COLLINS, Francis Sellers - A Linguagem de Deus

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    A LINGUAGEM DE DEUS

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    Francis S. Collins

    A LINGUAGEM

    DEDEUSUmcientistaapresentaevidnciasdequeEleexisteTraduo:

    GiorgioCappeli

    Digitalizao:Argo (apelido de "Deus")

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    A meus pais, que me ensinaram a adorar o aprendizado.

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    SUM RIO

    Introduo9

    PRIMEIRAPARTEOcismaentreacinciaeaf17CAPTULO I: Doatesmocrena19

    CAPTULO2:Aguerradasvisesdemundo41

    SEGUNDAPARTEAsgrandesquestesdaexistnciahumana63

    CAPTULO3:Asorigensdouniverso65CAPTULO4:AvidanaTerra:sobremicrbioseohomem91

    CAPITULO5:Decifrandoomanualde instruesdeDeus:as

    liesdogenomahumano115

    TERCEIRAPARTEFnacincia, femDeus149CAPTULO6:Gnesis,GalileueDarwin151

    CAPTULO7:Alternativa I: Atesmoeagnosticismo165

    CAPTULO8:Alternativa2:Criacionismo177

    CAPTULO9:Alternativa3:Designinteligente187

    CAPTULO10: Alternativa4:BioLogos203

    CAPTULO11: Osquebuscamaverdade217

    Apndice

    Aprticamoraldacinciaedamedicina:Biotica239

    Agradecimentos277

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    INTRODUO

    NUMDIAQUENTEDEVEROdoprimeirosemestredo novomilnio,ahumanidade atravessou umaponte rumo a uma nova era detremenda importncia. Ao mundo

    inteiro foi transmitido umpronunciamento, com destaque empraticamente todos os jornais maisimportantes, apregoando que oprimeiro rascunho do genomahumano, nosso manual de

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    O genoma humano formado por todo o DNA de nossa es-

    pcie; o cdigo de hereditariedade da vida. O texto

    recm- revelado apresentava 3 bilhes de letras, escritonum cdigo estranho e enigmtico composto de quatro

    letras. A complexi- dade das informaes contidas em cadaclula do corpo huma- no tamanha e to impressionante

    que ler uma letra por se- gundo desse cdigo levaria 31anos, dia e noite, ininterrupta- mente. Se imprimssemos

    essas letras num tamanho de fonte regular, em etiquetasnormais, e as unssemos, teramos como resultado uma torre

    do tamanho aproximado de um prdio de53 andares. Pela primeira vez naquela manh de vero, aqueleenredo fabuloso, que continha todas as instrues para cons-

    truir um ser humano, encontrava-se disponvel para o mundo.

    Como lder do Projeto Genoma Humano

    internacional, no qual me empenhei por mais de uma dcadaa fim de revelar a seqncia do DNA, fiquei ao lado do

    presidente Bill Clinton, no Salo Leste da Casa Branca,

    juntamente com Craig Venter, o lder de uma empresaconcorrente do setor privado. O primeiro- ministro Tony Blairestava conectado ao evento via satlite, e as comemoraesaconteciam em vrias partes do mundo.

    Clinton iniciou o discurso comparando o mapa da seqnciado genoma humano ao que Meriwether Lewis desdobrou diante

    do presidente Thomas Jefferson, naquele mesmo recinto, qua-se duzentos anos antes.

    Sem dvida afirmou Clinton , trata-se do mapa maisimportante e mais extraordinrio j produzido pela humanidade.

    No entanto, a parte de seu discurso que mais chamou a aten-o do pblico saltou da perspectiva cientfica para a espiritual.

    Hoje disse ele , estamos aprendendo a

    linguagem com a qual Deus criou a vida. Ficamos ainda mais

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    Ser que eu, um cientista rigorosamente treinado,fiquei

    desconcertado com uma referncia religiosa to espalhafatosa,feita pelo presidente dos Estados Unidos num momento como

    aquele? Fiquei tentado a mostrar-me irritado ou a olhar enver-gonhado para o cho? No, nem um pouco. Na

    verdade, eu trabalhara com o redator do discurso dopresidente naqueles dias de frenesi que precederam o evento,

    e fui enftico em meu apoio incluso desse pargrafo.

    Quando chegou o momento em que precisei acrescentar

    algumas palavras de minha auto- ria, fiz coro com essesentimento:

    um dia feliz para o mundo. Para mim no h pretenso

    nenhuma, e chego mesmo a ficar pasmo ao perceber que apa-nhamos o primeiro traado de nosso manual de instrues, an-

    teriormente conhecido apenas por Deus.

    O que se passava l? Por que um presidente e um cientista,no comando do anncio de um marco da Biologia e da Medici-

    na, se sentiram impelidos a evocar uma conexo comDeus? No existe um antagonismo entre as vises de mundo

    cientficae espiritual? Ambas no deveriam, ao menos, evitar aparecer

    lado a lado no Salo Leste? Quais os motivos para

    evocar Deus nesses dois discursos? Poesia? Hipocrisia? Umatentati- va cnica de bajular as pessoas religiosas ou de

    desarmar as que talvez criticassem o estudo do genoma

    humano como se este reduzisse a humanidade a ummaquinrio? No. No para mim. Muito pelo contrrio. Para

    mim, a experincia de mapear

    a seqncia do genoma humano e descobrir o mais notvel de

    todos os textos foi, ao mesmo tempo, uma realizao cientficaexcepcionalmente bela e um momento de venerao.

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    pode ser uma opo completamente racional e que os princpios

    da f so, na verdade, complementares aos da cincia.

    Essa sntese potencial das vises de mundo cientfica e es-piritual, nos tempos modernos, tida por muitos como imposs-

    vel, quase como a tentativa de obrigar os dois plos de um m

    a permanecer juntos num mesmo ponto. Apesar dessa impres-

    so, vrias pessoas nos Estados Unidos parecem interessadasem assimilar a validade de ambas as vises de mundo em seu

    cotidiano. Pesquisas recentes confirmam que 93% dosnorte- americanos so adeptos de alguma forma de crena em

    Deus; entretanto, a maioria deles tambm dirige carros, utilizaeletrici- dade e presta ateno na previso do tempo,aparentemente reconhecendo que a cincia que d respaldo a

    tais fenmenos

    , em geral, digna de crdito.

    E o que dizer da crena espiritual entre cientistas? Na ver-dade, ela mais comum do que muitas pessoas imaginam. Em1916, pesquisadores perguntaram a bilogos, fsicos e

    mate- mticos se acreditavam em um Deus que secomunica ativa- mente com a humanidade e ao qual possvel fazer uma ora- o, na esperana de receber uma

    resposta. Cerca de 40% de- les responderam que sim. Em

    1997, o mesmo estudo foi repe- tido literalmente e, parasurpresa dos pesquisadores, a porcen- tagem permanecia

    muito prxima da anterior.

    Quer dizer, ento, que a "batalha" entre a cincia e a religio

    talvez no esteja to claramente separada quanto parece? Infe-lizmente, a prova de uma harmonia potencial , com freqn-

    cia, ofuscada pelos pronunciamentos vociferados daqueles que

    ocupam os plos do debate. No h como negar: bombas so jogadas de ambos os lados. Por exemplo, paradesacreditar, em sua essncia, as convices religiosas de

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    ponto de vista: preciso ser ateu para acreditar na evoluo.

    Eis uma de suas diversas afirmaes estarrecedoras: "A f a

    grande enrolao, a grande desculpa para fugir da necessidadede pensar e avaliar as evidncias. A f acreditar, apesar de,

    ou mesmo em virtude de, uma falta de evidncia. [...] A f, porser uma crena que no se baseia em evidncias, o principal

    vcio de qualquer religio."1

    Do outro lado do debate, determinados fundamentalistas re-

    ligiosos atacam a cincia, condenando-a de perigosa eno confivel, e apontam uma interpretao ao p da letra dos

    tex- tos sagrados como nica forma crvel para discernir averdade cientfica. Entre os participantes dessa comunidade

    est o fina- do lder do movimento criacionista, Henry Morris,cujos comen-

    Essamentirachamadaevoluopermeiaedominaopensamentomo-

    dernoemtodososcampos.Sendoassim, portanto, inevitvelqueopen-

    samento evolucionista seja, basicamente, o responsvel pelos desenvolvi-

    mentospolticosmortalmentesinistrosepeloesfacelamentocatico,moral

    esocialquevemsendocatalisadoemtodososlugares. [...]Seacinciae

    aBbliaentramemdesacordo,bvioqueacinciainterpretaosdadosde

    formaerrnea.2

    A crescente cacofonia de vozes antagnicas faz com que v-rios observadores sinceros se sintam confusos e desanimados.

    Pessoas de bom senso concluem ter a obrigao de

    escolher entre dois extremos insossos, e nenhum delesoferece muito consolo. Decepcionadas pela estridncia deambas as perspec-

    1DAWKINS, R. IS Science a Religion? The Humanist, v. 57, 1997, p. 26-29.

    2MORRIS, H. R. The Long War Against God. New York: Master Books, 2000.

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    cluses cientficas como o valor da religio organizada, prefe-

    rindo se lanar as diversas formas de pensamento anticientfico

    ou a alguma forma vazia de espiritualidade, ou seentregar a uma simples apatia. Outras decidem aceitar ao

    mesmo tempo os valores da cincia e os do esprito,isolando, porm, essas pores de sua existncia espiritual e

    material, a fim de evitar um desconforto causado porconflitos aparentes. Com base nessas premissas, o bilogo

    Stephen Jay Gould acreditava que cincia e f deveriamocupar "ofcios separados, e no sobre- postos". Contudo,

    esse tipo de posio tambm se mostra insa- tisfatrio, levandoa conflitos internos e destituindo as pessoas da oportunidadede adotar a cincia ou o esprito de um modo que as satisfaa

    totalmente.

    Eis aqui a pergunta central deste livro: nesta era moderna

    de cosmologia, evoluo e genoma humano, ser queainda existe a possibilidade de uma harmonia satisfatria

    entre as vises de mundo cientfica e espiritual? Eu

    respondo com um sonoro sim! Em minha opinio, no hconflitos entre ser um cientista que age com severidade e

    uma pessoa que cr num Deus que tem interesse pessoal emcada um de ns. O dom- nio da cincia est emexplorar a natureza. O domnio de Deus encontra-se nomundo espiritual, um campo que no possvel

    esquadrinhar com os instrumentos e a linguagem da cincia;

    deve ser examinado com o corao, com a mente e com a

    alma e a mente deve encontrar uma forma de abar- carambos os campos.

    Meu argumento que tais perspectivas podem coexistir em

    qualquer indivduo, e de modo que enriquea e ilumine a expe-rincia humana. A cincia a nica forma confivel

    para en- tender o mundo da natureza, e as

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    to, incapaz de responder a questes como: "Por que o uni-

    verso existe?"; "Qual o sentido da existncia

    humana?"; "O que acontece aps a morte?". Uma dasnecessidades mais fortes da humanidade encontrar

    respostas para as questes mais profundas, e temos deapanhar todo o poder de ambas as perspectivas, a

    cientfica e a religiosa, para buscar a compreensotanto daquilo que vemos como do que no vemos.

    Esta obra tem por objetivo explorar uma trilha rumo a umaintegrao sbria e intelectualmente honesta dos dois

    pontos de vista.Considerar a gravidade de tais matrias pode ser perturba-

    dor. Todos ns j chegamos a uma determinada viso de mun-

    o, possamos ou no cham-la assim. Ela nos auxilia adar sentido ao mundo nossa volta, fornece-nos uma estrutura

    ti- ca e conduz nossas decises sobre o futuro. Quem quer quese ponha a mexer nessa viso de mundo no deve faz-lo

    super- ficialmente. Um livro que se prope desafiar algo

    to funda- mental pode trazer mais desconforto do que alvio.o entanto, ns, seres humanos, aparentamos possuir um desejo

    arraigado por descobrir a verdade, mesmo que tal vontade sejafacilmen- te abafada pelos detalhes da vida diria. Tais

    distraes com- binam-se a um desejo de evitar que levemosm conta nossa mortalidade; assim, os dias, as semanas,

    os meses ou at mesmo os anos passam, e no se d

    nenhuma considerao sria s eternas dvidas sobre a

    existncia humana. Este livro apenas um pequeno antdoto para tal desconforto, mas talvezfornea uma oportunidade para a auto-reflexo e para um de-

    sejo de olhar com mais profundidade.

    Antes de mais nada, preciso explicar como um cientista ge-ntico tornou-se algum que acredita em um Deus ilimitado pe-

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    uma educao religiosa rgida, profundamente injetada pela fa-

    mlia e pela cultura, algo que se tornou inevitvel mais tarde, na

    vida. Isso, contudo, no condiz com minha verdadeira histria.

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    PRIMEIRA PARTEOcismaentreacinciaeaf

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    CAP TULO IDo atesmo crena

    OS PRIMEIROS ANOS DEMINHA

    vida no foram convencionais em vriosaspectos. No entanto, como filho de pes-

    soas com opinies prprias, tive uma cri-ao moderna bastante convencional em

    termos de f no era algo to impor-tante.

    Cresci numa fazenda poeirenta no valedo rio Shenandoah, na Virgnia. L

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    dades fsicas. Todavia, tudo isso foi mais do que compensado

    por uma mistura estimulante de experincias e oportunidades,

    em uma cultura extraordinria de idias criada pelos meus pais.Os dois se conheceram no curso de doutoramento em Yale,

    em 1931, e levaram suas aptides para organizar grupos e seu

    amor pela msica comunidade experimental de

    Arthurdale, em West Virgnia. L, trabalharam comEleanor Roosevelt na tentativa de revigorar uma

    comunidade de mineiros oprimidos nas profundezas daGrande Depresso.

    Entretanto, outros conselheiros da administrao Roosevelttinham idias diferentes, e logo a fundao acabou. A runa dacomunidade Arthurdale, baseada na poltica de difamaes de

    Washington, fez meus pais passarem o resto da vida

    sob a suspeita do governo. Voltaram para a vidaacadmica na Fa- culdade Elon, em Burlington, na Carolina

    do Norte. L, presen- teado com a bela e selvagem culturapopular rural do sul, meu pai tornou-se colecionador de

    msicas folclricas, viajando pe- las colinas e vales econvencendo os desconfiados habitantes locais a cantar paraum gravador. As gravaes formaram uma fatia considervelna coleo da Biblioteca do Congresso de canesfolclricas dos Estados Unidos.

    Com a chegada da Segunda Guerra Mundial, esses empre-

    endimentos musicais passaram para um plano secundrio, emvirtude de assuntos mais urgentes a respeito da defesa nacio-

    nal. Meu pai, ento, foi trabalhar ajudando a construir bombar-deiros para o esforo de guerra. Por fim, tornou-se supervisorem uma fbrica de aeronaves em Long Island.

    Ao terminar a guerra, meus pais concluram que avida es- tressante dos negcios no era para eles. Estavam frente de seu tempo e fizeram, j nos anos 1940, "coisas tpicas

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    criar um estilo de vida simples sem o uso de mquinas agrcolas.

    Ao descobrir, poucos meses mais tarde, que aquilo no iria ali-

    mentar seus dois filhos adolescentes (e logo outro irmoe eu chegaramos), meu pai arrumou um emprego de

    professor de teatro em um colgio local feminino. Convocouatores da cidade

    e, com as estudantes do colgio e comerciantes da regio, des-cobriu que a produo de peas era bastante divertida.

    Aten- dendo a reclamaes por causa do perodo extenso ecansativo em que no havia apresentaes durante o vero,

    meu pai e mi- nha me fundaram um teatro de vero em umpequeno bosque de carvalhos acima da nossa casa de fazenda.

    Mais de cinqen-

    ta anos depois, o Oak Grove Theater [Teatro do Bosque de Car-valhos] mantm-se ininterrupta e deliciosamente na ativa.

    Nessa mistura de beleza campestre, trabalho rduo de fazenda,

    teatro de vero e msica, eu nasci e amadureci. Caula de quatroirmos, no experimentei tantas dificuldades que j no fossem

    conhecidas de meus pais. Cresci com um sentimento de que pre-cisava ter responsabilidade por meu comportamento e minhas es-colhas, porque ningum iria aparecer para cuidar disso por mim.

    Minha me foi minha professora. Minha e de meusirmos mais velhos. Aqueles primeiros anos deram-me um

    presente i- nestimvel: o prazer do aprendizado. Apesar deminha me no ter uma agenda organizada de aulas nem

    planejar lies de ca- sa, tinha uma percepo incrvel para

    identificar tpicos que dei- xavam uma mente jovem intrigada,persistindo neles com grande intensidade at um ponto naturalde interrupo e, em seguida, mudava para algo novo e

    igualmente empolgante. Aprender nunca era algo que voc

    fazia por obrigao, e sim porque ado- rava. A f no era parteimportante de minha infncia. Eu tinha uma vaga conscincia

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    por mim. Lembro-me, por exemplo, de ter feito um contrato com

    Deus (aos 9 anos de idade, mais ou menos): se Ele evitasse a

    chuva durante uma apresentao de teatro que envolvia tambmuma festa com msica em um sbado noite, coisa que me dei-

    xava bastante entusiasmado, prometeria jamais fumar um cigar-ro. Lgico que a chuva no caiu e eu nunca adquiri o hbito. A-

    nos antes, quando tinha 5 anos, meus pais decidiram que eu emeu terceiro irmo deveramos participar do coral de meninos da

    igreja episcopal local. Fizeram questo de frisar que seria umamaneira genial de aprender msica, mas que a Teologia no de-

    veria ser levada to a srio. Segui essas instrues, aprendendoa grande beleza da harmonia e do contraponto musical, deixan-do, porm, que os conceitos teolgicos pregados no plpito pas-

    sassem por mim sem deixar nenhum resduo identificvel.

    Quando eu tinha 10 anos, ns nos mudamos para a cidade afim de ficar com minha av doente, e passei a freqentar a esco-la pblica. Aos 14, tive meus olhos abertos para os mtodos ma-

    ravilhosamente estimulantes e poderosos da cincia.

    Inspirado por um professor de Qumica carismtico, que podiaescrever in- formaes na lousa com as duas mossimultaneamente, des- cobri a satisfao intensa do carter

    organizado do universo. O fato de toda a matria serconstituda de tomos e molculas que obedeciam a

    princpios matemticos mostrou-se uma reve- lao inesperada,e a capacidade de utilizar os instrumentos da cincia para

    fazer novas descobertas sobre a natureza arreba- tou-me de

    uma s vez, como algo do qual eu queria fazer parte. Com oentusiasmo de um recm-convertido, decidi que minha

    meta na vida seria tornar-me um qumico. No importava que eusoubesse relativamente pouco sobre as outras cincias, parecia

    que esse primeiro namorico de infncia ia mudar minha vida.Meus contatos com a Biologia, porm, me deixavam

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    as bases da Biologia pareciam ter mais a ver com um aprendi-

    zado automtico de fatos sem propsito do que com a elucida-

    o de princpios. Na verdade, no estava nem um pouco inte-ressado em decorar as partes de um lagostim nem em tentar

    descobrir a diferena entre um filo, uma classe e uma ordem. Acomplexidade avassaladora da vida levou-me a concluir que a

    Biologia era quase igual filosofia existencialista: no tinha omenor sentido. Para minha mente, que se desenvolvia de for-

    ma reducionista, no havia uma lgica prxima o bastante parachamar minha ateno. Quando me formei, aos 16

    anos, in- gressei na Universidade da Virgnia, decidido aestudar Qumi- ca e seguir uma carreira cientfica. Como amaioria dos calou- ros, achei esse novo ambiente estimulante,

    cheio de idias que ricocheteavam nas paredes das salasde aula e dos dormit- rios, tarde da noite. Algumas dessas

    idias se voltavam, invaria- velmente, para a existncia de

    Deus. No incio da minha adoles- cncia, tinha tidomomentos casuais de experincia, ansiando por algo fora

    de mim, em geral associado beleza da natureza ou a umaexperincia musical particularmente profunda. Entre- tanto,

    meu senso de espiritualidade encontrava-se muito poucodesenvolvido e era facilmente desafiado por um ou dois

    ateus agressivos que sempre encontramos em quase todos osaloja- mentos de faculdade. Durante alguns meses em minhacarreira universitria, acabei por me convencer de que,

    embora muitas fs religiosas tivessem inspirado tradies

    Embora eu desconhecesse a palavra na poca, tornei-me umagnstico, termo concebido por T. H. Huxley, um cientista do s-

    culo XIX, para indicar algum que simplesmente nosabe se Deus existe ou no. H agnsticos de todos os tipos;

    alguns che-

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    cias. Muitos, porm, acham simplesmente que esto em posio

    cmoda, a qual lhes permite evitar pensar em argumentos consi-

    derados desconfortveis para ambos os lados. Na verdade, mi-nha declarao "no sei" podia ser mais bem traduzida

    como "no quero saber". Na posio de um jovem que cresciaem um mundo repleto de tentaes, era conveniente ignorar a

    necessi- dade de prestar contas a qualquer autoridade espiritual.Eu exer- cia um tipo de pensamento e comportamento

    denominado, pelo famoso acadmico e escritor C. S. Lewis,"cegueira voluntria".

    Depois de formado, ingressei em um programa de doutoradoem Fsico-qumica da Universidade de Yale, buscando a

    ele- gncia da Matemtica que, a princpio, havia me levado aesse ramo da cincia. Minha vida intelectual encontrava-

    se imersa em mecnica quntica e equaesdiferenciais de segundo grau, e meus heris eram os

    gigantes da Fsica Albert Eins- tein, Niels Bohr, Werner

    Heisenberg e Paul Dirac. Aos poucos me convencia de que

    tudo no universo podia ser explicado com base em equaes eprincpios da Fsica. Li a biografia de Albert Einstein e descobrique, apesar de sua slida posio sionista aps a Segunda

    Guerra Mundial, ele no acreditava em lave, o Deus dos judeus. Isso apenas reforou minha concluso de que nenhumcientista pensante poderia cogitar seriamente a possibi- lidade

    de Deus sem cometer um tipo de suicdio intelectual.

    E assim, aos poucos, passei de agnstico para ateu. Sentia-

    me bastante vontade desafiando as crenasespirituais de qualquer um que as mencionasse em minha

    presena, e defi- nia esses pontos de vista comosentimentalismos e supersti- es fora de moda.

    Dois anos nesse programa de doutorado, e meuplano de vida estruturado de forma to estreita comeou a se

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    se conseguiria ganhar a vida seguindo aquele caminho.Apa-

    rentemente, a maioria dos avanos significativos dateoria quntica havia acontecido cinqenta anos antes, e a

    maior par- te da minha carreira talvez fosse passar naaplicao de simpli- ficaes e aproximaes sucessivas

    descrevendo determina- das equaes elegantes, porminsolveis, s um tantinho mais fceis de trabalhar.

    Falando de uma maneira mais prtica, eu tinha a impresso de

    que seguiria um caminho inevitvel: a vida de um professor

    universitrio, apresentando interminveis sries de palestrassobre termodinmica e mecnica da estats- tica para classes emais classes de alunos que ficariam entedi- ados ouaterrorizados com tais matrias.

    Quase ao mesmo tempo, em um esforo para ampliar meus

    horizontes, inscrevi-me em um curso de Bioqumica, por fim in-vestigando as cincias da vida que havia evitado com

    tanto cuidado em pocas passadas. O curso era fabuloso. Os

    princ- pios do DNA, do RNA e da protena, que nunca tinhamse mos- trado evidentes para mim, foram-me apresentadosem toda a sua glria digital de satisfao. A capacidade

    de colocar em prtica rigorosos princpios intelectuais para

    compreender a Bi- ologia, algo que eu imaginava impossvel,estava vindo a pbli- co com estardalhao mediante arevelao do cdigo gentico. Com o advento de novosmtodos de emendar fragmentos dife- rentes de DNA

    vontade (DNA recombinante), a possibilidade de aplicar todoesse conhecimento em benefcio da humanida- de pareciabastante real. Eu estava estarrecido. A Biologia, afinal de contas,

    tem uma elegncia matemtica. A vida faz sentido.Nessa poca, com apenas 22 anos, mas j casado

    e com uma filha brilhante e curiosa, estava me tornando uma

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    sionado por essas sbitas revelaes, questionei minhas esco-

    lhas anteriores, at mesmo minha capacidade para a carreira de

    cincias ou para o empreendimento de pesquisas independen-tes. Eu estava quase concluindo meu doutorado, e, ainda indeci-

    so, fiz uma solicitao para ser admitido na faculdade de Medici-na. Com um discurso ensaiado cuidadosamente, tentei conven-

    cer os membros do comit de admisses de que aquela revira-volta consistia na verdade em um caminho natural para o trei-

    namento de um dos futuros mdicos da nao. Por dentro, euno tinha essa certeza toda. Afinal de contas, no era eu o sujei-

    to que odiava Biologia porque exigia memorizao?Existia al- gum campo de estudo que precisava de mais

    memorizaes do que a Medicina? Havia, porm, algo diferente

    naquele momento: estvamos falando a respeito de sereshumanos, no do lagos- tim; havia princpios fundamentais sob

    os detalhes; isso poderia, em ltima anlise, fazer a diferena navida de pessoas reais.

    Fui aceito na Universidade da Carolina do Norte. Em poucas

    semanas, j sabia que a faculdade de Medicina era o lugar certopara mim. Adorava o estmulo intelectual, os desafios ticos, oelemento humano e a incrvel complexidade de seu organismo.Em dezembro daquele primeiro ano descobri como

    combinar meu novo amor pela Medicina com meu antigo amorpela Mate- mtica. Um pediatra severo e um tanto inacessvel,

    que dava um total de seis horas de palestras sobre genticamdica para os alunos de primeiro ano de Medicina, mostrou-

    me meu futuro. Le- vava s aulas pacientes com anemiafalciforme, galactosemia (uma intolerncia, geralmente fatal, aderivados do leite) e sn- drome de Down, todas doenas

    causadas por pequenas falhas no genoma, algumas to sutisquanto uma nica letra errada.

    Fiquei fascinado com a elegncia do cdigo do DNA huma-

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    fazer algo que realmente ajudasse muitos dos afetados por a-

    quelas doenas genticas parecesse bem distante,

    imediata- mente me senti atrado por aquela disciplina. Apesarde naque-

    le instante no haver nem sequer uma sombra de possibilidadede algo to grandioso quanto o Projeto Genoma Humano

    ser concebido, a trilha que iniciei em 1973 apresentou, ao

    acaso, o rumo direto para minha participao em um dosmaiores em- preendimentos histricos da humanidade.

    Essa trilha tambm me levou, no terceiro ano da faculdade

    de Medicina, a ter experincias intensas no atendimento a pa-cientes. Na qualidade de mdicos em treinamento, os estudan-tes de Medicina so arremessados para um dos tipos de rela-

    cionamento mais ntimos que se pode imaginar, com indivduosque lhes so estranhos completos at o momento em que ado-

    ecem. Tabus culturais, que normalmente impedem o intercm-

    bio de informaes muito particulares, desmoronam de sbito, juntamente com o contato fsico sensvel entre um

    mdico e seus pacientes. Tudo isso faz parte de um contratorespeitadoe duradouro entre o doente e quem ministrar sua cura. Achei

    os relacionamentos que desenvolvi com pacientes enfermos emoribundos algo arrebatadores, e lutei para manter a distncia

    profissional e a ausncia de envolvimentos emocionais

    que muitos de meus professores defendiam.

    O que deixou marcas profundas em mim, aps minhas con-

    versas ao p da cama com aquelas pessoas de boa ndole daCarolina do Norte, foi o aspecto espiritual delas. Presenciei v-

    rios casos de indivduos cuja f lhes supria com uma reafirma-o da crena slida, de paz definitiva, fosse neste mundo ou

    no outro, apesar do sofrimento terrvel que lhes era infligido, oqual, na maioria das ocasies, no haviam feito nada para cau-

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    tural, por que motivo aquelas pessoas no sacudiam seus pu-

    nhos fechados para Deus, exigindo que seus amigos e paren-

    tes parassem com toda aquela conversa sobre umpoder so- brenatural de amor e benevolncia?

    Meu momento mais embaraoso surgiu quando uma senhoraidosa, sofrendo todos os dias por causa de uma angina grave e

    incurvel, perguntou-me em que eu acreditava. Umapergunta justa; havamos discutido muitos outros assuntos

    importantes sobre vida e morte, e ela partilhara comigo suascrenas crists, prprias e slidas. Senti que fiquei ruborizado ao

    gaguejar as pa- lavras: "No sei bem ao certo". Sua bviasurpresa apresentou-se como um ntido alvio ao constrangimento

    do qual eu vinha fugin- do durante quase todos os meus 26 anos

    de vida: jamais conside- rei seriamente uma evidncia contra e afavor de uma crena.

    Aquele instante me assombrou durante vrios dias. Ento euno me considerava um cientista? Um cientista tira suas conclu-

    ses sem levar em conta os dados? Em toda a existncia huma-

    na, no podia haver uma pergunta mais importante do que "Exis-te algum Deus?". E, apesar disso, l estava eu, munido de umacombinao de cegueira voluntria e algo que talvez s pudesse

    ser descrito adequadamente como arrogncia: a fuga dequal- quer reflexo sria sobre Deus ser uma possibilidade real.

    De re- pente, todos os meus argumentos pareciam fracosdemais, e eu tinha a sensao de que o cho sob meus ps

    estava se abrindo.

    Tal percepo foi uma experincia completamente assusta-dora. Afinal de contas, se eu no conseguia mais confiar na so-

    lidez de minha posio atesta, como poderia assumir a

    res- ponsabilidade pelas aes que preferia deixar sem umexame minucioso? Deveria prestar contas a outro que no euprprio?

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    afirmaria minha posio de ateu. No entanto, determineique

    examinaria os fatos, no importassem os resultados. Assim teveincio um estudo rpido e confuso sobre as principais religies do

    mundo. Muito do que encontrei em edies simplificadas de reli-gies diferentes (achei a leitura dos verdadeiros textos sacros di-

    fcil demais) deixou-me totalmente atnito, e vi poucos motivospara me lanar a uma ou outra das diversas possibilidades. No

    acreditava que houvesse base racional para uma crena espiri-

    tual subjacente a qualquer uma daquelas religies. Isso, contu-

    do, logo mudou. Fui visitar um pastor metodista que morava namesma rua que eu, a fim de perguntar-lhe se a f tinha algumsentido lgico. Ele escutou com pacincia minhasdivagaes confusas (e talvez blasfemas); em seguida, apanhou

    um livrinho em sua prateleira, sugerindo que eu o lesse.

    O livro era Cristianismo Puroe Simples(publicado no Brasil pe-la Martins Fontes), de C. S. Lewis. Nos poucos dias que se segui-ram, conforme eu folheava as pginas, lutando para absorver a

    amplitude e a profundidade dos argumentos intelectuais apresen-tados pelo lendrio acadmico de Oxford, percebi que todos os

    meus argumentos contra a aceitao da f eram dignos de um ga-roto em idade escolar. Obviamente eu tinha de comear do zero

    para considerar aquela que a mais importante de todas as ques-tes humanas. Lewis parecia conhecer todas as minhas objees,algumas antes mesmo de eu formul-las. Falou sobre

    elas em uma ou duas pginas. Quando, mais tarde, descobri que

    o prprio Lewis havia sido um ateu que se propusera reprovar af com ba- se em argumentaes lgicas, percebi como elepde conhecer to bem minha trilha. Ele tambm a tinha

    percorrido.

    O argumento que mais chamou minha ateno e que maisacalentou minhas idias sobre a cincia e o esprito at seus a-

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    aspectos, a "Lei Moral" que Lewis descreveu fosse uma carac-

    terstica universal da existncia humana, tive a impress

    de que a examinava pela primeira vez.Para compreender a Lei Moral, vale considerar,

    conforme Lewis o fez, que ela evocada de centenas de

    maneiras, todos os dias, sem que aquele que a evoca se

    detenha para mostrar as bases de seu argumento. Asdivergncias fazem parte da vida cotidiana. Algumas so

    relativas ao mundo material, comoa esposa que critica o marido por no ter sido gentil ao conver-

    sar com uma amiga ou uma criana que declara que"no justo" distribuir diferentes quantidades de sorvete

    numa festa de aniversrio. Outras argumentaes soencaradas com uma importncia maior. Em assuntos

    internacionais, por exemplo, alguns argumentam que os

    Estados Unidos tm a obrigao moral de disseminar ademocracia pelo mundo, mesmo custa do poderio militar,

    enquanto outros declaram que o uso agres- sivo e unilateral

    de foras militares e econmicas to ruim quanto afalta de democracia em um pas.

    Atualmente, na Medicina, debates furiosos permeiam a ques-to de aceitar ou no o empreendimento da pesquisa com clu-

    las-tronco embrionrias. Alguns afirmam que essa pesquisa viola

    a santidade da vida humana; outros supem que o potencial pa-ra aliviar o sofrimento humano constitui uma procurao

    tica para prosseguir com tal trabalho (esse e vrios outros

    dilemas da Biotica so levados em conta no Apndice destelivro).

    Repare que, nesses exemplos, cada parte tenta recorrer a umpadro superior no-declarado. Esse padro a Lei Moral, quepode tambm ser chamada de "a lei do comportamento correto",

    e sua existncia em cada uma dessas situaes parece inques-

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    ga da esposa, em geral respondem com desculpas variadas so-

    bre por que deveriam ser auxiliados a sair de uma dificuldade.

    Praticamente nunca retrucam com algo como: "V para o infernovoc e esse seu conceito de comportamento correto".

    O que temos aqui bastante peculiar: o conceito de certo eerrado aparenta ser universal entre todos os membros da es-

    pcie humana (apesar de sua prtica poder resultar em conse-qncias brutalmente diferentes). Assim, isso parece

    mais a abordagem de um fenmeno do que de uma lei, comoa lei da gravidade ou a da relatividade especial. Contudo,

    trata-se de uma lei que, sejamos sinceros, infringida comuma freqncia impressionante.

    At onde posso dizer da melhor maneira, essa lei parece apli-

    car-se especialmente aos seres humanos. Embora outros animais

    possam, s vezes, aparentar demonstraes de vislumbre de umsentido de moral, sem dvida estas no so amplamente difundi-

    das e, em muitos exemplos, o comportamento de outras espciesparece contrastar dramaticamente com qualquer senso de justia

    universal. Ao tentar enumerar as qualidades especiais do Homosapiens, os cientistas geralmente se referem conscincia de cer-to e errado, juntamente com o desenvolvimento da linguagem, aconscincia do "eu" e a capacidade de imaginar o futuro.

    No entanto, ser essa noo de certo e errado uma qualida-

    de essencial do ser humano ou apenas uma conseqncia de

    tradies culturais? Alguns alegam que as culturas apresentamnormas de comportamento com tantas diferenas que qualquer

    concluso sobre uma Lei Moral compartilhada no tem funda-mento. Lewis, estudioso de vrias culturas, chama isso de

    uma mentira, uma mentira boa e retumbante. Se um homem for a

    uma biblioteca e passar alguns dias com a Encydopedia of Religi-

    on and Ethics [Enciclopdia de religio e tica], logo perceber a

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    imensa unanimidade do fundamento prtico no ser humano. Desde

    os Hinos Babilnicos a Pitgoras de Samos, desde as leis de Ma-

    nu, o Livro dos Mortos, os Analectos de Confcio, os Esticos, osPlatonistas, desde os aborgines australianos e peles-

    vermelhas dos Estados Unidos, esse homem na biblioteca far

    um apanhado das mesmas denncias triunfantemente

    montonas de opresso, assassinato, traio e falsidade; as

    mesmas obrigaes de gentile- za aos idosos, aos jovens e aos

    fracos, sobre a doao de esmo-

    Em certas culturas incomuns, a lei assume adornos surpre-endentes vejam-se as bruxas que eram queimadas nos Es-

    tados Unidos, no sculo XVII. Contudo, num exame mais apu-rado, percebe-se que essas aberraes aparentes surgem

    de concluses sustentadas com muita nfase, mas mal

    orienta- das, sobre quem ou o que o bem ou o mal. Sevoc tivesse convico de que uma bruxa fosse a encarnao

    do mal sobre

    a terra, um apstolo do demnio, no lhe pareceria justificvelesse tipo de ao drstica?

    Permita-me interromper o raciocnio para salientar que a con-

    cluso sobre a existncia da Lei Moral encontra-se em um confli-

    to srio com a Filosofia ps-modema. Esta argumenta no haver

    um certo e um errado absolutos, e que todas as decises ticasso relativas. Essa viso, que parece amplamente divulgada en-

    tre os filsofos modernos, mas que empresta uma mstica mai-

    oria de seus membros junto ao pblico em geral, encontra umasrie de situaes lgicas no estilo "se correr o bicho pega, se fi-car o bicho come". Se no h verdade absoluta, ser que o pr-

    prio ps-modernismo real? De fato, se no existe nem

    1LEWIS, C. S. The poison of subjetivism. In: Hooper, Walter (Ed.). C S. Lewis, Christian

    Reflections. Grand Rapids: Eerdmans, 1967. p. 77.

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    Alguns iro contestar, dizendo que a Lei Moral uma sim-

    ples conseqncia das presses evolucionrias. Essa objeo

    surge de um novo campo da Sociobiologia e tentafornecer explicaes para o comportamento altrusta com base

    no valor positivo da seleo natural de Darwin. Sepudssemos apre- sentar tal argumento como sustentao

    para a interpretao de diversas exigncias da Lei Moralcomo uma indicao para Deus, teramos um problema

    potencial por isso, vale a pena examinar esse ponto de vistade forma mais detalhada.

    Leve em conta um exemplo importante da fora que senti-mos, oriunda da Lei Moral o impulso altrusta, a

    voz da conscincia nos chamando a ajudar os outros, mesmosem re- ceber nada em troca. Nem todas as exigncias da Lei

    Moral se resumem ao altrusmo, claro; por exemplo, o sbitopeso na conscincia que algum sente aps uma

    mnima distoro dos fatos na declarao de imposto de

    renda no pode ser a- tribudo sensao de ter prejudicado

    outro ser humano iden- tificvel.Primeiramente, vamos deixar claro sobre o que

    estamos falando. No entendo o altrusmo como umcomportamento do tipo "uma mo lava a outra", ouseja, praticar a bondade esperando algum benefcio emtroca. O altrusmo mais inte- ressante: dar-se sem

    egosmo aos outros, com sinceridade, sem nenhuma

    inteno secundria. Quando vemos a de- monstrao

    desse tipo de amor e generosidade, ficamos do- minadospor surpresa e respeito profundo. Oskar Schindlercolocou sua vida em grande risco para proteger mais

    de mil judeus do extermnio nazista durante a Segunda

    Guerra Mun- dial e, por fim, morreu pobre e todosns sentimos uma grande admirao por seus atos. Madre

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    extrema aos enfermos e moribundos em Calcut sejaum

    drstico contraponto ao estilo de vida materialista que dominanossa cultura.

    Algumas vezes, o altrusmo pode ampliar-se at

    para cir- cunstncias em que a pessoa beneficiada pareceria

    um inimigo visceral. A freira beneditina irm Joan ChittisterEra uma vez uma idosa que costumava meditar s mar-

    gens do Ganges. Certa manh, ao encerrar sua meditao,

    ela avistou um escorpio flutuando indefeso na forte corren-teza. A medida que era arrastado para mais perto, prendeu-

    se nas razes que se ramificavam para dentro do rio. O es-corpio lutava freneticamente para se libertar, mas cada vez

    ficava mais emaranhado. Imediatamente a senhoraaproxi- mou-se do escorpio que se afogava e este, assim

    que ela

    o tocou, cravou-lhe seu ferro. A mulher afastou a

    mo, mas, aps ter recobrado o equilbrio, tentou de novosalvar

    a criatura. Todas as vezes que ela tentava, porm, o ferro

    na cauda do animal a atingia com tamanha gravidade quesuas mos sangravam e seu rosto distorcia-se de dor. Umtranseunte que via a idosa lutando com o escorpio gritou

    para ela:

    Qual o seu problema, sua tola? Quer se matar tentan-

    do salvar essa coisa feia?Olhando nos olhos do estranho, ela retrucou:

    Sufi como conhecido o adepto do sufismo, forma de ascetismo e misticismo islmico, influenciada pelo hindusmo, pelo budismo e pelo cristianismo. (N. T.)2 In: FRANCK, R, ROZE, CONNOLLY, R. (Orgs.). WhatDoes It Mean ToBe Human?Reverence for life Reaffirmed by Responses from Around the World. New York: St.Martin's Griffin, 2000. p. 151.

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    Talvez esse parea um exemplo drstico no h muitos

    dentre ns que arriscariam a vida para salvar um escorpio. No

    entanto, a maioria das pessoas, sem dvida, jexperimentou um chamado interno para ajudar um estranho em

    ecessidade, mesmo sem nenhuma possvel vantagem pessoal.E, se de fa- to agiu guiada por esse impulso, teve como

    conseqncia uma

    sensao confortvel de "ter feito a coisa certa".

    C. S. Lewis, em seu destacado livro Os QuatroAmores (Martins Fontes), explora ainda mais a natureza

    desse amor generoso, que ele chama de "gape", palavraderivada do gre- go. O autor salienta que essa forma de amor

    se distingue das outras trs (afeto, amizade e amorromntico), podendo ser mais bem compreendida como

    vantagem recproca, e que po- demos v-la destacada em

    outros animais alm de ns.Ogape,ouoaltrusmo,apresenta-secomoumimportantedesa-

    fioaosevolucionistas. Trata-se, sinceramente, deumescndalopara

    oraciocnioreducionista. Nopodeserresponsabilizadopelo impul-sodeseperpetuardosgenesegostasdo indivduo. Muitopelocon-

    trrio:pode levarossereshumanosarealizarsacrifciosque traro

    sofrimentopessoal, ferimentooumorte, semprovaalgumadebene-

    fcio. E, contudo, se examinarmos com cuidado aquela voz interior

    quesvezeschamamosdeconscincia,perceberemosqueamoti-

    vaoparaaprticadessetipodeamorexistedentrode todosns,

    apesardenossosesforosfreqentesparaignor-la.

    Sociobilogos como E. O. Wilson tentaram explicar esse com-portamento com base em algum benefcio reprodutivo indireto pa-

    ra o praticante da ao altrusta. Os argumentos, contudo, rapi-damente se tornam um problema. Uma suposio de que os re-

    petidos comportamentos altrustas de um indivduo so reconhe-cidos como atributo positivo na seleo do companheiro. Tal hip-

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    por exemplo, a prtica do infanticdio por um macacorecm-

    dominante para limpar o caminho a sua futura ninhada. Um outroargumento o de que benefcios recprocos indiretos, oriundos do

    altrusmo, proporcionaram vantagens ao praticante durante o pe-rodo da evoluo; no entanto, essa explicao no leva em conta

    a motivao do ser humano para praticar pequenos atos de cons-cincia a respeito dos quais ningum mais sabe. Um terceiro ar-

    gumento o de que o comportamento altrusta entre membros deum grupo beneficia o grupo todo. Como exemplos temos os formi-

    gueiros, nos quais operrias estreis trabalham de maneira rduae incessante para criar um ambiente onde suas mes possam ge-rar mais filhos. Esse tipo de altrusmo das formigas, contudo,

    prontamente explicado em termos evolucionrios pelo fato deos genes que incentivam as formigas operrias estreis serem

    exa- tamente os mesmos que sero transmitidos pela me aosirmos

    e irms que aquelas esto ajudando a criar. Os evolucionistas a-

    gora concordam, quase unnimes, que essas conexes de DNAincomuns no se aplicam a populaes mais complexas,nas quais a seleo trabalha no indivduo, no na populao. O

    com- portamento limitado da formiga operria, portanto, apresentauma diferena essencial com relao voz interior que faz com

    que eu me sinta compelido a saltar no rio para tentar salvar umestranho que est se afogando, mesmo que eu no seja um bom

    nadador e possa morrer na tentativa. Alm disso, para que o

    argumento evo- lucionrio referente a benefcios grupais dealtrusmo se mantives- se, seria necessria, aparentemente, uma

    reao oposta, ou seja,

    a hostilidade a indivduos que no fizessem parte do grupo. O -

    gape de Oskar Schindler e Madre Teresa distorce esse tipo de ra-ciocnio. Choca saber que a Lei Moral me pede que salve algum

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    da evoluo, como, ento, podemos justificar suapresena?

    Sehouveumpodercontroladorforadouniverso,estenopoderiaapre-

    sentar-seanscomoumdos fatosque fazempartedouniversoassim

    comooarquitetodeumacasano,defato, umadasparedes, ouaescada,

    oualareiradessacasa. Anicamaneirapelaqualpodemosesperarqueele

    semostredentrodens,comouma influnciaouumcomando tentando

    fazercomquenoscomportemosdedeterminadomodo.Eissoqueencon-

    tramosdentrodens. Semdvida, issonodeverialevantarsuspeitas?3

    Ao deparar com esse argumento aos 26 anos, fiquei aturdi-do com sua lgica. Aqui, oculta em meu corao, to

    familiar quanto qualquer coisa na experincia do dia-a-dia,mas agora surgindo na forma de um princpio esclarecedor,

    essa Lei Moral brilhava com sua luz branca e forte nosrecnditos de meu ate- smo infantil, e exigia uma sria

    considerao sobre sua ori- gem. Estaria Deus olhando de

    novo para mim?

    E, se fosse assim, que tipo de Deus seria? Seria um Deus

    pela viso desta. que inventou a Fsica e a Matemtica,co- meou o universo em movimento h cerca de 14bilhes de anos e, em seguida, perambulou para longe, a fimde lidar com outros assuntos de maior importncia, comoEinstein pensava?

    No, esse Deus, se eu pudesse perceb-lo em sua totalidade,

    deveria ser um Deus do ponto de vista dos testas, um Deusque desejasse algum tipo de relacionamento com essas criatu-

    3 LEWIS, C. S. Mere Christianity. Westwood: Barbour and Company, 1952. p. 21.

    O desta considera a razo como nica via para garantir a existncia de Deus. (N. T)

    O testa aquele que acredita na existncia de um nico Deus. (N. T.)

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    deria ser o Deus de Abrao, mas sem dvida no seria o Deus

    de Einstein.

    Havia outra conseqncia desse crescente sentimento sobrea natureza de Deus se este, na verdade, era real. A julgar pelos

    altssimos padres da Lei Moral, que eu tinha dereconhecer que infringia regularmente, esse era um Deus

    sagrado e justo. Ele tinha de ser a personificao da bondade.Tinha de odiar o mal. E no havia motivo para suspeitar

    que esse Deus fosse benevolente ou misericordioso. O

    surgimento gradual de minha percepo da existncia

    aceitvel de Deus trouxe sentimentos conflitantes: alvio dianteda amplitude e da profundidade da e- xistncia de tamanhamente e um desnimo profundo ao per- ceber minhas

    imperfeies ao examin-las luz divina.

    Havia comeado essa jornada de explorao intelectual por-

    que queria confirmar minha posio como ateu. Isso se conver-teu em runas medida que a argumentao da Lei Moral (e

    muitos outros assuntos) obrigou-me a admitir a

    aceitao da hiptese de Deus. O agnosticismo, que pareciaum seguro pa- raso de segunda, agora me ameaava como a

    grande descul- pa que em geral . A f em Deus parecia maisracional do que uma dvida.

    Tambm ficara claro para mim que a cincia, apesar de seus

    poderes inquestionveis para desvendar os mistrios do mundo

    natural, no iria me levar mais adiante na resoluo da questode Deus. Se Deus existe, deve se encontrar fora do mundo natu-

    ral e, portanto, os instrumentos cientficos no so as ferramen-tas certas para aprender sobre Ele. Em vez disso, como eu esta-

    va comeando a entender por olhar dentro de meu corao, aprova da existncia de Deus teria de vir de outras direes, e a

    deciso definitiva deveria se basear na f, no em provas. Ainda

    perseguido por perturbar as incertezas do caminho que eu havia

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    dade de uma viso de mundo espiritual, incluindo a existncia

    de Deus.

    Parecia impossvel tanto avanar quanto recuar. Anosde- pois, encontrei um soneto de Sheldon Vanauken quedescrevia com preciso o meu dilema. Suas linhas finais

    Entre o provvel e o provado existem hiatos

    Uma fenda. Com medo de saltar, permanecemos ridculos.

    Ento vemos atrsde ns o cho afundar e, pior,Nosso ponto de vista esfacelar-se. O desespero desponta

    Nossa nica esperana: saltar para o VerboQue abre o universo fechado.

    Durante muito tempo fiquei parado, tremendo, beira desse

    hiato. Por fim, no vendo escapatria, saltei.

    Como possvel que um cientista tenha taisconvices? No seriam as vrias alegaes da religio

    incompatveis com

    a atitude de um cientista, sempre querendo ver os dados, devo-to do estudo da Qumica, da Fsica, da Biologia e da Medicina?Ao abrir a porta de minha mente a essas possibilidades espiri-

    tuais, teria eu comeado uma guerra de vises de mundo que

    me destruiria e, por fim, enfrentaria uma vitria com baixas em

    4VANAUKEN, S. A Severe Mercy. New York: HarperCoIlins, 1980. p. 100.

    Between the probable and proved there yawns/ A gap. Afraid to jump, we stand ab-surd,

    Then see behind us sink the ground and, worse,/ Our very standpoint crumbling. Desperate

    dawns/ Our only hope: to leap into the Word/ That opens up the shuttered universe.

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    Como um cientista srio pode aceitar a possibilidade de mila-

    gres?

    Se voc tem uma crena, talvez as exposies do primeirocaptulo lhe tenham fornecido alguma confirmao, mas qua-

    se certo que h ocasies em que sua f entra em conflito comoutros desafios, vindos de voc ou daqueles sua volta.

    A dvida parte inevitvel da crena. Nas palavras de PaulTillich: "A dvida no se ope f; um elemento da f1". Se ocaso a favor da crena em Deus fosse totalmente hermtico, omundo estaria cheio de praticantes de uma nica f. Imagine,

    porm, este mundo se a oportunidade de escolherlivremente uma crena tivesse sido removida em virtudeda certeza das evidncias. Que desinteressante seria, no?

    Tanto para o ctico quanto para quem tem uma crena, asdvidas surgem de diversas fontes. Uma delas envolve confli-tos descobertos com base nas alegaes da crenareligiosa com observaes cientficas. Essasconsideraes, particular- mente destacadas agora no campo

    da Biologia e da Gentica, sero retomadas nos prximoscaptulos. Outras consideraes so inerentes aos domniosfilosficos da experincia humana,e estes so o assunto deste captulo. Se voc no tem nenhumproblema relacionado a isso, sinta-se vontade para pular parao captulo 3.

    Ao tratar de tais assuntos filosficos, falo principalmente como

    leigo. No entanto, sou algum que j partilhou dessas batalhas.

    Especialmente no primeiro ano aps ter aceitado a existncia deum Deus que se preocupava com os humanos, via-me acossadopor perguntas que vinham de muitas direes. Embora

    essas questes parecessem muito novas e irrespondveis

    quando sur- giram, sentia-me aliviado em saber que no

    1TILLICH, R The Dynamics of Faith. New York: Harper & Row, 1957. p. 20.

    42

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    com maior eficcia ainda, por outros, atravs dos sculos. Era

    de grande conforto para mim existirem tantas fontes maravilho-

    sas, que me forneciam respostas para sobrepujar essesdile- mas. Neste captulo apresentarei algumas dessas fontes,

    e a- crescentarei a elas meus pensamentos e experincias.Muitas das anlises mais acessveis vieram de escritos do

    meu agora conhecido mentor de Oxford, C. S. Lewis.

    Apesar de podermos levar em conta vrias anlises, desco-

    bri quatro que eram especialmente irritantes naqueles dias def recm-nascida. Creio que elas estejam entre as mais impor-

    tantes para algum que esteja considerando a decisode a-

    A idia de Deus no apenas a satisfao de um desejo?Ser que Deus est mesmo por a? Ou a busca pela exis-

    tncia de uma entidade sobrenatural, to difundida em todas as

    culturas j estudadas, representa um anseio universal, embora

    infundado, da humanidade por algo fora dela que d sentido a

    uma vida sem sentido e a liberte do ferro da morte?Embora a busca pelo divino tenha, de algum modo,

    sido posta de lado fora nos tempos modernos, por nossavida a- tribulada e com excesso de estmulo, ainda um dosconfron- tos humanos mais universais. C. S. Lewis descreve talfenme- no em sua vida, no maravilhoso livro Surpreendidopela Alegria,

    e essa sensao de anseio intenso, despertada por algo to

    simples como algumas linhas de um poema, que ele identificacomo "alegria". O autor descreve essa experincia como"um desejo no satisfeito que mais desejvel do que

    qualquer ou-tra satisfao".2 Consigo me lembrar nitidamente de

    2LEWIS, C. S. Surprised by Joy. New York: Harcourt Brace, 1955. p. 17.

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    apanhou-me de surpresa e me fez ficar na dvida sobre a ori-

    gem dessa emoo to intensa, e como eu poderia retomar es-

    sa experincia.Recordo-me de ter sido transportado, aos 10 anos, pela ex-

    perincia de olhar atravs de um telescpio que um astrnomo

    amador colocara na parte mais elevada de nossa fazenda; sen-

    ti a vastido do universo, vi as crateras da Lua e a magia deli-

    cada da luz das Pliades. Lembro-me de uma vspera de Na-tal, quando eu tinha 15 anos, em que a melodia de uma canonatalina especialmente bela elevando-se suave e

    verdadeira acima do tom mais conhecido trouxe-me asensao inespera-

    da de admirao, somada a um anseio por algo que no con-

    seguia definir. Muito depois, ento um estudantegraduado e ateu, surpreendi-me experimentando essa mesma

    sensao de admirao e desejo, dessa vez somada a umsentimento muito profundo de pesar, durante a execuo do

    segundo movimento da Terceira Sinfonia de Beethoven (a

    Eroica). Quando o mundo lamentou a morte de atletasisraelenses assassinados por ter- roristas nas Olimpadas de

    1972, a Filarmnica de Berlim exe- cutou os tonsimpressionantes de um lamento em D Menor no Estdio

    Olmpico, misturando dignidade e tragdia, vida e mor- te. Poralguns instantes fui removido da minha viso materialis- ta de

    mundo e levado a uma indescritvel dimenso espiritual, uma

    experincia que considerei bastante assombrosa.

    Mais recentemente, para um cientista ao qual svezes dado o privilgio de descobrir algo, existe um tipo

    especial de alegria associado a esses lampejos de intuio.Tendo perce- bido um vislumbre de verdade cientfica,

    experimentei, de uma s vez, uma sensao de satisfao e

    desejo de compreender

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    uma verdade ainda maior. Num momento assim, a cincia se

    torna mais do que um processo de descoberta: ela transporta o

    cientista a uma experincia que desafia uma explicao total-mente naturalista.

    Ento, o que fazemos com essas experincias? E o que essa sensao de desejo por algo maior do que ns? apenas

    isso e nada mais, alguma combinao de neurotransmissorespousando exatamente nos receptores corretos, acionando uma

    descarga eltrica em uma parte mais profunda do crebro? Ouisso, como a Lei Moral descrita no captulo anterior, uma insi-

    nuao do que est alm, uma indicao, colocadabem no fundo do esprito humano, de algo muito superior a

    ns?

    De acordo com a viso atesta, no podemos dar crdito a

    esse tipo de desejo como se fosse indicao do sobrenatural, enossa interpretao de tais sensaes de admirao em uma

    crena em Deus representa nada mais que umpensamento mgico, forjando uma resposta, pois queremos

    que aquilo sejaa verdade. Esse ponto de vista particular alcanou seu pblicomais amplo nos escritos de Sigmund Freud; ele

    A psicanlise individual de seres humanos nosensina,

    com uma insistncia bastante especial, que o Deus de cada

    um deles formado na semelhana de seu pai, que seu re-

    lacionamento pessoal com Deus depende de suarelao com seu pai em carne e osso, e oscila e se

    modifica com o passar do tempo com essa relao, e que,no fundo, Deus

    3FREUD, S. Totem and Taboo. New York: W. W. Norton, 1962.

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    que ele no concorda com o carter de Deus na maioria das re-

    ligies do planeta. Em seu novo livro, alis muito distinto, Deus

    em Questo (Ultimato), Armand Nicholi, professor deHarvard com formao em Psicanlise, compara o ponto

    de vista de Freud ao de C. S. Lewis.4 Este alegou que essarealizao dedesejos provavelmente daria origem a um Deus diferenteda- quele descrito na Bblia. Se procuramos afagos

    generosos e misericrdia, no encontramos nada disso nasEscrituras. Em vez disso, conforme comeamos a nos prender

    existncia da Lei Moral, e nossa incapacidade bvia deviver segundo ela, descobrimos que temos srios problemas

    e que nos achamos potencial e eternamente distantes do

    autor dessa Lei. Alm disso, medida que uma crianacresce, no experimenta sen- timentos contraditrios com

    relao a seus pais, inclusive o de- sejo de libertar-se? Entopor que a realizao de desejos con- duz a um desejo por

    Deus, em oposio ao desejo de que no exista Deus

    nenhum?Por fim, em termos lgicos e simples, o fato de algum per-

    mitir a possibilidade de que Deus seja algo que oshumanos desejem elimina a possibilidade de Ele ser real? De

    forma al- guma. O fato de eu ter desejado uma esposaadorvel no a torna um ente imaginrio. O fato de o

    fazendeiro ansiar pela chuva no o faz questionar-se sobre arealidade de um posteri- or temporal.

    Naverdade,podemossuprirnossamentecomessaargumenta-oderealizaodedesejos.Porquehaveriaumansiahumana,

    Ascriaturasnonascemcomdesejos,amenosqueasatis-

    4NICHOLI, A. The Question of God. New York: The Free Press, 200

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    faodetaisdesejosexista. Umbebsentefome:bem,existe

    aquilo que chamamos de alimento. Um patinho quer

    nadar: bem, existe aquilo que chamamos de gua.Homens sentem desejo sexual: bem, existe aquilo que

    chamamos de sexo. Se eu descubro em mim um desejo que

    nenhuma experincia no mundo pode satisfazer, a

    explicao mais provvel que fui

    Se o anseio pelo sagrado um aspecto universal e enigm-tico da experincia humana, seria a realizao de desejos ape-

    nas uma seta na direo de algo alm de ns? Por que temosum "vcuo em forma de Deus" em nosso corao e em nossa

    mente se no servir para ser preenchido?

    Em nosso mundo moderno e materialista, fcil perder de

    vista a sensao de anseio. Em sua magnfica reunio de en-saios, Teaching a Stone to Talk[Ensinando uma pedra a falar],

    Annie Dillard discorre sobre esse vazio crescente:

    Agoranosomosmaisprimitivos. Agoraomundointeirono

    parecesanto. [...] Ns, comopessoas, trocamosopantesmope-

    lopan-atesmo. [...] difcildesfazernossodanoerecordarpara

    nossapresena oquepedimosparaabandonar.difcil danifi-

    carumbosqueemudarde idia.Lanamosumarbustoscha-

    mas eno podemos queim-lo de novo. Somos fsforosquei-

    mandoem vo debaixo de cadarvoreverde. Costumavam os

    ventoschorareascolinassairgritandoemagradecimento?Ago-

    raodiscursopereceuentreascoisasmortasda terra,eascoi-sasvivasdizemmuitopoucoamuitopoucos. [...] Eaindapode

    serqueemqualquerlugaremquehajamovimentohajaumsom,

    como quando uma baleia emerge e d um beijo

    estalado nas

    5Lewis, C. S. Mere Christianity. Westwood: Barbour and Company, 1952. p. 115.

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    suavedeDeus, falandopormeiodoturbilho,avelhacanoe

    avelha dana danatureza, oespetculo que trazemos daci-

    dade. [...]O que estivemos fazendo em todos esses sculos

    seno tentando chamar Deus de volta montanha, ou,

    sem conse- guir, erguendo uma voz fraca de qualquer coisa

    quenovenha dens?Quala diferenaentreumacatedral e

    um laboratrio

    E quanto a todo o mal perpetrado em nome da religio?

    Um obstculo importante para muitos indivduos determina-dos a evidncia obrigatria, ao longo da histria, dos terrveisatos realizados em nome da religio. Isso se aplica a pratica-

    mente todas as fs em algum ponto, at as que argumentam

    ter a compaixo e a no-violncia entre seus princpioscen- trais. Diante de exemplos rudes de abuso de poder,

    violncia e hipocrisia, como algum pode unir-se aos princpiosde uma f promovida por tamanhos disseminadores do mal?

    Para esse dilema existem duas respostas. Em primeirolugar, saiba que muitas coisas maravilhosas tambm foram

    realizadasem nomedareligio.AIgreja(eaquieuutilizootermode

    forma genri- ca, para me referir s instituies organizadas que

    promovemuma

    femparticular,semconsiderara fqueestoudescrevendo)muitas

    vezesdesempenhouumafunocrucialnoapoiojustiaebene-

    volncia.Leve emconta,porexemplo, os lderes religiososquese

    empenharamparalivraraspessoasdaopresso, comoMoiss, queliderouos israelitas, ouas forasdavitriadefinitivadeWilliamWil-

    ber,queconvenceuoParlamento inglsaseoporprticaescra-

    vagista,ouoreverendoMartinLutherKing, queliderouomovimento

    pelosdireitoscivisnosEstadosUnidos, peloqualdeusuavida.

    A segunda resposta, porm, nos traz de volta Lei Moral, ao

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    fato de que todos ns, seres humanos, fracassamosalguma

    vez. A Igreja se faz com pessoas arruinadas. A guapura e lmpida da verdade espiritual colocada em

    recipientes enfer- rujados, e os posteriores fracassos da Igrejaao longo dos s- culos no devem ser projetados sobre a

    f, como se a gua fosse o problema. No de estranharque aqueles que aces- sam a verdade e o apelo da f

    espiritual geralmente acham im- possvel imaginar-se aceitando

    uma religio por causa do com- portamento de determinada

    igreja. Ao expressar hostilidade Igreja Catlica francesa,no alvorecer da Revoluo Francesa, Voltaire escreveu:"Algum se surpreende de que haja ateus nomundo, quando a Igreja se porta de modo to abominvel?".7

    NodifcilidentificarexemplosemqueaIgrejaexecutouaes

    opostasaosprincpiospelosquaissuafdeveria terdadorespaldo.

    As Bem-aventuranas ditas porCristono SermodaMontanha fo-

    ramignoradaspelaIgrejacrist, querealizouviolentasCruzadasna

    IdadeMdiaepersistiucomumasriede inquisiesemseguida.O profeta Maom nunca usou a violncia para responder a

    seus perseguidores, aopassoqueasjihads islmicas,desdeseus

    primei- rosseguidorese incluindoosataquesviolentosdehojeem

    dia,co- moode11desetembrode2001, criaramuma impresso

    falsa de que a f islmica violenta em sua essncia. Mesmo os

    seguidores de fssupostamenteno-violentas, comoohindusmoe

    obudismo, svezesse empenhamemconfrontosviolentos, como

    osqueatu- almenteocorrememSriLanka.E no apenas a violncia que mancha a verdade da f re-

    ligiosa. Exemplos freqentes de hipocrisia crassa entre lderesreligiosos, tornadas ainda mais visveis pelo poder dos

    meios de comunicao, fazem muitos cticos conclurem queno h verdade ou bondade objetivas a encontrar na religio.

    -

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    to, em vrias igrejas, de uma f secular espiritualmente morta,

    que salta dos aspectos sacros da crena tradicional, apresen-

    tando uma verso da vida espiritual relacionada a eventos e/outradies sociais, e no com a busca por Deus.

    Causa, ento, estranheza que alguns crticos apontem a reli-gio como uma fora negativa na sociedade ou, nas palavras de

    Karl Marx, "o pio das massas"? Mas sejamos cuidadosos nesseponto. As grandes experincias marxistas na Unio Sovitica e

    na China de Mao, que visavam estabelecer sociedades explici-tamente baseadas no atesmo, comprovaram-se capazes

    de cometer pelo menos a mesma quantidade de, ou at mais,mas- sacres de pessoas e abuso explcito de poder que

    cometeu o pi- or dos regimes de pocas recentes. Na verdade,

    ao negar a e- xistncia de qualquer autoridade superior, oatesmo tem o po- tencial recm-descoberto de libertar

    totalmente os humanos de qualquer responsabilidade de nooprimir uns aos outros.

    Assim, embora a longa histria da opresso e da hipocrisia

    religiosas seja muitssimo grave, o pesquisador maissincero deve enxergar alm do comportamento de humanosfalhos, a fim de encontrar a verdade. Voc condenaria umcarvalho se sua madeira tivesse sido usada para fazer

    aretes? Culparia o ar por permitir a transmisso.de mentirasatravs dele? Julgaria

    A Flauta Mgica de Mozart com base em umaexecuo mal ensaiada por alunos da quinta srie? Se voc

    junca viu um pr- do-sol verdadeiro no Pacfico, permitiria queum prospecto de turismo fosse usado como substituto?

    Voc avaliaria o poder de um amor romntico com base

    em um casamento de vizi- nhos que trocam insultos?

    No. Uma avaliao completa da verdade da f depende deum exame na gua pura e cristalina, no nos recipientes enfer-

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    Talvez haja no mundo quem nunca tenha passado por alguma

    experincia dolorosa. No conheo ningum assim, e creio que

    nenhum leitor deste livro alegaria pertencer a tal categoria. Essaexperincia humana universal tem feito que muitas pessoas ques-

    tionem a existncia de um Deus de amor. Nas palavras de C. S.Lewis, em 0 Problema do Sofrimento (Editora Vida), a alegaoapresenta-se assim: "Se Deus fosse bom, desejaria fazersuas criaturas perfeitamente felizes, e se ele fosse onipotente,

    seria ca- paz de fazer o que desejasse. No entanto, as criaturasno so fe-

    lizes. Portanto, Deus no tem nem bondade nem poder".8Existem vrias respostas para esse dilema. Algumas

    so mais fceis de aceitar do que outras. Primeiramente,reconhe- amos que uma grande parcela de nosso

    sofrimento e do de nossos semelhantes origina-se do que

    fazemos uns aos outros. Foi a humanidade, e no Deus, queinventou as facas, os arcos

    e flechas, as armas, as bombas e todas as formas de instrumen-

    tos para tortura utilizados ao longo das eras. No se pode culparDeus pela tragdia de ter filhos jovens mortos por um motorista

    embriagado, de um homem inocente perecer no campo de bata-lha ou de uma moa ser atingida por uma bala perdida numa -rea de uma cidade moderna dominada pelo crime. Afinal de con-

    tas, de algum modo recebemos o livre-arbtrio, a capacidade defazer o que temos vontade. Com freqncia usamos essa capa-

    cidade para desobedecer Lei Moral. E, ao agirmos assim, no

    podemos jogar em Deus a culpa pelas conseqncias.Deveria Deus, ento, restringir nosso livre-arbtrio a

    fim de evitar esse tipo de comportamento ruim? Essa linha de

    pensa- mento encontra depressa um dilema do qual no

    8C. S. The problem of Pain. New York: MacMillan, 1962. p. 23.

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    criaturae,aomesmotempo,retiradelaesselivre-arbtrio",no

    consegue dizer nada a respeito de Deus: combinaesde pa-

    lavrassemsentidonoadquiremsentidodeumahoraparaou-traporque colocamosantesdelasduasoutraspalavras, "Deus

    pode".Abobagempermaneceumabobagem,mesmoquando

    falamossobreDeus.9

    Ainda podemos encontrar dificuldade para aceitarargumentos

    racionaisquandoumaexperinciade terrvelsofrimentorecaisobre

    umapessoa inocente. Conheciumaestudanteuniversitriaquees-

    tava morando sozinha durante as frias de vero enquanto

    fazia uma pesquisa mdica para se preparar para sua carreira na

    Medici- na. Despertada na escurido da noite, descobriu que um

    estranho invadiraseuapartamento. Pressionandoumafacacontraa

    garganta dela, ele ignorou-lhe as splicas, colocou-lhe uma venda

    nosolhos

    eapossuiu fora. Esse homem adeixouarrasada, revivendo a

    experinciainmerasvezesduranteanos. Jamais foiapanhado.

    Essa jovem era minha filha. Nunca o mal me apareceu emsua forma to crua do que naquela noite, e eu nunca desejei

    tanto a interveno divina de algum modo, a fim de deter essecrime hediondo. Por que ele no atingiu o criminoso

    com um relmpago ou, pelo menos, com um sentimentosbito de dor na conscincia? Por que Deus no colocou um

    campo de fora ao redor de minha filha para proteg-la?

    Talvez em raras ocasies Deus opere milagres. No entanto,

    na maioria das vezes, a existncia do livre-arbtrio e da ordemno universo fsico um fato do qual no se pode escapar. Em-

    bora possamos desejar que graas milagrosas aconteam mais

    9Ibid., p. 25.

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    O que dizer sobre a ocorrncia de desastres naturais: terre-

    motos, tsunamis, vulces, enchentes e fome? Em menor esca-

    la, mas no menos comovente, que explicao dar para a ocor-rncia de enfermidades em vtimas inocentes, como o

    cncer infantil? John Polkinghorne, pastor anglicano edestacado m- dico, refere-se a essa categoria de eventos

    como "mal fsico", em contraposio ao "mal moral"cometido pela humanidade. Como isso se justifica?

    A cincia revela que o universo, nosso planeta e mesmo a vi-da esto comprometidos com um processo evolucionrio. Entre

    os resultados disso, podemos incluir a imprevisibilidade do clima,o deslocamento das placas tectnicas ou a grafia

    incorreta de um gene cancergeno no processo normal dediviso celular. Se, no incio dos tempos, Deus optou por usar

    tais foras para criar os seres humanos, a inevitabilidade

    dessas outras conseqn- cias dolorosas tambm estavagarantida. Freqentes interven- es milagrosas seriam, no

    mnimo, to caticas no plano fsico quanto se interferissem nos

    atos humanos de livre-arbtrio.Para vrios pesquisadores atentos, essas explicaes racio-

    nais fracassam por no fornecer uma justificativa para a dor da

    existncia humana. Por que nossa vida mais um vale de lgri-mas que um jardim das delcias? Muito se tem escrito sobre es-

    se aparente paradoxo, e a concluso no fcil: se Deus amo-roso e deseja o melhor para ns, talvez o plano Dele no seja o

    mesmo que o nosso. Trata-se de um conceito difcil, em especial

    se formos regularmente alimentados, em doseshomeopticas, com uma verso da benevolncia de Deus

    que signifique, da parte Dele, nada mais do que um desejo desermos felizes para sempre. Mais uma vez, de acordo com

    Lewis: "Na verdade, que- remos mais um av do que um pai noCu uma benevolncia senil, que, como dizem, 'gosta de ver

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    possa dizer, com sinceridade, ao final de cada dia, que 'todos

    passaram por bons momentos'".10

    A julgar pela experincia humana, se devemosaceitar a bondade amorosa de Deus, Ele,

    aparentemente, deseja mais de ns do que isso. No

    essa, na verdade, nossa experin- cia? Quando vocaprendeu mais sobre si mesmo? Quando tu- do corria bem, ou

    quando precisou enfrentar desafios, frustra- es esofrimento? "Deus nos sussurra em nossos prazeres,

    fala em nossa conscincia, mas grita em nosso sofrimento."11

    Da mesma forma que gostaramos de evitar tais experincias,ser que, sem elas, no seramos criaturas superficiais, auto-centradas e, ao final, no perderamos todo o senso de nobre-

    za ou o empenho para aprimorar os outros?

    Leve em conta o seguinte: se a deciso mais importante que

    faremos nesta vida for sobre uma crena, e se o relacionamentomais importante que desenvolveremos aqui for com Deus, e se

    nossa existncia como criaturas espirituais no se limitar ao que

    poderemos fazer e observar durante nossa vida na terra, os so-frimentos humanos ganharo um contexto completamente novo.Talvez nunca cheguemos a entender completamente os motivosdas experincias dolorosas, mas podemos comear a aceitar a

    idia de que tais motivos existam. No meu caso, posso ver, em-

    bora de modo obscuro, que o estupro de minha filha foi um desa-fio para que eu tentasse aprender o real sentido do perdo em

    uma circunstncia terrivelmente violenta. Sendo bem

    honesto, ainda estou trabalhando nisso. Talvez essa tenhasido tambm uma oportunidade para que eu reconhecesse queno posso, na verdade, proteger minhas filhas de toda dor e

    todo sofrimento; tenho de aprender a confi-las aos cuidados

    10Ibid., p. 35.

    11Ibid., p. 83.

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    ta de uma reafirmao de que seus sofrimentos no foram em

    vo. Na verdade, minha filha diria que tal experincia

    propor- cionou-lhe a oportunidade e a motivao paraaconselhar e dar conforto a outras que passaram pelo mesmo

    tipo de violao.

    A noo de que Deus pode atuar em meio adversidade no

    fcil, e pode encontrar uma ancoragem firme somente em umaviso de mundo que abarque uma perspectiva espiritual. O prin-

    cpio do crescimento por meio do sofrimento , na verdade, qua-se universal nas grandes crenas mundiais. As Quatro Nobres

    Verdades de Buda no sermo do Deer Park, por exemplo, co-meam com 'A vida sofrimento". Para o seguidor, essa percep-o pode, paradoxalmente, ser uma fonte de grande conforto.

    A mulher com quem me preocupei quando era estudante de

    Medicina, por exemplo, que desafiou meu atesmo comuma aceitao gentil de sua doena terminal, viu, no

    captulo final de sua vida, uma experincia que a

    aproximou de Deus, em vez de afast-la mais ainda. Em um

    perodo histrico mais am- plo, Dietrich Bonhoeffer (telogoalemo que retornou dos Es- tados Unidos Alemanhadurante a Segunda Guerra Mundial a fim de fazer opossvel para manter viva a verdadeira Igreja, pois a

    Igreja crist organizada na Alemanha havia optado por darapoio aos nazistas) foi preso graas a sua atuao em um

    esquema para assassinar Hitler. Durante seus doisanos na priso, sofrendo muitas humilhaes e a perda de

    sua liberda- de, Bonhoeffer nunca hesitou em sua f ouem seu louvor a Deus. Pouco antes de ser enforcado,

    somente trs semanas antes da libertao da Alemanha,

    escreveu o seguinte: "Tempo perdido aquele em que

    12BONHOEFFER, D. Letters and Popers from Prison. New York: Touchstone, 1997. p. 47

    55

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    Como pode uma pessoa racional acreditar em milagres?Por fim, leve em conta uma objeo crena que tenha uma

    influncia profunda, em especial, para um cientista.Como os milagres podem se harmonizar com uma viso de

    mundo cien- tfica?

    Na linguagem moderna, depreciamos o significado da pala-

    vra "milagre". Falamos de "drogas milagrosas", "dieta milagro-sa" ou mesmo "ch milagroso". Isso, porm, no o sentido o-

    riginalmente intencional da palavra. Mais precisamente, um mi-lagre um evento que parece inexplicvel pelas leis da nature-

    za e, assim, sua origem considerada sobrenatural.Todas as religies incluem uma crena em determinados mi-

    lagres. A travessia dos hebreus pelo mar Vermelho,guiados por Moiss, seguida do afogamento dos soldados

    do fara uma histria de destaque, contada no livro do

    xodo, sobre a providncia tomada por Deus para evitar aiminente destruio de seu povo. Da mesma forma, quando

    Josu pediu que Deus prolongasse a luz do dia para ter xito

    em uma batalha, conta- se que o Sol ficou parado de talmaneira que s poderia ser descrita como milagrosa.

    Para o Isl, as escrituras do Coro foram iniciadas em umacaverna prxima de Meca, com as instrues a Maom forne-

    cidas de modo sobrenatural pelo anjo Jibril. Aascenso de Maom claramente um evento milagroso, na

    medida em que lhe dada a oportunidade de ver todasas caractersticas do cu e do inferno.

    Os milagres desempenham um papel impressionantena cristandade em especial o mais destacado dos

    milagres, o de Cristo levantando-se dos mortos.

    Como podemos aceitar tais alegaes enquanto afirmamosser humanos modernos e racionais? Bom, claro que, se al-

    gum parte do pressuposto de que eventos sobrenaturais so

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    impossveis, no acredita em milagres. Mais uma vez,pode-

    mos nos voltar a C. S. Lewis para que nos esclarea um pen-samento particular sobre esse tpico. Em seu livro Milagres(e-

    Qualquer evento que possamos afirmar como milagr,

    como ltimo recurso, algo apresentado a nossos sentidos, algo

    visto, ouvido, tocado, cheirado ou saboreado. E nossos senti-

    dos no so infalveis. Se parece ter ocorrido algo extraordin-

    rio, sempre poderemos dizer que camos vtimas de

    uma ilu- so. Se mantivermos uma filosofia que exclui o

    sobrenatural,

    o que sempre diremos. O que aprendemos com a experincia

    depende do tipo de filosofia que trazemos para a experincia.

    Correndo o risco de assustar aqueles que no se sentem

    vontade com abordagens matemticas de problemasfilosfi- cos, considere a seguinte anlise: o reverendo

    Thomas Bayes foi um telogo escocs pouco lembradopor suas considera- es teolgicas, porm bastante

    respeitado por apresentar um teorema particular deprobabilidades. Seu teorema fornece uma frmula, pela qual se

    pode calcular a probabilidade da observa- o de um evento

    em especial, dadas algumas informaes i- niciais("antecedentes") e algumas informaes adicionais (a

    "condicional"). O teorema de Bayes especialmente til quan-do confronta duas ou mais explicaes possveis para a ocor-

    rncia de um evento.

    Leve em conta o exemplo a seguir: voc foi aprisionado porum louco. Ele lhe d uma oportunidade de se libertar permi-

    13LEWIS, C. S. Mirades: A Preliminary Study. New York: MacMillan, 1960. p. 3.

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    baralhe e escolha novamente. Caso apanhe o s de espadas

    em ambas as vezes, ser libertado.

    Ctico sobre se vale a pena a tentativa, voc prossegue e, para sua estupefao, pega o s de espadas do baralho du-

    as vezes. Suas correntes so soltas e voc retorna ao lar.

    Com suas tendncias matemticas, voc calcula a

    chance de essa boa sorte se repetir: 1/52 X 1/52 = 1/2 074.Um evento improvvel, mas aconteceu. Poucas semanas

    depois, contudo, voc descobre que um funcionrio bondosoda empresa fabri- cante de cartas de baralho, sabendo da

    aposta do louco, deu um jeito de que um em cada cembaralhos de cartas fosse composto de 52 ases de espadas.

    Talvez ento no se tratasse apenas de uma mudana

    na sorte. Quem sabe um ser humano inteligente e

    simptico (o funcionrio), que voc no conhecia at o diade sua captura, interveio para aprimorar as chances de sua

    libertao? A pro- babilidade de que o baralho do qual voc

    apanhou as cartas vi- esse de um exemplar normal com

    52 cartas diferentes era99/100; a probabilidade de ser um baralho especialcontendo apenas ases de espadas era de 1/100. Para essesdois poss- veis pontos iniciais, as probabilidades

    "condicionais" de sacar dois ases de espadas de uma

    seleo seriam 1/2 704 e 1, res- pectivamente. De acordocom o teorema de Bayes, agora possvel calcular as

    probabilidades "posteriores" e concluir que haveria 96% de

    chance de o baralho de cartas do qual voc sacou ascartas ser um dos "milagrosos".

    A mesma anlise pode ser aplicada a eventos aparentemente

    milagrosos da experincia cotidiana. Imagine que vocpresen- ciou uma cura espontnea de cncer em estgioavanado, que, como se sabe, fatal em quase todos os

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    lagrosa de cncer. uma em mil? Uma em um milho? Ou zero?

    Aqui, sem dvida, onde as pessoas sensatas vo discor-

    dar, algumas com barulho. Para o comprometido com o materi-alismo no se permite a possibilidade de milagres (seu "ante-

    cedente" ser zero) e, portanto, mesmo uma cura decncer extremamente incomum ser descartada como

    evidncia do milagre. Em vez disso, ser dado crdito ao fatode que even- tos raros acontecem no mundo natural vez

    por outra. Aquele que acredita na existncia de Deus,entretanto, pode, aps e- xaminar as evidncias, concluir que

    esse tipo de cura no deve ter ocorrido por qualquer tipo deprocesso natural; e, tendo ad- mitido que a probabilidadeantecedente de um milagre, apesar de muito pequena, no

    nula, ir executar seu prprio clculo bayesiano (muitoinformal) para concluir que h mais probabili- dade de ocorrer

    um milagre do que de no ocorrer.

    Tudo isso apenas para dizer que uma discusso sobre cura

    milagrosa degenera rapidamente para uma argumentao

    so- bre se algum quer ou no levar em conta quaisquerpossibili- dades de sobrenatural. Acredito que exista essapossibilidade; contudo, o "antecedente" deve, em geral,

    ser muito pequeno. Ou seja, o pressuposto em qualquercaso deve ser a favor de uma explicao natural. Para odesta, que enxerga Deus como

    o criador do universo que foi perambular em algum outro lugarpara desempenhar outras atividades, no h mais motivos para

    considerar eventos naturais como milagres do que para o mate-rialista convicto. Para o testa, que acredita em um Deus aten-

    cioso com a vida dos humanos, existe umaprobabilidade de colocar em prtica vrios nveis de

    suposio de milagres, de- pendendo da percepo do

    indivduo acerca da possibilidade de que Deus intervenha

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    potencialmente milagrosos, a fim de que a integridade e a ra-

    cionalidade da perspectiva religiosa sejam trazidas questo.

    A nica coisa que mataria com mais rapidez a possibilidade demilagres do que um materialismo comprometido seria a alega-

    o de uma condio de milagre para os eventos dirios paraos quais j existem explicaes naturais ao alcance. Qualquer

    um que afirme que o desabrochar de uma flor um milagre es-

    t se aproveitando de uma compreenso crescente da biologiadas plantas, que se encontra bem no caminho da elucidao de

    todas as etapas entre a germinao das sementes e o

    esa- brochar de uma rosa linda e perfumada, tudo dirigido peloma-

    nual de instrues do DNA dessa planta.

    De modo semelhante, uma pessoa que ganha na loteria, eanuncia tratar-se de um milagre porque rezou para obter esse

    resultado, fora os limites de nossa credulidade. Afinal de con-tas, tendo em vista a ampla distribuio de, no mnimo, alguns

    vestgios de f na sociedade moderna, provvel que

    uma parcela significativa de indivduos que compraramum bilhete de loteria naquela semana tambm rezou de

    maneira efmera para que pudesse ganhar o prmio. Nessecaso, a alegao de interveno milagrosa do verdadeiroganhador soa vazia.

    Mais difceis de avaliar so as afirmaes de quem obteve a

    cura milagrosa de algum problema de sade. Como mdico, jpresenciei circunstncias em que pessoas se

    recuperaram de enfermidades que pareciam irreversveis.Contudo, reluto em a- tribuir tais eventos interveno

    milagrosa, tendo em vista nos- sos conhecimentos incompletossobre doenas e como estas a- fetam o corpo humano. Com

    muita freqncia, quando alegamos que curas milagrosas foram

    examinadas com todo o cuidado por observadores imparciais,

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    curas milagrosas genunas aconteceram em ocasies extrema-

    mente raras. Meu "antecedente" baixo, mas no igual a zero.

    Portanto, os milagres no se afirmam como um conflito in-concilivel para quem acredita na cincia como uma forma de

    investigar o mundo natural e para quem enxerga queesse mundo regido por leis. Se, assim como eu, voc

    admite que possa existir algo ou algum fora da natureza, no

    acredita que haja motivo lgico para essa fora no poder, emraras ocasi- es, representar uma invaso. Entretanto,

    para que o mundo evite cair gradualmente no caos, milagres

    precisam ser bastan-

    Deus no agita milagres na natureza de formaaleatria,

    como se os jogasse com um saleiro. Milagres surgem em oca-

    sies especiais: so encontrados nos grandes tumores da his-

    tria no na histria poltica ou social, e sim naquela histria

    espiritual que no pode ser totalmente conhecida

    pelos ho- mens. Se sua vida no se assemelha a esses

    Vemos aqui no somente um argumento sobre araridade

    dos milagres, mas tambm um argumento de que estes devemter alguma finalidade em vez de representar os atos sobrenatu-rais de um mgico extravagante, simplesmente elaborados pa-

    ra impressionar. Se Deus a personificao definitiva da onipo-

    tncia e da bondade, sua funo no a de trapacear.

    Milagres no devem ser interpretados como atosdivinos

    contra as leis da natureza (pois essas leis so, em si mesmas,

    14Ibid., p. 167.

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    profundas do carter do relacionamento divino para a criao.

    Para serem crveis, os milagres devem transmitir uma compre-

    enso mais profunda do que poderia ter sido obtido sem eles.15

    Apesar de tais argumentos, os cticos materialistas, que no

    desejam dar fundamentos ao conceito de sobrenatural e negama evidncia da Lei Moral e do sentimento universal de

    ansiar por um Deus, iro, sem dvida, argumentar que no ha me- nor necessidade de levar em conta os milagres. Peloponto de vista deles, as leis da natureza podem explicar tudo,

    at mes- mo o extremamente improvvel.Pode, porm, esse ponto de vista ser totalmente

    confirma- do? Existe pelo menos um evento

    extremamente improvvel, sem igual e profundo na histriaque os cientistas de quase to- das as disciplinas

    concordam, no compreendido e jamais ser, e para

    o qual as leis da natureza fracassam completa-

    15POLKINGHORNE, J. Science andTheotogy An Introduaion. Minneapolis: Fortress

    Press, 1998. p. 93.

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    SEGUNDA PARTEAs grandes questes da existncia humana

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    CAPITULO 3Asorigensdouniverso

    MAIS DE DUZENTOS ANOSATRAS,

    um dos filsofos de maior influncia de to-

    dos os tempos, Immanuel Kant, escreveu:

    "Duas coisas me enchem de admirao eestarrecimento crescentes econstantes, quanto mais tempo e mais

    sinceramente fico refletindo acerca delas:os cus estre- lados l fora e