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Como os carros dos portugueses sugerem fuga ao Fisco Estatísticas de automóveis por concelho revelam discrepâncias face ao rendimento declarado para efeitos de IRS O Expresso cruzou os rendi- mentos declarados em cada concelho com a base de dados de automóveis registados em Portugal. 56 concelhos onde as marcas premium e de luxo representam mais de 20% dos carros em circulação e muitos deles estão no lote dos mais pobres do país. A economia paralela é uma das explicações avançadas por es- pecialistas. E

Como os carros dos portugueses sugerem fuga ao Fisco · automóveis per capita e o 6 9 lugar em viaturas L&P. Como chegámos a estes números A informação sobre os carros pelo Ministério

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Page 1: Como os carros dos portugueses sugerem fuga ao Fisco · automóveis per capita e o 6 9 lugar em viaturas L&P. Como chegámos a estes números A informação sobre os carros pelo Ministério

Como oscarros dosportuguesessugeremfuga ao Fisco

Estatísticas de automóveispor concelho revelamdiscrepâncias face aorendimento declaradopara efeitos de IRS

O Expresso cruzou os rendi-mentos declarados em cadaconcelho com a base de dadosde automóveis registados emPortugal. Há 56 concelhosonde as marcas premium ede luxo representam mais de20% dos carros em circulaçãoe muitos deles estão no lotedos mais pobres do país. Aeconomia paralela é uma das

explicações avançadas por es-

pecialistas. E

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Page 2: Como os carros dos portugueses sugerem fuga ao Fisco · automóveis per capita e o 6 9 lugar em viaturas L&P. Como chegámos a estes números A informação sobre os carros pelo Ministério

Análise Como se compara o nosso parque automóvel com o rendimento declarado pelas famílias? Em muitos casos, mal. Há

Concelhos pobres, carros de

Textos ELISABETE MIRANDA,MIGUEL PRADO

e Raquel Albuquerqueliifografia SOFIA MIGUEL ROSA

Ilustração PAULO BUCHINHO

0 ano está a correr de

feição às marcas au-tomóveis de maiorprestígio e, nestemomento, 18% doscarros que circulamnas estradas portu-guesas pertencema este campeonato.

Contudo, se olharmos para a distribui-

ção regional do parque automóvel, nem

sempre a qualidade da garagem andade braço dado com a riqueza de umaregião. Há dezenas de concelhos comricos carros mas que estão na cauda norendimento declarado.

Um desses exemplos é Montalegre,concelho transmontano que nos úl-timos meses saltou para o noticiárionacional por causa dos boicotes à ex-ploração de lítio e por ter sido palcode uma grande apreensão de tabacocontrabandeado. Uma análise feita pelo

Expresso, cruzando a base de dados do

registo automóvel (gerido pelo Institutodos Registos e do Notariado) com osnúmeros do Instituto Nacional de Esta-tística (INE) e da Autoridade Tributária(AT), revela que 27% dos carros regis-tados em Montalegre são de marcas de

uma percentagem bem acima da mé-dia (18%). Montalegre tem um nívelde riqueza (flßper capita) de 62,4%da média nacional, encontrando-se no

256 Q lugar entre os 280 concelhos docontinente analisados. Tem tambémum dos mais baixos rendimentos decla-rado pelas famílias ao Fisco, surgindona 228 a posição entre 280 concelhos

(Portugal Continental) em rendimento

por habitante. É representativo de umarealidade que abrange dezenas de mu-nicípios portugueses onde há um gran-de fosso entre o rendimento declaradoe a qualidade do parque automóvel.

A disparidade é observável por vá-rios prismas. Ordenámos os concelhos

em função do rácio de carros de luxoe premium (L&P) por habitante e emfunção do rendimento declarado. Há

maisde 200 posições entre um critérioe o outro. Por exemplo, Vila Verde é

o 256 U concelho em rendimento porhabitantee o 11 a em carros L&P. Aguiarda Beira é o 247 a em rendimento e o 3-em veículos L&P.

Considerámos ainda outra análise:há 56 concelhos em Portugal onde os

carros L&P compõem mais de 20%do respetivo parque automóvel. Nes-se grupo incluem-se municípios commaior rendimento, como Oeiras e o

Porto, mas a lista é liderada por Fel-gueiras, onde 28% do parque é L&P.Felgueiras é também o 9 U concelho do

país com mais Ferrari por habitan-te e é o município onde hámais Porsche e Jaguarpor cada milhão de IRS

pago.Outro ângulo de ob-

servação ainda: em Por-

tugal Continental há 1,2 ?carros de marcas L&P porcada €100 mil de rendimento declara-do. Em Aguiar da Beira, Trancoso, VilaVerde ou Póvoa de Lanhoso, o rácioduplica. Felgueiras também está neste

grupo, tal como Paços de Ferreira, Bar-celos ou Chaves, mas com diferenças

À direita, no mapa, poderá verificar

que são sobretudo nosconcelhos a nor-te do Tejo que os cidadãos parecem ter

maior propensão para destinar umamaior parcelado rendimento àcomprade marcas de prestígio, com especialconcentração a norte do Mondego.Os dados consideram todo o parqueautomóvel, mas mesmo considerando

apenas os automóveis com até 12 anos

(registados após 2007) as conclusões

Quanto mais escura for a mancha nomapa, maior a distância entre o ren-dimento declarado e a qualidade do

parque automóvel.

Uma questão de estatuto

Há várias explicações para a grandepresença de marcas de prestígio no

parque automóvel, a começar pelasa diferentes gamas criadas pe-

las marcas. "Nestes últimosanos, as marcas premiumcomeçaram a ganharquota de mercado comoas generalistas, nomea-

damente apostando emmodelos mais acessíveis. Não

me admiro muito que tenham umapenetração maior em concelhos comrendimento^er capita inferior", explicaHélder Pedro, da Associação Automó-vel de Portugal (ACAP).

Um segundo grupo de explicaçõessituar -se-ão a nível da sociologia. "A

seguir à casa, o carro deverá ser o

bem mais usado para afirmar umadistinção social. E essas distin- a

micas, podem ser culturaisou simbólicas. Portanto,

exibir um carro de umadeterminada marca pode

~funcionar como uma espécie de retbr-

ço de um estatuto que se tem ou aoqual se quer aceder", explica Renatodo Carmo, professor do Instituto Uni-versitáriodeLisboa(lSCTE-lUL).Maisainda, os carros "são também muitasvezes usados por quem está num pro-cesso de ascensão social, que não faz

parte de uma elite, mas que consomeestes bens de luxo para se aproximardesse meio", análise que coincide coma da socióloga Luísa Schmidt, ao notarque, embora "as gerações mais novasvalorizem menos o carro, muita gentecontinua a olhar para o carro comoforma de poder".

É isso que justifica que, por exemplo,"as famílias não tenham uma aborda-

gem racional ao automóvel, tendendoa subestimar as estimativas globaiscom o que gastam mensalmente",acrescenta José Palma-Olivei- â

ra, professor de Psicolo-

giaSocialeAmbiental."Posso ser de classemédia baixa e invés-

tir mais do que devia no automóvel,porque ele define o que sou ou o que

Outra explicação ainda para as discre-

pâncias entre parques automóveis bem

apetrechados e rendimentos declarados

pelas famílias vem dataxade poupança."Pode haver regiões onde a poupançaé mais elevada ou terem sido zonas deelevada emigração, onde o patrimónioelevado não corresponde necessaria-mente a muito rendimento", situa, porseu lado, Oscar Afonso, presidente doObservatório de Economia e Gestão deFraude (OBEGEF). Ou aindaserem zo-nasde grande desigualdade socioeconó-

mica, o que faz baixar os níveis médiosde rendimento. Mas, sabendo-se queem Portugal cerca de 25% dos negóciossão feitos por baixo da mesa, é incontor-nável encontrar respostas também naevasão fiscal. "Os dados sugerem que

há economia paralela e que ela não é

?geograficaniente homogénea. E su-

gerem ainda que pode haver fontes

de rendimento não declaradas",consente o economista.

Nuno Barroso, presidente do

Em Portugal, há 0,6 automóveis porhabitante. 18% dos carros quecirculam são de marcas consideradas

deluxoouprernfum(seconsiderarmos apenas os carros com

menos de 12 anos. a percentagemsobe ligeiramente, para 19%). Há 76

concelhos (27% do total) onde a

concentração de luxo e premium(L&P) em relação ao parqueautomóvel em circulação é superior àmédia.

Felgueiras é o concelho que temmaior concentração de carros LSP

face ao total (28%). seguido deMiranda do Douro e Montalegre(27%), Pinhel (26%), Oei rase Aguiarda Beira (25%).

Analisandoaconcentração LSP porhabitante, Oeiras passa parao topo,destacado — há 0.3 carros L&P pormorador no concelho —

. seguido de

Montalegre (0.15). Aguiar da Beira.Sintra e Lisboa (0.1 5). Porto (0.13) e

Felgueiras (0,12). Ao todo, há 74concelhos com um rácio de carros

L&P por habitante acima da média.

Em média, no país. há6.4 carros porcada €100 mil de rendimentodeclarado ao Fisco. No segmentoLBP.hál.2carrosporcada€loomildeclarados. Há 168 municípios onde o

valor fica acima da média, sendo queem 17 deles há 2 carros por cada€loomil. No topo destacam-se

Montalegre (2.7). Aguiarda Beira

(2,6), Vila Verde (2,4), Póvoa de

Lanhoso. Oeiras e Felgueiras (2.2).

Dosl4o concelhos com menos

riqueza per capita no país, 63 estão

L&P por habitante (45%). E dos 140

concelhos com menos rendimentodeclarado ao Fisco por habitante 69

estão na primeira ligaem termos decarros LSP por habitante (49%).

Oeiraséoconcelhocom mais L&P

por habitante e o 2 Q em rendimento

por habitante declarado ao Fisco. Em

2° e 3 a lugares no registo de LSP porhabitante vêm MontalegreeAguiarda Beira, que são. respetivamente. o2283 e o 247 e(entre 280) norendi mento declarado às Finanças.

Felgueiras está em 7a lugar, quandoem matéria de rendimento declaradoé 222^ e de IRS pago por habitante é222e(em280).

Lisboa, que é o 2 a concelho do paísem carros por habitante e o I a emrendimento por habitante, ocupa o

5 a lugar em veículos LSP per capita.O Porto, que é o 3 e concelho emrendimento, ocupao 139 lugar emautomóveis per capita e o 6 9 lugar emviaturas L&P.

Como chegámos a estes números

A informação sobre os carros

pelo Ministério da Justiça(Instituto dos Registos e do

Notariado). A base de dadoscontém todos os automóveis

ligeiros de passageiros inscritosno registo automóvel, pormarcas, tipo de titular (pessoasingular ou coletiva) e ano de

registo. Estes dados nãodiscriminam as marcas pormodelos, pelo que a opção foifazer a classificação de luxo e

premium por marcas. No luxoestão marcas como Maserati.Lamborghini, Bentley, Ferrari,

Jaguar, Porsche e Aston Martin,

Audi, BMW, Mercedes, LandRover, Lexus eTesla. Esta

metodologia deixa de fora da

classificação premium os toposde gama de marcas tidas como

todos os carros da BMW. Audi e

Mercedes independentementedo modelo e do preço. A

informação foi cruzada comoutros dados concelhios, como orendimento bruto declarado,por concelho, para efeitos de IRS

co IRS por concelho (facultadospela Autoridade Tributária e

referentes a 2017, o último ano

para o qual há dados), bemcomo com um indicador percap/ta que analisa a riquezacriada face à média nacional,também de 2017. e a populaçãopor concelho (também do INE).Para despistar o efeito do

automóvel, repetimos oscálculos considerando apenascarros registados após 2007

de 12 anos), mas, no geral, as

conclusões globais não sãomuito distintas dos resultados

quando analisado todo o parqueautomóvel.

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sindicato dos inspetores fiscais (APIT),corrobora a explicação. "Por mais quecontinuemos a dizei' que o combate àfraude e evasão fiscal é uma prioridade,uma parte muito significativa da nossa

riqueza continua a não ser tributada", e

estes números são mais uma ilustraçãodisso mesmo.

O efeito 'Manuel Damásio'

Uma das formas de ter vida de rico com

pouco rendimento é fazer como Manu-el Damásio, o antigo presidente do Ben-

fica, que declarava o salário mínimo às

Finanças. Numa zona de muitas microe pequenas empresas, como aconte-ce na zona do Vale do Ave, no Cávadoe no Tâmega, a contabilidade da em-presa e do empresário confundem-se,com muitas despesas pessoais a seremimputadas às sociedades. Voltando àsestatísticas sobre o parque automóvel,verificamos que na região Noite, entre8% a 9% dos carros do segmento L&Pestão em nome de empresas (este tópi-co será mais desenvolvido na próximasemana).

Outro expediente comum é a em-presa comprar o carro em seu nome,fazei" amortizações acima do normal e,

passados poucos anos, vendê-lo a ummembro da família por um valor bemabaixo do seu preço de mercado.

Em zonas de fone implantação in-dustrial e comercial são também de

esperar expedientes de subfaturação e

empresas familiares que prestam ser-

viços acessórios mas não chegam a terexistência formal. A proximidade dafronteira facilita a exposição a ativi-

dades de contrabando, à

compra de mercadorias a

Espanha ou à criação de em-

presas fantasma que sirvam

para integrai' a chamada frau-de carrossel no IVA. Em zonasmais rurais, onde os subsídios europeusafluem, há maior risco de estes seremcanalizados para despesas privadas,admitem fontes ouvidas.

Estes fenómenos de subfaturação,luvas no sector privado, corrupçãono público, subsídios indevidamenteaplicados, remunerações em espéciee salários por declarai; que ajudam aexplicar como é que há sinais exterioresde riqueza havendo baixo rendimentodeclarado e IRS, não se circunscrevem,naturalmente, ao Norte.

Um inspetor de finanças da zona deLisboa lembra que, até se ter proibidopagamentos em numerário acima de€3 mil, era comum os stands de au-tomóveis terem máquinas de contarnotas e que também no Sul já foramdetetados esquemas em que os carrosde luxo são comprados para despistara origem de fundos ilícitos (a chamada

lavagem de dinheiro).Mas detetar estas situações, ao con-

trário do que se julgaria, não está assimtão mais fácil, porque, diz Nuno Bar-

roso, a sofisticação da AT foi acompa-nhada por mais cuidados por pane doscontribuintes. "Mesmo que passemosa pente fino os registos contabilísticos.a informática esgota-se, até porque as

pessoas sabem que as compras têmde bater certo com as vendas, porquesenão nós detetamos." "É preciso terinspetores no terreno", é necessário"fazer inspeções de rua", mas, para umtecido empresarial que supera as 1,2milhões de empresas, apenas há 1400inspetores em atividade de funções.

A persistência de falta de meios con-tribui para adensar assimetrias numpaís desigual.

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