência. Voltando aos bordões de "Bento Carneiro", imagino que não seja exagero afirmar que, por enquanto, a "vingança" dos povos lusófonos é mesmo "maligna". Refiro-me ao "(Des)Acordo Ortográfico", ainda solenemente ignorado, desprezado e condenado por significativa parcela dos lusoparlantes. É isso.

[email protected]. Folha de São Paulo, Abril de 2012.

American dream (CONTARDO CALLIGARIS)

OS ESTADOS UNIDOS parecem estar divididos como nunca. No entanto, todos concordam: para ganhar as eleições presidenciais, é preciso conquistar o centro moderado - sem ele, não há vitória possível. Mas o que é, nos EUA, o centro político? Em geral, a gente entende assim: os democratas são socialistas "rosas", indulgentes em matéria de costumes e convencidos de que o governo precisa intervir na vida econômica (por exemplo, para compensar as diferenças excessivas à força de impostos e programas assistenciais), e os republicanos são caretas em matéria de costumes, mas contrários a todo tipo de tutela governamental.

Essa descrição sumária omite um pano de fundo que é comum a democratas e republicanos, simplesmente por eles serem norte-americanos, e esse pano de fundo é feito de antigovernismo e valorização da liberdade individual. Por exemplo, quando um democrata é indulgente em matéria de costumes, não é necessariamente por inclinação libertina, mas por ele colocar a liberdade dos indivíduos acima da moral comum. Ou, então, quando um republicano defende um capitalismo desregrado, que garanta ao empreendedor a mesma liberdade que permitiu a expansão do país para o Oeste, não é por convicção econômica, mas porque ele acha que o governo deveria colocar obstáculos nas rodas dos indivíduos só se eles forem absolutamente necessários para a vida em comunidade.

Esse espírito libertário é o do centro americano, sem o qual ninguém é eleito. Dos dois lados desse centro, há extremos que o ameaçam e dos quais os moderados não gostam. Por exemplo, as aspirações de justiça social dos democratas "extremistas" podem parecer perigosas aos olhos do centro moderado: ainda hoje, discute-se seriamente para saber se o seguro médico universal, por ser obrigatório, não ameaça a liberdade do indivíduo. Quanto ao "extremismo" republicano, que também faz o desgosto dos moderados, ele mostrou sua cara especialmente no último ano.

Para não perder as simpatias do centro, o partido republicano obviamente prefere candidatos nada "extremos" -hoje, Mitt Romney, em 2008, John McCain. Mas o sucesso da campanha do maior concorrente de Romney, o senador Rick Santorum, mostra que a tentação extremista republicana é forte. De que se trata? Santorum, por exemplo, declarou que ele teve vontade de vomitar quando ouviu o presidente Kennedy defender a separação da igreja e do Estado. É óbvio que a união de Estado e igreja leva qualquer governo a atropelar a liberdade privada de seus cidadãos, ou seja, é óbvio que a frase de Santorum é oposta aos ideais libertários do centro americano. Por que ele se engajou neste caminho? De onde lhe veio essa ideia? Costuma-se pensar (e dizer) que o sonho americano começa com os puritanos, que saíram da Inglaterra a procura de liberdade religiosa. Mas os puritanos estavam interessados só na sua própria liberdade religiosa, não na dos outros. Como projetava John Winthrop em 1630, ainda no barco que o levava para a nova terra, eles construiriam "uma cidade que brilharia nas alturas", exemplo para mundo, mas uma cidade fechada (na qual quem não concordasse seria enforcado como as bruxas de Salem e a mulher que pecasse por adultério seria marcada com uma letra escarlate).

Por sorte, em 1631, Roger Williams começou a pregar a separação de Estado e igreja e o direito de qualquer um de venerar o deus que bem entendesse. Williams foi expulso e fundou Providence, outra cidade "nas alturas", mas aberta, onde ele inventou a liberdade de professar sua fé sem impô-la aos outros - ao contrário, com a ideia de que defender a liberdade dos outros é a melhor maneira de proteger a nossa própria liberdade. Pois bem, o centro moderado norte-americano acredita em Roger Williams. Mas é preciso constatar que Rick Santorum e os republicanos extremistas não são uma invenção recente: como John Winthrop, eles sonham com a paz simplória de um vilarejo onde não se leia nada além da Bíblia e onde sempre seja possível dizer o que é certo e errado -e, claro, proibir o que seria "errado".

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É curioso que ninguém repare no óbvio: os sonhos deles não são diferentes dos sonhos do Talibã de qualquer vilarejo do Afeganistão. Os fundamentalistas são todos iguais: "apenas" querem que a lei de seu deus seja mandatória para todos os demais. Por sorte nossa, não é esse o sonho daquele centro moderado norte-americano que, em geral, escolhe os presidentes.

[email protected]. Folha de São Paulo, Abril de 2012.

A terceirização é um retrocesso trabalhista? NÃO

Criando empregos e respeitando à lei (PAULO LOFRETA)

PODE O SETOR que mais gera emprego e renda ser agente da "precarização" do trabalho? Certamente não. O que precariza as relações de trabalho são empresas inidôneas que campeiam na informalidade, prestam serviços de baixa qualidade a preço inexequível e descumprem as leis trabalhistas.

A presidente Dilma Rousseff classificou como "excelente" o desempenho do mercado de trabalho em 2011. Lembramos que, no período, a prestação de serviços foi novamente a campeã na geração de empregos formais: 925.537 vagas, 52% das 1.944.560 com carteira assinada. Nas empresas prestadoras representadas pelos parceiros da Central Brasileira do Setor de Serviços (Cebrasse), a menor média salarial oscila entre R$ 800 e R$ 2.000.

Na escolaridade, os funcionários têm os níveis básico e médio completos. Fica claro, então, que nossa atividade é agente formal e legal dos movimentos de ascensão e mobilidade social das classes de menor renda - que respondem por boa parte do incremento da atividade econômica no país. Outro ponto tão importante para o governo brasileiro.

Empregos são criados em muitas áreas. Alguns exemplos: trabalho temporário, asseio e conservação, segurança privada, educação, transporte de valores, escolta, administração, mercado de limpeza profissional, limpeza urbana, combate a pragas, benefícios, refeições coletivas, televisões a cabo, informática, franchising, marketing e eventos, gestão de negócios, distribuição, logística, manutenção e muitos outros.

Os dados do Sindeprestem (Sindicato das Empresas de Serviços Terceirizáveis e Trabalho Temporário, que representa mais de 34 mil empresas) apontam que o país tem hoje cerca de 10,5 milhões de trabalhadores terceirizados (2,6% das ocupações da categoria no mundo), que são 24% dos 44 milhões dos formalmente empregados. Somos o quarto país do mundo nessa forma de empregabilidade. Assim, apontar a "precarização" do trabalho como resultado da terceirização é ter uma visão curta, com um alto grau de miopia distorcendo a realidade.

Os serviços têm na mão de obra o seu maior insumo e na terceirização a sua via de acesso à cadeia produtiva da indústria, do comércio, dos governos, do setor financeiro, das telecomunicações e dos próprios prestadores. Nossos empresários, portanto, não podem aceitar ataques, como se suas atividades fossem estupidamente surdas às leis trabalhistas, despidas de ética e de moralidade e operassem esgueiradas por todo o país.

Fica óbvia a relevância da terceirização como modalidade de trabalho, emprego e renda. Notadamente no Brasil da Copa de 2014 e das Olimpíadas de 2016. No Brasil que cada vez mais recebe investimentos estrangeiros por conta da crise que assola outros países. Instala-se no planeta uma nova ordem econômica e social, que não se limita apenas a transferir o poder porque também o transforma.

O que tudo isso denota? A precariedade do argumento de que a terceirização precariza, ainda mais em um momento em que nosso país deve estar na vanguarda da modernização das relações empregatícias. Vamos esclarecer mais uma coisa: oferecer trabalhos decentes é o melhor serviço do mundo!

PAULO LOFRETA, 50, administrador de empresas e empresário, é presidente da Central Brasileira do Setor de Serviços (Cebrasse). Folha de São Paulo, Abril de 2012.

A terceirização é um retrocesso trabalhista? SIM

O trabalhador como mercadoria (MIGUEL PEREIRA)

UM TEMA que deve ser debatido em breve no Congresso Nacional é a terceirização. Desde o ano passado, o assunto ganhou espaço e foi objeto da primeira audiência pública do Tribunal Superior do Trabalho (TST). Há vários mitos, verdades e interesses que precisam ser identificados e discutidos pelos deputados, pelos senadores e pela sociedade.

O que muitos costumam chamar de terceirização não passa, na maioria das vezes, de prática ilegal de intermediação de mão de obra. O critério da atividade-fim ou atividade-meio de nada vale se estiverem presentes os elementos caracterizadores da relação formal de emprego: pessoalidade, subordinação, habitualidade e onerosidade. Essa forma de contratação tem sido usada pelas empresas para reduzir custos com pessoal e aumentar a rentabilidade e o lucro.

Afirmações como "a terceirização é geradora de empregos", "é através dela que se eleva a eficiência do trabalho", "é um jeito moderno de gestão e organização da produção" e "é um processo irreversível e um avanço trabalhista" não passam de mitos forjados para tentar acobertar a precarização que não se sustentam à luz dos fatos.

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Nos últimos anos, o Brasil voltou a crescer e gerou milhões de empregos com carteira assinada. Isso não foi resultado da flexibilização de direitos trabalhistas, como pregavam os neoliberais de plantão na década de 1990, mas de investimentos e de políticas públicas, do crescimento da economia e da valorização do trabalho, com formalização e aumentos reais de salários. Entretanto, o Brasil é o segundo país com maior desigualdade do G20. Apenas a África do Sul fica atrás. Essa dura realidade não mudará com terceirização, "quarteirização" e "pejotização", que têm produzido empresas sem qualquer trabalhador. O aumento da produtividade das empresas é positivo, mas não pode ser fruto da submissão a novas divisão e organização do trabalho que só focam a lucratividade. Sobram para os trabalhadores baixos salários, menos direitos, rotatividade, quebra da identidade de classe e da solidariedade e enfraquecimento sindical -além de maiores níveis de adoecimento, insegurança e mortes. A negligência por parte das contratadas no cumprimento dos contratos tem provocado uma série de prejuízos aos empregados, como o não pagamento dos direitos trabalhistas, previdenciários e, particularmente, rescisórios.

Não é à toa que milhares de ações judiciais questionam a legalidade do processo e cobram os direitos dos trabalhadores. Esses passivos são, na verdade, os reais interesses que estão por trás do chamado "risco jurídico" a que as empresas alegam estarem submetidas. Na intermediação de mão de obra, o trabalhador é tratado como mercadoria, a exemplo da época da escravidão, já varrida há mais de um século. A superexploração do trabalho não combina com modernidade e com desenvolvimento econômico e social.

Cabe ao Congresso Nacional aprovar uma lei que realmente fortaleça as relações de emprego e os direitos dos trabalhadores. Uma legislação precarizante pode comprometer o futuro da nação. O Brasil precisa de trabalho decente, qualidade de produtos e serviços, distribuição de renda, inclusão social, segurança e proteção da vida dos trabalhadores e da população.

MIGUEL PEREIRA, 44, advogado, bancário e secretário de Organização da Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo Financeiro (Contraf-CUT). Folha de São Paulo, Abril de 2012.

A Filha de Flora (MALU FONTES)

HÁ DUAS semanas da estreia, o novo novelão global das nove, Avenida Brasil, já tem uma vilã para chamar inteiramente de sua e, diga-se de passagem, muito mais crível que a tal rainha do Nilo inverossímil que até pouco tempo batia ponto no mesmo bat-canal e atendia pelo nome de Tereza Cristina (Christiane Torloni). Agora é a hora e a vez da Carminha de Adriana Esteves, a vilã de João Emanuel Carneiro. De tão imoral e amoral, Carminha tinha tudo para não ser tolerada pelo público de novelas, assim de um gole só, já nas primeiras cenas da novela. Embora o gosto por telenovelas no Brasil e o realismo do gênero no país leve a crer que o telespectador é permeável a algumas tolerâncias, a verdade é que o público situa-se numa posição moral muito pouco ou quase nada disposta a concessões quando alguns autores lhe apresentam personagens que adentram determinadas fronteiras morais e familiares sem oferecer compensações.

VÍSCERAS - Sim, a vilania nas novelas tem limites e quase sempre esse limite é construído usando como válvula de escape a loucura ou o humor da personagem. Além disso, recomenda-se deixar de fora perversidades explícitas contra crianças. Nazaré Tedesco, Tereza Cristina, Laura Prudente e Odete Roitman tinham, cada uma ao seu jeito, algo de histriônico, traços de humor e eram carregadas de bordões. Assim, só para citar estas, iam contornando aos olhos dos telespectadores seus excessos pouco críveis cometidos. Já Carminha, criada pelo ―pai‖ de Flora (Patrícia Pillar), de A Favorita (2008), o mesmo João Emanuel Carneiro, não traz concessões: é a perversão em estado bruto, in natura, uma vilã absurdamente imoral e amoral, a um ponto tal que, apostar em um personagem com sua constituição moral no início de uma trama televisiva e lhe dar tamanho destaque nos primeiros capítulos, é um risco que só autores, roteiristas e diretores de mão cheia se permitem correr, pois a chance de o público abandonar a poltrona com as vísceras revolvidas existe e não é pequena.

LÁGRIMAS OCEÂNICAS - Mas, diferentemente do que se insinua nessas primeiras semanas de novela no ar, a promessa criativa e arrojada do modelo de vilania de Carneiro nem de longe está depositada em Carminha. Ou nem de longe está depositada exclusivamente nela. As fichas dos jogos sobre a moralidade, a ambiguidade da maldade e sobre a tese dos fins justificarem ou não os meios estão na mesa, mesmo, é para a mocinha insólita da trama usá-las e abusá-las: a ex-Rita e atual Nina (Débora Falabella), a branca de neve metaforizada, vítima da Carminha amoral, órfã hiperbólica de pai e mãe e objeto de todas as maldades associadas às madrastas das fábulas.

Descartada e literalmente depositada num lixão e depois redimida pelo amor de uma mãe postiça interpretada por Vera Holtz que lhe faz a ponte com uma adoção bem sucedida por uma família argentina, a Branca de Neve de Carneiro volta adulta à trama, disposta literalmente a revolver o lixo onde foi jogada, a devolver aos seus algozes cada lágrima derramada sob a interpretação da dulcíssima Mel Maia na primeira fase. E, de tantas, as lágrimas causadas por Carminha e vertidas por Rita-Nina/Mel, já nem pareciam cenográficas, mas oceânicas.

TALHERES - Filho da fina flor da classe média alta do Rio de Janeiro, nascido e criado nos melhores endereços do Leblon, filho único de mãe antropóloga e de formação cultural densa, João Emanuel Carneiro é, no casting da nova geração de autores da Globo, um nome de duzentos talheres. Embora fale de subúrbio, jogadores de futebol meso decadentes, bailes funk e técnicas de alisamento capilar da nova classe C, o moço não esconde que suas referências são de uma

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sofisticação literária a toda prova: de Crime e Castigo de Dostoievski, a Ilusões Perdidas, de Balzac, passando pela ideia de vingança da trama de O Conde de Monte Cristo, ele chegou à sua Branca de Neve revisitada no lixão. Para descrever as relações familiares e sexuais do subúrbio, vai de Nélson Rodrigues. E para dar densidade à sua heroína que de mocinha não terá quase nada, vai dele mesmo: mergulha em sua própria criação, Flora, a vilã adorável de Patrícia Pillar em A Favorita.

Carneiro tem feito questão de dizer em entrevistas que Nina é nada menos que uma filha dileta de Flora, uma Flora melhorada, má que só, mas com uma causa nobre que justifica seus sentimentos: Nina é uma vilã-mocinha, ambígua, eivada de maldades, mas para quem a família brasileira (expressão dele) não terá pudor de torcer. A favor, claro. Carneiro nega peremptoriamente que Nina seja uma personagem em busca de vingança. Enfatiza que todo o mal que a mocinha cheia de ódio fizer contra a vilania de Carminha atende pelo legítimo nome de Justiça.

MALU FONTES é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em

08 de abril de 2012, no jornal A Tarde, Caderno 2, p. 05, Salvador/BA; [email protected]