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REINALDO PIZOLIO JR. COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA E CONCEITOS CONSTITUCIONAIS MESTRADO EM DIREITO DO ESTADO DIREITO TRIBUTÁRIO PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC/SP SÃO PAULO 2005

Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

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Page 1: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

REINALDO PIZOLIO JR.

COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA E CONCEITOS CONSTITUCIONAIS

MESTRADO EM DIREITO DO ESTADO

DIREITO TRIBUTÁRIO

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC/SP

SÃO PAULO 2005

Page 2: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

REINALDO PIZOLIO JR.

COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA E CONCEITOS CONSTITUCIONAIS

MESTRADO EM DIREITO DO ESTADO

DIREITO TRIBUTÁRIO

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Direito do Estado – Direito Tributário, sob a orientação do Professor Doutor José Artur Lima Gonçalves

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC/SP

SÃO PAULO 2005

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REINALDO PIZOLIO JR.

COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA E CONCEITOS CONSTITUCIONAIS

Banca Examinadora

---------------------------------------------------------------------

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC/SP

SÃO PAULO 2005

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AGRADECIMENTOS

Trago comigo a convicção de que uma das atividades mais relevantes a que nos podemos dedicar é a de agradecer. O agradecimento é fundamental e reconfortante, não é preconceituoso, não faz distinções e cabe em todo lugar e em qualquer tempo. O agradecimento – não o meramente protocolar, mas o sincero – presta duas homenagens: primeiro às pessoas às quais agradecemos, porque põe em evidência o relevante papel que desempenharam em nossa vida e em nossos atos; e depois a nós mesmos, porque nos lembra a cada instante que não podemos fazer nada sozinhos. Exercito agora, pois, essa tarefa que tanto me agrada e agradeço –– à Catherine e à Beatriz, pelo amor que me dão e pelas horas que me concederam para realizar este estudo; –– ao Léon Bonaventure e à Jette Bonaventure, pelo apoio e estímulo constantes e incondicionais; –– à minha mãe, Alcione, pela confiança que sempre depositou em mim, e ao meu pai, Reinaldo, por tudo; e ainda –– ao Professor José Artur Lima Gonçalves, pela orientação constante, exigente e precisa; –– ao Professor Marco Aurelio Greco, pela generosidade em discutir comigo algumas das idéias defendidas no presente trabalho; –– à Professora Teresa Arruda Alvim Wambier, porque há momentos na vida em que tudo o que se precisa é um voto de confiança e –– à Professora Íris Gardino, pelo carinho imenso e pela inestimável colaboração.

Page 5: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

À pequenina Beatriz, que me ensinou um novo e ilimitado conceito para a palavra amor.

Page 6: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

... as nossas ideias quotidianas e tradicionais acerca da realidade são ilusões que procuramos fundamentar durante grande parte das nossas vidas, mesmo correndo o considerável risco de tentar encaixar os factos na nossa definição de realidade em vez de fazermos o contrário. E a ilusão mais perigosa de todas é a de que existe apenas uma realidade. Aquilo que de facto existe são várias perspectivas diferentes da realidade, algumas das quais contraditórias, mas todas resultantes da comunicação e não reflexos de verdades eternas e objetivas.

Paul Watzlawick A realidade é real?

Mudar de lugar as palavras representa, muitas vezes, mudar-lhes o sentido, mas elas, as palavras, ponderadas, uma por uma, continuam, fisicamente, se assim posso exprimir-me, a ser exactamente o que haviam sido, ...

José Saramago

Ensaio sobre a lucidez

Page 7: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

RESUMO

O presente trabalho tem por objeto o estudo da competência

tributária e dos conceitos jurídicos utilizados pela Constituição Federal – tais como

renda, faturamento, receita e serviços de qualquer natureza, entre outros – para a

sua discriminação entre os entes federativos.

Para tanto, fixamos como premissas fundamentais que a existência

dos conceitos constitucionais – presentes no chamado critério da materialidade –

constitui exigência lógica de conhecimento e de aplicação da Constituição; que

possuem conteúdo semântico mínimo e máximo; que integram a própria regra de

outorga de competência tributária e que desempenham a função de limitações

constitucionais ao poder de tributar.

Após o delineamento do corte metodológico, iniciamos o estudo pela

análise do Sistema Tributário Nacional e de dois de seus princípios – capacidade

contributiva e vedação do efeito confiscatório – para depois discorrermos sobre os

denominados postulados normativos, que consideramos elementos de auxílio da

interpretação jurídica ou pautas interpretativas.

Em seguida concentramos nossa atenção na própria interpretação

jurídica e abordamos seu caráter construtivo; sua estreita ligação com o ato de

aplicação da norma; as influências sofridas pelo intérprete e os seus limites.

Finalmente, tratamos da construção do conteúdo significativo dos

conceitos constitucionais; do seu processo de jurisdicização e encerramos o

trabalho com a análise de cinco precedentes jurisprudenciais.

Page 8: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

ABSTRACT

This work aims to study the power of taxing and the legal concepts

used in Federal Constitution – such as income, invoice and services of any kind,

among others – to distinguish them between federative entities.

In this way, reasoning is based on the premise that the existence of

constitutional concepts – included in the material criterion – is a logical demand for

Constitution knowledge and application; that they have minimum and maximum

semantic content; that they form the rule of granting tax competence itself and that

they set constitutional limits to the power of taxing.

After outlining the scope, we start this work dealing with the National

Tax System and two of its principles: tax paying ability and confiscatory effect

veto. In addition, we focus on the postulated rules, which are considered helpful

elements of legal interpretation or as interpretation criteria.

Besides, we concentrate on legal interpretation itself, exploring its

constructive characteristic and its straight attachment to rules application; the

influences the reader is subject to and their limits.

To sum up, we discuss the building of significant contents of the

constitutional concepts, as well as their process to be considered as a legal issue,

and we finish this study analyzing five precedent court decisions.

Page 9: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

SUMÁRIO

Introdução

1. Objeto do estudo ......................................................................................... 1

2. Conceitos constitucionais e legislação ordinária ......................................... 4

3. Descompasso atual entre doutrina e jurisprudência ................................... 5

4. Jurisprudência e construção da normatividade do ordenamento .............. 10

5. Papel criativo da jurisprudência e sistema tributário rígido ....................... 13

Capítulo 1 – Postulado Científico da Explicitude das Premissas

1. Fixação de premissas e busca de coerência ............................................ 17

2. Ciência do Direito e uso rigoroso da linguagem ........................................ 22

3. Papel da Semiótica ou Teoria dos Signos ................................................. 24

4. Necessidade de adoção do método – corte metodológico ........................ 27

5. Delimitação do objeto de estudo ............................................................... 30

6. Algo distante – mas não muito – do positivismo metodológico ................. 31

7. Ciência do Direito e a questão da decidibilidade ....................................... 33

8. Ordenamento jurídico e perspectiva dinâmica .......................................... 35

9. Tópica jurídica ........................................................................................... 48

10. Jurisprudência dos valores ........................................................................ 60

Page 10: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

Capítulo 2 – Sistema Tributário Nacional e Conceitos Constitucionais

1. Constituição rígida e Constituição Federal brasileira ................................ 67

2. Discriminação constitucional da competência tributária ............................ 71

3. Sistema Tributário Nacional e dupla função .............................................. 79

3.1 Tributo como instrumento de transformação social ........................ 82

3.2 Princípios de proteção ao contribuinte ............................................ 88

4. Conceitos e indeterminação dos conceitos ............................................... 90

5. Conceitos constitucionais como exigência lógica de conhecimento e

de aplicação da Constituição Federal ....................................................... 96

6. Conceitos constitucionais e exercício da competência tributária ............ 101

7. Conceitos constitucionais como limitação ao poder de tributar ............... 105

Capítulo 3 – Capacidade Contributiva e Vedação do Efeito Confiscatório

1. Parâmetros relevantes na construção dos conceitos constitucionais ..... 109

2. Princípio da capacidade contributiva ....................................................... 112

2.1 Capacidade financeira .................................................................. 113

2.2 Capacidade individual ................................................................... 114

2.3 Capacidade presumida ................................................................. 115

2.4 Capacidade vinculada ao pressuposto de fato do tributo ............. 115

2.5 Funções da capacidade contributiva ............................................ 116

2.6 Aplicabilidade da capacidade contributiva aos tributos ................ 123

2.7 Limites indicados pela capacidade contributiva ............................ 124

Page 11: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

3. Princípio da vedação do efeito confiscatório ........................................... 125

3.1 Confisco e direito de propriedade ................................................. 127

3.2 Tributo com efeito confiscatório .................................................... 129

3.3 Verificação do efeito confiscatório e aplicabilidade a todos os

tributos .......................................................................................... 131

Capítulo 4 – Postulados Normativos

1. Definição de postulado normativo ........................................................... 135

2. Instrumento de auxílio na interpretação e na aplicação das normas

jurídicas ................................................................................................... 140

3. Espécies de postulados normativos ........................................................ 144

4. Postulados normativos inespecíficos ...................................................... 145

4.1 Ponderação ................................................................................... 145

4.2 Concordância prática .................................................................... 146

4.3 Proibição do excesso .................................................................... 148

5. Postulados normativos específicos ......................................................... 149

5.1 Igualdade ...................................................................................... 149

5.2 Razoabilidade ............................................................................... 153

5.3 Proporcionalidade ......................................................................... 160

5.3.1 Adequação ......................................................................... 163

5.3.2 Necessidade ....................................................................... 165

5.3.3 Proporcionalidade em sentido estrito ................................. 166

Page 12: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

Capítulo 5 – Interpretação e Aplicação do Direito

1. Pensamento sistemático e sistema jurídico ............................................ 168

2. Pensamento problemático e modelo tópico ............................................ 174

3. Interpretação como atividade construtiva da norma jurídica ................... 178

4. Interpretação e aplicação do texto legal como atividade única ............... 187

5. Interpretação do texto legal e do fato ...................................................... 188

6. Constituição e interpretação constitucional ............................................. 192

6.1 Princípios de interpretação da Constituição ................................. 194

6.2 Regras e princípios jurídicos ......................................................... 197

7. Influência da ideologia na interpretação .................................................. 202

8. Limites da interpretação .......................................................................... 214

8.1 Sentido literal possível .................................................................. 220

8.2 Âmbito ou domínio da norma ........................................................ 221

8.3 Exigência de decidibilidade ........................................................... 223

8.4 Proibição do excesso .................................................................... 224

8.5 Efeitos concretos da decisão ........................................................ 226

Capítulo 6 – Construção do Conteúdo dos Conceitos Constitucionais

1. Imperativo lógico da existência do conceito pressuposto ....................... 229

2. Conceito constitucional como elemento integrante da regra de outorga

de competência tributária ........................................................................ 233

3. Conceito constitucional não exaustivo .................................................... 234

4. Conteúdo semântico mínimo e máximo .................................................. 237

5. Direito tributário como direito de sobreposição ....................................... 240

Page 13: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

6. Texto normativo e contexto ..................................................................... 243

6.1 Contexto intranormativo ................................................................ 243

6.2 Contexto internormativo ................................................................ 245

6.3 Contexto interdisciplinar ................................................................ 247

6.4 Contexto do uso lingüístico ........................................................... 248

7. Processo de jurisdicização do conceito ................................................... 250

8. Conceito constitucional e a variável representada pelo tempo ............... 254

9. Papel do artigo 110 do Código Tributário Nacional ................................. 268

9.1 Dicotomia entre direito privado e direito público ........................... 270

9.2 Conceitos de direito positivo ......................................................... 273

Capítulo 7 – Análise Casuística de Precedentes Jurisprudenciais

1. Relevância dos precedentes jurisprudenciais ......................................... 277

2. Contribuição sobre pagamentos a administradores e autônomos .......... 278

3. Imunidade prevista no artigo 155, § 3º, da Constituição Federal ............ 284

4. Cofins e incidência sobre a venda de bens imóveis ................................ 293

5. Seguro de Acidentes do Trabalho ........................................................... 302

6. Lei Federal nº. 9.718/98 – faturamento e receita .................................... 312

Capítulo 8 – Síntese Conclusiva

1. Proposições metodológicas ..................................................................... 331

2. Proposições específicas .......................................................................... 334

Bibliografia ....................................................................................................... 346

Page 14: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

INTRODUÇÃO

1. Objeto do estudo

O escritor JOSÉ SARAMAGO disse certa vez que “mal vai à obra se

lhe requerem prefácio que a explique, mal vai ao prefácio se presume de tanto” e

parece ter razão o mestre português condecorado com o Prêmio Nobel de

Literatura. Não obstante, as presentes linhas introdutórias parecem ser um bom

momento – inicial, como se pode notar – para que deixemos esboçadas algumas

poucas idéias referentes à nossa opção pelo tema do exercício da competência

tributária e os seus limites, e sua relação com a questão dos denominados

conceitos constitucionais, aqui entendidos como aqueles utilizados pela

Constituição Federal na discriminação da competência tributária de cada uma das

pessoas políticas tributantes.

Page 15: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

A Carta Política de 1988, ao estabelecer a parte da competência

tributária que cabe a cada ente tributante, utiliza-se de conceitos que indicam a

parcela específica da realidade material que pode ser alcançada pela norma

jurídica impositiva; quando ela emprega os termos (conceitos) renda, operações

relativas à circulação de mercadorias e serviços de qualquer natureza, por

exemplo, outorga competência tributária à União Federal, aos Estados e aos

Municípios, respectivamente, e, ao mesmo tempo, delimita essa competência

tributária.

Outorga competência porque determina soberanamente que a União

Federal detém o poder de instituir imposto sobre aquela parcela da realidade

chamada renda; que o Estado pode tributar as operações relativas à circulação de

mercadorias e que o Município pode assim agir no que se refere aos serviços de

qualquer natureza. E delimita a competência porque estabelece evidentemente

que a União não pode tributar a prestação de serviços, o Estado não pode tributar

a renda e o Município não pode tributar as operações relativas à circulação de

mercadorias.

Ao utilizar conceitos como receita, faturamento, propriedade

territorial urbana, folha de salários, veículos automotores, entre tantos outros,

nada mais faz a Carta da República do que: efetuar cortes na realidade, no

chamado mundo fenomênico; separar parcelas do mundo real; discriminar certos

eventos que poderão servir de base para o exercício da atividade impositiva.

Ocorre que o conceito – a palavra utilizada para designar a realidade

– não é nem se confunde com a realidade, embora fosse desejável e conveniente

que aquele refletisse esta com a maior precisão possível. Nas palavras de JOSÉ

Page 16: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

ARTUR LIMA GONÇALVES, embora “o símbolo, como signo que é, não se

confunda com o próprio objeto significado, estando ou atuando no lugar do objeto

– sem com ele confundir-se –, impõe-se que essa significação (conceito do fato)

seja a mais próxima possível da realidade (evento)”.1

Se é assim, surge desde logo a questão, que nos aproxima do

objeto de nosso estudo e constitui nossa preocupação central: saber qual o

conteúdo e o alcance dos conceitos utilizados pela Constituição Federal para

outorgar e delimitar a competência tributária nos mais diversos casos. Isso

porque, como se percebe, ampliar ou restringir o conteúdo dos conceitos

constitucionais implica igualmente ampliar ou restringir o próprio exercício da

competência tributária, à medida que, em se aumentando o alcance do conceito,

ou, em termos mais rigorosos, em se elevando a amplitude semântica do

conceito, estar-se-á permitindo que ele venha a atingir parcela maior da realidade

e, conseqüentemente, aumentar as possibilidades do exercício da competência

tributária, daí porque a questão não é meramente cerebrina ou decorrente de

inquietação ou exigência técnica ou lingüística, mas, muito além disso, refere-se

de perto ao próprio poder de tributar e seu regular exercício.

Embora haja entendimento contrário quanto a tal ponto, acreditamos

que não há dúvidas quanto à existência dos referidos conceitos constitucionais,

ou seja, o legislador constituinte, ao elaborar e promulgar a Constituição Federal,

valeu-se de certos conceitos que entendia próprios para figurar a realidade que

desejou retratar ou, em outros termos, o constituinte originário não se valeu de

palavras sem nenhum compromisso com o seu significado, porque, em termos 1 Lançamento – meditação preliminar, In: Estudos em homenagem a Geraldo Ataliba – direito tributário, p. 162.

Page 17: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

lógicos, não poderia mesmo fazê-lo, razão pela qual não temos receio de afirmar

que existe efetivamente um conceito constitucional de renda, um conceito

constitucional de produtos industrializados, um conceito constitucional de lucro e

assim por diante.

2. Conceitos constitucionais e legislação ordinária

Como decorrência direta de nosso entendimento havemos de

reconhecer que o legislador ordinário, ao editar a lei que institui o tributo, não

pode manipular esses conceitos a seu bel prazer, conformando-os livremente em

favor de seus interesses.

Se reconhecemos sem mais dificuldades que há conceitos

constitucionais, nos modos a que nos referimos, parece-nos, entretanto, que tais

conceitos não são absolutos, não são rigidamente fechados, isto é, não aparecem

na Constituição Federal prontos e acabados. Ao revés, seus respectivos

conteúdos revelam-se passíveis de preenchimento significativo pelo dito

legislador dentro de certos limites, ou seja, há uma certa margem de liberdade ao

legislador ordinário no preenchimento dos conteúdos dos conceitos

constitucionais para fins de exercício da competência tributária. Em outros termos,

os conceitos constitucionais, tais como plasmados na Constituição da República,

hospedam um limite mínimo e um limite máximo – um núcleo semântico mínimo

(aquilo que o conceito evidentemente significa) e uma borda semântica máxima

(aquilo que evidentemente o conceito não pode significar) – e está exatamente

nesse intervalo o campo no qual o legislador ordinário pode livremente trabalhar.

Page 18: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

Descobrir qual é esse intervalo é o desafio que se impõe ao intérprete-aplicador

do direito, pois é por meio dele que o exercício do poder de tributar pode ser

regularmente controlado.

Cabe registrar que os limites mínimo e máximo de significação dos

conceitos devem ser hauridos, assim, da própria Constituição Federal e não da

legislação ordinária, e tal tarefa implica investigar quais elementos que podem ser

validamente utilizados no preenchimento do conteúdo dos conceitos.

3. Descompasso atual entre doutrina e jurisprudência

Neste momento podemos apontar outra questão principal que

constitui objeto de nossa preocupação, revelada pelo nítido – e por vezes

acentuado – descompasso atual existente entre a doutrina e a jurisprudência

pátrias na análise das questões tributárias, na compreensão dos limites

constitucionais do exercício da competência impositiva e nas possibilidades de

preenchimento dos conceitos constitucionais a ela ligados. Tal questão nos

preocupa porque pensamos que a doutrina em sua tarefa de explicar o

ordenamento jurídico, embora não esteja obrigada a sempre acompanhar a

jurisprudência, não pode desprezá-la, uma vez que esta desempenha papel de

acentuada relevância na construção do direito, na concreção do ordenamento.

Para ilustrar e tornar claro nosso pensamento, podemos permitir-nos

uma ligeira digressão para analisar, ainda que em passos rápidos, a questão do

Seguro de Acidentes do Trabalho – SAT, que parece ser exemplo do referido

descompasso. Essa contribuição foi instituída por lei que trouxe os elementos da

Page 19: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

conformação jurídica desta figura tributária e remeteu, contudo, ao Poder

Executivo a tarefa de fixar suas alíquotas, que deveriam ser variáveis em função

do grau de risco de cada estabelecimento empresarial, providência levada a

termo por meio de Decreto do Poder Executivo. Ocorre que o Decreto em

questão, em vez de apurar qual o efetivo grau de risco de cada local de trabalho,

acabou por considerar como determinante para a fixação do grau de risco aquele

relativo ao estabelecimento empresarial que possuísse o maior número de

trabalhadores, critério que evidentemente gerou distorções na fixação das

alíquotas.

Os contribuintes, tomando por base a opinião praticamente unânime

da doutrina nacional, insurgiram-se contra a exigência da contribuição,

considerando-a claramente inconstitucional, por violação do princípio da

legalidade, um dos cânones do Sistema Tributário Nacional – e, de resto, do

próprio Estado Democrático de Direito – sob o argumento de que, consoante o

primado da legalidade, somente a lei poderia estabelecer todos os elementos da

hipótese de incidência dos tributos, inclusive suas alíquotas; mais do que isso, o

princípio não seria de singela legalidade, mas de legalidade estrita, pois traria

consigo a tipicidade cerrada. Não obstante, a questão foi decidida de forma

definitiva pelo Supremo Tribunal Federal, que não vislumbrou desvio ou excesso

no ato do Poder Executivo e rejeitou a tese da inconstitucionalidade.2

Retomando a linha de nosso raciocínio, sem adentrar o mérito da

decisão da Corte Suprema, encontramos neste exemplo o noticiado

desalinhamento entre a doutrina e a jurisprudência, uma vez que, pelo menos há

2 Recurso Extraordinário no. 343.446-2-SC, Relator Ministro Carlos Velloso.

Page 20: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

mais de trinta anos, a doutrina afirma que a legalidade é estrita e a tipicidade é

cerrada, lição das mais comezinhas e presente em todos os manuais de direito

tributário de que se tem notícia. Assim, a pergunta é inevitável: como pôde a

Corte Máxima ignorar tal ensinamento? Como pôde recusar facilmente o

entendimento doutrinário exposto com foros de unanimidade por pelo menos três

décadas?

A decisão do Supremo Tribunal Federal, ao afirmar que, fixando a lei

os elementos básicos da hipótese de incidência tributária, esta pode validamente

delegar a tarefa de fixação de alíquotas ao Decreto, parece sugerir, com a devida

vênia, que o princípio constante da Constituição Federal não é o da legalidade

estrita mas o da legalidade suficiente, o que nos levaria a acreditar que o próprio

conceito de legalidade presente no Texto Constitucional também ele é passível de

preenchimento pelo intérprete-aplicador do direito e que, neste caso específico,

seu conteúdo e alcance foram alterados aos olhos da jurisprudência, sem que a

doutrina pudesse dar-se conta de tal possibilidade.

Revela-se conveniente que deixemos aqui registrado, desde logo e

de modo inequívoco, que não estamos a afirmar que o julgamento do Supremo

Tribunal Federal está correto ou incorreto, que prestigia ou viola a Carta Magna.

Por ora, limitamo-nos a apenas constatar a séria divergência de entendimento

entre doutrina e jurisprudência. Cabe notar que uma das tarefas que nos

impusemos, ao elaborar o presente estudo, é a de constatar a referida

divergência e apontar as causas possíveis de sua ocorrência, ainda que

minimamente, com o risco de constatar que tal tarefa não foi realizada a contento.

Page 21: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

O referido descompasso leva-nos a destacar a questão do método

que iremos adotar na elaboração do presente estudo, uma vez que o denominado

positivismo metodológico, se adotado em sua forma pura, parece não poder ou

ser insuficiente, segundo pensamos, para explicar a comentada decisão da Corte

Máxima, assim como não nos auxilia na análise de outras questões e ocorrências

que tentaremos analisar no decorrer deste trabalho.

Não se trata, sublinhamos com ênfase, de rejeitar a doutrina

positivista ou o modelo teórico do positivismo metodológico, de inegáveis méritos,

mas de acreditar que ele, sozinho, não pode mais nos auxiliar na tarefa de

compreender a realidade jurídica atual. Trata-se de ir além dele, pois, não o

desconsiderando sumariamente, mas a ele agregando outras possibilidades

metodológicas; vale dizer, não pretendemos com tal opção metodológica,

prescindir de instrumentos de análise e compreensão, mas, antes, agregar outros

também relevantes. A esse respeito, JOSÉ ARTUR LIMA GONÇALVES ensina:

“Se, por um lado, convém adotar-se o modelo teórico do positivismo

metodológico para descrição da composição e funcionamento do

subsistema jurídico que disciplina a ação de tributar – posto que este

modelo parece-nos ser o que melhor se ajusta às exigências

restritivas desta ação estatal –, por outro lado, impõem-se

serenidade e resignação do intérprete quando chega a hora (e ela

chega) de concluir que esse modelo teórico não resolve todas as

questões que se colocam diante do estudioso. E, quando esse

momento é chegado, o estudioso deve simplesmente resignar-se

com a imprestabilidade do instrumental fornecido por seu modelo

teórico e encontrar as soluções de que necessita fora de seu

Page 22: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

modelo, mantendo fidelidade, todavia, aos valores supremos

positivados pelo sistema que adota”.3

Podemos notar, portanto, pelas lúcidas palavras do Professor da

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, que pode ocorrer – e efetivamente

ocorre, segundo entendemos – que a doutrina positivista não represente o

instrumento mais adequado para a compreensão de certas questões, momento

em que podemos sentir-nos autorizados a empregar também outros métodos de

análise e de interpretação.

Semelhante constatação foi observada também, com outras

palavras, por RICARDO GUIBOURG que, sobre o positivismo jurídico, aponta:

“Si se constituye en sistema ideal cerrado y finge no ver la realidad

circundante, encuentra a menudo que sus deducciones

intrasistemáticas no coincidem con la situación social que funda su

utilidad; y si trata de situarse en algún punto intermedio, su propria

dinámica la empuja hacia alguno de los extremos. (...) Y de este

modo el esquema formal mantiene durante cierto tiempo una

adequación aproximada a la realidad que permite utilizarlo en el

studio y en la argumentación. Cuando llega el momento – por haber

ocorrido una revolución o porque una multitud de pequeños cambios

ha hecho que la circunstancia social ya no pueda manejarse con los

criterios anteriores – convendrá abandonar el esquema en uso y

constituir otro nuevo, capaz de dar cuenta de la realidad presente

durante un determinado lapso”.4

Podemos reafirmar que não se trata de abandonar por completo o

modelo do positivismo ou de declarar sua ineficiência para a solução dos desafios

3 Lançamento – meditação preliminar. In: Estudos em homenagem a Geraldo Ataliba – direito tributário, p. 159. 4 Derecho, sistema y realidad, p. 73 e 77.

Page 23: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

gerados pelo fenômeno da imposição tributária, mas apenas e tão somente de

aceitar que tal proposta metodológica vai até certo ponto – a partir do qual não

pode mais responder, de forma satisfatória, às indagações que se apresentam.

Isso nos autoriza a buscar outro instrumental científico para continuar o estudo,

mas, evidentemente, como aponta com precisão LIMA GONÇALVES, sem

descuidar dos valores superiores positivados pelo sistema, porque o ordenamento

jurídico (direito positivo) é o ponto de partida de nossa análise e marco referencial

ao qual retornaremos constantemente ao longo de nosso trabalho.

Com a proposta de adoção de um outro modelo teórico não

pretendemos mera e ingenuamente referendar decisões judiciais, por assim dizer

inesperadas, mas tentar explicar aquilo que nos parece revelar-se uma outra

realidade – assentada em novos fundamentos – que se está a materializar diante

de nossos olhos e, diga-se, a passos largos.

4. Jurisprudência e construção da normatividade do ordenamento

Quanto à relevância do papel desempenhado pela jurisprudência,

pensamos que a ciência do direito não tem obrigação de concordar ou referendar

as decisões judiciais: pela própria dinâmica dos fatos, normalmente a doutrina se

debruça sobre as questões jurídicas quase sempre em momento anterior ao que

o faz o Poder Judiciário, sobretudo os tribunais superiores, que, em não raras

oportunidades, naquela vai apoiar-se para tomar suas decisões. Acreditamos,

entretanto, que a doutrina não se pode descuidar de analisar e constantemente

considerar aquilo que é decidido pelos tribunais – para concordar ou discordar,

Page 24: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

não importa – sob pena de perder sua importante função, a de explicar o

ordenamento jurídico e sua aplicação à realidade. Se ela (doutrina) explicitar o

direito de um modo, mas tal explicitação deixar de encontrar ressonância nas

decisões judiciais, tal tarefa doutrinária alcançará o momento em que terá pouca

ou nenhuma valia.

Como é evidente, a jurisprudência exerce singular função na

construção da normatividade do ordenamento jurídico ou no denominado

processo de concreção do direito positivo. Considerado como o conjunto de

normas jurídicas válidas em determinado espaço e tempo, o ordenamento jurídico

tem por finalidade disciplinar as condutas humanas intersubjetivas, sempre na

busca da implantação dos valores prestigiados pela sociedade a que se destina.

Revela-se aí fundamental o papel dos juízes de direito para não só aplicarem as

normas jurídicas à solução dos casos concretos, mas também imprimirem

concretude ao sistema jurídico positivado. No ato de fazer incidir a norma jurídica

ao caso concreto (na decisão, enfim), procedimento que pressupõe e mesmo

coincide temporalmente com a interpretação do texto constitucional ou legal,

exteriorizam-se: os valores prestigiados pelo intérprete; as opções que adota em

tal tarefa; os interesses que busca atender na solução do litígio e as influências

que sofre o intérprete-aplicador do ordenamento jurídico. Por isso, é

imprescindível que a doutrina disto tudo tome conhecimento, em postura crítica e

séria, que recuse soluções fáceis e apressadas, para aplaudir ou rechaçar as

decisões e para manter ou rever suas posições.

Há um outro papel importante a ser desempenhado pela doutrina,

ligado à questão que mencionamos ligeiramente, relativa à análise antecipada

Page 25: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

das questões jurídicas, sobretudo no campo do direito tributário. Se a

jurisprudência vem alterando-se na solução de tais questões, com a adoção de

pressupostos e fundamentos que não mais encontram apoio na doutrina e mesmo

dela afastando-se frontalmente, é sinal de que, pelo menos aos olhos dos

tribunais, os tempos atuais apresentam indagações e perplexidades cujas

respostas não estão – ou não estão mais – na doutrina até então construída. Essa

talvez não mais se preste a explicar a realidade presente e obrigue o aplicador da

lei ao caso concreto a construir – sozinho – a solução para o conflito. Decorre

dessa circunstância a necessidade de construir uma nova doutrina, com atenção

à tendência das decisões dos juízes, mas, refrise-se, não necessariamente com

elas concordando, mas para que possamos controlar a referida tendência, na

tentativa de estabelecermos um novo diálogo com a jurisprudência, portanto um

diálogo assentado em novas bases, uma vez que as antigas não mais se prestam

a tal desiderato, porque ignoradas.

Ainda que possamos discordar dos novos rumos adotados pela

jurisprudência, a busca de seu afastamento pode e deve ser feito pela doutrina,

mas agora não pela repetição das lições até então adotadas, pois um novo

paradigma parece impor-se, sob pena de não se estabelecer (ou não se

reestabelecer) o necessário diálogo, uma vez que um dos interlocutores se recusa

a conversar com base nas antigas fórmulas.

Podemos perfeitamente chegar à conclusão de que este ou aquele

precedente da jurisprudência não é o melhor; que acolher como legítimos certos

atos da administração pública significa aceitar a arbitrariedade; que tornar flexível

o princípio da legalidade (como ocorreu no exemplo apontado) significa

Page 26: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

desprestigiar a Constituição Federal e propiciar a insegurança jurídica e assim por

diante, desde que tal entendimento seja fruto de reflexão desprovida de

preconceitos, quer contra o fisco, quer contra o contribuinte. Entretanto, segundo

nosso modesto ponto de vista, o que não podemos permitir-nos é ignorar os

novos rumos da jurisprudência formada sobre o tema tributário, fazendo de conta

que eles não existem ou, pior ainda, meramente considerar a jurisprudência

equivocada porque ela não mais corresponde às nossas crenças ou convicções,

apesar de ter correspondido ao longo das últimas décadas.

5. Papel criativo da jurisprudência e sistema tributário rígido

Se aquilo que afirmamos até aqui pode ser considerado, pelo menos

por ora, razoável, isto é, condizente com os fatos observados, parece claro que os

tempos atuais apresentam novas exigências na disciplina das relações jurídicas

havidas no seio da sociedade, em especial, para o que nos interessa, na do

relacionamento entre fisco e contribuintes, que reclama nova postura por parte

dos tribunais nas soluções dos inúmeros conflitos.

A necessidade de solução para novos e mais complexos conflitos de

interesse – cujo pano de fundo são os avanços tecnológicos, o advento da

internet, a globalização, o comércio eletrônico, o esvaziamento da noção de

fronteiras dos países e sobretudo, o papel do Estado no desenvolvimento de

políticas públicas como forma de implementação dos valores plasmados no Texto

Constitucional – exige da jurisprudência um papel criativo. Esse deve ser capaz

de construir soluções justas para os casos concretos, em situações por vezes

Page 27: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

ainda precariamente reguladas pelo direito positivo, com respeito à função estatal

e com igual prestígio à imprescindível proteção dos contribuintes. Em outras

palavras, a jurisprudência precisa dar respostas às exigências dos tempos atuais,

numa sociedade que se altera com acentuada velocidade, sem esquecer-se de

resolver ainda um outro problema – este sim antigo e sempre presente: a

composição razoável do binômio segurança jurídica e justiça.

Como sabemos, tanto nos outros subsistemas do direito positivo,

como também no campo do direito tributário, comumente aparecem casos em que

a segurança jurídica e a certeza não caminham ao lado da justiça. Nem sempre

podemos aceitar o entendimento de que, com o prestígio à segurança e à certeza,

alcança-se a justiça, daí exigir-se da jurisprudência um papel não apenas criador

do direito, mas criativo na própria criação do direito. No direito tributário, não raro

constatamos casos concretos em que se encontram em contraposição valores

constitucionais, como no caso da contribuição sobre movimentação financeira –

CPMF, por exemplo. Aceitar como válida, perante o ordenamento, a instituição de

mais este tributo pode significar, em vista da destinação vinculada do produto de

sua arrecadação, prestígio à proteção da saúde, que sem dúvida é um valor

presente na Carta Magna; não obstante, pode significar também permitir ainda

mais a elevação da carga tributária total, já acentuadamente alta, aproximando-a,

talvez, da caracterização do efeito confiscatório e, com isso, desmerecer o

primado da não-abusividade da imposição tributária, que é inegavelmente outro

valor prestigiado pela Constituição Federal. Em situações como essa, em que se

exige a criatividade da jurisprudência para a justa composição dos valores

envolvidos no caso concreto, o desafio a ser transposto parece-nos que consiste

Page 28: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

no desempenho desse papel criativo diante da rigidez do Sistema Constitucional

Tributário.

A Constituição Federal é rica em inúmeros obstáculos à atividade

estatal de instituir e arrecadar tributos, ali postos justamente para evitar – ou

tentar evitar – os interesses arrecadatórios que se revelam verdadeiramente

irrefreáveis. Como se não bastasse, há toda uma Seção explicitamente dedicada

às denominadas limitações constitucionais ao poder de tributar, de modo que o

Sistema Tributário Nacional, já necessariamente inflexível por decorrência da

rigidez da própria Constituição – e evidentemente por força de sua supremacia

normativa – cresce em inflexibilidade diante do modo pormenorizado com que a

matéria é disciplinada no corpo do Texto Republicano, parecendo-nos mesmo que

a própria discriminação constitucional da competência tributária é prova disso.

Se é assim, ou seja, se reconhecemos tal rigidez do sistema

tributário, e não poderíamos deixar de reconhecê-la, como conceber que a

jurisprudência poderia e deveria ter um papel criativo no trato do tema? Como

prestigiar a capacidade contributiva sem ofender o princípio da legalidade? Como

render homenagens à solidariedade social (questão ligada à imposição tributária)

sem dispensar maus tratos à proibição do confisco?

A resposta, evidentemente apenas uma das possíveis respostas,

parece-nos estar na transcedental relevância da interpretação da Constituição

Federal no momento mesmo de sua aplicação ao caso concreto. Devemos

considerar a interpretação e a aplicação da norma jurídica (em sentido amplo)

como uma só operação, coincidente temporalmente, e sempre com o devido

Page 29: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

sopesamento dos valores envolvidos na solução do conflito específico, consoante

procuramos demonstrar no decorrer do presente estudo.

Alguém poderia objetar que a presente introdução, que já se estende

por demais, distancia-se do tema que nos propusemos enfrentar e

exageradamente antecipa questões. Pensamos, todavia, que isso não ocorre,

porque nos parece que tratar do preenchimento do conteúdo dos conceitos

constitucionais é cuidar do exercício da competência tributária e verificar onde

estão situados os seus limites, de modo que estas idéias iniciais apenas põem em

relevo as indagações que nos ocorrem e que justificam nosso interesse pelo

tema.

Page 30: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

CAPÍTULO 1

POSTULADO CIENTÍFICO DA EXPLICITUDE DAS PREMISSAS

1. Fixação de premissas e busca de coerência

A atividade científica tem início com a escolha de um objeto sobre o

qual o sujeito cognoscente – o cientista – se debruçará, com o objetivo de

conhecê-lo, para depois acerca dele tecer considerações, emitir proposições

descritivas que possam expor suas características; seus elementos componentes;

suas regras estruturais; enfim, o modo de ser do objeto, sua fenomenologia. A

atividade de conhecimento encontra seu passo inicial na demarcação do objeto,

com a feitura de um corte abstrato na realidade material, a fim de isolar o campo

temático sobre qual se dará o estudo.

Seria desejável que a aproximação do sujeito cognoscente e do seu

objeto de estudo pudesse dar-se de forma neutra, isto é, que a coleta de dados e

Page 31: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

as observações iniciais fossem puras, desprovidas de idéias preconcebidas por

parte do cientista, daquele que investiga a realidade para melhor conhecê-la.

Na atividade científica, como de resto nas atividades cotidianas, a

curiosidade e o raciocínio são estimulados a partir do momento em que algo não

ocorre conforme nossa expectativa, quando não conseguimos explicar o

acontecimento ou quando o instrumental teórico que possuímos não pode explicá-

lo de modo satisfatório, ou seja, quando aparece um problema. Como afirmam

ALDA JUDITH ALVES–MAZZOTTI e FERNANDO GEWANDSZNAJDER,

“qualquer observação pressupõe um critério para escolher, entre as observações

possíveis, aquelas que supostamente sejam relevantes para o problema em

questão. Isto quer dizer que a observação, a coleta de dados e as experiências

são feitas de acordo com determinados interesses e segundo certas expectativas

ou idéias preconcebidas”.5

Ora, se o próprio aparecimento do problema e a aproximação que

dele faz o sujeito são de alguma forma influenciados e mesmo predeterminados

por certos elementos, parece claro que a desejável neutralidade revela-se de

difícil alcance, praticamente impossível. Cabe notar que, se tal neutralidade

investigativa é de difícil consecução nas ciências em geral, no caso das ciências

sociais a questão é agravada pois, diante delas, como acentua EURICO

MARCOS DINIZ DE SANTI, “o homem encontra dificuldades para tomar a

distância adequada para o exame imparcial, pois compromete-se

demasiadamente com o objeto do estudo que empreende”.6

5 O método nas ciências naturais e sociais: pesquisa quantitativa e qualitativa, p. 4. 6 Lançamento tributário, p. 23.

Page 32: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

Nesse sentido, LUÍS CESAR SOUZA DE QUEIROZ aponta que, nos

tempos atuais, “vem-se considerando que a exigência de uma absoluta

objetividade por parte do cientista, especialmente do cientista social, só se

justifica por uma certa dose de ingenuidade”,7 uma vez que ele, como qualquer

outro ser humano, está envolto num determinado ambiente social e sofre

influências de ordem política, econômica, religiosa, psicológica e outras.

Parece-nos, portanto, que a busca da verdade, sobretudo da

verdade científica, não está em encontrá-la pronta e acabada, em determinado

lugar ou objeto, como se acreditava na visão clássica, mas, antes, a verdade é

construída pelo sujeito cognoscente, de modo que a honestidade intelectual deste

não é mais aferida pela suposta neutralidade de seu pensar e de sua atividade

investigativa, mas pelo seu consentimento em discutir os critérios utilizados

naquele procedimento construtivo. A esse respeito, MARCO AURELIO GRECO,

mencionando a tese da legitimação pelo procedimento, ensina que “a verdade

não é mais ‘descoberta’, pois não está no objeto, mas é fundamentalmente uma

verdade ‘construída’ num processo do qual participa o intérprete. Nesse contexto,

a verdade não é demonstrada logicamente, mas legitima-se mediante um

processo de justificação”.8

Falar da objetividade da ciência não significa aceitarmos que suas

teorias sejam verdadeiras, pois, como acentuam ALDA JUDITH ALVES–

MAZZOTTI e FERNANDO GEWANDSZNAJDER, a

“objetividade da ciência não repousa na imparcialidade de cada

indivíduo, mas na disposição de formular e publicar hipóteses para 7 Imposto sobre a renda: requisitos para uma tributação constitucional, p. 19. 8 Contribuições: uma figura “sui generis”, p. 45.

Page 33: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

serem submetidas a críticas por parte de outros cientistas; na

disposição de formulá-las de forma que possam ser testadas

experimentalmente; na exigência de que a experiência seja

controlada e de que outros cientistas possam repetir os testes, se

isto for necessário”.9

Se a neutralidade do cientista não é possível, pois sofre influências,

o mínimo que podemos exigir dele, na elaboração de um trabalho com pretensões

científicas, é que deixe claras no trabalho as premissas que adota, os pontos de

partida de sua investigação científica e as razões de escolha do objeto, além dos

instrumentos teóricos adotados na busca do conhecimento ou, em outros termos,

qual a teoria utilizada – qual é o método, enfim – para que também pela análise

das premissas possa ser-lhe cobrada a necessária coerência no desenvolvimento

do trabalho e nas conclusões alcançadas.

Isso pela razão evidente de que a teoria adotada fatalmente

influencia o conhecimento do objeto, impregna o próprio trabalho de investigação,

uma vez que, como afirmamos, se a verdade é construída pelo sujeito

cognoscente, é evidente que o objeto do conhecimento será marcado, na

exteriorização de sua fenomenologia, pela teoria utilizada. Como afirmam ALDA

JUDITH ALVES–MAZZOTTI e FERNANDO GEWANDSZNAJDER, a “tese, hoje

amplamente aceita em Filosofia da ciência, de que toda observação é

‘impregnada’ de teoria (theory-laden) foi defendida já no início do século pelo

filósofo Pierre Duhem. Dizia ele, que ‘um experimento em física não é

9 O método nas ciências naturais e sociais: pesquisa quantitativa e qualitativa, p. 9.

Page 34: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

simplesmente a observação de um fenômeno; é também a interpretação teórica

desse fenômeno’”.10

Diante de tais considerações, a idéia de uma ciência objetiva,

marcada pela neutralidade do cientista, isenta de influências de tempo e espaço,

cujo rigor científico seria garantido pela precisão de adoção e de utilização do

método, não mais se sustenta, dada a constatação de que os valores do cientista

influenciam o produto de sua atividade.11 Dessa forma, a fixação de premissas e a

adoção da teoria prestam-se a três propósitos principais:

(i) servem de instrumento de guia ao próprio cientista, à medida que

a elaboração de qualquer trabalho desse jaez pressupõe a fixação

de hipóteses iniciais, de proposições preliminares sobre as quais o

cientista buscará desenvolver seu trabalho, tendo-as como

instrumentos estruturais e basilares de seu raciocínio;

(ii) respondem à necessidade do chamado teste de refutabilidade,

por meio do qual a teoria é posta à prova pela análise de outros

membros da comunidade científica, que somente poderão criticar ou

refutar a teoria na medida em que tenham conhecimento do sistema

de referência à frente do qual ela se desenvolve e

(iii) permitem vislumbrar as influências sofridas pelo sujeito

cognoscente em sua atividade, expressas pelas marcas deixadas no

estudo, que começam, inclusive, pela própria escolha da teoria, do

método adotado e do motivo de sua escolha.

Cabe notar que a fixação de premissas é relevante também porque

o sujeito cognoscente, quando se encaminha para certo campo da realidade

10 O método nas ciências naturais e sociais: pesquisa quantitativa e qualitativa, p. 13. 11 O método nas ciências naturais e sociais: pesquisa quantitativa e qualitativa, p. 109.

Page 35: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

material, já o faz munido de uma certa carga de conhecimento – de pré-

conhecimento – ou, nas palavras de LOURIVAL VILANOVA, a pré-compreensão

ou conceito a piori é condição para o conhecimento.12 Acentua o autor que

“Em conseqüência, não é possível o conhecimento da realidade

social sem o conceito a priori do social. Por artifício sofístico, pode-

se argumentar que o sujeito vai ao objeto conhecer aquilo que,

previamente, já sabe. Mas no conceito a priori, o objeto não é

conhecido. É simplesmente indicado; o conceito fornece as

determinações mínimas e essenciais que servem de criterium para

encontrar o objeto onde ele se acha”.13

Finalmente, sublinhamos que o presente item, que cuida da

necessidade de fixação de premissas, outra coisa não faz do que ele mesmo

tratar de estabelecer algumas premissas de nosso trabalho, e se a frase atribuída

a ALBERT EINSTEIN for verdadeira, segundo o qual “É a teoria que decide aquilo

que podemos observar”,14 o presente capítulo presta-se a deixar expressos os

pressupostos epistemológicos de nosso estudo.

2. Ciência do Direito e uso rigoroso da linguagem

Segundo conhecida definição, o direito positivo pode ser entendido

como um conjunto de prescrições jurídicas, num determinado espaço territorial e

num certo intervalo de tempo, criado pelo homem com o objetivo de regular

comportamentos intersubjetivos, para canalizá-los em direção aos valores que a

12 Sobre o conceito de direito, In: Escritos jurídicos e filosóficos, vol. 1, p. 17. 13 Sobre o conceito de direito, In: Escritos jurídicos e filosóficos, vol. 1, p. 18. 14 Apud Paul Watzlawic, A realidade é real?, p. 49.

Page 36: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

sociedade deseja ver realizados.15 A Ciência do Direito, por sua vez, tem por

objeto o estudo e a descrição desse enredo normativo, a fim de ordená-lo, exibir

sua hierarquia, demonstrar “as formas lógicas que governam o entrelaçamento

das várias unidades do sistema e oferecendo seus conteúdos de significação”.16

Como é cediço, são dois campos distintos, que não podem ser

confundidos, uma vez que apresentam características próprias, regras específicas

de organização e, como vimos, funções diversas. Possuem em comum o fato de

se apresentarem ambos sob a forma de linguagem. São dois discursos

lingüísticos, embora se distanciem por ser o direito positivo uma linguagem

prescritiva (porque prescreve comportamentos), ao passo que a Ciência do Direito

é uma linguagem descritiva (porque descreve o direito positivo, o conjunto de

normas jurídicas). Podemos notar, diante de tais características, que a Ciência do

Direito é uma linguagem que trata de outra linguagem, daí ser chamada de

metalinguagem, sobrelinguagem ou linguagem de sobrenível.

Outra característica relevante que as distingue está no fato de no

direito positivo poderem ser encontradas lacunas ou contradições entre as

unidades do conjunto, isto é, entre as normas jurídicas; embora o próprio direito

cuide de estabelecer regras que permitem a eliminação das deficiências no

momento da aplicação das referidas normas, como no caso das denominadas

antinomias, os critérios de hierarquia, cronológico e de especialidade.

Tais contradições, entretanto, não podem ser encontradas nos

quadrantes da Ciência do Direito, uma vez que o discurso científico há de se

15 Cf. Paulo de Barros Carvalho, IPI – Comentários sobre as regras gerais de interpretação da tabela NBM/SH (TIPI/TAB), In: Revista Dialética de Direito Tributário, vol. 12, p. 45. 16 Paulo de Barros Carvalho, Curso de direito tributário, p. 2.

Page 37: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

materializar por meio de uma necessária congruência entre suas proposições

descritivas, sob pena de esvaziamento de seu conteúdo em virtude de

deficiências estruturais, com a conseqüente inobservância da função que lhe é

própria. Tal circunstância obriga o cientista – o sujeito cognoscente – a encadear

seu raciocínio do modo mais rígido possível, libertando-o de impropriedades

técnicas ou terminológicas, sob pena de, a propósito de se aproximar do objeto do

conhecimento, dele distanciar-se irremediavelmente.

Essa dificuldade é ainda reforçada pelo fato de a Ciência do Direito –

ela mesma uma linguagem – ter por objeto uma outra linguagem, ambas

materializadas por signos, por palavras, por elementos por excelência portadores

de vagueza e ambigüidade, sujeitos à ocorrência da polissemia ou multiplicidade

de significados. Resulta daí nossa preocupação, acentuada no item anterior,

quanto à necessária fixação de premissas e a correlata busca de coerência no

discurso que se pretende científico, que certamente pressupõe um mínimo de uso

rigoroso da linguagem. A preocupação com tal rigor no manuseio da linguagem é

muito pouco para isentá-la de imperfeições, embora a consciência desta questão

e a busca de rigidez no trato discursivo, por sua vez, constituam relevante

primeiro passo na direção da coerência do estudo.

3. Papel da Semiótica ou Teoria dos Signos

Diante de nossa afirmação de que o direito positivo e a Ciência do

Direito são fenômenos exteriorizados por meio de linguagem, revela-se de todo

conveniente que possamos contar com um instrumento que amplie as

possibilidades de compreensão daquele que pretende debruçar-se sobre tais

Page 38: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

fenômenos, a fim de melhor conhecê-los, aí comparecendo a Semiótica ou Teoria

dos Signos.

Para uma idéia simplificada, tendo-se em vista a

complexidade que o termo apresenta, podemos basear-nos na lição de DIANA

LUZ PESSOA DE BARROS, para quem “a semiótica tem por objeto o texto, ou

melhor, procura descrever e explicar o que o texto diz e como ele faz para dizer o

que diz” e que “a semiótica deve ser assim entendida como a teoria que procura

explicar o ou os sentidos do texto pelo exame, em primeiro lugar, de seu plano do

conteúdo”. 17 Vê-se, assim, para aquilo que nos interessa de perto, que a

Semiótica pode potencializar as possibilidades cognitivas do intérprete do

ordenamento jurídico, por meio da análise lingüística de seus elementos

componentes e das regras de seu inter-relacionamento, podendo o estudo ser

desenvolvido pela consideração dos planos sintático, semântico e pragmático da

linguagem.

O plano sintático refere-se à relação existente entre os signos em si,

à ligação entre as palavras. O plano semântico cuida da relação existente entre

os signos e os objetos por eles representados, pois o signo não é a coisa, mas

representa-a, comparece no lugar dela. O plano pragmático, por sua vez, trata da

relação entre os signos e os usuários da linguagem, da forma com que as

palavras são manipuladas e as variações de conteúdo decorrentes do uso da

linguagem.

Cabe notar que, para os limitados fins de nosso estudo, interessa-

nos por ora e mais de perto os ângulos semântico e pragmático, uma vez que

17 Teoria semiótica do texto, p. 7/8.

Page 39: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

nosso tema é aquele dos conceitos constitucionais e sua utilização no exercício

da competência tributária. Consiste a tarefa à qual nos obrigamos em averiguar

qual o conteúdo dos referidos conceitos (questão ligada à semântica, portanto),

qual a realidade que eles buscam representar, e bem assim o modo como, em

cada caso concreto, o intérprete-aplicador da norma jurídica pode preencher o

seu conteúdo (tema ligado à utilização dos signos pelos seus usuários e, portanto,

questão pragmática).

Acerca da relação existente entre o conceito – expresso por um

signo – e o objeto ao qual se refere, LUCIA SANTAELLA ensina que

“Um excelente sinônimo para ‘representa’ é a expressão ‘está para’,

ou melhor, ‘está no lugar lógico de’, ou conforme Peirce nos diz:

‘Representar: estar em lugar de, isto é, estar numa relação com um

outro que, para certos propósitos, é considerado por alguma mente

como se fosse esse outro’ e ainda que “Isso significa,

conseqüentemente, que o signo, na sua relação com o objeto, é

sempre apenas um signo, no sentido de que ele nunca é

completamente adequado ao objeto, não se confunde com ele e

nem pode prescindir dele. Em função disso, há sempre uma sobra

do objeto que o signo não pode recuperar, pelo simples fato de que

o objeto é um outro diferente dele”.18

A questão da relação do objeto material e sua representação pelo

conceito (ou pelo signo) é demasiadamente complexa, de modo que a ela

retornaremos, para analisá-la com maior vagar, em momento oportuno.

18 A teoria geral dos signos, p. 23. Para um estudo aprofundado da Semiótica, ver Charles Sanders Peirce, Semiótica; e Umberto Eco, Tratado geral de semiótica, ambas as obras da Coleção Estudos, Editora Perspectiva.

Page 40: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

4. Necessidade de adoção do método – corte metodológico

Observamos no item 1 do presente capítulo que a comunidade

científica, nos tempos atuais, parece concordar com o fato de que a objetividade

de uma ciência não pode mais ser aferida com base na imparcialidade do

cientista – de difícil consecução em termos práticos – mas, antes, na disposição

de formular sua teoria e torná-la pública, a fim de que possa passar pelo

denominado teste da refutabilidade, consistente na sua análise por outros

integrantes do ambiente científico.

Se a imparcialidade objetiva do cientista não é possível, é

fundamental que ele deixe expressas em seu trabalho quais as premissas de que

parte para a análise investigativa e quais os instrumentos técnicos que utiliza em

tal tarefa; enfim, é necessário explicitar a forma pela qual pretende aproximar-se

de seu objeto de conhecimento, tema que nos conduz à questão da adoção da

teoria ou, enfim, do método adotado para o estudo.

Mais do que isso, se afirmamos que a observação vem sempre, em

maior ou menor grau, impregnada da teoria – o que equivale a afirmar que a

teoria altera o próprio objeto do conhecimento, modifica a forma de exteriorização

do evento da realidade material ou social observada – somos obrigados a

reconhecer que a própria escolha do método principia por indicar quais as

influências sofridas pelo cientista quando se aproxima do objeto, isto é, qual a

relação que se estabelece entre o sujeito cognoscente e o objeto cognoscível.

Dessas observações resulta a responsabilidade do sujeito

cognoscente sobre o método escolhido, como aponta com propriedade JOSÉ

Page 41: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

ARTUR LIMA GONÇALVES, ao afirmar que “Estamos, aqui, diante de questão

das mais delicadas, respeitante à coerência das opções metodológicas para o

desenvolvimento de epistemologia do direito tributário”,19 condicionante que nos

remete ao momento de cuidar do nosso corte metodológico como passo

necessário à continuidade do estudo.

A esse respeito, apontam CARLOS E. ALCHOURRÓN e EUGENIO

BULYGIN que o método pode ser considerado como o caminho a ser percorrido

pelo cientista para a justificação de suas considerações, ou seja, são os

instrumentos utilizados pelo cientista para se aproximar do objeto.20 Ora, levando-

se em consideração a complexidade de qualquer objeto do mundo material ou

social merecedor de nosso interesse, ou seja, como todo objeto apresenta

múltiplas faces e inúmeras características em relação às quais poderia ser

explorado em termos cognitivos, o corte metodológico – que tem por escopo

justamente reduzir a complexidade do objeto – revela-se como um pressuposto

do saber que se pretenda científico, uma vez que não é possível ao cientista

conhecer o objeto em toda a sua inteireza ao mesmo tempo, sob pena de incorrer

num regresso ao infinito e acabar por empobrecer o processo de conhecimento.

O corte metodológico trata-se, portanto, de um imperativo

epistemológico do qual a Ciência do Direito não pode pretender fugir, aqui

entendido como elemento delineador da realidade; instrumento por meio do qual

se podem fazer sucessivas incisões ideais no objeto de estudo, para separar

determinadas partes do todo, a fim de melhor desenvolver o trabalho de

19 Lançamento – meditação preliminar, In: Estudos em homenagem a Geraldo Ataliba – direito tributário, p. 159. 20 Cf. Introducción a la metodología de las ciencias jurídicas y sociales, p. 112.

Page 42: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

conhecimento e de exposição de idéias. Em outros termos, cuida-se de se

estabelecerem pontos-limites na análise, dentro dos quais se circunscreverá a

investigação científica, circunstância que nos permite chegar a outra consideração

importante e que repousa no fato de o corte metodológico revelar-se providência

arbitrária do sujeito cognoscente e, como tal, em sua íntima relação com o

desenvolvimento do estudo, insuscetível de críticas por parte daqueles que

venham a tomar conhecimento do trabalho realizado.

Com tal afirmação, não pretendemos ignorar que o corte

metodológico pode ser objeto de censura pelos destinatários do trabalho

científico, sob o entendimento de que não seria o melhor ou o mais apropriado

para os fins perseguidos; que outro método poderia revelar-se mais apropriado e

que outros instrumentos seriam mais profícuos à análise do fenômeno estudado.

É evidente que críticas desse jaez podem ser feitas, de modo absolutamente

procedente, e contribuir para as reflexões posteriores do cientista. Análises desse

tipo situam-se em momento anterior ao da apreciação do conteúdo do estudo

propriamente dito, pela singela razão de se revelar o corte metodológico, pela sua

própria natureza, uma decisão pessoal e intransferível do autor do trabalho que,

ao efetuá-lo, obedece apenas aos ditames de sua consciência. Após o aludido

corte, o que pode e deve ser cobrado do estudioso é a coerência, ou seja, a

congruência necessária entre as premissas metodológicas fixadas e as

conclusões alcançadas no decorrer de seu labor investigativo.

Feitas essas considerações, podemos adiantar que o corte

epistemológico realizado no presente trabalho comporta seis etapas: o primeiro,

exposto de modo sintético, relativo à própria delimitação do objeto do estudo, e os

Page 43: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

cinco seguintes, respeitantes ao método utilizado para o conhecimento do objeto,

isto é, aos ângulos pelos quais analisaremos a questão dos conceitos

constitucionais e sua relação com a competência tributária.

5. Delimitação do objeto de estudo

Consoante afirmamos nas linhas introdutórias, o eixo central de

nosso interesse repousa no exame da regra constitucional de outorga de

competência tributária e na análise dos limites do exercício de tal potestade

estatal, limites representados pelos conceitos utilizados pela Constituição Federal

na discriminação da competência tributária conferida aos entes políticos.

Evidentemente, há outros limites ao aludido exercício do poder de tributar,

expressos ou implícitos, mas aqueles de que por ora nos ocupamos são

representados pelos mencionados conceitos constitucionais.

Nosso objeto de estudo é, portanto, formado pelo direito positivo, em

especial pelo conjunto de normas jurídicas constitucionais – princípios e regras –

que disciplinam a atividade estatal de tributar e, mais especificamente, aquelas

normas presentes no subsistema constitucional tributário nas quais podemos

encontrar os ditos conceitos.

Tal delineamento conformador do tema não significa que, ao longo

de nossa tarefa analítica, pretendemos desprezar as demais normas

constitucionais e mesmo infraconstitucionais, porque não se pode ignorar a

necessidade de interpretação de todo o ordenamento jurídico.

Page 44: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

Não tencionamos tratar dos conceitos constitucionais utilizados para

cada hipótese específica, como qual o conceito constitucional de renda, de

receita, de produtos industrializados, de serviços de qualquer natureza e assim

por diante, salvo no último capítulo de nosso estudo. Nele concentramos nossa

atenção justamente na análise de alguns casos específicos. Nosso objetivo,

assim, é o de tentar demonstrar como se pode dar o preenchimento do conteúdo

dos conceitos constitucionais e quais as influências que pode sofrer o intérprete-

aplicador do direito no instante da aplicação da norma jurídica.

Tal limitação (a de não tratar de todos os conceitos na Constituição

Federal) é decorrente em primeiro lugar do próprio corte metodológico, pois este é

o objeto de estudo que escolhemos; em segundo, porque pretendemos

demonstrar que o preenchimento do conteúdo significativo dos conceitos

constitucionais somente é possível em cada caso concreto a solucionar (de cada

problema), de forma que não faria sentido pretender fixar, em tese, o conteúdo de

cada conceito independentemente do problema apresentado.

6. Algo distante – mas não muito – do positivismo metodológico

A delimitação do objeto informa, por si só, que a análise a ser feita

volta-se para o direito positivo, pois é ali que procuramos respostas para os

problemas. Contudo, isso não nos faz adotar a doutrina positivista ou positivismo

metodológico como principal referencial; não porque ele não sirva ou não

ofereceça soluções, mas porque procuramos respostas que, segundo pensamos,

outros métodos revelam-se melhor instrumento para alcançá-las.

Page 45: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

Com efeito, não se trata de rejeitar o positivismo metodológico e

muito menos suas conquistas, que são muitas e inegáveis, mas apenas de ir um

pouco além dele, abrir espaço para outras perspectivas. Trata-se de reconhecer

que vivemos uma nova realidade, sobretudo a partir da promulgação da

Constituição Federal de 1988, que impõe novos desafios ao cientista do direito,

uma vez que novos tempos exigem novas soluções (inclusive no campo do direito

tributário), alternativas que o positivismo jurídico, isoladamente considerado,

parece não poder oferecer.

Não se trata de dizer que um método é melhor que outro, que as

teorias que adotamos são melhores ou piores do que o positivismo metodológico,

mas apenas que podem responder melhor, segundo nosso ponto de vista, a

certas indagações. Como salientam ALDA JUDITH ALVES–MAZZOTTI e

FERNANDO GEWANDSZNAJDER,

“Conseqüentemente, durante uma revolução científica há ganhos

mas também há perdas na capacidade de explicação e previsão: a

teoria nova explica alguns fatos que a teoria antiga não explica, mas

esta continua a explicar fatos que a teoria nova não é capaz de

explicar. Nesta situação, torna-se problemático afirmar que uma das

teorias é superior a outra. Esta tese é conhecida como ‘a perda de

Kuhn’ (‘Khun-loss’) (.....) Os enunciados (leis e hipóteses) teriam

então de ser traduzidos de um paradigma para outro. Mas, na

ausência de uma linguagem neutra (independente de teorias ou

paradigmas) a tradução não pode ser feita sem perda de

significado”.21

21 O método nas ciências naturais e sociais: pesquisa quantitativa e qualitativa, p. 29.

Page 46: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

O método que adotamos, explicitado nos itens seguintes, são

ângulos pelos quais vamos observar o objeto de estudo, e constituem singela

proposta – apenas uma proposta entre tantas outras possíveis – de abordarmos o

fenômeno analisado.22

7. Ciência do Direito e a questão da decidibilidade

Afirmamos há pouco que o direito positivo pode ser considerado o

conjunto de normas válidas em determinado espaço e certo tempo, que tem por

fim regular condutas humanas intersubjetivas. A Ciência do Direito pode ser

entendida como um discurso descritivo deste conjunto ou sistema de normas

jurídicas que revela sua estrutura, hierarquia e forma operacional.

Contudo tal descrição da fenomenologia do direito positivo não pode

ser limitada à providência meramente teórica, mas antes sempre referida à

solução de conflitos surgidos no seio da sociedade, tendo-se em vista que a

solução desses é que opera a mencionada regulação das condutas

intersubjetivas dos indivíduos, tema que nos remete à questão da denominada

decidibilidade. Ao tratar da questão da decidibilidade, TERCIO SAMPAIO

FERRAZ JUNIOR afirma que “Neste sentido, a validade da ciência independe de

sua transformação numa técnica utilizável (por exemplo, a validade das teorias de

Einstein independe da possibilidade de se construir a bomba atômica ou um

reator atômico). Ao contrário, os enunciados da ciência jurídica têm sua validade

dependente da sua relevância prática. Embora não seja possível deduzir deles as

22 Thomas Kuhn, em sua obra A estrutura das revoluções científicas, parece defender a idéia de que é impossível justificar racionalmente a preferência por uma entre várias teorias, aquilo que chamou de tese da incomensurabilidade (p. 244/251).

Page 47: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

regras de decisão, é sempre possível encará-los como instrumentos mais ou

menos utilizáveis para a obtenção de uma decisão”.23

A Ciência do Direito não se pode desvincular de uma função

pragmática, de servir como instrumento de auxílio na construção de decisões que

tenham por objetivo colocar fim nos conflitos sociais; é certo que tem como objeto

a descrição do direito positivo, mas sempre com vistas à decidibilidade de

conflitos, à solução de problemas, de forma que o cientista do direito não busca

simplesmente conhecer e descrever o ordenamento jurídico, mas também

determinar – melhor dizendo, construir, como procuraremos demonstrar em

seguida – o sentido e o alcance das normas jurídicas, analisando-a diante das

características de um caso concreto.24

A esse respeito, TERCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR chega

mesmo a falar de uma Ciência do Direito normativa. Embora reconheça que a

possibilidade de uma ciência normativa é bastante discutida pela Filosofia da

Ciência, assim a considera porque entende que o jurista, ao criar teorias relativas

a uma questão jurídica, não se limita a apenas levantar hipóteses, mas, por

vezes, vê-se obrigado a efetuar certas opções decisórias. Por tal razão é que a

Ciência do Direito não se pode afastar de uma finalidade prática – que repousa na

decidibilidade – e, de certa forma, ela explica a realidade, tendo-se em vista que

interpreta o ordenamento jurídico a fim de criar condições possíveis para a

solução de conflitos concretos (problemas).25

23 A ciência do direito, p. 44. 24 Deste entendimento decorre, inclusive, nossa opção pelo modelo da tópica jurídica, de Theodor Viehweg, como se pode verificar no item 9 do presente capítulo. 25 A ciência do direito, p. 15 e 73.

Page 48: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

Nosso corte metodológico, portanto, prende-se à idéia da Ciência do

Direito atrelada a uma finalidade prática específica, revelada pela decidibilidade,

que explica e justifica a adoção do modelo tópico de pensar (como veremos em

seguida) e também confirma nossa afirmação de que não rejeitamos a teoria

positivista, uma vez que, como é óbvio, as normas jurídicas a serem aplicadas ao

caso concreto estão dentro do ordenamento jurídico.26

8. Ordenamento jurídico e perspectiva dinâmica

Outro aspecto a ser mencionado decorre deste que acabamos de

tratar no item anterior pois, uma vez que adotamos que uma das carcterísticas do

direito positivo é a decidibilidade, somos obrigados a reconhecer, no passo

seguinte, que o direito positivo é marcado por sua função operativa, há de

desempenhar um papel operativo ou, em uma palavra, deve funcionar

efetivamente na tarefa de regular e solucionar conflitos dentro da sociedade.

Obviamente, funcionar dentro da sociedade significa não apenas solucionar os

conflitos de interesses, pondo-lhes um fim prático, mas procurar solucioná-los

com a busca concomitante da concretização dos valores superiores encampados

pela sociedade, estampados que estão na Constituição Federal e, de resto, em

todo o ordenamento jurídico.27

26 Teresa Arruda Alvim Wambier ensina que “Toda a técnica de pensamento em que consiste a tópica reside numa orientação que parte do problema para nele desembocar. Existem, é certo, ligações entre o problema e o sistema. O problema só é resolvido quando, reformulado, é trazido para dentro do sistema” (Controle das decisões judiciais por meio de recursos de estrito direito e de ação rescisória, p. 47). 27 Quanto à solução dos conflitos, Tercio Sampaio Ferraz Junior afirma que “Vimos, porém, que decisões não eliminam conflitos. Que significa, pois, a afirmação de que as decisões jurídicas terminam conflitos? Isto significa, simplesmente, que a decisão jurídica (a lei, a norma consuetudinária, a sentença do juiz etc.) impede a continuação de um conflito: ela não o termina através de uma solução, mas o soluciona pondo-lhe um fim. Pôr-lhe um fim não quer dizer eliminar

Page 49: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

Se o direito positivo deve, na regulação das condutas humanas,

prestigiar os referidos valores, isso equivale a dizer que ele deve acompanhar a

sociedade e a evolução de seus interesses; deve acompanhar as transformações

e a elevação crescente da complexidade das relações sociais, o que implica

visualizar e compreender o ordenamento jurídico de uma perspectiva dinâmica,

superando o apelo excessivamente normativista, ou, ainda melhor, levando a

regra jurídica ao grau máximo de sua potencialidade normativa.

Essa idéia, de alcançar o máximo grau possível de potencialidade da

norma jurídica, com a busca de respostas às necessidades e aos interesses da

sociedade à qual ela é destinada – portanto, vista em perspectiva dinâmica, a

norma jurídica em ação, impregnada de movimento – parece corresponder à

afirmação de JOÃO JOSÉ SADY que, fazendo menção ao Código Civil de 2002,

destaca “o avanço no sentido de enfrentar a clássica dificuldade de construir

pontos entre a norma, enquanto enunciado frio e metálico, que gravita em

nebuloso universo metafísico e, do outro lado, a vida, cheia de nuances e

contradições. A contradição, que muitas vezes ocorre entre a letra da lei e as

necessidades de Justiça, perpassa perenemente pela tensão entre a vida e a

norma”.28

Essa consideração do dinamismo do direito positivo, que nos obriga

a constantemente averiguar em qual posição relativa entre si caminham a lei e a

sociedade é visualizada por TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER, ao afirmar

que, nos dia atuais, “tão-só e exclusivamente a velocidade com que caminham os

a incompatibilidade primitiva, mas trazê-la para uma situação, onde ela não pode mais ser retomada nem levada adiante (coisa julgada).” (A ciência do direito, p. 91). 28 A boa-fé objetiva no novo Código Civil e seus reflexos nas relações jurídicas trabalhistas, In: Revista do Advogado, n. 70, p. 43.

Page 50: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

fatos sociais e o inevitável descompasso entre a lei escrita e a realidade já seriam

razão suficiente para que em muitos casos não possa o intérprete contentar-se

com a letra da lei, mas, ao contrário, seriam uma razão bastante para que a letra

da lei já não traduzisse a vontade geral”.29

O que procuramos ressaltar é que o mundo atual experimenta

sensíveis alterações em sua configuração, com significativas transformações

sociais, econômicas, políticas, empresariais, ambientais, tecnológicas,

biotecnológicas, e assim por diante, que provocam necessárias alterações no

papel desempenhado pelo Estado, quer na produção de leis, quer na sua função

de agente atuante no seio da sociedade, fatos que nos levam a acreditar na

necessidade de alteração do prisma pelo qual o Direito é analisado, uma vez que

a visão estritamente legalista pode não mais corresponder às exigências do

chamado mundo moderno, ou, como querem alguns, pós-moderno.

TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER salienta tal aspecto ao afirmar

que “A Constituição Federal brasileira vigente é sintoma evidente desta alteração

que vem sendo vivida pelo Estado brasileiro. Já no seu Preâmbulo há o

compromisso de que o Estado deve assegurar a igualdade e a justiça como

valores supremos de uma sociedade fraterna”,30 cabendo notar que seu artigo 3o.

traz como objetivos fundamentais da República a erradicação da pobreza e a

redução das desigualdades regionais, deixando claro que o Estado Brasileiro – a

ordem constitucional vigente – hospeda certos valores que almeja ver

materializados na sociedade.

29 Controle das decisões judiciais por meio de recursos de estrito direito e de ação rescisória, p. 17. 30 Controle das decisões judiciais por meio de recursos de estrito direito e de ação rescisória, p. 23.

Page 51: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

O próprio Supremo Tribunal Federal reconhece tais circunstâncias

quando trata das denominadas normas constitucionais programáticas e afirma

que elas não podem se tornar uma promessa inconseqüente aos destinatários do

Texto Constitucional.31

Portanto, o momento atual vivido pela sociedade exige do legislador

e do intérprete–aplicador da norma jurídica uma postura diferenciada e com

renovada carga de responsabilidade – observando a vida e o ordenamento

jurídico em sua perspectiva dinâmica – com a alteração da perspectiva pela qual

se cuida do próprio primado da legalidade, como nos ensina JOSÉ JOAQUIM

GOMES CANOTILHO:

“O princípio da determinabilidade das leis reconduz-se, sob o ponto

de vista intrínseco, a duas idéias fundamentais. A primeira é a da

exigência de clareza das normas legais, pois de uma lei obscura ou

contraditória pode não ser possível, através da interpretação, obter

um sentido inequívoco capaz de alicerçar uma solução jurídica para

o problema concreto. A segunda aponta para a exigência de

densidade suficiente na regulamentação legal, pois um acto

legislativo (ou um acto normativo em geral) que não contém uma

disciplina suficientemente concreta (= densa, determinada) não

oferece uma medida jurídica capaz de: (1) alicerçar posições

juridicamente protegidas dos cidadãos; (2) constituir uma norma de

actuação para a administração; (3) possibilitar, como norma de

controle, a fiscalização da legalidade e a defesa dos direitos e

interesses dos cidadãos”.32

31 Agravo no Recurso Extraordinário no. 273.834-4-RS, Relator Ministro Celso de Mello. 32 Direito constitucional e teoria da constituição, p. 258.

Page 52: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

Desse modo, afirmamos nós, se o legislador não levar a efeito a

tarefa de regular a vida em sociedade com densidade normativa suficiente, que o

leve o intérprete-aplicador da norma jurídica no momento de fazê-la incidir no

caso concreto, por meio de uma interpretação construtiva da norma jurídica –

sem, entretanto, ceder passo a subjetivismos de ordem variada – mas

prestigiando e concretizando os diversos valores hospedados pelo ordenamento

jurídico e, em especial, pela Constituição Federal. Essa tarefa somente pode ser

viabilizada por uma perspectiva dinâmica da ordem jurídica positiva, considerada

esta não como um sistema fechado, no qual o modelo codificado traria uma

disciplina legislativa exaustiva e completa, que se revela inviável no mundo atual,

mas tomada como sistema aberto, no qual ganham relevância as chamadas

cláusulas gerais, em que o intérprete-aplicador da norma tem maior liberdade de

atuação e possibilidade de adaptar o conteúdo das normas jurídicas às

necessidades da sociedade em transformação constante.33

Ora, se o denominado direito material, em seus vários quadrantes,

como, por exemplo, o direito civil, econômico, ambiental etc. não podem

prescindir da perspectiva dinâmica a que nos referimos, e bem assim o direito

processual, como demonstrado por TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER, 34

também nos parece que o direito tributário não pode fugir de tal condição (de ser

tomado sob perspectiva dinâmica) que, sobre ser uma postura metodológica,

revela-se uma verdadeira exigência da sociedade atual. Entretanto, referirmo-nos

ao direito tributário em perspectiva dinâmica e ao afastamento do normativismo

33 Cf. Renata Domingues Barbosa Balbino, O princípio da boa-fé objetiva no novo Código Civil, In: Revista do Advogado, n. 68, p. 111. 34 Controle das decisões judiciais por meio de recursos de estrito direito e de ação rescisória, p. 13/56.

Page 53: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

extremado parece ser afirmação arriscada e que pode dar margem a um mal

entendido, coisa que nos obriga a efetuar uma ligeira digressão.

À primeira vista pode parecer que, ao mencionarmos cláusulas

relativamente abertas e liberdade de interpretação, estaríamos esquecendo que a

Constituição Federal é do tipo rígida; que o Sistema Tributário Nacional por ela

estabelecido é extremamente minucioso e praticamente exaustivo; que, segundo

a quase unanimidade da doutrina, o princípio da legalidade é de legalidade estrita

e traz em seu bojo a tipicidade cerrada, e que a conjugação de tais elementos

acrescenta relevo especial ao primado da segurança jurídica em matéria

tributária, de sorte que, neste campo do direito positivo, não haveria o menor

espaço para liberdade de interpretação e muito menos cláusulas abertas (ainda

que relativamente abertas), entendimento este que, se aceito, fatalmente

propiciaria abuso de poder, arbitrariedades variadas, exacerbação dos poderes

fiscalizatórios e outros desmandos, ficando assim desprotegido o contribuinte

diante dos irrefreáveis interesses arrecadatórios.

Por todas essas razões, de relevância evidente, é necessário que

declaremos, desde logo, que a proteção ao contribuinte é necessária, imperiosa e

imprescindível; que as limitações constitucionais ao poder de tributar não podem

de modo algum ser desprezadas, inclusive a limitação representada pelos

conceitos constitucionais, como procuramos demonstrar em seguida. A

experiência brasileira demonstra, de forma irrespondível e com exemplos diários,

que o fisco parece ter pouco apreço pela Constituição Federal e pelos limites por

ela impostos à atividade estatal de criar e arrecadar tributos. Em não raras vezes

os contribuintes sofrem de abuso de poder no que se refere aos procedimentos

Page 54: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

fiscalizatórios, entre outros problemas que marcam indelevelmente a relação

fisco-contribuinte, de modo que, diante desse quadro, seria certamente

irresponsável ignorar a relevância da segurança jurídica em matéria tributária ou

esposar entendimento que viesse a desprestigiá-la, ainda que de forma indireta.

Portanto é de bom tom, para dizer o mínimo, que declaremos que

não é isso que estamos a defender; ao contrário, o que procuramos ressaltar é

que ambos os pontos de vista – o prestígio à segurança jurídica e às limitações

constitucionais ao poder de tributar e, ao mesmo tempo, a liberdade de

interpretação e alguma maleabilidade do sistema tributário – representam idéias

que podem conviver dentro de nosso ordenamento jurídico, porque a própria

Constituição Federal parece demonstrá-lo.

A mesma Constituição Federal que prevê o princípio da legalidade

(artigo 150, inciso I), contempla o princípio da capacidade contributiva (artigo 145,

parágrafo primeiro); o mesmo Texto Constitucional que estabelece o princípio do

não-confisco (artigo 150, inciso IV), firma como um dos objetivos da República a

busca da erradicação da pobreza (artigo 3o, inciso III); a Lei Maior que reconhece

e prestigia o princípio da livre iniciativa e da garantia da propriedade (artigo 170,

caput e inciso II, e artigo 5o, inciso XXII) é a mesma que objetiva a redução das

desigualdades sociais e determina que a propriedade deve atender à sua função

social (artigo 3o, inciso III, artigo 5o, inciso XXIII, e artigo 170, inciso III).

Não nos parece possível ignorar a função desempenhada pela

arrecadação de tributos na busca dos objetivos a serem alcançados pelo Estado

Brasileiro, por força de mandamento constitucional, fato que exige, segundo

nosso entendimento, que também o direito tributário seja visto pela perspectiva

Page 55: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

dinâmica, buscando acompanhar e atender às exigências da sociedade atual, o

que não autoriza, entretanto e com o perdão da insistência, o desprezo à

fundamental proteção ao contribuinte, também em obséquio aos ditames

constitucionais.

Retomamos aqui a linha de nosso raciocínio para afirmar que, se a

Constituição Federal de 1988 determina que o Estado busque os objetivos nela

contemplados, de natureza social, relativos à educação, atinentes à saúde e

afetos à seguridade social, entre tantos outros que poderíamos citar, é natural

também que ela própria forneça ao Estado os meios e recursos financeiros para a

busca de tais desideratos constitucionais, daí decorrendo a importância da

competência tributária e de seu exercício pelos entes políticos, visto que

possibilita ao Estado passar de mero espectador a agente preocupado e atuante

nas diversas demandas sociais.35

Nesse sentido, leciona MARCO AURELIO GRECO que “o conceito

de Estado intervencionista supõe a concepção de que há necessidade de

mudança e, portanto, um passado (a ser mantido) não é mais o referencial básico.

Referencial é um futuro a ser construído. Assim, uma lógica voltada para o

passado não se compatibiliza adequadamente com esta nova postura do Estado

e, por conseqüência, do Direito”.36

Podemos notar assim que não se trata de desprezarmos as

conquistas do passado – levadas a termo pela doutrina e pela jurisprudência, no

35 Certamente não ignoramos que o Poder Executivo reiteradamente não aplica os recursos decorrentes da arrecadação de tributos da forma como o determina a Carta da República, para não falar dos casos em que simplesmente não aplica recurso algum. Entretanto, pensamos que os desvios de poder e as distorções causadas pelo mau uso do dinheiro público não podem servir de pretexto para não reconhecermos os desígnios constitucionais apontados na Carta. 36 Contribuições: uma figura “sui generis”, p. 36.

Page 56: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

que atine aos limites da atividade estatal impositiva – mas de reconhecer que, ao

lado delas, é necessário considerarmos novas variáveis que ganham espaço na

discussão do fenômeno tributário, sobretudo após o advento da vigente

Constituição Federal, diante dos fins que ela ordena que o Estado Brasileiro

busque atingir.

E aqui desembocamos na questão da segurança jurídica como valor

fundamental – positivado expressamente pelo ordem constitucional – de todas as

subáreas do direito positivo e, com especial grau de relevância, da seara

tributária, porque, se é evidente que a todos os cidadãos é imperioso garantir o

conhecimento antecipado das conseqüências jurídicas dos atos praticados,

próprios e alheios, também ao contribuinte revela-se obrigatório garantir a

previsibilidade das conseqüências de sua conduta, que afetarão seu patrimônio.

A segurança jurídica experimenta alguma dose de alteração em seu

perfil, pois deixa de ser algo que garanta que tudo se passará da mesma forma

como tem passado nas últimas décadas, para ser instituto que garanta um grau

de previsibilidade das conseqüências possíveis quanto aos novos valores que

serão levados em consideração na solução dos conflitos sociais, momento em

que passam a comparecer com freqüência no cenário jurídico temas como

solidariedade social, direitos humanos, proporcionalidade e razoabilidade,

governabilidade, papel político do Supremo Tribunal Federal, ponderação de

princípios na interpretação a aplicação das normas jurídicas e outros elementos

de igual envergadura.

No que se refere à jurisprudência, a segurança jurídica parece não

mais garantir que o Poder Judiciário irá decidir as lides tributárias nas mesmas

Page 57: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

bases em que foram decididas nos últimos vinte anos, mas, em vez disso, passa

a permitir que o contribuinte conheça antecipadamente quais os valores – que

agora – passarão a ser tomados em consideração no momento da decisão, qual a

flexibilização que se pretende adotar quanto a certas regras tributárias, qual o

conteúdo que se passa a conferir a este ou àquele princípio constitucional

tributário, quais as condutas cujo grau de reprovação pelos juízes aumenta e

assim por diante. Desse modo, a segurança jurídica – que também passa a ser

objeto de ponderação quando confrontada, por exemplo, com a justiça – não mais

permite antecipar o conteúdo da decisão judicial mas, antes, possibilita o

conhecimento dos critérios, dos novos critérios, que informam, a partir de então, o

ato de decidir.37

Considerar o ordenamento jurídico pela perspectiva dinâmica e

como elemento de transformação da realidade social significa entender a

Constituição como uma obra aberta, que, ao lado de um núcleo rígido que

encampa valores que ela deseja ver perpetrados perenemente (cláusulas

pétreas), também oferece uma outra série de valores que ainda estão por ser

implementados e que aponta para o modelo de sociedade que se deseja que

venha a existir. A implementação desses valores cabe aos legisladores e aos

intérpretes e aplicadores das normas jurídicas, em tarefa diária árdua e que

certamente se dará em meio a acirrados debates ideológicos a serem fatalmente

37 Neste particular, Maria Garcia salienta que “além de ser critério de avaliação, conjunto de critérios de avaliação ou conjunto de avaliações deônticas, como diz Amadeu Conte, é, ainda, um sistema de decisões. Isto é, o direito não é apenas um conjunto de normas, com sentido retrospectivo, nem apenas um conjunto de avaliações, com sentido prospectivo, mas ele é também um conjunto de decisões, no sentido atual, aquilo que está sendo usado aqui, agora. Isso também faz parte do sistema jurídico” (Desobediência civil: direito fundamental, p. 108).

Page 58: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

travados pelos inúmeros grupos de interesses atuantes no cenário sócio-

econômico.

A concepção da ordem constitucional como ordem aberta é

mencionada por MARIA GARCIA, ao afirmar que “a ordem constitucional surge

em Canotilho como uma ordem aberta às alterações e mudanças temporalmente

adequadas” e, baseada no ensinamento de KONRAD HESSE, aponta que o

caráter incompleto da Constituição encontra-a na perspectiva de um sistema e

avança na problemática das lacunas, de modo que a Constituição confia ao resto

do ordenamento jurídico a conformação e a concretização de um sem-número de

temas, decorrendo daí que a própria Constituição não pode prescindir de certas

lacunas e não pode ser considerada como um sistema rigidamente fechado,

deixando determinadas questões, como, por exemplo, a constituição econômica,

pretendidamente abertas, para propiciar espaço para a discussão, decisão e

configuração.38

Reconhecer que o Texto Constitucional e, de resto, o próprio

ordenamento jurídico, em sua integralidade, pode ser considerado como algo

incompleto e inacabado é afirmar que, se ambos têm por objeto precípuo a

regulação da vida em sociedade, nada mais razoável que o ordenamento deixe

margem para alterações em virtude das modificações sofridas pela sociedade que

ele pretende regular. Tal indeterminação, entretanto, não pode ser de tal

magnitude, sujeita a uma dinâmica absoluta, que venha a impossibilitar o

regramento social, aí sim gerando insegurança jurídica e desprestígio à

supremacia normativa da Carta da República.

38 Cf. Desobediência civil: direito fundamental, p. 109/111.

Page 59: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

Nesse sentido, é ainda MARIA GARCIA, desta feita valendo-se das

lições de MICHEL VAN DE KERCHOVE e de FRANÇOIS OST (Le système

juridique entre ordre e désordre), que aponta com precisão:

“É preciso cessar, a esse respeito, de considerar necessariamente

como deficiências ou inevitáveis ambigüidades, redundâncias,

lacunas, inefetividades e antinomias que afetam o sistema jurídico.

Quem não vê que as ambigüidades de certas ‘noções confusas’

favorece a adaptação dos textos às circunstâncias imprevistas, ao

mesmo tempo que facilita a realização do compromisso? Quem não

sabe que a função pedagógica do Direito, reclama algumas

repetições? Quem ignora a virtude de certas lacunas que,

procedendo da sabedoria de legislador – mais que da sua

imprevidência – deixam ao órgão de aplicação a indispensável

margem da manobra que a diversidade dos fatos reclama?”.39

Uma última palavra é necessária, ainda que breve, acerca do papel

da doutrina neste quadro que procuramos desenhar, pois, se no passado a

doutrina de direito tributário desempenhou papel de alta relevância na construção

de um modelo de controle do exercício do poder de tributar, atualmente sua

função revela-se ainda mais importante, pois é evidente que tal controle ainda

continua necessário, mas sua adequada formulação não pode desprezar a nova

realidade social que se materializa dia após dia, com a interferência de novos

valores sobre a interpretação e aplicação das normas jurídicas tributárias,

especialmente aquelas de caráter constitucional.40

39 Desobediência civil: direito fundamental, p. 112. 40 Marco Aurelio Greco acentua com lucidez que “hoje, cumpre aceitar a mudança como único elemento constante e, a partir desta constatação do reconhecimento da crise dualista, buscar novos critérios e parâmetros que assegurem tal controle, pois o próprio objeto de análise sofreu

Page 60: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

A doutrina especializada pode concordar ou não com a flexibilização

dada ao princípio da legalidade (como no julgamento, pelo Supremo Tribunal

Federal, do caso do Seguro de Acidentes do Trabalho); certamente pode

entendê-la como violação ao Sistema Tributário Nacional ou como razoável

solução do caso concreto. Entretanto, o que a doutrina não pode fazer é ignorar

as decisões, fingir que não percebe que a jurisprudência parece adotar novos

rumos, pois, assim fazendo, a Ciência do Direito corre o risco de renunciar à

relevante posição que deve ocupar, uma vez que deixa de explicar a realidade

jurídico-tributária.

Diante de novos rumos que parece seguir a jurisprudência relativa à

matéria tributária, sobretudo aquela oriunda dos tribunais superiores, a doutrina

não pode abrir mão de sua função, mas talvez deva reavaliar alguns de seus

conceitos, rever algumas de suas posições, a fim de construir novos modelos de

análise do fenômeno impositivo, porque assim procedendo auxilia os órgãos

julgadores, que precisa e deve contar com as lições doutrinárias na tarefa de

construir e concretizar o ordenamento jurídico.

9. Tópica jurídica

A tópica ou modelo tópico de raciocinar é retomada por

alguns filósofos do Direito, a partir da segunda metade do século XX, como uma

tentativa de resposta à chamada crise do positivismo aflorada com o surgimento

de regimes totalitários que, não obstante perpetrassem barbáries no seio da

alterações. A doutrina não pode descurar do seu objeto de análise, formado pelas normas (que não se resumem apenas às constitucionais) e pela jurisprudência. Estudar o Direito é, também, conhecer o posicionamento dos Tribunais procurando identificar tendências, critérios, parâmetros em que se apóiam etc.” (Contribuições: uma figura “sui generis”, p. 48/49).

Page 61: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

sociedade, faziam-no com base no direito positivo e, portanto, sob a proteção da

lei vigente.

O denominado modelo sistemático, caracterizado pelo hermetismo

decorrente da filosofia positivista, parecia então não mais poder responder às

perplexidades de uma sociedade mundial que começava a transformar-se e dar

importância a novos valores. Talvez o exemplo mais contundente seja o Tribunal

de Nuremberg, criado após o término da Segunda Guerra Mundial com o

propósito específico de julgar os crimes praticados pelo nazismo.

Afirma CHAÏM PERELMAN que “Os fatos que sucederam na

Alemanha, depois de 1933, demonstraram que é impossível identificar o direito

com a lei, pois há princípios que, mesmo não sendo objeto de uma legislação

expressa, impõem-se a todos aqueles para quem o direito é a expressão não só

da vontade do legislador, mas dos valores que este tem por missão promover,

dentre os quais figura em primeiro plano a justiça”.41

A tópica jurídica ressurge, assim, como proposta de construção de

um novo modelo que pudesse dar sustentação às decisões judiciais, direcionado

para a prática jurídica e que, segundo alguns autores, insurge-se contra o

raciocínio silogístico e a concepção legalista e estatizante do direito. Rejeita,

portanto, o formalismo sistemático e dedutivo assentado sobre o positivismo

jurídico. Pode-se considerar que a retomada de tal modelo dá-se em 1953 com a

publicação da obra Topik und Jurisprudenz, de THEODOR VIEHWEG, que

resgata o modelo utilizado pelos romanos e busca fundamentar sua teoria na

construção de uma justiça que parte da análise de casos concretos e das

41 Lógica jurídica, p. 95.

Page 62: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

decisões específicas tomadas na solução de tais casos. A tópica surge como uma

técnica de raciocínio voltada para o caso concreto, para o problema apresentado,

é um estilo de pensar por problemas, que parte do problema e para ele é

orientado.

No prefácio à obra de THEODOR VIEHWEG, publicada no Brasil

com o título Tópica e Jurisprudência, TERCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR

salienta que

“A tópica não é propriamente um método, mas um estilo. Isto é, não

é um conjunto de princípios de avaliação da evidência, cânones para

julgar a adequação de explicações propostas, critérios para

solucionar hipóteses, mas um modelo de pensar por problemas, a

partir deles e em direção deles. Assim, num campo teórico como o

jurídico, pensar topicamente significa manter princípios, conceitos,

postulados, com um caráter problemático, na medida em que jamais

perdem sua qualidade de tentativa. Como tentativa, as figuras

doutrinárias do Direito são abertas, delimitadas sem maior rigor

lógico, assumindo significações em função dos problemas a

resolver, constituindo verdadeiras ‘fórmulas de procura’ de solução

de conflito”.42

Desse modo, adotamos neste trabalho a tópica como um estilo de

pensar, como um instrumento que nos permite buscar a interpretação da norma

jurídica na aplicação ao caso concreto (do problema), partindo-se do caso para a

norma, isto é, o marco inicial da tarefa exegética é a consideração e o análise do

problema e não da norma; revela-se, portanto, um raciocínio do tipo indutivo, que

se desloca do particular em direção ao geral. 42 Theodor Viehweg, Tópica e jurisprudência, p. 3.

Page 63: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

Tal postura repousa em nossa crença de que o conteúdo de

significação da norma jurídica, pelo menos na maioria dos casos, somente pode

ser construído por meio da interpretação diante de um caso concreto, ou seja, a

interpretação do ordenamento jurídico não pode ser levada a termo de modo

desvinculado do problema que se pretende solucionar, afirmação que nos obriga

efetuar uma pequena digressão.

O direito positivo, como vimos, é um conjunto de normas jurídicas

válidas, em dado território e determinado espaço, que tem por objetivo regular

condutas humanas intersubjetivas. Uma de suas características principais é a de

garantir um certo grau de previsibilidade aos destinatários do aglomerado de

comandos normativos, no que concerne às conseqüências jurídicas dos atos

praticados. Em outros termos, para que o cidadão possa saber quais as

conseqüências jurídicas de sua conduta, é necessário garantir a ele que, antes de

sua prática, ele saiba qual a norma jurídica regente daquela conduta e qual o seu

conteúdo. Dessa forma, como coadunar tal necessidade imperiosa com nossa

afirmação de que o conteúdo da norma jurídica somente pode ser construído

diante do caso concreto? Como garantir a previsibilidade das conseqüências

jurídicas – a segurança jurídica, enfim – se o conteúdo da norma somente é

apurado diante do caso concreto?

A resposta está, segundo nos parece, no próprio temperamento que

devemos dar à nossa afirmação, uma vez que há casos e casos a serem

considerados, isto é, as próprias especificidades da hipótese considerada indica-

nos uma direção a seguir. Por exemplo, sabe-se que o ordenamento jurídico

hospeda uma norma que impõe o respeito à vida, de modo que quem quer que

Page 64: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

alimente pretensões de tirar a vida de outrem sabe perfeitamente que sofrerá uma

sanção negativa prevista pelo ordenamento, por exemplo a pena de reclusão

(salvo nas exceções contempladas pelo próprio direito positivo, por exemplo,

legítima defesa). Em casos como esse, é fácil saber previamente o conteúdo da

norma jurídica e orientar a conduta para acatá-la (ou mesmo desobedecer a ela),

revelando-se esta uma hipótese simples, caricatural mesmo.

Não obstante, há uma longa série de hipóteses complexas, cuja

apuração das conseqüências jurídicas não acontece dessa forma singela e

damos como exemplo justamente aquilo que nos interessa de perto no presente

estudo, qual seja, o exercício da competência tributária.

O legislador, ao instituir determinado tributo, ao exercer a

competência tributária que lhe é conferida constitucionalmente, edita um ou vários

atos legislativos (leis, regulamentos etc.) para compor o regime jurídico-tributário

de certa exação. Formulando, com tal atividade, variada série de discriminações,

de qualificações jurídicas, de busca de certos objetivos, de estipulação de

sanções negativas e positivas, de escolha de classes e pessoas, deve, no

desempenho de tal comportamento legiferante, manter-se alinhado aos

superiores ditames constitucionais que informam a competência tributária ou, por

hipótese, pode deles desafortunadamente desviar-se.

Aqui chegamos ao nosso ponto, uma vez que, em casos como este,

somente se poderá saber se o legislador trabalhou bem ou mal, com respeito ou

sem ao ordenamento jurídico, diante de casos concretos, aqui considerados como

tais os próprios atos legislativos e suas peculiaridades e também as situações

fáticas dos contribuintes diante dos comandos prescritivos estabelecidos pelos

Page 65: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

textos legais. Em outros termos, o conteúdo da norma jurídica será construído

diante de cada problema a resolver, com a solução que se deverá ofertar a cada

situação concreta e específica que a aplicação da norma jurídica suscitar, com

todas as complexidades que o mundo fenomênico oferece, em suas múltiplas e

variadas ocorrências. Portanto, e aqui finalizando a noticiada digressão, é neste

sentido, para os propósitos e limites de nosso trabalho, que deve ser tomada a

afirmação de que a interpretação-aplicação da norma jurídica é feita sempre

diante do caso concreto (ainda que hipotético, formulado como exemplo),

decorrendo daí a relevância, segundo nosso ponto de vista, do estilo tópico.

Há uma outra dificuldade que devemos desde logo enfrentar,

decorrente da afirmativa de que o estilo tópico, por deixar, no caso do campo

jurídico, os princípios, conceitos e postulados com um caráter problemático, vale

dizer, aberto às discussões, parece deixar ao intérprete demasiada liberdade ou

criatividade em sua tarefa exegética. Por partir do problema para a norma (e não

o contrário), poder-se-ia adotar todo e qualquer argumento na solução do caso

concreto – até mesmo argumentos contrários à lei – desde que estes, aos olhos

do intérprete, parecessem suficientes para solucioná-lo, o que viria em

desrespeito ao conceito formal de Constituição e à sua hegemonia normativa.

Tal objeção, séria por si mesma, ganha contornos de relevância

ainda mais acentuados quando aplicada à área de nosso estudo, dado que o

Sistema Tributário Nacional plasmado na Constituição Federal é rico em

princípios e regras restritivas ao exercício do poder de tributar – sem prejuízo da

própria rigidez da Constituição – considerada pela maioria da doutrina pátria como

exaustivo e inflexível, seara na qual, segundo a quase unanimidade dos autores,

Page 66: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

vige o princípio da legalidade estrita e o da tipicidade cerrada, cenário, portanto,

que não permite deixar as referidas regras e princípios com uma natureza

problemática .

Tal crítica é formulada, por exemplo, por PAULO BONAVIDES, que

aponta as distorções que seriam impostas ao Texto Constitucional caso fosse

utilizado o estilo tópico na interpretação das normas constitucionais:

“Sendo a Constituição aberta, a interpretação também o é. Valem

para tanto todas as considerações e pontos de vista que concorram

ao esclarecimento do caso concreto, não havendo graus de

hierarquia entre os distintos loci ministrados pela tópica. A

Constituição com a metodologia perde até certo ponto aquele caráter

reverencial que o formalismo clássico lhe conferira. A tópica abre

tantas janelas para a realidade circunjacente que o aspecto material

da Constituição, tornando-se, quer se queira quer não, o elemento

predominante, tende a absorver por inteiro o aspecto formal. A

invasão da Constituição formal pelos topoi e a conversão dos

princípios constitucionais e das próprias bases da Constituição em

pontos de vista à livre disposição do intérprete, de certo modo

enfraquece o caráter normativo dos sobreditos princípios, ou seja, a

sua juridicidade. A Constituição, que já é parcialmente política, se

torna politizada ao máximo com a metodologia dos problemas

concretos, decorrentes da aplicação da hermenêutica tópica”.43

Com o evidente respeito que temos pelo entendimento do Professor

da Universidade Federal do Ceará, encontramos dificuldades para acompanhá-lo

na crítica transcrita, porque nos parece que ela peca pelo excesso. Em primeiro

lugar, porque certamente não são válidos “todas as considerações e pontos de 43 Curso de direito constitucional, p. 495/496.

Page 67: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

vista que concorram ao esclarecimento do caso concreto” na interpretação da

Constituição (como decorrência da adoção do estilo tópico de pensar), mas

algumas considerações e alguns pontos de vista. Assim como não há direitos

ilimitados, também não há interpretação ilimitada.

Em segundo lugar, quanto à Constituição Federal ser aberta,

acreditamos que ela efetivamente o seja; idéia, aliás, que procuramos defender

no item precedente, e da qual decorre que também a interpretação o seja.

Todavia, tal característica não é ruim, como pode à primeira vista parece, mas é

boa, na medida em que permite que a Carta da República seja permanentemente

atualizada, pela interpretação, esteja em consonância com as exigências de seu

tempo e seja sensível às características presentes na sociedade à qual ela se

destina. Entretanto, como parece óbvio, afirmar que a interpretação é aberta não

significa dizer, como o afirmamos, que ela seja totalmente aberta, como se o

intérprete, apenas por se valer do estilo tópico e por se preocupar com o caso

concreto, pudesse tomar o texto da Constituição Federal como um mero pretexto

para, pela interpretação, ler em suas superiores normas aquilo que lhe convém ou

lhe prefere.

Em terceiro lugar, porque o fato de a tópica abrir “janelas para a

realidade circunjacente” certamente não autoriza “a conversão dos princípios

constitucionais e das próprias bases da Constituição em pontos de vista à livre

disposição do intérprete”, como nós não defendemos que autorizasse e como não

poderia mesmo autorizar, de modo que ficasse enfraquecido o caráter normativo

dos princípios ou mesmo sua juridicidade. Assim sendo, abrir as referidas janelas

para a realidade circunjacente representa apenas, segundo modestamente

Page 68: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

pensamos, constatar o inapelável: a Constituição Federal não vige sozinha, não

paira no vácuo, alheia a tudo e a todos; pelo contrário, vigora justamente para a

realidade circunjacente e por esta é evidentemente influenciada, pois a sociedade

conforma e é conformada pela Constituição e tal afirmação nada implica ou se

confunde com desprezar sua juridicidade ou sua inafastável força normativa.

Finalmente, em quarto lugar, parece-nos que ninguém pode duvidar

que a Constituição é “parcialmente política”, mas a adoção da “metodologia dos

problemas concretos” não pretende transformá-la em “politizada ao máximo” –

pelo menos não na acepção em que ora adotamos o estilo tópico de raciocinar –

mas tenciona deixar assentada nossa convicção de que a interpretação das

normas jurídicas, aí inclusas obviamente as normas constitucionais, não pode ser

levada a termo sem a consideração do caso concreto, tal como afirmamos no item

dedicado à questão da decidibilidade, e isso não significa, refrise-se, com perdão

pela insistência, desprezar a força normativa da Constituição ou conceder

desmedida margem de liberdade ao seu intérprete-aplicador.

Portanto, e retornando à questão tributária, é fundamental que

deixemos claro que não estamos a defender a idéia de flexibilização do sistema

tributário pela interpretação e muito menos a desprestigiar os princípios

constitucionais, sobretudo nesta subárea do direito positivo, em que as

arbitrariedades e os desvios de poder são fartos, como bem o demonstra

volumosa jurisprudência; trata-se apenas de interpretarmos as normas

constitucionais tomando-se como ponto de partida o caso concreto e sempre

considerando a questão da decidibilidade.

Page 69: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

Adotar o estilo tópico de pensar o direito positivo não significa, de

modo algum, abrir mão ou rejeitar o pensamento sistemático; implica apenas dar

ênfase ao pensamento problemático, porque pensamos que ambas as formas de

raciocinar podem e devem auxiliar-se mutuamente, caminhando uma ao lado da

outra e complementando-se. Assim como acreditamos que nos apegarmos

acirradamente ao modelo sistemático, com desprezo a outros métodos possíveis,

significa conduta extremada que pode render homenagens ao radicalismo – tanto

indesejável quanto infrutífero. Não pretendemos cometer o mesmo equívoco

caminhando pelo outro sentido, que seria o alinhamento incondicional ao modelo

tópico, com indesejável desprezo pelo sistemático. Pensamos, assim, ser possível

a utilização conjunta de ambos os métodos, sem preconceitos e sem que com

isso a necessária rigidez e coerência do estudo fiquem prejudicadas.44

Uma vez que partimos de uma visão pragmática do direito e

apoiados na questão da decidibilidade, o marco inicial do raciocínio é o problema,

o caso concreto, uma questão que aguarda solução (decisão), para a qual se tem

mais de uma possível resposta. Assim, parte-se do problema (e das possíveis

soluções, que são, por assim dizer, previamente dadas) e vai-se ao sistema do

direito positivo para verificar-se, entre aquelas possíveis, qual é a melhor solução,

44 Margarida Maria Lacombe Camargo, com base em outras lições, aponta que “Concordamos com José Lamego quando este reconhece na tópica não uma ameaça à dogmática, mas um elemento potencializador. Conforme escreve ‘O juiz não aplica automaticamente e na sua integralidade a pauta geral à situação concreta, ‘sacrifica’ algo daquela em virtude, precisamente, do caráter ‘concreto’ da situação. Mas este afastar-se da universalidade da norma não significa uma ‘imperfeição’, um déficit na realização do conteúdo da pauta de regulação, mas precisamente uma potenciação das possibilidades nela contidas, fazendo-a corresponder às exigências do caso.’ Por mais paradoxal que possa parecer, Lamego atribui à tópica uma maior capacidade de explorar o sistema, considerado como uma pauta de regulação previamente dada.” (Hermenêutica e argumentação: uma contribuição ao estudo do direito, p. 152).

Page 70: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

a mais razoável para o caso concreto. Mas a solução é encontrada evidentemente

no ordenamento.

Nessa linha, TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER leciona que “Em

decorrência de tudo o que até agora se disse, é necessário que consignemos

expressamente nosso pensamento, no sentido de que não há incompatibilidade

entre conceber-se a existência de um sistema jurídico, composto de regras e

princípios, que aparecem na lei (que são as regras propriamente ditas), na

doutrina e na jurisprudência e, simultaneamente, entender-se que o raciocínio

para resolverem-se questões jurídicas parte do problema, remetendo a atenção

do sujeito ao sistema e, em seguida, ao problema e, em seguida, ao sistema até

que este assimile aquele, encaixando-o na solução normativa adequada”.45 46

Poderíamos dizer que falar em possíveis soluções previamente

dadas constitui falha ou inconsistência do raciocínio porque, a princípio, as

soluções somente poderiam surgir a partir e depois da análise do sistema jurídico,

do ordenamento positivo. Não obstante, acreditamos que, concomitantemente à

exposição do problema, surge na mente do operador do direito (juiz, advogado,

jurista etc.) um leque de possíveis soluções, daí porque ele vai ao ordenamento,

primeiro para saber se todas elas ali cabem e, depois, para verificar qual delas é a

melhor. Assim, como visto, vamos do problema ao sistema, do sistema ao

45 Controle das decisões judiciais por meio de recursos de estrito direito e de ação rescisória, p. 49. 46 Nesse sentido, Tercio Sampaio Ferraz Junior salienta que “De modo geral, as questões jurídicas são ‘dogmáticas’, sendo sempre restritivas (finitas) e, neste sentido, ‘positivistas’ (de positividade). As questões jurídicas não se reduzem, entretanto, às ‘dogmáticas’, à medida em que as opiniões postas fora de dúvida – os dogmas – podem ser submetidas a um processo de questionamento, mediante o qual se exige uma fundamentação e uma justificação delas, procurando-se, através do estabelecimento de novas conexões facilitar a orientação da ação. O jurista revela-se assim, não só como o especialista em questões ‘dogmáticas’, mas também em questões ‘zetéticas’. (A ciência do direito, p. 46).

Page 71: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

problema, deste novamente ao sistema, até o ponto em que se encontra e

constrói-se a decisão, que vem a representar a solução do problema, o seu

término naquele caso concreto.

Portanto, segundo essa forma de pensar, não se analisa o

ordenamento jurídico em abstrato raciocínio, para extrair-se dele as respostas

possíveis, para, munido delas, ir enfrentar o problema; ao contrário, diante do

problema vamos buscar as respostas, como nos dois exemplos seguintes.

No mencionado caso do Seguro de Acidentes do Trabalho – SAT, no

qual a controvérsia central repousou na alegada ofensa ao princípio da

legalidade, uma vez que as alíquotas do tributo foram fixadas por meio de Decreto

que estabeleceu os respectivos graus de risco, não se partiu da análise abstrata

do aludido princípio para se extraírem as possibilidades e as não-possibilidades

do Decreto. Em vez disso, dada a fixação das alíquotas pelo Decreto como fato

consumado (este é o problema), buscou-se interpretar a Constituição Federal

para se saber se o Poder Executivo poderia ter feito o que efetivamente fez neste

caso concreto, ou seja, se exorbitou ou não os limites aos quais o Decreto está

subordinado.

Na hipótese da incidência da Contribuição para Financiamento da

Seguridade Social – COFINS sobre bens imóveis,47 não se analisou a questão

apenas partindo do ponto em que se reconhece que, a rigor, um imóvel não é

mercadoria e, portanto, a receita advinda de sua alienação não seria uma receita

decorrente da venda de mercadorias. Diante do problema de assim decidir e

47 Embargos de Divergência no Recurso Especial nº. 166.374-PE, Relatora para acórdão Ministra Eliana Calmon.

Page 72: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

deixar uma classe de possíveis contribuintes exclusos da incidência da referida

contribuição, procedeu-se ao exame da Constituição Federal e ali se encontrou o

denominado princípio da universalidade da contribuição (artigo 195, caput) para,

em seguida, sopesando os valores envolvidos – proteção a uma classe de

contribuintes versus prestígio ao princípio da universalidade da contribuição –

optar-se (decidir-se) pelo prestígio segundo, como capaz de oferecer solução

mais razoável ao caso concreto.

Outros dois significativos exemplos são dados pela questão da

imunidade, relativa aos impostos, dos jornais e do papel para a sua impressão,

em que se debate se a imunidade alcança também o filme fotográfico ali utilizado

e a tinta de impressão, e se tal imunidade, concedida ao livro, alcança ou não o

chamado livro eletrônico. Em ambos os casos concretos (problemas), trata-se de

interpretar a Constituição Federal para se determinar qual o alcance da norma

jurídica imunizante e a interpretação parte do problema (tinta de impressão e livro

eletrônico), para ir ao sistema do direito positivo. Como afirmado, não se examina

a Constituição Federal, em abstrato, para se decidir, em tese, qual seria o alcance

ou o limite da norma imunizatória; note-se que a questão permanece aberta,

continua com seu caráter problemático, pois amanhã poderá surgir a necessidade

de se determinar (questão de decidibilidade) se a imunidade contempla também,

por exemplo, as peças da máquina impressora, no primeiro caso, e ainda quem

sabe um novo tipo de livro que a tecnologia insopitável dos tempos modernos

possa vir a inventar, na segunda hipótese.

De modo especial nestes dois últimos exemplos, é interessante

observar a razoabilidade e a pertinência das duas possíveis soluções (estender

Page 73: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

ou limitar o alcance da norma constitucional imunizante); ambas cabem no

ordenamento jurídico e dele emanam, sem que se possa chamar a nenhuma

delas de teratológica, de forma que, sendo as duas razoáveis, pode-se optar

(interpretar e decidir) por aquela que se revela, aos olhos do julgador, naquele

caso concreto e naquele momento, como a mais razoável.

Podemos constatar, assim, que adotar o estilo tópico de pensar não

significa de modo algum pretender colocar o sistema jurídico em segundo plano –

e muito menos de desprezá-lo – pois a solução para o problema dele emana e,

como tal, é por ele autorizada.

10. Jurisprudência dos valores

Finalmente, a última etapa do nosso corte metodológico refere-se à

questão dos valores, sua relação com o Direito e a denominada jurisprudência

dos valores. O tema está intimamente ligado com o problema dos fins no mundo

jurídico. Ensina a respeito MIGUEL REALE que

“O fenômeno jurídico manifesta-se ou existe porque o homem se

propõe fins. Não é possível que se realize, por exemplo, um

contrato, sem que algo mova os homens à ação. Quem contrata é

impelido pela satisfação de um valor ou de um interesse, por um

objetivo a atingir, por um fim qualquer que constitui o ato, dando-lhe

vida e significado como razão de seu dever ser. (.....) Um fim outra

coisa não é senão um valor posto e reconhecido como motivo de

conduta. Quando reputamos algo valioso e nos orientamos em seu

sentido, o valioso apresenta-se como fim que determina como deve

ser o nosso comportamento”.48

48 Filosofia do direito, p. 544.

Page 74: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

Acreditamos poder perceber que o Direito, pelo menos na maior

parte das oportunidades, deseja criar algo que ainda não existe, mas que deve

existir, cabendo tal tarefa ao legislador que, por meio de textos legais, impulsiona

as condutas humanas para essa realidade que ele quer ver materializada. Por tal

razão, podemos entender que a norma jurídica é marcada por um relevante vetor,

que repousa na possibilidade de indução de condutas, vale dizer, a norma jurídica

não apenas regula a vida em sociedade, prescrevendo a prática de certos

comportamentos e a abstenção de outros, mas, quando assim o faz, induz,

impulsiona, direciona a vontade daqueles que estão submetidos aos seus

comandos prescritivos. Isso porque entendemos que a capacidade de a norma

jurídica induzir determinadas condutas é justamente o fator que lhe permite

buscar o fim objetivado pelo Direito, ou seja, é precisamente o direcionamento

das condutas que pode propiciar o alcance das finalidades do direito.

Partindo-se da premissa que não pode haver compreensão do

fenômeno jurídico sem considerar a idéia de fim no Direito, alcançamos a questão

da relação existente entre valor e fim, considerando-se a necessidade do jurista

ou cientista do Direito de considerar os fatos, tomar posição diante deles na vida

social, mas sempre levando-se em conta a natureza humana quando referida a

valores. É nesse sentido a lição de JOHANNES HESSEN ao afirmar que

“Como teremos ocasião de ver mais adiante, o sentido da vida

humana reside, precisamente, na realização dos valores. Dizendo

isto, porém, tocamos aqui com o dedo o significado, desta vez

prático, da Teoria dos valores, na sua relação directa com a vida.

Se, de facto, o sentido da vida se acha dependente dos valores a

que está referida, através da qual estes alcançam a sua

Page 75: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

objectivação, é evidente que a plena realização do sentido da nossa

existência dependerá também, em última análise, da concepção que

tivermos acerca dos valores”.49

Em outras palavras, a conduta humana materializa-se em função de

valores; o ser humano adota seu comportamento por meio da atenção a certos

valores, assumindo posição sobre eles, quer positiva, quer negativamente, 50

funcionando o valor como uma entidade vetorial, porque aponta para um sentido

e, por tal razão, porque possui um sentido e volta-se para ele, é que se revela em

determinada conduta.51

A definição de valor é questão por demais complexa. Afirma

MIGUEL REALE a impossibilidade de defini-lo segundo as regras de gênero

próximo e de diferença específica, e ainda salienta que do valor pode-se dizer que

ele vale, seu ser é o valer, de modo que vemos as coisas como elas são ou pelo

que elas valem e, porque valem, devem ser.52

Seja como for, uma das características do valor é a bipolaridade,

pois a um valor contrapõe-se um desvalor, ao bom o mau, ao belo o feio, ao

nobre o vil, sendo certo que a vida humana é permeada de valores, exigindo do

homem uma tomada de posição sobre eles na vida em sociedade. Daí porque

aponta MIGUEL REALE que “Toda sociedade obedece a uma tábua de valores,

de maneira que a fisionomia de uma época depende da forma como seus valores

se distribuem ou se ordenam. É aqui que encontramos outra característica do

49 Filosofia dos valores, p. 33. 50 Cf. Margarida Maria Lacombe Camargo, Hermenêutica e argumentação: uma contribuição ao estudo do direito, p. 122. 51 Cf. Miguel Reale, Filosofia do direito, p. 190. 52 Cf. Miguel Reale, Filosofia do direito, p. 187/188.

Page 76: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

valor: sua possibilidade de ordenação ou graduação preferencial ou hierárquica,

embora seja, como já foi exposto, incomensurável”.53

Por isso afirmamos que o direito regula a vida em sociedade, por

meio do regramento das condutas humanas intersubjetivas, mas não somente

pela necessidade de solução de conflitos sociais, mas direcionando os

comportamentos para certos fins, em função da realização de certos valores ou,

no dizer de PAULO DE BARROS CARVALHO, “disciplinando os comportamentos

interpessoais com seus três (e somente três – lei do quarto excluído) operadores

deônticos (obrigatório, proibido e permitido), orientando as condutas em direção

aos valores que a sociedade quer ver implantados”.54 Daí porque os valores caros

a determinada sociedade, em certo tempo e lugar, estão presentes no

ordenamento jurídico, pertencem ao mundo do dever ser. É novamente MIGUEL

REALE que salienta: “O direito tutela determinados valores, que reputa positivos,

e impede determinados atos, considerados negativos de valores: até certo ponto,

poder-se-ia dizer que o direito existe porque há possibilidade de serem violados

os valores que a sociedade reconhece como essenciais à convivência”.55

Cabe notar que a consideração dos valores como entidades vetoriais

dá-se em dois momentos e planos distintos e com relação a dois sujeitos, quais

sejam, o legislador e o intérprete-aplicador da norma jurídica.

O legislador porque, ao elaborar o texto legal, efetua cortes na

realidade social, seleciona pessoas, atos, fatos, bens que deseja regular, efetua

discriminações e traz tais elementos para o mundo jurídico, mas sempre com 53 Filosofia do direito, p. 191. 54 IPI – Comentários sobre as regras gerais de interpretação da tabela NBM/SH (TIPI/TAB), In: Revista Dialética de Direito Tributário, vol. 12, p. 45. 55 Filosofia do direito, p. 189.

Page 77: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

base nos valores que deseja prestigiar. Aponta PAULO DE BARROS CARVALHO

que “o legislador absorve as matérias novas, fazendo-as ingressar pela porta

aberta das hipóteses normativas (Lourival Vilanova). Eis o fato meramente social

adquirindo a dimensão de fato jurídico”.56

Essa circunstância havia sido afirmada com precisão por KARL

LARENZ, para quem

“O legislador que estatui uma norma, ou, mais precisamente, que

intenta regular um determinado sector da vida por meio de normas,

deixa-se nesse plano guiar por certas intenções de regulação e por

considerações de justiça ou de oportunidade, às quais subjazem em

última instância determinadas valorações. Estas valorações

manifestam-se no facto de que a lei confere protecção absoluta a

certos bens, deixa outros sem protecção ou protege-os em menor

escala; de que quando existe conflito entre os interesses envolvidos

na relação da vida a regular faz prevalecer um em detrimento de

outro ... (...) Nestes termos, ‘compreender’ uma norma jurídica

requer o desvendar da valoração nela imposta e o seu alcance. A

sua aplicação requer o valorar do caso a julgar em conformidade a

ela, ou, dito de outro modo, acolher de modo adequado a valoração

contida na norma ao julgar o ‘caso’”.57

Com relação ao outro sujeito, o intérprete-aplicador da norma,

porque, ao debruçar-se sobre o texto legal em atividade interpretativa, há de

construir a norma jurídica, atribuindo-lhe sentido e alcance, com o devido prestígio

aos valores por ela hospedados e mesmo com a ponderação dos diversos valores

56 IPI – Comentários sobre as regras gerais de interpretação da tabela NBM/SH (TIPI/TAB), In: Revista Dialética de Direito Tributário, vol. 12, p. 45. 57 Metodologia da ciência do direito, p. 297/298.

Page 78: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

envolvidos – todos presentes no ordenamento jurídico – diante de cada caso

concreto. Consoante acentua RICARDO LOBO TORRES, “A interpretação

jurídica está inteiramente vinculada aos valores e aos princípios gerais do Direito

e, ao mesmo tempo, é um dos caminhos para a concretização desses valores”.58

Desse modo, a decisão que venha a legitimar um determinado

interesse, individual ou de grupo, em detrimento de outro ou de outros, passa

necessariamente pela consideração dos valores envolvidos; por um processo de

valoração ou de ponderação, o que nos remete à questão de se saber se o

prestígio a um determinado valor – em ato de opção, em ato de vontade do

intérprete-aplicador – pode ou não ser objeto de uma fundamentação racional,

pergunta que se nos apresenta como inafastável, uma vez que envolve o

relevante problema dos mecanismos de controle das decisões, tema ao qual

retornaremos no decorrer do presente estudo.

Para o tema que nos interessa mais de perto, ou seja, o exercício da

competência tributária e os conceitos constitucionais como limites postos a essa

atividade estatal, a importância da jurisprudência dos valores é evidente, dado

que a Constituição Federal está permeada de valores, ora atrelados à justiça

(também ela um valor) como capacidade contributiva, solidariedade social e

igualdade, ora ligados à segurança jurídica (novamente um valor) como

legalidade e tipicidade.

No dizer de MIGUEL REALE, se “Explicar é descobrir na realidade

aquilo que na realidade mesma se contém” e se “Compreender não é ver as

coisas segundo nexos causais, mas é ver as coisas na integridade de seus

58 Normas de interpretação e integração do direito tributário, p. 341.

Page 79: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

sentidos ou de seus fins, segundo conexões vivenciadas valorativamente”, 59

parece-nos correto considerar que a compreensão do Direito e sua interpretação

passam necessariamente pela consideração dos valores que lhe informam, daí a

relevância da denominada jurisprudência dos valores.

59 Apud Margarida Maria Lacombe Camargo, Hermenêutica e argumentação: uma contribuição ao estudo do direito, p. 121.

Page 80: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

CAPÍTULO 2

SISTEMA TRIBUTÁRIO NACIONAL E CONCEITOS CONSTITUCIONAIS

1. Constituição rígida e Constituição Federal brasileira

As denominadas constituições rígidas parecem encontrar sua idéia

inicial nas constituições escritas em corpo textual único, criadoras da estrutura de

Estado e limitativas de poderes e competências. Relacionam-se com o chamado

Estado de Direito, a partir do qual passa-se a conceber que não somente o povo

mas também o Estado deve submissão à Lei Máxima.

Essa concepção, “da qual resulta a diferenciação entre lei ordinária e

constitucional, implica na consideração da superioridade desta sobre aquela.

Nascem, assim, as constituições rígidas, isto é, constituições escritas em um

corpo único, determinando a competência dos vários ramos do governo e,

Page 81: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

portanto, limitando os poderes de cada um”, consoante a lição de OSWALDO

ARANHA BANDEIRA DE MELLO.60

Embora não se possa desejar que a Constituição seja imutável, uma

vez que, na qualidade de documento normativo máximo de um Estado, deve

necessariamente acompanhar as mudanças sociais e políticas da comunidade

que regula, reconhece-se a propriedade da distinção entre a lei constitucional e os

demais diplomas legislativos. Essa distinção acarreta a concepção de que as

alterações do Texto Constitucional somente devam ser implementadas por um

processo legislativo mais solene e mais complexo, com a exigência de

atendimento a certos requisitos especiais, previstos pela própria Constituição.

Como já apontava o administrativista pátrio, “no sistema das

Constituições rígidas, a Constituição é a autoridade mais alta, e derivante de um

poder superior à legislatura, o qual é o único poder competente para alterá-Ia. O

poder legislativo, como os outros poderes, lhe são subalternos, tendo as suas

fronteiras demarcadas por ele, e, por isso, não podem agir senão dentro destas

normas”.61

A Constituição rígida, sobre restringir a ação do povo e do governo,

restringe a si própria e limita também a ação dos representantes do povo, que não

podem alterar suas disposições sem atender a pressupostos especiais, inclusive

os que tocam à exigência de maioria de representantes no Parlamento. É bem

verdade que o povo, que legitima seus representantes, pode estabelecer a estes

as regras que bem entender, inclusive aquelas relativas ao respeito que devem

60 A teoria das constituições rígidas, p. 39. 61 A teoria das constituições rígidas, p. 48.

Page 82: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

ter, no exercício do poder que Ihes foi concedido, pelas normas superiores

constante da Constituição. Neste sentido, a rigidez da Lei Maior revela-se de

elevada importância para a manutenção de instituições fundamentais, de modo

que o poder legislativo recebe competência nos estreitos limites das regras

constitucionais e não pode alterá-Ias a seu bel prazer. Este é o ensinamento de

PONTES DE MIRANDA, ao afirmar que “O povo procede à repartição das

competências; os princípios que o inspiram não o obrigam a conceber o poder

legislativo ordinário como poder constituinte. Pelo contrário: se o poder legislativo

é um dos poderes, se da Constituição provém a competência de cada um deles,

óbvio é que se superponha aos poderes constituídos o poder que os constituiu”.62

JOSÉ AFONSO DA SILVA acentua que “A rigidez constitucional

decorre da maior dificuldade para sua modificação do que para a alteração das

demais normas jurídicas da ordenação estatal. Da rigidez emana, como primordial

conseqüência, o princípio da supremacia da constituição que, no dizer de Pinto

Ferreira, ‘é reputado como uma pedra angular, em que assenta o edifício do

moderno direito político'. Significa que a constituição se coloca no vértice do

sistema jurídico do país, a que confere validade, e que todos os poderes estatais

são legítimos na medida em que ela os reconheça e na proporção por ela

distribuídos”.63

No que concerne à Constituição Federal brasileira, não há dúvida de

que se reveste de natureza rígida, a ela aplicando-se o que afirmamos até aqui,

como bem o demonstra seu artigo 60, incisos I, II e III, quanto aos requisitos de

proposta de emenda constitucional e, em especial, o parágrafo 2°, ao determinar 62 Apud Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, A teoria das constituições rígidas, p. 68. 63 Curso de direito constitucional positivo, p. 47.

Page 83: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

que a proposta de emenda será discutida e votada em cada Casa do Congresso

Nacional, em dois turnos. Considerar-se-á aprovada se obtiver, em ambos, três

quintos dos votos dos respetivos membros, podendo-se notar, portanto, pela só

análise do dispositivo, a exigência de processo legislativo e quorum especiais

para promover alteração na Constituição.

Sem prejuízo disso, cabe notar que nem seria necessário alcançar o

texto do referido artigo 60 para se constatar a rigidez constitucional, pois o próprio

artigo 1° da Constituição já fornece sinais desta sua característica, ao estabelecer

que a República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel dos

Estados e Municípios e do Distrito Federal, constituindo-se em Estado

Democrático de Direito.

Com efeito, o sistema constitucional brasileiro é erigido sobre dois

princípios fundamentais que, pela sua relevância, irradiam-se por todas as

normas do ordenamento e informam seus comandos, quais sejam, o republicano

e o federativo, de modo que todo o quadro de regras e princípios consagrados

pelo sistema constitucional, quer quanto aos preceitos gerais, quer quanto aos de

caráter mais específico, tem nos princípios republicano e federativo o fundamento

maior de suas manifestações.

Nesse sentido, o mestre GERALDO ATALIBA, em suas lições

sempre presentes, ensina que

“No que respeita porém, a esses dois princípios, pode-se dizer que

nossa Constituição é 'rigidíssima'. Não há possibilidade de ser ela

alterada quanto a essas matérias, nem mesmo por meio de

emendas. Nesse ponto ela é inalterável. Não pode o órgão de

Page 84: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

reforma, o Congresso Nacional, sequer discutir qualquer projeto

tendente (que abrigue tendências; que leve; que conduza; que

encaminhe; que facilite; que possibilite, mesmo indiretamente) à

abolição dos dois princípios, reputados tão importantes, tão

fundamentais, tão decisivos, que tiveram um tratamento sacro,

proteção absoluta, erigidos que foram em tabus jurídicos”.64

Aponta ainda o mestre que a Constituição Federal brasileira

encontra seu lugar classificatório dentre as rígidas porque qualquer pretensão de

alteração em seu texto somente pode ser aprovada mediante um processo

especial e qualificado, previsto pela própria Constituição. Salienta, também,

fazendo menção aos princípios republicano e federativo, que, relativamente a

eles, tudo o mais é secundário; revelam-se eternos juridicamente e somente

podem ser alterados ou reduzidos por meio revolucionário, com quebra da ordem

jurídica, portanto; cabe apenas ao poder constituinte originário sua minimização

ou mesmo abolição.65

2. Discriminação constitucional da competência tributária

O sistema federativo contemplado pela Constituição Federal é

formado por três pessoas políticas: União, Estados e Municípios, dotados de

independência política e financeira. Implica tal característica a imediata e

conseqüente atribuição de direitos e deveres a essas três esferas de poder, ou

seja, a atribuição de competências próprias.66

64 República e constituição, p. 38. 65 República e constituição, p. 38. 66 Apenas para dar maior fluidez na redação e leitura, deixaremos de fazer menção, quando nos referirmos às pessoas jurídicas de direito público interno, ao ente Distrito Federal.

Page 85: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

Eentre esses direitos e deveres, um dos aspectos de maior

relevância é a atribuição de renda própria, de recursos monetários específicos à

União Federal, aos Estados e aos Municípios pois, diante da atribuição de

competências e encargos, revela-se absolutamente necessária a garantia às três

pessoas políticas de uma fonte de renda suficiente para a assunção dos encargos

respectivamente conferidos. Como mencionamos em outra oportunidade, isso

decorre da mais singela lógica, pois de nada adiantaria transferir às entidades

políticas constituintes da Federação uma gama de obrigações, sem a

transferência da correspondente receita imprescindível para fazer frente a elas e,

ademais, os entes federativos possuem autonomia política e parece-nos difícil

conceber autonomia política que não se faça acompanhar da correspondente

autonomia financeira.67

Como é cediço, a principal fonte de renda dos entes federativos,

aquela que Ihes permite assumir os encargos que Ihes são próprios, não é outra

senão a arrecadação tributária, a percepção de recursos financeiros provenientes

da instituição e da cobrança de tributos.

Nesse sentido, a lição de GERALDO ATALIBA é a seguinte:

“Coerente, portanto, em matéria tributária, que também não crie a Constituição

qualquer tributo; efetivamente, ‘... da norma constitucional que regula a

competência decorre uma potencialidade, uma virtualidade – a possibilidade

mesma de criação do tributo, por lei, de determinada unidade federada’. O nosso

diploma constitucional, embora minucioso, extenso, abrangedor e quase

exaustivo, simplesmente limitou-se a conferir competências legislativas, para que 67 Cf. Reinaldo Pizolio, Considerações acerca da lei complementar em matéria tributária, In: Cadernos de direito tributário e finanças públicas, vol. 14, p. 176.

Page 86: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

o Congresso Nacional, ou as Assembléias Legislativas dos Estados ou Câmaras

Municipais criem os diversos tributos”.68

Por força de tais características, tem-se atualmente, em matéria

tributária, um sistema constitucional rigidamente assentado, caracterizado pela

existência de fatias de competências impositivas, de tal sorte que a União, os

Estados e os Municípios têm, cada um, uma parcela do poder de tributar, que

confere parâmetros ao exercício desta competência tributária, para se evitarem

conflitos na atuação de cada ente federativo.69

Essa partilha da competência impositiva entre os entes tributantes

significa ela mesma – por si só – uma evidente limitação constitucional ao poder

de tributar pois, ao estabelecer o Texto Constitucional que determinada pessoa

política tem competência para tributar tal ou qual fato econômico, esta disposição

normativa tem evidentemente duplo sentido. Por um lado, um sentido positivo,

porque dispõe categoricamente que aquele determinado ente tributante tem

competência para instituir certo tributo e, por outro lado, um sentido negativo, já

que tal disposição implica a impossibilidade de outro ente vir a alcançar aquele

mesmo fato econômico por meio da criação de outro tributo.

A questão do sistema federativo e da repartição da competência

tributária apresenta relação com o assunto que tratamos no item anterior, relativo

à rigidez do sistema constitucional brasileiro, pois esta rigidez, como não poderia

68 Sistema constitucional tributário, p. 120. 69 Este é o ensinamento de José Artur Lima Gonçalves, ao acentuar “que a Constituição toma o espectro total das possibilidades de criação de tributos e o reparte em três compartimentos estanques e inconfundíveis, segundo critérios material e territorial, outorgando-os à União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Assim, cada uma das pessoas políticas recebe competência impositiva, podendo dela utilizar-se ou não, sem interferência das demais pessoas políticas” (Imposto sobre a renda: pressupostos constitucionais, p. 89).

Page 87: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

deixar de ser, deixa marcas no subsistema constitucional tributário; vale dizer, a

noticiada rigidez da Constituição Federal irradia-se sobre o Capítulo do Sistema

Tributário Nacional, moldando-lhe a feição normativa e servindo de valioso

elemento de auxílio em sua intelecção.

JOSÉ ARTUR LIMA GONÇALVES ensina que “Essa repartição

constitucional de competências impositivas é rígida e exaustiva, outorgando a

cada pessoa política amplos poderes legislativos nos seus respectivos

compartimentos. Não pode haver distorção, alteração ou diminuição desses

compartimentos por meio de norma infraconstitucional, pois afetados estariam os

princípios da Federação e da autonomia municipal, estabelecidos na própria

Constituição”.70

O principal critério utilizado na discriminação da competência

tributária é o material, aquele relativo à materialidade constante da hipótese de

incidência dos tributos previstos constitucionalmente, cuja instituição efetiva cabe

a cada pessoa política tributante, ou, nas palavras de MARCO AURELIO GRECO,

a Constituição “Especifica as materialidades a partir das quais poderão ser

instituídas exações compulsórias, tendo por objeto o pagamento de valores

pecuniários. Ou seja, define o universo de hipóteses que poderão ser

contempladas, o que implica circunscrever a aptidão de o Poder Público instituir

tais exigências” e “Exerce a relevante função de atribuir, a cada pessoa política,

uma fração deste universo possível de incidências”.71

70 Imposto sobre a renda: pressupostos constitucionais, p. 90/91. 71 Contribuições: uma figura “sui generis”, p. 228.

Page 88: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

JOSÉ ARTUR LIMA GONÇALVES também fornece um panorama

amplo do quadro da discriminação de competência tributária e ensina que

“Em matéria de impostos, todas as competências tributárias

impositivas estão expressamente previstas no texto constitucional.

Algumas delas perfeitamente identificadas por meio da menção das

materialidades das respectivas hipóteses de incidência, como, por

exemplo, nos arts. 153, 155 e 156 da Constituição. As demais

encontram-se albergadas pela chamada competência residual, a que

faz menção o art. 154, I, da Constituição, e que foi outorgada à

União. (...) No que se refere aos tributos vinculados, e por eles terem

sempre a materialidade da hipótese de incidência relacionada a uma

atuação pública, o critério material atua da seguinte maneira: é

competente para adotar como materialidade da hipótese de

incidência de tributos vinculados a pessoa política competente para

o exercício da atuação estatal a que se refere tal materialidade.

Assim, quem é titular da competência para prestação de

determinado serviço público, para exercício de certa parcela de

atividade de polícia, ou quem realiza determinada obra pública, é

competente para descrever legislativamente a hipótese de incidência

do tributo vinculado respectivo”.72

A forma minuciosa – tendente à exaustividade – com que a Carta

Magna de 1988 disciplina o Sistema Tributário Nacional, com inúmeros princípios

e regras e tratamento normativo detalhado, oferece rigidez à matéria tributária

constitucional, de sorte que resta pouca – mas ainda assim existente, como

veremos em seguida – margem de liberdade ao legislador ordinário na tarefa de

criar tributos. Com efeito, a rigidez constitucional, o princípio da separação dos

poderes, a repartição da competência tributária, o critério da materialidade e o

72 Imposto sobre a renda: pressupostos constitucionais, p. 90.

Page 89: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

princípio da legalidade revelam-se inflexíveis vetores que orientam o

comportamento do legislador ordinário de cada ente tributante no desenvolver de

sua atividade legiferante de instituir exações compulsórias.73

Deste modo, no momento em que o legislador ordinário da União,

dos Estados e dos Municípios pretende criar a lei, cujo objeto seja a instituição de

tributo, deve obrigatoriamente voltar os olhos para a Constituição Federal,

interpretando-a sistematicamente e conjugando seus diversos princípios e regras,

em especial aqueles atinentes à matéria tributária, para ali verificar qual a

margem de liberdade que possui no desenvolvimento de tal tarefa, sob pena de

constatar, em momento seguinte, o produto de seu trabalho irremediavelmente

eivado do vício de inconstitucionalidade.

Neste ponto devemos voltar-nos para um aspecto de nosso

raciocínio que consideramos relevante. Embora reconheçamos, por um lado, e

não poderíamos mesmo deixar de reconhecer diante do tratamento normativo

dado pela Constituição Federal ao Sistema Tributário Nacional, que a

possibilidade de inovação em matéria tributária do legislador ordinário é muito

pequena, parece-nos, por outro, que nem por isso tal possibilidade deixe de

existir, uma vez que encontra fundamento de validade no ordenamento jurídico.

Com a devida vênia da parcela da doutrina pátria que hospeda entendimento

oposto, encontramos alguma dificuldade em acompanhar a tese segundo a qual,

diante das disposições constitucionais, todo o sistema tributário pátrio, em sua

73 Com relação a este aspecto, afirma Humberto Bergmann Ávila “A rigidez específica das normas tributárias é também direta e indiretamente instituída: algumas são denominadas ‘garantias’ (art. 150: legalidade, igualdade, irretroatividade, anterioridade, proibição de tributo com efeito de confisco, imunidade); outras normas mantêm relação com os princípios fundamentais (princípio federativo, democrático e da separação dos Poderes) ou com os direitos e garantias individuais cuja modificação é vedada” (Sistema constitucional tributário, p. 110).

Page 90: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

integralidade, possa dali ser extraído, nada restando aos diplomas legais

infraconstitucionais. Pelo próprio fato de a Constituição Federal não criar tributos,

pois tal tarefa pertence ao legislador ordinário, não nos parece razoável supor que

o sistema tributário pudesse ser eficazmente implementado e desenvolvido sem

que se atribuísse ao referido legislador alguma dose de liberdade em seu agir

legiferante.

Dir-se-á – e isto é bem verdade – que as normas jurídicas fundantes

e fundamentais do processo de criação de tributos encontram-se insculpidas na

Carta da República e que, por estarem neste plano normativo superior,

constituem limites, formais e materiais, intransponíveis ao exercício da

competência tributária cabente a cada pessoa política. Se a rigidez do sistema

constitucional tributário fosse levado às últimas conseqüências, ele se revelaria a

tal ponto cristalizado, que viria a impedir o próprio exercício daquela competência

e a inviabilizar, no plano concreto, a materialização efetiva dos desígnios

constitucionais.

Isso porque, como salienta GERALDO ATALIBA ao referir-se aos

entes tributantes, “Não recebem – nem Ihes foram outorgados – impostos ou

entidades tributárias prontas e acabadas. Ao contrário, por ser a Constituição

mera carta repartidora de competências e definidora de princípios de atuação,

receberam as pessoas políticas competência para a instituição de impostos,

dentro de determinados limites, expressa ou implicitamente fixados no próprio

texto constitucional”.74

74 Sistema constitucional tributário, p. 110.

Page 91: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

Dentro dos limites fixados expressa ou implicitamente pela Carta da

República, no intervalo compreendido entre o limite mínimo (outorga de

competência) e o limite máximo (violação da Constituição), é que se pode

encontrar o campo válido de atuação do legislador das pessoas políticas

detentoras da competência tributária. Isso significa reconhecer que há uma certa

margem de liberdade para o legislador na instituição das espécies tributárias,

cabendo-lhe dispor, com algum grau de detalhamento, sobre as características

específicas da figura exacional que pretende criar juridicamente pelo veículo

próprio para tanto – que é a lei e somente ela. Assim, como veremos em seguida

com maior vagar, no preenchimento do conteúdo significativo dos conceitos

constitucionais relativos às materialidades das hipóteses de incidência previstas

constitucionalmente, pensamos que o legislador pode atuar com alguma licença,

sem a qual o exercício da competência tributária seria frustrado.

Como afirmamos reiteradas vezes, a Constituição Federal é rígida e

ninguém em sã consciência pode duvidar (em virtude dessa supremacia

normativa) que, por evidente, o legislador ordinário não pode sequer pretender

desobedecer a ela ou desprezá-Ia, interpretando-a ao sabor de seus interesses

imediatos e meramente arrecadatórios. Entretanto, segundo pensamos, isso não

pode significar que o legislador não tenha certa margem de liberdade na efetiva

regulamentação dos dispositivos constitucionais, sob pena de engessamento

excessivo do sistema e de transformação da Constituição Federal, a despeito de

ser o documento normativo mais relevante da República, em algo que não

acompanha a realidade de seu tempo, no tempo em que a realidade reclama.

Significa, por outro lado, que a aludida margem de liberdade do legislador vai até

Page 92: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

certo ponto e tal ponto é facilmente identificável: é aquele em que a rigidez e a

integridade da Constituição é ofendida, com o perdão da obviedade.

Falar em algum grau de liberdade do legislador ordinário, na

elaboração da lei tributária, não nos parece afrontar a supremacia normativa da

Constituição; antes enaltece-a, desde que tal afirmação seja tomada nos limites

em que a expusemos. Não se pretende assim, em nenhum momento,

desconsiderar a rigidez da Constituição Federal e a exaustividade do Sistema

Tributário Nacional; exatamente ao invés, o desafio consiste em identificar qual a

amplitude da licença que possui o legislador ordinário na criação do tributo ou, em

outros termos, o quê e como pode fazer para exercer a competência tributária,

atendendo aos interesses das pessoas políticas, com o inafastável e incondicional

respeito ao Texto Constitucional.

3. Sistema Tributário Nacional e dupla função

Apontando para a análise do sistema jurídico, JOSÉ ARTUR LIMA

GONÇALVES ensina que “Sistema é um conjunto harmônico, ordenado e unitário

de elementos reunidos em torno de um conceito fundamental ou aglutinante. Esse

conceito aglutinante serve de critério unificador, na linguagem de Geraldo Ataliba,

atraindo e harmonizando, em um só sistema, os vários elementos de que se

compõe”.75

Em trabalho mais recente, e já agora tratando diretamente da idéia

de sistema jurídico, o professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

75 Isonomia na norma tributária, p. 14.

Page 93: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

salienta que “Não é possível proceder à análise de questão jurídica sem

considerar a circunstância de que o ordenamento jurídico é composto por normas

jurídicas, cuja organização em sistema é efetuada pelo jurista, visando a sua

compreensão global, a partir de sua coerência interna de sentido. A noção de

sistema admite várias acepções, adotando-se aqui a de que ele é conjunto

harmônico de elementos organizados a partir de um critério unificador. Os

sistemas possuem um repertório, composto pelos elementos que o integram, e

uma estrutura, representada pela peculiar forma de organização e relacionamento

de seus elementos. No sistema jurídico, o repertório é composto pelas normas

jurídicas válidas. As normas jurídicas são, por força da estrutura do sistema

jurídico, organizadas a partir de um critério de escalonamento hierárquico, donde

ser possível afirmar que as normas, consideradas em sistema, variam de

importância”.76

No sistema tributário constitucional ou, para utilizar o mesmo título

constante da Constituição Federal, no Sistema Tributário Nacional, pode-se

encontrar o conjunto de normas jurídicas – princípios e regras – cujo objeto é a

disciplina da atividade estatal de arrecadar recursos financeiros no seio da

sociedade, a título de tributo, para a consecução dos fins do Estado, fins estes,

aliás, também previstos na própria Constituição. Em última análise, trata o

Sistema Tributário Nacional do regime jurídico do exercício da competência

tributária.

Assim, no Sistema Tributário Nacional plasmado pela Constituição

Federal de 1988, podemos encontrar os mais relevantes parâmetros informadores

76 A imunidade tributária do livro, In: Imunidade tributária do livro eletrônico, p. 139.

Page 94: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

do fenômeno da tributação como os dispositivos gerais (capacidade contributiva e

função da lei complementar) por exemplo; as chamadas limitações ao poder de

tributar (legalidade, igualdade, anterioridade); a discriminação da competência

tributária de cada pessoa política e assim por diante. Como duas das principais

características do referido Sistema, JOSÉ ARTUR LIMA GONÇALVES aponta: a

rigidez, que serve de premissa interpretativa para a sua compreensão, e a

exaustividade, que consiste no fato de o Sistema conter todos os princípios e

regras que lhe dão feição, não havendo espaço para que a legislação

infraconstitucional venha a contribuir para a sua configuração.77

Essa conceituação inicial e colação de ensinamentos doutrinários

justificam-se para que possamos introduzir a idéia daquilo que ora denominamos

dupla função do Sistema Tributário Nacional. Ela somente pode ser concebida se

tivermos em mente o fato óbvio de que o aludido Sistema encontra-se encartado

na Constituição Federal, e isto obriga-nos, a fim de que possamos compreendê-

Io, a efetuar sua interpretação em estrita relação com os demais dispositivos da

Carta da República. Tal questão é apontada com propriedade por TERCIO

SAMPAIO FERRAZ JUNIOR nos seguintes moldes:

“Partimos do princípio hermenêutico da unidade da Constituição.

Este princípio nos obriga a vê-Ia como um articulado de sentido. Tal

articulado, na sua dimensão analítica, é dominado por uma lógica

interna que se projeta na forma de uma organização hierárquica. Ou

seja, uma Constituição, da mesma forma que o ordenamento jurídico

de modo geral, também conhece a estrutura da ordem escalonada,

não estando todas as suas normas postas horizontalmente uma ao

lado da outra mas, verticalmente, uma sobre outra. Concebê-Ia sem

77 Cf. Isonomia na norma tributária, p. 16.

Page 95: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

escalonamento é implodir aquele articulado, tornando-a destituída de

unidade. Perdendo-se a unidade, perde-se a dimensão da

segurança e da certeza, o que faria da Constituição um instrumento

de arbítrio”.78

Por isso, é fundamental compreender o Sistema Tributário Nacional

como um subsistema encartado na Constituição Federal, com as várias

exigências interpretativas daí advindas,79 e em sua dupla face: ostenta, de um

lado, os poderes do Estado, os instrumentos e as prerrogativas de que este se

pode valer na atividade de criação e arrecadação de tributos e, de outro, as

garantias e os dispositivos de proteção ao contribuinte contra tal poder estatal, daí

falarmos em dupla função.

3.1 Tributo como instrumento de transformação social

Afirmamos no item anterior que a Constituição atribui às pessoas

políticas componentes da Federação determinadas competências e certos

encargos (prerrogativas e obrigações). Encontram-se, entre eles, os objetivos

fundamentais que o Estado brasileiro busca atingir, daí decorrendo a necessidade

de dotá-Ias de recursos financeiros para tanto. Levando-se em conta que a

tributação é, por excelência, o instrumento utilizado pela economia capitalista para

sobreviver e, sem ela, o Estado não poderia realizar os seus fins sociais, HUGO

78 Interpretação e estudos da Constituição de 1988, p. 59/60. 79 Humberto Bergmann Ávila acentua que “Apesar de esse ordenamento constitucional formulado especificamente para um âmbito material (VOGEL: ‘sachbereichsspezifisch formulierte Steuerrechtsordnung’) ser qualificado pela extensão e intensidade com que trata a relação tributária, ele é caracterizado pela sua abertura. Aberto não apenas no sentido de um sistema capaz de desenvolvimento, como o são os sistemas vertidos em linguagem, mas no sentido de um sistema que expressamente reenvia a outras normas não expressamente previstas no Sistema Tributário Nacional, mas em outras partes da Constituição” (Sistema constitucional tributário, p. 107/108).

Page 96: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

DE BRITO MACHADO afirma que “Qualquer que seja a concepção de Estado que

se venha a adotar, é inegável que ele desenvolve atividade financeira. Para

alcançar seus objetivos, precisa de recursos financeiros e desenvolve atividade

para obter, gerir e aplicar tais recursos”.80 Este também é o ensinamento de

KLAUS TIPKE, para quem “EI Estado, fundado en Ia propriedad privada de los

medios de producción, está obligado a sostener principalmente mediante

impuestos Ias cargas financieras exigidas para el cumplimiento de sus funciones.

Sin impuestos y contribuyentes ‘no puede construirse ningún Estado’, ni el Estado

de Derecho ni, desde luego, el Estado Social”.81

Os objetivos do Estado brasileiro decorrem da concepção adotada

pela Constituição Federal, logo em seu artigo 1º, isto é, Estado Democrático de

Direito, o que implica passar da idéia de Estado de Direito ou Estado Liberal, em

que se postula uma intervenção estatal mínima e a liberdade como valor supremo

dos cidadãos, para a idéia de Estado Democrático ou Estado Social, em que o

interesse da coletividade e a solidariedade passam a ser os valores fundamentais.

Fazendo referência ao fato de que a Espanha é um Estado Social e Democrático

de Direito, condição prevista no artigo primeiro da Constituição Espanhola, JUAN

MANUEL BARQUERO ESTEVAN aponta que “Esa fórmula de Estado social y

democrático de Derecho, en fin, pese a su carácter controvertido, tiene un

indudable carácter de compromiso constitucional sobre Ia base de unos valores

básicos, siendo justamente esos valores (libertad, igualdad, justicia y participación

democrática en Ia formación del orden social y económico), entendidos en sentido

80 Curso de direito tributário, p. 21/22. 81 Moral tributaria del estado y de los contribuyentes, p. 27.

Page 97: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

material y no solamente formal, los que constituyen el contenido mínimo de esa

fórmula”82

O denominado Estado Democrático de Direito acolhe as duas

concepções, que não são contrapostas, por meio do prestígio a direitos e

garantias individuais e também pela proteção de direitos coletivos da sociedade,

de modo que atua não só limitando as investidas estatais contra a liberdade e o

patrimônio dos indivíduos, mas também efetivando medidas que busquem a

construção de uma sociedade pluralista, justa e solidária. Assim, a Constituição

que protege a propriedade (artigos 5º, inciso XXII, e 170, inciso II) é a mesma que

subordina a propriedade à sua função social (artigos 5º, inciso XXIII, e 170, inciso

III). Nesse sentido, MARCO AURELIO GRECO, apontando a diferença entre a

dita sociedade moderna e a anterior, afirma que temos hoje um Estado pluriclasse

e que tal circunstância “vai gerar a primeira diferença prática, qual seja, a de que

não temos mais interesses segregados. A realidade com a qual temos de

trabalhar é a realidade de intersecção de interesses”.83

Com efeito, a sociedade brasileira plasmada pelo Texto

Constitucional por óbvio não é a sociedade que temos, mas a sociedade que

desejamos ter, fruto da escolha e da decisão do povo, por meio de seus

representantes no Parlamento. Cabe ao Direito positivo buscar transformar a

realidade social atual, levando a modificar-se, com base nos valores

superiormente hospedados pela Carta Política, que fornece o sentido a ser

seguido pelos legisladores e nos remete à questão da função da norma jurídica,

entendendo MARCO AURELIO GRECO que ela passa a ser “um meio para o 82 La función del tributo en el estado social y democrático de derecho, p. 52. 83 Planejamento fiscal e interpretação da lei tributária, p. 17.

Page 98: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

atingimento de determinado fim de caráter social. Ou seja, com a norma se quer

alguma coisa por algum motivo, e para atingir algum resultado”.84

A Constituição Federal, entre outros objetivos, determina

expressamente que cabe ao Estado promover a seguridade social (artigos 194 e

195); a saúde (artigo 196); a assistência social, com proteção à família e à

infância (artigo 203, inciso I); a educação (artigo 205) e a cultura (artigo 215).

Revela-se por demais evidente que a própria Constituição deva garantir os meios

e os recursos financeiros imprescindíveis para a consecução de tais fins, o que

nos leva de volta à questão da concepção que se deve ter do tributo. Neste

sentido, altera-se tal concepção, por força da compreensão dos mandamentos

constitucionais, que deixa então de ser considerado mera manifestação de poder

estatal e agressão ao patrimônio dos particulares. Em primeiro lugar, porque a

atividade exacional é autorizada pela Constituição e, em segundo, porque o

tributo revela-se a fonte de recursos financeiros que pode possibilitar ao Estado a

consecução de seus fins, considerado que é, neste quadro normativo, como a

participação dos indivíduos no rateio dos encargos públicos.

Essa é a razão pela qual pensamos que podemos compreender o

Sistema Tributário Nacional, numa de suas funções, como agente de

transformação da realidade social, pois, para tal alteração da sociedade atual

84 Planejamento fiscal e interpretação da lei tributária, p. 21. No mesmo sentido, Juan Manuel

Barquero Estevan aponta que “El Estado y los poderes públicos en general aparecen en nuestra Constitución comprometidos en la consecución de un orden social más igualitario y más justo, y esto afecta de manera muy especial a su actividad financiera, a la Hacienda pública, que se convierte, en su doble dimensión – ingressos y gastos públicos –, en un instrumento fundamental para la consecución de esos objetivos, a través de la función redistributiva que en ese contexto le asigna indudablemente la Constitución” (La función del tributo en el estado social y democrático de derecho, p. 53/54).

Page 99: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

para aquela desejada pela Constituição, não há como desprezar a relevância da

arrecadação tributária.85

De certo modo, portanto, com toda a cautela que se deve ter em tal

afirmação, a dimensão da carga tributária corresponde ao perfil do Estado

brasileiro, tal como plasmado pela Constituição Federal de 1988. Isso

corresponde ao quanto afirma KLAUS TIPKE: “Afirmar que ‘Ios impuestos son el

precio de Ia libertad’ no constituye mera palabrería. Sigue siendo cierto el que

afirmara Robert Wagner, antiguo alcalde de Nueva York: ‘Ios impuestos son el

precio de Ia civilización. No existen en Ia selva’. Naturalmente con ello no se está

prejuzgando en qué medida puede limitarse Ia libertad mediante los impuestos”.86

Tal afirmação, entretanto, que pode dar margem a interpretações desavisadas,

obriga-nos, em homenagem à clareza, a efetuar uma ligeira digressão.

É certo que se pode pensar até que ponto tal entendimento merece

ser amparado – e o tributo considerado em tal acepção – porque pode ceder

espaço a arbitrariedades do poder público, com base em difundido argumento,

segundo o qual se o Poder Executivo não aplica os recursos provenientes da

arrecadação tributária da forma como é seu dever, pelas mais variadas razões, o

contribuinte estaria, de certo modo, autorizado a fugir da tributação, isto é, a

buscar a economia tributária por qualquer meio que estivesse a seu alcance. Tal

argumento é explicado por KLAUS TIPKE, ao tratar das denominadas “actitudes

85 Como acentua Juan Manuel Barquero Estevan, “EI Estado social y democrático de Derecho de nuestra Constitución supone, pues, una ampliación del ámbito funcional de ese Estado, en tres aspectos o direcciones fundamentales: en el de Ia asistencia social, en el de Ia intervención y tutela de Ia economía, y en el de Ia remodelación social. Y, como ha destacado Rodriguez Bereijo, Ia Hacienda pública está lIamada a ocupar un lugar crucial al servicio de esa función transformadora o de remodelación social” (La función del tributo en el estado social y democrático de derecho, p. 53). 86 Moral tributaria del estado y de los contribuyentes, p. 57.

Page 100: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

frente al deber de contribuir”, referindo-se a vários tipos de contribuintes, dentre

eles este: “EI chalanero o partidario de compensar también sabe que depende de

Ias prestaciones del Estado y de los municipios y que no puede construir por si

mismo carreteras, escuelas, hospitales, etc. Pero está convencido de que el

sector público es um grande derrochador y que ofrece unas prestaciones

mínimas, Io que autoriza al contribuyente a hacer Io mismo. Muchos

contribuyentes consideran que el impuesto só es justo si existe uma

contraprestación equivalente, y esto apenas sucederá, em especial si se trata de

grandes contribuyentes”.87

Este aspecto também é salientado por IVES GANDRA DA SILVA

MARTINS, que afirma: “O fato de que a imposição tributária representa

apropriação de bens dos cidadãos para duplo atendimento das necessidades

legítimas do Estado, enquanto representante do povo de uma nação, e aquelas

menos legítimas – ou sem nenhuma legitimidade – dos detentores do poder, traz

elemento de relevo indiscutível para a concepção de uma adequada teoria

tributária”. 88

Embora possamos concordar parcialmente com tais argumentos,

queremos acreditar que não podem ser levados às últimas conseqüências, dando

amparo à conduta daquele contribuinte apontado por KLAUS TIPKE, porque nos

parece que tal entendimento não pode ser aceito, sob pena de aceitarmos

também, singelamente, que um erro justifique o outro, como se diz comumente.

Assim como pensamos que a conduta do mau contribuinte não pode servir de

pretexto para medidas arbitrárias tomadas pelo Fisco, que acabam repercutindo 87 Moral tributaria del estado y de los contribuyentes, p. 113. 88 Comentários à Constituição do Brasil, vol. 6, tomo I, p. 6.

Page 101: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

também sobre o bom contribuinte, também entendemos que os desvios

praticados pelo Estado – que, sem dúvida, são muitos – não devem constituir

razão suficiente para que esqueça do papel desempenhado pelo tributo no Estado

Democrático de Direito.

Em outras palavras, as distorções ocorridas na sociedade,

provenientes de ambos os lados, não podem servir de parâmetro de interpretação

da Constituição Federal e do Sistema Tributário Nacional.

3.2 Princípios de proteção ao contribuinte

Aquilo que chamamos de segunda função do Sistema Tributário

Nacional consiste na proteção ao contribuinte. Se o tributo consiste na

participação dos cidadãos no rateio da despesa pública, nem por isso os fins

almejados pelo Estado podem justificar todos os meios. Prova disso é o fato de a

Constituição Federal ser rica em limitações ao poder de tributar e algumas delas

aparecerem sob a forma de princípios. No dizer de ROQUE ANTONIO

CARRAZZA, “princípio jurídico é um enunciado lógico, implícito ou explícito, que,

por sua grande generalidade, ocupa posição de preeminência nos vastos

quadrantes do Direito e, por isso mesmo, vincula, de modo inexorável, o

entendimento e a aplicação das normas jurídicas que com ele se conectam”.89

Com relação aos princípios constitucionais tributários e sua relação

com as denominadas limitações constitucionais ao poder de tributar, cabe notar o

entendimento de MARCO AURELIO GRECO, no seguinte sentido:

89 Curso de direito constitucional tributário, p. 33.

Page 102: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

“Mais do que uma simples distinção de taxionomia, existe uma

diferença substancial entre princípios e limitações. Ambos têm por

objeto o poder de tributar e ambos dispõem sobre o seu exercício.

Embora o objeto de ambos seja o mesmo (= poder de tributar)

dispõem sobre ele de modo diametralmente oposto. Os princípios

veiculam diretrizes positivas a serem atendidas no seu exercício,

indicando um caminho a ser seguido pelo legislador ou pelo

aplicador do Direito. Como diretrizes positivas, apontam algo

desejado pelo ordenamento e que o Constituinte quer ver alcançado.

As limitações (como seu próprio nome diz) têm função negativa,

condicionando o exercício do poder de tributar, e correspondem a

barreiras que não podem ser ultrapassadas pelo legislador

infraconstitucional; ou seja, apontam para algo que o constituinte

quer ver não-atingido ou protegido. Em suma, enquanto os princípios

indicam um caminho a seguir, as limitações nos dizem por onde não

seguir”.90 91

Seja como for, o que desejamos destacar é que o Sistema Tributário

Nacional, ao lado da outorga da competência tributária e de certos instrumentos

conferidos ao Estado para o seu exercício (como, por exemplo, o previsto na

última parte do parágrafo 1° do artigo 145), contempla também inúmeros

princípios ou regras de proteção ao contribuinte, como bem o demonstram a

legalidade, tipicidade, irretroatividade e tantos outros.

O tema dos princípios constitucionais tributários e de sua relevante

função na proteção do contribuinte é por demais explorado na doutrina pátria,

90 Planejamento fiscal e interpretação da lei tributária, p. 144. 91 Tal entendimento é também esposado por Humberto Bergmann Ávila: “Os princípios são normas imediatamente finalísticas. Estas estabelecem um estado ideal de coisas a ser buscado e, por isso, exigem a adoção de comportamentos cujos efeitos contribuam para a promoção gradual daquele fim” (Sistema constitucional tributário, p. 38).

Page 103: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

razão pela qual não pretendemos estender sua análise, cabendo apenas duas

últimas observações.

A primeira consistente na observação de JOSÉ ARTUR LIMA

GONÇALVES, que afirma que princípios como legalidade e tipicidade, que

desempenham o papel de limitadores da ação de tributar, encontram seu

fundamento, em última análise, no denominado princípio do consentimento.

Ensina o professor que

“Esse princípio – do consentimento – é aquele que exige que o

particular consinta (i) em concorrer para os gastos públicos e (ii) em

que medida o fará. E esse consentimento é expressado por

intermédio dos representantes do povo no Legislativo. Ao aprovar a

lei que institui ou majora o tributo, o parlamentar está expressando o

consentimento do eleitor em contribuir, nos termos da lei aprovada,

para o custeio dos gastos públicos”.92

E a segunda é que esta dupla função do Sistema Tributário Nacional

exsurge da análise conjugada e sistemática de dispositivos constitucionais, de

modo que a interpretação da lei tributária deve levar em conta os valores

protegidos pela Carta Constitucional, quais sejam, de um lado, dentre outros,

liberdade, propriedade, legalidade e tipicidade e, de outro, solidariedade,

capacidade contributiva e participação no rateio das despesas públicas.93

4. Conceitos e indeterminação dos conceitos

92 Imposto sobre a renda: pressupostos constitucionais, p. 86. 93 Cf. Marco Aurelio Greco, Planejamento fiscal e interpretação da lei tributária, p. 30.

Page 104: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

Não parece difícil aceitar que praticamente todas as palavras,

mesmo aquelas que aparentemente não ensejam dúvidas quanto ao seu

significado, podem, em oportunidades não raras, revelar-se ambíguas; das

palavras diz-se comumente que possuem textura aberta, que são equívocas ou

plurívocas; polissêmicas, que apresentam vagueza, indeterminação ou

ambigüidade.

Com efeito, a mesma palavra pode exprimir um certo sentido no

momento em que é utilizada e um outro no instante em que a mensagem é

recebida e interpretada; isto sem mencionar que o seu significado pode variar

dependendo das características do ouvinte ou do intérprete. Qual o significado

correto: o do tempo um ou do tempo dois? Do primeiro ou do segundo intérprete?

A Constituição Federal, por exemplo, ao utilizar determinada palavra

num de seus dispositivos; qual o significado dessa palavra: aquele da data em

que a Constituição foi promulgada; aquele em que ocorreu certo evento que a

palavra designa ou aquele em que o intérprete-aplicador do Texto Constitucional

irá proferir a decisão, aplicando a norma jurídica que contém a referida palavra?

Todas essas são questões de difícil resposta.

As palavras podem ser ainda atualizadas – e constantemente o são

– experimentando ao longo do tempo variações em seu significado, ou, se

preferirmos, alterações processadas no campo da linguagem nos níveis

semântico e pragmático. As palavras são funcionais, servem para dar nomes aos

objetos, designam coisas existentes no mundo, referem-se a fatos, atos,

situações, ocorrências, sensações; elas indicam o objeto a que se referem, ficam

no lugar dele, representam-no.

Page 105: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

Pela denominada liberdade de estipulação, determina-se um nome

para cada coisa, designa-se uma palavra para indicar ou representar um certo

objeto. Assim, por exemplo, o objeto que se utiliza para escrever não seria – em si

mesmo – um lápis; ele é um lápis porque estipulamos tal palavra para dele tratar,

escolhemos essa palavra para dar nome a esse objeto usado para escrever ou

desenhar, de forma que, uma vez feita tal estipulação, os membros de uma certa

sociedade ou de um grupo passam a corriqueiramente utilizar a palavra para fazer

referência àquele objeto e aquela passa a identificar-se com este.94

Há ainda a considerar a gama de possibilidades em que a palavra

pode ser utilizada, como bem o demonstra ALF ROSS, ao afirmar que há um

“campo de referência correspondente à palavra, que pode ser

comparado com um alvo. Em torno do centro, haverá uma

densidade de pontos, cada um dos quais marcando um impacto na

referência. Rumo à periferia a densidade decrescerá gradualmente.

A referência semântica da palavra tem, por assim dizer, uma zona

central sólida em que sua aplicação é predominante e certa, e um

nebuloso círculo exterior de incerteza, no qual sua aplicação é

menos usual e no qual se torna mais duvidoso saber se a palavra

pode ser aplicada ou não”.95

Tudo quanto afirmamos até aqui para as palavras vale também para

os conceitos que, na lição de EROS ROBERTO GRAU, “é produto da reflexão,

94 Paulo de Barros Carvalho afirma que “Quando aprendemos o nome de um objeto, não aprendemos algo acerca da coisa, senão sobre os costumes lingüisticos de certo grupo ou povo que fala o idioma em que este nome corresponde a este objeto. É corriqueiro afirmar-se que uma coisa tem nome, contudo é mais rigoroso dizer que nós é que temos um nome para essa coisa. Conclusão necessária: não há falar-se de nomes verdadeiros ou falsos. Há, tão somente, nomes aceitos ou não aceitos. E esta possibilidade de inventar nomes, por sua vez, também leva um nome: liberdade de estipulação (Guibourg)” (IPI – Comentários sobre as regras gerais de interpretação da tabela NBM/SH (TIPI/TAB), In: Revista Dialética de Direito Tributário, vol. 12, p. 43). 95 Direito e justiça, p. 141/142.

Page 106: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

entendida esta como uma suma de idéias (...) é a representação de uma idéia

universal que, quando intencionada, conduz à formulação de uma imagem, no

pensamento do intérprete”.96 Segundo NICOLA ABBAGNANO, conceito é “em

geral, todo processo que torne possível a descrição, a classificação e a previsão

dos objetos cognoscíveis. Assim entendido, esse termo tem significado

generalíssimo e pode incluir qualquer espécie de sinal ou procedimento

semântico, seja qual for o objeto a que se refere, abstrato ou concreto, próximo ou

distante, universal ou individual”.97

Com base nas palavras transcritas de NICOLA ABBAGNANO, de

que os conceitos indicam, apontam, descrevem, referem-se aos objetos

cognoscíveis, para aquilo que nos toca mais de perto – a questão dos conceitos e

as normas jurídicas, mais especificamente, as normas jurídicas constitucionais –

interessa-nos saber a qual o objeto o conceito utilizado na norma refere-se; qual a

parcela da realidade ele representa; qual campo delimitado do mundo fenomênico

ele indica. Enfim, cabe-nos averiguar qual o conteúdo do conceitos utilizados

pelas normas constitucionais ou, nas palavras de PAULO DE BARROS

CARVALHO, cumpre-nos saber quais os “limites de seu campo de irradiação

significativa”.98

Tal tarefa não se pode desvencilhar da tormentosa questão do grau

de indeterminação que os variados conceitos podem experimentar – e

96 Direito, conceitos e normas jurídicas, p. 62/63. 97 Dicionário de filosofia, p. 164. 98 IPI – Comentários sobre as regras gerais de interpretação da tabela NBM/SH (TIPI/TAB), In: Revista Dialética de Direito Tributário, vol. 12, p. 53.

Page 107: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

efetivamente experimentam – sobretudo no campo do Direito.99 Ao mencionarmos

o grau de indeterminação dos conceitos ou os termos indeterminados de conceito,

no dizer de EROS ROBERTO GRAU, referimo-nos à área de penumbra (ou zona

cinzenta) existente em todo conceito, delimitada, por um lado, pelo seu conteúdo

semântico mínimo (aquilo que o conceito evidentemente significa) e, de outro,

pelo seu conteúdo semântico máximo (aquilo que o conceito pode significar no

seu limite, e nada mais para além dele), cuja significação, portanto, não é dada

desde logo, não é exata: pode variar no caso concreto dentro do qual o conceito é

utilizado.

Em outros termos, interessa-nos saber qual conteúdo desses

conceitos utilizados pela norma jurídica que, indeterminados a princípio, são

determináveis em cada caso concreto pela interpretação, justamente no momento

da aplicação da norma.100 Em resumo, buscamos saber qual a dimensão da

parcela da realidade que cabe no conceito indeterminado utilizado pelo texto da

lei, especificamente, o da lei constitucional.

Cumpre-nos aqui fazer desde logo a ressalva que, ao falarmos em

conceitos indeterminados utilizados pela Constituição, conceitos jurídicos,

99 Eros Roberto Grau efetua crítica à expressão “conceitos indeterminados” nos seguintes termos: “Os administrativistas – sobretudo os administrativistas brasileiros – insistem e reinsistem em afirmar a existência de ‘conceitos indeterminados’. Em inúmeros textos afirmei ser isso de todo insustentável, dado que – assim argumentava eu – a indeterminação apontada em relação a eles não é dos conceitos (idéias universais), mas de suas expressões (termos). Daí minha insistência em aludir a termos indeterminados de conceitos, e não a conceitos indeterminados. Este ponto era e continua a ser, para mim, de importância extremada: não existem conceitos indeterminados. Se é indeterminado o conceito, não é conceito. O mínimo que se exige de uma suma de idéias, abstrata, para que seja um conceito é que seja determinada. Insisto: todo conceito é uma suma de idéias que, para ser conceito, tem de ser, no mínimo, determinada; o mínimo que se exige de um conceito é que seja determinado. Se o conceito não for, em si, uma suma determinada de idéias, não chega a ser conceito” (Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito, p. 211/212). 100 Ainda segundo Eros Roberto Grau, “Afirmar que as palavras e expressões jurídicas são, em regra ambíguas e imprecisas não quer porém dizer que não tenham elas significação determinável” (Direito, conceitos e normas jurídicas, p. 60).

Page 108: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

portanto, não estamos nos referindo aos conceitos jurídicos indeterminados

comumente assim designados pela doutrina e pela jurisprudência (presentes em

várias áreas do direito), como interesse público, função social, verossimilhança

das alegações, interesse do menor e outros tantos, por exemplo, nos quais os

termos são efetiva e propositadamente amplos, abertos, imprecisos. Em vez

disso, temos em mente termos outros, que aparentemente não seriam

indeterminados, mas que realmente o são, em virtude de a Constituição não

fornecer o seu significado, e pela possibilidade de o legislador ordinário trabalhar

o seu conteúdo por ocasião da regulamentação do dispositivo constitucional,

como ocorre na área do direito tributário, com os conceitos de renda, produtos

industrializados, serviços de qualquer natureza, lucro, receita, faturamento e

outros tantos, todos esses que experimentam diversas alterações de significado

no exercício da outorga constitucional da competência tributária.

A questão do conteúdo indeterminado desses conceitos surge

porque há quem defenda, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, que não

existem conceitos constitucionais, entendimento segundo o qual o legislador pode

livremente deles tratar no momento da edição da lei, como se nota, por exemplo,

na tese de que “renda, para fins de tributação, é aquilo que a lei disser que é”.

Não obstante, e com a devida vênia, procuraremos demonstrar que, embora

possuam algum grau de indeterminação, existem sim conceitos constitucionais,

por sérias e variadas razões.

Entretanto, registramos que, como não são expressos, como a Carta

Constitucional não fornece claramente o seu conteúdo, não se trata de descobrir

Page 109: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

o conceito, mas de construir em cada caso concreto, pela interpretação-aplicação

da norma, o conteúdo dos conceitos constitucionais.

5. Conceitos constitucionais como exigência lógica de conhecimento e

de aplicação da Constituição Federal

Se não existissem conceitos constitucionais, sobretudo para fins do

exercício da competência tributária, então seríamos obrigados a aceitar que o

legislador ordinário, na regulamentação do dispositivo constante da Carta Política,

poderia atribuir aos conceitos o conteúdo que desejasse, raciocínio que

encontramos grandes dificuldades para acompanhar.

Em primeiro lugar porque, como vimos, o fato incontestável de as

palavras, ou os conceitos, se revelarem imprecisos, vagos ou ambíguos não

significa – e não pode significar – que não tenham um sentido. O fato de o sentido

(ou da significação) não estar expresso na Constituição não significa que não

exista. Se não há um significado intrínseco a cada conceito, se tal significado

intrínseco não existe, há certamente, pelo menos, um mínimo de significado

consagrado pelo uso do conceito ou do termo; há indubitavelmente, um conteúdo

semântico mínimo.101 Desse modo, se a Constituição Federal utiliza o conceito, é

certo que o faz, quando menos, com seu conteúdo semântico mínimo, ou, em

outros termos, a tão-só utilização do conceito, a mera presença dele no texto da

Constituição implica a aceitação de seu mínimo teor de significação.

101 Humberto Ávila enfatiza que “Isso porque há traços de significados mínimos incorporados ao uso ordinário ou técnico da linguagem. Wittgenstein refere-se aos jogos de linguagem: há sentidos que preexistem ao processo particular de interpretação, na medida em que resultam de estereótipos de conteúdos já existentes na comunicação lingüistica em geral” (Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 24).

Page 110: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

Se não fosse assim, seríamos obrigados a aceitar que os conceitos,

as palavras usadas no Texto Constitucional para nada – absolutamente nada –

servem, uma vez que nada significam. Nesta trilha, também nos veríamos

forçados a concordar com a idéia de que o legislador constituinte ao empregar um

conceito – em operação de demarcação de uma parcela da realidade que deseja

regular normativamente – na verdade trabalhou em vão, operou inutilmente, pois

o conceito que utilizou nada significa, não se refere a realidade alguma.

Necessitará, pois, que o legislador ordinário, este assim dotado de razão e

raciocínio capazes, venha a dizer ao legislador constituinte aquilo que ele desejou

fazer ou pensava ter feito, subtraindo das trevas em que se encontrava o

legislador soberano. Com o devido respeito, encontramos sérias dificuldades para

compreender semelhante fenômeno.

Em segundo lugar, os conceitos são necessariamente

constitucionais – devem ser constitucionais – porque não nos parece possível

conceber a idéia de que caberia à lei dizer aquilo que a Constituição Federal é.

Estando a lei subordinada à Constituição, ou, sendo a Constituição mais

importante do que a Lei – e disto parece que ninguém duvida, pelo menos por

enquanto – não é possível que o veículo legislativo subordinado venha a

determinar o significado do veículo legislativo subordinante. Segundo enviesado

raciocínio, pouco adiantaria, por exemplo, o artigo 1º. da Constituição dispor que a

República Federativa do Brasil tem como fundamentos básicos a cidadania, os

valores sociais do trabalho e o pluralismo político porque, como não há conceitos

constitucionais, o legislador constituinte desconheceria os significados de

República, Federação, cidadania, trabalho e política, e ver-se-ia obrigado a

Page 111: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

aguardar que o legislador ordinário viesse a editar uma lei, verdadeiramente

elucidativa, para explicar qual o significado, qual o conteúdo semântico de tais

conceitos.

Também não passaria de acentuado diletantismo a discriminação de

competência tributária das pessoas políticas porque a Constituição Federal não

sabe o que é renda ou propriedade urbana, pois não há conceitos constitucionais

para tais termos. Necessitar-se-ia que a lei federal e municipal viesse a

determinar, da forma como desejasse, qual o significado de renda, de propriedade

e de urbano, podendo com isso inclusive delimitar qual a competência da outra

pessoa política, uma vez que ela – lei – determina o conteúdo destes conceitos,

podendo mesmo chamar de propriedade urbana a rural e de receita um dispêndio

de recursos financeiros. Se não há conceitos constitucionais, o que impediria tal

disposição legislativa ou, por outra, se a Constituição não serve como parâmetro,

pois nela não existem conceitos de envergadura superior, qual barreira poderia

ser colocada validamente à ação do legislador infraconstitucional?

Assim sendo, numa só afirmação, não se pode negar a existência

dos conceitos constitucionais pela singela razão de que não se pode interpretar a

Constituição Federal com base na lei.

Por isso é que afirmamos que os conceitos constitucionais – a

existência deles – constituem, no mínimo, uma exigência lógica do conhecimento

e da aplicação da Constituição Federal. Trata-se de um verdadeiro imperativo do

ato de conhecimento e do ato de interpretação, pois como poderíamos aplicar a

Constituição se não a conhecemos e como poderíamos conhecê-la senão por

meio do significado das palavras, dos conceitos por ela empregados? Como

Page 112: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

poderíamos adentrar o mundo jurídico constitucional, como conhecer a realidade

regulada normativamente pela Constituição Federal se os conceitos ali presentes

não têm conteúdo definido, ainda que minimamente, porque tal conteúdo somente

seria determinado pelo legislador ordinário?

O próprio legislador ordinário, como haveria de pautar seu

comportamento na elaboração da lei? Se o conceito não é constitucional, porque

ele, legislador, irá determinar seu conteúdo, como saber qual parcela da realidade

corresponde ao termo renda e qual parte da realidade é designada por receita,

para fazer incidir sobre a primeira um imposto e sobre a segunda uma

contribuição social? Poderia livremente, atento aos seus próprios interesses,

estabelecer os limites das duas coisas? Poderia fazer com que se

sobrepusessem parcialmente uma e outra? Poderia, então, tratar as duas como

se fossem apenas uma realidade? Parece-nos que as respostas são

necessariamente negativas.

Parece-nos que as normas jurídicas são veículos por excelência

discriminadores, porque selecionam parcelas da realidade que ficarão dentro da

norma (serão reguladas pela norma) e deixam outras partes fora da norma (não

serão alcançadas pela disciplina normativa). Ora, o legislador constituinte

somente poderia selecionar propriedades de determinados fatos, atos, estados e

situações valendo-se dos conceitos que os designam, daí porque tais conceitos

são evidentemente trazidos para o seio da Constituição Federal, sob pena de não

haver sentido possível nos dispositivos constitucionais – ou não se poder

Page 113: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

identificar o sentido – e os respectivos comandos normativos, de grau superior, se

revelarem inócuos de significação e frustrados quanto à sua aplicabilidade.102

Nota-se, portanto, que os conceitos são elementos descritivos da

realidade, referentes à realidade, daí sua relevante função de permitir que se a

conheça por meio deles, característica fundamental quando aplicada às normas

jurídicas que, por regularem o mundo fenomênico, não podem deles prescindir,

revelando-se verdadeiros pressupostos para o conhecimento e a aplicação dos

comandos normativos. Neste ponto, EROS ROBERTO GRAU aponta que

“os conceitos jurídicos têm por finalidade ensejar a aplicação de

normas jurídicas. Expressados, são signos de signos (significações)

cuja finalidade é a de possibilitar aquela aplicação. Prestam-se a

permitir (assegurar) a realização de certeza e segurança jurídicas.

Por isso existem – isto é, devem existir – ‘para nós’ e não apenas

‘para mim’”. Mais adiante, quanto à aplicabilidade das normas

jurídicas, aponta que “Atribuída à coisa, estado ou situação uma

determinada significação (conceito jurídico), quanto a ela aplicar-se-

ão umas – e não outras, ou nenhuma – determinadas normas

jurídicas. Esta, de resto, a finalidade dos conceitos jurídicos: não o

conhecimento ou uma descrição da essência das coisas, estados e

situações, mas a viabilização da aplicação, a uma coisa, estados ou

102 De acordo com Nicola Abbagnano “... o alegado caráter de universalidade subjetiva ou validade intersubjetiva do conceito na realidade é simplesmente a sua comunicabilidade de signo lingüistico: a função primeira e fundamental do conceito é a mesma da linguagem, isto é, a comunicação. (...) na segunda interpretação, o conceito é um signo do objeto (qualquer que seja) e se acha em relação de significação com ele. Por essa interpretação, encontrada pela primeira vez nos estóicos, a doutrina do conceito é uma teoria dos signos. (...) a primeira função atribuída ao conceito é a de descrever os objetos da experiência para permitir o seu reconhecimento. Era essa a função principal que epicuristas e estóicos atribuíam às antecipações (ou prolepse) (...) a terceira função do conceito é organizar os dados da experiência de modo que se estabeleçam entre eles conexões de natureza lógica. Um conceito, sobretudo científico, via de regra não se limita a descrever e classificar os dados empíricos, mas possibilita a sua inferência dedutiva” (Dicionário de filosofia, p. 164/168).

Page 114: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

situações, de uma determinada ou de um determinado conjunto de

normas jurídicas”.103

6. Conceitos constitucionais e exercício da competência tributária

Vimos, então, que conceitos jurídicos têm por finalidade viabilizar a

aplicação da norma, de modo que os denominados conceitos constitucionais

viabilizam a aplicabilidade das normas constitucionais. Sobre serem pressuposto

lógico de seu conhecimento, são também pressuposto de sua aplicação.

Por tal razão, esta é a ligação existente entre os conceitos

constitucionais e a outorga constitucional de competência tributária, pois o

legislador, para o exercício deste poder, vê-se inapelavelmente obrigado a olhar

para a Constituição Federal para ali descobrir aquilo que pode validamente fazer

neste campo. Com efeito, na Carta da República ele encontra em primeiro lugar a

discriminação da competência, que é exclusiva de cada pessoa política com base

no critério territorial, e depois, pelo critério da materialidade, encontra qual a

matéria, qual a porção da realidade que pode tributar, se assim o desejar, de

modo que comprovamos novamente que a existência dos conceitos

constitucionais é exigência lógica do Sistema Tributário Nacional. Vale dizer, é

obrigatório que haja um conceito constitucional de renda, de receita, de veículos

automotores e de serviços de qualquer natureza para que o ente detentor da

competência tributária saiba o que tributar. Em outros termos, com perdão da

insistência, somente se houver – trata-se de condição – um conceito

103 Direito, conceitos e normas jurídicas, p. 66/67.

Page 115: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

constitucional o legislador pode saber qual porção da realidade pode tributar, qual

parte do mundo real pode separar para ser alvo da norma impositiva.

Com tais considerações pretendemos fixar de uma vez por todas

nossa premissa: para cada materialidade prevista na Constituição Federal, há o

conceito constitucional dela. Tal conceito não é dado pronto, acabado, expresso,

absoluto pela Carta Republicana, mas deve ser construído pelo legislador, que

possui certa margem de liberdade na tarefa de construir o conteúdo do conceito,

que, todavia, ainda permanece constitucional, como um limite a esta atividade

construtiva. A Constituição fornece os limites, os parâmetros fronteiriços dentro

dos quais a aludida construção do conteúdo pode ser feita validamente. Em

outros termos, da interpretação do Texto Constitucional deve-se extrair –

construtivamente – os limites mínimo e máximo do conteúdo semântico do

conceito.

O limite mínimo é representado pelo conteúdo semântico mínimo do

conceito utilizado, aquele com o qual o conceito é incorporado pela Constituição,

porque quando ela usa o conceito, incorpora-o, o traz para dentro de seu corpo e

com ele traz também o conteúdo semântico mínimo, impregnado ao conceito e

que não pode dele ser separado, ou seja, a Constituição incorpora o conceito e

seu conteúdo mínimo de significação. Por exemplo, o mínimo que se pode exigir

do conceito de receita é que seja um ingresso de recursos no patrimônio; o

conteúdo mínimo de significação de veículo automotor é tratar-se de algo movido

por uma máquina, uma engenhoca, um motor, enfim. Portanto, quanto ao limite

mínimo, o desafio do intérprete (e do legislador) está em saber qual o conteúdo

mínimo que acompanha o conceito, isto é, com qual conteúdo mínimo semântico

Page 116: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

o conceito foi incorporado pela Constituição Federal; como e em que medida ele

foi constitucionalizado.

O limite máximo, por sua vez, é marcado por aquilo que o conceito

evidentemente não pode representar, pois está situado além do círculo externo de

dois círculos concêntricos, para nos utilizarmos de uma representação gráfica.

Encontra-se além do limite mínimo de significado (círculo interno), passou pela

zona existente entre os dois círculos, e também superou o círculo externo. No

exemplo do vocábulo receita, a questão está em sabermos se todas as receitas

cabem no conceito constitucional de receita e podem ser tributadas, receitas de

terceiros, receitas apenas da própria atividade ou também eventuais (receitas

financeiras, aluguéis, indenizações), de modo que um desembolso evidentemente

não pode ser tomado como receita, pois está além do limite máximo. No exemplo

do veículo automotor, são apenas automóveis, ou também aviões, navios,

lanchas ou mesmo uma carroça puxada por um animal? E o animal sozinho?

Desse modo, quanto ao limite máximo, o problema está em

descobrirmos onde ele está situado e quais os parâmetros, medidas,

instrumentos, que podem ser utilizados na análise e na interpretação da norma

para reconhecê-lo.

Note-se que aqui deparamos com algo que explica e justifica uma de

nossas premissas metodológicas, qual seja, a relevância de cada caso concreto,

pois a atividade regular do legislador, o exercício constitucional da competência

tributária somente pode ser aferida em cada caso concreto, no momento da

interpretação-aplicação da norma jurídica, diante do qual, considerando-se uma

série de fatores influentes, poderemos verificar se o legislador exorbitou ou não

Page 117: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

suas possibilidades, se adentrou ou não o campo da arbitrariedade, que se traduz

em inconstitucionalidade.

Daí porque entendemos que existem conceitos constitucionais para

fins de competência tributária, pois estes repousam na própria estrutura orgânica

do Sistema Tributário Nacional, uma vez que, além do critério da territorialidade,

ele está assentado no critério da materialidade, pois a Constituição Federal

adotou a técnica de se referir ao elemento material da regra-matriz de incidência

para proceder à repartição da competência tributária entre as pessoas políticas.

Decorre daí que o tema delimitação da competência tributária ou discriminação da

competência tributária é matéria de direito constitucional, reservada com

exclusividade ao legislador constituinte.

Isto é o que JOSÉ ARTUR LIMA GONÇALVES, com extrema

precisão, designa de imperativo lógico da existência do conceito pressuposto, nos

seguintes termos: “Não há outra solução lógico-sistemática para essa questão.

Admitindo-se que é a Constituição que confere ao legislador infraconstitucional as

competências tributárias impositivas, o âmbito semântico dos veículos lingüísticos

por ela adotados para traduzir o conteúdo dessas regras de competência não

pode ficar à disposição de quem recebe a outorga de competência. A questão de

direito colocada, portanto, só pode ser compreendida e analisada em face das

normas constitucionais que regem a matéria.”104

7. Conceitos constitucionais como limitação ao poder de tributar

104 Imposto sobre a renda: pressupostos constitucionais, p. 171.

Page 118: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

Além de constituírem pressuposto de conhecimento e aplicação,

acreditamos que os conceitos constitucionais revelam-se também como

limitações do poder de tributar, tema ao qual a Carta Constitucional dedica a

Seção II do Capítulo do Sistema Tributário Nacional, estabelecendo os mais

relevantes limites das pessoas políticas na atividade de exercício da competência

tributária.

Sem prejuízo das limitações expressas, acreditamos que há outras

duas espécies específicas de limitações constitucionais ao poder de tributar –

lógica e cronologicamente anteriores àquelas – materializadas (i) pela

discriminação da competência tributária entre as pessoas políticas e (ii) pelos

conceitos constitucionais utilizados para tanto.

A primeira constitui limitação porque a repartição da competência

tributária, em seus aspectos positivo e negativo, implica, ao mesmo tempo,

atribuição expressa da competência a certa pessoa política, e recusa da

competência idêntica às outras unidades da Federação. Portanto, ao tempo em

que confere poder de tributar a um, nega tal poder a outros, daí revelar-se uma

limitação.105 Quanto à segunda espécie, os conceitos constitucionais constituem

uma clara limitação ao poder de tributar, pois, por meio deles, a Constituição

prescreve ao legislador ordinário qual a parcela da realidade que ele pode atingir

com a norma jurídica exacional e, em consequência, quais as partes outras que

105 Conforme explica Amílcar de Araújo Falcão, “Em primeiro lugar, a atribuição de competência privativa tem um sentido positivo ou afirmativo: importa em reconhecer a uma determinada unidade federada a competência para decretar certo e determinado imposto. Em segundo lugar, da atribuição da competência privativa decorre um efeito negativo ou inibitório, pois importa em recusar competência idêntica às unidades outras não indicadas no dispositivo constitucional de habilitação ...” (apud Luís Cesar Souza de Queiroz, Imposto sobre a renda: requisitos para uma tributação constitucional, p. 202).

Page 119: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

não podem ser tributadas, daí afirmarmos que a norma jurídica discrimina, uma

vez que determina o que está dentro e o que está fora de seu alcance normativo.

Tal circunstância é revelada até mesmo intuitivamente, pois parece

claro que ao outorgar, por exemplo, competência à União para instituir imposto

sobre a renda, está concomitantemente determinando a essa pessoa política que

o imposto previsto no artigo 153, inciso III, somente pode recair sobre esta

entidade do mundo fenomênico, e não sobre outra; estas outras, como o

faturamento e o lucro, podem também sofrer tributação, mas não com base na

outorga de competência constante do referido artigo. Pela mesma razão, a

contribuição social sobre o lucro, do artigo 195, inciso I, alínea c, não poderá

incidir sobre outra coisa senão sobre o lucro, pois tal conceito – o de lucro – está

na Constituição Federal justamente a limitar a regra de outorga de competência

tributária.

Ampliar ou restringir o conteúdo dos conceitos em cada caso

concreto significa nitida e diretamente ampliar ou restringir o próprio exercício da

competência tributária, isto é, implica a expansão ou a compressão do alcance da

norma jurídica exacional, razão pela qual os conceitos são necessariamente

matéria constitucional – e não legal – uma vez que a densidade normativa da

regra de outorga da competência não pode ficar à disposição do ente político que

irá exercê-la em seu próprio interesse.

Desse modo, pela própria necessidade de se distinguirem as

diferentes situações de fato que podem servir de base à tributação – para não

confundi-las ou ampliá-las indevidamente – é que surgem os conceitos, de índole

constitucional, com o fim de delimitar, com a marca indelével da supremacia

Page 120: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

normativa, a competência tributária.106 Em outros termos, se a regra constitucional

de outorga de competência utiliza-se, por exemplo, do conceito renda, isso

pressupõe a consideração dos conteúdos mínimo e máximo a que nos referimos,

caso contrário a competência ficaria vazia; a outorga não seria baseada – como o

é – no critério da materialidade, mas em critério subjetivo, e poderia variar ao

sabor dos interesses de cada pessoa política, raciocínio que não encontra

fundamento na Carta Republicana. Se assim fosse, o que se admite apenas a

título de argumento, a Constituição não teria estabelecido que a União pode

instituir imposto sobre a renda, mas, antes, que poderia instituir imposto sobre

qualquer coisa, pois o critério já não seria o da materialidade.

Desde que se aceite a premissa de que os critérios adotados pela

Constituição são o da territorialidade e o da materialidade – e, com a devida

vênia, não há meios de negá-la – a conclusão evidente é a de que a outorga de

competência não é uma cláusula aberta a ser preenchida livremente pelo

legislador; ao contrário, ela pressupõe a existência dos conceitos constitucionais

(um mínimo e um máximo de significado para cada vocábulo) que limitam a

atividade legiferante de cada ente político.107

106 Luís Cesar Souza de Queiroz confirma: “Parece evidente que, ao descrever ‘situações de fato’ que conformam a competência ordinária discriminada, a Constituição efetivamente assume que elas possuem um conceito que apresenta limites máximos, especialmente para fins de repartição da competência tributária” (Imposto sobre a renda: requisitos para uma tributação constitucional, p. 207). 107 Ainda Luís Cesar Souza de Queiroz: “Contudo, se existe um conceito, há características definitórias que informam seus limites, que permitem identificá-lo e diferençá-lo de outros conceitos. Assim, o fato de se poder considerar que a expressão ‘renda e proventos de qualquer natureza’ como base tributável representa um conceito indeterminado não importa em reconhecer que se trata de um conceito vazio, sem sentido, sem limites máximos, nem permite deduzir que o legislador infraconstitucional possui total liberdade para definir tal conceito” (Imposto sobre a renda: requisitos para uma tributação constitucional, p. 208).

Page 121: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

Ainda que exista certa margem de liberdade conferida ao legislador

no preenchimento do conteúdo do conceito, isso não implica, em nenhuma

hipótese, a aceitação da chamada teoria legalista, defendida por parcela da

doutrina, segundo a qual renda, receita ou faturamento, por exemplo, seriam

aquilo que a lei determinasse.

Page 122: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

CAPÍTULO 3

CAPACIDADE CONTRIBUTIVA E VEDAÇÃO DO EFEITO CONFISCATÓRIO

1. Parâmetros relevantes na construção dos conceitos constitucionais

Nas páginas antecedentes deixamos claro que o conteúdo dos

conceitos constitucionais, para fins do exercício da outorga de competência

tributária, é construído primeiramente pelo legislador da pessoa política detentora

da referida competência, no momento da edição da lei criadora do tributo, quando

está obrigado a analisar as disposições constantes da Constituição Federal,

atento às regras e princípios presentes no Sistema Tributário Nacional, para

verificar quais limites lhe são impostos nesta atividade legiferante.

Esse conteúdo significativo dos conceitos pode ser construído,

também, pelo Poder Judiciário, desde que provocado para tanto, situação na qual

o magistrado – intérprete da Constituição e do ordenamento jurídico, intérprete

Page 123: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

autêntico, na expressão de HANS KELSEN – é chamado para avaliar o produto

da atividade do legislador, a fim de verificar se este atuou dentro dos limites

constitucionais, e decidir pela confirmação, rejeição ou mesmo reconstrução do

conteúdo do conceito, objeto da análise.108

Vimos, ainda, que tal atividade interpretativo-construtiva, sem

prejuízo da extensão, da intensidade e da rigidez do tratamento

constitucionalmente conferido à matéria tributária, não pode desprezar o exame

sistemático da Carta da República. Isso porque o próprio Sistema Tributário

Nacional exige o reenvio, a busca, a complementação do sentido de suas normas

em outras normas presentes em diversas outras partes da Constituição, como nos

capítulos da Seguridade Social, da Ordem Econômica e Financeira e dos Direitos

e Garantias Fundamentais, por exemplo, entre outros.

Casos diversos há no Direito Tributário nos quais a questão dos

conceitos constitucionais exerce pouca ou nenhuma relevância, hipóteses em que

a eventual desobediência à Carta Magna é, por assim dizer, mais facilmente

percebida, como ocorre, por exemplo, nas violações às regras da anterioridade e

da irretroatividade. A dificuldade está, assim, em situações outras, que envolvem

justamente o conteúdo de significado dos termos utilizados pela Constituição,

diante da possibilidade de aumento ou diminuição do âmbito material da

competência tributária, o que pode ser feito pela extensão ou restrição do

conceito constitucional.

108 Pensamos que o Poder Judiciário – em especial o Supremo Tribunal Federal – pode efetuar a reconstrução do conteúdo significativo do conceito constitucional, por exemplo, restringindo parcialmente a extensão significativa que inicialmente foi-lhe dada pela lei (em caso de interpretação conforme à Constituição), sem que isto implique na atuação da Corte Suprema como legislador positivo.

Page 124: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

Veja-se, a título de exemplo valioso, a discussão travada em torno

da incidência da Contribuição para Financiamento da Seguridade Social –

COFINS sobre as operações de venda de imóveis, 109 pois estes não são

considerados mercadorias, no sentido rigoroso dessa palavra e, portanto, o

faturamento decorrente de sua venda não deveria, a princípio, sofrer a incidência

da referida contribuição. Neste caso, a discussão não envolvia a violação direta

de alguma regra ou de algum princípio constitucional mas, antes, revelava-se

mais complexa. Tratava-se de saber qual o conteúdo de vocábulo mercadoria,

tendo-se em vista que o Supremo Tribunal Federal já havia fixado o entendimento

de que faturamento, para fins de incidência da COFINS, é o produto decorrente

da venda de mercadorias e de serviços e da prestação de serviços. Portanto

importava averiguar se, no caso concreto, imóvel cabia ou não no conceito

jurídico de mercadoria.

Assim, uma vez que procuramos demonstrar que o conteúdo dos

conceitos constitucionais não se encontra à livre disposição do legislador ordinário

– porque tais conceitos são limitações ao poder de tributar – surge a necessidade

de se saber, como o afirmamos, até que ponto ele pode chegar na construção do

conceito, isto é, até onde a Constituição Federal o autoriza ampliar o conceito de

modo válido.

No presente capítulo, nosso objetivo é o de procurar demonstrar

que, em meio às diversas regras e princípios a serem obedecidos, são de

especial relevância os da capacidade contributiva e da vedação do efeito

confiscatório. As dificuldades, entretanto, não são poucas, uma vez que ambos os

109 Embargos de Divergência no Recurso Especial nº. 166.374, Relatora Ministra Eliana Calmon.

Page 125: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

dispositivos constitucionais revelam-se, eles mesmos, conceitos de textura aberta,

vazados em termos amplos, que comportam também algum grau de

indeterminação semântica, uma vez que a Constituição não define – nem seria

próprio que o fizesse – o que é capacidade contributiva e efeito confiscatório.

O objeto representado pela capacidade contributiva e pelo efeito

confiscatório não surge definido; seu conteúdo e extensão não são delimitados de

modo preciso, de forma que também aqui se torna necessário descobrir o

significado desses conceitos como pressuposto necessário para sabermos, em

cada caso concreto, se tais dispositivos constitucionais foram ou não obedecidos.

Não obstante, tais dificuldades de intelecção dos aludidos

dispositivos não podem servir de obstáculo para sua aplicação, pois são normas

constitucionais perfeitamente aplicáveis e de respeito obrigatório tanto pelo

legislador ordinário ou complementar, quanto pelo intérprete-aplicador da lei, em

especial pelo Poder Judiciário.

2. Princípio da capacidade contributiva

O conceito de capacidade contributiva comporta diversos

entendimentos. Na lição de RUBENS GOMES DE SOUSA, é a “soma de riqueza

disponível depois de satisfeitas as necessidades elementares de existência,

riqueza essa que pode ser absorvida pelo Estado sem reduzir o padrão de vida do

contribuinte e sem prejudicar as suas atividades econômicas”.110 Para REGINA

HELENA COSTA, “Se os fatos a serem escolhidos pelo legislador como hipóteses

de incidência tributária devem espelhar situações reveladoras de tal capacidade,

110 Compêndio de legislação tributária, p. 95.

Page 126: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

forçoso, refiram, portanto, índices ou indicadores de capacidade contributiva, que

nada mais são do que signos que representam manifestações de riqueza”.111

Em virtude das limitações de nosso estudo, este não é o local

próprio para analisarmos os entendimentos na doutrina e na jurisprudência sobre

o conceito ou a definição de capacidade contributiva, de forma que, por ora,

limitar-nos-emos a mencionar, em apertada síntese, quatro correntes relativas ao

significado de capacidade contributiva, tomando de empréstimo a visão

panorâmica fornecida por MARCO AURELIO GRECO em seu livro sobre a

substituição tributária.112

2.1 Capacidade financeira

Uma primeira possibilidade de interpretação está em considerarmos

a capacidade contributiva como a disponibilidade financeira de alguém para

recolher o tributo, sendo, portanto, índice relacionado diretamente com as

condições materiais da pessoa obrigada ao adimplemento da obrigação tributária.

O exemplo comum deste caso é o da viúva que, por força de herança, adquire a

propriedade de uma mansão, mas não dispõe de recursos financeiros suficientes

para recolher o Imposto Predial e Territorial Urbano – IPTU, de tal modo que, se

capacidade contributiva for equivalente a capacidade financeira, nesta hipótese

ela não está presente.

Segundo aponta MARCO AURELIO GRECO, “Essa idéia de

capacidade contributiva comporta críticas, afirmando alguns que a disponibilidade

111 Princípio da capacidade contributiva, p. 28. 112 Substituição tributária: antecipação do fato gerador, p. 78/82.

Page 127: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

financeira é meramente circunstancial para fins da incidência; relevante, para fins

de tributação, é o patrimônio que a pessoa possui, pois este configura

manifestação para pagar tributos. Onde há patrimônio há uma renda poupada que

nele se materializou; e, portanto, ser proprietário daquele bem indica que a

pessoa pode, em alguma medida, participar do rateio das despesas públicas. Daí

a exigência do IPTU feita à viúva não violar a cláusula constitucional da

capacidade contributiva”.113

Ademais, também se poderia argumentar que dispor ou não de

recursos financeiros para recolher o tributo é circunstância relativa à liquidação do

débito tributário e questão temporal posterior à manifestação da capacidade

contributiva, ligada à incidência da norma tributária, e, portanto, ao nascimento da

obrigação.

2.2 Capacidade individual

Outra corrente doutrinária entende que a capacidade contributiva é a

capacidade individual de uma pessoa determinada. Deve-se verificar, em cada

caso específico, qual o patrimônio possuído e qual a carga tributária

concretamente suportada; qualidade, portanto, acentuadamente subjetiva.

A crítica feita a tal entendimento é a de que ele pode levar ao

comprometimento da própria aplicação da lei tributária, uma vez que avaliar as

condições subjetivas de cada contribuinte, em cada momento específico, é tarefa

inviável, pois “tentar definir a capacidade contributiva como característica

113 Substituição tributária: antecipação do fato gerador, p. 79.

Page 128: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

individual é querer que exista uma lei para cada cidadão”, coisa que inviabiliza a

discussão sobre o tema, conforme afirma o referido professor.114

2.3 Capacidade presumida

A terceira formulação consiste em considerar que, diante da

impossibilidade prática de se apurarem as condições e características de cada

indivíduo, a capacidade contributiva é, na verdade, uma capacidade presumida,

de modo que caberia à lei definir, para cada imposto e dentro de certos

parâmetros, qual a capacidade que se presume. Nessa perspectiva, a lei do

imposto sobre a renda, por exemplo, fixaria qual o valor do mínimo necessário

para a subsistência do contribuinte, o valor das deduções possíveis e assim por

diante, para presumir qual a capacidade contributiva dele.

A crítica a tal entendimento repousa no próprio mecanismo da

presunção, com os perigos daí decorrentes, porque desconsidera os dados

verdadeiros e porque o legislador ordinário pode revelar-se tendencioso na

determinação dos valores, uma vez que o mínimo essencial à subsistência e à

manutenção do contribuinte é algo acentuadamente subjetivo.

2.4 Capacidade vinculada ao pressuposto de fato do tributo

A quarta acepção consiste em considerar a capacidade contributiva

como ligada ao denominado pressuposto de fato do tributo, isto é, se aquele

determinado fato é ou não indicativo da aptidão de recolher o tributo. Altera-se,

assim, eixo do tema: de subjetivo, como considerado nas três correntes de

114 Substituição tributária: antecipação do fato gerador, p. 80.

Page 129: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

pensamento apontadas, para objetivo, na medida em que se deixa de considerar

se alguém tem capacidade contributiva, para se verificar se algo indica, se o fato

revela a referida capacidade. Segundo ensina MARCO AURELIO GRECO,

pressuposto de fato “é basicamente um dado da realidade econômica ou jurídica

– como, por exemplo, o ciclo de produção, a renda enquanto acréscimo

patrimonial, a propriedade enquanto fato, a celebração de determinado contrato

típico etc”.115

Nessa concepção doutrinária, embora o conceito de capacidade

contributiva não perca o seu grau de indeterminação, por aparecer vinculada ao

pressuposto de fato dos tributos, ela deixa de ser um índice subjetivo para

revelar-se um dado objetivo, se levarmos em consideração que os fatos ocorridos

no mundo fenomênico, por serem reveladores de manifestação de riqueza,

indicam que as pessoas a eles ligadas revelam aquela aptidão de concorrerem

para o rateio das despesas públicas, por meio do recolhimento dos tributos.

2.5 Funções da capacidade contributiva

A análise, ainda que superficial, das várias possibilidades

conceituais da capacidade contributiva, permite-nos colocar em destaque sua

relevância e alguns dos possíveis papéis que ela pode desempenhar, aqui

chamados de funções da capacidade contributiva.

É bem verdade que há muitas críticas ao aludido princípio, em

virtude principalmente do alto grau de indeterminação do conceito, como, por

115 Substituição tributária: antecipação do fato gerador, p. 81.

Page 130: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

exemplo, aquela formulada por ALFREDO AUGUSTO BECKER.116 Todavia, com

a devida vênia, não podemos concordar com o autor, porque tentar desqualificar a

relevância do princípio por se tratar “de locução ambígua que se presta às mais

variadas interpretações”, parece-nos crítica demasiadamente fácil, uma vez que

poderia ser feita também a um imenso número de institutos jurídicos, também

ambíguos ou vagos, que nem por isso deixam de ser aplicados, como o provam a

doutrina e a jurisprudência. Uma vez que o dispositivo é expressamente previsto

na Constituição Federal, parece-nos mais útil buscar sua interpretação possível e

criar alternativas para sua concretização, em vez de meramente fugir do tema em

virtude das dificuldades que ele apresenta.

A idéia do pressuposto de fato como indicador da capacidade

contributiva parece ser interessante porque possibilita, em certa medida, tornar o

princípio menos fluido, menos subjetivo, por permitir a identificação de certas

ocorrências do mundo fenomênico como reveladoras de riqueza e, portanto, de

capacidade contributiva, razão pela qual podem ser alvo da norma de tributação,

se assim o desejar o legislador. Podemos considerar, desse modo, que: auferir

renda; produzir produtos industrializados; possuir certo patrimônio; realizar

importações ou auferir receitas são pressupostos de fato que, em tese,

demonstram a possibilidade de certas pessoas, a eles ligadas, de contribuir para

o rateio das despesas públicas.

Não obstante, cremos também que isso não autoriza o desprezo

pelo caso concreto e suas peculiaridades, uma vez que, por um variado leque de

razões, aquela capacidade contributiva inicialmente indicada pelo pressuposto de

116 Teoria geral do direito tributário, p. 439.

Page 131: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

fato pode revelar-se inexistente. O contribuinte pode ver-se autorizado a bater às

portas do Poder Judiciário, ou mesmo às da esfera administrativa, para que seja

reconhecida a inviabilidade da tributação pela inexistência daquela capacidade.

Isto porque, segundo nos parece, há uma capacidade potencial (em

estado latente) e uma capacidade contributiva concreta (efetiva, real), a ser

confirmada em cada caso concreto. A instituição do tributo pode dar-se com base

na capacidade contributiva potencial – em princípio ela basta ao legislador – mas,

em cada hipótese específica, o tributo poderá deixar de ser recolhido ou

eventualmente restituído ao contribuinte, pela ausência de capacidade

contributiva concreta. Haveria, por assim dizer, hipótese de desconfirmação da

capacidade contributiva.

O que procuramos afirmar é que a capacidade contributiva pode

assim ser avaliada em dois momentos: no primeiro, cabe ao legislador verificar a

capacidade potencial, espelhada por determinado pressuposto de fato que, por

revelá-la, ostenta dignidade suficiente para ser colhida por determinada hipótese

de incidência legal; no segundo, cumpre ao intérprete-aplicador da lei apurar, no

caso específico, a capacidade concreta que, se presente, confirma a propriedade

do pressuposto de fato como elemento ensejador da criação daquela hipótese de

incidência.

Tal raciocínio parece corresponder ao ensinamento de REGINA

HELENA COSTA ao assim tratar da capacidade absoluta e relativa:

“Fala-se em capacidade contributiva absoluta ou objetiva quando se

está diante de um fato que se constitua numa manifestação de

riqueza; refere-se o termo, nessa acepção, à atividade de eleição,

Page 132: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

pelo legislador, de eventos que demonstrem aptidão para concorrer

às despesas públicas. Tais eventos, assim escolhidos, apontam para

a existência de um sujeito passivo em potencial. Diversamente, a

capacidade contributiva relativa ou subjetiva – como a própria

designação indica – reporta-se a um sujeito individualmente

considerado. Expressa aquela aptidão de contribuir na medida das

possibilidades econômicas de determinada pessoa. Nesse plano,

presente a capacidade contributiva in concreto, aquele potencial

sujeito passivo torna-se efetivo – apto, pois, a absorver o impacto

tributário”.117

Neste ponto surge a questão, formulada por MARCO AURELIO

GRECO, de se saber “se a capacidade contributiva, no sistema brasileiro, é

fundamento (ou causa) da tributação, ou não. Caso ela corresponda apenas a um

critério de dimensionamento da carga tributária, seria o caso, então de indagar

qual o fundamento da tributação. Esta definição é relevantíssima, pois se for um

fundamento da cobrança e houver violação à capacidade contributiva toda

tributação estará comprometida; mas se for apenas um critério de

dimensionamento a cobrança pode, eventualmente, subsistir sob outro critério”.118

Segundo nosso modesto ponto de vista, a capacidade contributiva

não é fundamento da tributação ou, se preferirmos, não é causa suficiente para o

surgimento do fenômeno impositivo. Pensamos que o fundamento primeiro da

tributação é a necessidade de participação da sociedade no rateio das despesas

públicas. A própria existência do Estado, sua manutenção e as atividades que lhe

cabe desempenhar por força de mandamentos constitucionais trazem consigo a

inafastável necessidade de buscar recursos financeiros no seio da sociedade e tal

117 Princípio da capacidade contributiva, p.27. 118 Substituição tributária: antecipação do fato gerador, p. 75.

Page 133: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

imperiosa circunstância oferece fundamento à tributação. Vale dizer, por causa do

rateio das despesas públicas, há imposição tributária e não em razão da

existência de capacidade contributiva por si só.

Parece-nos que a capacidade contributiva, por ser um princípio

constitucional, revela-se como um pressuposto a ser atendido pelo legislador

ordinário e complementar para o exercício de sua atividade legiferante; trata-se de

algo que deve ser obedecido quando há eleição de hipóteses de incidência. Estas

só podem ser criadas pela lei se tiverem como base pressupostos de fato que

necessariamente indiquem manifestação de capacidade contributiva. Mais do que

um parâmetro a ser respeitado pelo legislador, revela-se um elemento

condicionante (porque o obriga a seu atendimento) e restritivo de sua atividade

(porque lhe impõe obstáculos à livre escolha dos pressupostos de fato). Nas

palavras de REGINA HELENA COSTA, “Representa sensível restrição à discrição

legislativa, na medida em que não autoriza, como pressuposto de impostos, a

escolha de fatos que não sejam reveladores de alguma riqueza”.119

Apesar de não a considerarmos fundamento da tributação, na

hipótese de violação à capacidade contributiva aquela estará, sim, comprometida,

por ofensa ao parágrafo primeiro do artigo 145 da Constituição Federal, salvo se

não for possível o prestígio à mencionada figura, para utilizar a expressão

constante deste dispositivo constitucional. Em outros termos, justamente por ser a

capacidade contributiva um princípio constitucional informador da atividade

legislativa tributária, sua observância é inafastável, porque o legislador não tem

119 Princípio da capacidade contributiva, p. 28.

Page 134: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

autorização constitucional para instituir tributos sobre eventos da realidade em

que a capacidade contributiva esteja ausente.

Com base em tal raciocínio, pensamos ser possível visualizar três

funções principais da capacidade contributiva, quais sejam: (i) a de elemento

limitador da atividade legislativa na eleição de hipóteses de incidência, somente

se permitindo a imposição tributária em que a referida capacidade estiver; (ii) a de

instrumento de dimensionamento do tributo, pois, uma vez criada a hipótese de

incidência, a lei pode dimensionar o grau da exigência fiscal mediante a utilização

de alíquotas diferenciadas e/ou progressivas; (iii) a de índice informador da

interpretação e aplicação da lei tributária, dado que o respeito à capacidade

contributiva deve prevalecer também na aplicação da norma jurídica exacional,

para conformá-la ao mandamento constitucional.

Ademais, no desempenho dessas três funções, a capacidade

contributiva pode prestar-se à busca da realização de justiça fiscal, desde que

distribua razoavelmente a participação de cada indivíduo no rateio das despesas

públicas; pode permitir a concretização do princípio da igualdade, conferindo

tratamento desigual aos desiguais e pode ainda permitir o controle de

constitucionalidade da lei tributária, com a verificação da obediência ou do

desrespeito ao aludido comando constitucional.

Por essas razões é que conferimos relevância ao papel da

capacidade contributiva no tema central de nosso estudo, ou seja, no

preenchimento do conteúdo significativo dos conceitos constitucionais e na sua

íntima relação com o exercício da competência tributária, uma vez que a

interpretação construtiva dos conceitos constitucionais há de sempre levar em

Page 135: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

consideração a necessidade de observância do referido princípio, de modo que,

entre duas ou mais interpretações possíveis da lei tributária, a opção do aplicador

deverá repousar naquela que preste homenagens à capacidade contributiva.

Nessa linha de raciocínio, seja pela localização topográfica do

instituto no corpo da Carta Política, seja pela amplitude semântica que parece

comportar, seja ainda pela função que desempenha no Sistema Tributário

Nacional, parece não haver dúvida de que a capacidade contributiva é um

verdadeiro princípio jurídico constitucional, de forma que “Tratando-se de um

princípio, corresponde a um vetor axiológico do ordenamento positivo e um

critério positivo informador da estrutura do sistema tributário e da legislação

infraconstitucional que vier a ser editada”, como acentua MARCO AURELIO

GRECO.120

Como decorrência de tal entendimento, a expressão sempre que

possível há de ser compreendida não como singelo conselho ao legislador

ordinário, como se o dispositivo constitucional dissesse simplesmente “se for

possível, obedeça à capacidade contributiva”. Ao invés, a norma é imperativa e

parece dizer “obedeça à capacidade contributiva sempre, com exceção daqueles

casos em que isto não seja realmente possível”.121

Por isso, a capacidade contributiva, na qualidade de princípio,

apresenta:

120 Substituição tributária: antecipação do fato gerador, p. 74. 121 Para a análise do termo “sempre que possível”, consultem-se Marco Aurelio Greco, Contribuições: uma figura “sui generis”, p. 186/190; Roque Antonio Carrazza, Curso de direito constitucional tributário, p. 90/94; e Klaus Tipke e Douglas Yamashita, Justiça fiscal e capacidade contributiva, p. 52/53.

Page 136: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

– um aspecto positivo, como algo que a Constituição Federal

determina que seja concretizado; direciona, portanto, a atividade do

legislador e

– um aspecto negativo, no que concerne ao controle da

constitucionalidade das leis instituidoras de tributos, de forma tal que

se houver tributação onde não houver capacidade contributiva, a

respectiva lei padecerá de inconstitucionalidade, por violação ao

parágrafo primeiro do artigo 145, como havíamos afirmado.

2.6 Aplicabilidade da capacidade contributiva aos tributos

Embora o dispositivo constitucional utilize a palavra impostos, a

defesa da capacidade contributiva da forma e na extensão como vimos

estruturando obriga-nos a considerá-la aplicável a todos os tributos e não apenas

aos impostos. Ora, se o parágrafo primeiro do artigo 145 é um princípio e se há ali

um valor prestigiado pelo Sistema, que a Constituição obriga ser concretizado

pelo legislador, acreditamos que o comando normativo dali emanado deva

irradiar-se por sobre todo o Sistema Tributário Nacional, em suas várias dobras e

diversas possibilidades, inclusive sobre as demais espécies tributárias.

Ainda que este não seja o momento adequado para o

aprofundamento do tema, julgamos que a própria natureza da capacidade

contributiva – aliada ao fato de se exteriorizar no sistema como um princípio –

leva à sua aplicabilidade às várias espécies tributárias, salvo se isto não for

materialmente possível,122 de modo que a busca pela distribuição razoável da

122 José Marcos Domingues de Oliveira afirma que “Quer se pense, portanto, no princípio como pressuposto da tributação quer enquanto critério de graduação do tributo, não se poderá conceber um sistema tributário apenas ‘parcialmente’ adequado à capacidade contributiva, ou seja, com somente certo tipo de tributo respeitando a Ordem Constitucional e outros não...” (Direito tributário: capacidade contributiva, p. 78).

Page 137: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

carga tributária e a efetivação da justiça fiscal exigem que o dito princípio possa

referir-se ao Sistema Tributário Nacional em sua inteira unidade estrutural.

Da própria Constituição Federal podemos extrair hipóteses que

parecem amparar nosso raciocínio, como, por exemplo, quando o artigo 195,

inciso I, alíneas b e c, elege como materialidade das contribuições sociais ali

previstas a receita ou o faturamento e o lucro, elementos claramente indicadores

de capacidade contributiva. Também o parágrafo 9º. do referido artigo 195,

quando determina que “As contribuições sociais previstas no inciso I deste artigo

poderão ter alíquotas ou bases de cálculo diferenciadas, em razão da atividade

econômica ou da utilização intensiva de mão-de-obra”, revela a possibilidade de

dimensionamento da imposição tributária, em inequívoca aplicação da capacidade

contributiva.

No que se refere às taxas, também elas submetem-se à observância

do princípio da capacidade contributiva, pois, em que pese o seu caráter

retributivo ou remuneratório, por força do qual o valor da taxa deva corresponder

razoavelmente ao custo da atividade estatal dirigida ao contribuinte, nem por isso

a fixação de seu valor encontra-se liberada da observância do aludido princípio,

quer em seu aspecto positivo (na fixação do valor da taxa), quer no negativo (pois

um valor demasiadamente alto, desatrelado do custo da atividade estatal, pode

fazer com que a taxa se revele inconstitucional).

2.7 Limites indicados pela capacidade contributiva

Numa espécie de representação gráfica da capacidade contributiva,

podemos localizá-la no intervalo compreendido entre duas linhas horizontais,

Page 138: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

inferior e superior; a linha inferior a representar o limite mínimo, abaixo do qual

não há capacidade contributiva e, portanto, a norma de incidência não pode ali

chegar; acima dessa linha inferior começa a área onde há a mencionada

capacidade e ali estão presentes os fatos reveladores de riqueza (fatos-signos

presuntivos de riqueza), achando-se neste campo os pressupostos de fato que

podem ser alcançados pelo legislador para fins de instituição de tributos.

Neste espaço, inclusive, a capacidade contributiva também pode

atuar como elemento dimensionador do tributo, pela utilização de alíquotas

diferenciadas ou progressivas, e também como instrumento viabilizador da

concretização do primado da igualdade, tratando-se desigualmente os desiguais,

impondo maior ônus tributário a alguns e menor a outros.

A mencionada área estende-se até a linha superior, que representa

o limite máximo da capacidade contributiva, isto é, o ponto em que ela termina;

acima dessa linha ingressa-se no terreno do efeito confiscatório, no qual a lei

tributária sofre o repúdio do ordenamento jurídico, incidindo na espécie o

comando normativo do artigo 150, inciso IV, da Constituição Federal, afirmação

que nos leva ao próximo tema.

3. Princípio da vedação do efeito confiscatório

A afirmação do parágrafo anterior é conhecida na doutrina e

demonstra mesmo a estreita relação entre o princípio da capacidade contributiva

e o da vedação do efeito confiscatório, como o reconhece KLAUS TIPKE ao

afirmar que “a capacidade contributiva termina, de todo modo, onde começa o

Page 139: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

confisco que leva à destruição da capacidade contributiva”. 123 Por sua vez,

ROQUE ANTONIO CARRAZZA menciona que “as leis que criam impostos, ao

levarem em conta a capacidade econômica dos contribuintes, não podem

compeli-los a colaborar com os gastos públicos além de suas possibilidades.

Estamos vendo que é confiscatório o imposto que, por assim dizer, ‘esgota’ a

riqueza tributável das pessoas, isto é, não leva em conta suas capacidades

contributivas”.124

Como é notório, o princípio ao qual agora nos referimos, previsto na

Constituição Federal, no artigo 150, inciso IV, também não escapa das

dificuldades quanto ao seu conteúdo conceitual, uma vez que a Carta Política não

o define, não determina o que seja um efeito de confisco nem qual o limite para

aferi-lo. Ademais, a presença de uma tal definição no próprio Texto Constitucional

implicaria muito provavelmente o amesquinhamento do alcance do comando

normativo para cada caso concreto. Também nesta matéria, podemos adiantar, a

constatação do efeito confiscatório somente é possível diante do caso concreto, o

que nos remete a uma de nossas premissas, consistentes na adoção da tópica

jurídica, segundo a qual partimos do fato (do problema) e vamos ao sistema

jurídico para interpretar a lei, no momento mesmo de sua aplicação.

No que se refere ao confisco, REGINA HELENA COSTA entende-o

como “a absorção total ou substancial da propriedade privada, pelo Poder

Público, sem a correspondente indenização”. 125 Por seu turno, ESTEVÃO

HORVATH leciona que “independentemente da presença expressa do princípio

123 Apud Estevão Horvath, O princípio do não-confisco no direito tributário, p. 76. 124 Curso de direito constitucional tributário, p. 89. 125 Princípio da capacidade contributiva, p. 79.

Page 140: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

que veda o confisco, o tributo criado com violação ao direito de propriedade é

confiscatório pela simples ofensa a este último. Aqui, ambos os princípios

mencionados coincidem em efeitos”.126 Para IVES GANDRA DA SILVA MARTINS

“Não é fácil definir o que seja confisco, entendendo eu que, sempre que a

tributação agregada retire a capacidade de o contribuinte se sustentar e se

desenvolver (ganhos para suas necessidades essenciais e ganhos superiores ao

atendimento destas necessidades para reinvestimento ou desenvolvimento),

estar-se-á perante o confisco”.127

A vedação ao efeito confiscatório, em última análise, prestigia o

direito de propriedade garantido constitucionalmente, uma vez que, havendo

supressão parcial ou total da propriedade sem autorização constitucional,

materializado estará o confisco.

3.1 Confisco e direito de propriedade

O direito de propriedade é garantido pela Constituição Federal no

artigo 5º, inciso XXII, onde se lê “é garantido o direito de propriedade”, e também

no artigo 170, inciso II, de seguinte teor: “A ordem econômica, fundada na

valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos

existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes

princípios: ... propriedade privada”.

O confisco, por sua vez, como exceção à garantia do direito

propriedade, é admitido pela Carta Magna, a título de pena, no artigo 5º, inciso

126 O princípio do não-confisco no direito tributário, p. 44. 127 Comentários à Constituição do Brasil, vol. 6, tomo I, p. 161.

Page 141: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

XLV, com a seguinte redação: “nenhuma pena passará da pessoa do condenado,

podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens

ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executados, até o

limite do valor do patrimônio transferido”, e ainda no inciso XLVI, alínea b, de

seguinte dicção: “a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras,

as seguintes: ... perda de bens”.

Ora, se o tributo, por sua própria natureza e também pela definição

legal ofertada pelo artigo 3º do Código Tributário Nacional, não pode constituir

sanção de ato ilícito, parece evidente que não poderá ser utilizado a título de

confisco, ainda que indiretamente, quando a tributação tiver o efeito de confisco,

tender ao confisco, de modo que este ficará caracterizado quando não houver

autorização constitucional para sua instituição; ou, mesmo havendo esta, vier a

recair sobre fatos não reveladores de riqueza; ou, ainda, quando houver

desmedido dimensionamento da carga tributária.

Sobre a questão, aponta ESTEVÃO HORVATH que “ainda que se

possa extrair a proibição do confisco de outros princípios mais tradicionais e

expressos, a sua formulação no direito positivo pode propiciar-lhe um alcance

maior, ou pelo menos diferenciado com relação àqueles dos quais derivaria” e

que “a Lei Maior, ao preceituar que é vedado utilizar tributo com efeito

confiscatório, atribui a esta idéia – ou ao menos propicia interpretação –

peculiaridades que não estariam presentes com a simples previsão genérica da

vedação ao confisco”,128 podendo-se notar nas palavras do autor a preocupação

em salientar que a expressa positivação do princípio propicia relevante vertente

128 O princípio do não-confisco no direito tributário, p. 40.

Page 142: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

interpretativa, que pode direcionar a atividade do aplicador da lei tributária e,

sobretudo, da Constituição Federal. Mais adiante, traçando uma linha paralela

com o artigo 6º, parágrafo 4º, inciso I, da Carta Política, ao analisar confisco e

efeito confiscatório, afirma que “Algo igual se passa aqui: parece mais abrangente

dizer que se proíbe a tributação com efeito confiscatório do que simplesmente

dizer que está vedado o confisco. Tem-se a sensação que, com a dicção

constitucional, o intérprete se sente mais à vontade para extrair que qualquer

tentativa, por mais sub-reptíca que seja, de exacerbar a tributação, aproximando-

a do confisco, ainda que parcial, tenderá a enquadrar-se na vedação

constitucional”.129

Como nos parece, por conviverem ambos – tributo e direito de

propriedade – no corpo normativo da Constituição, o direito de propriedade cede

passo diante da necessidade de rateio das despesas públicas, mas nem por isso

este último é menos prestigiado, tendo-se em vista que o princípio hospedado

pelo artigo 150, inciso IV, determina que, além de outros princípios constitucionais

tributários (legalidade, irretroatividade etc.), a tributação não pode ser de tal nível

que tenda a submeter a propriedade aos mesmos efeitos que o confisco

produziria, ampliando assim a garantia do direito de propriedade.

3.2 Tributo com efeito confiscatório

Se a Constituição Federal garante o direito de propriedade e

somente admite o confisco em hipótese excepcional (a título de pena), e se o

tributo, ainda que atinja a propriedade, não pode jamais revelar-se como pena,

129 O princípio do não-confisco no direito tributário, p. 41.

Page 143: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

parece claro que o tributo em nada se identifique com o confisco. Nesse sentido,

tributo confiscatório, em termos rigorosos, seria aquele que viesse a anular, a

suprimir o direito de propriedade. Por exemplo, o Imposto Predial e Territorial

Urbano se exigido à alíquota de 100% (cem por cento), seria situação que

certamente não encontraria amparo no ordenamento jurídico.

Assim, o comando normativo do artigo 150, inciso IV não veda

propriamente o tributo confiscatório, porque tal figura não seria possível dado que

se revelaria como pena, como afirmamos. Na verdade, o alcance do dispositivo é

maior, pois trata-se de evitar que o tributo venha a causar aquilo que o confisco

causaria (supressão da propriedade), daí falar-se em efeito confiscatório.

Acerca do tema, FÁBIO BRUN GOLDSCHMIDT afirma que “não se

trata de afastar tão-somente a tributação que toma para o Fisco, confisca,

literalmente, a propriedade; trata-se sim de afastar, por inconstitucional, toda a

tributação que gera ‘efeito de confisco’, o que, parece-nos, ocorre num momento

bem anterior”.130 O conceito de efeito confiscatório está ligado à idéia de se

verificar, em cada caso concreto (considerando-se suas especificidades, a

espécie tributária envolvida e o contribuinte), qual o nível, qual a dimensão do

tributo, a fim de se saber em que medida a propriedade é atingida, tratando-se da

questão com a intermediação aplicativa dos postulados normativos da

razoabilidade e da proporcionalidade, para descobrir-se como agiu o legislador

infraconstitucional no exercício da competência tributária, ou seja, como cuidou

legislativamente daquela determinada parcela da realidade (pressuposto de fato

130 O princípio do não-confisco no direito tributário, p.49.

Page 144: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

do tributo) por meio da edição de texto legal veiculador da instituição ou

majoração do tributo.

Nessa linha de raciocínio, cabe notar que o efeito confiscatório pode

fazer-se presente independentemente da intenção do legislador – aliás esta

pouca importa – por meio de distorções e deficiências causadas ao longo do

tempo no sistema tributário. O efeito confiscatório parece estar ligado ao tema do

abuso de direito ou desvio de finalidade, situação na qual há regularidade no

início dos acontecimentos, mas pode ocorrer o desvio no transcurso do tempo, de

forma que, salvo nos casos extremados (por exemplo, edição de lei que majore a

alíquota do IPTU para 90% do valor do imóvel), o efeito confiscatório acaba por se

materializar, paulatinamente, no curso temporal dos acontecimentos, por meio de

sucessivas alterações promovidas no sistema tributário, que redundam na

violação substancial da propriedade.

3.3 Verificação do efeito confiscatório e aplicabilidade a todos os tributos

Questão verdadeiramente difícil é a de se saber como identificar o

efeito confiscatório, isto é, qual o momento em que ele se concretiza e qual a

razão efetiva de seu aparecimento. Bastante interessante é a distinção formulada

por FÁBIO BRUN GOLDSCHMIDT quanto ao efeito de confisco em sentido

estrito. Para o autor, é “aquele que se verifica no tributo qualitativamente imposto

de forma regular e inatacável. Trata-se do uso qualitativamente legítimo do Poder

do Estado de instituir e arrecadar tributos, porém quantitativamente destrutivo. A

Page 145: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

inconstitucionalidade aqui decorre do exagero no montante do tributo”.131 No que

concerne ao efeito de confisco em sentido amplo, o autor aponta que nesse

“conceito estaria compreendida toda a tributação que, enquadrada nos

pressupostos traçados no parágrafo inicial para a caracterização do efeito de

confisco, apresente-se inconstitucional. O sentido amplo, evidentemente,

compreende o sentido estrito e ainda se estende para alcançar outras hipóteses

de ofensa ao art. 150, IV, da Constituição, que não aquelas decorrentes do

simples abuso do poder de tributar”.132

A segunda hipótese parece ser mais facilmente verificável, pois à

medida que se detecte a ofensa a algum dispositivo constitucional, por vício

formal ou material presente na lei, surge o efeito confiscatório pela simples falta

de autorização constitucional para a exigência do tributo. O primeiro caso revela-

se mais complexo, pois o montante do tributo, embora regularmente instituído,

apresenta-se como quantitativamente excessivo, daí decorrendo as dificuldades

quanto à caracterização do referido efeito.

Questão relevante é a de sabermos se de efeito confiscatório é o

sistema tributário ou cada tributo isoladamente considerado. Atento à questão,

ESTEVÃO HORVATH indaga

“A partir de quando o sistema pode ser considerado confiscatório?

Esta indagação não constituiria nenhuma novidade, porquanto é a

mesma que se põe com referência a cada tributo isoladamente

observado: é difícil saber-se a partir de quando um tributo passa a

ter efeito confiscatório da mesma forma que o é detectar a presença

da confiscatoriedade no ‘sistema’. Contudo, outra questão afigura- 131 O princípio do não-confisco no direito tributário, p. 100. 132 O princípio do não-confisco no direito tributário, p. 101.

Page 146: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

se-nos especialmente difícil de responder, qual seja: a admitir-se a

confiscatoriedade do sistema, a instituição ou a majoração de qual

tributo torna aquele confiscatório?”.133

A idéia de analisar o efeito confiscatório considerados todos os

tributos incidentes sobre o contribuinte e verificar qual o efeito que o novo tributo

causa, ou sua majoração e, em se constatando o mencionado efeito, declarar o

último tributo inconstitucional, parece razoável à primeira vista, mas esbarra na

questão da forma federativa do Estado brasileiro. Se cada esfera de governo

possui sua parcela da competência tributária e, portanto, é livre para instituir os

tributos que lhe cabem, como saber qual tributo deva ser excluso do sistema?134

Caso seja o último tributo, talvez este não seja significativo, e o sistema

permaneceria confiscatório; caso seja o mais gravoso, talvez na época de sua

instituição o sistema ainda não fosse confiscatório e, portanto, o culpado é outro

tributo. Assim, como regularizar a situação sem ferir a regra constitucional de

competência?

Porém, caso se considere cada tributo de forma isolada, pode-se

esvaziar a eficácia do princípio, uma vez que cada um deles pode estar fixado em

patamares razoáveis (assim não-confiscatórios), mas a carga tributária total talvez

se revele excessiva. De qualquer modo, como nosso propósito não é tratar do

princípio do não-confisco em si, mas apenas sublinhar sua relevância no trato dos

conceitos constitucionais, somos obrigados a deixar sem respostas as questões

levantadas, porque outros autores já delas se ocuparam de modo mais apropriado

e com maior profundidade.

133 O princípio do não-confisco no direito tributário, p. 82. 134 Cf. Estevão Horvath, O princípio do não-confisco no direito tributário, p. 85.

Page 147: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

Por fim, desejamos deixar registradas três idéias. A primeira é a de

que o efeito confiscatório deve ser verificado em cada tributo e também

considerado o sistema tributário em sua totalidade.135

A segunda é a de que o princípio pode ser aplicado às cinco

espécies tributárias, a saber: impostos, taxas, contribuições de melhoria,

contribuições especiais e empréstimos compulsórios (considerando-se o

entendimento do Supremo Tribunal Federal), seja pelo desvio de poder (falta de

autorização constitucional), seja pelo montante elevado.

A terceira é a de que, na construção do conteúdo dos conceitos

constitucionais pelo legislador e pelo intérprete-aplicador da lei, há de se ter em

conta a capacidade contributiva, levando-a à máxima eficácia normativa, mas sem

esquecer a limitação imposta pela vedação do efeito confiscatório.

135 Estevão Horvath salienta que “A nós parece que o controle da constitucionalidade do sistema tributário deve ser efetuado de ambas as formas: individualmente, com relação a cada tributo, de acordo com as respectivas particularidades, e do sistema em seu conjunto, embora reconheçamos a especial dificuldade que este último encerra” (O princípio do não-confisco no direito tributário, p. 86).

Page 148: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

CAPÍTULO 4

POSTULADOS NORMATIVOS

1. Definição de postulado normativo

Denominados pela doutrina, ora como princípios, ora como pautas

interpretativas ora como deveres a serem obedecidos na aplicação das normas

jurídicas, os postulados normativos podem ser considerados como metanormas,

ou seja, como normas que cuidam de outras normas, como normas cujo obeto é a

aplicação de outras normas jurídicas.

Como ensina HUMBERTO ÁVILA, “Esses deveres situam-se num

segundo grau e estabelecem a estrutura de aplicação de outras normas,

princípios e regras. Como tais, eles permitem verificar os casos em que há

violação às normas cuja aplicação estruturam”,136 de modo que só indiretamente

se poderia dizer que os postulados normativos foram violados, porque, a rigor,

foram as normas que deixaram de ser devidamente aplicadas.

136 Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 80.

Page 149: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

Cabe notar, desde logo, que o teor das considerações sobre tal tema

poderá variar segundo a classificação dogmática que se adote sobre os referidos

postulados, uma vez que há várias divergências doutrinárias sobre eles; portanto,

considerá-los normas jurídicas (princípios), ou metanormas, implica visualizá-los

positivados no ordenamento, no primeiro caso, ou presentes no ordenamento,

embora não positivados, no segundo.

A jurisprudência pátria, em especial a do Supremo Tribunal Federal,

em não poucas oportunidades menciona o princípio da razoabilidade e o princípio

da proporcionalidade, apontando-os como violados, mas não se aprofundando na

análise deles. Em alguns casos, podemos notar sua aplicação na solução de

casos concretos, ainda que a decisão não os mencione expressamente, como

ocorre, por exemplo, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 18.331, relator o

Ministro OROZIMBO NONATO:

“O poder de taxar não pode chegar à desmedida do poder de

destruir, uma vez que aquele somente pode ser exercido dentro dos

limites que o tornem compatível com a liberdade de trabalho,

comércio e da indústria e com o direito de propriedade. É um poder,

cujo exercício não deve ir até o abuso, o excesso, o desvio, sendo

aplicável, ainda aqui, a doutrina fecunda do ‘détournement de

pouvoir’. Não há que estranhar a invocação dessa doutrina ao

propósito da inconstitucinalidade, quando os julgados têm

proclamado que o conflito entre a norma comum e o preceito da Lei

Maior pode se acender não somente considerando a letra do texto,

como também, e principalmente, o espírito do dispositivo

invocado”.137

137 Publicado na Revista Forense, vol. 145, p. 164 e seguintes.

Page 150: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

Há quem sustente que a proporcionalidade encontra fundamento

constitucional no princípio do devido processo legal, previsto no artigo 5º, inciso

LIV, da Constituição Federal, em sua face do substantive due process of law

(devido processo legal material), atinente à própria elaboração do texto normativo

e não em seu aspecto formal (procedural due process of law), portanto menos

ligado aos requisitos do processo legislativo em si, e mais ao próprio tratamento

dado pela lei à situação que pretende regular, que, dessa forma, não pode vir

marcada pelos tons da irrazoabilidade ou da desproporcionalidade.

GILMAR FERREIRA MENDES, por exemplo, que considera a

proporcionalidade como um princípio, referindo-se a determinada decisão da

Corte Suprema sobre direito eleitoral, afirma que “Portanto, o Supremo Tribunal

Federal considerou que, ainda que fosse legítimo o estabelecimento de restrição

ao direito dos partidos políticos de participar do processo eleitoral, a adoção de

critério relacionado com fatos passados para limitar a atuação futura desses

partidos parecia manifestamente inadequada e, por conseguinte, desarrazoada.

Essa decisão parece consolidar o desenvolvimento do princípio da

proporcionalidade como postulado constitucional autônomo que tem a sua sede

material na disposição constitucional sobre o devido processo legal (art. 5º, inciso

LIV)”.138

No texto do então Advogado-Geral da União, encontra-se referência

a outro acórdão do Supremo Tribunal Federal, no qual era discutida a validade do

teor de norma regulamentar limitadora da quantidade de cigarros em um maço ou

138 O princípio da proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: novas leituras, In: Repertório IOB de Jurisprudência, vol. 14, cad. 1, p. 366.

Page 151: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

pacote. Nele se destaca passagem do voto do Ministro CELSO DE MELLO, que,

tratando da razoabilidade e da proporcionalidade, deixou consignado que

“... especialmente se considerar a jurisprudência constitucional do

Supremo Tribunal Federal que já assentou o entendimento de que

transgride o princípio do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV) –

analisado este na perspectiva de sua projeção material (substantive

due process of law) – a regra material que veicula, em seu conteúdo,

prescrição normativa qualificada pela nota da irrazoabilidade”.139

Como podemos notar, os postulados normativos irradiam-se sobre

diversos aspectos da atuação do Estado, inclusive sobre a atividade estatal de

produção legislativa, e encontra, por assim dizer, sua justificação dogmática em

diversos dispositivos constitucionais, em especial na dimensão do devido

processo legal material (substantive due process of law).

Seja como for, não pretendemos ingressar na análise da questão, ou

seja, se os postulados são positivados ou não; se são princípios jurídicos ou não,

mas, antes, apenas deixaremos assentado que, para os limites do presente

estudo, adotaremos a posição de HUMBERTO ÁVILA porque esta nos parece ser

bastante apropriada, e consideraremos os postulados normativos como situados

em plano distinto daquele em que se situam as normas jurídicas, uma vez que,

não se confundindo com elas, ordenam e estruturam sua aplicação. São, pois,

deveres estruturantes (expressão do mencionado professor) de aplicação das

normas, intimamente relacionadas, em conseqüência, com o tema da

interpretação dos textos normativos, decorrendo daí nossa opção metodológica

139 Suspensão da Segurança nº. 1320, Diário da Justiça de 14/04/99.

Page 152: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

de tratar deles em momento antecedente àquele em que cuidaremos da questão

da interpretação.

Cabe notar que a forma de atuação dos postulados normativos é

diferente da dos princípios jurídicos, dado que estes se revelam finalísticos, isto é,

apontam para algo que o ordenamento deseja ver concretizado, consagram

valores que tenciona ver implementados no seio da sociedade por ele regulada,

ao passo que, nas palavras de HUMBERTO ÁVILA, “os postulados, de um lado,

não impõem a promoção de um fim, mas, em vez disso, estruturam a aplicação

do dever de promover um fim; de outro, não prescrevem indiretamente

comportamento, mas modos de raciocínio e de argumentação relativamente a

normas que indiretamente prescrevem comportamentos. Rigorosamente, não se

podem confundir princípios com postulados”.140

Por tais razões, no que toca a uma possível definição de postulado

normativo, podemos entender que se trata de uma metanorma; de uma norma

que cuida da aplicação de outras normas; de um dever estruturante que

estabelece, como veremos, uma vinculação entre determinados elementos que

desempenham papel de critério de aferição da interpretação-aplicação das

normas jurídicas. Nas palavras mais precisas de HUMBERTO ÁVILA,

“Postulado, no sentido kantiano, significa uma condição de

possibilidade do conhecimento de determinado objeto, de tal sorte

que ele não pode ser apreendido sem que essas condições sejam

preenchidas no próprio processo de conhecimento. Os postulados

variam conforme o objeto cuja compreensão condicionam. Daí dizer-

se que há postulados normativos e ético-políticos. Os postulados

140 Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 81.

Page 153: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

normativos são entendidos como condições de possibilidade do

conhecimento do fenômeno jurídico. Eles, também por isso, não

oferecem argumentos substanciais para fundamentar uma decisão,

mas apenas explicam como pode ser obtido o conhecimento do

Direito”.141

2. Instrumento de auxílio na interpretação e na aplicação das normas

jurídicas

Em que pese o entendimento que considera os aludidos postulados

normativos – sobretudo os da razoabilidade e da proporcionalidade – como

princípios jurídicos, pensamos, com a devida vênia, revelar-se mais apropriado

não considerá-los como princípios, tampouco como regras jurídicas. Não os

tomamos como princípios porque não apontam para algo que se deseja ver

implantado na sociedade, não apontam para valores a serem materializados no

do processo de concretização do direito, como é próprio dos princípios; e também

não os consideramos regras porque não regulam direta e expressamente

condutas, não determinam comportamentos.

De nosso ponto de vista, são elementos que tratam da interpretação-

aplicação das normas jurídicas (princípios e regras), aplicáveis, portanto, no

momento da resolução do caso concreto, considerando a simultânea

interpretação do texto normativo e do fato, daí porque nos parece que os

postulados normativos são instrumentos de auxílio na interpretação e na

aplicação das normas jurídicas; são meios postos à disposição do intérprete para

141 Repensando o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular. Revista Trimestral de Direito Público, vol. 24, p. 161/162.

Page 154: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

melhor efetivação do conhecimento e aplicação do ordenamento jurídico; enfim,

são pautas interpretativas.

Embora certamente não nos pareça desarrazoado buscar seu

fundamento positivo no devido processo legal material, queremos acreditar que,

rigorosamente falando, os postulados normativos não são, por assim dizer,

fisicamente encontráveis no ordenamento jurídico, mas dele defluem por uma

exigência lógico-cognitiva; exsurgem da própria condição estrutural do

ordenamento. Esta é a afirmação de HUMBERTO ÁVILA ao fazer menção

específica ao postulado da proporcionalidade, porque “ele não pode ser deduzido

ou induzido de um ou mais textos normativos, antes resulta, por implicação lógica,

da estrutura das próprias normas jurídicas estabelecidas pela Constituição

brasileira e da própria atributividade do Direito”;142 e também de LUÍS VIRGÍLIO

AFONSO DA SILVA, que entende que a busca de uma fundamentação jurídico-

positiva, referindo-se à proporcionalidade, revela-se infrutífera e que a exigência

de sua aplicação “para a solução de colisão entre direitos fundamentais não

decorre deste ou daquele dispositivo constitucional, mas da própria estrutura dos

direitos fundamentais”.143

Quando mencionamos que os postulados normativos decorrem da

condição estrutural do ordenamento jurídico, pensamos sobretudo em sua

unicidade e sistematicidade, vale dizer, estamos tomando por base a premissa

cognitiva e interpretativa de que o ordenamento é uno, incindível em sua

compostura (sem prejuízo da possibilidade de dividi-lo para fins didáticos),

142 A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever de proporcionalidade. Revista de Direito Administrativo, vol. 215, p. 153. 143 O proporcional e o razoável, Revista dos Tribunais, vol. 798, p. 43.

Page 155: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

somada à sua consideração sistemática, como algo formado por um repertório

composto de elementos (no caso as normas jurídicas) e por regras estruturais que

fornecem a relação existente entre os referidos elementos, formando um conjunto

articulado de sentido, algo no qual se reconhece uma coerência interna. Ora,

desde que tal condição, que chamamos de premissa cognitiva e interpretativa,

seja aceita, não nos parece difícil visualizar o aparecimento lógico dos postulados

normativos como pautas interpretativas, como elementos regentes do processo

de interpretação do ordenamento, pois a razoabilidade, a proporcionalidade, a

proibição do excesso e ainda outros revelam-se verdadeiras condições de

possibilidade da interpretação e aplicação das normas jurídicas.

Em outras palavras, ao se atribuir ao ordenamento jurídico a

característica de sistema – e parece-nos difícil fugir de tal premissa – não há

como conceber qualquer interpretação que dele se faça sem um mínimo de

consideração pelas diretrizes fornecidas pelos postulados normativos, para se

evitarem incongruências, distorções de sentido das normas jurídicas ou mesmo

sua aplicação de forma desmedida em relação ao caso concreto.

O mínimo que se espera de uma interpretação-aplicação das

normas é que haja congruência entre o seu comando normativo e a situação

específica que a norma objetiva regular, portanto, uma vinculação apropriada com

a realidade regulada, o que não ocorre, por exemplo, quando se pretende que o

Estado pague adicional de férias de um-terço para servidores inativos, uma vez

que estes não têm direito a férias (postulados da razoabilidade);144 quando se

pretende fazer prevalecer uma elevação da taxa judiciária da ordem de oitocentos

144 Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 98.

Page 156: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

por cento, que não pode ser aceita porque impediria o acesso de parcela dos

cidadãos à prestação jurisdicional (postulado da proibição do excesso); 145 e,

ainda, quando se pretende a obrigatoriedade da pesagem de botijões de gás à

vista do consumidor que, embora possa ser medida apta à proteção deste,

poderia trazer excessivo ônus às empresas envolvidas e, ademais, a garantia dos

direitos dos consumidores poderia ser promovida por outro meio que se revelasse

menos restritivo de direitos (postulado da proporcionalidade).146 O que se nota

nesses exemplos é que os postulados normativos direcionam a interpretação dos

textos legais e conduzem a aplicação das normas jurídicas para contemplar as

especificidades de cada situação fática.

Para os limitados fins do presente estudo, portanto, interessa-nos

menos cuidar das diversas denominações atribuídas aos postulados normativos

pela doutrina e pela jurisprudência, e mais deixar fixada a idéia da necessidade

de sua aplicação como decorrência lógico-estrutural do ordenamento jurídico, e

realçar a função que desempenham como valiosos instrumentos de auxílio na

interpretação e na aplicação das normas jurídicas. Cabe notar que o estudo dos

postulados normativos não exige do intérprete-aplicador do direito uma atividade

de verificação de subsunção, mas “a ordenação e a relação entre vários

elementos (meio e fim, critério e medida, regra geral e caso individual) e não um

mero exame de correspondência entre a hipótese normativa e os elementos de

fato”, como afirma HUMBERTO ÁVILA.147

145 Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 90. 146 Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 115. 147 Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 81/82.

Page 157: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

3. Espécies de postulados normativos

Como foge ao escopo deste trabalho um rigoroso estudo sobre os

postulados normativos, mas apenas deles tomar conhecimento e utilizá-los como

subsídios para um melhor processo interpretativo do ordenamento, nós nos

ocuparemos agora em verificar, em breves linhas, quais as principais espécies de

postulados e suas características mais relevantes. Adotamos a classificação

proposta por HUMBERTO ÁVILA, que os divide em postulados inespecíficos e

postulados específicos, e aponta como exemplos da primeira espécie a

ponderação, a concordância prática e a proibição de excesso e, como da

segunda, a igualdade, a razoabilidade e a proporcionalidade.

Deve-se notar que tal classificação evidentemente não exclui a

possibilidade de se considerarem outros postulados normativos como elementos

do conhecimento jurídico. Mencionando o próprio autor, em trabalho anterior,148 o

postulado da coerência, segundo o qual o conhecimento da norma jurídica tem

como pressuposto o do sistema jurídico; o postulado da integridade, pelo qual só

é possível conhecer a norma pela análise simultânea do fato e a descrição dos

fatos dá-se com o apoio dos textos normativos; e o postulado da reflexão, pelo

que só é possível conhecer a norma jurídica tendo-se em vista uma pré-

compreensão do intérprete (uma expectativa sobre a solução do caso concreto),

uma vez que o texto normativo sem a hipótese fática não se revela problemático,

e a hipótese, por sua vez, somente aparece com o texto normativo.

148 Repensando o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular. Revista Trimestral de Direito Público, vol. 24, p.162.

Page 158: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

4. Postulados normativos inespecíficos

Como adiantamos, os chamados postulados normativos

inespecíficos são a ponderação, a concordância prática e a proibição de excesso,

e são assim designados porque podem ser aplicados independentemente dos

elementos que são objeto de relacionamento, ou seja, os elementos e os critérios

não são específicos, não são indicados, revelando-se, pois, indeterminados.

Como aponta HUMBERTO ÁVILA, nesses casos “os postulados

normativos exigem o relacionamento entre elementos, sem especificar, porém,

quais são os elementos e os critérios que devem orientar a relação entre eles”,149

sendo, portanto, idéias gerais desprovidas de critérios orientadores da aplicação.

4.1 Ponderação

No dizer de HUMBERTO ÁVILA, a “ponderação de bens consiste

num método destinado a atribuir pesos a elementos que se entrelaçam, sem

referência a pontos de vista materiais que orientem esse sopesamento”, 150

podendo-se falar, assim, na ponderação de bens, de valores, de interesses,

devendo-se notar, entretanto, a necessidade de estruturação da ponderação em

critérios previamente determinados, sob pena de reduzida utilidade.

O autor menciona os bens jurídicos como situação, estados ou

propriedades fundamentais para a realização dos princípios jurídicos, como a

liberdade de escolha e a autonomia, como bens jurídicos protegidos pelo princípio

da livre iniciativa. Os interesses são os bens jurídicos quando relacionados a

149 Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 85. 150 Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 86.

Page 159: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

algum sujeito que os pretenda obter, como a liberdade e a autonomia que, sob

certas circunstâncias fáticas, podem ser objeto de fruição por determinada

pessoa, passando assim a fazer parte de sua esfera de interesses. Por sua vez,

os valores, como informadores do conteúdo axiológico das normas jurídicas, são

algo que deva ser buscado, implementado ou protegido, como a liberdade, e

todos esses elementos que se revelam passíveis de constituir objeto de

ponderação em cada caso concreto.151

Para a fixação dos critérios da ponderação, o mencionado autor

aponta três etapas fundamentais, quais sejam, a preparação da ponderação, a

realização da ponderação (com ênfase na fundamentação da relação

estabelecida entre os elementos sopesados) e a reconstrução da ponderação e

confere especial atenção ao papel dos princípios constitucionais e às regras de

argumentação construídas com base neles.152

4.2 Concordância prática

Se a ponderação indica um dever estruturante que consiste na

atribuição de peso aos elementos envolvidos em cada caso (sopesamento de

bens, valores etc.), a concordância prática, por seu turno, sugere certo

direcionamento a ser seguido na tarefa de ponderação, qual seja, “o dever de

realização máxima de valores que se imbricam”.153

Naqueles casos concretos em que se pode observar a presença

simultânea de princípios constitucionais que apontam para sentidos contrários, 151 Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 87. 152 Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 87/88. 153 Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 88.

Page 160: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

vale dizer, de princípios que hospedam valores conflitantes entre si – e que, não

obstante tal conflito, são ao mesmo tempo aplicáveis à espécie – como, por

exemplo, princípios que protegem o contribuinte e princípios que informam os

poderes do Estado, o postulado da concordância prática sinaliza que a necessária

composição entre eles, a ser feita no caso concreto, deverá dar-se para protegê-

los ao máximo.

Em outros termos, a prevalência de um ou outro princípio no caso

concreto haverá de obedecer a um certo equilíbrio que não implique desprestígio

demasiado àquele que foi preterido, isto é, a concordância entre os

princípios/valores entrelaçados há de ser de tal ordem equilibrada e razoável, que

permita, até o limite das possibilidades fáticas, a proteção de ambos os elementos

que se revelam conflitantes.

Certamente não ignoramos o acentuado grau de abstração do

postulado, que não chega a apontar quais critérios formais ou materiais devem

ser utilizados para sua utilização, residindo aí a razão de sua designação como

inespecífico, mas devemos reconhecer que nem por isso ele perde possibilidade

de aplicação no caso concreto. Como exemplo, citamos o caso do planejamento

tributário baseado no princípio da livre iniciativa econômica e no direito de

propriedade, prestigiados pela Constituição Federal no artigo 170, em conflito com

a exigência da função social da propriedade, também constante do artigo 170,

que impõe limites ao planejamento tributário.

4.3 Proibição do excesso

Page 161: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

A proibição do excesso, como o próprio termo antecipa, traz consigo

a idéia de limite e, como tal, por vezes pode confundir-se com uma das faces da

proporcionalidade ou mesmo com o postulado da concordância prática. Todavia

refere-se especificamente a uma restrição – que se revele excessiva – a algum

direito fundamental, e indica que a concretização dos princípios constitucionais

exigida pelo ordenamento não pode implicar a limitação excessiva dos direitos

fundamentais envolvidos.

Consoante afirmado por HUMBERTO ÁVILA, “A realização de uma

regra ou princípio constitucional não pode conduzir à restrição a um direito

fundamental que lhe retire um mínimo de eficácia. Por exemplo, o poder de

tributar não pode conduzir ao aniquilamento da livre iniciativa”,154 de modo que,

como dissemos, o prestígio a um dos valores envolvidos (o poder estatal de exigir

tributos – competência tributária) não pode resultar no desprestígio total ao outro

valor (proteção da propriedade privada). Como outro exemplo, tem-se o

afastamento da pretensão de se estabelecerem rigorosos critérios de fiscalização

e controle sobre as atividades dos contribuintes, impedindo-os de adquirirem

selos ou estampilhas, medida que resultaria no esvaziamento de um seu direito

fundamental, qual seja, a livre iniciativa econômica e empresarial.

Nestes exemplos e em outros que poderiam ser apontados não se

discute a necessidade de adequação das medidas adotadas pelo Poder Público e

de seus eventuais motivos justificados, mas que, qualquer que seja a medida

adotada, ela não poder causar restrição excessiva a nenhum direito fundamental

154 Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 89.

Page 162: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

envolvido, daí tratar-se do postulado em tela como limite a ser observado na

hipótese concreta.

5. Postulados normativos específicos

Os postulados normativos específicos são assim chamados em

virtude da presença de critérios determinados que permitem sua aplicação, quais

sejam, a igualdade (com os elementos sujeitos, critério de discrímen e finalidade);

a razoabilidade (geral e individual, norma e realidade, critério e medida) e

proporcionalidade (meio e fim).

Por tal razão, “Nessas hipóteses os postulados normativos exigem o

relacionamento entre elementos específicos, com critérios que devem orientar a

relação entre eles”.155

5.1 Igualdade

O preceito da isonomia também pode ser considerado um postulado

normativo aplicativo. Com efeito, a igualdade pode desempenhar a função de

regra jurídica, determinando a proibição de tratamento revelador de discriminação

indevida; pode ser tomada como princípio jurídico, na medida em que estabeleça,

por meio do fim a ser promovido, um estado igualitário; e ainda pode revestir-se

da qualidade de postulado normativo, propiciando a interpretação e aplicação de

normas jurídicas em função de certos elementos, do critério adotado para a

diferenciação e da finalidade justificadora da distinção, bem como da relação

155 Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 86.

Page 163: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

havida entre eles, isto é, a necessária congruência de critério em razão da

finalidade.156

Para tratar-se da questão da igualdade e de sua concretização, é

fundamental a indagação acerca do fim que fundamenta a diferenciação; qual o

tratamento diferenciado dado pelo texto normativo; qual o critério adotado para a

adoção da discriminação e, ainda, se existe relação lógica entre o critério e a

diferenciação.

Nas palavras de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, “Tem-

se que investigar, de um lado, aquilo que é adotado como critério discriminatório;

de outro lado, cumpre verificar se há justificativa racional, isto é, fundamento

lógico, para, à vista do traço desigualador acolhido, atribuir o específico

tratamento jurídico construído em função da desigualdade proclamada.

Finalmente, impende analisar se a correlação ou fundamento racional

abstratamente existente é ‘in concreto’, afinado com os valores prestigiados no

sistema normativo constitucional”.157

Embora se afirme constantemente que a igualdade pode desdobrar-

se em igualdade na lei, referente ao tratamento normativo das pessoas e

situações dados pelo legislador, e igualdade perante a lei, relativa ao momento de

aplicá-la ao caso concreto, é evidente que o princípio da igualdade não significa

tratar todos de maneira igual nem faria sentido tal pretensão, uma vez que é

característica das normas a discriminação, vale dizer, toda norma jurídica é

discriminatória na medida em que separa aquilo que fica sob seu alcance daquilo

156 Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 93. 157 O conteúdo jurídico do princípio da igualdade, p. 27/28.

Page 164: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

que permanece fora dele. Como acentua CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE

MELLO, “Como as leis nada mais fazem senão discriminar situações para

submetê-las à regência de tais ou quais regras – sendo esta mesma sua

característica funcional – é preciso indagar quais as discriminações juridicamente

intoleráveis”.158

Tal característica já fora vislumbrada por HANS KELSEN com as

seguintes palavras:

“A igualdade dos indivíduos sujeitos à ordem jurídica, garantida pela

Constituição, não significa que aqueles devam ser tratados por

forma igual nas normas legisladas com fundamento na Constituição,

especialmente nas leis. Não pode ser uma tal igualdade aquela que

se tem em vista, pois seria absurdo impor os mesmos deveres e

conferir os mesmos direitos a todos os indivíduos sem fazer

quaisquer distinções, por exemplo, entre crianças e adultos, sãos de

espírito e doentes mentais, homens e mulheres. Quando na lei se

vise a igualdade, a sua garantia apenas pode realizar-se estatuindo

a Constituição, com referência a diferenças completamente

determinadas, como talvez as diferenças de raça, de religião, de

classe ou de patrimônio, que as leis não podem fazer acepção das

mesmas, quer dizer: que as leis em que forem feitas tais distinções

poderão ser anuladas como inconstitucionais”.159

Portanto o ponto central para se tratar da igualdade repousa na

análise do critério diferenciador adotado e na sua necessária relação com a

finalidade que fundamenta o tratamento diferenciado, de forma que as pessoas ou

as situações podem ser tratadas de modo igual ou desigual em razão de um

determinado critério de discriminação. Como exemplo, duas pessoas podem ser

158 O conteúdo jurídico do princípio da igualdade, p. 16. 159 Teoria pura do direito, p. 158.

Page 165: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

tratadas desigualmente em função do critério do sexo, na hipótese de um

concurso público que pretenda selecionar profissionais para efetuar revista

corporal em pessoas que venham a entrar em determinada repartição pública, de

sorte que não viola a isonomia a reserva de certo número de vagas para

mulheres, que serão encarregadas de revistar outras mulheres, tarefa que não

poderia ser delegada aos homens. Em outro caso, duas pessoas podem ser

tratadas desigualmente segundo critérios da idade para fins do exercício de direito

ao voto, se uma delas tiver alcançado a maioridade e a outra não.

Outro exemplo que nos chama a atenção é a regra legal que

determina a necessidade de depósito em dinheiro ou o arrolamento de bens como

condições de interposição de recurso para a segunda instância, em sede de

processo administrativo tributário (Decreto nº 70.235, de 06 de março de 1972,

artigo 33). Neste caso, a finalidade da regra desigualadora é decidir quem tem

direito a uma segunda decisão no processo administrativo e quem não o tem,

adotando-se como critério discriminatório a condição financeira de cada pessoa,

aos mais favorecidos, quanto ao poder econômico, o referido direito é

reconhecido e aos menos abastados tal direito é negado. Nesta hipótese,

queremos acreditar que há violação à igualdade, uma vez que, segundo nosso

entendimento, o critério de discriminação adotado – condição financeira das

pessoas – não guarda a necessária congruência lógico-racional com a finalidade

pretendida.

Podemos finalizar o presente item novamente com o ensinamento

de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, quando afirma o professor que “a

discriminação não pode ser gratuita ou fortuita. Impende que exista uma

Page 166: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

adequação racional entre o tratamento diferençado construído e a razão

diferencial que lhe serviu de supedâneo. Segue-se que se o fator diferencial não

guardar conexão lógica com a disparidade de tratamento jurídicos dispensados a

distinção estabelecida afronta o princípio da isonomia”.160

5.2 Razoabilidade

Tal como ocorre com a aplicação dos demais postulados normativos,

a razoabilidade também encerra dificuldades, primeiro, porque se trata de

conceito fluido; depois porque há em torno dela inúmeras divergências

terminológicas, uma vez que a doutrina e a jurisprudência não utilizam o termo

com o mesmo significado: por muitos é tratada como princípio e por outros como

sinônimo de proporcionalidade e faltam critérios para que se possa saber como os

termos foram empregados. Mesmo aqueles que a tratam como postulado

reconhecem a possibilidade de seu enquadramento na proibição de excesso ou

mesmo na proporcionalidade em sentido estrito. Como depende do enfoque

adotado, certamente não há denominação certa ou errada, e nossa intenção não

é dirimir a controvérsia terminológica, uma vez que fugiria dos limites deste

trabalho.

Como afirma WEIDA ZANCANER, “A doutrina ao se pronunciar

sobre o princípio da razoabilidade ora enfoca a necessidade de sua observância

pelo Poder Legislativo, como critério para reconhecimento de eventual

inconstitucionalidade da lei, ora o apresenta como condição de legitimidade dos

160 O conteúdo jurídico do princípio da igualdade, p. 49.

Page 167: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

atos administrativos, ora aponta sua importância para o Judiciário quando da

aplicação da norma ao caso concreto”.161

Também não nos preocupa em demasia buscar um fundamento

dogmático para ela, averiguar se é encontrada de forma expressa ou implícita no

ordenamento jurídico. Para certa doutrina, inspirada nos estudos de origem

alemã, a razoabilidade é inerente ao Estado de Direito e integra de modo implícito

o sistema normativo como um princípio constitucional não escrito. Para outra

parte, que recebe influência da doutrina norte-americana, ela pode ser extraída do

princípio do devido processo legal, de modo que a razoabilidade das leis é

exigível em virtude do aspecto material, isto é, do caráter substantivo do referido

princípio constitucional.162 Desejamos ressaltar, entretanto, que a razoabilidade

ou a necessidade de sua aplicação deflui do ordenamento jurídico e desempenha

o papel de pauta interpretativa, de critério de interpretação e aplicação do

sistema, devendo ser considerada em cada caso concreto.

Sua caracterização torna-se necessária, portanto, para evitar que o

postulado não resulte esvaziado de sentido, em virtude de seu alto grau de

abstração, e para que não seja tomado como mero recurso retórico. A noticiada

abstração ou indeterminação de seu significado não prejudica sua aplicação; ao

contrário, auxilia, pois permite considerar as especificidades de cada hipótese.

Começando pela fluidez de significação, podemos notar que são

usadas expressões como razoabilidade de uma alegação ou de uma

interpretação; razoabilidade da função legislativa; razoabilidade exigida como

161 Razoabilidade e moralidade: princípios concretizadores do perfil constitucional do estado social e democrático de direito, Revista Diálogo Jurídico, ano I, n. 9, p. 3. 162 Cf. Luís Roberto Barroso, Interpretação e aplicação da constituição, p.237.

Page 168: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

forma de afastamento de condutas incoerentes, desprovidas de sensatez, ou

ainda que ela pressupõe equilíbrio, moderação, não-arbitrariedade, enfim. Com

isso, a razoabilidade certamente depende da premissa adotada e do ponto de

vista pelo qual é tratada. Ensina WEIDA ZANCANER que

“Em suma, um ato não é razoável quando não existiram os fatos em

que se embasou; quando os fatos, embora existentes, não guardam

relação lógica com a medida tomada; quando mesmo existente

alguma relação lógica, não há adequada proporção entre uns e

outros; quando se assentou em argumentos ou em premissas,

explícitas ou implícitas, que não autorizam do ponto de vista lógico,

a conclusão deles extraída.”163

Procuramos aqui ressaltar, sem prejuízo de outros passíveis de

consideração, dois de seus aspectos, quais sejam, a razoabilidade necessária na

própria elaboração dos textos normativos, ou seja, no modo de regular, em

abstrato, a conduta (na criação das leis, em sentido amplo); e a razoabilidade

necessária na interpretação e aplicação da norma jurídica, no processo mesmo

de concretização do direito.

Quanto ao primeiro aspecto, deve-se levar em consideração a

atuação do Estado na edição das leis, as circunstâncias concretas consideradas

como base, a fim de se verificar a propriedade com que foram tratadas pelo texto

legal. Trata-se de avaliar a qualidade da normalização produzida sobre aquela

parcela específica da realidade; quais os motivos ensejadores da norma jurídica;

quais os fins por ela almejados e quais os meios empregados para tanto,

conformando aquilo a que LUÍS ROBERTO BARROSO denomina razoabilidade

163 Razoabilidade e moralidade: princípios concretizadores do perfil constitucional do estado social e democrático de direito, Revista Diálogo Jurídico, ano I, n. 9, p. 4.

Page 169: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

interna, ou seja, a “relação racional e proporcional entre seus motivos, meios e

fins” e de razoabilidade externa, como a “adequação aos meios e fins admitidos e

preconizados pelo Texto Constitucional”.164

Essa regulação da realidade com propriedade e pertinência, essa

aferição da razoabilidade certamente traz dificuldades sérias, uma vez que vai

além de um controle dito objetivo de constitucionalidade da lei, porque ingressa

na seara da comumente chamada discricionariedade do legislador ou liberdade

de conformação legislativa que, em princípio, não poderia ser objeto de controle

pelo Poder Judiciário. Aponta JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO que

“(i) Em primeiro lugar, a lei é tendencialmente uma função de

execução, desenvolvimento ou prossecução dos fins estabelecidos

na Constituição, pelo que sempre se poderá dizer que, em última

análise, a lei é vinculada ao fim constitucionalmente fixado; (ii) por

outro lado, a lei, embora tendencialmente livre no fim, não pode ser

contraditória, irrazoável, incongruente consigo mesma.

Nas duas hipóteses assinaladas, toparíamos com a vinculação do

fim da lei: no primeiro caso, a vinculação do fim da lei decorre da

Constituição, no segundo caso, o fim imanente à legislação imporia

os limites materiais da não contraditoriedade, razoabilidade e

congruência”.165

Este primeiro ponto que precisamos explicitar é tratado por

HUMBERTO ÁVILA de razoabilidade como congruência. Afirma ele que o

postulado “exige a harmonização das normas com suas condições externas de

aplicação”, isto é, em qualquer medida considerada, há de se verificar a

“recorrência a um suporte empírico existente”, de modo que há de se tomar a

164 Interpretação e aplicação da constituição, p. 226/227. 165 Apud Luís Roberto Barroso, Interpretação e aplicação da constituição, p. 231.

Page 170: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

conduta regulada (ato, fato, situação, pessoa, etc.) para se verificar o modo como

foi normalizada, qual tratamento jurídico que lhe foi ofertado, a fim de se aferir a

razoabilidade – tendo-se em conta, como critério, os valores hospedados pelo

ordenamento, em especial pela Constituição Federal – e se apurar se, por acaso,

não foi eleita pelo legislador uma causa inexistente ou insuficiente para a atuação

estatal, isto é, se não foi violada a exigência de vinculação à realidade. Fala-se,

então, em dever de congruência e de fundamentação na natureza das coisas,

pois “desvincular-se da realidade é violar os princípios do Estado de Direito e do

devido processo legal”.166

No que concerne ao segundo aspecto, deve-se considerar a

razoabilidade necessária na aplicação da norma jurídica ao caso concreto,

tomando-se agora em conta o critério da decidibilidade, a fim de se saber se a

interpretação dada ao texto normativo obedece às exigências específicas do caso

concreto. Com tal afirmação, poder-se-ia notar que a razoabilidade poderia estar

presente no primeiro plano (na elaboração do texto legal), tendo a lei regulado de

modo coerente e razoável a realidade. Pode, entretanto, estar ausente no caso

concreto, em virtude de uma interpretação-aplicação menos autorizada do texto

legal, quer porque o caso pode revelar-se uma exceção à regra geral, quer

porque a interpretação construída desobedece aos princípios constitucionais

incidentes na hipótese e assim por diante.

Nesse sentido, HUMBERTO ÁVILA, naquilo que denomina de

razoabilidade como eqüidade, que exige a harmonização da norma geral com o

166 Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 99.

Page 171: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

caso individual, afirma que, em razão de eventuais especificidades, nem toda

norma incidente é aplicável e que

“Uma regra não é aplicável somente porque as condições previstas

em sua hipótese são satisfeitas. Uma regra é aplicável a um caso

se, e somente se, suas condições são satisfeitas e sua aplicação

não é excluída pela razão motivadora da própria regra ou pela

existência de um princípio que institua uma razão contrária”.167

Para deixar claro aquilo que procuramos demonstrar e como

aplicação prática de tais considerações, podemos mencionar três exemplos.

O primeiro refere-se a determinada lei estadual que criou adicional

de férias de um-terço para servidores inativos, cuja constitucionalidade foi levada

à apreciação do Supremo Tribunal Federal e este considerou indevido o aludido

adicional, uma vez que se tratava de vantagem pecuniária destituída de causa e,

por conseguinte, de razoabilidade, à medida que somente poderia auferir

adicional de férias aqueles que efetivamente gozam férias.168

O segundo, particularmente interessante, é o de uma fábrica de

sofás de pequeno porte, enquadrada como tal para fins de recolhimento conjunto

de tributos federais. Ela foi exclusa de tal regime jurídico por ter violado

determinada condição imposta pela lei, consistente em não efetuar a importação

de produtos estrangeiros. Ocorre que a empresa realizou uma operação de

importação: uma única importação e de apenas quatro pés de sofá. Tendo sido

exclusa do regime jurídico beneficiado, levou a questão a julgamento na esfera

administrativa, sede na qual a referida exclusão foi anulada, por violar a

167 Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 97/98. 168 Ação Direta de Inconstitucionalidade, Relator Ministro Celso de Mello, decisão de medida liminar publicada no Diário da Justiça da União de 26.5.1995.

Page 172: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

razoabilidade, em hipótese na qual se poderia considerar que a norma incidiu,

mas deixou-se de aplicar a conseqüência de sua incidência (exclusão do regime

tributário especial), porque a desobediência ao comportamento previsto como

obrigatório (não efetuar importação) não afetou a promoção do fim buscado pela

lei (estímulo da produção nacional).169

O terceiro exemplo é o de um concurso público que definiu como

critério de classificação dos candidatos a pontuação obtida em razão dos títulos

apresentados. Foi considerada válida neste particular, mas declarada não válida

no ponto em que estabeleceu a pontuação dos títulos também como critério de

aprovação ou reprovação, pela falta de razoabilidade de tal medida.170

Podemos notar que, no primeiro exemplo, a razoabilidade não é

observada no primeiro aspecto, isto é, no próprio tratamento normativo dado ao

fato, não havendo relação de congruência entre a lei e a realidade regulada, uma

vez que não há o menor sentido em se pretender pagar adicional de férias a

quem de férias não goza regularmente.

No segundo caso, o tratamento normativo parece razoável, uma vez

que lei proibiu a importação de produtos estrangeiros com o objetivo de privilegiar

a indústria nacional, estabelecendo tal proibição como condição necessária para o

gozo do benefício tributário. Não obstante, a aplicação da norma ao caso concreto

não se revestiu da mesma razoabilidade em virtude da exceção revelada pela

hipótese, dado que a importação levada a termo não foi significativa e, como tal,

não prejudicou o fim buscado pela norma jurídica.

169 Segundo Conselho de Contribuintes, Segunda Câmara, Processo nº. 13003.000021/99-14, Sessão de 18.10.2000. 170 Agravo de Instrumento nº. 194.188 (AgRg), Relator Ministro Marco Aurélio (RTJ 167:305).

Page 173: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

No terceiro exemplo, ocorre o mesmo, considerando-se que a

pontuação obtida pela apresentação dos títulos, em concurso público, como

critério de classificação dos candidatos, pode coadunar-se com a razoabilidade,

mas dela distancia-se como critério de aprovação ou reprovação.

Dessa forma, embora conscientes das dificuldades de aplicação do

postulado da razoabilidade, em razão de sua abstração, acreditamos que buscar

a aplicação da razoabilidade não significa ceder passo ao subjetivismo, tampouco

pretender dar ao intérprete-aplicador da norma ampla liberdade de atuação,

porque este continua restrito aos limites do ordenamento. Trata-se de possibilitar

a sua melhor atuação no caso concreto e na construção da norma jurídica, como

salienta LUÍS ROBERTO BARROSO: “Inequivocamente, contudo, ele é uma

decorrência natural do Estado democrático de direito e do princípio do devido

processso legal. O princípio, naturalmente, não liberta o juiz dos limites e

possibilidades oferecidos pelo ordenamento. Não é de voluntarismo que se trata.

A razoabilidade, no entanto, oferece uma alternativa de atuação construtiva do

Judiciário para a produção do melhor resultado, ainda quando não seja o único

possível ou mesmo aquele que mais obviamente resultaria da aplicação acrítica

da lei”.171

5.3 Proporcionalidade

Finalmente, mas não menos relevante, o postulado normativo da

proporcionalidade, na qualidade de pauta interpretativa, pode desempenhar papel

de instrumento de controle dos atos emanados do Poder Público. Não escapa 171 Interpretação e aplicação da constituição, p. 245/246.

Page 174: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

também, todavia, da variação terminológica, podendo por vezes assemelhar-se

ao postulado da razoabilidade uma vez que ambos evitam “a consumação do ato

socialmente iníquo e inaceitável, impõem a consideração de todas as nuances do

caso concreto submetido à regulação”, e podem ser considerados como

derivados da mesma raiz, embora não se confundam, como afirma HELENILSON

CUNHA PONTES.172

HUMBERTO ÁVILA ensina que a proporcionalidade é um “postulado

estruturador da aplicação de princípios que concretamente se imbricam em torno

de uma relação de causalidade entre um meio e um fim”,173 de tal modo que, sem

a presença de um quadro em que se possa visualizar um fim concreto a ser

atingido, um meio eleito para a sua consecução e uma relação de causalidade

entre eles, não é possível falar-se no exame da proporcionalidade. O fundamental

na análise da proporcionalidade é esta relação entre meio e fim, a medida

concreta para realizar determinada finalidade, considerando-se como fim um

resultado específico desejado pelo ato e como meio o instrumento eleito para

alcançá-lo; de forma que se possa buscar a realização do interesse público e

garantir, concomitantemente, a observância dos direitos fundamentais.

Aqui se pode notar novamente a questão da denominada liberdade

de conformação legislativa, mencionada no item antecedente, uma vez que se

trata de controlar nada menos que o próprio exercício da função normativa, tanto

do Poder Legislativo quanto do Poder Executivo, reconhecendo que esta, embora

comporte intrinsecamente um acentuado grau de liberdade, não é ilimitada, como

reconhece JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO 172 O princípio da proporcionalidade e o direito tributário, p. 87. 173 Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 105.

Page 175: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

“A Constituição, ao autorizar a lei a restringir direitos, liberdades e

garantias, de forma a permitir ao legislador a realização de uma

tarefa de concordância prática justificada pela defesa de outros bens

ou direitos constitucionalmente protegidos, impõe uma clara

vinculação ao exercício dos poderes discricionários do legislador.

Em primeiro lugar, entre o fim da autorização constitucional para

uma emanação de leis restritivas e o exercício do poder

discricionário por parte do legislador ao realizar esse fim deve existir

uma inequívoca conexão material de meios e fins”.174

Seja como for, a proporcionalidade, como pauta interpretativa a ser

aplicada sempre diante do caso concreto, permite, por um lado, a busca da

otimização da eficácia normativa dos princípios constitucionais (e dos valores

subjacentes) e, por outro, o respeito aos direitos fundamentais envolvidos na

hipótese, de modo que o prestígio àquela não leve à anulação destes.

O referido exame da relação entre meio e fim deve ser feito com

base em três aspectos, isto é, com base nos três elementos que compõem a

proporcionalidade, a saber: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade

em sentido estrito. Assim, devem ser analisadas “as possibilidades de a medida

levar à realização da finalidade (exame da adequação), de a medida ser a menos

restritiva aos direitos envolvidos dentre aquelas que poderiam ter sido utilizadas

para atingir a finalidade (exame da necessidade) e de a finalidade pública ser tão

valorosa que justifique tamanha restrição (exame da proporcionalidade em

sentido estrito)”, conforme acentua HUMBERTO ÁVILA.175

174 Direito constitucional e teoria da constituição, p. 453. 175 Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 106.

Page 176: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

5.3.1 Adequação

A adequação repousa na exigência de uma relação entre o meio e o

fim, consistente em que aquele deve ser apto a propiciar a realização deste, ou

seja, o legislador ou o administrador, ao editar determinado ato normativo, que,

por meio da regulação da conduta, busque alcançar determinado fim, encontra-se

obrigado a eleger um meio que se revele efetivamente apto para tanto. É

necessário considerar, portanto, se o meio eleito, se a medida normativa, se o

instrumento escolhido é capaz de realizar, pelo menos potencialmente, a

finalidade desejada; pode a análise ser feita em três aspectos: “Em termos

quantitativos, um meio pode promover menos, igualmente ou mais o fim do que

outro meio. Em termos qualitativos, um meio pode promover pior, igualmente ou

melhor o fim do que outro meio. E, em termos probabilísticos, um meio pode

promover com menos, igual ou mais certeza o fim do que outro meio”.176

Acerca da adequação, duas considerações parecem ser bastante

relevantes. A primeira é que seu exame envolve sempre um caso concreto e daí

as inúmeras variações e ocorrências que não podem ser previstas pelo legislador

e pelo administrador no momento da edição do ato normativo. Por isso, a aferição

da adequação do meio deve dar-se cercada de acentuados cuidados, sob pena

de subjetivismos intermináveis, diante dos quais praticamente todo e qualquer ato

poderia ser invalidado por inadequação, decorrendo de tal circunstância que o

Poder Legislativo e o Poder Executivo, dentro dos limites de liberdade que

176 Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 109.

Page 177: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

possuem, não estão obrigados a eleger sempre o melhor meio para promover o

fim, mas um meio apto para a promoção.177

A segunda é relativa ao tempo. Com efeito, as medidas normativas

podem revelar-se inadequadas desde o seu aparecimento no mundo jurídico,

desde o início, em razão de uma falha na previsão cometida pelo legislador ou

administrador, acerca da aptidão da medida para a realização do fim, hipótese na

qual a influência do tempo revela-se irrelevante.178 Não obstante, pode haver

casos nos quais o meio escolhido pode revelar-se inapto à promoção do fim no

futuro, embora se revestisse de tal aptidão no momento de sua edição normativa.

Abrem-se aqui duas hipóteses: a inaptidão do meio decorre de equívoco na

previsão do agente responsável pelo ato ou deriva de ocorrências posteriores à

referida edição e, como tais, imprevisíveis pelo agente.179

Em virtude de tais condicionantes, parece-nos mais apropriado, até

por medida de cautela e como forma de preservar a liberdade do legislador e do

administrador, que a análise da adequação seja feita considerando-se o

panorama circunstancial, as condições existentes no momento da edição do ato,

instante no qual o legislador pode pensar, averiguar, projetar razoavelmente a

aptidão do ato para gerar os efeitos pretendidos.

É de notar que essas duas características – a consideração do caso

concreto com suas especificidades e a influência do tempo – prestigiam a

separação dos poderes. Acentua HUMBERTO ÁVILA que “o princípio da

separação dos Poderes exige respeito à vontade objetiva do Poder Legislativo e 177 Cf. Humberto Ávila, Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 109. 178 Cf. Helenilson Cunha Pontes, O princípio da proporcionalidade e o direito tributário, p.66. 179 Cf. Helenilson Cunha Pontes, O princípio da proporcionalidade e o direito tributário, p. 66/67.

Page 178: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

do Poder Executivo. A liberdade da Administração seria previamente reduzida se,

posteriormente à adoção da medida, o aplicador pudesse dizer que o meio

escolhido não era o mais adequado. Um mínimo de liberdade de escolha é

inerente ao sistema de divisão de funções”.180

5.3.2 Necessidade

O exame da necessidade supõe a consideração da existência de

meios alternativos ao escolhido e que possam igualmente promover o fim

almejado pelo ato normativo ou, em outros termos, “envolve duas etapas de

investigação: em primeiro lugar, o exame da igualdade de adequação dos meios,

para verificar se os meios alternativos promovem igualmente o fim; em segundo

lugar, o exame do meio menos restritivo, para examinar se os meios alternativos

restringem em menor medida os direitos fundamentais colateralmente

afetados”.181 Na mesma linha, HELENILSON CUNHA PONTES acentua, com

base na jurisprudência alemã, que “um meio é considerado necessário quando

nenhum outro, igualmente efetivo e que represente nenhuma ou menor limitação

a um direito fundamental, pudesse ter sido adotado pelo legislador”.182

A dificuldade neste caso está nos critérios de comparação dos meios

pois, entre dois ou mais meios, igualmente aptos à promoção do fim almejado, há

fatores como rapidez e lentidão, mais dispêndio e menos gastos, surgindo a

questão de se saber se a mencionada comparação deve ser feita entre todos os

180 Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 109/110. 181 Cf. Humberto Ávila, Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 114. 182 O princípio da proporcionalidade e o direito tributário, p. 68.

Page 179: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

aspectos ou somente entre alguns aspectos e, se entre alguns, quais devem ser

objeto de confronto.

Com efeito, são muitas as questões a considerarmos e a análise da

necessidade está longe de revelar-se tarefa simples mas, seja como for, o Poder

Judiciário não poderá formular um juízo sobre a oportunidade ou a conveniência

da medida legislativa ou administrativa, em virtude do grau de liberdade

(discricionariedade) de que gozam os agentes no exercício de suas funções, mas

sobre “a estrita necessidade da lesão ou limitação por ela geradas a bens

jurídicos constitucionalmente tutelados” quando houver outros meios aptos para o

alcance da finalidade desejada, com menor lesão aos referidos bens jurídicos.183

5.3.3 Proporcionalidade em sentido estrito

O terceiro elemento, a proporcionalidade em sentido estrito, pede a

comparação entre a relevância do fim pretendido e a intensidade da restrição aos

direitos fundamentais envolvidos no caso concreto. Segundo HUMBERTO ÁVILA,

a questão aqui é a seguinte: “o grau de importância da promoção do fim justifica o

grau de restrição causada aos direitos fundamentais? Ou, de outro modo: As

vantagens causadas pela promoção do fim são proporcionais às desvantagens

causadas pela adoção do meio? A valia da promoção do fim corresponde à

desvalia da restrição causada?”.184

A idéia de proporcionalidade em sentido estrito passa pela

comparação, pelo sopesamento entre a medida adotada (e o seu motivo, o

183 Cf. Helenilson Cunha Pontes, O princípio da proporcionalidade e o direito tributário, p. 69. 184 Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 116.

Page 180: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

interesse público, o fim buscado por ela) e o grau de atingimento do direito do

cidadão em virtude da adoção da aludida medida, devendo haver uma proporção

entre o fim almejado e a restrição ao direito envolvido.

Exemplo significativo de aplicação do postulado em tela é o caso em

que o Supremo Tribunal Federal decidiu pela inconstitucionalidade de certa lei

estadual que obrigava a utilização de balança especial para pesagem de botijões

de gás na presença do consumidor, hipótese na qual foram analisadas a

adequação do meio utilizado (obrigatoriedade da utilização de balança em cada

caminhão); o fim almejado pelo ato normativo (proteção dos consumidores) e o

grau de restrição ao direito envolvido (princípio da livre iniciativa). Embora o meio

eleito pudesse revelar-se capaz para a promoção do fim desejado (aspecto da

adequação), havia a possibilidade de utilização de outros instrumentos também

aptos ao alcance do fim e menos restritivos, como lacres ou selos (aspecto da

necessidade), e as desvantagens, como gastos com balanças e repasse dos

custos no preço, eram superiores às vantagens (maior controle do conteúdo dos

botijões). Nesse caso, considerou-se desatendido o postulado da

proporcionalidade.

Page 181: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

CAPÍTULO 5

INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DO DIREITO

1. Pensamento sistemático e sistema jurídico

O denominado pensamento sistemático – decorrente da concepção

do ordenamento jurídico como sistema – ganha relevância com o surgimento do

chamado Estado Moderno. É usual no pensamento jurídico contemporâneo

associar o direito positivo à idéia de uma ordem sistemática.

TERCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR ensina que sobretudo a partir

do Renascimento, momento em que o direito perde progressivamente seu caráter

sagrado, ocorre, por assim dizer, o refinamento da interpretação dos textos legais,

com a adoção de um novo paradigma, pois a sociedade passa a exigir soluções

técnicas para seus conflitos.185

185 Afirma o autor: “É nesse momento que surge o temor que irá obrigar o pensador a indagar como proteger a vida contra a agressão dos outros, o que entreabre a exigência de uma organização racional da ordem social. Daí, conseqüentemente, o desenvolvimento de um pensamento jurídico capaz de certa neutralidade, como exigem as questões técnicas, conduzindo

Page 182: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

O mencionado professor da Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo, ao mencionar a origem etimológica do termo, aponta que “A palavra

sistema, etimologicamente do grego systema, provém de syn-istemi e significa o

composto, o construído. Na sua significação mais extensa, o conceito aludia, de

modo geral, à idéia de uma totalidade construída, composta de várias partes. O

uso posterior configurou, porém, uma compreensão mais restrita. Conservando a

conotação originária de conglomerado, a ela agregou-se o sentido específico de

ordem, de organização”.186

Por sua vez, NORBERTO BOBBIO, ao estudar a coerência do

ordenamento jurídico, formula a seguinte idéia: “Entendemos por ‘sistema’ uma

totalidade ordenada, um conjunto de entes entre os quais existe uma certa ordem.

Para que se possa falar de uma ordem, é necessário que os entes que a

constituem não estejam somente em relacionamento com o todo, mas também

num relacionamento de coerência entre si. Quando nos perguntamos se um

ordenamento jurídico constitui um sistema, nos perguntamos se as normas que o

compõem estão num relacionamento de coerência entre si, e em que condições é

possível essa relação”.187

Considerado em uma de suas possíveis acepções, o ordenamento

jurídico pode ser visto como um conjunto de normas válidas dentro de certo

território e determinada época, que tem por objetivo regular condutas humanas.

Tal conjunto de normas válidas, se tomado sob o enfoque sistemático, é tratado

como algo dotado de coerência interna de sentido – idéia determinante de sua

a uma racionalidade e formalização do direito. Tal formalização é que vai ligar o pensamento jurídico ao chamado pensamento sistemático” (Introdução ao estudo do direito, p. 66). 186 Conceito de sistema no direito, p. 9. 187 Teoria do ordenamento jurídico, p. 71.

Page 183: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

forma de ser e de sua operacionalização – e apresenta como elementos um

repertório e uma estrutura.

JOSÉ ARTUR LIMA GONÇALVES reconhece que “A noção de

sistema admite variadas acepções, adotando-se aqui a de que ele é um conjunto

harmônico de elementos organizados a partir de um critério unificador. Os

sistemas possuem um repertório, composto pelos elementos que o integram, e

uma estrutura, representada pela peculiar forma de organização e relacionamento

de seus elementos. No sistema jurídico, o repertório é composto pelas normas

jurídicas válidas”.188

A concepção do ordenamento como sistema – unidade composta de

elementos que se relacionam entre si segundo certas regras – ganha relevância

ao permitir considerá-lo como conjunto dotado de homogeneidade e harmonia e

ao determinar a forma de tratamento de supostas contradições existentes entre

seus elementos. Sublinhamos a expressão supostas contradições porque a idéia

de sistema repele a possibilidade de contradições internas, como o demonstram

as regras jurídicas da lex superior, da lex posterior e da lex specialis, critérios

aplicáveis, como é cediço, na resolução dos conflitos existentes entre as normas

do ordenamento, as chamadas antinomias jurídicas.

Essas considerações levam-nos à distinção entre dois tipos de

sistemas, formulada por HANS KELSEN, que os caracteriza com base na relação

entre as regras que o compõem, denominando-os então de sistemas estáticos e

sistemas dinâmicos, nos seguintes termos:

“Segundo a natureza do fundamento de validade, podemos distinguir

dois tipos diferentes de sistemas de normas: um tipo estático e um

188 A imunidade tributária do livro, In: Imunidade tributária do livro eletrônico, p. 139.

Page 184: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

tipo dinâmico. As normas de um ordenamento do primeiro tipo, quer

dizer, a conduta dos indivíduos por elas determinada, é considerada

como devida (devendo ser) por força do seu conteúdo: porque a sua

validade pode ser reconduzida a uma norma a cujo conteúdo pode

ser subsumido o conteúdo das normas que formam o ordenamento,

como o particular ao geral. Assim, por exemplo, as normas: não

devemos mentir, não devemos fraudar, devemos respeitar os

compromissos tomados, não devemos prestar falsos testemunhos,

podem ser deduzidas de uma norma que prescreve a veracidade.

(..........)

Um sistema de normas cujo fundamento de validade e conteúdo de

validade são deduzidos de uma norma pressuposta como norma

fundamental é um sistema estático de normas. O princípio segundo

o qual se opera a fundamentação da validade das normas deste

sistema é um princípio estático.

(..........)

O tipo dinâmico é caracterizado pelo fato de a norma fundamental

pressuposta não ter por conteúdo senão a instituição de um fato

produtor de normas, a atribuição de poder a uma autoridade

legisladora ou – o que significa o mesmo – uma regra que determina

como devem ser criadas as normas gerais e individuais do

ordenamento fundado sobre esta norma fundamental.

(..........)

Com efeito, a norma fundamental limita-se a delegar uma autoridade

legisladora, quer dizer, a fixar uma regra em conformidade com a

qual devem ser criadas as normas deste sistema.

(..........)

O sistema de normas que se apresenta como uma ordem jurídica

tem essencialmente um caráter dinâmico. Uma norma jurídica não

vale porque tem um determinado conteúdo, quer dizer, porque o seu

conteúdo pode ser deduzido pela via de um raciocínio lógico do de

uma norma fundamental pressuposta, mas porque é criada por uma

Page 185: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

forma determinada – em última análise, por uma forma fixada por

uma norma fundamental pressuposta. Por isso, e somente por isso,

pertence ela à ordem jurídica cujas normas são criadas de

conformidade com esta norma fundamental. Por isso, todo e

qualquer conteúdo pode ser Direito”.189

Essa distinção leva-nos a outro ponto que desejamos destacar: a

idéia da autopoiese, relativa a sistemas que produzem a si próprios. WILLIS

SANTIAGO GUERRA FILHO acentua que “Sistema autopoiético é aquele dotado

de organização autopoiética, em que há a (re)produção dos elementos de que se

compõe o sistema e que geram sua organização pela relação reiterativa

(‘recursiva’) entre eles. Esse sistema é autônomo porque o que nele se passa não

é determinado por nenhum componente do ambiente mas sim por sua própria

organização, isto é, pelo relacionamento entre seus elementos”.190

Como se pode notar, tal conceito é relevante para o ordenamento

jurídico em razão da auto-referência do direito positivo, isto é, não só pelo modo

como seus elementos ingressam e deixam o sistema, como também pela sua

relação com o ambiente externo e com outros sistemas.

Embora se reconheça a autonomia e a clausura do sistema, não se

pode negar a relatividade dessas características, na medida em que, sendo o

direito um conjunto de normas que regulam condutas humanas intersubjetivas,

assim oferecendo o regramento da vida em sociedade, não se pode desconhecer

189 Teoria pura do direito, p. 217/221. 190 Teoria da ciência jurídica, p. 182.

Page 186: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

a inafastável necessidade de diálogo entre o sistema jurídico e outros sistemas,

como, por exemplo, a política e a economia.191

Essa interferência de diversos elementos oriundos de outros

sistemas é inafastável e pode ser reconhecida pela presença de bens, interesses

e valores prestigiados pela norma jurídica que, embora ingressem no sistema do

ordenamento jurídico por meio da positivação e segundo regras próprias (auto-

referência do sistema), encontram origem em outros sistemas.192

Entretanto cabe notar que, a rigor, o ordenamento jurídico não é um

sistema em si, como se isso fosse uma característica intrísenca sua. Em vez

disso, a “organização em sistema é efetuada pelo jurista”, como aponta com

precisão JOSÉ ARTUR LIMA GONÇALVES.193 Em outros termos, considerar o

direito positivo como um sistema é instrumento metodológico do cientista, que

assim o considera para conferir-lhe unidade e coerência interna, para bem

interpretá-lo e aplicá-lo. Com efeito, a necessidade de oferecer soluções a casos

concretos impõe à ciência do direito a tarefa de organizar o ordenamento como

sistema; de analisar os elementos constantes do repertório e as regras relativas à

sua estrutura, para atribuir-lhe coerência interna de sentido.

MARIA HELENA DINIZ afirma que “Percebe-se que ‘sistema’

significa nexo, uma reunião de coisas ou conjunto de elementos, e método, um

191 Cf. Willis Santiago Guerra Filho, Teoria da ciência jurídica, p. 191. 192 Este é o ensinamento de Willis Santiago Guerra Filho, ao afirmar que “O Direito, em uma sociedade com alta diferenciação funcional de seus sistemas internos, mantém-se autônomo em face dos demais sistemas, como aqueles da moral, da economia, da política, da ciência, na medida em que continua operando com seu próprio código, e não por critérios fornecidos por algum daqueles outros sistemas. Ao mesmo tempo, sem que seus componentes percam seu conteúdo especificamente jurídico, para adotar outros, de natureza moral, política, econômica etc., o sistema jurídico há de realizar o seu acoplamento estrutural com outros sistemas sociais, para o que desenvolve cada vez mais procedimentos de reprodução jurídica, procedimentos legislativos, administrativos, judiciais, contratuais” (Teoria da ciência jurídica, p. 193). 193 A imunidade tributária do livro eletrônico, In: Imunidade tributária do livro, p. 139.

Page 187: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

instrumento de análise. De forma que o sistema não é uma realidade, é o

aparelho teórico mediante o qual se pode estudá-la. É, por outras palavras, o

modo de ver, de ordenar, logicamente, a realidade, que, por sua vez, não é

sistemática”.194

A reunião em conjunto unitário e coerente das normas jurídicas, com

a manipulação dos comandos normativos segundo determinadas regras

estruturais, é trabalho a ser feito pelo cientista do direito, por meio do modelo

sistemático, ou, em outras palavras, o direito positivo em si não é um sistema

jurídico, mas antes uma realidade que pode ser estudada de modo sistemático

pela ciência do direito. Na concepção do pensamento sistemático, estuda-se o

ordenamento jurídico, perscrutando o conteúdo de suas normas (princípios e

regras), para, de posse desses dados, buscar-se o enquadramento dos fatos ao

ordenamento.

Desse modo, no chamado pensamento sistemático, parte-se de

certas premissas tomadas como absolutas e busca-se a solução do conflito, do

problema, enquadrando-o nas premissas dadas pelo ordenamento, por meio de

raciocínio dedutivo, que parte do geral para o particular.

2. Pensamento problemático e modelo tópico

Ao lado do pensamento sistemático – e não em contraposição a ele

– pode-se encontrar o modelo teórico da denominada tópica jurídica, formulada

por THEODOR VIEHWEG, que mencionamos no início do presente trabalho e

que agora retomamos como pano de fundo para o tema da interpretação.

194 Compêndio de introdução à ciência do direito, p. 202.

Page 188: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

A tópica jurídica é considerada como um estilo de pensar voltada

para problemas, que opera a partir deles e em direção a eles.195 Um dos aspectos

desse modelo repousa nos chamados lugares comuns da argumentação jurídica,

denominados topoi, que são noções-chave do direito, como, por exemplo,

interesse público, vontade contratual, autonomia da vontade, relevância,

verossimilhança das alegações, termos semelhantes aos denominados conceitos

vagos, cujos significados são apurados em cada caso concreto. Nas palavras de

THEODOR VIEHWEG, “Topoi são, portanto, para Aristóteles, pontos de vista

utilizáveis e aceitáveis em toda parte, que se empregam a favor ou contra o que é

conforme a opinião aceita e que podem conduzir à verdade”.196

O aspecto do modelo que mais nos interessa, porém, é justamente a

técnica de pensamento voltada para a solução de problemas; desenvolvida em

função deles e para resolvê-los. Como afirma o próprio THEODOR VIEHWEG, “O

ponto mais importante no exame da tópica constitui a afirmação de que se trata

de uma techne do pensamento que se orienta para o problema”, relacionando-a

com o termo aporia: “precisamente uma questão que é estimulante e iniludível,

designa a ‘falta de um caminho’, a situação problemática que não é possível

eliminar”.197 Por sua vez, problema é “toda questão que aparentemente permite

mais de uma resposta e que requer necessariamente um entendimento

preliminar, de acordo com o qual toma o aspecto de questão que há que levar a

sério e para a qual há que buscar uma resposta como solução”. 198

195 Tópica e jurisprudência, p. 3. 196 Tópica e jurisprudência, p. 26/27. 197 Tópica e jurisprudência, p. 33. 198 Tópica e jurisprudência, p. 34.

Page 189: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

Por tal razão é que o raciocínio em tela é chamado de problemático,

justamente por ter ponto de partida um problema (no caso do direito, um conflito

de interesses); por privilegiar o lado do problema, da pergunta formulada, de

forma que, em ocorrendo alteração nos casos concretos, buscam-se novos dados

para a solução, mas sempre mantendo o caráter problemático do raciocínio

desenvolvido. Fazendo menção aos pensamentos tópico e lógico, MARGARIDA

MARIA LACOMBE CAMARGO afirma que a “diferença estaria no fato de que a

tópica parte do problema em busca de premissas, enquanto o raciocínio do tipo

sistemático apóia-se em premissas já dadas: ‘A tópica mostra como se acham as

premissas; a lógica recebe-as e as elabora’”.199

Embora alguns autores entendam que são inconciliáveis os métodos

sistemático e problemático, partindo aquele do geral para o particular, com a

adoção de certas premissas como marco inicial; e este, do individual para o geral,

partindo do problema, o próprio THEODOR VIEHWEG reconhece que entre

problema e sistema existem conexões essenciais: “Isto se desenvolve

abreviadamente do seguinte modo: o problema, através de uma reformulação

adequada, é trazido para dentro de um conjunto de deduções, previamente dado,

mais ou menos explícito e mais ou menos abrangente, a partir do qual se infere

uma resposta. Se a este conjunto de deduções chamamos sistema, então

podemos dizer, de um modo mais breve, que, para encontrar uma solução, o

problema se ordena dentro de um sistema”.200

Acreditamos que sistema e problema, ou pensamento sistemático e

pensamento problemático, não são idéias contrapostas, não são métodos de

199 Hermenêutica e argumentação: uma contribuição ao estudo do direito, p. 142. 200 Tópica e jurisprudência, p. 34.

Page 190: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

análise do fenômeno jurídico que não se podem conciliar, mas, antes, podem ser

considerados como complementares, parecendo-nos que a tópica pode revelar

até mesmo, em determinados casos, maiores possibilidades de exploração do

sistema. Precisamente por essa razão é que optamos no presente trabalho por

privilegiar o modelo tópico ou problemático, não como excludente do modelo

sistemático, mas ao lado dele; trata-se apenas de acentuar o prisma pelo qual

trataremos da questão da interpretação, sem nenhum desprezo, entretanto, pelo

pensamento sistemático, do qual também nos auxiliaremos.

Assim o fazemos porque a interpretação, segundo pensamos,

sempre parte do problema; do caso concreto a ser solucionado; da necessidade

de se interpretarem as leis para justamente aplicá-las ao conflito de interesses

que aguarda solução, uma vez que o trabalho de interpretação não é

desenvolvido a esmo ou por mero interesse acadêmico, mas sempre “tendo em

vista uma finalidade prática. Esta finalidade prática domina a tarefa

interpretativa”.201

Não se trata, portanto, de determinar o sentido e o alcance do

comando normativo apenas em tese, mas “de determinar-lhe a força e o alcance,

pondo o texto normativo em presença dos dados atuais de um problema. Ou

seja, a intenção do jurista não é apenas conhecer, mas conhecer tendo em vista

as condições de aplicabilidade da norma enquanto modelo de comportamento

obrigatório (questão da decidibilidade)”.202

Por isso que, adotando exemplos da área tributária, não se

interpretam as normas de imunidade presentes na Constituição Federal (sistema)

201 Tercio Sampaio Ferraz Junior, A ciência do direito, p. 73. 202 Tercio Sampaio Ferraz Junior, A ciência do direito, p. 73/74.

Page 191: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

para se saber qual o alcance da imunidade ali prevista (problema); ao contrário,

no momento em que determinado contribuinte alega o gozo da imunidade

(problema) é que, daí partindo a atividade interpretativa, recorre-se à Constituição

Federal (sistema) para se saber se a imunidade alcança ou não aquele

contribuinte. Pela mesma razão, não se estuda o princípio da legalidade para se

determinar, previamente, aquilo que um decreto pode ou não fazer; havendo a

edição de certo decreto, investiga-se o que ele estipula a fim de se descobrir se o

referido princípio é ou não respeitado (novamente, parte-se do problema e vai-se

ao sistema).

Portanto adotar o modelo de pensamento problemático, pelo menos

para os específicos fins de nosso estudo, significa partir do fato, do problema, e ir

ao ordenamento, isto é, o fato é o problema (questão séria que permite mais de

uma solução possível). Não se despreza em momento algum, por evidente, o

ordenamento jurídico (sistema), mas apenas percorre-se o caminho interpretativo,

tomando-se como ponto de partida o problema a ser resolvido.

Partir do problema significa analisar o fato (como veremos em

seguida, trata-se de interpretar o fato), seu conteúdo e sua fenomenologia, bem

como a pergunta que ele propõe (o desafio que é proposto ao intérprete –

questão da decidibilidade), para então ir ao ordenamento jurídico e, por meio da

interpretação, dele extrair a norma aplicável ao caso concreto.

3. Interpretação como atividade construtiva da norma jurídica

A razão fundamental da interpretação da norma jurídica é sua

aplicação ao caso concreto, de modo que se a interpreta para aplicá-la a um fato,

Page 192: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

uma situação, um conflito de interesses. Para tal aplicação, é imperioso saber o

que determina a norma jurídica, qual o seu significado, enfim, qual o seu sentido e

alcance. A aplicação da norma tem como pressuposto sua interpretação e

qualquer norma deve ser interpretada, ainda que, em alguns casos excepcionais,

possa tratar-se de tarefa interpretativa singela.

TERCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR ensina “que não apenas

estamos obrigados a interpretar (não há norma sem sentido nem sentido sem

interpretação), como também deve haver uma interpretação e um sentido que

preponderem e ponham um fim (prático) à cadeia das múltiplas possibilidades

interpretativas. O critério para entender-se este fim prático é a própria questão

que anima a ciência jurídica: o problema da decidibilidade, isto é, criar-se

condições para uma decisão possível”.203

A propósito da interpretação, podemos notar que, a rigor, o seu

objeto não é propriamente a norma jurídica, pois esta é justamente o resultado da

interpretação, ou seja, o que se interpreta é o texto normativo, o enunciado

lingüístico que contém a norma. Este é o ensinamento de ANTONIO HENRIQUE

PÉREZ LUÑO, que acentua:

“Si se parte de la idea de que una norma sin significado es un

absurdo, hay que concluir que la norma no tiene un significado, sino

que es un significado. Este plenteamiento comporta admitir que no

cabe ninguna norma sin significado y que ese significado no es

previo, sino subsiguiente a la actividad interpretativa. De ello se

infiere que la norma jurídica no es el presupuesto, sino el resultado

del proceso interpretativo.

(..........)

203 A ciência do direito, p. 73.

Page 193: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

Pero este planteamiento no equivale a concebir la norma jurídica

como el producto del arbitrio o la voluntad decisionista del jurista

intérprete; pretende básicamente ampliar el concepto de norma al

entenderla como un proceso que conjuga la ‘norma dato’ o la ‘norma

preexistente’ que constituye el prius de la interpretación, con la

‘norma producto’ o ‘norma resultado’ que supone el momento

completo y culminante de la elaboración normativa”.204

Dessa forma, talvez fosse mais rigoroso tecnicamente falar-se da

interpretação da lei ou do texto legal, para englobar nesta expressão os vários

enunciados lingüísticos possíveis, como a Constituição, a lei, o decreto, e assim

por diante. Seja como for, a interpretação consiste basicamente em se saber se

há ou não relação de correspondência entre uma dada formulação vazada em

linguagem e um determinado fato, porque, em havendo, há de se aplicar a norma

extraída do enunciado no regramento jurídico daquele fato.205

Ocorre que tal formulação lingüística, o enunciado (a frase, enfim)

utiliza-se de palavras, e estas, como se sabe, não possuem um significado exato.

O significado pode alterar-se em virtude de condicionantes de ordem sintática

(relação entre as palavras utilizadas); de ordem semântica (a mesma palavra

pode ser usada para designar mais de uma coisa, mais de um objeto); e ainda de

ordem pragmática (de acordo com a pessoa que utiliza a palavra, o contexto e os

costumes lingüísticos, pode haver variações quanto ao seu significado).

204 Derechos humanos, estado de derecho y constitución, p. 254/255. 205 Como aponta Alf Ross, “Toda interpretação do direito legislado principia com um texto, isto é, uma fórmula lingüistica escrita. Se as linhas e pontos pretos que constituem o aspecto físico do texto da lei são capazes de influenciar o juiz, assim é porque possuem um significado que nada tem a ver com a substância física real. Esse significado é conferido ao impresso pela pessoa que por meio da faculdade da visão experimenta esses caracteres. A função destes é a de certos símbolos, ou seja, eles designam (querem dizer) ou apontam para algo que é distinto deles mesmos” (Direito e justiça, p.139).

Page 194: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

Em certo sentido, pode-se afirmar que as palavras são funcionais:

servem para designar algum objeto, apontam para algo, representam certa coisa

ou referem-se a determinada parcela da realidade (do mundo real) que desejam

representar. Não obstante, das palavras diz-se comumente – daí o desafio do

intérprete – que possuem textura aberta; que são equívocas ou plurívocas;

polissêmicas, que apresentam vagueza ou ambigüidade; enfim, apresentam

conteúdo semântico indefinido.206

Ademais, ainda que fosse possível definir com precisão o significado

das palavras do texto legal, o significado do próprio enunciado lingüístico não é a

mera soma do significado de cada palavra individualmente considerada, de forma

que, na tarefa interpretativa, não basta ao intérprete o texto, mas importa-lhe

também o contexto (local, pessoa, costumes e o próprio fato).

Segundo a lição de KARL LARENZ, o “Objecto da interpretação é o

texto legal como ‘portador’ do sentido nele vertido, de cuja compreensão se trata

na interpretação. ‘Interpretação’ (Auslegung) é, se nos ativermos ao sentido das

palavras, ‘desentranhamento’ (Auseinanderlegung), difusão e exposição do

sentido disposto no texto, mas, de certo modo, ainda oculto”.207

Para HANS KELSEN, por sua vez, a interpretação do direito

somente pode significar a fixação da moldura no ato de aplicação da lei, como se

pode observar em passagem clássica de sua obra:

“O Direito a aplicar forma, em todas estas hipóteses, uma moldura

dentro da qual existem várias possibilidades de aplicação, pelo que

206 Esta é a observação de Alf Ross: “A referência semântica da palavra tem, por assim dizer, uma zona central sólida em que sua aplicação é predominante e certa, e um nebuloso círculo exterior de incerteza, no qual sua aplicação é menos usual e no qual se torna mais duvidoso saber se a palavra pode ser aplicada ou não” (Direito e justiça, p. 142). 207 Metodologia da ciência do direito, p. 441.

Page 195: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

é conforme ao Direito todo ato que se mantenha dentro deste quadro

ou moldura, que preencha esta moldura em qualquer sentido

possível.

Se por ‘interpretação’ se entende a fixação por via cognoscitiva do

sentido do objeto a interpretar, o resultado de uma interpretação

jurídica somente pode ser a fixação da moldura que representa o

Direito a interpretar e, conseqüentemente, o conhecimento das

várias possibilidades que dentro desta moldura existem. Sendo

assim, a interpretação de uma lei não deve necessariamente

conduzir a uma única solução como sendo a única correta, mas

possivelmente a várias soluções que – na medida em que apenas

sejam aferidas pela lei a aplicar – têm igual valor, se bem que

apenas uma delas se torne Direito positivo no ato do órgão aplicador

do Direito – no ato do tribunal, especialmente. Dizer que uma

sentença judicial é fundada na lei, não significa, na verdade, senão

que ela se contém dentro da moldura ou quadro que a lei representa

– não significa que ela é a norma individual, mas apenas que é uma

das normas individuais que podem ser produzidas dentro da moldura

da norma geral”. 208

Como se pode notar, para o jusfilósofo de Viena, o direito positivo

não fornece nenhum critério para a escolha da norma, decorrendo daí sua

afirmação de que, no caso da interpretação autêntica (aquela realizada pelo juiz

e, sobretudo, pelos tribunais), a interpretação é ato de conhecimento e de

vontade. Para identificar a moldura e as possibilidades dentro dela, há um ato de

conhecimento, e, para a decisão por uma das possibilidades, há um ato de

vontade, sendo certo que este segundo passo somente é possível na denominada

interpretação autêntica.

208 Teoria pura do direito, p. 390/391.

Page 196: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

Durante muito tempo tomou lugar na jurisprudência e, sobretudo, na

doutrina, a discussão relativa ao escopo da interpretação, consistente em se

saber se esta tratava de descobrir qual a vontade do legislador, aquilo que ele

desejou expressar (voluntas legislatoris), ou a vontade da lei, o que efetivamente

foi expresso (voluntas legis), a primeira denominada teoria subjetivista e, a

segunda, teoria objetivista.209

Pessoalmente, e guardadas as devidas cautelas, encontramos certa

dificuldade para considerar a interpretação como o ato de se perquirir qual a

vontade do legislador, uma vez que sempre pode haver distância entre intenção e

gesto; podem ocorrer ruídos na elaboração da lei, somando-se a isso o fato de

que é praticamente impossível identificar “o legislador”, para não falar de diversos

outros participantes do processo de elaboração do texto legal, como assistentes,

comissões de pesquisa e de redação, que exercem influência no produto final.

Parece-nos, assim, importar menos aquilo que o legislador desejou expressar ou

pensou ter expressado e, mais, aquilo que efetivamente expressou.

Seja como for, embora se deva buscar o sentido normativo da lei,

não se deve deixar de reconhecer a relevância dos dados históricos que

influenciaram a edição do diploma legal.210 De qualquer modo, parece pacífico

que o objetivo da interpretação é verificar qual o significado da lei, qual o seu

âmbito de abrangência: o seu conteúdo normativo, enfim.

209 Alf Ross acentua que “É freqüente se fazer uma distinção entre as chamadas interpretação subjetiva e interpretação objetiva, no sentido de que a primeira visa a descobrir o significado que se buscou expressar, isto é, a idéia que inspirou o autor e que este quis comunicar, enquanto a segunda visa a estabelecer o significado comunicado, isto é, o significado contido na comunicação como tal, considerada como um fato objetivo” (Direito e justiça, p. 149). 210 Cf. Karl Larenz, Metodologia da ciência do direito, p. 448/449.

Page 197: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

Com tais considerações, chegamos ao ponto que agora desejamos

destacar. Segundo uma visão clássica, durante muito tempo se acreditou que o

significado da lei estava pronto e acabado no texto legal, e cabia ao intérprete

apenas e tão-somente descobrir esse significado, desvendá-lo, desentranhá-lo do

texto legal. Como aponta MARCO AURELIO GRECO, “entendeu-se que o

intérprete (inclusive judicial) tinha apenas a função de ‘descrever’ o ordenamento

positivo e ‘dizer’ o que já se encontrava na lei”, em atitude neutra.211

Todavia pensamos que tal entendimento não mais se sustenta, pois

a interpretação da lei revela-se uma atividade construtiva; trata-se de construir o

significado do texto legal, atribuindo-lhe significado e determinando-lhe o sentido

e o alcance no caso concreto, tarefa a ser desenvolvida sempre com base no

texto legal, por óbvio, mas em atitude ativa e não passiva. Como ensina MARCO

AURELIO GRECO, “O intérprete não é mais alguém que apenas ‘diz o que já

está’ previsto na lei. O intérprete passa a ser o canal de ligação entre as

demandas sociais (a realidade a ser modificada na busca dos fins e resultados) e

as previsões estratificadas na lei. Ele passa a ter um papel ativo (e não mais

neutro), numa verdadeira ‘construção’ de uma solução jurídica, cuja adequação e

compatibilidade não estão mais na letra fria da lei, mas nas necessidades e

finalidades socialmente relevantes”.212

A prova de que a atividade interpretativa é construtiva encontramos

no fato de que o intérprete nunca está numa cabine hermeticamente fechada,

sem nada ver nem ouvir, apenas com o texto legal sobre sua mesa de trabalho.

211 Contribuições: uma figura “sui generis”, p. 96. 212 Contribuições: uma figura “sui generis”, p. 98.

Page 198: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

Ao contrário, ele sofre a influência de diversos fatores, como veremos em

seguida, que desempenham papel relevante na interpretação.213

Essa abertura de diversas possibilidades interpretativas em função

do leitor do texto – seu intérprete – é apontada pelo filósofo PAUL RICOEUR:

“Enquanto o discurso falado se dirige a alguém que é previamente

determinado pela situação dialógica – é dirigido a ti, a segunda

pessoa –, um texto escrito dirige-se a um leitor desconhecido e,

potencialmente, a quem quer que saiba ler. Esta universalização do

auditório é um dos efeitos mais notáveis da escrita e pode

expressar-se em termos de um paradoxo. Porque o discurso está

agora ligado a um suporte material, torna-se mais espiritual, no

sentido de que é libertado da estreiteza da situação face a face.

(..........)

Faz parte da significação de um texto estar aberto a um número

indefinido de leitores e, por conseguinte, de interpretações. Esta

oportunidade de múltiplas leituras é a contrapartida dialéctica da

autonomia semântica do texto.

Segue-se que o problema da apropriação do sentido do texto se

torna tão paradoxal como o da autoria. O direito do leitor e o direito

do texto convergem numa importante luta, que gera a dinâmica total

da interpretação. A hermenêutica começa onde o diálogo acaba”.214

213 Acerca de tal circunstância, Alf Ross afirma que “Mas, esse quadro é falso ainda num outro aspecto, já que se baseia numa apreciação da atividade do juiz que é psicologicamente insustentável. O juiz é um ser humano. Por trás da decisão tomada encontra-se toda sua personalidade. Mesmo quando a obediência ao direito (a consciência jurídica formal) esteja profundamente enraizada na mente juiz como postura moral e profissional, ver nesta o único fator ou móvel é aceitar uma ficção. O juiz não é um autônomo que de forma mecânica transforma regras e fatos em decisões. É um ser humano que presta cuidadosa atenção em sua tarefa social, tomando decisões que sente ser corretas de acordo com o espírito da tradição jurídica e cultural. Seu respeito pela lei não é absoluto. A obediência a esta não constitui o único motivo” (Direito e justiça, p. 168). 214 Teoria da interpretação, p. 42/43.

Page 199: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

Por isso, o significado não está atrás do texto, mas à sua frente, e,

portanto, no mesmo local em que se encontra o seu intérprete, que constrói o

sentido do texto e sofre as influências de seu mundo e de seu tempo.

Tal aspecto é ressaltado também por EROS ROBERTO GRAU,

quando afirma, ao tratar da concretização do direito, que “A realidade é tanto

parte da norma quanto o texto; na norma estão presentes inúmeros elementos do

mundo da vida. O ordenamento jurídico é formado e conformado pela

realidade”.215 São suas ainda as seguintes palavras: “O texto normativo – diz

Müller (1993:169) – não contém imediatamente a norma. A norma é construída,

pelo intérprete, no decorrer do processo de concretização do direito (o preceito

jurídico é uma matéria jurídica que precisa ser ‘trabalhada’)”.216

Com base nas lições transcritas, desejamos destacar que a questão

essencial da interpretação jurídica é que ela envolve uma tomada de decisão, isto

é, uma opção por uma das possibilidades – coisa que a diferencia sobremodo, por

exemplo, de uma interpretação histórica ou psicanalítica – e revela-se uma

atividade construtiva, pois, afinal, como é comum afirmar-se, a lei não surge

completa e perfeita do cérebro do seu elaborador, como um ato de vontade

independente de qualquer outra circunstância.

Interpretação é atribuição de sentido ao texto e não mera extração

de sentido do texto; trata-se de atividade acentuadamente ativa e não passiva; o

intérprete constrói um novo texto a partir do texto dado.217

215 Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito, p. 66. 216 Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito, p. 64. 217 Como acentua Eros Roberto Grau, “O intérprete autêntico completa o trabalho do autor do texto normativo; a finalização desse trabalho, pelo intérprete autêntico, é necessária em razão do próprio caráter da interpretação, que se expressa na produção de um novo texto sobre aquele primeiro texto” (Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito, p. 54).

Page 200: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

Parece-nos, portanto, que o ordenamento jurídico revela-se um texto

feito e refeito todos os dias, pela interpretação.

4. Interpretação e aplicação do texto legal como atividade única

Se afirmamos que a adoção do modelo tópico de raciocínio parte do

problema a ser solucionado e vai ao sistema para encontrar a resposta (solução),

podemos então conceber que a interpretação e a aplicação do texto normativo

não se encontram em momentos temporais distintos, mas, antes, são atividades

concomitantes. Sobretudo em se tratando da interpretação autêntica (do juiz ou

do tribunal), uma vez que o magistrado é instado a interpretar a lei precisamente

para aplicá-la ao caso concreto; a interpretação opera-se com vistas à aplicação e

segundo as peculiaridades de cada hipótese.

EROS ROBERTO GRAU ensina que “Interpretação e aplicação não

se realizam autonomamente. O intérprete discerne o sentido do texto a partir e em

virtude de um determinado caso dado. (...) Assim, existe uma equação entre

interpretação e aplicação: não estamos, aqui, diante de dois momentos distintos,

porém frente a uma só operação”.218

Partir do problema a ser resolvido (caso concreto) para efetuar a

interpretação do texto normativo não significa afirmar que se interpreta o

ordenamento jurídico com subordinação aos fatos ou segundo os fatos – como

se estes, por si só, determinassem a interpretação e o conteúdo do comando

normativo – mas, sim, em presença dos fatos, isto é, considerando-os em suas

peculiaridades e significações, e tal procedimento de modo algum ofende a

218 Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito, p. 76.

Page 201: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

dignidade do ordenamento, que tem por objeto justamente regular a realidade,

determinar como esta deve ser.219

Este é o ensinamento FRIEDRICH MÜLLER: “Normas jurídicas não

são dependentes do caso, mas referidas a ele, sendo que não constitui problema

prioritário se se trata de um caso efetivamente pendente ou de um caso fictício.

Uma norma não é (apenas) carente de interpretações porque e à medida que ela

não é ‘unívoca’, ‘evidente’, porque e à medida que ela é ‘destituída de clareza’ –

mas sobretudo porque ela deve ser aplicada a um caso (real ou fictício)”.220

A nosso ver, mesmo no caso da interpretação jurídica feita pela

ciência do direito (não autêntica), ela é formulada em termos de aplicação

concomitante da norma, sempre elaborada em relação a um caso específico,

ainda que presente apenas mentalmente, para fins de raciocínio. São assim,

interpretação e aplicação um processo marcado pela unidade.221

5. Interpretação do texto legal e do fato

219 Note-se que, com relação a este ponto, há uma ressalva a ser feita quanto ao controle concentrado de constitucionalidade feito pelo Supremo Tribunal Federal porque, nesta hipótese, interpreta-se a lei em tese, de modo desvinculado de sua eventual aplicação ao caso concreto, ao contrário do que ocorre no controle difuso, sempre relativo a uma situação específica, em que são considerados texto normativo e fatos. 220 Métodos de trabalho do direito constitucional, p. 61/63. 221 Na mesma linha de raciocínio, também afirma-o Konrad Hesse, tratando do tema da interpretação constitucional como concretização: “Interpretação constitucional é concretização. Exatamente aquilo que, como conteúdo da Constituição, ainda não é unívoco e deve ser determinado sob inclusão da ‘realidade’ a ser ordenada. (...) Concretização pressupõe um ‘entendimento’ do conteúdo da norma a ser concretizada. Esse não se deixa desatar da ‘(pré)-compreensão’ do intérprete e do problema concreto a ser resolvido, cada vez. (...) Só mentalmente, não no procedimento real, é distinguível dessa condição da interpretação constitucional a segunda: ‘entendimento’ e, com isso, concretização, somente é possível com vista a um problema concreto. O intérprete deve relacionar a norma, que ele quer entender, a esse problema, se ele quer determinar seu conteúdo decisivo hic et nunc. Essa determinação e a ‘aplicação’ da norma ao caso concreto são um procedimento uniforme, não aplicação posterior de algo dado, geral, que em primeiro lugar é entendido em si, a um fato. Não existe interpretação constitucional independente de problemas concretos” (Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha, p. 61/62)

Page 202: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

Se vimos, ainda agora, que interpretar a lei – o direito – é concretizá-

la em cada caso concreto (aplicá-la, portanto), parece evidente que, no percurso

interpretativo, o exegeta esteja obrigado a observar o mundo do ordenamento

jurídico (do dever ser) e, concomitantemente, o mundo dos fatos (do ser).222

Mais ainda, se, para cada hipótese a ser considerada, há de se

averiguar a forma como o fato se apresenta, a interpretação deve dar-se sobre o

texto legal e também sobre o fato, e, para cada fato novo, uma nova interpretação

– e talvez uma nova solução – decorrendo daí a precisão do ensinamento de

HANS KELSEN quanto à moldura da lei, uma vez que não há soluções prontas.

Uma peculiaridade relevante quanto à interpretação do fato é aquela

designada por EROS ROBERTO GRAU como o vínculo epistemológico existente

entre o relato e o relatado. Importa notar “a circunstância de os fatos não serem o

que são fora de seu relato (isto é, fora do relato a que correspondem)”, uma vez

que, segundo esse jurista, jamais podemos descrever a realidade, mas apenas o

nosso modo de ver a realidade.223 Notamos aqui, mais uma vez, a relevância da

linguagem e a íntima relação entre direito e linguagem, embora não pretendamos

ingressar aqui na celeuma de se saber se a linguagem constitui ou não a

realidade, dado que esta é representada por aquela.

Em capítulo de sua obra, Conformação e Apreciação Jurídica da

Situação de Facto, KARL LARENZ principia por reconhecer que as proposições

jurídicas devem ser aplicadas a eventos fáticos, isto é, uma situação que de fato

222 Eros Roberto Grau afirma que “Isso significa – como linhas acima anotei – que a norma é produzida, pelo intérprete, não apenas a partir de elementos colhidos no texto normativo (mundo do dever-ser), mas também a partir de elementos do caso ao qual será ela aplicada – isto é, a partir de dados da realidade (mundo do ser)” (Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito, p. 79.) 223 Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito, p. 81.

Page 203: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

se verificou e salienta que isso somente é possível na medida em que tal situação

de fato é enunciada. Desse modo, aponta que “A situação de facto enquanto

enunciado não está assim ‘dada’ de antemão ao julgador, mas tem que ser

primeiramente conformada por ele, tomando em consideração, por um lado, os

factos que lhe chegaram ao conhecimento e, por outro lado, a sua possível

significação jurídica”.224

Afirma o jurista alemão que todo aquele com a incumbência de julgar

um caso jurídico (e, portanto, dizemos nós, interpretar e aplicar a lei ao caso

concreto), parte de uma situação de facto em bruto, ou seja, da forma como esta

lhe é relatada, contendo tal relato circunstâncias relevantes e circunstâncias não-

relevantes para a apreciação jurídica, que ele cuidará de separar umas das

outras, no curso de suas ponderações, até chegar à situação de facto definitiva.225

Tal situação de facto definitiva, resultado de uma elaboração mental,

parece-nos corresponder ao que ora denominamos de interpretação dos fatos,

vale dizer, trata-se de surpreender os fatos em sua fenomenologia, levada ao

conhecimento do intérprete por meio de relatos (de enunciados lingüisticos), a fim

de se identificarem os seus elementos relevantes diante das normas jurídicas

eventualmente aplicáveis.

Essa é, segundo pensamos, a importância da interpretação dos

fatos, consistente na necessidade de considerá-los em sua exteriorização; seus

diversos elementos; suas circunstâncias; a influência exercida pelo transcorrer do

tempo; as diversas variáveis e condicionantes relativas ao caso, para depurá-los

224 Metodologia da ciência do direito, p. 391. 225 Metodologia da ciência do direito, p. 392.

Page 204: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

substancialmente a fim de verificar aquilo que – neles, fatos – é juridicamente

relevante.

Mencionamos, a título de exemplo, a importância da interpretação

dos fatos na área do direito tributário, como nos casos de autos de infração cujo

objeto seja a exigência de tributo, situação na qual a aludida interpretação revela-

se fundamental (considerando-se como fato a situação de conflito instalada entre

fisco e contribuinte). Como vimos, a situação é levada ao conhecimento do

julgador judicial ou administrativo por meio do relato do fisco (auto de infração) e

do contra-relato do contribuinte (defesa), a fim de que aquele possa proceder à

interpretação da lei e, assim, extrair do ordenamento, em atividade construtiva, a

norma jurídica aplicável ao caso concreto.

Outro exemplo interessante diz respeito à hipótese de planejamento

tributário, no qual a consideração do negócio realizado, das pessoas envolvidas e

da forma jurídica utilizada – como no caso, entre outros, de operação de

incorporação seguida de cisão seletiva de pessoas jurídicas – é fundamental para

a aplicação da lei ao caso concreto. Todos esses elementos – fáticos –

encontram-se sujeitos à interpretação, tal como ocorre com o texto legal.

Refrisamos que, ao falarmos da interpretação dos fatos como etapa

a ser vencida no processo de interpretação da lei (ou como operação

concomitante a esta, ou como elemento subsidiário desta), não estamos

defendendo a supremacia do fato sobre o texto normativo, coisa que certamente

não é possível. Apenas desejamos salientar que a interpretação da lei reclama

conjuntamente a interpretação dos fatos, uma vez que as normas jurídicas,

embora não sejam dependentes dos fatos, referem-se a eles .

Page 205: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

6. Constituição e interpretação constitucional

Existem várias razões que apontam para a necessidade de se

considerar a interpretação da Constituição como de ordem especial, marcada por

determinadas especificidades que reclamam, por assim dizer, tratamento

interpretativo diferenciado.

A primeira delas é a própria supremacia constitucional, tendo-se em

vista que a Constituição Federal é o documento normativo mais relevante da

Nação e fundante do ordenamento jurídico, sendo natural que sua interpretação

apresente feição distinta da de outros textos normativos.

A segunda é o fato de o Texto Constitucional, em virtude de sua

natureza, apresentar comandos normativos de conteúdo mais abertos quando

comparados aos dispositivos infraconstitucionais, sendo nítida a presença de

regramento de caráter geral; de disposições programáticas; de direções que o

legislador deve seguir; de políticas públicas a serem implementadas; de grande

número de normas de estrutura e assim por diante.

A terceira razão, por demais relevante, refere-se ao fato de a

Constituição hospedar regras e princípios, isto é, normas jurídicas exteriorizadas

em regras e normas jurídicas exteriorizadas em princípios; estes últimos, como se

sabe, são disposições normativas com alto grau de abstração e portadores de

valores consagrados pela Carta da República, cuja existência, por si só, reclama

um modelo hermenêutico diferenciado.

A interpretação constitucional por óbvio não dispensa o emprego dos

métodos ditos tradicionais de interpretação, como o histórico, o sistemático e o

teleológico, mas não se pode desprezar o fato de que, por ser portadora de um

Page 206: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

sem-número de princípios, que hospedam os valores máximos consagrados pela

sociedade, a Constituição exige um modelo de interpretação de maior alcance e

eficácia na tarefa de concretização de suas normas, para se obter como resultado

da operação exegética uma interpretação “de acordo com as opções valorativas

básicas expressas no texto constitucional”.226

CARLOS AYRES BRITTO, que designa os princípios como “normas

interreferentes” e reconhece o potencial teórico da dualidade entre princípios e

regras, “que, de tão metodologicamente importante, se tornou a nova base da

hermenêutica da Constituição”,227 realça o papel dos princípios e aponta para a

relevância de uma interpretação constitucional própria:

“Realmente, o parâmetro de interação das normas constitucionais

originárias consigo mesmas reside é na dualidade temática

princípios/regras ou princípios/preceitos (regras comuns são

preceitos, e não princípios). Vale dizer, as normas que veiculam

princípios desfrutam de maior envergadura sistêmica. Elas enlaçam

a si outras normas e passam a cumprir um papel de imã e de norte,

a um só tempo, no interior da própria Constituição. Logo, os seus

comandos são interpontuais. Não apenas pontuais, como se dá,

agora sim, com as normas veiculadoras de simples preceitos.

Recolocando de forma ainda mais precisa a idéia, diríamos: as

normas principiológicas não consubstanciam meios ou providências

(estado-pontual-de-coisas), propriamente, para o alcance de valores.

Elas são esses valores mesmos. A tradução formal deles

(Federação, Desenvolvimento, Soberania Popular, Moralidade

Administrativa, Legalidade, etc.). Daí porque têm a particularidade

de irradiar o seu conteúdo exclusivamente axiológico para outras

normas gerais, sejam as que vimos chamando de preceituais, sejam

226 Willis Santiago Guerra Filho, Teoria da ciência jurídica, p. 149. 227 Teoria da constituição, p. 173.

Page 207: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

mesmo aquelas veiculadoras de princípios menores ou

subprincípios. Em qualquer das duas suposições, são as normas-

princípio que fazem da Constituição uma densa rede axiológica de

vasos comunicantes.

A nova práxis ou fenomenologia constitucional-positiva que foi

tomando corpo, destarte, foi a da supereficácia das normas-

princípio, ao lado da crescente constitucionalização do Direito

infraconstitucional. Tudo resultando na supereficácia da própria

Constituição.

Em síntese, estava criado o clima constitucional propiciador da

dicotomia básica princípios/regras (ou princípios/preceitos) e o fato é

que, à sua dignidade formal a Constituição adicionou uma dignidade

material”.228

Como se pode notar, várias são as razões que apontam para a

conveniência de uma interpretação da Constituição Federal de modo peculiar,

certamente não com o desprezo pelos métodos interpretativos tradicionais, mas

justamente com o apoio de outros elementos hermenêuticos. Por ora, limitamo-

nos a apontar dois deles nos itens seguintes, quais sejam, os princípios de

interpretação da Constituição e a distinção entre regras e princípios jurídicos.

6.1 Princípios de interpretação da Constituição

Para JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, “Interpretar uma

norma constitucional consiste em atribuir um significado a um ou vários símbolos

lingüísticos escritos na constituição com o fim de se obter uma decisão de

problemas práticos normativo-constitucionalmente fundada”.229

228 Teoria da constituição, p. 166/180. 229 Direito constitucional e teoria da constituição, p. 1185.

Page 208: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

O professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

trata de um catálogo de princípios tópicos da interpretação constitucional;

menciona que seu desenvolvimento deu-se a partir da metódica hermenêutico-

concretizante de KONRAD HESSE e, ainda, que devem ser constitucionalmente

praticáveis, ou seja, passíveis de emprego na discussão de problemas dentro da

base de compromisso materializada nas normas constitucionais.230

O princípio da unidade da Constituição significa que esta deve ser

interpretada para se evitarem eventuais antinomias ou contradições entre seus

dispositivos, a fim de considerá-la como algo dotado de coerência interna,

buscando interpretá-la em sua integralidade e conferindo harmonia entre normas

que estejam em tensão entre si, sobretudo os diversos princípios (por exemplo,

princípio unitário e princípio da autonomia regional e local).

O princípio do efeito integrador, intimamente ligado ao anterior,

determina que, na tarefa interpretativa, sejam privilegiados elementos e critérios

que favoreçam a integração política e social e, bem assim, reforcem a unidade

política (evitando autoritarismos e fundamentalismos).

No princípio da máxima efetividade, a interpretação deve buscar

atribuir o sentido ao texto constitucional que confira à norma a maior eficácia

possível. Trata-se de diretiva que pode ser aplicada a qualquer norma

constitucional, mas muito invocado quanto aos dispositivos consagradores de

direitos e garantias fundamentais, prestando-se para afastar o entendimento da

inaplicabilidade das denominadas normas programáticas.

230 Direito constitucional e teoria da constituição, p. 1207/1211.

Page 209: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

O princípio da conformidade funcional objetiva o respeito à

repartição de funções, ou poderes, constitucionalmente estabelecida, de forma

que na interpretação e na aplicação da Constituição o órgão estatal a quem cabe

interpretá-la de modo definitivo não possa alcançar um produto interpretativo tal

que venha a violar a divisão das funções estatais contemplada pela Carta: em

última análise, a repartição de poderes.

O princípio da concordância prática estabelece a necessidade, na

solução do problema diante da Constituição, de ponderação entre os bens e

valores hospedados constitucionalmente, de modo que, mesmo em se

prestigiando um deles, deve-se evitar o sacrifício total dos outros que com aquele

conflitam no caso concreto. Salienta o autor lusitano que “Subjacente a este

princípio está a idéia do igual valor dos bens constitucionais (e não uma diferença

de hierarquia) que impede, como solução, o sacrifício de uns em relação aos

outros, e impõe o estabelecimento de limites e condicionamentos recíprocos de

forma a conseguir uma harmonização ou concordância prática entre estes

bens”.231

O princípio da força normativa da Constituição consiste em dever

dar-se, no exercício interpretativo, prevalência àquele entendimento que, atento

aos pressupostos da Constituição, respeite o elemento histórico das estruturas

constitucionais, mantendo a supremacia, a eficácia e a permanência da Carta,

mas que, ao mesmo tempo, possibilite sua atualização normativa, em

atendimento à evolução social, nem tanto pela alteração formal do texto

231 Direito constitucional e teoria da constituição, p. 1209.

Page 210: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

constitucional, mas, antes, pela modificação do modo de compreendê-lo e

interpretá-lo.

O princípio da interpretação das leis em conformidade com a

Constituição, intimamente ligado ao controle de constitucionalidade de textos

normativos infraconstitucionais, segundo o qual, entre duas interpretações

possíveis e razoáveis para um certo texto legal, deve dar-se preferência àquela

mediante a qual se possa compatibilizá-lo com os comandos da Constituição, isto

é, deve-se atribuir ao texto da lei o sentido que esteja em conformidade com o

Texto Constitucional.

6.2 Regras e princípios jurídicos

A distinção entre regras e princípios – ou entre normas jurídicas que

são regras e normas jurídicas que são princípios – exerce papel bastante

relevante na interpretação da Constituição, razão pela qual dela aqui salientamos

alguns aspectos importantes.

Para RONALD DWORKIN, em ensinamento muito prestigiado,

princípio é “um padrão que deve ser observado, não porque vá promover ou

assegurar uma situação econômica, política ou social considerada desejável, mas

porque é uma exigência de justiça ou equidade ou alguma outra dimensão da

moralidade”, sendo a diferença entre princípios jurídicos e regras jurídicas de

natureza lógica.232

As regras são aplicadas pela fórmula de um tudo-ou-nada, de modo

que, uma vez considerados os fatos previstos por ela, de duas uma: ou a regra é

232 Levando os direitos a sério, p. 36.

Page 211: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

válida no sistema, deve ser aplicada e as conseqüências são aceitas, ou a regra

não é válida e, dessa forma, em nada contribui para a decisão do caso. Segundo

o autor, pode-se afirmar que as regras são funcionalmente importantes ou

desimportantes, ou, mesmo que uma regra possa ser considerada mais

importante do que a outra porque desempenha um papel de maior relevo, quando

comparada com outra, na regulação de determinado comportamento. Não

obstante, não é correto dizer que uma regra é mais importante do que a outra, na

qualidade de elementos integrantes do mesmo sistema jurídico, de tal forma que,

se duas regras estiverem em conflito, uma prevalecerá sobre a outra em razão de

sua maior relevância.233

O conflito entre regras é resolvido de outro modo. Se duas regras

estão em conflito ou em contrariedade, uma delas deve ser declarada não válida

e retirada do sistema. Cabe notar que a decisão de se saber qual das regras não

é válida é tomada com fundamento em critérios externos às regras envolvidas –

critérios que, por sua vez, podem estar em outras regras do ordenamento – como,

por exemplo, aquelas segundo as quais prevalece a regra hierarquicamente

superior; a que foi posta posteriormente; ou a considerada especial ou mais

específica.234

Para o autor norte-americano, os princípios possuem uma outra

característica, que as regras não têm, que é a dimensão do peso ou importância,

de forma que, quando dois princípios se entrecruzam, ou se encontram em

conflito ou colisão, o intérprete a quem caiba resolver o conflito deve levar em

consideração a dimensão do peso de cada um deles ou a força relativa de cada

233 Levando os direitos a sério, p. 39 e 43. 234 Levando os direitos a sério, p. 43.

Page 212: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

um diante do caso concreto. Parece evidente que essa mensuração do peso de

cada princípio envolvido não é exata nem pode ser matematicamente calculada,

pois a decisão pela prevalência de um ou outro princípio envolvido pode

freqüentemente ser objeto de controvérsia. Salienta RONALD DWORKIN que

“essa dimensão é uma parte integrante do conceito de um princípio, de modo que

faz sentido perguntar que peso ele tem ou quão importante ele é”.235

Tal dimensão do peso de cada princípio envolvido no conflito não se

encontra em si mesma nos princípios – como se fora uma sua qualidade

intrínseca – mas, antes, será atribuída pelo próprio intérprete no ato de

interpretação e aplicação das normas, de forma que, conforme salientamos em

outra oportunidade,236 o conflito entre princípios não se resolve pela declaração

da não validade de um deles (o princípio não é retirado do sistema), mas pela

declaração de prevalência de um princípio sobre o outro, sempre com respeito às

peculiaridades do caso.

Portanto, na hipótese específica que se busca solucionar, um

princípio pode ceder passo a outro que com ele conflita, mas é perfeitamente

possível que, em outro caso, envolvendo os mesmos princípios jurídicos, aquele,

na situação anterior preterido, venha agora a prevalecer.

Para ROBERT ALEXY, tanto as regras como os princípios são

normas, porque ambos dizem o que deve ser, e podem ambos ser formulados

com ajuda das expressões básicas do mandamento, a permissão e a proibição,

de forma que a distinção entre regras e princípios é uma distinção entre dois tipos

de normas. Consoante a lição do autor, o ponto decisivo para a distinção entre

235 Levando os direitos a sério, p. 42/43. 236 Norma geral antielisão e possibilidades de aplicação, In: Planejamento tributário, p. 156.

Page 213: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

regras e princípios é que os princípios são normas que determinam que algo seja

realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e

materiais existentes. Portanto os princípios são mandamentos de otimização e

estão caracterizados pelo fato de que podem ser cumpridos em diferente grau e a

medida desse cumprimento depende não apenas das possibilidades materiais,

mas também das jurídicas.237

As regras, por sua vez, são normas que podem ser atendidas ou

não, de forma que, se determinada regra é válida, há de se fazer exatamente o

que ela determina, nem mais nem menos. As regras contêm determinações no

âmbito do fático e juridicamente possível, o que significa que a diferença entre

regras e princípios é de ordem qualitativa e não de grau.

Aponta ainda o autor que a distinção entre regras e princípios fica

clara nas hipóteses de colisão entre princípios e de conflitos entre regras,

havendo de comum nas duas situações o fato de que duas normas, aplicadas

independentemente, conduzem a resultados incompatíveis, ou seja, a dois juízos

jurídicos de dever ser contrários, de modo que se diferenciam na forma de

solucionar o conflito.238

No que se refere ao conflito entre regras, valemo-nos das palavras

do próprio autor: “Un conflicto entre reglas sólo puede ser solucionado o bien

introduciendo en una de las reglas una cláusula de excepción que elimina el

conflicto o declarando inválida, por lo menos, una de las reglas. (...) Si una

solución de este tipo no es posible, por lo menos una de las reglas tiene que ser

declarada inválida y, con ello, eliminada del ordenamiento jurídico”. E ainda

237 Teoría de los derechos fundamentales, p. 83 e 86. 238 Teoría de los derechos fundamentales, p. 87.

Page 214: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

prossegue afirmando que “Si se constata la aplicabilidad de dos reglas con

consecuencias recíprocamente contradictorias en el caso concreto y esta

contradicción no puede ser eliminada mediante la introducción de una cláusula de

excepción, hay entonces que declarar inválida, por lo menos, a una de las

reglas”.239

No que concerne à colisão entre princípios, entende ROBERT

ALEXY que “Cuando dos principios entran en colisión – tal como es el caso

cuando según un princípio algo está prohibido y, según outro princípio, está

permitido – uno de los dos princípios tiene que ceder ante el otro. Pero, esto no

significa declarar inválido al principio desplazado no que en el principio

desplazado haya que introducir una clausula de excepción. Más bien lo que

sucede es que, bajo ciertas circunstancias uno de los principios precede al otro.

Bajo otras circunstancias, la cuestión de la precedencia puede ser solucionada de

manera inversa. Esto es lo que se quiere decir cuando se afirma que en los casos

concretos los principios tienem diferente peso y que prima el principio con mayor

peso. Los conflictos de reglas se llevan a cabo en la dimensión de la validez; la

colisión de principios – como sólo pueden entrar en colisión principios válidos –

tiene lugar más allá de la dimensión de la validez, en la dimensión del peso”.240

Por sua vez, JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, seguindo os

caminhos dos dois autores mencionados, afirma que distinguir, no âmbito do

superconceito norma, as regras e os princípios é tarefa complexa e, para tanto,

sugere cinco critérios:241

239 Teoría de los derechos fundamentales, p. 88. 240 Teoría de los derechos fundamentales, p. 89. 241 Direito constitucional e teoria da constituição, p. 1144/1145.

Page 215: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

(i) quanto ao grau de abstração, os princípios são normas jurídicas

com elevado grau de abstração, ao passo que as regras possuem um grau de

abstração relativamente reduzida;

(ii) quanto ao grau de determinabilidade na aplicação do caso

concreto, os princípios, justamente por se revelarem vagos e indeterminados,

necessitam de mediações concretizadoras (do legislador ou do juiz, por exemplo),

enquanto as regras são passíveis de aplicação direta;

(iii) em razão do caráter de fundamentalidade no sistema das fontes

do direito, uma vez que os princípios possuem natureza estruturante e

desempenham relevante papel no ordenamento jurídico, quer em razão de sua

posição hierárquica quanto às fontes (princípios constitucionais), quer em razão

de sua importância estrutural no sistema (princípio do Estado de Direito);

(iv) ainda quanto à proximidade da idéia de direito, porque os

princípios são standards juridicamente vinculantes apoiados nas exigências de

justiça ou na idéia de direito, podendo as regras ser normas vinculativas com

conteúdo simplesmente funcional;

(v) e também no que diz respeito à natureza normogenética, dado

que os princípios constituem fundamento das regras, são normas que estão na

base e que configuram a razão das regras jurídicas.

O mestre português ainda aponta que a existência das regras e dos

princípios, tal como formulada por RONALD DWORKIN e ROBERT ALEXY,

possibilita a descodificação, em termos de um constitucionalismo adequado,

Page 216: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

proposto pelo segundo autor, de estrutura sistêmica, “isto é, possibilita a

compreensão da constituição como sistema aberto de regras e princípios”.242

7. Influência da ideologia na interpretação

As considerações que tecemos até aqui nos leva a um tema que não

podemos deixar de enfrentar, qual seja, o da influência exercida pela ideologia

sobre o processo interpretativo ou, mais precisamente, sobre o intérprete. Se o

direito para ser aplicado necessita de interpretação; se o texto normativo é vazado

em enunciados lingüísticos cujo sentido não é exato; se são empregadas palavras

que, por sua própria natureza, são polissêmicas, e se a interpretação é tarefa

construtiva (atribuição de sentido ao texto legal) para a obtenção da norma

jurídica, então é de todo relevante considerar qual o efetivo papel desempenhado

pelo intérprete – sobretudo o intérprete autêntico – e quais as influências por ele

sofridas no desempenho de tal mister.

O conhecimento jurídico dito tradicional, caracterizado por um

formalismo acentuado, entende que a aplicação do direito (aí inclusa a atividade

do intérprete) dá-se por meio de um raciocínio dedutivo, com a utilização do

conhecido silogismo segundo o qual a lei é a premissa maior, o caso concreto é a

premissa menor e a conclusão é a regra específica reguladora do fato. Como

aponta LUÍS ROBERTO BARROSO, neste quadro referencial, “O Estado é árbitro

imparcial dos conflitos que ocorrem na sociedade, e o juiz, como aplicador do

direito, se pauta pela objetividade e neutralidade”.243

242 Direito constitucional e teoria da constituição, p. 1146. 243 Interpretação e aplicação da constituição, p. 278.

Page 217: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

Ocorre que tal quadro não parece corresponder à realidade pois,

como aponta o referido constitucionalista, “Além de não ser neutro, o direito não

tem a objetividade proclamada pelo raciocínio lógico-formal de subsunção dos

fatos à norma. Ao revés, é a indeterminação dos conteúdos normativos uma

marca do direito”.244 245

É bem verdade que há um imenso número de casos nos quais a

questão da ideologia não está presente e o tema das eventuais opções

valorativas do juiz não entra em discussão. Nessas hipóteses, ele cumpre, por

assim dizer, burocraticamente sua função de decidir o conflito de interesses,

como no caso de uma ação de indenização decorrente de colisão de veículos; na

hipótese de uma ação revisional de aluguel ou mesmo num homicídio levado a

termo na frente de vinte testemunhas.

A situação, entretanto, é muito diferente quando os casos são mais

complexos e há o envolvimento de princípios jurídicos e de valores que subjazem

a eles, nos quais existem várias possibilidades de interpretação igualmente

dotadas de razoabilidade. Em especial, nas hipóteses que envolvem discussão de

temas constitucionais – nos denominados casos difíceis (hard cases) – é

freqüente o conflito entre valores hospedados pela Constituição e, aí, a

interpretação e a aplicação da norma jurídica não se operam mecanicamente.

Por mais que se interprete e se reinterprete a Constituição com o

emprego dos vários métodos disponíveis, chega o momento em que o magistrado

244 Interpretação e aplicação da constituição, p. 280. 245 Também Alf Ross, tratando da teoria positivista-mecanicista, rejeita tal postura, ao afirmar que “Segundo esse quadro da administração da justiça, o juiz não valora nem determina sua postura ante a possibilidade de interpretações diferentes. O juiz é um autômato. Tem-se como pacífico que é necessário que se ajuste à lei e sua função se limita a um ato puramente racional: compreender o significado da lei e comparar a descrição desta dos fatos jurídicos aos fatos do caso que ele tem diante de si. Esse quadro não se assemelha em nada com a realidade” (Direito e justiça, p. 167).

Page 218: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

depara com uma, duas, três ou quatro possibilidades de interpretação, todas elas

razoáveis, nenhuma delas que conduza ao absurdo e, portanto, todas situadas

dentre da moldura normativa. Neste momento, parece-nos que o intérprete

autêntico é obrigado a optar por uma das possíveis interpretações e tal opção

sofre necessariamente a influência da ideologia. Daí porque, como vimos, a

interpretação é ato de conhecimento e de vontade: conhecimento para perscrutar

o ordenamento jurídico e identificar as possibilidades interpretativas, e vontade

para escolher, para decidir por uma delas.

Com efeito, para interpretar a lei, é necessário ir do texto ao

contexto; do texto do dispositivo que se interpreta até o texto integral do diploma

normativo; deste último ao contexto do ordenamento jurídico, sempre se levando

em consideração o contexto dos fatos, do ambiente, das circunstâncias do caso

concreto ao qual se pretende aplicar a norma jurídica.246

Nessas idas e vindas, nesse caminhar do texto ao contexto e deste

novamente para o texto legal é que, segundo nos parece, dá-se a influência da

ideologia sobre o trabalho do intérprete, pois este não permanece ileso, não fica a

salvo das interferências diversas nem se pode colocar em posição de

neutralidade. Consoante salienta LUÍS ROBERTO BARROSO, “esta pressupõe

algo impossível: que o intérprete seja indiferente ao produto do seu trabalho”, e

que, quando se trata de escolha de valores e alternativas possíveis “mesmo

246 Acerca do tema, são as seguintes as palavras de Alf Ross: “O contexto não é apreendido simultânea, mas sucessivamente. Quando leio um livro, não é verdade que não confiro nenhum significado à primeira frase enquanto não ler a obra inteira. Entretanto, de todo modo, o contexto é co-determinativo. Acontece com freqüência minha compreensão das primeiras páginas do livro terem mudado quando eu o termino e recomeço sua leitura. Ocorre uma curiosa vibração interpretativa. Minha compreensão das primeiras frases co-determina a compreensão das seguintes. Mas minha apreensão do livro na sua totalidade, que surge como resultado, pode ter um efeito retroativo modificador que influencia minha compreensão das frases individuais e isto, por sua vez, oferece a possibilidade de minha concepção do todo poder acabar alterada, e assim sucessivamente” (Direito e justiça, p. 146).

Page 219: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

quando não atue em nome dos interesses de classe ou estamentais, ainda

quando não milite em favor do próprio interesse, o intérprete estará sempre

promovendo as suas próprias crenças, a sua visão de mundo, o seu senso de

justiça”.247

Tais afirmações parecem encontrar apoio nas palavras de PAUL

RICOEUR, quando cuida da relação existente entre texto e leitor:

“Se não podemos definir a hermenêutica pela procura de um outro e

de suas intenções psicológicas que se dissimulam por detrás do

texto; e se não pretendemos reduzir a interpretação à desmontagem

das estruturas, o que permanece para ser interpretado?

Responderei: interpretar é explicitar o tipo de ser-no-mundo

manifestado diante do texto.

(..........)

Sobretudo, porém, a apropriação possui por vis-à-vis aquilo que

Gadamer chama de ‘a coisa do texto’ e que chamo de ‘o mundo da

obra’. Aquilo de que finalmente me aproprio é uma proposição de

mundo. Esta proposição não se encontra atrás do texto, como uma

espécie de intenção oculta, mas diante dele, como aquilo que a obra

desvenda, descobre, revela. Por conseguinte, compreender é

compreender-se diante do texto”.248

Ora, se se trata de interpretar um mundo que não está atrás do

texto, nem propriamente no texto, mas um mundo que se revela diante do texto,

então este é o mesmo mundo em que se encontra o intérprete, que se debruça,

portanto, em sua atividade exegética, no mundo do texto e do contexto. Vale

dizer, texto e intérprete são envolvidos pelo mesmo ambiente e nele sofrem a

247 Interpretação e aplicação da constituição, p. 289. 248 Interpretação e ideologias, p. 56/58.

Page 220: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

influência de diversas forças, crenças, preconceitos, informações, contra-

informações e assim por diante.

Com base nessas premissas, podemos tecer três considerações. A

primeira é a de que reconhecer que a ideologia exerce influência no intérprete não

significa defendê-la tampouco fustigá-la; não implica dizer que ela é boa nem má;

não se pretende glorificá-la, transformando tudo em subjetivo (dando margem ao

subjetivismo), tampouco reconhecê-la como elemento vil que vem conspurcar a

pureza do direito; significa apenas e tão-somente que ela existe e, assim, não

pode ser ignorada.249

A segunda consideração a de que afirmar que a neutralidade do

intérprete não é possível não significa prescindir de outros elementos que devem

condicionar sua conduta, como a imparcialidade (ausência de interesse na

questão) e a impessoalidade (atenção com o bem comum, e não o favorecimento

de alguém).

Por último, a terceira refere-se à idéia ou ao conceito em que aqui

tomamos a ideologia, pois certamente não empregamos a palavra como sinônimo

de ideologia político-partidária nem mesmo no sentido pejorativo de elemento de

defesa de tal ou qual interesse.250

249 Marco Aurelio Greco afirma que “Fundamental não é reconhecer que na atividade do intérprete existe uma intersecção ideológica. Fundamental é ter consciência de que isto tem de ficar às claras! Existir esta influência sempre existiu; e não é de hoje que a interpretação jurídica tem como um de seus ingredientes a ideologia do intérprete. Fundamental é ter consciência disso, para que a ideologia entre pela porta da frente e não pela porta dos fundos” (Planejamento fiscal e interpretação da lei tributária, p. 114). 250 Nicola Abbagnano, no extenso verbete sobre o conceito de ideologia, aponta que “Em geral, portanto, pode-se denominar ideologia toda crença usada para o controle dos comportamentos coletivos, entendendo-se o termo crença (v.) em seu significado mais amplo, como noção de compromisso da conduta, que pode ter ou não validade objetiva. Entendido nesse sentido, o conceito de ideologia é puramente formal, uma vez que pode ser vista como ideologia tanto uma crença fundada em elementos objetivos quanto uma crença totalmente infundada, tanto uma crença realizável quanto uma crença irrealizável. O que transforma uma crença em ideologia não

Page 221: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

Interessa-nos, assim, para o presente estudo, a noção de ideologia

como conjunto de determinados valores relevantes para o intérprete, a ponto de

sobre ele exercerem influência ou, em outras palavras, consideramos a ideologia

como valoração dos valores, na feliz expressão de TERCIO SAMPAIO FERRAZ

JUNIOR.251 252

A idéia da influência da ideologia sobre a atividade do intérprete, em

contraposição a um método jurídico de aplicação da lei dotado de objetividade e

neutralidade daquele, é bem ilustrada por LUÍS ROBERTO BARROSO ao

mencionar um célebre ensaio de direito constitucional norte-americano, intitulado

Em busca de princípios neutros de direito constitucional, de autoria do professor

da Universidade de Columbia, HERBERT WECHSLER, publicado em 1959.253 O

trabalho veio à luz no seio de críticas formuladas às decisões da Suprema Corte,

entre as quais a considerada “revolucionária decisão de integração racial”

proferida no caso denominado Brown versus Board of Education, no qual se

discutiu basicamente o desejo dos negros de frenqüentarem a escola com os

brancos e o desejo destes de a frenqüentarem sem os negros. Numa das mais

contudentes páginas do referido ensaio, HERBERT WECHSLER assim se

manifesta:

“O que caracteriza as decisões judiciais, em contraste com os atos

dos outros Poderes, é a necessidade de que sejam fundadas em

princípios coerentes e constantes, e não em atos de mera vontade

é sua validade ou falta de validade, mas unicamente sua capacidade de controlar os comportamentos em determinada situação” (Dicionário de filosofia, p. 531/533). 251 Introdução ao estudo do direito, p. 272. 252 É neste sentido também o ensinamento de Ricardo Lobo Torres, para quem “A interpretação jurídica está inteiramente vinculada aos valores e aos princípios gerais do Direito e, ao mesmo tempo, é um dos caminhos para a concretização desses valores. Nesse sentido é ideológica, até mesmo quando pretende ser neutra” (Normas de interpretação e integração do direito tributário, p. 341). 253 Interpretação e aplicação da constituição, p. 284/287.

Page 222: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

ou sentimento pessoal. Discordo, assim, com veemência, daqueles

que, aberta ou encobertamente, sujeitam a interpretação da

Constituição e das leis a um ‘teste de virtude’, para verificar se o

resultado imediato limita ou promove seus próprios valores e

crenças.

Quem julga com os olhos no resultado imediato, e em função das

próprias simpatias ou preconceitos, regride ao governo dos homens,

e não das leis. Se alguém toma decisões levando em conta o fato de

que a parte envolvida é um sindicalista ou um contribuinte, um negro

ou um separatista, uma empresa ou um comunista, terá de admitir

que pessoas de outras crenças ou simpatias possam, diante dos

mesmos fatos, julgar diferentemente. Nenhum problema é mais

profundo em nosso constitucionalismo do que este tipo de avaliação

e de julgamento ad hoc”.254

As idéias defendidas no texto acima são inegavelmente bem

construídas e podem perfeitamente encontrar aplicação, sem mais dificuldades.

Na maioria dos casos de atividade de interpretação judicial, inclusive na

interpretação constitucional, podem revelar-se importante contraponto ao

entendimento oposto se adotado de modo extremado, isto é, decisões judiciais

fundamentadas exclusivamente na consideração dos resultados. Não obstante, a

força dos argumentos diminui sensivelmente quando se observa que, pelo método

defendido pelo autor norte-americano, ele condenou a decisão proferida pela

Suprema Corte no caso Brown versus Board of Education – que permitiu o acesso

dos negros às escolas com os brancos – em razão da sua falta de neutralidade,

porque não se poderia objetivamente fundamentar a opção pela tese dos negros

em detrimento da dos brancos.

254 Interpretação e aplicação da constituição, p. 285.

Page 223: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

O que procuramos demonstrar é que a neutralidade desejada por

alguns, se levada às últimas conseqüências aplicativas, pode simplesmente

desprezar a realidade existente – o mundo real regulado pelo direito – e levar a

resultados desastrosos quando estão em jogo valores sociais, políticos,

econômicos e outros relevantes para toda a sociedade. Desse modo, se não

pretendemos que o viés ideológico presente na interpretação venha a dominar a

atividade do intérprete, levando-o a decisões desarrazoadas, parciais ou mesmo

arbitrárias, não se pode desprezar o fato de que a ausência total de ideologia – se

isso fosse possível – e o apego excessivo ao formalismo poderiam igualmente

conduzir a resultados indesejáveis.255

Nesse sentido, é significativo o trecho do voto do Ministro MARCO

AURÉLIO, do Supremo Tribunal Federal, segundo o qual “Ao examinar a lide, o

magistrado deve idealizar a solução mais justa, considerada a respectiva

formação humanística. Somente após, cabe recorrer à dogmática para,

encontrado o indispensável apoio, formalizá-la”.256 257

Ademais, efetuando ligeiro regresso ao trecho do ensaio do

professor norte-americano que reproduzimos há pouco, a defesa da neutralidade

– ausência de ideologia e nenhuma preocupação com os resultados da decisão

judicial – tal como exposta, não deixa de representar ela mesma uma posição

255 Tercio Sampaio Ferraz Junior salienta que “Essa limitação teórica pode comportar posicionamentos cognitivos diversos que podem conduzir, por vezes, a exageros, havendo quem faça do estudo do direito um conhecimento demasiado restritivo, legalista, cego para a realidade, formalmente infenso à própria existência de fenômeno jurídico como um fenômeno social ...” (Introdução ao estudo do direito, p. 48). 256 Recurso Extraordinário nº. 111.787-7. 257 Tal passagem é semelhante a esta outra, de Alf Ross: “Uma vez os fatores de motivação combinados – as palavras da lei, as considerações pragmáticas, a avaliação dos fatos – tenham produzido seu efeito na mente do juiz e o influenciado a favor de uma determinada decisão, uma fachada de justificação é construída, amiúde discordante daquilo que, na realidade, o fez se decidir da maneira que decidiu” (Direito e justiça, p. 182).

Page 224: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

ideológica, qual seja, a ideologia da indiferença, opção tão ideológica quanto

qualquer outra.

De qualquer modo, sem prejuízo de tudo quanto afirmamos, há uma

consideração a ser feita, que se revela tão óbvia quanto fundamental, consistente

em que, se a ideologia for tomada como valoração de valores, certamente não

será qualquer valor que poderá sustentar a decisão. Os valores que poderão ser

objeto de ponderação são aqueles que evidentemente forem prestigiados pelo

ordenamento jurídico, expressa ou implicitamente, e não os que eventualmente

contarem com a simpatia do aplicador do direito, mas sem nenhuma referência de

sustentação no direito positivo. Daí decorre a acentuada relevância da

fundamentação da decisão, para que a influência da ideologia na atividade do

intérprete – preferibilidade de valores – seja identificada no corpo da decisão, a

fim de que possa ser alvo de irresignação, por meio dos recursos previstos no

sistema, e para que se possa verificar se o valor prestigiado no caso concreto

encontra abrigo ordenamento e em que medida.

Em outros termos, quando mencionamos a influência da ideologia na

atividade do intérprete – em especial na do intérprete autêntico – parece ficar

claro que não é qualquer ideologia que pode exercer tal influência, mas somente

aquela autorizada pelo sistema do direito positivo.

Finalmente, a fim de explicitar o que procuramos demonstrar neste

item, vejamos, ainda que perfunctoriamente, três exemplos fornecidos por

precedentes jurisprudenciais.

O primeiro é do Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Ação

Direta de Inconstitucionalidade nº. 319-DF, relator Ministro MOREIRA ALVES, em

Page 225: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

que se discute a possibilidade de o Poder Executivo, por meio da Lei Federal nº.

8.039, de 30 de maio de 1990, dispor sobre critérios de reajuste das

mensalidades escolares. O conflito de valores nesta hipótese é estabelecido entre

o fundamento da livre iniciativa e do princípio da livre concorrência (previstos na

Constituição Federal, artigo 170, caput e inciso IV) com os da defesa do

consumidor e da redução das desigualdades sociais (artigo 170, inciso V e artigo

3º., inciso III).

O segundo é do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do

Recurso Especial nº. 197. 329 – SP, relator o Ministro EDUARDO RIBEIRO, cujo

tema repousa no exercício do direito de recesso de sócios minoritários, previsto

no artigo 137 da Lei Federal nº. 6.404/76, discutindo-se na ação judicial a

utilização pouco usual do instituto jurídico do direito de recesso por um grupo de

acionistas que, segundo consta do acórdão, ter-se-iam valido do referido direito

apenas para “auferir lucros injustificados”, caso em que se deu provimento ao

apelo especial da companhia, com fundamento na norma de interpretação

prevista no artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil. Aqui o conflito entre

princípios (e entre os valores que lhes são adjacentes) materializa-se, de um lado,

pelo direito de propriedade e percepção de seus frutos (Constituição Federal,

artigo 170, inciso II, e artigo 137 da Lei nº. 6.404/76) e, de outro, pela boa-fé (Lei

de Introdução ao Código Civil, artigo 5º) e mesmo pela ilicitude decorrente do uso

irregular de um direito (Código Civil de 1917, artigo 160).

O terceiro exemplo é oriundo do Tribunal Regional Federal da

Terceira Região, na Apelação Cível nº. 261.220 (95.03.052961-1), relator o Juiz

Federal (convocado) DAVID DINIZ DANTAS, no seio de ação civil pública na qual

Page 226: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

se discute “de um lado a necessidade imediata de ações concretas do Estado

para proteção da saúde e vida de uma criança de um ano e dez meses, sendo

que do outro lado nos deparávamos com um momento ainda inicial de

implantação dessa rede de serviços de saúde, onde a distribuição de

competências; ações e principalmente a estruturação econômica do SUS não se

apresentavam adequadamente definidas, fatos esses que tornavam justificável a

dúvida de quem deveria figurar no pólo passivo da ação (União ou INSS)”. Da

análise do acórdão depreende-se que o recurso de apelação interposto pelo

Instituto Nacional do Seguro Social sustentava sua ilegitimidade ad causam, com

o argumento de que nenhum texto legal atribui ao INSS a responsabilidade pela

gestão da saúde pública do Brasil, com o requerimento de denunciação à lide da

União, do Governo Estadual e do Governo Municipal, e ainda, como argumento

contrário à concessão do referido direito social (fornecimento do medicamento), o

fato de que “a caracterização desses direitos como vinculantes para o Estado

levaria ao deslocamento da política social, passaria da competência do

Executivo/Legislativo, para o Poder Judiciário”. Nessa interessante hipótese, o

conflito de princípios exterioriza-se, como consta do próprio acórdão: de um lado,

“no âmbito dos direitos fundamentais, além do genérico princípio da dignidade

humana (art.1º, III, da CF), os seguintes princípios específicos da ordem social: de

proteção ao menor (art. 227 da CF), do direito à saúde (art. 196 e seguintes da

CF), da assistência social (art. 203 e 204 da CF) e da solidariedade (princípio

constitucional implícito). De outro lado, mostrando-se como obstáculo ao exercício

do direito à assistência médica concreta do Estado, o princípio democrático (art.

1º da CF) e o princípio da separação dos poderes (art. 2º da CF)”.

Page 227: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

Independentemente das decisões proferidas nos casos concretos,

cabe notar que eles constituem relevantes exemplos de conflitos entre princípios,

sempre com o chamamento de valores prestigiados pelo ordenamento jurídico

(hospedados pelo sistema), em hipóteses de difícil solução (hard cases), nas

quais o intérprete-juiz vê-se obrigado, considerando as especificidades do caso

concreto, a ponderar os valores envolvidos e a optar por um deles, ou seja, fazer

com que um prevaleça sobre o outro no caso específico, em seara onde viceja a

influência da ideologia na atividade exegética.

Diga-se de passagem, no campo do direito tributário, não são raras

as oportunidades em que se constata o conflito entre valores, como, por exemplo,

capacidade contributiva e solidariedade social (ligados à justiça da tributação) e

legalidade e tipicidade (relacionados à segurança jurídica).258

8. Limites da interpretação

A última questão a que devemos procurar responder é a seguinte: se

interpretar é atribuir sentido ao texto normativo, onde está o limite ao significado

que se pode dar ao texto? Ou, em outras palavras, até que ponto pode caminhar

o intérprete no trilhar do caminho hermenêutico?

UMBERTO ECO afirma que “Poder-se-ia dizer que um texto, depois

de separado de seu autor (assim como da intenção do autor) e das circunstâncias

concretas de sua criação (e, conseqüentemente, de seu referente intencionado),

258 Para outros dois interessantes exemplos envolvendo metodologia interpretativa e conflitos entre princípios, consultem-se o artigo de doutrina “Regime constitucional do controle de preços no mercado” de Fábio Konder Comparato (Revista de Direito Público, vol. 97) e o parecer “Despesa pública. Conflito entre princípios e eficácia das regras jurídicas. O princípio da sujeição da administração às decisões do poder judiciário e o princípio da legalidade da despesa pública” de Eros Roberto Grau (Revista Trimestral de Direito Público, vol. 2).

Page 228: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

flutua (por assim dizer) no vácuo de um leque potencialmente infinito de

interpretações possíveis”. 259 Tal afirmação, entretanto, evidentemente não

significa que a interpretação não tenha fim, sobretudo no caso da interpretação da

lei, em virtude de sua peculiaridade fundamental, que é o fato de ser interpretada

porque é necessário determinar seu sentido e alcance para aplicá-la a

determinado caso, de modo que afirmar que a interpretação comporta muitas

possibilidades não implica a viabilidade de todas elas.

O autor italiano não se refere especificamente à interpretação de

textos jurídicos, mas, com os devidos ajustes, muito de seu pensamento pode ser

aplicado à hermenêutica jurídica, uma vez que tanto nessa área do conhecimento,

como em outras, são muitas e variadas as possibilidades de interpretação dos

textos. O professor catedrático de Semiótica na Universidade de Bolonha

reconhece que o próprio texto interpretado impõe limites ao seu intérprete, de

modo que a mensagem do texto pode significar muitas coisas, mas não se

poderia dizer que ela pode significar qualquer coisa, porque há sentidos que seria

despropositado aceitar, quando afirma que “Se há algo a ser interpretado, a

interpretação deve falar de algo que deve ser encontrado em algum lugar, e de

certa forma respeitado”.260

Esta última afirmação parece-nos bastante sugestiva e, transpondo-

a para a área de nosso interesse, podemos afirmar que se há necessidade de

aplicar a norma jurídica e, para tanto, deve-se interpretar o texto normativo (para

deste extrair aquela), então falar dos limites da interpretação do texto significa, de

certo modo, respeitar o texto da norma e a própria norma, caso contrário a lei

259 Interpretação e superinterpretação, p. 48. 260 Interpretação e superinterpretação, p. 60/61.

Page 229: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

deixaria de ser a pauta regulatória de comportamentos e negar-se-ia a sua própria

razão de ser, como elemento disciplinador de condutas humanas intersubjetivas.

HUMBERTO ÁVILA, que reconhece que a atividade do intérprete,

quer o julgador, quer o cientista do direito, não se limita a apenas descrever os

significados dos dispositivos, mas em constituir esses significados, de modo que o

intérprete não somente constrói, mas reconstrói sentidos, aponta a idéia do limite

nos seguintes termos “Daí se dizer que interpretar é construir a partir de algo, por

isso significa reconstruir: A uma, porque utiliza como ponto de partida os textos

normativos, que oferecem limites à construção de sentidos; a duas, porque

manipula a linguagem, à qual são incorporados núcleos de sentidos, que são, por

assim dizer, constituídos pelo uso, e preexistem ao processo interpretativo

individual”.261

No caso de nosso tema, ao analisarmos o texto da lei tributária para

verificar se o legislador, ordinário ou complementar, agiu dentro de suas

possibilidades – quanto aos conceitos constitucionais utilizados para a outorga da

competência tributária – o Poder Judiciário (intérprete autêntico) possui também

ele uma margem para a construção e a reconstrução do conteúdo significativo

dos conceitos, mas evidentemente encontra limites “cuja desconsideração cria um

descompasso entre a previsão constitucional e o direito constitucional

concretizado”.262

A constatação inevitável da existência de limites à interpretação do

texto normativo leva-nos à idéia daquilo que talvez pudéssemos denominar de

coeficiente de elasticidade da norma jurídica, isto é, a medida da maleabilidade da

261 Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 24/25. 262 Humberto Ávila, Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 26.

Page 230: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

norma que permite, por meio da interpretação, adaptá-la ao caso concreto; que

possibilita sua aplicação para atender às especificidades da hipótese fática

considerada, devendo-se notar a interreferibilidade existente entre norma e fato,

pois a norma que tem por objeto conformar o fato – oferecendo-lhe regramento

jurídico – é por ele, em certa medida, conformada.

Em outros termos, se considerássemos a norma jurídica – em

especial, a norma constitucional – como algo rígido, espesso, protegido contra a

manipulação de seus contornos (manipulação no bom sentido da palavra),

provavelmente, a pretexto de protegê-la e prestigiá-la, estaríamos negando seu

potencial de eficácia, sua possibilidade de aplicação aos mais variados e

complexos fatos da realidade social.

Os conceitos constitucionais, segundo pensamos, podem ser

trabalhados até determinado limite, representado, entre outros, pelo postulado da

proibição do excesso. Assim, por exemplo, o limite da construção do conceito

constitucional de receita refere-se imediatamente à ofensa ao direito de

propriedade, de forma que não são todas as receitas que podem ser objeto da

tributação, mas algumas delas, ou, em outro exemplo, o limite da constatação da

capacidade contributiva materializa-se no aparecimento do efeito confiscatório,

por mais fluido que este possa revelar-se.

A interpretação não é aleatória, não é um jogo de dados. O

dispositivo constitucional não pode ser tomado como pretexto para qualquer

interpretação, pois há atribuições de sentido que se revelam descabidas,

despropositadas, fora dos parâmetros das possibilidades razoáveis. Podemos,

portanto, interpretar e reinterpretar, preenchendo várias vezes o conteúdo

Page 231: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

significativo do conceito constitucional até o ponto em que isso não mais seja

possível, porque a interpretação se desborda do razoável e do racional –

revelando-se, por assim dizer, uma superinterpretação – e ultrapassamos o

coeficiente de elasticidade da norma, rompendo-se o liame congruente entre o

texto da norma e a norma.

O mencionado coeficiente de elasticidade representa o grau

aceitável em que se pode esticá-la, estendê-la; o ponto até o qual podemos levar

o seu conteúdo normativo, isto é, o marco representado pelo limite da

interpretação, sem que ultrapassemos o referido coeficiente, momento no qual a

norma, por demasiadamente elastecida, rompe-se, e aí já não há interpretação,

mas superinterpretação, uma interpretação fora do limite.

Cabe notar que esse desrespeito ao dito coeficiente pode dar-se

quer pela estrita positividade, quer pelo desvio extremado da positividade, tanto

pelo apego demasiado à letra da lei, quanto pelo afastamento excessivo dela,

como podemos notar pelos dois exemplos seguintes.

No caso da imunidade relativa a impostos sobre livros, prevista no

artigo 150, inciso VI, alínea d, da Constituição Federal, discute-se na doutrina e

na jurisprudência qual o alcance efetivo da norma imunizante, para se saber se

ela contempla ou não o chamado livro eletrônico. Parece-nos que a interpretação

da referida norma imunizatória, considerando-se o valor prestigiado no dispositivo,

obriga-nos ao reconhecimento de que a imunidade aplica-se ao livro impresso em

papel, ao livro eletrônico e mesmo a qualquer outro tipo de livro que a tecnologia

ainda seja capaz de inventar, uma vez que, segundo nos parece, aquilo que se

deseja proteger da incidência dos impostos é a obra cultural contida no livro (o

Page 232: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

conteúdo informativo) e não a forma, o veículo em que ela se encontra. Nesse

caso, segundo pensamos, o apego excessivo à letra do texto normativo

(positividade acentuada) vem a desrespeitar o coeficiente de elasticidade.

O segundo exemplo é também relativo à imunidade, desta feita

àquela prevista no artigo 149, parágrafo 2º, inciso I, segundo o qual as

contribuições sociais e as de intervenção no domínio econômico não incidem

sobre as receitas decorrentes de exportação. Aqui a controvérsia se instala

porque há entendimento doutrinário que afirma que a imunidade alcança não

somente as contribuições incidentes sobre as receitas, mas também aquela

incidente sobre o lucro, em razão de uma interpretação teleológica do dispositivo

constitucional, que tem por objetivo incentivar as exportações. É evidente que a

razão da imunidade é o apoio às atividades de exportação, entretanto, não

podemos entender que isso signifique que se deva estender a norma imunizante

para também alcançar o lucro decorrente daquelas atividades, tendo-se em vista

que receita e lucro são realidades distintas, são conceitos representativos de

parcelas diferentes da realidade, às quais a norma constitucional dispensa

tratamentos jurídicos diversos e concede imunidade apenas a uma delas. Podia o

legislador constitucional contemplar ambas com a imunidade, mas não o fez.

Optou por uma delas e excluiu da desoneração das contribuições a outra, razão

pela qual, com a devida vênia, a pretendida interpretação ampla do dispositivo

constitucional (pelo afastamento demasiado da letra do texto) também leva ao

desrespeito ao coeficiente de elasticidade da norma jurídica.

Com tais considerações esperamos ter deixado claro nosso

entendimento quanto ao reconhecimento de que existem limites à atividade de

Page 233: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

interpretação dos textos normativos. Cabe-nos, agora, a parte mais difícil da

tarefa, consistente em averiguar onde estão os limites. O que procuramos fazer

em seguida é propor alguns critérios, elementos que podem servir de apoio para

identificar os limites da interpretação, sem evidentemente pretender esgotar o

tema, pois certamente estamos muito longe disso. Trata-se apenas de sugerir

cinco parâmetros iniciais de abordagem da questão, que constitui tão-somente um

trato provisório da matéria, que é de alta e notória complexidade.

8.1 Sentido literal possível

Embora consideremos que interpretar é atribuir sentido ao texto e

construir a norma jurídica, nem por isso pensamos que a interpretação é deixada

ao arbítrio do intérprete, pois, como já vimos, o objeto da interpretação é o texto

normativo e tal texto não pode transformar-se em pretexto para qualquer

interpretação que dele se pretenda fazer.

O texto normativo é o ponto de partida e de chegada da

interpretação; é o marco inicial de onde o intérprete começa o percurso

interpretativo, para atribuir-lhe sentido, e é também o ponto para o qual deve o

intérprete retornar, ao final, para verificar se o sentido atribuído cabe ou não no

texto normativo, uma vez que, como acentua KARL LARENZ, “Uma interpretação

que se não situe já no âmbito do sentido literal possível, já não é interpretação,

mas modificação de sentido”.263

Esse sentido literal lingüisticamente possível, na maioria dos casos

não é de tranqüila verificação, pela própria natureza polissêmica das palavras e

263 Metodologia da ciência do direito, p. 454.

Page 234: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

porque depende do contexto em que a palavra (ou o conceito) é utilizada. Nem

por isso torna-se impossível constatar certas oportunidades nas quais a

interpretação desborda-se do limite razoável (superinterpretação), ao atribuir

sentido para a palavra (ou para o conceito) que ela evidentemente não pode

aceitar. Ainda que não possamos sempre afirmar, com acentuada precisão, aquilo

que a palavra significa, podemos dizer, entretanto (com acentuada margem de

segurança), aquilo que ela não significa.

Conforme afirma KARL LARENZ, “Por sentido literal possível

entendo tudo aquilo que nos termos do uso lingüístico que seja de considerar

como determinante em concreto – mesmo que, porventura, em circunstâncias

especiais – pode ainda ser entendido como o que com esse termo se quer dizer.

Pode certamente ser duvidoso em alguns casos, dado que os limites do sentido

literal linguisticamente possível tão-pouco se encontram sempre traçados com

exactidão, se trata ainda de interpretação muito ‘ampla’ ou já de integração de

lacunas por analogia. A impossibilidade de uma delimitação rigorosa não impede,

no entanto, uma distinção, entendida esta não tanto conceptualmente, mas

tipologicamente. Na grande maioria dos casos é bem possível dizer-se que um

evento a caracterizar de modo distinto se encontra de fora do campo de

significação deste termo, do seu sentido literal possível”.264

Desse modo, se, no processo interpretativo, compreende-se

provisória como permanente; trinta dias como mais de trinta dias; todos os

recursos como alguns recursos; ampla defesa como defesa restrita; manifestação

concreta de capacidade econômica como manifestação provável da capacidade

264 Metodologia da ciência do direito, p. 454.

Page 235: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

econômica; lei como decreto; posse como propriedade e receita como despesa,

certamente tal interpretação extrapola os seus limites de possibilidade porque

ignora o sentido literal possível dos termos ou dos conceitos interpretados.

8.2 Âmbito ou domínio da norma

O segundo aspecto está relacionado com aquilo que KARL LARENZ

denomina interpretação materialmente adequada e que se deve levar em

consideração “na sua especificidade e na sua estrutura especial a coisa de cuja

regulação se trata na norma a interpretar”,265 ou seja, trata-se de averiguar qual o

campo da realidade que é objeto de regramento jurídico, como, por exemplo, as

sociedades limitadas, a concorrência, o meio ambiente, a política de exportação e

assim por diante.

É de FRIEDRICH MÜLLER a expressão domínio da norma (ou

âmbito da norma), com a qual designa esses setores da realidade para os quais

volta-se a norma jurídica com o objetivo de regramento ou regulação, entendendo

por este “o recorte da realidade social na sua estrutura básica, que o programa da

norma ‘escolheu’ para si ou em parte criou para si como seu âmbito de

regulamentação”.266

Com tal critério, portanto, que apontamos como elemento limitativo

da interpretação, há de se averiguar qual a finalidade da norma, isto é, qual a

razão pela qual a norma foi criada, diante daquela parcela do mundo real que ela

recortou com o propósito de conferir-lhe regime jurídico nesta ou naquela direção.

Mais do que isso, há de se analisar a medida respectiva do regramento jurídico,

265 Metodologia da ciência do direito, p. 470. 266 Métodos de trabalho do direito constitucional, p. 57.

Page 236: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

vale dizer, como, de que modo, e em qual grau se deu a regulação normativa; há

de se apurar, por assim dizer, a relação de congruência entre norma e fato

regulado, entre a realidade normalizada e o efetivo tratamento normativo

dispensado a ela.

Dessa forma, julgamos que estes dois elementos – parcela da

realidade recortada pela norma (domínio normativo) e regramento jurídico

oferecido – constituem limite à interpretação do respectivo texto normativo,

porque devem ser respeitados como fronteira material à atribuição de sentido que

se pretenda dar ao texto.

Se determinada lei, que tenha por domínio normativo a proteção do

meio ambiente, por exemplo, vier a impor a obrigatoriedade de as empresas

químicas diminuírem o volume de gases expelidos para a atmosfera, a

interpretação do texto legal diante dos casos concretos não pode levar, em

nenhuma hipótese, à permissão da manutenção do volume de gases expelidos,

porque tal interpretação, ainda que pudesse ser tida como razoável (porque, afinal

de contas, não se elevaria o volume de gases expelidos), não atende às

peculiaridades do domínio normativo.

8.3 Exigência de decidibilidade

A decidibilidade, que abordamos no início do presente trabalho,

comparece aqui como limite da interpretação em virtude da finalidade prática da

atividade exegética, uma vez que aquele que interpreta o texto legal sempre o faz

com vistas à sua aplicação a um caso concreto que reclama solução.

Page 237: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

Desse modo, diante da necessidade de se obter solução para o

problema apresentado, há de haver um limite na tarefa interpretativa que não

permita, por assim dizer, uma interpretação que tenda a não ter fim, pois este

impediria a obtenção da decisão.

Entre as várias possibilidades de interpretação (alternativas

localizadas dentro da moldura), chega o momento no qual o intérprete se vê

obrigado a optar por uma delas, que, no seu entendimento, é aquela que melhor

solução oferece para o caso, em virtude dos valores envolvidos ou dos bens

jurídicos tutelados, de modo que aqui o limite da interpretação é a necessidade de

oferecer solução ao caso concreto (decidibilidade).

Esse é o ensinamento de TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR:

“Ora, no Direito, segue-se, em vista desta tensão, que não apenas estamos

obrigados a interpretar (não há norma sem sentido nem sentido sem

interpretação), como também deve haver uma interpretação e um sentido que

preponderem e ponham um fim (prático) à cadeia das múltiplas possibilidades

interpretativas. O critério para entender-se este fim prático é a própria questão

que anima a ciência jurídica: o problema da decidibilidade, isto é, criar-se

condições para uma decisão possível”.267

A interpretação do texto legal encontra, assim, o seu limite diante

daquela hipótese determinada, com atribuição de sentido ao texto e obtenção da

norma jurídica aplicável, uma vez que, como o demonstra a jurisprudência, é

possível que se reinicie a interpretação do mesmo texto legal diante de novo

267 A ciência do direito, p. 73.

Page 238: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

problema. De qualquer modo, a interpretação deve desenvolver-se até o ponto

em que possamos encontrar solução razoável para o caso concreto.

8.4 Proibição do excesso

O postulado da proibição do excesso tomado como limite da

interpretação significa que, entre as interpretações possíveis, deve prevalecer

aquela que, prestigiando um princípio, não implique a restrição demasiada de

outro princípio envolvido no caso concreto.

Como afirma HUMBERTO ÁVILA, “A realização de uma regra ou

princípio constitucional não pode conduzir à restrição a um direito fundamental

que lhe retire o mínimo de eficácia. Por exemplo, o poder de tributar não pode

conduzir ao aniquilamento da livre iniciativa”.268

Como exemplo, verifique-se o caso noticiado pelo referido autor

sobre a Representação nº. 1.077-5-RJ, na qual o Supremo Tribunal Federal

deferiu medida liminar suspendendo a aplicação de uma lei estadual que havia

elevado os valores da taxa judiciária em 827%, sob o entendimento de que tal

elevação viria a impedir o acesso à prestação jurisdicional de uma grande parcela

da população. Nesse caso, embora a elevação do valor da taxa judiciária seja

permitida pelo ordenamento jurídico – e talvez fosse mesmo necessária (porque

seu valor poderia estar muito defasado) –, a elevação concreta foi considerada

excessiva, porque poderia implicar na restrição a um direito fundamental.

Outro possível exemplo é aquele relativo ao poder de polícia fiscal e

à medida de seu exercício, nos casos de instauração de procedimentos especiais

268 Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 89.

Page 239: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

rigorosos de fiscalização sobre contribuintes suspeitos da prática de sonegação

fiscal, que são obrigados a obter autorização específica dos agentes

administrativos para cada operação realizada (carimbo na nota fiscal). Embora a

fiscalização mais rigorosa possa encontrar amparo no direito positivo, não se

poderia aceitar, por exemplo, a exigência de que o contribuinte comparecesse

diariamente ao posto fiscal para que pudesse realizar operações de saída de

mercadorias, porque tal medida, a propósito de prestigiar o interesse público,

restringiria em demasia o direito do contribuinte.

O postulado da proibição do excesso, assim, pode revelar-se como

elemento de limite na interpretação do texto normativo, pois exige do intérprete

atenção especial quanto ao resultado do processo interpretativo, no que se refere

ao mínimo de eficácia dos princípios envolvidos no caso concreto.

8.5 Efeitos concretos da decisão

O último elemento que mencionamos como possível agente limitador

da interpretação da lei materializa-se nos efeitos concretos da decisão, ou seja,

nas conseqüências geradas por esta ou aquela interpretação, critério

especialmente relevante no caso da interpretação realizada pelo intérprete-juiz,

uma vez que este, ao deparar com as possibilidades existentes dentro da

moldura, deve avaliar, deve ponderar quais os efeitos concretos da interpretação-

decisão que irá adotar.

Isso não significa, já o afirmamos desde logo, que o juiz deva ceder

a pressões sociais, políticas, econômicas, religiosas e outras tais, ou mesmo a

argumentos falaciosos de uma suposta supremacia pura e simples do interesse

Page 240: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

público sobre o particular, de modo que, ao ponderar as conseqüências de sua

decisão (e de sua interpretação, em especial a do texto constitucional), ele fosse

obrigado a abandonar a imparcialidade e a impessoalidade no ato de julgar.

Em vez disso, afirmamos que, ao interpretar o texto normativo e

buscar a resposta para o problema que aguarda solução, o intérprete autêntico

não pode esquecer que sua decisão, em última análise, não responde a meros

interesses acadêmicos ou científicos e muito menos encontra razão de ser no

diletantismo, mas, muito diversamente, objetiva aplicar a norma jurídica ao caso

concreto, regulando a vida em sociedade e, desse modo, não pode desprezar os

efeitos de sua decisão sobre esta sociedade à qual sua decisão se direciona.

Um exemplo do que procuramos afirmar pode ser encontrado no

julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, da Ação Declaratória de

Constitucionalidade (Medida Cautelar) nº. 9-6-DF, cujo objeto é a Medida

Provisória nº. 2.152-2/01, que instituiu medidas restritivas à utilização de energia

elétrica. Da análise do voto da Ministra ELLEN GRACIE, por exemplo, pode-se

notar claramente a preocupação com os efeitos da decisão e a consideração da

situação fática, que ensejou a edição da Medida Provisória, chegando mesmo a

Ministra a mencionar a inapelabilidade dos fatos.

Outro notável exemplo é o voto do Ministro CÉSAR PELUSO, na

Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 3.105-8-DF, cujo objeto é a contribuição

previdenciária dos aposentados e pensionistas, no qual o Ministro, reconhecendo,

por um lado, que ao Poder Judiciário não cabe “substituir-se aos órgãos

republicanos competentes para legislar e para definir políticas públicas, nem

tampouco de se fazer de intérprete de aspirações populares que encontram, nas

Page 241: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

urnas, o instrumento constitucional de expressão e decisão”, por outro ele não

deve deixar de considerar em sua decisão a “complexidade jurídica e as

repercussões sociais, econômicas e políticas do caso”.

Essa necessidade de atenção com os efeitos da decisão já fora

vislumbrada por KARL LARENZ, nos seguintes termos: “Decerto que se poderá,

por exemplo, resolver muitas vezes sobre recursos constitucionais de modo

rotineiro, com os meios normais da argumentação jurídica. Aqui tão-pouco faltam

casos comparáveis. Mas, nas resoluções de grande alcance político para o futuro

da comunidade, estes meios não são suficientes. Ao Tribunal Constitucional

incumbe uma responsabilidade política na manutenção da ordem jurídico-estadual

e da sua capacidade de funcionamento. Não pode proceder segundo a máxima:

fiat justitia, pereat res publica. Nenhum juiz constitucional procederá assim na

prática. Aqui a ponderação das conseqüências é, portanto, de todo

irrenunciável...”.269

269 Metodologia da ciência do direito, p. 517.

Page 242: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

CAPÍTULO 6

CONSTRUÇÃO DO CONTEÚDO DOS CONCEITOS CONSTITUCIONAIS

1. Imperativo lógico da existência do conceito pressuposto

A expressão imperativo lógico da existência do conceito pressuposto

é da lavra do professor JOSÉ ARTUR LIMA GONÇALVES, que se utilizou dela

para tratar especificamente do conceito de renda, mas cujo ensinamento é

aplicável aos diversos conceitos: “Não há outra solução lógico-sistemática para

essa questão. Admitindo-se que é a Constituição que confere ao legislador

infraconstitucional as competências tributárias impositivas, o âmbito semântico

dos veículos lingüísticos por ela adotados para traduzir o conteúdo dessas regras

de competência não pode ficar à disposição de quem recebe a outorga de

competência”.270

270 Imposto sobre a renda: pressupostos constitucionais, p. 171.

Page 243: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

A existência pressuposta dos conceitos constitucionais referentes à

outorga de competência deriva basicamente de três fatores: (i) da supremacia

normativa da Constituição Federal, (ii) da repartição da competência tributária

com base nos conceitos e (iii) da adoção do critério da materialidade para a

discriminação dessa competência.

Com relação ao primeiro aspecto, a supremacia normativa da

Constituição reveste-se da qualidade de verdadeiro princípio de interpretação,

tendo-se em vista que a Carta Política situa-se hierarquicamente no ápice do

ordenamento jurídico e, por tal razão, todas as normas jurídicas são a ela

reconduzidas e nela encontram seu fundamento de validade formal e material.

Daí porque os conceitos utilizados não estão à livre disposição do

legislador infraconstitucional, pois se a legislação ordinária pudesse estabelecer

qual o conteúdo dos conceitos, então a lei é que diria aquilo que a Constituição

significa, o que não é possível. Em função de sua supremacia normativa, a

Constituição que determina como a lei pode ser e – mais do que isso – como a lei

deve ser.

A supremacia normativa da Constituição é tratada por EDUARDO

GARCÍA DE ENTERRÍA com estas palavras:

“La supremacía de la Constitución sobre todas las normas y su

carácter central en la construcción y en la validez del ordenamiento

en su conjunto, obligan a interpretar éste en cualquier momento de

su aplicación – por operadores públicos o por operadores privados,

por Tribunales o por órganos legislativos o administrativos – en el

sentido que resulta de los principios y reglas constitucionales, tanto

los generales como los específicos referentes a la materia de que

se trate.

Page 244: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

Este principio es una consequencia derivada del carácter normativo

de la Constitución y de su rango supremo y está reconocido en los

sistemas que hacen de esse carácter un postulado básico. Así, en

Estados Unidos, todas las Leyes y los actos de la Administración

han de interpretarse in harmony with the Constitution; en Alemania el

mismo principio impone die verfassungskonforme Auslegung von

Gesetzen, la interpretación de las Leyes conforme a la Constitución.

En ambos casos, como prácticamente en todos los paises com

justicia constitucional, el principio es de formulación

jurisprudencial.”271

Tal relevante circunstância é colocada em relevo pelo Ministro JOSÉ

CELSO DE MELLO FILHO ao afirmar que “É preciso respeitar, de modo

incondicional, os parâmetros de atuação delineados no texto constitucional. Uma

Constituição escrita não configura mera peça jurídica, nem é simples estrutura de

normatividade e nem pode caracterizar um irrelevante acidente histórico na vida

dos Povos e das Nações. (...) A Constituição não pode submeter-se à vontade

dos poderes constituídos e nem ao império dos fatos e das circunstâncias. A

supremacia de que ela se reveste – enquanto for respeitada – constituirá a

garantia mais efetiva de que os direitos e as liberdades não serão jamais

ofendidos”.272

Por essas razões acompanhamos JOSÉ ARTUR LIMA

GONÇALVES na irretocável lição do imperativo lógico da existência dos

conceitos, porque é justamente em virtude da supremacia da Constituição que os

conceitos determinam e direcionam a atuação do legislador, caso contrário, se ele

271 La constitución como norma y el tribunal constitucional, p. 95. 272 Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 293-7600-DF – medida liminar, julgamento de 06 de junho de 1990.

Page 245: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

pudesse fixar amplamente o conteúdo dos conceitos, não haveria supremacia

constitucional e implodir-se-ia a lógica estrutural do ordenamento jurídico.

O segundo aspecto diz respeito à repartição constitucional da

competência tributária que, feita com base nos aludidos conceitos, constitui

reserva material da Constituição Federal. O exercício da competência cabe aos

entes federativos, que somente podem atuar dentro dos moldes fixados pela

Carta, mas sua discriminação é matéria exclusiva da Constituição, razão pela qual

os conceitos não podem ser manipulados pelo legislador, pois tratar dos conceitos

significa alterar a discriminação da competência e isso lhe é proibido.

Como acentua HUMBERTO ÁVILA, “A reserva material

constitucional é estabelecida diretamente nos casos em que a Constituição utiliza

expressões, como renda, rendimento, capital, faturamento ou salário, que já

possuem sentidos mínimos incorporados ao uso ordinário ou técnico da

linguagem”.273

O terceiro aspecto, decorrente dos dois primeiros, refere-se ao fato

de os conceitos estarem intimamente ligados ao critério da materialidade adotado

pela Constituição Federal na discriminação da competência tributária. Ao outorgar

tal competência, considerando toda a base tributável (todos os fatos econômicos

reveladores de riqueza), a Lei Maior determina quais poderão ser tributados pela

União, pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios, e tal divisão do

poder impositivo é levada a termo com base no critério da materialidade que,

como a própria expressão antecipa, informa a matéria fática sobre a qual pode ser

instituída a tributação.

273 O imposto sobre serviços e a Lei Complementar nº . 116/03, In: O ISS e a LC 116, p. 166.

Page 246: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

É a materialidade que permite separar e identificar o que vêm a ser,

a título de exemplo, produtos industrializados, operações relativas à circulação de

mercadorias e prestações de serviço de qualquer natureza. É ela que indica que

faturamento é diferente de receita, que é diferente de lucro e que estes são

diferentes de renda, para fins de tributação. Por isso, a repartição da competência

tributária feita pela Constituição somente faz sentido – sendo esta uma condição

inafastável – se adotarmos como premissa a existência conceitos constitucionais,

isto é, um conceito mínimo de significado para cada matéria prevista na Carta,

que permita distinguir as parcelas da realidade ali designadas.

Em outros termos, como veremos em seguida, ainda que os

conceitos não se encontrem exaustivamente delimitados na Constituição, a sua

existência e o seu mínimo de conteúdo semântico constituem um pressuposto de

interpretação e de aplicação do texto constitucional; é uma condição estrutural

intrínseca à própria discriminação de competência tributária.

2. Conceito constitucional como elemento integrante da regra de

outorga de competência tributária

As idéias desenvolvidas até aqui nos permitem concluir que conceito

constitucional é um elemento integrante e indissociável da regra constitucional de

outorga de competência tributária.

Nessa regra de autorização para a instituição do tributo – que

determina o sujeito ativo da obrigação tributária e permite identificar o passivo e,

ainda, indica a base de cálculo possível – encontramos o conceito constitucional

que fixa a parcela da realidade que poderá ser alvo da lei impositiva e que,

Page 247: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

justamente por fazer parte da norma de outorga de competência (que tem sede

exclusivamente constitucional), não pode estar à disposição dos interesses do

legislador infraconstitucional.

JOSÉ ARTUR LIMA GONÇALVES, referindo-se especificamente ao

conceito de renda e à rigidez do sistema tributário nacional, afirma que todas as

premissas estabelecidas em seu estudo “conduzem à firme e inexorável

conclusão de que o conceito de renda – tendo sido utilizado para implementação

de repartição constitucional de competência tributária impositiva – é

constitucionalmente pressuposto, não podendo ficar (por exigência lógico-

sistemática) à disposição do legislador infraconstitucional”.274

Considerando o conceito constitucional como elemento componente

da própria outorga de competência, podemos também afirmar sua natureza

jurídica que, segundo nosso ponto de vista, é de limitação constitucional ao poder

de tributar, porque estabelece – em posição hierárquica superior no ordenamento

jurídico – qual o limite do legislador, porque determina o que ele pode e não fazer

relativamente ao poder de tributar que recebeu. Em uma palavra, fornece a

medida da competência tributária.

Dessa forma, embora acreditemos que o legislador possua uma

certa margem de liberdade para trabalhar com os conceitos, esta área livre é

apurada com base na análise do conceito presente na Constituição, porque este –

ao lado da discriminação da competência relativa a cada pessoa política tributante

e sem prejuízo das limitações específicas previstas nos artigos 150 e seguintes

do Texto Constitucional – também representa uma limitação ao poder de tributar.

274 Imposto sobre a renda: pressupostos constitucionais, p. 196.

Page 248: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

3. Conceito constitucional não-exaustivo

Afirmamos ainda há pouco que o conceito constitucional integra a

regra de outorga de competência e que não é encontrado na Constituição de

modo pronto e acabado (com os contornos semânticos claramente especificados),

de modo que existe uma certa margem de liberdade para o legislador na

construção de seu conteúdo significativo. E não poderia ser de outra forma

porque o próprio exercício da competência tributária pressupõe a liberdade do

legislador de cada ente tributante na tarefa de instituição do tributo, em vista de

sua conveniência e da necessidade de adaptação da lei impositiva à realidade de

cada esfera de poder.

Ademais, não seria conveniente que a própria Constituição Federal

viesse a descrever pormenorizadamente as características de cada tributo e a

conformar sua estrutura jurídica, porque, a pretexto de discriminar a competência,

acabaria por praticamente instituí-lo, ocorrência que não se ajustaria ao perfil da

República Federativa.

De qualquer modo, essa denominada não-exaustividade do conceito

constitucional decorre de imediato, entre outros fatores, do fato de as palavras

serem vagas, apresentando quase todas elas um núcleo de significado preciso e

uma área cinzenta em torno daquele, cujo significado não é claro.

É isso o quanto afirma GENARO R. CARRIÓ, para quem “Los

lenguajes naturales contienen palabras vagas. Com esto quiero referirme al

siguiente fenómeno: muchas veces el foco de significado es único, y no plural ni

parcelado, pero el uso de una palabra tal como de hecho se la emplea, hace que

Page 249: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

sea incierta o dudosa la inclusión de un hecho o de un objeto concreto dentro del

campo de acción de ella. Hay casos típicos frente a los cuales nadie en su sano

juicio dudaría en aplicar la palabra en juego. Hay casos claramente excluidos del

campo de aplicación del vocablo. Pero hay otros que, a diferencia de los primeros

y de los segundos, no están claramente incluidos ni excluidos”.275

Também JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, ao tratar da

mediação do conteúdo semântico da norma, reconhece que o fato de o texto ser o

primeiro elemento do processo de interpretação e de concretização constitucional

não significa que o texto ou a letra da lei contenham a decisão do problema a ser

solucionado mediante a aplicação das normas constitucionais que buscamos

interpretar. Reconhecendo a existência de problemas lingüísticos, acentua que

“Os enunciados lingüísticos são, noutros casos, vagos (= conceitos vagos,

conceitos indeterminados), havendo, ao lado de “objectos” que cabem

inequivocadamente no âmbito conceitual (= candidatos positivos) e ao lado de

objectos que estão claramente excluídos do âmbito intencional do conceito (=

candidatos negativos), outros objectos em relação aos quais existem sérias

dúvidas quanto à sua caracterização (= candidatos neutrais)”.276

Parece não haver dúvida quanto ao fato de o legislador – também

ele um intérprete da Constituição – gozar de liberdade relativa para interpretar as

disposições constitucionais, em especial aquelas que lhe outorgam competência

tributária e, em conseqüência, desfrutar de certa margem de liberdade na

construção do conteúdo significativo dos conceitos constitucionais presentes na

referidas normas de competência.

275 Notas sobre derecho y lenguaje, p. 137. 276 Direito constitucional e teoria da constituição, p. 1201.

Page 250: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

Entretanto, reconhecer que as palavras, que os signos lingüísticos,

que as expressões e que os enunciados normativos são plurisignificativos, vagos

ou ambíguos, não significa dizer que não têm significado determinável.

Não estamos a defender, por assim dizer, uma concepção conceitual

da realidade – ou uma busca pela essência das coisas – com base na informação

que seria fornecida pela palavra empregada, como se ela, por si só, pudesse

indicar o objeto que representa pela essência deste, isto é, pela sua verdadeira

forma de ser. Não é disso que tratamos. Apenas procuramos reconhecer que,

embora o significado possa variar segundo o uso da palavra ou das

circunstâncias que o cercam, nem por isso tal significado pode variar em qualquer

medida.

4. Conteúdo semântico mínimo e máximo

Seguindo tal raciocínio, o que buscamos defender é a idéia segundo

a qual, por maior que seja a variação do âmbito semântico que um conceito possa

apresentar, ele sempre traz consigo um significado que lhe é indissociável, por

mais limitado que seja.

Nas palavras rigorosas de PAULO DE BARROS CARVALHO,

estabelecer o conteúdo do conceito implica a determinação dos “limites do seu

campo de irradiação significativa”, e que “definir é operação lógica demarcatória

dos limites, das fronteiras, dos lindes que isolam o campo de irradicação

semântica de uma idéia, noção ou conceito”.277

277 IPI – Comentários sobre as regras gerais de interpretação da tabela NBM/SH (TIPI/TAB), In: Revista Dialética de Direito Tributário, vol. 12, p. 53 e 56.

Page 251: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

Em outros termos, por mais vaga ou ambígua que possa ser a

palavra, por mais que dependa do contexto em que é utilizada para se apurar o

seu significado, nem por isso ela deixa de possuir um significado intrínseco, uma

carga mínima de significação que não lhe pode ser separada. Este, aliás, é o

escólio de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, que ensina:

“Segue-se que, nada obstante existam as situações fronteiriças,

penumbrosas, onde proliferam as incertezas, há também áreas de

inquestionável certeza sobre o cabimento do conceito. Aliás, se não

existissem tais áreas, as palavras seriam meros ruídos sem qualquer

conteúdo. Não seriam signos, é dizer, significantes, e a comunicação

humana tornar-se-ia impossível.

Logo deflui disto, que a imprecisão ou fluidez das palavras

constitucionais não lhes retira a imediata aplicabilidade dentro do

campo induvidoso de sua significação. Supor a necessidade de lei

para delimitar este campo, implicaria outorgar à lei mais força que à

Constituição, pois deixaria sem resposta a seguinte pergunta: De

onde a lei sacou a base significativa para dispor do modo em que o

fez, ao regular o alcance do preceito constitucional?”.278

Portanto parece-nos que os conceitos constitucionais utilizados para

a outorga de competência tributária possuem um conteúdo semântico mínimo que

delimita a região material do mundo fenomênico ao qual se referem e limita o

exercício do poder de tributar, razões mais que suficientes para que o legislador

infraconstitucional não possa dele se afastar no desempenho de sua função

legiferante.279

278 Eficácia das normas constitucionais sobre justiça social, In: Revista de Direito Público, vol. 57/58, p. 245. 279 Outra não é a constatação de Humberto Ávila ao salientar que “Afirmar que o significado depende do uso não é o mesmo que sustentar que ele só surja com o uso específico e individual. Isso porque há traços de significado mínimos incorporados ao uso ordinário ou técnico da

Page 252: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

Por um lado, o conteúdo semântico mínimo é dado por aquilo que o

conceito evidentemente significa, a “área de inquestionável certeza sobre o

cabimento do conceito” como, por exemplo, para fins de tributação, o conceito de

receita indica no mínimo uma entrada de recursos financeiros no patrimônio; o

conceito de lucro supõe minimamente um resultado positivo (e nunca negativo) de

determinada atividade empresarial, e o conceito de propriedade predial e territorial

urbana obriga, pelo menos, que o imóvel-objeto da lei impositiva não esteja

situado no meio da floresta.

Por outro lado, os conceitos possuem ainda um conteúdo semântico

máximo, que também poderá experimentar variações em virtude do uso e das

circunstâncias, e representa o limite da significação que podem suportar.

Esse conteúdo máximo de significação, no que concerne ao uso do

conceito no exercício da competência tributária, somente poderá ser apurado

diante do caso concreto, isto é, por meio da análise da lei instituidora do tributo e

de suas especificidades. Uma vez que o conteúdo do conceito pode ser, em certa

medida, trabalhado pelo legislador para fins de tributação, é necessário averiguar

no produto de seu trabalho qual a conformação legislativa dada ao conceito, ou

seja, cumpre avaliar se o legislador, partindo do conteúdo semântico mínimo,

ingressou na área de livre estipulação do conceito – ali oferecendo tratamento

normativo aos diversos fatos e situações abrangidos pela lei – para se verificar se,

ao final, manteve-se na aludida área ou extrapolou os limites de possibilidade.

linguagem. Wittgenstein refere-se aos jogos de linguagem: há sentidos que preexistem ao processo particular de interpretação, na medida em que resultam de estereótipos de conteúdos já existentes na comunicação lingüistica geral” (Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 24).

Page 253: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

Diga-se de passagem, ultrapassar esses limites de possibilidade –

violar a significação máxima que o conceito pode razoavelmente suportar – pode

significar, no direito tributário, desbordar-se da capacidade contributiva e adentrar

o terreno do efeito confiscatório.

Dessa forma, o conteúdo semântico máximo indica aquilo que o

conceito não pode significar, como pretender tributar, por exemplo, a título de

faturamento, todas as receitas obtidas pelo contribuinte; desejar tributar, como

receita, valores recebidos por força de indenização, ou mesmo procurar exigir

imposto sobre a renda tomando por base um decréscimo patrimonial.

5. Direito tributário como direito de sobreposição

É comum encontrarmos na doutrina, e mesmo na jurisprudência, a

afirmação de que o direito tributário é um direito de sobreposição, referindo-se tal

aspecto à relação existente entre ele e as outras áreas do direito positivo. Como

se sabe, essa divisão do direito em áreas ou em campos distintos é meramente

didática e decorre da progressiva complexidade das relações sociais, o que exige

uma certa especialização no seu estudo, embora se revele lição das mais óbvias

a impossibilidade de se estudar qualquer área do direito positivo sem analisar

concomitantemente as outras. Assim, até mesmo a chamada autonomia didática

do direito tributário (assim como das outras subáreas) é sempre relativa em

virtude da inafastável unicidade do direito positivo.

Cabe notar que, quando afirmamos que o direito tributário é de

sobreposição, não fazemos referência a essa natural relação de interdependência

deste com as outras áreas do direito positivo, mas ao fato de que ele – em sua

Page 254: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

específica forma de disciplina e de regulação da realidade, realizada

evidentemente para fins tributários – volta-se para atos, fatos, estados, situações

e bens que também constituem objeto de disciplina jurídica por outros quadrantes

do ordenamento.

Em outras palavras, a norma jurídica de direito tributário, na

qualidade de elemento que regula a instituição e a cobrança de tributos, bem

como a relação havida entre o Estado e o contribuinte (que gravita em torno da

obrigação tributária), dispõe prescritivamente sobre os mais variados fatos (em

sentido amplo) do mundo fenomênico que, por sua vez, também são regulados

por normas jurídicas dos outros campos do direito positivo.

Esse é o ensinamento de GIAN ANTONIO MICHELI ao afirmar que

“o caráter instrumental da norma tributária se manifesta exatamente na exigência

que lhe é co-natural de dever fazer freqüentemente referência a fatos ou atos, já

disciplinados pelo Direito, de forma que a regra de Direito Tributário deve ser

coordenada com aquela que é classificada em outros ramos do Direito”.280

No momento em que o direito tributário pretende apanhar em suas

malhas normativas determinados fatos signos presuntivos de riqueza, vale-se, no

mais das vezes, de conceitos e institutos já regulados por outras normas jurídicas

de outros quadrantes, como ocorre quando a lei tributa uma transmissão de

propriedade de um imóvel por ato oneroso (a compra é venda é regulada pelo

direito civil); quando estrutura uma relação tributária em torno de um ato de

transmissão de um bem em virtude de herança (a sucessão é regida pelo direito

civil); quando determina a incidência de determinada obrigação sobre o salário

280 Curso de direito tributário, p. 9.

Page 255: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

(este é regulado pelo direito do trabalho), ou ainda quando cria exigência tributária

sobre o faturamento (conceito oriundo do direito comercial), daí porque se trata de

direito de sobreposição, porque atua normativamente sobre conceitos trabalhados

por outras áreas do direito positivo.281

Um dos aspectos de maior relevância do que apontamos

(sobreposição do direito tributário sobre as outras áreas do direito) repousa na

necessidade de saber se, ao fazer referência aos conceitos fornecidos pelas

outras áreas do direito – ao valer-se dos institutos regulados pelas normas dos

outros quadrantes normativos – o direito tributário obriga-se a obedecer o

regramento, as características e as propriedades conferidas a eles pelas normas

jurídicas não-tributárias. Com relação a tal ponto, reconhecendo a relação

existente entre as várias normas jurídicas (de direito civil, de direito administrativo,

de direito penal e outros, com o direito tributário), GIAN ANTONIO MICHELI

afirma que “Nem sempre, porém, a referência acarreta que o instituto, dirigido por

outras normas (por exemplo: do Direito Civil) seja acolhido pela norma de

imposição no mesmo sentido e com as mesmas características que lhe são

próprias num diverso ramo do Direito. Porém, em outros casos, ocorre o

contrário”.282

Pensamos que ambas as situações sejam possíveis, pois pode a

norma tributária, em determinados casos, alterar certas características presentes

nos conceitos dos outros ramos do direito, para fins e efeitos tributários, sendo-lhe

281 No dizer de Luciano Amaro: “Na busca de manifestação de riqueza, reveladoras de capacidade contributiva, a lei fiscal alcança atos, situações, negócios que, engendrados embora sob a ótica de outros códigos de normas legais, evidenciam um conteúdo econômico que os torna passíveis de incidência tributária” (Direito tributário brasileiro, p. 13). 282 Curso de direito tributário, p. 7.

Page 256: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

vedado, entretanto, em outras específicas hipóteses, modificar os contornos dos

conceitos trazidos das outras áreas do direito para a esfera tributária.

Independentemente da variação das possibilidades, o tema, como

podemos notar, possui íntima relação com o preenchimento do conteúdo dos

conceitos constitucionais, razão pela qual salientamos alguns de seus outros

aspectos no próximo item.

6. Texto normativo e contexto

A idéia da relação do direito tributário com as outras áreas remete-

nos à questão do contexto, sintetizada em conhecida concepção, segundo a qual,

na interpretação do direito, é necessário ir do texto ao contexto. Portanto, na

construção do conteúdo significativo dos conceitos constitucionais, devemos ir do

texto normativo para o contexto que o envolve, e tal percurso interpretativo pode

ser feito com base em dois aspectos, a saber: o contexto é tomado em várias

acepções e sua consideração como elemento exegético não implica o desprezo

pela supremacia normativa da Constituição.

Interpretar o texto normativo com a consideração do contexto

significa aceitar, para aquilo que por ora nos interessa, que o conteúdo de

significação do conceito possa variar, dependendo do contexto em que é utilizado.

Assim, retomando nossa afirmação, o núcleo significativo do

conceito não se irá alterar (conteúdo semântico mínimo), assim como a borda

externa limitativa do significado também há de se manter (conteúdo semântico

máximo), sendo justamente a área existente entre um e outro que poderá

experimentar variação de significado em razão do contexto.

Page 257: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

6.1 Contexto intranormativo

O contexto intranormativo é aquele presente no interior do próprio

texto normativo, no corpo do mesmo diploma legal, e relaciona o conceito

utilizado pelo texto e os elementos que lhe estão próximos.

Um primeiro exemplo a ser citado pode ser o artigo 195, inciso I,

alíneas a, b e c, da Constituição Federal, que determina que a seguridade social

será financiada por toda a sociedade e prevê cinco possíveis fontes de custeio, a

saber, a folha de salários, os demais rendimentos do trabalho, a receita, o

faturamento e o lucro. Coloca, dessa forma, à disposição do legislador

infraconstitucional cinco parcelas distintas da realidade, das quais ele poderá

valer-se, se assim o desejar, para sobre elas fazer incidir contribuições sociais,

deixando claro, pela análise do contexto imediato que envolve o termo receita,

que esta não poderá ser confundida com o lucro (texto e contexto circunscritos

pelo mesmo dispositivo constitucional).

Uma segundo exemplo pode dar-se com a análise do conceito

constitucional de faturamento, diante do contexto fornecido pela própria

Constituição Federal, desta feita no artigo 153, inciso III, que prevê o imposto

sobre a renda, de modo que é determinado ao legislador e aos demais intérpretes

da Carta da República que renda não pode ser considerada como faturamento.

Ainda que o legislador, como afirmamos reiteradas vezes, tenha uma certa

margem de liberdade no preenchimento de ambos os conceitos, não poderá

evidentemente aproximá-los excessivamente se criarem a contribuição social e o

imposto.

Page 258: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

Parece certo que o faturamento pode até mesmo compor o conceito

de renda, vale dizer, aquele pode ser um dos elementos formadores desta, mas

não pode com ela equiparar-se ou confundir-se (neste caso, texto e contexto são

circunscritos entre dois diferentes capítulos da Constituição: o da Seguridade

Social e o do Sistema Tributário Nacional).

Um terceiro exemplo pode ser dado pela análise conjunta do artigo

155, inciso II e seu parágrafo 2°, inciso II, alíneas a e b, que, com relação ao

imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias, prescrevem que a

isenção ou a não-incidência, salvo determinação em contrário da legislação, não

implicará crédito para compensação com o montante devido nas operações ou

prestações seguintes e acarretará a anulação do crédito relativo às operações

anteriores; com o artigo 153, inciso IV e seu parágrafo 3°, inciso II, que

estabelecem que o imposto sobre produtos industrializados será não-cumulativo,

compensando-se o que for devido em cada operação com o montante cobrado

nas anteriores. Silencia-se, entretanto, este último dispositivo, quanto ao não

aproveitamento do crédito nas hipóteses de isenção e de não-incidência.

Assim, na análise contextual de ambos os dispositivos (artigos 155 e

153) pode-se notar os diferentes contornos do conceito constitucional da não-

cumulatividade, quando aplicada ao ICMS e ao IPI (aqui, texto e contexto são

dados por diferentes dispositivos constitucionais, embora pertencentes ao mesmo

capítulo da Carta).283

6.2 Contexto internormativo 283 Sobre a análise contextual, verifique-se a excelente passagem dos ensinamentos de José Artur Lima Gonçalves, quando examina os conceitos próximos ao de renda (Imposto sobre a renda: pressupostos constitucionais, p. 177/179).

Page 259: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

O contexto internormativo é dado pela consideração combinada de

dois ou mais diplomas legais (em sentido amplo), tomando-se, assim, o conceito

constitucional (texto) e outros elementos que lhe dizem respeito (contexto), como

a análise da Constituição Federal e a de determinada lei ou o exame de uma lei

com outra lei.284

Um primeiro exemplo possível é o do mencionando artigo 195, inciso

I, alínea a, da Constituição Federal, que prevê a contribuição social incidente

sobre a folha de salários. É certo que o conceito de salário encampado pela Carta

da República é o fornecido pelo direito do trabalho, especificamente pela

Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, havendo, inclusive, decisão do

Supremo Tribunal Federal acerca de tal circunstância (texto e contexto são dados

pela Constituição e por uma lei ordinária).

Outro exemplo é o artigo 156, inciso I, que prevê o imposto sobre a

propriedade predial e territorial urbana e o conceito constitucional de propriedade

utilizado pode ser haurido nas previsões normativas estabelecidas pelo direito civil

(aqui, novamente, texto e contexto são observados entre a Constituição Federal e

uma lei ordinária, o Código Civil).

Uma terceira hipótese é a da Lei Federal nº. 9.532, de 10 de

dezembro de 1997, que trata do regime jurídico tributário dos lucros auferidos por

empresas controladas, coligadas e sucursais de pessoas jurídicas brasileiras.

Tais conceitos, relativos às espécies de empresas, são previstos na Lei Federal

284 Parece-nos que adotar, como elemento de auxílio na interpretação, o contexto internormativo, e, deste modo, levar em consideração os dispositivos normativos infraconstitucionais, não significa negar a supremacia normativa da Carta Constitucional tampouco interpretá-la com base na lei. Em vez disso, sem perder de vista sua posição superior, procuramos não nos esquecer de que a Constituição – a par de inaugurar o ordenamento jurídico e de dar-lhe fundamento de validade – a ele também pertence, de modo que a consideração das normas jurídicas infraconstitucionais na interpretação da Lei Maior pode revelar-se (mais) um critério relevante na tarefa interpretativa.

Page 260: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

nº. 6.404, de 15 de dezembro de 1976, e são trazidos para a legislação do

imposto sobre a renda (neste caso, texto e contexto são obtidos pela análise

combinada de duas leis ordinárias).

6.3 Contexto interdisciplinar

O contexto interdisciplinar pode ser visualizado na relação existente

entre os conceitos utilizados pelo direito positivo e aqueles trabalhados por outras

áreas do conhecimento humano, como a economia, a contabilidade, a

engenharia, a medicina e outras.

Embora também nesses campos do conhecimento exista a

regulação de comportamentos por meio de normas jurídicas, nem por isso deixam

de existir certos conceitos, institutos e elementos cujos contornos semânticos são

trabalhados e construídos pelas suas respectivas áreas, com maior densidade

significativa do que pela área jurídica. Todavia nada impede que o direito positivo

venha a utilizar-se de tais conceitos para o regramento jurídico de diversas

condutas no seio da sociedade, como ocorre, por exemplo, com os termos

superávit primário e atualização monetária (economia); receita e despesa

(contabilidade); planta topográfica e elemento químico (engenharia); e nascimento

com vida e morte cerebral (medicina).

É bem verdade que o direito pode construir o conteúdo semântico de

tais institutos por meio de um disciplinamento autônomo e dar-lhes novos

contornos de significação – distintos, pois, daqueles existentes nas outras áreas

do conhecimento – assim como pode optar por trazê-los para o universo jurídico

com as mesmas características e propriedades que lá possuem. Não obstante,

Page 261: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

julgamos não ser conveniente desprezar as informações, os elementos e as

propriedades dos objetos apuradas nos outros campos do labor humano, em

virtude da relevância que podem apresentar para a operacionalização e para a

funcionalidade do direito positivo.

Diga-se de passagem, o direito positivo não fica atrelado aos

conceitos fornecidos pelas mencionadas áreas, ou seja, não lhes deve obediência

restrita quanto aos respectivos significados; entretanto parece-nos que este é um

contexto que não pode ser desprezado pelos intérpretes do ordenamento jurídico.

A questão relevante consiste em saber se, no momento em que o

direito traz para o universo normativo os conceitos oriundos de outras esferas de

conhecimento ou de investigação científica, ele o faz com os mesmos conteúdos

de significação original ou se lhes modifica os significados.

6.4 Contexto do uso lingüístico

O contexto do uso lingüistico diz respeito ao que mencionamos há

pouco, ou seja, à necessidade de se saber se a Constituição Federal, na regra de

outorga de competência tributária, utilizou-se dos conceitos com significado

comum (aquele usado vulgar e rotineiramente pelas pessoas, sem maior

preocupação com a precisão do sentido) ou com significado técnico (tal como

usado pelos especialistas, com precisão quanto ao significado e propriedades).

Tal indagação a ninguém causa surpresa, pois o estudioso que se

venha a debruçar sobre o ordenamento jurídico não encontrará dificuldades para

perceber que os textos legais ora utilizam-se das palavras ou dos conceitos com o

significado comum, ora emprega-os com o significado técnico, isto é, com o

Page 262: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

conteúdo semântico que lhes é atribuído pelo próprio direito positivo, pelos

precedentes jurisprudenciais e mesmo pela ciência do direito.

O artigo 146, inciso I, da Constituição Federal, ao prescrever

normativamente que cabe à lei complementar dispor sobre conflitos de

competência, em matéria tributária, entre as pessoas políticas tributantes,

certamente não propicia dúvidas quanto ao fato de que competência encerra

evidentemente um conceito técnico, pois trata-se de competência tributária,

aquela aptidão possuída pelas referidas pessoas para instituir tributos.

De igual modo, o artigo 150, inciso III, alínea a, ao referir-se a fatos

geradores, parece não ensejar controvérsias quanto ao uso de tal expressão em

seu sentido técnico, tal como sedimentado ao longo dos anos pela jurisprudência

e, em especial neste caso, pela ciência do direito.

O mesmo artigo 150, caput, combinado com o inciso VI, alínea d, ao

prever que é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios

instituir impostos sobre periódicos, parece utilizar-se da palavra periódicos em seu

sentido comum, fazendo referência às publicações regulares, isto é, com alguma

periodicidade, sem que haja margem para maiores questionamentos quanto ao

significado do termo. É bem verdade que se poderá indagar se determinada

publicação feita a cada dez anos pode ou não ser considerada periódica para fins

do gozo da imunidade prevista no artigo 150 mas, de qualquer modo, trata-se de

hipótese que não encerra controvérsia quanto ao sentido do vocábulo periódico.

Da mesma forma, o artigo 150, parágrafo 7º, da Constituição, ao

disciplinar a responsabilidade pelo pagamento do imposto ou da contribuição, usa

a palavra pagamento em seu sentido comum. Embora seja certo que o

Page 263: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

pagamento de tributos esteja submetido a regime jurídico próprio, que lhe confere

características peculiares quando comparado, por exemplo, com o pagamento de

dívida decorrente de obrigação contratual assumida entre particulares, parece

razoável supor que pagamento é sempre uma das formas possíveis pelas quais o

devedor satisfaz sua dívida perante o credor, daí sua utilização em sentido

comum no dispositivo constitucional apontado.

Seria desnecessário mencionar que a análise sobre o emprego dos

conceitos com sentido comum ou técnico depende evidentemente do modo como

são utilizados e do contexto no qual se encontram inseridos.

7. Processo de jurisdicização do conceito

Mencionamos ainda há pouco que o direito tributário, como direito de

sobreposição, pode lançar mão de subsídios fornecidos por outras áreas do

conhecimento humano e apropriar-se de conceitos ali trabalhados, para disciplinar

a outorga de competência tributária, quer tomando-os com o mesmo conteúdo

significativo, quer alterando sua significação originária, por meio da ampliação ou

da redução de características significativas.

Afirmamos também que, em princípio, nada impede que o direito

positivo e, em especial, a Constituição Federal venha a utilizar-se dos conceitos

sedimentados pela economia ou pelas ciências contábeis, por exemplo. De

qualquer modo, tanto no primeiro caso (adoção do significado original), quanto no

segundo (utilização com significado alterado), é relevante saber com qual

conteúdo semântico o conceito é trazido para o ordenamento, ou seja, com qual

conteúdo de significação o conceito foi jurisdicizado.

Page 264: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

O legislador constituinte, ao empregar termos como renda, receita,

faturamento e folha de salários, entre outros, para discriminar a competência

tributária, tinha em mente parcelas da realidade (atos, fatos, situações) mais ou

menos definidas representadas pelos referidos conceitos, isto é, possuía uma

idéia relativamente determinada daquilo que tais termos representam, caso

contrário não poderia deles utilizar-se em tal tarefa e não faria mesmo sentido o

seu emprego para a discriminação da parcela do poder de tributar que cabe a

cada ente federativo. Neste momento, no instante em que são encampados pela

Constituição Federal, dá-se aquilo que denominamos processo de jurisdicização

dos conceitos, por meio do qual certos termos, vocábulos, expressões –

conceitos, enfim – oriundos de outras áreas do conhecimento humano são

incorporados pelo direito positivo, neste caso por sua utilização pela Constituição

Federal.

Portanto parece-nos que pouco importa que os conceitos usados

sejam oriundos da economia, das ciências das finanças ou de outras áreas

estranhas ao universo jurídico, pois o fundamental é averiguar o conteúdo

significativo com o qual eles foram incorporados pelo direito positivo, isto é, a

carga semântica com a qual eles foram jurisdicizados (como, de que modo, com

quais propriedades e características e com obediência a quais limites de

irradiação significativa).

Desse modo, na construção do conteúdo significativo dos conceitos

constitucionais por meio da interpretação – tal qual a temos considerado até aqui,

com todas as influências que pode sofrer e com todas as vicissitudes pelas quais

pode passar – é necessário averiguarmos, ao final, qual o conceito jurídico obtido,

Page 265: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

ou, em outros termos, cumpre analisarmos se o conceito finalmente construído

cabe ou não na Carta da República.

Um bom exemplo da idéia que procuramos defender é dado por

JOSÉ LUIZ BULHÕES PEDREIRA, ao tratar do conceito jurídico de renda:

“Mas a lei ordinária, ao definir os rendimentos ou a renda sujeitos ao

tributo, não é livre para escolher qualquer base imponível, e há de

respeitar o conceito de ‘renda e proventos de qualquer natureza’

constante da Constituição: as definições adotadas pela lei ordinária

devem ser construídas e interpretadas tendo em vista a

discriminação constitucional de competências tributárias, e estão

sujeitas ao teste de constitucionalidade em função da sua

compatibilidade com essa discriminação.

(.....)

O conhecimento do conceito de renda é, portanto, indispensável

para o julgamento da constitucionalidade da lei federal que define a

base de cálculo do impôsto de ‘renda e proventos de qualquer

natureza’ que a Constituição atribui à União; ou das leis estaduais e

municipais que instituam impostos ou taxas que, sob outras

designações, incidam realmente sôbre a renda. E para êsse efeito,

nem o legislador nem o intérprete é livre para adotar o conceito de

renda de sua preferência: deve procurar aquêle que melhor se ajuste

ao sistema de distribuição de competências tributárias constante da

Constituição.

(.....)

A Constituição Federal autoriza a União a impor tributos sôbre a

‘renda e os proventos de qualquer natureza’. No exercício do Poder

Legislativo cabe ao Congresso Nacional definir, na legislação

ordinária, o que deve ser entendido por renda, para efeitos de

tributação. Mas ao definir a renda tributável o Congresso Nacional

tem o seu poder limitado pelo sistema constitucional de distribuição

do poder tributário, e fica sujeito à verificação, pelo Poder Judiciário,

Page 266: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

da conformidade dos conceitos legais com os princípios da

Constituição. O Congresso pode restringir ou limitar o conceito de

renda e proventos de qualquer natureza constante da Constituição,

mas não ampliá-lo além dos limites compatíveis com a distribuição

constitucional de rendas.”285

Assim ocorre, por exemplo, com o conceito de faturamento,

trabalhado pelas ciências contábeis e pelo direito comercial e considerado, em

termos estritos, como o ato de faturar, como a atividade de emitir fatura (um

documento específico), daí porque faturamento pode ser tido como o produto em

dinheiro decorrente da emissão de faturas ou do respectivo recebimento, pelo

emitente, das importâncias ali constantes. Não obstante, no julgamento da

questão da constitucionalidade da contribuição social incidente sobre o

faturamento (na construção do conteúdo desse conceito constitucional, levado a

termo diante do caso concreto), considerou-se que faturamento, para esse

específico fim, corresponde à receita decorrente da venda de mercadorias, de

mercadorias e serviços e de serviços de qualquer natureza, ainda que, em

algumas hipóteses, o recebimento da respectiva receita pudesse ocorrer sem a

emissão daquele documento denominado fatura.

Nesse caso, independentemente do acerto ou não da decisão

proferida pelo Supremo Tribunal Federal, o fato é que o conceito constitucional de

faturamento foi construído, pela interpretação e no caso concreto, com sentido e

alcance diversos daquele que possuía originalmente em outro campo do

conhecimento (contabilidade) e em outro ramo do direito (direito comercial).

285 Imposto de renda, p. 2-3 – item 2.10 (02) e p. 2-21 – item 2.11 (20).

Page 267: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

8. Conceito constitucional e a variável representada pelo tempo

Outro tema relevante na construção do conteúdo dos conceitos

constitucionais – e que, de resto, revela-se importante variável em toda a

atividade de interpretação e aplicação do direito – é o da influência do transcurso

do tempo, tendo-se em vista que, na maioria dos casos, o exame de pertinência

da lei de tributação com a Carta da República não se dá no momento da

promulgação desta nem daquela, mas normalmente muito tempo depois.

Tal idéia é sintetizada com precisão por MARCO AURELIO GRECO

com as seguintes palavras:

“Desta ótica, e tratando-se do Direito, o intérprete tem de enfrentar

sempre, pelo menos, quatro tempos diferentes: (1) o tempo da lei, no

sentido de compreender o sentido que as disposições tinham no

momento em que foram editadas, o que enseja certas correntes de

interpretação, como a que postula deverem as normas ser

interpretadas dando aos termos o alcance que tinham na data de

sua edição; (2) o tempo em que ocorreram os fatos que devem ser

interpretados, pois, neste segundo tempo, o sentido e alcance da lei

podem não coincidir com o que tinham no tempo da edição da lei; (3)

o tempo do próprio fato, no sentido de que, nos fatos complexos

formados por um conjunto de eventos ou operações, sequências que

podem ser admissíveis se estão distanciadas no tempo, podem, por

outro lado, configurar um uso distorcido, se muito próximas no

tempo; (4) o tempo do momento da aplicação, que não se confunde

com nenhum dos anteriores, e deles pode se distanciar

significativamente, seja quanto à data, seja quanto ao sentido e

alcance que a interpretação (particularmente a jurisprudencial) dá

àquela lei e àqueles fatos. Além destes quatro referenciais de tempo,

e olhando prospectivamente, pode ainda ser lembrado o tempo (5)

Page 268: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

em que novas normas ou novos fatos vieram a surgir, ou serem

realizados, em função da interpretação dada no tempo”.286

Trazendo o tema para a perspectiva que ora nos interessa, o

problema que se põe é o de saber se, na interpretação construtiva dos conceitos

constitucionais, o intérprete deve buscar o conceito possível, razoável e

proporcional:

– no tempo da promulgação da Constituição Federal;

– no tempo da edição da lei impositiva;

– no tempo em que se dá a prática do ato considerado como fato

imponível ou, ainda,

– no tempo da aplicação da lei ao caso concreto (interpretação

autêntica), momento no qual o Poder Judiciário (sobretudo os

Tribunais Superiores) é chamado para verificar se o conceito

adotado pelo legislador obedece ou não aos limites fixados pela

Constituição, ocasião em que pode, então, e de forma definitiva,

consignar o sentido e o alcance do conceito objeto da análise.

Colocando em outros termos a mesma pergunta: no momento em

que o Texto Constitucional adota o conceito, utilizando-o para definir e discriminar

a competência tributária, ele é, por assim dizer, cristalizado, petrificado ou

paralisado nessa data com a significação que tem – ou poderia ter – nesse tempo,

ou o conceito pode ser alterado ou atualizado no momento da interpretação?

Essa questão, segundo nos parece, está longe de ser cerebrina ou

meramente acadêmica, uma vez que apresenta nítidos reflexos no exercício da

competência tributária. Em se entendendo pela cristalização do conceito, estar-

286 Planejamento fiscal e interpretação da lei tributária, p. 161/162.

Page 269: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

se-á, de certa forma, restringindo a competência, ao passo que o entendimento

pela possibilidade de sua atualização pode significar ampliar os limites desse

poder legiferante.

Como podemos notar, o tema, intimamente ligado aos princípios da

legalidade e da tipicidade da tributação, requer acentuado cuidado na procura da

resposta, uma vez que a hipótese da possibilidade de atualização do conceito por

meio da interpretação pode significar tanto soltar as amarras das leis impositivas

quanto o contrário disso, isto é, renovar os limites do alcance da norma de

tributação.

Para ilustrar nosso pensamento, tomemos como exemplo a celeuma

que envolve a imunidade do livro, relativa a impostos, prevista no artigo 150,

caput, inciso VI, alínea d, da Constituição Federal, e a questão de se saber se tal

regra imunizante alcança ou não o chamado livro eletrônico. A princípio, podemos

alegar que na época da promulgação da Carta Constitucional (outubro de 1988) o

termo livro ali empregado – o conceito constitucional de livro – alcançava somente

o livro feito de papel, o livro comum, por assim dizer, porque naquele tempo ainda

não existia o livro eletrônico ou porque sua industrialização e comercialização

eram incipientes.

Nessa hipótese, em se adotando o entendimento da cristalização ou

da perpetuação do conceito constitucional, estar-se-á justamente diminuindo o

alcance do comando normativo imunizatório e, conseqüentemente, ampliando o

raio de incidência da norma de tributação, permitindo-se a tributação do livro

Page 270: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

eletrônico pelos impostos, interpretação esta que, diga-se de passagem e com a

devida vênia, parece-nos não ser a mais apropriada.287

Ao contrário, em se entendendo que o objeto protegido pela norma

de imunidade não é o objeto físico em si (o livro), mas o conteúdo dele, a obra

cultural nele contida, estar-se-á, de certa forma, atualizando o conceito

constitucional de livro (e considerando que também o livro eletrônico é livro).

Conseqüentemente, amplia-se a proteção imunizante, e restringe-se, no caso

concreto, o exercício da competência tributária, interpretação que, segundo nosso

ponto de vista, revela-se mais condizente com o valor constitucional prestigiado

pela mencionada norma.288

Podemos notar nesse exemplo a presença de algo que temos

destacado ao longo de várias passagens de nosso estudo, qual seja, a nossa

crença de que a maioria das questões jurídicas somente podem ser resolvidas

diante do caso concreto, diante do problema colocado em toda sua complexidade

e em suas várias perspectivas ou, pelo menos, de que as respostas às

indagações parecem poder ser mais bem elaboradas (construídas) mediante a

consideração dos casos concretos do que quando formuladas somente em tese,

em abstrato.

A fim de reunir outros subsídios para o debate, consideremos agora

o julgamento em andamento no Supremo Tribunal Federal do Recurso

Extraordinário nº. 346.084-6-PR, em que se discute a constitucionalidade da

287 Para a análise do entendimento do não alcance da imunidade ao livro eletrônico, consulte-se a lição de Eurico Marcos Diniz de Santi, no artigo “Imunidade tributária como limite objetivo e as diferenças entre ‘livro’ e ‘livro eletrônico’”, na obra Imunidade tributária do livro eletrônico, p. 55/67. 288 Para a análise a esse respeito, consultem-se os ensinamentos de José Artur Lima Gonçalves, no artigo “A imunidade tributária do livro”, p. 139/163, e de Marco Aurelio Greco, no artigo “Imunidade tributária do livro eletrônico”, p. 164/176, ambos na obra Imunidade tributária do livro eletrônico.

Page 271: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

ampliação da base de cálculo da Contribuição para Financiamento da Seguridade

Social – COFINS, promovida pela Lei Federal nº. 9.718, de 27 de novembro de

1998 (tema ao qual retornaremos no item 6 do capítulo 7 do presente trabalho),289

concentrando-nos especificamente no voto do Ministro GILMAR MENDES que,

embora divulgado ao público, ainda não foi publicado, sendo passível, portanto,

de sofrer alterações.

Uma vez que efetuaremos em seguida a análise do voto com maior

vagar, abordaremos por ora apenas a seguinte passagem da decisão, que se

relaciona com a questão da variável do transcurso do tempo:

“Na tarefa de concretizar normas constitucionais abertas, a

vinculação de determinados conteúdos ao texto constitucional é

legítima. Todavia, pretender eternizar um específico conteúdo em

detrimento de todos os outros sentidos compatíveis com uma norma

aberta constitui, isto sim, uma violação à Constituição.

Representaria, ainda, significativo prejuízo à força normativa da

Constituição, haja vista as necessidades de atualização e adaptação

da Carta Política à realidade. Tal perspectiva é sobretudo

antidemocrática, uma vez que impõe às gerações futuras uma

decisão majoritária adotada em uma circunstância específica, que

pode não representar a melhor via de concretização do texto

constitucional”.

Logo de início, cabe-nos destacar a premissa fixada no voto, que,

com o devido respeito, parece-nos profundamente equivocada, qual seja, a de

que a norma atributiva de competência tributária seria uma “norma constitucional

289 Neste momento, deixamos de considerar, apenas para os fins da presente análise, a nova redação dada ao artigo 195 pela Emenda Constitucional nº. 20, de 15 de dezembro de 1998, questão da qual nos ocuparemos no capítulo 7.

Page 272: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

aberta” e, por tal razão, encontrar-se-ia à disposição do legislador para a fixação

do conteúdo dos conceitos utilizados pela Constituição.

A premissa é equivocada pela singela razão de que a outorga de

competência tributária é matéria de direito constitucional – e não tema de

disciplina legal – e, assim, está muito longe de se encontrar à mercê dos

interesses dos legisladores de cada ente estatal tributante e jamais poderia ser

considerada como uma “norma constitucional aberta”. O exercício da competência

tributária, este sim, é tema destinado às opções políticas e juízos de conveniência

do legislador, que, entretanto, somente poderá efetivá-lo com obediência aos

limites impostos pela Constituição Federal. Aliás, se as regras de outorga e de

discriminação de competência tributária fossem “normas constitucionais abertas”,

elas simplesmente não precisariam estar na Carta da República, porque ali, em

tão nobre sede do ordenamento jurídico, seriam absolutamente desnecessárias,

inócuas, porque desprovidas de força vinculante.

Em outros termos, se as normas constitucionais de discriminação de

competência tributária – que obviamente não se confundem com as normas legais

do exercício dessa competência – fossem “normas abertas”, o legislador

constituinte simplesmente não precisaria ter desperdiçado seu tempo elaborando-

as e destacando as diversas materialidades que podem ensejar a criação de

tributos, uma vez que tal critério não encontraria a menor utilidade e não passaria

de mero diletantismo constitucional. Tal entendimento representaria um

“significativo prejuízo à força normativa da Constituição”, para tomarmos de

empréstimo as significativas palavras do Ministro.

Page 273: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

Mas voltemos à questão da passagem do tempo. Ninguém duvida

das “necessidades de atualização e adaptação da Carta Política à realidade”

tampouco da exigência de se encontrar “a melhor via de concretização do texto

constitucional”, tarefas de notória relevância que são delegadas, de modo

especial, por determinação da própria Carta da República, ao Supremo Tribunal

Federal, seu intérprete máximo e definitivo. Entretanto a necessidade de atualizar

e adaptar a Carta Política à realidade não pode ser atendida por meio do sacrifício

dos valores hospedados pela própria Carta, que simplesmente não podem ser

ignorados.

Quanto à “perspectiva antidemocrática ... que impõe às gerações

futuras uma decisão majoritária adotada em uma circunstância específica”, tal

argumento, embora bem construído, efetivamente não nos impressiona, por pelo

menos três razões básicas.

A primeira é que esse fato representa a própria essência da

Constituição. A Carta Política, vista de tal ângulo, é exatamente isto: o fruto de

uma “decisão majoritária adotada em uma circunstância específica”, e essa

característica, decorrente de sua própria natureza, de certo modo amarra mesmo

as gerações futuras; impõe-lhes efetivamente não uma, mas várias decisões

majoritárias, e isso a ninguém impressiona, constituindo as cláusulas pétreas um

bom exemplo dessa ocorrência.

A segunda é que tal circunstância está muito longe de se revelar

uma “perspectiva antidemocrática”, mas exatamente o contrário: trata-se de uma

das mais democráticas perspectivas, porque a Constituição Federal é da forma

como é porque o povo brasileiro, reunido em assembléia constituinte por meio de

Page 274: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

seus legítimos representantes, assim decidiu que ela seria e decidiu também que

determinadas decisões ali tomadas seriam mesmo impostas às gerações futuras

– impostas não pela força simplesmente, mas democraticamente, porque fruto de

decisão majoritária – tal como ocorre, aliás, nas melhores democracias dignas

desse nome, e isso também a ninguém causa surpresa.

E a terceira razão é que a mencionada “decisão majoritária adotada

em uma circunstância específica” não foi adotada em circunstância específica

qualquer, mas em circunstância específica especialíssima, tratando-se nada

menos do que a circunstância específica da promulgação da Constituição; nada

menos do que a jurídica aprovação, pelos representantes do povo brasileiro, do

documento normativo máximo do Estado Brasileiro, e isto, como desejamos

acreditar, não é um mero acidente histórico.

Desse modo, afirmávamos ainda há pouco, parece não haver dúvida

quanto à necessidade de atualização e adaptação da Carta Política à realidade,

mas isso não pode ser feito por meio da violação da própria Carta. Não se trata,

portanto, no caso específico da matéria-objeto de julgamento, de “pretender

eternizar um específico conteúdo em detrimento de todos os outros sentidos

compatíveis com a norma”, para novamente tomarmos emprestadas as palavras

constantes do voto em análise. Trata-se, na verdade, de tarefa muito mais

simples, consistente em apenas reconhecer que nem todos os sentidos, nem

todos os conteúdos de significação são compatíveis com a Constituição, ainda

que esta possa ser atualizada.

Seja como for, retornaremos à análise do voto do Ministro GILMAR

MENDES adiante; por ora, devemos notar que ele constitui relevante exemplo da

Page 275: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

influência da variável tempo no tema da construção do conteúdo dos conceitos

constitucionais, uma vez que são envolvidos na questão pelo menos três tempos:

o da promulgação da Constituição Federal (1988), o da edição da Lei

Complementar n.º 70 (1991) e o da interpretação e da aplicação do próprio Texto

Constitucional e da Lei Complementar (2004), todos envolvendo a construção dos

conceitos de faturamento e receita.

Tivemos oportunidade de afirmar, com base nos ensinamentos de

MARIA GARCIA e de outros autores, que a Constituição, pela sua relevância e

por aquilo que representa, pode ser considerada uma obra aberta, como algo que

pode e deve ser refeito ao longo do tempo, por meio de sua interpretação, para

possibilitar, na concretização de suas soberanas normas, que se transforme em

realidade aquilo que nela está escrito, isto é, que a República Federativa do Brasil

alcance os seus objetivos fundamentais, tais como estabelecidos pelo artigo 3º.

do Texto Constitucional.

Não obstante, essa atualização, que, de certa forma, nada mais é do

que considerar a influência da passagem do tempo, deve estar cercada de

inúmeros cuidados. Um deles refere-se à necessidade de sabermos se todas as

normas constitucionais – ou apenas algumas – são passíveis de atualização por

meio da interpretação e em que medida deve dar-se essa atualização operada

pela atuação dos intérpretes-aplicadores do Texto Constitucional.

A resposta a tal questão nos parece muito difícil e o máximo que

podemos pretender é oferecer uma proposta de resposta, consistente em

reconhecer a distinção entre duas espécies de normas constitucionais e, pela sua

diferenciação, submetê-las a perspectivas interpretativas distintas relativamente

Page 276: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

às possibilidades de atualização. Para essa específica finalidade, entendemos por

bem denominá-las normas constitucionais de eficácia positiva e normas

constitucionais de eficácia negativa.

As normas constitucionais de eficácia positiva são aquelas que

hospedam mandamentos ao Estado Brasileiro; que determinam ações; que

prescrevem providências a serem adotadas, políticas públicas e planejamentos,

atividades que o Estado está obrigado implementar no seio da sociedade, como

forma de concretização dos valores consagrados pela Carta da República.

Pertencem a esse grupo as normas destinadas ao reconhecimento

da dignidade da pessoa humana e à promoção do trabalho e da livre iniciativa

(artigo 1º); à construção de uma sociedade livre, justa e solidária e à erradicação

da pobreza e da marginalização social (artigo 3º); à prevalência dos direitos

humanos (artigo 4º); ao implemento da livre expressão da atividade intelectual,

artística e científica (artigo 5º, inciso IX); à promoção da função social da

propriedade (artigo 5º, inciso XXIII); à elaboração e execução de planos nacionais

e regionais de ordenação do território e do desenvolvimento econômico e social

(artigo 21, inciso IX); à garantia da segurança pública (artigo 144); à promoção,

proteção e recuperação da saúde, em suas diversas possibilidades (artigo 196); à

prestação da assistência social (artigo 203), entre tantas outras que poderiam ser

mencionadas.

As normas constitucionais de eficácia negativa, por sua vez, são as

que contemplam as limitações do Estado; que prescrevem aquilo que ele deve

respeitar; são fronteiras que determinam aonde o Estado e seus representantes

não podem chegar; estabelecem os direitos e as garantias em relação aos quais o

Page 277: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

Estado está proibido de agir ou atuar, senão para respeitá-los. São normas,

enfim, que fixam os limites a serem obedecidos pelo Estado, devendo-se notar

que também aqui estão consagrados valores superiores do ordenamento jurídico

Fazem parte desse grupo de normas constitucionais todas aquelas

nas quais podemos identificar os referidos limites, tais como o princípio da

legalidade (artigo 5º, inciso II); a vedação da tortura ou tratamento desumano

(artigo 5º, inciso III); a casa como asilo inviolável do indivíduo (artigo 5º, inciso XI);

a garantia do direito de propriedade (artigo 5º, inciso XXII); o respeito ao voto

direto e secreto (artigo 14); o respeito ao sigilo profissional do advogado (artigo

133); o princípio da legalidade em matéria tributária (artigo 150, inciso I); a

vedação da utilização de tributo com efeito confiscatório (artigo 150, inciso IV); a

obrigatoriedade de gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais

(artigo 206, inciso IV), entre outros tantos limites.

Acreditamos que as normas da primeira espécie, as de eficácia

positiva, em virtude da natureza de seu comando prescritivo, revelem-se mais

sensíveis à possibilidade de atualização pela interpretação, de modo que a

Constituição permaneça alinhada às necessidades contemporâneas ao momento

de sua aplicação, que podem não ser necessariamente as mesmas da época de

sua promulgação, sobretudo em razão da complexidade da sociedade atual, que

se transforma em velocidade acentuada e não é acompanhada pela alteração

formal do ordenamento jurídico.

Daí porque não encontramos dificuldades em aceitar que, para se

saber o que significa sociedade solidária, marginalização social e qual o alcance

dos direitos humanos, certamente haverá de se apurar o momento em que a

Page 278: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

norma é aplicada e qual a situação da sociedade à qual se aplica, pois a

marginalização social de ontem provavelmente foi causada por fatores distintos

daqueles que acarretam a marginalização de hoje. Do mesmo modo, a função

social da propriedade, a defesa dos necessitados e a proteção da saúde

envolvem necessariamente a comparação de momentos distintos no tempo e

critérios de apuração do que possam significar tais expressões à luz do

transcurso do tempo e à medida que a sociedade e as condições de vida

evoluem.

Não obstante, a principal razão que nos leva a crer que essas

normas comportam sempre uma atualização interpretativa é, como dissemos, a

sua própria natureza, a sua eficácia positiva, o mandamento para que o Estado

atue construtivamente, considerando-se que, por meio da atualização da norma, é

possível potencializar o comando constitucional – levá-lo à sua máxima eficácia

normativa – e impedir que o superior desígnio constitucional seja desobedecido

(ou apenas obedecido em menor grau) em virtude de sua corrosão pelos efeitos

da passagem do tempo.

Em outras palavras, para as normas constitucionais de eficácia

positiva, cremos que a atualização interpretativa seja sempre possível porque ela

mantém a densidade normativa do Texto Constitucional ao longo do tempo.

No que concerne às normas da segunda espécie, as de eficácia

negativa, ainda em virtude da natureza de seu comando, parece-nos que essas,

embora possam também, em tese, passar pela atualização por meio do processo

interpretativo, tal possibilidade seja reduzida quando comparada àquelas normas

do primeiro grupo, uma vez que, neste caso, a densidade da norma poderia ser

Page 279: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

enfraquecida em virtude da mencionada atualização, o que levaria ao desrespeito

à Constituição, de modo que, segundo nosso modesto pensar, são normas menos

vocacionadas à atualização interpretativa, justamente em virtude da função que

desempenham de limitadoras da ação estatal.

É bem verdade que poderíamos conceber hipóteses de atualização

pela interpretação de conceitos constitucionais como tratamento desumano, para

nele incluir novas formas de ofensa ou violação à dignidade humana; como o

conceito de casa, para fazê-lo alcançar e proteger outros locais que não a

residência em sentido estrito; ou mesmo com o conceito de legalidade em matéria

tributária, para adaptá-lo a novas exigências sociais e jurídicas. Não obstante, nos

casos das normas de eficácia negativa, a atualização somente poderá dar-se para

intensificar e renovar o comando normativo e jamais para enfraquecê-lo, isto é, o

intérprete somente poderá atualizar o conceito constitucional se isso não implicar

o enfraquecimento da garantia dele.

De modo diverso do que ocorre com as do primeiro grupo, nas

normas de eficácia negativa, a potencialização do comando constitucional talvez

não permita a atualização dos conceitos utilizados e, no caso de o permitir,

somente o poderá ser para a revitalização dos limites representados pelo conceito

no que tange à atividade estatal.

Um bom exemplo do que afirmamos é o julgamento, pelo Supremo

Tribunal Federal, do Habeas Corpus n.° 82.424-RS, Relator Ministro MOREIRA

ALVES, Relator para acórdão Ministro MAURÍCIO CORRÊA, cujo objeto, em

apertada síntese, é a questão de se determinar se a publicação de livros com

conteúdo favorável ao anti-semitismo constitui ou não prática de racismo, nos

Page 280: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

termos do inciso XLII, do artigo 5°, da Constituição Federal, uma vez que havia

dúvida quanto ao fato de ser o judaísmo uma raça, no sentido estrito da palavra,

envolvendo assim o enquadramento da conduta como crime imprescritível.

O tema, portanto, envolve a construção do conceito constitucional de

racismo, para fins de aplicação da lei penal, tendo a Corte Máxima decidido, por

maioria de votos, que, naquele caso, ocorreu crime de racismo, embora, em

termos rigorosos, o judaísmo não pudesse ser considerado raça.

Com tal decisão, realizou o Supremo Tribunal Federal, por meio da

interpretação dos fatos e da Constituição Federal, a atualização do conceito de

racismo, para fazer com que do comando constitucional envolvido pudesse

irradiar-se uma proteção ainda maior aos cidadãos. Revitalizou, assim, a

densidade normativa do dispositivo, ainda que a norma em tela esteja mais

próxima daquelas de eficácia negativa do que das de eficácia positiva.

Para encerrarmos a digressão e retornarmos à atualização dos

conceitos em matéria de direito tributário, parece-nos certo afirmar que as normas

constitucionais de outorga de competência tributária pertencem à segunda

espécie, revelando-se, portanto, normas de eficácia negativa, à medida que

representam nítidos limites à atividade estatal de instituição de tributos: por um

lado, indicam as parcelas da realidade que podem ser tributadas e, por outro,

prescrevem aquelas que não contam com semelhante autorização constitucional,

daí decorrendo sua eficácia negativa.

Se os mencionados conceitos presentes na Lei Maior são limites

constitucionais ao poder de tributar (encartados na classe das normas

constitucionais de eficácia negativa), somente podem sujeitar-se à atualização

Page 281: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

interpretativa desde que de tal processo exegético não resulte a ampliação da

competência tributária originalmente outorgada, porque isso significaria, a

pretexto de atualizar a Constituição Federal, enfraquecer-lhe os comandos

prescritivos e negar-lhe supremacia normativa diante dos demais diplomas do

ordenamento.

De qualquer modo, é fundamental que não nos esqueçamos da

influência que o transcurso do tempo pode exercer sobre a interpretação e, em

especial, a interpretação constitucional, tampouco da advertência de KARL

LARENZ, segundo a qual “Toda a interpretação da lei está, até certo ponto,

condicionada pela época. Com isto não se pretende dizer que o intérprete deve

seguir a par e passo cada tendência da época ou da moda”.290

É bem verdade que, após a criação da lei (em sentido amplo), ela,

por assim dizer, adquire vida própria e pode mesmo afastar-se da vontade de seu

criador e ser aplicada, o que não é raro, a situações que o legislador não tinha em

mente e não pretendia abranger com o texto legal. Não obstante, é ainda KARL

LARENZ quem acentua, fazendo referência ao texto constitucional alemão, que

“Por detrás da lei está uma determinada intenção reguladora, estão valorações,

aspirações e reflexões substantivas, que nela acharam expressão mais ou menos

clara. ‘Vinculação à lei’, tal como é exigida pela Constituição (art. 20, parágrafo 3,

e 97, parágrafo 1), significa tanto o texto da lei, como as valorações do legislador

(histórico) que lhe estão subjacentes”.291

9. Papel do artigo 110 do Código Tributário Nacional

290 Metodologia da ciência do direito, p. 443. 291 Metodologia da ciência do direito, p. 446.

Page 282: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

O raciocínio que procuramos expor até aqui acerca dos conceitos

constitucionais, de seu conteúdo semântico mínimo e máximo e da relativa

margem de liberdade que possui o legislador para sua manipulação, no momento

da edição da lei tributária, leva-nos agora à análise do artigo 110 do Código

Tributário Nacional, de seguinte teor:

“A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance

de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados,

expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas

Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito

Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências

tributárias.”

Em estudo sobre esse dispositivo legal, RICARDO LOBO TORRES

afirma que a norma dali decorrente é ambígua e contraditória e a primeira

indagação a ser feita é se “Estaria respeitado o princípio da supremacia da

Constituição se as normas da lei complementar pudessem dispor sobre sua

interpretação?”, ao que responde negativamente e afirma que tais normas seriam

válidas desde que constassem expressamente no Texto Constitucional.292

Cabe notar que, embora o artigo 110 pareça dispor sobre a

interpretação da Constituição, trata-se de comando normativo dirigido diretamente

ao legislador e que disciplina os limites da lei tributária; limites, entretanto, que,

como vimos, são estabelecidos pela própria Carta Magna, vale dizer, não são

criados pelo artigo 110, porque derivam diretamente da discriminação de

competência tributária plasmada soberanamente no Texto Constitucional.

292 Normas de interpretação e integração do direito tributário, p. 228.

Page 283: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

Assim sendo, e até por dever de coerência com aquilo que temos

sustentado, somos obrigados a reconhecer que se o artigo 110 fosse revogado,

nem por isso a norma jurídica dele constante deixaria de habitar o ordenamento,

porque, como sublinhamos, ela estava presente na própria Constituição.293

De qualquer modo, o artigo está em plena vigência, razão pela qual

não nos podemos furtar de tecer algumas considerações sobre ele, até para

renovar sua relevância e função dentro do sistema tributário.

9.1 Dicotomia entre direito privado e direito público

A expressão direito privado presente no artigo 110, ao prescrever

que a lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance dos

institutos, conceitos e formas de direito privado (quando usados pela Constituição

para definir e limitar competência tributária), aparenta deixar em aberto uma

possibilidade de interpretação – que seria literal – segundo a qual a mencionada

alteração poderia dar-se, caso os institutos, conceitos e formas fossem de direito

público.

Tal possibilidade interpretativa não nos parece possível, sobretudo

nos dias atuais, uma vez que a dicotomia tradicionalmente estabelecida entre

direito privado e direito público parece não mais fazer sentido (pelo menos para

um enorme número de questões), contribuindo muito pouco para a compreensão

e a aplicação do ordenamento jurídico.

293 Neste sentido, a norma do artigo em tela teria natureza meramente didática, como afirma Hugo de Brito Machado: “A norma do art. 110 na verdade não passa de simples explicitação do prestígio da supremacia constitucional. Pudesse a lei ordinária alterar os conceitos utilizados nas normas da Constituição, poderia o legislador ordinário, por essa via alterar a Constituição, modificando o sentido e o alcance de qualquer de suas normas” (A importância dos conceitos jurídicos na hierarquia normativa – natureza meramente didática do art. 110 do CTN, In: Revista Dialética de Direito Tributário, vol. 98, p. 72).

Page 284: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

A crescente complexidade da sociedade e a exigência cada vez

maior de disciplinamento jurídico de novas relações humanas, com grau de

detalhamento normativo diverso daquele exigido no passado, causam aquilo que

poderíamos denominar publicização do direito privado, tendo-se em vista que são

acentuados o interesse e a participação do Estado nas relações jurídicas

consideradas como exclusiva entre particulares e nas quais as normas eram tidas

como pertencentes ao campo do direito privado.

MARCO AURELIO GRECO, que há bastante tempo estudou de

modo detalhado a questão dessa dicotomia, tratou da matéria denominando-a

crise da noção de direito público, nos seguintes termos:

“Destarte, concluímos que, a nosso ver, o direito vigente não nos

permite identificar diante de casos concretos interesses

exclusivamente públicos ou privados mas sim, encontramos um

complexo de regras que consagram expectativas as mais diversas e

multifacetadamente compostas entre si.

Ora, se o direito posto assim se apresenta, perde fundamento

científico a expressão ‘Direito Público’ por não se constituir em

descrição de uma realidade existente, perfeitamente identificável,

como visto. Trata-se de noção insuficiente por faltar-lhe a qualidade

de adequação.

(.....)

A propósito da afirmação de que o Direito Público reger-se-ia por

princípios próprios, típicos, cabe levantar a seguinte dúvida: como é

logicamente possível falar em princípios específicos do Direito

Público se o Direito como um todo é uno? Como é possível

identificar princípios, orientações, caminhos típicos do Direito Público

Page 285: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

se ontologicamente o objeto do conhecimento jurídico não é

cindível? A esta questão não vemos resposta satisfatória”. 294

Mais recentemente, analisando essa mesma questão, MARCOS DE

CAMPOS LUDWIG expõe o tema do seguinte modo:

“De fato, o termo perspectiva pública parece delinear com precisão

como devemos compreender o fenômeno chamado de ‘publicização

do privado’: não há uma invasão de um campo no outro, mas – isto

sim – uma nova perspectiva a incidir sobre os institutos do direito

privado.

(.....)

Isto representa um dos pontos essenciais que nosso trabalho

pretende assentar: também o direito privado, atualmente, contempla

normas de ordem pública; também o direito privado contém

preceitos de interesse geral; também os institutos de direito privado

possuem marcada função social.

(.....)

A perspectiva dicotômica da distinção entre direito público e direito

privado encontra-se, enfim, superada. Não convém que se tomem os

fenômenos recíprocos de interpretação eventualmente verificados

como intromissões, porquanto tais processos não são constantes

nem absolutos; seguem, isto sim, o fluxo dos fatores sociais, as

modificações dos campos da vida humana, vistos, portanto, por um

prisma sociológico e histórico.”295

Com essas considerações, não pretendemos afirmar, entretanto,

que a dicotomia entre direito público e privado simplesmente não mais existe ou

que não tenha nenhuma utilidade. Em vez disso, o que procuramos demonstrar é

294 Dinâmica da tributação e procedimento, p. 51/52. 295 Direito público e direito privado: a superação da dicotomia, In: A reconstrução do direito privado, p. 99 e 112.

Page 286: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

que, pelo menos para os fins de interpretação e aplicação do artigo 110 do

Código Tributário Nacional, a expressão direito privado não pode mais subsistir.

9.2 Conceitos de direito positivo

Em conformidade com aquilo que acabamos de afirmar, parece-nos

possível efetuar uma interpretação atualizada do artigo 110 do Código Tributário

Nacional, para entender que o comando prescritivo alcance não apenas os

conceitos de direito privado, mas também os de direito público – admitindo-se, a

título de argumento, que a dicotomia possa subsistir – de modo que a norma dali

emanada assume a seguinte conformação: nos casos em que a Constituição

Federal, as Constituições dos Estados ou as Leis Orgânicas se utilizarem de

institutos, conceitos e formas de direito positivo, para definir ou limitar

competências tributárias, a lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e

o alcance dos termos empregados naqueles diplomas legais.

E havemos de refrisar este ponto, pela última vez, e com o perdão

da insistência: o legislador ordinário não pode ignorar o artigo 110 porque (i) o

mesmo comando normativo deflui da Constituição Federal; (ii) os institutos e os

conceitos de direito positivo são utilizados pela Carta Política na regra de outorga

de competência tributária, razão pela qual constituem limitações constitucionais

ao poder de tributar; (iii) esses conceitos não podem ser livremente alterados pelo

legislador porque, em se admitindo que o sejam, perde completamente o sentido

e a razão de ser do critério da materialidade adotado pela Constituição e (iv) a

discriminação de competência é matéria de direito constitucional, somente

Page 287: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

alterável, portanto, por Emenda Constitucional, dentro, evidentemente, das

possibilidades previstas pela própria Constituição da República.

Nem se diga que, ao vincular-se a discriminação da competência

tributária aos conceitos fornecidos pelo direito positivo, estar-se-ia alimentando a

pretensão de “interpretar a Constituição com base na lei”, pois evidentemente não

é disso que se trata e acreditamos ter afastado tal falacioso argumento ao longo

de nosso trabalho.

Os conceitos são constitucionais – foram constitucionalizados

quando a Constituição foi promulgada, ainda que hauridos em outros campos do

direito positivo – de modo que a interpretação da Carta da República opera-se

com fundamento nela mesma e nas peculiaridades que ela – interpretação

constitucional – apresenta; nem por isso devem ser desprezados os subsídios

fornecidos pelas outras normas pertencentes ao mesmo ordenamento jurídico, do

qual a Constituição é evidentemente parte integrante.

Nesse sentido, RICARDO LOBO TORRES, mencionando lição de

WALTER LEISNER, afirma que este “escreveu interessante monografia intitulada

‘Da Constitucionalidade da Lei à Legalidade da Constituição’, na qual procura

expor que a Constituição é pobre de conceitos verdadeiramente constitucionais.

Segue-se daí que o princípio da ‘interpretação da lei conforme a Constituição’

pode ganhar as cores de uma ‘interpretação da Constituição conforme a Lei’”.

Afirma ainda o professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro que, embora

não se identifique a interpretação do direito constitucional e a da lei ordinária, nem

por isso deve-se “interromper drasticamente a comunicação com as leis ordinárias

Page 288: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

e com a vida social, sob pena de se conspurcar o próprio princípio da unidade do

Direito”.296

A prova do que afirmamos é dada pela própria Constituição Federal,

pois o legislador constituinte de 1988, para elaborar a Carta Política, não partiu do

nada, não iniciou seu caminho de um vácuo normativo e social. Embora

estivesse, em termos rigorosos, inaugurando juridicamente o Estado de Direito

Brasileiro – aliás, Estado Democrático de Direito – e rompendo, portanto, a ordem

jurídica então vigente, debruçou-se sobre a realidade social existente na época e

mesmo sobre ordenamento jurídico infraconstitucional, para ali recolher subsídios,

elementos, informações, institutos e conceitos, e utilizá-los na elaboração da

então nova Constituição Federal, inclusive com a recepção dos diplomas legais

vigentes que não contrariassem os comandos superiores daquela.

Parece natural que ele – legislador constituinte – tenha-se utilizado

de conceitos e institutos consagrados pelo direito positivo para formular a norma

constitucional de outorga de competência tributária – assim e nesse momento

constitucionalizando-os – e tal circunstância em nada desabona ou ofende a

supremacia normativa da Constituição Federal.

Em outros termos, a relativa liberdade de o legislador ordinário

construir o conteúdo significativo dos conceitos constitucionais (uma vez que

estes não aparecem prontos e acabados na Carta Política) e também a relativa

liberdade de o Poder Judiciário reconstruir o referido significado, caso seja

chamado para tanto, deve sempre dar-se (i) com a obrigatória consciência de que

os conceitos são constitucionais e (ii) com o inafastável conhecimento de que tais

296 Normas de interpretação e integração do direito tributário, p. 231/233.

Page 289: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

conceitos, consagrados pelo direito positivo, devem ser respeitados em seu

conteúdo semântico mínimo e máximo.

Para finalizar, ainda que seja uma explicitação de norma

constitucional ou mesmo que tenha função meramente didática, o artigo 110 do

Código Tributário Nacional não deixa de ser dispositivo legal de proteção ao

contribuinte. À medida que se refere à definição de competência tributária e,

desse modo, delimita o campo material sobre o qual esta competência pode ser

exercida, os conceitos de direito positivo utilizados pela Constituição Federal para

tal mister são de observância obrigatória para o legislador ordinário, na forma

como procuramos demonstrar.

Page 290: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

CAPÍTULO 7

ANÁLISE CASUÍSTICA DE PRECEDENTES JURISPRUDENCIAIS

1. Relevância dos precedentes jurisprudenciais

O último capítulo de nosso trabalho é dedicado à análise de algumas

questões de direito tributário que foram objeto de decisão pelo Supremo Tribunal

Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça.

Embora tenhamos procurado deixar claro nosso entendimento sobre os

casos, importa-nos menos neste momento concordar ou discordar das decisões (na

Page 291: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

medida em que faça sentido concordar ou discordar das decisões tomadas pelos

tribunais superiores, em vista do trânsito em julgado), mas interessa-nos mais procurar

entender as razões do decidir das cortes superiores. Embora a doutrina não tenha a

obrigação de sempre concordar com o entendimento jurisprudencial, não podemos

deixar de reconhecer que os precedentes contribuem para a construção da

normatividade do ordenamento jurídico, de modo que a ciência do direito não pode

ignorá-los.

Pensamos também que tal análise nos permite visualizar, nesses

julgados, algumas das idéias esboçadas no decorrer de nosso estudo, como, por

exemplo, a utilidade do estilo tópico; a interpretação da Constituição e suas

peculiaridades; a aplicação dos postulados normativos e outros temas ligados aos

conceitos constitucionais e ao exercício da competência tributária.

Podemos notar nos casos analisados pelo menos duas

características em comum: a primeira, relativa à tópica jurídica, segundo a qual se

parte do caso concreto (problema) a resolver e vai-se ao direito positivo (sistema)

para encontrar a solução, o que demonstra que a interpretação e a aplicação da

lei (inclusive da Constituição) é uma operação concomitante; e a segunda,

atinente à possibilidade de o Poder Judiciário construir ou reconstruir o conteúdo

dos conceitos constitucionais utilizados para a outorga da competência tributária.

Até por dever de coerência com tudo o quanto escrevemos até aqui,

é importante lembrar que a análise – ou a interpretação – que efetuamos dos

julgados a seguir é apenas uma proposta em meio a outras possíveis, de modo

que nossa limitada pretensão é apenas a de suscitar algumas idéias para a

renovação do debate de certas questões do direito tributário.

Page 292: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

2. Contribuição sobre pagamentos a administradores e autônomos

A questão da incidência da contribuição social prevista no artigo 195,

inciso I, da Constituição Federal foi levada ao conhecimento do Supremo Tribunal

Federal, no Recurso Extraordinário nº. 166.772-9-RS, Relator Ministro MARCO

AURÉLIO, que, em decisão de 12 de maio de 1994, por maioria dos votos,

decidiu pela inconstitucionalidade da expressão “autônomos e administradores”

contida no inciso I do artigo 3º, da Lei Federal n.º 7.787, de 30 de junho de 1989,

de cuja ementa destacamos os seguintes trechos:

“INTERPRETAÇÃO. CARGA CONSTRUTIVA. EXTENSÃO. Se é

certo que toda interpretação traz em si carga construtiva, não menos

correta exsurge a vinculação à ordem jurídico-constitucional. O

fenômeno ocorre a partir das normas em vigor, variando de acordo

com a formação profissional e humanística do intérprete. No

exercício gratificante da arte de interpretar, descabe ‘inserir na regra

de direito o próprio juízo – por mais sensato que seja – sobre a

finalidade que ‘conviria’ fosse por ela perseguida’ – Celso Antônio

Bandeira Mello – em parecer inédito. Sendo o Direito uma ciência, o

meio justifica o fim, mas não este àquele.

CONSTITUIÇÃO. ALCANCE POLÍTICO. SENTIDO DOS

VOCÁBULOS. INTERPRETAÇÃO.

O conteúdo político de uma Constituição não é conducente ao

desprezo do sentido vernacular das palavras, muito menos as do

técnico, considerados institutos consagrados pelo Direito. Toda

ciência pressupõe a adoção de escorreita linguagem, possuindo os

institutos, as expressões e os vocábulos que a revelam conceito

estabelecido com a passagem do tempo, quer por força de estudos

acadêmicos quer, no caso do Direito, pela atuação dos Pretórios.

(.....)

Page 293: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

CONTRIBUIÇÃO SOCIAL. TOMADOR DE SERVIÇOS.

PAGAMENTOS A ADMINISTRADORES E AUTÔNOMOS.

REGÊNCIA. A relação jurídica mantida com administradores e

autônomos não resulta de contrato de trabalho e, portanto, de ajuste

formalizado à luz da Consolidação das Leis do Trabalho. Daí a

impossibilidade de se dizer que o tomador dos serviços qualifica-se

como empregador e que a satisfação do que devido ocorra via folha

de salários. Afastado o enquadramento no inciso I do artigo 195 da

Constituição Federal, exsurge a desvalia constitucional da norma

ordinária disciplinadora da matéria. A referência contida no § 4º do

artigo 195 da Constituição Federal ao inciso I do artigo 154 nela

insculpido, impõe a observância de veículo próprio – a lei

complementar. Inconstitucionalidade do inciso I, do artigo 3º da Lei

n.º 7.787/89, no que abrangido o que pago a administradores e

autônomos. Declaração de inconstitucionalidade limitada pela

controvérsia dos autos, no que não envolvidos pagamentos a

avulsos”.

O caso desse Recurso Extraordinário é por demais conhecido no

cenário jurídico pátrio e, como se sabe, a controvérsia repousava basicamente na

questão de se saber se os profissionais autônomos e os administradores das

empresas recebiam salários pelos serviços prestados e se as empresas que os

remuneravam o faziam na qualidade de empregadoras, tendo-se em vista que, na

época vigente, a redação do inciso I, do artigo 195, da Constituição Federal

determinava que a contribuição seria devida pelos empregadores e incidiria sobre

a folha de salários. Em outros termos, cuidava-se de averiguar o sentido e o

alcance dos conceitos constitucionais de empregadores e de folha de salários; se

tais expressões teriam sido utilizadas pelo Texto Constitucional no sentido técnico

(restrito) ou no comum (amplo).

Page 294: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

Logo de início, destacamos afirmação constante do voto do Ministro

MARCO AURÉLIO, segundo o qual “o conteúdo político de uma Constituição não

pode levar quer ao desprezo do sentido vernacular das palavras utilizadas pelo

legislador constituinte, quer ao técnico, considerados institutos consagrados pelo

Direto”, assertiva que vem ao encontro daquela que fizemos no capítulo 6 de

nosso estudo, de que ambas as ocorrências são possíveis, isto é, a Constituição

Federal pode utilizar-se tanto de conceitos com sentido comum, quanto de

conceitos com sentido técnico, aí residindo o desafio posto ao seu intérprete, que

deve examinar, em cada caso concreto, qual das alternativas foi adotada pelo

Texto Constitucional. Cabe refrisar que, seja no sentido técnico, seja no comum, o

conceito sempre representa uma limitação ao poder de tributar.

É curioso notar que a mencionada afirmação do Ministro MARCO

AURÉLIO, cujo voto dá-se pela utilização dos conceitos de empregadores e folha

de salários no sentido técnico (fornecidos pelo direito do trabalho), encontra logo

em seguida objeção feita pelo Ministro FRANCISCO REZEK, para quem “o

legislador não destoa tanto da sociedade, das pessoas comuns, quando emprega

certas palavras do cotidiano e o faz com alguma ambigüidade. O legislador não

escapa a determinados vícios como a plasticidade com que o cidadão comum

pode empregar vocábulos que a doutrina utiliza de modo mais rigoroso”. O

Ministro MOREIRA ALVES, por sua vez, afirma que “Por outro lado, sempre

sustentei que, em matéria de interpretação constitucional, se deve dar prevalência

ao sentido técnico dos vocábulos utilizados pela Constituição, com mais razão do

que com referência à legislação ordinária”.

Page 295: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

Das três afirmações transcritas surge um dado relevante, que é o

fato de a controvérsia instalar-se não somente quanto ao conteúdo dos conceitos

(técnico ou comum), mas também quanto ao próprio método a ser utilizado na

interpretação da Constituição, ou seja, deve ser o que privilegia sempre o sentido

técnico ou o sentido comum das palavras empregadas pela Lei Maior.

Outro trecho do voto do Ministro MARCO AURÉLIO que merece

destaque é aquele no qual afirma que “a flexibilidade dos conceitos, o câmbio do

sentido destes, conforme os interesses em jogo, implicam insegurança

incompatível com o objetivo da própria Carta”, que parece reconhecer que, se por

um lado as palavras, os termos e os conceitos não possuem um significado único,

inequívoco, por outro pelo menos portam um conteúdo semântico mínimo que não

pode ser desprezado, sobretudo em se tratando dos conceitos utilizados pela

Constituição, em virtude do papel que esta desempenha no ordenamento jurídico.

O Ministro CARLOS VELLOSO, baseando-se em ensinamentos

doutrinários e referindo-se à Constituição, afirma que “O sentido comum de suas

palavras deve prevalecer sobre o seu sentido técnico, a menos que haja razões

em contrário”. Vota pela constitucionalidade da incidência da contribuição social

sobre os referidos pagamentos e deixa estampado em seu voto que “o conceito

de ‘salário’, em direito previdenciário, não tem o mesmo sentido técnico do

conceito de salário em direito do trabalho”. Essa afirmação parece-nos um tanto

quanto delicada em razão do entendimento que traz implícita a possibilidade de o

ordenamento jurídico utilizar o mesmo conceito para indicar diferentes realidades

nos vários sub-ramos do direito positivo.

Page 296: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

Ora, se levássemos um pouco adiante o entendimento do Ministro,

seríamos obrigados a reconhecer que poderia haver: (i) um conceito de salário

para o direito previdenciário; (ii) um outro conceito de salário para o direito do

trabalho; (iii) um terceiro conceito de salário para o direito tributário e até mesmo

(iv) um quarto conceito de salário para o direito constitucional, ou seja, quatro

parcelas distintas da realidade tratadas pelo ordenamento jurídico com o mesmo

vocábulo. Com o devido respeito, pensamos que semelhante fenômeno não

encontra lugar para manifestar-se no direito pátrio, no mínimo porque despreza o

caráter unitário e indivisível do direito positivo, que, como sabemos, somente

pode experimentar uma tal divisão para efeitos meramente didáticos e não pode

tolerar a existência de compartimentos estanques, como se determinada subárea

do universo jurídico não estivesse irremediavelmente ligada a outra.

Podemos até aceitar, para que não nos acusem de acentuada

simplicidade de raciocínio, que o mesmo vocábulo possa eventualmente

experimentar alguma variação de significado quando utilizado por um ou outro

quadrante do direito positivo, por um ou outro diploma legal, mas não com a

variação afirmada pelo Ministro, a ponto de haver um conceito de salário para o

direito previdenciário e outro para o direito de trabalho, ambos hospedados pela

mesma Constituição.

O caso examinado é um bom exemplo da controvérsia que pode

envolver a utilização dos conceitos constitucionais e de sua função de limitações

ao poder de tributar, pois os votos proferidos pelos Ministros da Corte Máxima

não deixam dúvidas quanto ao caráter construtivo da interpretação jurídica e

quanto à postura ativa do intérprete no momento de concretização da norma

Page 297: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

constitucional, elementos que se fazem presentes na construção do conteúdo

significativo dos conceitos constitucionais.

Os mencionados votos também demonstram que a interpretação –

embora construtiva – evidentemente encontra limites que são fornecidos pelos

próprios métodos de interpretação, pelo instrumental desenvolvido pela ciência do

direito e, sobretudo, pelo próprio ordenamento jurídico, sendo um deles o

conteúdo mínimo semântico dos conceitos, fator que levou o Supremo Tribunal

Federal a decidir pela inconstitucionalidade da expressão “autônomos e

administradores” constante do inciso I, do artigo 3º, da Lei Federal n.º 7.787, de

30 de junho de 1989.

Nesse ponto, é bastante sugestiva a afirmação do Ministro SYDNEY

SANCHES: “Posso, é verdade, em certos casos, demonstrar a falta de técnica do

constituinte, ao se valer de certas expressões tradicionais no direito brasileiro,

como, por exemplo, ‘empregadores’, ‘folha de salários’. Mas não posso, nem

devo, presumi-la. E, no caso, em face das alterações operadas no sistema, tais

expressões foram usadas, segundo penso, em seu sentido técnico, exato, ou pelo

menos, tradicional”.

3. A imunidade prevista no artigo 155, § 3º, da Constituição Federal

O alcance da imunidade prevista pelo parágrafo 3º, do artigo 155 da

Constituição Federal foi objeto de julgamento pelo Supremo Tribunal Federal nos

autos do Agravo Regimental em Recurso Extraordinário n.º 205.355-4 – DF,

Relator Ministro CARLOS VELLOSO, na data de 10 de julho de 1999, por maioria

de votos, em acórdão de seguinte ementa:

Page 298: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

“CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. FINSOCIAL. IMPOSTO ÚNICO

SOBRE MINERAIS. CF/67, art. 21, IX. INCIDÊNCIA DO FINSOCIAL

FRENTE AO DISPOSTO NO ART. 155, § 3º.

I – Legítima a incidência do FINSOCIAL, sob o pálio da CF/67, não

obstante o princípio do Imposto Único sobre Minerais (CF, 1967, art.

21, IX). Também é legítima a incidência do mencionado tributo sob a

CF/88, art. 155, § 3º.

II – Agravo não provido”.

Discutia-se basicamente, neste caso, qual o sentido a ser dado ao

parágrafo 3º. do artigo 155, a fim de se definir o alcance da imunidade ali prevista.

O dispositivo, em sua redação originária, trazia a seguinte redação:

“§ 3º. À exceção dos impostos de que tratam o inciso I, b, do caput

deste artigo e os arts. 153, I e II, e 156, III, nenhum outro tributo

incidirá sobre operações relativas a energia elétrica, combustíveis

líquidos e gasosos, lubrificante e minerais do País”.

A celeuma em torno da interpretação do dispositivo constitucional

fazia-se presente em virtude da alegação dos contribuintes de que a Contribuição

para Financiamento da Seguridade Social – Cofins não poderia incidir sobre seu

faturamento decorrente de operações realizadas com os bens mencionados no

parágrafo 3º, justamente em razão da imunidade ali prevista, o que nos obriga à

análise de quatro questões específicas.

A primeira e a segunda, que podem ser estudadas conjuntamente,

dizem respeito aos princípios constitucionais da igualdade e da capacidade

contributiva, que seriam violados caso prevalecesse o entendimento de que a

Page 299: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

imunidade em tela impediria a exigência da mencionada contribuição incidente

sobre o faturamento.

A igualdade seria violada à medida que se estaria tratando

desigualmente contribuintes que estão em situação equivalente. Se, a princípio,

todas as empresas são obrigadas a contribuir para o custeio da seguridade social,

algumas deixariam de assim estar apenas porque suas operações envolveriam os

bens mencionados no parágrafo 3º, razão que não justificaria o tratamento

tributário mais benéfico.

A capacidade contributiva, por sua vez, seria ofendida porque ambas

as classes de contribuintes (os que realizassem operações com os bens

contemplados pelo artigo 3º e aqueles que as realizassem com outros bens)

aufeririam faturamento e, portanto, manifestariam a referida capacidade, de modo

que a exclusão da incidência da contribuição sobre a primeira classe ofenderia o

aludido princípio informador da tributação.

Com o devido respeito pelo entendimento contrário, pensamos que

tais argumentos não podem prevalecer, logo de início pela própria natureza

jurídica do instituto da imunidade, que é elemento conformador da outorga de

competência tributária, cujo papel fundamental é o de determinar aonde a norma

de incidência não pode chegar, isto é, quais fatos, atos, negócios, situações e

pessoas que a lei impositiva não pode alcançar. Segundo o ensinamento de

JOSÉ ARTUR LIMA GONÇALVES, “a competência é conferida e delimitada pela

própria Constituição Federal, pois a mesma norma de estrutura que confere o

poder do legislador, descrevendo a regra-matriz de incidência tributária, cuidará

de fornecer os limites, a perfeita indicação dos confins do poder assim conferido.

Page 300: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

(...) A categoria denominada pela doutrina como imunidade não passa de uma

explicitação normativa de certas delimitações de competência tributária

impositiva”.297

Com base nessa lição, podemos concluir que a imunidade conferida

pelo parágrafo 3º do artigo 155, ao determinar que “nenhum outro tributo incidirá

sobre operações relativas a energia elétrica, combustíveis líquidos e gasosos,

lubrificantes e minerais” (com exceção dos impostos tratados pelo próprio

dispositivo), jamais poderia violar os princípios da igualdade e da capacidade

contributiva pois só faria sentido falar-se de eventual ofensa a tais princípios no

caso de existência de norma de tributação, que inexiste na espécie considerada.

Em outros termos, não podemos concordar com o entendimento da

ofensa à igualdade e à capacidade contributiva por, pelo menos, duas razões: a

primeira porque seríamos obrigados a concluir que estaríamos diante de uma

norma constitucional originária inconstitucional, fenômeno cuja existência não

podemos conceber, e a segunda, porque a regra de competência outorgada pela

Constituição Federal traz consigo inafastavelmente a sua própria delimitação,

representada pela imunidade conferida às operações mencionadas pelo parágrafo

3º do artigo 155 e não se pode falar de violação à igualdade e à capacidade

contributiva onde não há sequer competência tributária.

O Ministro MOREIRA ALVES, em seu voto, destaca que a finalidade

buscada pela Constituição com essa imunidade é a de evitar que haja excessiva

oneração fiscal dos bens envolvidos – energia elétrica, combustíveis líquidos e

gasosos, lubrificantes e minerais – e que a imunidade é de natureza objetiva,

297 A imunidade tributária do livro, In: Imunidade tributária do livro eletrônico, p. 142.

Page 301: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

razão pela qual “não pode ofender a princípios constitucionais que só são

pertinentes à pessoa do contribuinte que, nessa espécie de imunidade, não é

tomada em consideração”.

A própria natureza jurídica da imunidade – sua razão de ser (valores

que a Constituição Federal deseja proteger da incidência tributária) e o seu

significado (delimitação da competência tributária conferida às pessoas políticas)

– por si só afasta a incidência dos aludidos princípios constitucionais que,

portanto, não podem ser considerados como violados.

A terceira questão é referente à denominada universalidade da

contribuição, prevista no caput do artigo 195 da Constituição da República,

segundo o qual “A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de

forma direta e indireta, nos termos da lei”, dispositivo que, na visão de vários

Ministros do Supremo Tribunal Federal, constitui obstáculo ao entendimento de

que a imunidade prevista no parágrafo 3º alcançaria as contribuições em geral, e

aquela incidente sobre o faturamento, em especial, interpretação que, diga-se de

passagem, acabou por prevalecer na decisão final da Corte Suprema.

Tal aspecto é salientado pelo Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE

nestas palavras: “... não estou alheio às considerações econômicas, ontem

desenvolvidas, em favor da interpretação abrangente da imunidade. Não me

comoveram o bastante, entretanto, para aceitar, em seu nome, o privilégio que a

imunidade constitucional representaria contra o princípio constitucional da

universalidade do custeio da seguridade social”; e também pelo Ministro

MAURÍCIO CORRÊA, nestes termos: “Desse modo, sem fugir dos fundamentos

que acima sinteticamente alinhavei e a teor do dogma constitucional do caput do

Page 302: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

artigo 195, segundo o qual a seguridade social será financiada por toda a

sociedade, não posso conceber que fiquem de fora desse esforço as empresas

que exploram esses setores – gigantes da economia nacional – as quais não são

excepcionadas pela lei”.

Afirmamos desde logo nossa crença de que a interpretação do

dispositivo constitucional de que ora tratamos certamente não poderá ser feita

com base no fato de as empresas alcançadas pela imunidade serem ou não

“gigantes da economia nacional” uma vez que, como parece elementar e como já

afirmado, a imunidade prevista no parágrafo 3º do artigo 155 é de natureza

objetiva – alcança os bens ali previstos, independentemente das pessoas

jurídicas envolvidas – e, sendo assim, não pode ser interpretada em razão do

“tamanho” das empresas; seja como for, o entendimento do Ministro MAURÍCIO

CORRÊA não deixa de ser um bom exemplo da influência da ideologia na

interpretação, conforme demonstramos no capítulo 5 de nosso trabalho.

Não obstante, o comando normativo do caput do artigo 195

indubitavelmente deve ser levado em consideração em qualquer caso que

envolva as contribuições destinadas ao custeio e à manutenção da seguridade

social, tendo-se em vista que a universalidade da contribuição é norma

constitucional de alta relevância, e que, nesta qualidade, deve ter sua dimensão

de peso avaliada em cada caso concreto e pode mesmo fazer com que, em

certas circunstâncias, outros princípios constitucionais cedam espaço para sua

aplicação.

A rigor, o argumento de que a imunidade tributária concedida pelo

parágrafo 3º, como abrangente da contribuição sobre o faturamento, violaria o

Page 303: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

caput do artigo 195 parece não se sustentar porque as contribuições previstas

nesse artigo, a cargo dos empregadores, são três: incidentes sobre a folha de

salários, sobre o lucro e sobre o faturamento (na redação original do dispositivo).

Como a noticiada imunidade envolve apenas esta última, caso viesse a

prevalecer tal imunidade, as empresas empregadoras ainda continuariam a

contribuir para o financiamento da seguridade social por meio das outras duas

contribuições: a da folha de salários e a do lucro.

Em seguida, deve-se considerar que o fato de a Constituição

Federal determinar a universalidade da contribuição não significa que não possa

haver exceções a esse comando constitucional feitas pela própria Lei Maior, como

ocorre com a previsão do parágrafo 7º do mesmo artigo 195, por exemplo, que

concede imunidade às entidades beneficentes de assistência social que atendam

às exigências estabelecidas em lei (imunidade subjetiva). Ora, da mesma forma

que a imunidade do parágrafo 7º do artigo 195 é uma exceção ao comando do

caput desse artigo, a imunidade do parágrafo 3º do artigo 155 também o é, de

modo que tais regras imunizatórias não violam a universalidade da contribuição à

seguridade social mas, antes, são exceções constitucionais estabelecidas em

relação a ela.

Em outras palavras, as referidas imunidades não entram em conflito

com a norma do caput do artigo 195, mas com ela convivem pacificamente, pois a

necessária interpretação sistemática da Carta Magna não permite que se examine

a norma do caput sem a consideração simultânea dos demais dispositivos

constitucionais.

Page 304: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

Embora tenhamos afirmado no capítulo 5 que um dos possíveis

limites da interpretação é a consideração dos efeitos concretos da decisão, trata-

se de apenas um dos limites da interpretação, que além de não poder ser tomado

de forma isolada no processo interpretativo, certamente não autoriza a conclusão

de que a imunidade prevista no parágrafo 7º do artigo 195 conviveria em

harmonia com a universalidade do financiamento da seguridade social e a

imunidade do parágrafo 3º do artigo 155, se estendida à contribuição incidente

sobre o faturamento, violaria a mencionada cláusula da universalidade.

Desse modo, considerar os efeitos concretos da decisão não

significa estabelecer a diferença de tratamento apenas porque a primeira

contempla as entidades beneficentes de assistência social e a segunda pode

alcançar “gigantes da economia nacional”. Não é isso o que desejamos afirmar

quando apontamos o referido limite da interpretação, pois sua consideração não

se pode sobrepor, pelo menos não nesse caso, à interpretação sistemática e

teleológica dos dispositivos constitucionais, pois, se pessoas jurídicas de pequeno

porte viessem a desenvolver operações com os bens previstos no parágrafo 3º do

artigo 155, deveriam de igual modo gozar da imunidade tributária ali prevista.

Acreditamos que se revela fundamental na interpretação das normas

imunizantes a análise dos valores por ela protegidos: no primeiro caso, o

relevante papel desempenhado pelas entidades beneficentes que prestam

assistência social e, no segundo, o desígnio constitucional de evitar que os bens

previstos no dispositivo sejam demasiadamente onerados pela tributação, uma

vez que tais bens “são de vital importância para a economia nacional, e que,

Page 305: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

assim, teriam seus preços de venda demasiadamente aumentados”, consoante

afirma o Ministro MOREIRA ALVES.

Não se trata de considerar que a imunidade representa um privilégio

a determinados contribuintes, mas sim de se considerar que esse “privilégio”

decorre de certos valores prestigiados pela Carta da República e que, só pelo fato

de o serem, não podem ser desprezados na atividade interpretativa. Ademais,

revelando-se ou não um privilégio, trata-se de imunidade tributária, instituto que

obriga a consideração de sua própria natureza jurídica.

A imunidade, como vimos, é elemento delimitador da competência

tributária outorgada pela Constituição, representa o limite dessa competência, de

modo que, concordemos ou não com ela, consideremos mais ou menos

apropriada, tenhamos como justa ou injusta, o fato é que a competência tributária

foi assim soberanamente outorgada pelo Texto Constitucional.

A quarta e última questão a ser enfrentada no caso diz respeito a

outro limite da interpretação: o sentido literal possível do texto normativo. Tal

limite, que não se confunde com a chamada interpretação literal, estabelece que o

texto normativo é o ponto de partida e de chegada da interpretação e obriga o

intérprete a verificar se a atribuição de sentido feita com relação ao texto, isto é,

se a norma jurídica cujo sentido foi construído, obedece ou não ao âmbito do

sentido literal possível do dispositivo, uma vez que, se ultrapassada tal fronteira,

já não se trata de interpretação mas de alteração de sentido.

Esse limite da interpretação é relevante para a hipótese do parágrafo

3º do artigo 155, pois tal dispositivo determina que, com exceção dos impostos ali

previstos, “nenhum outro tributo incidirá sobre operações relativas a energia

Page 306: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

elétrica, combustíveis líquidos e gasosos, lubrificantes e minerais do País”, de

modo que, segundo nosso entendimento, o sentido literal possível desse texto

normativo é dado pela expressão “nenhum outro tributo incidirá”, que parece não

deixar dúvidas quanto à impossibilidade da existência de outras exceções além

daquelas previstas no próprio dispositivo constitucional, motivo pelo qual, com a

devida vênia, não visualizamos nenhuma razão suficiente para que a imunidade

ali presente não alcance a contribuição incidente sobre o faturamento decorrente

da realização das operações que envolvam os mencionados bens.

4. Cofins e incidência sobre a venda de bens imóveis

A incidência da Contribuição para Financiamento da Seguridade

Social – COFINS sobre operações de venda de imóveis foi objeto de decisão

definitiva pela Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento, em

23 de agosto de 2000, dos Embargos de Divergência no Recurso Especial nº.

166.374-PE, Relator Ministro JOSÉ DELGADO, Relatora para acórdão Ministra

ELIANA CALMON, no qual se decidiu, por maioria de votos, pela sujeição da

venda dos imóveis à referida contribuição, em acórdão de seguinte ementa:

“TRIBUTÁRIO. COFINS. VENDA DE IMÓVEIS: INCIDÊNCIA.

1. O fato gerador da COFINS é o faturamento mensal da empresa,

assim considerada a receita bruta de vendas de mercadorias e de

serviços (LC n. 70/91).

2. A empresa que comercializa imóveis é equiparada a empresa

comercial e, como tal, tem faturamento com base nos imóveis

vendidos, como resultado econômico da atividade empresarial

exercida.

Page 307: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

3. A noção de mercadoria do Código Comercial não é um instituto, e

sim um conceito que não pode servir de fundamento para a não-

incidência de um segmento empresarial que exerce o comércio.

4. Embargos de divergência conhecidos e recebidos.”

No caso em tela, um dos conceitos constitucionais envolvidos seria,

a rigor, o de faturamento, previsto na redação original do artigo 195 da Lei Maior;

entretanto, como a Lei Complementar n.º 70/91 definiu faturamento como a

receita oriunda da venda de mercadorias e de serviços, essa definição legal

remete a discussão para os conceitos de mercadorias e de serviços de qualquer

natureza, interessando-nos, por ora, apenas o primeiro conceito.

A discussão passa a situar-se em torno da determinação do

significado de mercadorias, a fim de sabermos se tal conceito alcança ou não os

bens imóveis ou, em outras palavras, se imóveis são mercadorias para fins de

sujeição do faturamento decorrente de suas vendas à incidência da Cofins.

A primeira possibilidade de interpretação tem como fundamento

constitucional o princípio da legalidade estrita, previsto no artigo 150, inciso I, da

Carta Política, e também o artigo 110 do Código Tributário Nacional, que, como

se sabe, proíbe à lei tributária alterar a definição e o alcance dos conceitos de

direito privado utilizados para a delimitação da competência tributária. Assim

sendo, já que a Lei Complementar nº. 70/91 adotou faturamento como a receita

oriunda da venda de mercadorias, é necessário verificar qual o conceito de

mercadoria oferecido pelo direito positivo – e não pelo direito privado – como

tivemos oportunidade de demonstrar no capítulo 6.

Page 308: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

O aludido conceito de mercadoria é dado inicialmente pelo Código

Comercial, em seu artigo 191, nos seguintes termos: “É unicamente considerada

mercantil a compra e venda de efeitos móveis ou semoventes, para os revender

por grosso ou a retalho, na mesma espécie ou manufaturados, ou para alugar o

seu uso, compreendendo-se na classe dos primeiros a moeda metálica e o papel-

moeda, títulos de fundos públicos, ações de companhias e papéis de crédito

comerciais, contanto que nas referidas transações o comprador ou vendedor seja

comerciante”, definição segundo a qual somente os bens móveis são legalmente

considerados mercadorias, em conceito que foi longamente trabalhado pela

jurisprudência e pela doutrina, e ficou consolidado com o transcurso do tempo.

Com base na análise dos conceitos utilizados nos mencionados

textos legais, podemos notar que a Lei Complementar nº. 70/91 definiu como

base de cálculo da Cofins a receita decorrente da prática de certas atividades

empresariais e, ainda que pudesse ter adotado a venda de bens (quaisquer

bens), não o fez e optou apenas pela receita oriunda da venda de uma espécie de

bem (e não da venda todas as espécies), especificamente das mercadorias, isto

é, dos bens móveis, segundo o conceito fornecido pelo Código Comercial e que

não pode ser estendido para alcançar aquela outra espécie de bem, justamente

os imóveis, porque o artigo 110 do Código Tributário Nacional não o permite.

Tal entendimento já havia sido adotado no acórdão anterior, e que

foi suscitado nos Embargos de Divergência que ora analisamos, de relatoria do

Ministro PEÇANHA MARTINS, de seguinte ementa:

“TRIBUTÁRIO. COFINS. NÃO INCIDÊNCIA. VENDA DE IMÓVEIS.

L.C. 70/91, ART. 2º.

Page 309: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

A receita bruta das vendas de bens e prestações de serviços de

qualquer natureza, não se insere na definição legal da base de

cálculo para incidência da contribuição, limitada à venda de bens

móveis e serviços.

Não se pode ampliar a hipótese de incidência da COFINS,

contrariando os conceitos de bem imóvel e mercadoria,

estabelecidos pelo direito civil e comercial.

Recurso conhecido pela letra ‘c’ mas improvido”.

Essa interpretação levada a termo com base no comando normativo

do artigo 110 é também acolhida pelo Ministro PAULO GALLOTI que, fazendo

suas as palavras de um outro integrante do Superior Tribunal de Justiça, afirma

que “... se o legislador pretendesse ou pretendia fazer incidir a Cofins sobre a

venda de imóveis, que não são mercadorias à luz do velho conceito do Digesto

Comercial, deveria fazê-lo com precisão e competência, incluindo no rol do art. 2º

da LC a venda de bens imóveis. Se não o fez, a situação não tem como ser

‘contornada’ por interpretação de modo a afastar normas de Direito Tributário

contidas no CTN”.

Para MARCO AURELIO GRECO, que elaborou parecer sobre tal

tema, o legislador não está obrigado a esgotar a competência tributária da qual é

titular e instituir a exigência tributária sobre todas as possibilidades contidas na

norma de competência, e, buscando o conceito de “mercadoria no contexto do

ordenamento positivo”, salienta que “Com efeito, um exame do termo ‘mercadoria’

a) no âmbito constitucional, b) no âmbito legal e c) mesmo no contexto interno da

Page 310: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

própria LC 70/91 indica que seu significado alcança apenas os bens móveis e não

os imóveis”.298

As considerações feitas nos julgados e nessa lição doutrinária são

um bom exemplo da aplicação do conceito utilizado pela norma de competência

como limitação ao poder de tributar, em aplicação direta do artigo 110 do Código

Tributário Nacional, consoante tivemos oportunidade de abordar no capítulo

antecedente de nosso estudo.

A segunda possibilidade interpretativa afasta-se da aplicação do

aludido artigo 110 e procura construir o conceito legal de mercadoria com maior

alcance significativo, para comportar também os bens imóveis.

Uma das questões a ser destacada refere-se ao fato de que o

Código Comercial – que, como vimos, somente considera como mercadorias os

bens móveis – é de 1850 e, portanto, a referida definição legal foi formulada com

base na realidade existente há mais de cento e cinqüenta anos, evidentemente

muito diferente da atual, circunstância que, segundo pensamos, indica, pelo

menos a princípio, a possibilidade de uma interpretação atualizada do aludido

conceito legal.

É de bom alvitre que afirmemos desde logo que mencionamos a

possibilidade de atualização do conceito não pelo simples e isolado fato de ele ter

sido elaborado há cento e cinqüenta anos, ou seja, não é a “idade” do conceito

que determina, por si só, se dele se deve ou não fazer uma interpretação

atualizada. O tempo de existência do conceito é um dos elementos da equação e

deve ser considerado:

298 Cofins na venda de imóveis, In: Revista Dialética de Direito Tributário, vol. 51, p. 130 e 134.

Page 311: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

– no contexto em que é utilizado;

– quanto ao grau de alteração sofrida pela parcela da realidade

representada pelo conceito;

– dentro do alcance da atualização pretendida;

– respeitante a observância da interpretação dos postulados

normativos da razoabilidade e da proporcionalidade e, sobretudo,

como temos defendido desde o início;

– sempre em relação às especificidades do caso concreto que

aguarda solução.

Em vista disso, não é qualquer atualização do conceito que é

permitida, pois uma interpretação atualizadora por demais elástica, em vez de

trazer o conceito para o momento atual, acaba, na verdade, por criar outro

conceito ou, se preferirmos, por deformar o conceito primitivo. Ademais, em se

tratando de conceitos envolvidos na definição de competência tributária, o

cuidado na sua atualização deve ser ainda mais acentuado, uma vez que tais

conceitos, como vimos, não estão à disposição do legislador.

Não obstante o necessário cuidado, pensamos que o conceito de

mercadorias contemplado pelo artigo 191 do Código Comercial pode comportar

uma exegese que venha a atualizá-lo, de forma que englobe, ao lado dos bens

móveis, os imóveis, uma vez que essa distinção, que podia fazer sentido para a

sociedade e os costumes de 1850, já não mais guarda razão de ser no momento

atual.

A redação do artigo 191 permite visualizar, embora se utilize

expressamente das palavras móveis e semoventes, que o texto legal considera

como mercantil a compra e venda, desde que nas transações comerciais o

comprador ou vendedor seja comerciante, de bens capazes de figurar como

Page 312: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

objeto dessas transações; de coisas passíveis de estarem no comércio; de

elementos patrimoniais que podem ser objeto das negociações comerciais, isto é,

a característica aglutinadora das mercadorias não é exatamente a qualidade de

serem móveis, mas, antes, a de poderem ser objeto de uma relação comercial.

Em outros termos, parece-nos que o dado relevante a ser

considerado, que subjaz nas entrelinhas do dispositivo legal, não é a eventual

mobilidade dos bens, mas a possibilidade de sua comercialização, daí sua

denominação de mercadorias: não porque são móveis, mas porque são objeto de

mercancia.

Nesse sentido, diga-se de passagem, a menção expressa do

dispositivo legal apenas aos móveis e semoventes provavelmente terá sido

motivada pela não comercialização habitual de bens imóveis que, justamente por

não serem corriqueiramente àquela época postos no comércio, não eram então

considerados mercadorias.

O quadro acima, pintado com as cores de 1850, em nada parece

corresponder à tela da sociedade atual, permeada por um variado número de

matizes que conferem configuração absolutamente distinta às práticas comerciais

e aos negócios realizados com o intuito de lucro. É absolutamente comum, nos

tempos atuais e já há muito tempo, a compra e venda de bens imóveis ou os atos

de comércio cujo objeto são os imóveis.

A interpretação atualizada do artigo 191 do Código Comercial pode

ser formulada nos termos apontados, não nos parecendo despropositado

considerar como mercadorias, para o específico fim de que ora tratamos, tanto os

Page 313: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

bens móveis quanto os bens imóveis. Desse modo, em se adotando o conceito de

mercadorias na acepção que propusemos, temos que:

– mercadorias, à época do Código Comercial, correspondiam às

coisas postas no comércio, aos bens-objeto de transações

comerciais (que por razões circunstanciais daquele momento

histórico, eram somente bens móveis) e

– mercadorias, no momento atual, ainda correspondem às coisas

postas no comércio, aos bens-objeto de transações comerciais (mas

que, em razão das circunstâncias deste momento histórico, são

também os bens imóveis).

Portanto, parece-nos que a Lei Complementar nº. 70/91, ao definir

que a base de cálculo da Cofins é a receita decorrente da venda de mercadorias

e da prestação de serviços de qualquer natureza, pode ser interpretada com a

consideração de que mercadorias, para esse propósito, são os bens-objeto da

venda, isto é, são as coisas transacionadas comercialmente pelas empresas

contribuintes, sejam eles móveis ou imóveis.

Uma vez chegados a este ponto de nosso raciocínio, podemos

antecipar-nos a uma eventual crítica, pois alguém poderia objetar que com tais

argumentos estaríamos negando a nossa principal idéia, que é a função dos

conceitos como limitação ao poder de tributar. Na medida em que permitirmos

que a lei tributária altere o conteúdo e o alcance de um conceito do direito positivo

para fins de delimitação da competência tributária, outra coisa não estaríamos

fazendo senão negar vigência ao artigo 110 do Código Tributário Nacional e

esvaziar a função do conceito como limitador da referida competência. Entretanto

Page 314: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

acreditamos que isso não ocorra e a menção a esta questão leva-nos às últimas

considerações que desejamos efetuar no presente item.

Afirmamos por diversas vezes que os conceitos constitucionais,

embora sejam limitações ao poder de tributar, não são dados pela Constituição

prontos e acabados, razão pela qual o legislador e o Poder Judiciário (no caso

deste último, desde que seja provocado para tanto) possuem alguma margem de

liberdade para a construção do conteúdo significativo dos aludidos conceitos, por

meio da interpretação e da aplicação da lei ao caso concreto.

Como complemento a essa afirmação, salientamos também que a

interpretação, na qualidade de atividade construtiva da norma jurídica – de

atribuição de sentido ao texto normativo – sofre inúmeras e variadas influências e

passa por diversas vicissitudes, em especial pela intersecção dos diversos

valores hospedados pelo ordenamento jurídico e pelo conflito entre princípios, isto

é, entre normas jurídicas exteriorizadas sob a forma de princípios.

Assim, acreditamos que na questão da incidência ou não da Cofins

sobre as operações de venda de imóveis deparamos justamente com um

problema desse tipo, ou seja, com um conflito entre dois princípios

constitucionais, com a decorrente intersecção dos valores que lhes são

subjacentes. Esse ponto de vista parece materializar-se na seguinte passagem do

voto da Ministra ELIANA CALMON: “Parece-me que seria quase que impossível

não considerar uma atividade econômica pelo só fato de essa atividade ter como

mercadoria um bem imóvel, (...) Não vejo sentido, inclusive de natureza

ontológica, para a exclusão de uma atividade absolutamente rentável, como é a

incorporação de imóveis”.

Page 315: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

Ora, o pensamento da Ministra coloca em evidência justamente o

conflito entre o princípio da legalidade estrita, previsto no inciso I, do artigo 150 da

Constituição Federal, e o princípio da universalidade da contribuição à Seguridade

Social, contemplado no caput do seu artigo 195. O primeiro princípio hospeda os

valores da segurança e da previsibilidade da tributação e o segundo, os valores

da solidariedade social e da justiça da tributação.

Traduzindo o referido conflito para linguagem mais escorreita, a

questão pode ser posta da seguinte forma: se toda a sociedade deve contribuir

para o custeio da Seguridade Social nos termos da lei e se, dentro do universo de

contribuintes definido pela lei, estão inclusas as empresas que vendem

mercadorias (consideradas, a princípio, somente como bens móveis), há razão

para excluir-se desse universo uma classe de possíveis contribuintes, pela razão

de venderem bens imóveis, por que esses não seriam mercadorias?

Para aqueles intérpretes que entenderem que o princípio com maior

dimensão de peso, neste caso concreto, é o da legalidade estrita, a decisão é

pela não incidência da Cofins sobre as vendas de imóveis, ao passo que, para os

que acreditarem que a maior dimensão de peso, sempre no caso concreto, está

no princípio da universalidade da contribuição, a decisão é pela incidência da

aludida contribuição sobre as operações de vendas de imóveis.

No caso dos Embargos de Divergência que analisamos, a decisão

do Superior Tribunal de Justiça foi pela segunda hipótese, vale dizer, pela

incidência da Cofins. De qualquer modo, concorde-se ou não com ela, pelas

razões apontadas parece-nos que não poderíamos deixar de considerar que essa

possibilidade de interpretação está dentro da moldura do texto legal.

Page 316: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

5. Seguro de Acidentes do Trabalho

A contribuição ao denominado Seguro de Acidentes do Trabalho –

SAT foi alvo de acentuada controvérsia na doutrina e na jurisprudência e acabou

por ser objeto de decisão do Supremo Tribunal Federal no julgamento do Recurso

Extraordinário nº. 343.446-SC, Relator Ministro CARLOS VELLOSO, na qual a

Corte Máxima, por unanimidade de votos, em 20 de março de 2003 decidiu pelo

não conhecimento do referido recurso, interposto por determinado contribuinte,

em acórdão de seguinte ementa:

“CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. CONTRIBUIÇÃO: SEGURO DE

ACIDENTE DO TRABALHO – SAT. Lei 7.787/89, arts. 3º e 4º; Lei

8.212/91, art. 22, II, redação da Lei 9.732/98. Decretos 612/92,

2.173/97 e 3.048/99. C.F., artigo 195, § 4º; art. 154, II; art. 5º, II, art.

150, I.

I – Contribuição para o custeio do Seguro de Acidente do Trabalho –

SAT: Lei 7.787/89, arts. 3º, II; Lei 8.212/91, art. 22, II; alegação no

sentido de que são ofensivos ao art. 195, § 4º c/c art. 154, I, da

Constituição Federal: improcedência. Desnecessidade de

observância da técnica da competência residual da União, C.F, art.

154, I. Desnecessidade de lei complementar para a instituição da

contribuição para o SAT.

II – O art. 3º, II, da Lei 7.787/89, não é ofensivo ao princípio da

igualdade, por isso que o art. 4º, da mencionada Lei 7.787/89 cuidou

de tratar desigualmente os desiguais.

III – As Leis 7.787/89, art. 3º, II, e 8.212/91, art.22, II, definem,

satisfatoriamente, todos os elementos capazes de fazer nascer a

obrigação tributária válida. O fato de a Lei deixar para o regulamento

a complementação dos conceitos de ‘atividade preponderante’ e

‘grau de risco leve, médio e grave’ não implica ofensa ao princípio da

Page 317: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

legalidade genérica, C.F., art. 5º, II, e da legalidade tributária, C.F.,

art. 150, I.

IV – Se o regulamento vai além do conteúdo da lei, a questão não é

de inconstitucionalidade, mas de ilegalidade, matéria que não integra

o contencioso constitucional.

V – Recurso Extraordinário não conhecido”.

A questão mais relevante levada ao conhecimento do Supremo

Tribunal Federal no julgamento da contribuição em tela consiste no fato de as Leis

Federais nº. 7.787/89 e nº. 8.212/91 terem deixado para o regulamento a tarefa

de definir os conceitos de “atividade preponderante” e “graus de risco leve, médio

e grave” para efeito de enquadramento das empresas contribuintes nas alíquotas

de um, dois ou três por cento. Embora as referidas Leis tenham estabelecido tais

alíquotas para, respectivamente, os graus de risco leve, médio e grave, a

delegação ao regulamento no caso concreto fez com que este – e não a lei –

determinasse o percentual da contribuição de cada contribuinte.

Segundo a alegação dos contribuintes, essa delegação ao

regulamento fere o princípio da legalidade tributária, insculpido no artigo 150,

inciso I da Constituição Federal, segundo o qual cabe à lei definir todos os

elementos da obrigação tributária, argumento que não foi acolhido pela Corte

Suprema, o que causou acentuada surpresa, porque tal decisão contraria

frontalmente a construção doutrinária formulada ao longo dos últimos trinta anos.

A afirmação do Ministro Relator de que as mencionadas Leis

“definem, satisfatoriamente, todos os elementos capazes de fazer nascer a

obrigação tributária válida” parece sugerir que o princípio constitucional da

legalidade não seria de legalidade estrita, como o afirma a doutrina em uníssono,

Page 318: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

mas de legalidade suficiente, uma vez que, embora não estabeleçam todos os

elementos da regra-matriz de incidência, as Leis prevêem alguns elementos de

modo satisfatório e deixa outros a cargo de regulamento, sem que com isso o

aludido princípio seja violado.299

A análise do voto do Ministro Relator parece sugerir que haveria no

Supremo Tribunal Federal uma alteração no entendimento do conceito de

legalidade, que poderia corresponder a uma interpretação atualizada da Carta

Constitucional, que teria deixado de ser tomada como estrita para ser considerada

suficiente. Esta nova concepção não teria lugar em todas as hipóteses, mas

apenas naqueles casos, valendo-nos das palavras do Relator, em que “a

aplicação da lei, no caso concreto, exige a aferição de dados e elementos.

Nesses casos, a lei, fixando parâmetros e padrões, comete ao regulamento essa

aferição”, de modo que não se trataria, assim, de delegação pura, esta sim,

ofensiva ao princípio da legalidade.

Segundo nosso modesto entendimento, com a devida vênia do

pensamento contrário, não seria despropositado conceber que o princípio da

legalidade, em alteração de entendimento jurisprudencial, pudesse agora, em

determinadas hipóteses, ser considerado de legalidade suficiente. Para tanto,

havemos de considerar que efetivamente podem surgir casos especiais em que o

legislador não dispõe previamente de todos os dados e elementos necessários

para a definição integral da regra-matriz de incidência do tributo –porque estes

somente podem ser obtidos com a análise das peculiaridades dos fatos, em

atividade que envolve levantamentos minuciosos, pesquisas de campo, relatórios

299 A expressão legalidade suficiente não aparece no acórdão mencionado, mas tem sido utilizada pela doutrina, por exemplo, por Marco Aurelio Greco, ao analisar os termos do julgado.

Page 319: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

técnicos etc. – e que, portanto, podem ser apurados com mais propriedade pelas

autoridades administrativas encarregadas de elaborar o regulamento ou o

decreto, como é o caso da contribuição ao Seguro de Acidentes do Trabalho, que

reclama o levantamento de dados estatísticos sobre o número de ocorrências de

acidentes do trabalho em cada setor empresarial e qual a natureza e a gravidade

dos referidos acidentes, inclusive.

Em hipóteses como essa, não nos parece absurda a interpretação

do princípio da legalidade como legalidade suficiente, e não estrita, para deixar-se

para o regulamento a tarefa de estabelecer alguns dos elementos componentes

da obrigação tributária, desde que sejam atendidas duas condições básicas: a de

que a lei fixe os elementos principais da regra-matriz, isto é, o diploma legal

determine ele mesmo todos os elementos possíveis de determinação, e que o

regulamento se contenha nos parâmetros limitativos necessariamente impostos

pela própria lei.

Como consta do próprio voto do Ministro Relator, afirmar-se que “o

Congresso fixa standards ou padrões que limitam a ação do delegado”; que a lei

“fixa parâmetros e padrões”; e, ainda, que não se pode chegar “a violentar o

sentido emanado do texto legal”, para que seja considerado legítimo o exercício

do poder regulamentar, é, com o devido respeito, dizer o óbvio e dizer pouco, uma

vez que é evidente que o regulamento não pode dispor de modo contrário,

tampouco ultrapassar os limites delineados pela lei.

Esse é o ponto central da questão da contribuição que ora

examinamos, ou seja, o efetivo exercício do poder regulamentar contemplado

pelas Leis Federais nº. 7.787/89 e nº. 8.212/91.

Page 320: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

Admitindo-se como possível o cometimento ao regulamento da

tarefa de definir o que sejam “atividade preponderante” e “graus de risco leve,

médio e grave” – como decorrência da interpretação da legalidade como

suficiente, e não estrita – cabia ao regulamento a séria e inafastável obrigação,

imposta pela própria natureza da delegação, de oferecer um regramento jurídico

apropriado, condizente e razoável com os diversos aspectos da realidade

normatizada (aquela objeto das normas contidas no regulamento), que são, no

caso, os riscos derivados do ambiente de trabalho e a ocorrência de acidentes em

cada setor empresarial considerado.

Em outras palavras, se o agente administrativo recebeu, por meio de

delegação feita pela lei, a tarefa de, por meio de regulamento, oferecer tratamento

jurídico a determinada parcela da realidade, para estabelecer qual o grau de risco

de acidentes do trabalho presente em cada setor empresarial das pessoas

jurídicas contribuintes e, com base nisso, fixar elemento essencial da regra-matriz

de incidência da contribuição ao Seguro de Acidentes do Trabalho, o mínimo que

poderíamos esperar de tal regulamento é que tratasse o referido campo da

realidade material com densidade normativa suficiente, ou seja, que suas regras

conferissem um regime jurídico apropriado àquela realidade. Isso significaria, no

caso concreto, que cada empresa, ou cada setor da empresa, estivesse sujeita ao

recolhimento da contribuição com base na alíquota que representasse o seu grau

de risco efetivo, verdadeiro, real, e não um grau de risco fictício, estimado ou

comodamente “calculado” diretamente das mesas de trabalho da burocracia

previdenciária.300

300 José Joaquim Gomes Canotilho ensina que “o princípio da determinabilidade das leis reconduz-se, sob o ponto de vista intrínseco, a duas idéias fundamentais. A primeira é a da exigência de

Page 321: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

Essa relação de congruência entre fato e norma (entre realidade

material e regime jurídico) jamais existiu no caso da mencionada contribuição,

haja vista que o regramento oferecido pelos Regulamentos que trataram da

questão deu margem a inúmeros casos de distorção na sua aplicação e na das

Leis regentes da matéria, pois fez com que diversos contribuintes estivessem – e

ainda estejam – sujeitos ao recolhimento do tributo sob uma alíquota que não

correspondia ao verdadeiro grau de risco relativo ao seu respectivo ambiente de

trabalho. Diga-se de passagem, não temos notícia de que o Ministério do

Trabalho e da Previdência Social se tenha utilizado da prerrogativa constante do

parágrafo 3º, do artigo 22, da Lei Federal nº. 8.212/91, que lhe permite “alterar,

com base nas estatísticas de acidente do trabalho, apuradas em inspeção, o

enquadramento de empresas para efeito da contribuição a que se refere o inciso

II deste artigo, a fim de estimular investimentos em prevenção de acidentes”.

Isso é comprovado pela análise, por exemplo, do Decreto nº.

3.048/99 que, ao tratar da contribuição em seus artigos 202 e 203, e bem assim

em seu Anexo V, fixa os graus de risco correspondentes a cada setor

empresarial, mas não fornece os critérios utilizados para a referida fixação das

alíquotas, fazendo com que a norma infralegal se revele marcadamente

divorciada da realidade que regula – ou pretende regular.

clareza das normas legais, pois de uma lei obscura ou contraditória pode não ser possível, através da interpretação, obter um sentido inequívoco capaz de alicerçar uma solução jurídica para o problema. A segunda aponta para a exigência de densidade suficiente na regulamentação legal, pois um acto legislativo (ou um acto normativo em geral) que não contém uma disciplina suficientemente concreta (= densa, determinada) não oferece uma medida jurídica capaz de: (1) alicerçar posições juridicamente protegidas dos cidadãos; (2) constituir uma norma de actuação para a administração; (3) possibilitar, como norma de controle, a fiscalização da legalidade e a defesa dos direitos e interesses dos cidadãos” (Direito constitucional e teoria da constituição, p. 258).

Page 322: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

Tais críticas são confirmadas por EDUARDO GONZAGA OLIVEIRA

DE NATAL que, ao referir-se ao mencionado Anexo V do Decreto nº. 3.048/99,

acentua que “... por mais que se esforce, o exegeta não conseguirá sacar do

plexo normativo infralegal vigente qualquer resposta do porquê se tributar à

alíquota de 2% (dois por cento) a atividade de ‘fiação de algodão’ e à alíquota de

3% (três por cento) o ‘beneficiamento de algodão’. Para isso faz-se necessária a

concretização, ainda que mínima, do ideal de motivação requerido pela mens

legis do SAT” e ainda assevera que “a incúria do Poder Executivo, que se limitou

a publicar uma lista anômala, que nada aduz ao disposto no inciso II, do art. 22 da

Lei nº. 8.212/91, fere de morte a validade do diploma normativo editado pelo

Poder Executivo, além de revelar ofensa a vários comandos legais e

constitucionais, como a motivação, a legalidade e a igualdade”.301

Diante de tais considerações, procurando aplicar as idéias que

esboçamos ao longo de nosso trabalho, parece-nos que a interpretação das

normas constitucionais feita pelo Supremo Tribunal Federal no caso da

contribuição ao Seguro de Acidentes do Trabalho esbarra em dois dos limites da

interpretação que apontamos no capítulo 5, quais sejam, o do domínio normativo

e o dos efeitos concretos da decisão.

O parâmetro limitativo do âmbito ou domínio da norma deve ser

levado em consideração, na interpretação sobre o princípio da legalidade e a

noticiada delegação normativa ao Decreto, diante da necessidade de se atentar

para as especificidades do campo material, objeto da regulação, que é a fixação

de alíquotas da contribuição segundo os graus de risco de acidentes do trabalho

301 Contribuição ao seguro de acidente do trabalho – análise da questão após o decisum proferido pelo Supremo Tribunal Federal, In: Revista Tributária e de Finanças Públicas, vol. 53, p. 182/183.

Page 323: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

existentes em cada ambiente laborativo. Trata-se de examinar o setor da

realidade para o qual se direciona a norma jurídica (no caso, a norma contida no

Decreto regulamentar), a fim de se verificar, com base nas características e

elementos de fato, se há ou não a necessária relação de congruência entre fato e

norma, vale dizer, se o regramento jurídico estabelecido trata com propriedade,

de modo adequado, o fato ou a parcela da realidade, objeto da norma.

Quanto a esse ponto, pensamos que a resposta é necessariamente

negativa, uma vez que, como afirmamos há pouco, se o recolhimento da referida

contribuição deve dar-se em menor ou maior valor, segundo a aplicação de

alíquotas variáveis, mas sendo estas sempre fixadas de modo vinculado ao grau

de risco dos acidentes de trabalho, então parece evidente que o Decreto em

referência jamais poderia ter previsto tais alíquotas do modo aleatório como foi

feito, sem fundamento nos dados empíricos exigidos para o adequado tratamento

normativo dessa específica realidade, procedimento que poderia ter evitado a

ocorrência das flagrantes distorções de regime jurídico a que estão submetidos

diversos contribuintes.

Com relação a esse ponto devemos registrar, com a devida vênia,

nossa divergência quanto ao afirmado no voto do Ministro Relator: se o

regulamento foi além da lei, a questão não é de inconstitucionalidade, mas de

ilegalidade, matéria que não integra o contencioso constitucional.

Parece não haver dúvida de que, no caso concreto, o regulamento

desbordou-se dos contornos traçados pela lei, ensejando o conhecimento e o

julgamento da matéria pelo Superior Tribunal de Justiça, em razão de sua

competência. Não obstante, acreditamos que tal circunstância não impediria o

Page 324: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

conhecimento da questão pelo próprio Supremo Tribunal Federal uma vez que, se

houve desvio de poder na edição do regulamento, como de fato houve, então foi

violado o próprio princípio da legalidade – ainda que considerada como legalidade

suficiente – porque a lei, dessa forma “não definiu, satisfatoriamente, todos os

elementos capazes de fazer nascer a obrigação tributária válida”.

O segundo limite da interpretação que foi desobedecido diz respeito

aos efeitos concretos da decisão, cuja consideração obrigaria a Suprema Corte a

indagar, no caso específico, quais conseqüências seriam geradas pela sua

interpretação da Lei Maior, inclusive levando em conta a relevância da questão e

o número de destinatários atingidos pela decisão.

Nesse caso, o Supremo Tribunal Federal, ciente de que a delegação

de poderes para o regulamento tinha sido mal exercida, que ele se havia afastado

de modo inadmissível dos propósitos da lei – enfim, tinha ocorrido desvio de

poder na regulamentação do tema – poderia, analisando o quadro normativo, ter

coarctado (ele mesmo, Supremo Tribunal) o mau exercício do poder

regulamentar.

Em outros termos, no caso específico da contribuição em análise, a

interpretação do princípio da legalidade como suficiente (e não estrita) outra coisa

não fez senão coonestar as arbitrariedades praticadas pelo Poder Executivo e

contribuir para o desprestígio da força normativa da Constituição Federal,

resultado que poderia ter sido evitado caso a Corte tivesse avaliado os efeitos

concretos de sua decisão.

Há uma última consideração a ser feita sobre a questão, consistente

no fato de não podermos afirmar categoricamente que o Supremo Tribunal

Page 325: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

Federal deixou de considerar o princípio da legalidade como de legalidade estrita,

embora a leitura do voto do Ministro Relator possa dar margem a essa

interpretação.

Aquilo que ficou decidido foi que, neste caso, o referido princípio não

sofreu ofensa pela delegação dada ao regulamento para a fixação de alguns

elementos da obrigação tributária, porque a “aplicação da lei, no caso concreto,

exige a aferição de dados e elementos”.

Desse modo, a decisão tomada no Recurso Extraordinário não nos

permite saber até que ponto a Corte Constitucional considera poder ir, por assim

dizer, essa flexibilização do princípio da legalidade; qual a medida dessa

elasticidade; em quais casos ela poderia novamente fazer-se presente e sob

quais circunstâncias; e se semelhante delegação de poderes para fixação de

elementos da regra-matriz de incidência seria ou não novamente permitida. De

qualquer forma, a relevância da matéria impõe aos operadores do direito atenção

acentuada para eventuais novas ocorrências desse tipo.

6. Lei Federal nº. 9.718/98 – faturamento e receita

A controvérsia que envolve a Lei Federal nº. 9.718, de 27 de

novembro de 1998, repousa no fato de ela ter alterado a base de cálculo da

Contribuição para Financiamento da Seguridade Social – COFINS – alteração

que, na visão dos contribuintes e grande parcela da doutrina, não encontra

amparo na redação original do artigo 195 da Constituição Federal, que

posteriormente foi alterado pela Emenda Constitucional nº. 20, de 15 de

Page 326: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

dezembro de 1998 – e está pendente de decisão do Supremo Tribunal Federal no

Recurso Extraordinário nº. 346.084-6, Relator Ministro ILMAR GALVÃO.

Tivemos oportunidade de efetuar alguns comentários sobre certos

aspectos da questão no item 9 do capítulo 6 de nosso estudo, onde analisamos

alguns trechos do voto do Ministro GILMAR MENDES. Retomamos agora a

matéria para tratar de outros pontos relevantes e, em especial, a discussão que

envolve os conceitos de faturamento e receita.

Para que possamos ter melhor visualização das questões a serem

enfrentadas, não parece despiciendo transcrever os dispositivos envolvidos.

A Lei Complementar nº. 70, de 30 de dezembro de 1991, dispõe

sobre a base de cálculo da Contribuição para Financiamento da Seguridade

Social – COFINS do seguinte modo:

“Art. 2º. A contribuição de que trata o artigo anterior será de 2% (dois

por cento) e incidirá sobre o faturamento mensal, assim considerado

a receita bruta das vendas de mercadorias, de mercadorias e

serviços e de serviço de qualquer natureza.

Parágrafo único. ..........”

A Lei Federal nº. 9.718, de 27 de novembro de 1998, efetua

alteração na base de cálculo da referida contribuição, nos termos seguintes:

“Art. 2º. As contribuições para o PIS/PASEP e a COFINS, devidas

pelas pessoas jurídicas de direito privado, serão calculadas com

base no seu faturamento, observadas a legislação vigente e as

alterações introduzidas por esta Lei.

Art. 3º. O faturamento a que se refere o artigo anterior corresponde à

receita bruta da pessoa jurídica.

Page 327: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

§ 1º. Entende-se por receita bruta a totalidade das receitas auferidas

pela pessoa jurídica, sendo irrelevantes o tipo de atividade por ela

exercida e a classificação contábil adotada para as receitas.

..........”

A Constituição Federal, em sua redação original, assim previa a

contribuição social em tela:

“Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade,

de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos

provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito

Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais:

I – dos empregadores, incidente sobre a folha de salários, o

faturamento e o lucro;

II – dos trabalhadores;

III – sobre a receita de concursos de prognósticos;

..........”

A Emenda Constitucional nº. 20, de 15 de dezembro de 1998, deu

nova redação ao artigo 195, que ficou assim configurado:

“Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade,

de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos

provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito

Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais:

I – do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na

forma da lei, incidentes sobre:

a) a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou

creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço,

mesmo sem vínculo empregatício;

b) a receita ou o faturamento;

c) o lucro;

Page 328: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

II – do trabalhador e dos demais segurados da previdência social,

não incidindo contribuição sobre aposentadoria e pensão concedidas

pelo regime geral de previdência social de que trata o artigo 201;

III – sobre a receita de concursos de prognósticos;

..........”

Antes de entrar no mérito das alterações promovidas nos textos dos

dispositivos transcritos, cabe deixar registrado nosso ponto-de-vista quanto ao

fato de o Supremo Tribunal Federal, ao apreciar a constitucionalidade da Lei

Complementar nº. 70/91, na Ação Declaratória de Constitucionalidade nº. 1, não

ter decidido que o conceito de faturamento corresponde ao de receita bruta. Em

vez disso, declarou a Suprema Corte que, para efeitos da incidência da Cofins, o

quanto disposto pela Lei Complementar encontrava apoio na Constituição

Federal, de forma que, para esse específico fim, o faturamento pode ser

considerado como a receita bruta decorrente da venda de mercadorias, de

mercadorias e serviços e de serviços de qualquer natureza.

Portanto não nos parece possível concluir que tenha decidido a

Corte Suprema que faturamento e receita são a mesma coisa, isto é, que ambos

os conceitos representam a mesma parcela da realidade, tampouco que a receita

bruta definida como base de cálculo corresponda a todas as receitas auferidas

pelas pessoas jurídicas, mas apenas àquelas decorrentes das vendas de

mercadorias e serviços.

Desse modo, não é necessário grande esforço interpretativo para se

visualizar que se a Lei Federal nº. 9.718/98 alterou a base de cálculo para – agora

sim – todas as receitas, aí inclusas as derivadas de aluguéis, as financeiras e as

Page 329: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

de royalties, tal alteração implicou inegavelmente a ampliação da aludida base de

cálculo.

Ora, se nos termos da Lei Complementar nº. 70/91, com amparo na

decisão do Supremo Tribunal Federal, a base de cáculo da COFINS era o

faturamento = receita bruta = (i) venda de mercadorias + (ii) venda de

mercadorias e serviços + (iii) venda de serviços de qualquer natureza e se,

conforme prescreve a Lei Federal nº. 9.718/98, essa base de cáculo passou a ser

o faturamento = receita bruta = (i) venda de mercadorias + (ii) venda de

mercadorias e serviços + (iii) venda de serviços de qualquer natureza + (iv)

aluguéis + (v) ganhos financeiros + (vi) royalties, então a ampliação da base de

cálculo é evidente.

O faturamento previsto pela Lei Complementar não é o mesmo do

previsto pela Lei nº. 9.718/98, porque este é de maior dimensão do que aquele, o

que causa a falta de fundamento constitucional de validade a essa Lei ordinária,

razão pela qual se cuidou de editar a Emenda Constitucional nº. 20, como

indigitada tentativa de sanar o vício de inconstitucionalidade.

O quadro normativo descrito leva-nos a efetuar algumas

considerações sobre a aludida Emenda e, embora não pretendamos nos alongar

na análise do tema, não podemos furtar-nos de reconhecer que uma emenda

constitucional não tem o condão de constitucionalizar uma lei nascida

inconstitucional, pelo simples fato de que as leis devem obediência à Constituição

vigente no momento de sua edição e não à hipotética Constituição futura, caso

contrário a decantada supremacia normativa da Constituição não passa de frase

de efeito, de mero elemento retórico.

Page 330: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

Esta é a lição de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO:

“Assim, na conformidade das considerações feitas, não há senão

concluir que, dentre as alternativas exegéticas em tese suscitáveis

perante o tema de leis originalmente desconformes com a

Constituição, mas comportadas por Emenda Constitucional

superveniente, a única merecedora de endosso é a que

apresentamos como a quarta delas, ou seja: aquela segundo a qual

a sobrevinda de Emenda não constitucionaliza a norma inicialmente

inválida. Dessarte, seus efeitos poderão ser impugnados e

desaplicada tal regra. Para que venham a irromper validamente no

universo jurídico efeitos correspondentes aos supostos na lei

originalmente inválida será necessário que, após a Emenda, seja

editada nova lei, se o legislador entender de fazê-lo e de atribuir-lhe

teor igual, pois, só então, será compatível com o enquadramento

constitucional vigente”.302

Diante do ensinamento do professor da Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo, podemos dispensar-nos de tecer mais considerações

quanto ao apontado vício de inconstitucionalidade, porque certamente nada

teríamos de relevante a acrescentar, com exceção de um último comentário

relativo ao entendimento de certa parcela da doutrina, consistente em que, ainda

que a Lei Federal nº. 9.718/98 fosse inconstitucional no momento de sua edição,

ela não teria trazido prejuízo algum aos contribuintes porque, quando entrou em

vigor o novo sistema de apuração da base de cálculo da COFINS, a Emenda

Constitucional já havia alterado a redação do artigo 195 do Texto Constitucional,

302 Leis originalmente inconstitucionais compatíveis com emenda constitucional superveniente, In: Repertório IOB de Jurisprudência, vol. 2, cad. 1, p. 62. No mesmo sentido é o ensinamento de José Joaquim Gomes Canotilho e Vital Moreira, na obra Fundamentos da Constituição, p. 269 e 297.

Page 331: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

de modo que nenhum direito dos contribuintes teria sido violado pela mencionada

Lei.

Com o devido respeito, não podemos concordar com tal argumento

porque o direito violado é aquele que garante o respeito à Constituição Federal,

isto é, os cidadãos em geral e os contribuintes, em particular, possuem todos o

direito de não ser obrigados a obedecer a uma lei que, no momento de sua

promulgação, não encontrava fundamento de validade na Constituição, mesmo

que depois venha a ser constitucionalizada por meio de emenda constitucional,

ainda que isso fosse possível, e acreditamos que não o seja.

A própria estrutura orgânica do ordenamento jurídico, os princípios

gerais de direito e, sobretudo, a Constituição Federal obrigam o legislador, antes

de editar determinada lei, a interpretar o Texto Constitucional para ali verificar

aquilo que não pode fazer e aquilo que pode fazer e, neste último caso, em que

medida pode fazer.

Encontramos sérios obstáculos para aceitar o raciocínio de que o

Estado Democrático de Direito inaugurado pela Constituição Federal de 1988

possa permitir que uma simples lei ordinária venha a alterar uma Constituição

rígida, como é a brasileira – uma vez que, pelo menos até agora, o Supremo

Tribunal Federal não decidiu que a Carta da República deixou de ser rígida – para

que, depois, ao sabor da formação de maioria qualificada no Parlamento obtida

de modo desenganadamente casuístico e por meio de acordos políticos de

diversas espécies, o legislador venha a providenciar a promulgação de uma

emenda constitucional.

Page 332: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

E qual a razão de se providenciar a emenda constitucional? Ora,

porque a Constituição é rígida e não pode ser alterada por lei ordinária!

Em outros termos, com o perdão da afirmação caricatural: altera-se

a Constituição por meio da lei ordinária porque, se isto é possível, a Constituição

teria deixado de ser rígida (especialmente em matéria tributária) e, em seguida,

providencia-se uma oportuna emenda constitucional com a finalidade de restaurar

a rigidez da Constituição. Portanto, de duas, uma: ou bem a Constituição Federal

não era rígida e poderia mesmo ter sido alterada pela lei ordinária e, nessa

hipótese, a emenda constitucional seria absolutamente desnecessária, ou então a

Constituição sempre foi rígida e a lei ordinária era inconstitucional desde o seu

nascimento, uma vez que na Carta não encontrava amparo, e a emenda

constitucional continuaria sendo desnecessária – além de ineficaz – porque

jamais poderia atribuir validade constitucional a uma lei que já não a tinha no

momento de sua entrada no ordenamento jurídico.

Com a devida vênia àqueles que entendem de modo contrário ao

nosso, acreditamos que, em prevalecendo tal possibilidade de saneamento a

posteriori do vício constitucional, estaremos diante não “apenas” de

constitucionalização de lei nascida inconstitucional, mas de um pouco mais do

que isso, pois tratar-se-á de constitucionalizar o abuso de poder, de validar o

arbítrio, de prestigiar o descaso, de amparar o desrespeito e, finalmente, de

defender a anti-supremacia normativa da Constituição Federal.

Sem prejuízo de tudo quanto afirmamos, passamos à análise da

questão dos conceitos constitucionais envolvidos na controvérsia. Uma vez que o

caso aguarda julgamento final pelo Supremo Tribunal Federal e não conhecemos

Page 333: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

o entendimento dos outros integrantes daquela Corte, tomamos como base o voto

do Ministro GILMAR MENDES, que nos dá a oportunidade de abordar diversos

pontos, embora ainda não tenha sido publicado e, portanto, possa sofrer

alterações até a decisão final.

O raciocínio do Ministro parte da premissa de que “a Emenda

Constitucional nº. 20 não restaurou a constitucionalidade do § 1º do art. 3º da Lei

nº. 9.718, de 27 de novembro de 1998. A Lei já era constitucional sob o regime do

texto original do art. 195” e ainda de que “percebe-se, desde logo, que já sob o

regime da Lei Complementar de 1991 a acepção de faturamento adotada pelo

legislador não correspondia àquela usualmente adotada nas relações comerciais”,

de modo que teria havido “o abandono do conceito tradicional de faturamento”.

Podemos concordar com essa afirmação uma vez que, diante do

texto da Lei Complementar nº. 70/91 e com base nas decisões do Supremo

Tribunal Federal que trataram da matéria, realmente ficou consolidado que

faturamento, para fins de incidência da COFINS, é considerado como a receita

bruta decorrente das vendas de mercadorias e de serviços – acompanhadas ou

não de fatura – de modo que, efetivamente, tal concepção não corresponde ao

conceito tradicional de faturamento.

Não obstante, tal constatação, presente no voto do Ministro, não

empresta validade à conclusão dela extraída, isto é, de que a Emenda

Constitucional não teria restaurado a constitucionalidade do dispositivo da Lei

Federal nº. 9.718/98, porque ele já seria constitucional sob o regime da redação

original do artigo 195 da Carta Política. Isso porque, embora tanto a Lei

Complementar nº. 70/91 quanto a Lei Federal nº. 9.718/98 se utilizem do vocábulo

Page 334: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

faturamento como correspondente a receita bruta, a dimensão dessa receita bruta

não é a mesma nas duas hipóteses: na primeira Lei alcança apenas as receitas

oriundas das vendas de mercadorias e de serviços e, na segunda, as decorrentes

das vendas de mercadorias e de serviços e também as de aluguéis, as

financeiras e as dos royalties, como afirmamos há pouco.

Da decisão do Supremo Tribunal Federal pode-se depreender que

faturamento foi equiparado a receita bruta das vendas de mercadorias, de

mercadorias e de serviços e de prestação de serviços de qualquer natureza, e,

portanto, não se equiparou faturamento a toda e qualquer receita bruta (receita

total), mas apenas na medida em que essa receita bruta for o resultado da venda

de mercadorias e de serviços. TÉRCIO CHIAVASSA afirma que “O STF

realmente equiparou o conceito de faturamento ao de receita bruta, mas tão-

somente para definir faturamento como sendo ‘o produto de todas as vendas, e

não somente das vendas acompanhadas de fatura, formalidade exigida tão-

somente exigida nas vendas mercantis a prazo (...)’. Tal fato jamais permite

afirmar que o faturamento abrange todas as receitas da empresa,

independentemente da classificação contábil. Trata-se de verdadeiro sofisma

adotado como fundamento de diversos acórdãos que declararam a

constitucionalidade da Lei nº. 9.718/98”.303

A afirmação singela de que receita bruta e faturamento são termos

equivalentes – repetida, com raras exceções, exaustivamente em diversos

acórdãos dos Tribunais Regionais Federais – parece-nos decorrer de equívoco,

303 A interpretação jurisprudencial da Lei nº. 9.718/98, In: Contribuições, p. 209.

Page 335: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

fruto de leitura apressada da decisão do Supremo Tribunal Federal, pois ignora o

âmbito dimensional ali fixado de receita bruta.

Não se trata de defender que o conceito de faturamento deva ser

aquele tradicionalmente adotado pelo direito comercial, pois isso de fato havia

sido afastado pela decisão da Corte Suprema; trata-se, em vez disso, de observar

com o qual amplitude os termos faturamento e receita bruta foram utilizados pelas

mencionadas Leis, a fim de que possamos averiguar sua compatibilidade com o

artigo 195 da Constituição Federal.

A segunda questão refere-se ao entendimento constante do voto

que ora analisamos de que o Supremo Tribunal não teria estabelecido essa

sinonímia entre faturamento e receita bruta, uma vez que “A Corte, ao admitir tal

equiparação, em verdade assentou a legitmidade constitucional da atuação do

legislador ordinário para densificar uma norma constitucional aberta”.

Como temos afirmado, o conceito constitucional comporta

preenchimento de conteúdo pelo legislador ordinário, mas afirmar que se trata de

uma “norma constitucional aberta” parece-nos equivocado. A questão relevante a

ser resolvida em cada caso consiste em se determinar o limite na possibilidade de

preenchimento do conceito.

Como temos insistido ao longo do presente estudo, e não podemos

deixar de refrisar tal aspecto, se se tratasse de “norma constitucional aberta”,

como afirmado no voto, então a utilização do conceito constitucional como

elemento de discriminação e de delimitação da regra de outorga de competência

tributária seria inócua, pois esta não seria conferida para tributar renda, produtos

industrializados e faturamento mas, sim, para tributar qualquer coisa que o

Page 336: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

legislador ordinário desejasse, desde que este tomasse o cuidado de chamar esta

qualquer coisa de renda, de produtos industrializados e de faturamento.

Se o conceito utilizado pela Constituição Federal for uma cláusula

aberta, então a discriminação constitucional de competência tributária, neste

particular aspecto, para nada serve, uma vez que ele – conceito – não delimita

parcela alguma da realidade e, se não o faz, não há razão para sua presença na

Carta. Desejamos acreditar que o legislador constituinte de 1988, no momento em

que se valeu dos conceitos que deixou plasmados na Constituição para fins de

outorga de competência impositiva, fê-lo porque tinha em mente determinadas

parcelas da realidade (necessariamente reveladoras de manifestação de riqueza)

que então desejava deixar passíveis de tributação, ainda que tais conceitos

possam ser considerados, por assim dizer, iniciais ou relativamente indicativos,

uma vez que não são exaustivos e seu conteúdo pode ser preenchido pelo

legislador no momento da instituição do tributo.

Não é possível que a Constituição Federal deixe a cargo do

legislador ordinário a tarefa de conceituar livremente o que seja faturamento ou

receita, como consta de algumas decisões, porque a questão envolve delimitação

de competência tributária, matéria que não está à disposição do legislador

ordinário, isto é, a este cabe disciplinar a instituição do tributo, enquanto àquela

incumbe a discriminação da competência tributária, tarefas situadas em distintos

âmbitos de possibilidade normativa.

A existência de conceitos constitucionais para fins de outorga de

competência tributária, além de revelar-se necessidade lógica para o próprio

conhecimento da Constituição Federal, representa uma limitação ao poder de

Page 337: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

tributar, pois delimita, circunscreve a parcela do mundo fenomênico que a

Constituição autoriza ser alvo da norma impositiva.

O conceito constitucional apresenta um conteúdo semântico mínimo

e máximo; mínimo porque todo conceito, toda palavra, enfim, por mais vaga ou

ambígua que seja, possui necessariamente um conteúdo mínimo de significação,

e máximo porque, por mais elástico que possa ser o contorno dessa significação,

nem por isso ele está à inteira disposição do legislador ordinário, uma vez que a

própria Constituição impõe limites ao exercício da competência tributária, sendo

um deles esse representado pelo conceito.

O conteúdo semântico mínimo é o que o conceito necessariamente

exprime, aquilo que a palavra evidentemente significa. Por sua vez, o conteúdo

semântico máximo é aquele que necessariamente o conceito não pode exprimir,

aquilo que evidentemente a palavra não pode significar (por exemplo, o conteúdo

mínimo do conceito de renda é, pelo menos, um ingresso, algo que se incorpora

ao patrimônio, e o máximo é uma saída, uma despesa, por ser diminuição do

patrimônio e, para fins de incidência do respectivo imposto, jamais poderia ser

considerada renda).

Ora, em nenhum dispositivo legal, em nenhum estudo doutrinário e

em nenhum manual de contabilidade, o faturamento equivale singelamente a

receita; não é razoável supor que o legislador constituinte (somente ele e mais

ninguém) conhecesse um tipo especial de faturamento, diretamente equivalente a

receita, sem que haja algum tipo de qualificação especial aos termos. Portanto

uma tal equiparação só é possível nos termos restritos do julgado do Supremo

Tribunal Federal, ou seja, faturamento como a receita bruta decorrente da venda

Page 338: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

de mercadorias, de mercadorias e de serviços, e de serviços de qualquer

natureza – e não de todas as receitas.

O faturamento é espécie do gênero receita; não são realidades

equivalentes, pois a espécie nunca pode ser exatamente igual ao gênero –

embora tenha dele algumas propriedades, senão não estaria contida no gênero –

caso contrário a classificação não se sustenta e não tem nenhuma serventia.

Em outras palavras, a receita bruta é composta pela totalidade das

receitas (todas as entradas de recursos financeiros, todos os ingressos), aí

incluso o faturamento (ingresso de elementos resultantes da venda de

mercadorias e de serviços), de modo que receita bruta é gênero do qual

faturamento é espécie (um de seus possíveis elementos componentes).

A terceira questão que ora examinamos diz respeito ao

entendimento do Ministro GILMAR MENDES de que “o critério para tributação do

denominado faturamento, contido no art. 195, assume feição nitidamente

institucional. E isso não é novidade no Direito Constitucional, havendo uma

pletora de normas constitucionais garantidoras de realidade institucionais que não

encontram uma definição de seus limites no texto da Constituição (e.g.

propriedade, liberdade, família, consumidor, etc.) Tal fenômeno também ocorre no

âmbito das normas constitucionais tributárias, bastando lembrar dos conceitos de

renda, confisco, grande fortuna, etc.”.

Com a devida vênia, parece-nos que tal argumento não se sustenta.

Em primeiro lugar, porque não se pode afirmar, com a simplicidade e

a segurança com que o faz o Ministro, que os conceitos constitucionais usados

para a delimitação da competência tributária sejam instituições, com o significado

Page 339: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

com que o termo é empregado no voto. Os próprios exemplos mencionados

prestam-se para demonstrar a impropriedade da equiparação das situações, uma

vez que se revelam nítidas as diferenças do papel que ocupam e da função que

desempenham instituições como propriedade, liberdade e família e conceitos

como renda, confisco e fortuna.

Em segundo lugar, porque ignora que o preenchimento de conteúdo

significativo dessas denominadas garantias institucionais geram conseqüências

bem distintas do preenchimento de conteúdo dos conceitos constitucionais, pois

aquelas não se situam no âmbito da matéria tributária e, por tal razão, um

alargamento de seu conteúdo de significação não vem a esbarrar em limites

representativos de direitos e garantias dos destinatários da normas jurídicas

envolvidas, como ocorre com o direito tributário. Esta razão por si só justifica o

entendimento de que a transposição singela da idéia das realidades institucionais

para a dos conceitos de direito tributário não pode ser feita sem os necessários

ajustes e sem levar em conta a natureza dos direitos individuais envolvidos, por

exemplo, no campo do direito civil e no do direito tributário.

Em terceiro lugar, porque o Ministro GILMAR MENDES, valendo-se

de lição de JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, afirma que “As garantias

institucionais, constitucionalmente protegidas, visam não tanto ‘firmar’, ‘manter’ ou

‘conservar’ certas ‘instituições naturais’, mas impedir a sua submissão à completa

discricionariedade dos órgãos estaduais, proteger a instituição e defender o

cidadão contra ingerências desproporcionadas ou coactivas”, entretanto, não

reconhece aos conceitos constitucionais usados para fins da competência

Page 340: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

tributária esta função de garantia dos direitos dos cidadãos, uma vez que os deixa

à conformação do legislador ordinário.

Diante de tal raciocínio, cabem as seguintes indagações: se as ditas

garantias institucionais visam “impedir a discricionariedade dos órgãos estaduais,

proteger a instituição e defender o cidadão contra ingerências

desproporcionadas”, como pretender que os conceitos constitucionais – que na

visão do Ministro são instituições – possam ficar à mercê das conveniências e

interesses arrecadatórios do legislador que institui o tributo? Se as garantias

institucionais são tão relevantes e desempenham tão significativo papel no seio

da Constituição, como podem ficar à disposição do legislador ordinário, que

possui nítido interesse em fixar seu significado tão amplo quanto possível, porque

isso aumenta o alcance da norma de imposição tributária?

E, ainda mais, se as instituições são elementos tão fundamentais,

como parece sustentar o raciocínio presente no voto, como é possível que a

Constituição Federal se contente em livremente deixar a cargo do legislador

infraconstitucional dizer o que elas são ou representam, alterando-lhes o

significado, com a passagem do tempo, ao sabor de sua conveniência?

Em suma, embora não possamos concordar com a equiparação feita

– dos conceitos constitucionais tributários às instituições – parece-nos, em última

análise, que pouco importa que tais conceitos sejam ou não instituições, pois,

sendo-as ou não, o relevante a ser considerado é que seu conteúdo significativo

não pode ficar, e não fica, à livre disposição do legislador ordinário, que tem

apenas uma margem de atuação sobre eles, coisa que é muito diferente.

Page 341: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

O inciso I do artigo 195 da Constituição Federal, com a redação

dada pela Emenda Constitucional nº. 20/98, estabelece que a COFINS pode

agora incidir sobre o faturamento ou a receita. Estabele, portanto, uma disjunção,

vale dizer, ou incide sobre o faturamento (base de cálculo restrita) ou sobre a

receita (base ampla).

Ora, se por um lado, a Lei Federal nº. 9.718/98 – promulgada antes

da Emenda Constitucional – tivesse buscado melhor adequar o conceito legal ao

conceito constitucional de faturamento, como desejam alguns, é porque o

conceito legal já não era adequado ao constitucional. Por outro lado, se fossem

sinônimos, qual a razão da alteração promovida? Seria a Emenda Constitucional

um veículo de cunho didático, editado apenas para esclarecer as coisas?

Ainda quanto a esse aspecto, se “A Emenda nº. 20, nesse ponto,

assumiu tão-somente um caráter expletivo”, como entende o Ministro GILMAR

MENDES, não seria o caso de se editarem também dezenas de outras emendas

constitucionais, todas de “caráter expletivo”, para que fossem explicitados os

conceitos de renda, de produtos industrializados, de serviços de qualquer

natureza, de lucro, de propriedade territorial urbana e de propriedade territorial

rural, de veículos automores, de doação e assim por diante?

Se a Lei Federal nº. 9.718/98 efetivamente alargou o conceito de

faturamento, porque receita bruta é mais amplo que faturamento, como não criou

nova fonte de custeio para a seguridade social? Se redimensionou a base de

cálculo, para maior, como se pode afirmar que não a teria alterado? Se a aludida

Emenda Constitucional possibilitou a inclusão de outras receitas na base de

cálculo (financeiras e decorrentes de recebimento de aluguéis, por exemplo), é

Page 342: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

porque claramente alterou a base de cálculo, estendendo-a dimensionalmente e

portanto, os termos não eram nem são equivalentes.

Finalmente, cabe-nos mencionar, talvez apenas a título de

curiosidade, dois outros trechos do voto que ora analisamos. O Ministro GILMAR

MENDES afirma que

“O STF jamais disse que havia um específico conceito constitucional

de faturamento. Ao contrário, reconheceu que ao legislador caberia

fixar tal conceito. E também não disse que eventuais conceitos

vinculados a operações de venda seriam os únicos possíveis”

e, duas páginas adiante, confirmando seu entendimento quanto às possibilidades

do legislador infraconstitucional, acentua:

“Afasto, portanto, qualquer leitura da expressão faturamento que

implique negar ao legislador ordinário o poder conformação do

vocábulo ‘faturamento’, contido no inciso I do art. 195. Não estou a

dizer, obviamente, que tal poder legislativo é ilimitado, pois é certo

que deverá respeitar todas as demais normas da Constituição, assim

como não poderá ultrapassar os limites do marco fixado no referido

art. 195”.

Diante de tais assertivas, duas indagações devem ser formuladas:

– se o Supremo Tribunal Federal “jamais disse que havia um

específico conceito constitucional de faturamento” e se é afastada

“qualquer leitura da expressão faturamento que implique negar ao

legislador ordinário o poder conformação do vocábulo faturamento”,

por que o legislador não poderia “ultrapassar os limites do marco

fixado no referido art. 195”, ou seja, se não há conceito

constitucional de faturamento, por que o legislador estaria obrigado a

obedecer o inciso I do artigo 195 da Constituição? e

Page 343: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

– qual é o marco fixado pelo artigo 195 e quais são todas as demais

normas da Constituição que o legislador deverá respeitar?

Na medida em que se busca alargar demais o conteúdo do conceito,

pode-se chegar o ponto em que se passa a alcançar outra parcela da realidade (e

não mais aquela delineada pelo conceito utilizado), momento a partir do qual o

uso do conceito – deste de receita, ou de qualquer outro – deixa de fazer sentido,

dada sua inutilidade prática; além do que já se estará diante de outro tributo ou

talvez de invasão de competência de outro ente tributante.

Podemos concluir nossa análise da questão da Lei Federal nº.

9.718/98 reafirmando que, segundo nos parece, entender que há um conceito

constitucional não significa dizer que a própria Constituição Federal estabelece a

base de cálculo do tributo de modo pronto e acabado, mas que o legislador

ordinário – ali, no conceito constitucional – encontra limites a serem respeitados

na oportunidade em que institui o tributo.

Não nos parece possível aceitar a denominada teoria legalista,

segundo a qual o conceito é aquilo que o legislador disser que é, pois esta se

revela incompatível com a estrutura plasmada no sistema constitucional tributário

e o critério da materialidade seria, assim, mera sugestão da Constituição, uma

vez que o legislador teria total liberdade para preencher o conteúdo do conceito e,

em conseqüência, alterar a materialidade fixada pelo Texto Constitucional.

Page 344: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

CAPÍTULO 8

SÍNTESE CONCLUSIVA

Page 345: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

1. Proposições metodológicas

1. A atividade científica tem como marco inicial a escolha de um

objeto e sua observação pressupõe a fixação de um método – que nada mais é

do que a forma de aproximação do tema escolhido – de modo que a absoluta

neutralidade por parte do cientista não é possível, pois a própria aproximação do

objeto já traz consigo a influência de diversos fatores.

2. A verdade científica não está pronta e acabada em determinado

objeto ou lugar, aguardando ser descoberta, como se acreditou por muito tempo.

Em vez disso, ela é construída pelo sujeito cognoscente em verdadeiro processo

de conhecimento, razão pela qual a integridade intelectual não pode mais ser

aferida pela suposta neutralidade do cientista, mas, sim, pela sua disposição em

discutir as premissas e os critérios adotados.

3. O corte metodológico é intrumento demarcador da realidade, por

meio do qual se fazem sucessivos cortes ideais no objeto de estudo, a fim de

diminuir-lhe a complexidade, tendo-se em vista a impossibilidade de conhecê-lo

em toda a sua extensão e profundidade, e pelo qual se estabelecem os limites da

análise, dentro dos quais se circunscreve a investigação científica.

4. O estudo da regra constitucional de outorga de competência

tributária e dos conceitos por ela utilizados comporta a análise do conjunto de

normas jurídicas válidas – constitucionais e infraconstitucionais – que disciplinam

a previsão e o exercício da competência tributária.

5. O positivismo metodológico é adotado como um dos instrumentos

de exame do fenômeno jurídico, embora não deva ser utilizado isoladamente, em

Page 346: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

razão da relevância de outras ferramentas de estudo, em especial a tópica

jurídica e a jurisprudência dos valores.

6. O direito positivo é definido como o conjunto de normas jurídicas

válidas em determinados espaço e território com o fim de disciplinar condutas

humanas intersubjetivas e voltado para a concretização, no seio da sociedade,

dos valores superiores hospedados pelo ordenamento.

7. A ciência do direito exerce uma inegável função pragmática,

consistente em servir de instrumento de auxílio na construção de decisões

judiciais que venham a colocar fim nos conflitos sociais, denominando-se

decidibilidade esta sua finalidade prática.

8. O direito positivo tem por objeto o regramento de condutas

interpessoais ao longo do tempo, razão pela qual deve ser interpretado de uma

perspectiva dinâmica.

9. Interpretar o direito positivo de uma perspectiva dinâmica – que

possibilite a verificação da posição relativa existente entre o direito e a sociedade

por ele disciplinada – significa considerar o ordenamento jurídico como um

sistema relativamente fechado, em que a lei permanece como pauta regulatória

da conduta, mas no qual seu intérprete e aplicador tem possibilidades de construir

o conteúdo das normas com atenção às características e alterações da

sociedade.

10. A Constituição Federal pode ser considerada obra aberta às

mudanças temporalmente adequadas, como um documento normativo que

combina um núcleo rígido de mandamentos, representado, por um lado, por

valores que ela obriga serem sempre respeitados incondicionalmente e, por outro

Page 347: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

lado, por uma série de outros valores que determina serem implantados no seio

da sociedade, cuja paulatina concretização se dá no momento de sua

interpretação e aplicação.

11. Essa perspectiva dinâmica pode ser adotada para o estudo do

direito tributário, com os devidos cuidados, em razão da incontroversa rigidez da

Constituição Federal e, conseqüentemente, do Sistema Tributário Nacional e da

relevância do princípio da legalidade. Nesta área do direito positivo, é necessário

compormos a relativa possibilidade de interpretação da Constituição como obra

aberta com o inafastável respeito pela segurança jurídica e pelas limitações

constitucionais ao poder de tributar.

12. A tópica jurídica é um modelo teórico voltado para o problema e

que realiza a interpretação da norma jurídica com base no caso concreto ao qual

se busca aplicar, tratando-se assim de raciocínio do tipo indutivo, que se desloca

do particular para o geral.

13. Interpretar o texto normativo para, com base nele, construir a

norma jurídica significa, de certa perspectiva, desvendar o valor nela existente,

razão pela qual a interpretação, considerada como processo de atribuição de

sentido e de alcance ao texto legal, deve dar-se para promover sua

concretização, daí a relevância da denominada jurisprudência dos valores.

2. Proposições específicas

14. A rigidez constitucional, decorrente dos específicos requisitos

exigidos pela Carta Magna para a sua própria alteração, desempenha importante

Page 348: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

papel na preservação de certas instituições e determina que o Poder Legislativo

exerça a competência que recebe nos estreitos limites por ela estabelecidos.

15. O Sistema Tributário Nacional, dotado de rigidez e exaustividade

no que concerne à discriminação e à delimitação da competência tributária,

baseia-se na existência de fatias de competência impositiva distribuídas entre a

União Federal, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios.

16. As normas jurídicas fundamentais relativas à possibilidade de

criação de tributos estão insculpidas na Constituição Federal e constituem os

superiores limites formais e materiais aos quais está subordinado o legislador de

cada pessoa política tributante, embora no exercício dessa atividade legiferante

não se possa deixar de reconhecer uma certa margem de liberdade, dentro da

qual ele pode dispor com algum grau de detalhamento sobre as diversas figuras

exacionais, sob pena de se impedir a implementação do sistema tributário e de se

propiciar violação indireta do pacto federativo.

17. O Sistema Tributário Nacional, tal como ocorre com qualquer das

partes integrantes da Constituição, deve ser interpretado em harmonia com os

demais capítulos do Texto Constitucional, o que leva o intérprete a considerá-lo

pelo menos em dois aspectos.

18. O primeiro relativo à própria razão de ser do tributo, como a

principal fonte de recursos financeiros do Estado e instrumento mediante o qual –

desde que os recursos arrecadados sejam efetivamente aplicados – ele deve

buscar os fins que lhe são determinados pela Constituição Federal, isto é, os

diversos objetivos a cuja implantação na sociedade está obrigada a República

Page 349: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

Federativa do Brasil, tais como expressamente previstos na própria Carta

Constitucional.

19. O segundo aspecto, que corresponde a um contraponto ao

primeiro, diz respeito ao fato de o Sistema Tributário Nacional contemplar, ao lado

da outorga da competência impositiva, diversos princípios e regras limitadores

dessa competência, dispositivos de proteção ao contribuinte e que constituem

limites rígidos e intransponíveis à atividade estatal exacional, de modo que o

referido Sistema tributário somente pode ser apropriadamente interpretado se

considerados esses dois aspectos.

20. Os conceitos utilizados pelas normas jurídicas possuem, no

mais das vezes, conteúdo significativo indeterminado, embora determinável em

cada caso concreto pela interpretação e no momento de aplicação da norma, em

que se busca especificar qual a específica parcela da realidade que eles

representam.

21. A existência de conceitos constitucionais, com um mínimo de

conteúdo semântico, constitui exigência lógica de conhecimento e de aplicação da

Constituição Federal, porque somente é possível interpretá-la a partir dos

significados iniciais dos conceitos, que indicam atos, fatos e situações do mundo

fenomênico constitucionalmente normalizados.

22. A construção do conteúdo dos conceitos constitucionais é feita

primeiramente pelo legislador de cada pessoa política tributante, na criação da lei

tributária, momento em que se deverá voltar para a Constituição Federal para

verificar os vários limites dentro dos quais poderá agir nesse mister. Em meio a

Page 350: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

tantos outros parâmetros limitativos, adquirem relevo especial os princípios da

capacidade contributiva e da vedação do efeito confiscatório.

23. Entre as várias possíveis concepções de capacidade contributiva

estudadas pela doutrina, parece relevante aquela que a vincula ao pressuposto

de fato do tributo, porque deixa de considerá-la como elemento subjetivo e passa

a visualizá-la como elemento objetivo, já que a considera presente em

determinados fatos do mundo fenomênico que, por serem reveladores de riqueza,

indicam, em tese, a possibilidade de sobre eles incidir a norma de tributação.

24. A capacidade contributiva desempenha três funções básicas: (i)

a de elemento limitador da atividade do legislador, pois este somente poderá fazer

incidir o tributo onde ela estiver presente; (ii) a de critério de dimensionamento do

tributo, uma vez que a lei deve graduar a incidência tributária por meio de

alíquotas diferenciadas e (iii) a de instrumento de auxílio na interpretação da lei

tributária, porque a capacidade contributiva deve ser respeitada não somente na

criação da lei mas também no momento de sua aplicação.

25. O princípio da vedação do efeito confiscatório é desdobramento

do direito de propriedade e indica que sua transferência parcial, do patrimônio dos

contribuintes para o do Estado, por meio da tributação, somente pode dar-se

dentro de certos parâmetros, fora dos quais tal atividade arrecadadora abandona

o terreno da legalidade para adentrar o do confisco, o que não é admitido pela

ordem constitucional.

26. Embora de difícil definição, o princípio da vedação do efeito

confiscatório também fornece relevante vertente interpretativa, pois direciona a

Page 351: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

atividade do aplicador da lei tributária, que deve conciliar, no momento de

aplicação desta, o direito de propriedade com o poder de tributar.

27. Sem prejuízo das dificuldades encontradas na configuração do

mencionado princípio, parece certo que ele pode ser aplicado às cinco espécies

tributárias previstas na Constituição Federal.

28. Os postulados normativos podem ser considerados metanormas,

isto é, normas que têm por objeto outras normas, cuja interpretação e aplicação

buscam disciplinar. Nesse sentido, são elementos de auxílio na interpretação das

normas jurídicas – são pautas interpretativas – utilizados pelo intérprete no

momento da aplicação da norma ao caso concreto, para evitar incongruências,

distorções ou mesmo sua aplicação desmedida.

29. Segundo certa classificação feita pela doutrina, os postulados

normativos são divididos em postulados inespecíficos, assim designados porque

podem ser aplicados independentemente dos diversos elementos relacionados, e

são três: a ponderação, a concordância prática e a proibição do excesso. Por sua

vez, os postulados específicos são chamados assim porque exigem a relação

entre elementos e critérios determinados, e também são três: a igualdade, a

razoabilidade e a proporcionalidade.

30. A ponderação consiste num processo de atribuição de pesos a

diversos elementos que se entrelaçam, como bens, valores e interesses, que

podem assumir alternada relevância em cada caso considerado.

31. A concordância prática pode ser aplicada em hipóteses nas

quais sejam encontrados valores em conflito, para buscar-se a realização máxima

Page 352: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

de cada um deles, isto é, o conflito deve ser composto em tal grau que, na

prevalência de um deles, o outro não seja demasiadamente desprestigiado.

32. A proibição do excesso, que por vezes pode confundir-se com o

postulado da proporcionalidade, indica um limite à restrição de algum direito

fundamental, de forma que a concretização de um princípio não leve à limitação

acentuada do direito fundamental envolvido no caso concreto.

33. A igualdade, também considerada princípio jurídico, atua como

postulado normativo na medida em que seja considerada como vetor

interpretativo das normas jurídicas em função da necessária apuração do

tratamento jurídico diferenciado e da razão justificadora da distinção estabelecida.

34. A razoabilidade, postulado de alto grau de abstração, pode ser

considerada em dois aspectos: razoabilidade na produção dos textos normativos,

para exigir-se que a regulação abstrata das condutas dê-se dentro de certos

parâmetros, tratando-se, portanto, de verificar a qualidade do regramento

produzido, e razoabilidade necessária na aplicação da lei, uma vez que a

interpretação da norma jurídica não pode levar a resultados absurdos ou

divorciados da finalidade por ela almejada.

35. A proporcionalidade é postulado aplicado em hipóteses de

normas jurídicas que se relacionam em torno de uma relação de causalidade

entre um meio e um fim, de modo que opera em torno de um fim concreto a ser

alcançado e um meio escolhido pela norma como apto para a consecução desse

fim. O exame da relação de congruência entre meio e fim deve ser feito com base

nos três elementos que compõem o postulado da proporcionalidade: adequação,

necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.

Page 353: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

36. O pensamento sistemático considera o ordenamento jurídico

como algo dotado de coerência interna de sentido, formado por um repertório,

composto pelos elementos que o integram, e por uma estrutura, que encerra a

organização e as relações existentes entre os referidos elementos. No sistema

jurídico, os elementos são as normas válidas e a estrutura é dada pelas relações

de coordenação e de subordinação entre elas.

37. O ordenamento jurídico, visto pela perspectiva sistemática,

apresenta como uma de suas mais relevantes características a denominada auto-

referência, que é o fato de o direito positivo regular ele mesmo – autonomamente

– a forma como os elementos ingressam e deixam o ordenamento (o sistema).

38. O pensamento problemático corresponde à técnica de raciocínio

voltada para o problema – desenvolvida em torno dele – considerado uma

questão que comporta mais de uma solução. Essa técnica de pensamento não

ignora a existência do sistema nem despreza sua relevância. Apenas coloca a

ênfase da análise no problema, isto é, enquanto o modelo sistemático parte do

sistema e vai ao problema, o problemático adota o sentido inverso.

39. Sistema e problema – ou pensamento sistemático e pensamento

problemático – não são idéias inconciliáveis, mas complementares, uma vez que,

ainda que o ponto de partida da análise, para o segundo modelo, seja o problema,

ele somente pode ser resolvido pelas soluções oferecidas pelo sistema.

40. O objeto da interpretação jurídica é o texto legal, cujo sentido e

alcance devem ser determinados para fins de aplicação da norma jurídica que

nele se contém, vale dizer, o texto normativo não contempla diretamente a norma

jurídica porque esta é obtida por meio da atividade do intérprete.

Page 354: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

41. Segundo a concepção kelseniana, a interpretação é tida como a

fixação de uma moldura normativa, dentro da qual existem várias possibilidades,

de modo que a interpretação da lei não deve necessariamente levar a uma única

solução possível, mas a várias soluções, embora apenas uma delas venha a se

tornar direito positivo no ato de sua aplicação, em especial o ato do tribunal

(intérprete autêntico).

42. A interpretação é ato de conhecimento e de vontade. Para

identificar a moldura normativa e as possibilidades que ela contém há um ato de

conhecimento e, para a opção (decisão) por uma delas, há ato de vontade.

43. A interpretação não consiste propriamente em extrair a norma

jurídica do texto legal e sim construí-la com base nele, atribuindo-lhe significado e

determinando-lhe sentido e alcance sempre com vistas à sua aplicação no caso

concreto ou, em outras palavras, o texto normativo não contém imediatamente a

norma; esta é construída pelo intérprete no processo de concretização do direito.

44. A interpretação e a aplicação da lei são atividades coincidentes

no tempo, de forma que não se realizam de forma independente uma da outra; o

intérprete constrói a norma jurídica no momento mesmo de sua aplicação, sempre

levando em consideração as especificidades apresentadas pelo caso concreto.

45. Quando a interpretação é levada a termo no momento de

aplicação da lei ao caso concreto, o intérprete está obrigado a interpretar a lei e

também os fatos, consistindo tal tarefa a análise da conformação jurídica destes

(na averiguação de como eles se apresentam) com a finalidade de separar,

dentre as suas características, aquilo que é juridicamente relevante.

Page 355: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

46. A exegese da Constituição não dispensa o emprego dos

métodos ditos tradicionais de interpretação, embora em razão de sua supremacia

normativa, de possuir comandos normativos mais abertos do que os presentes

nos diplomas infraconstitucionais, e de albergar um sem-número de princípios

(que hospedam os valores superiores do ordenamento jurídico), sua interpretação

reclame alguns cuidados especiais, o que autoriza a utilização de outros

instrumentos hermenêuticos.

47. Para esse especial processo exegético devem ser considerados

os princípios de interpretação da Constituição, tais como denominados por certa

doutrina: o princípio da unidade da Constituição; o princípio do efeito integrador; o

princípio da máxima efetividade; o princípio da conformidade funcional; o princípio

da concordância prática; o princípio da força normativa da Constituição e o

princípio da interpretação das leis em conformidade com a Constituição.

48. Além disso, na interpretação constitucional, é de grande valia a

distinção metodológica feita entre princípios e regras, devendo-se considerar a

natureza jurídica de ambas as espécies de normas, sua forma de aplicação e o

modo como são resolvidos os eventuais conflitos existentes entre elas.

49. A interpretação jurídica não pode ser considerada mero

procedimento de subsunção dos fatos à norma (do conceito dos fatos ao conceito

da norma), uma vez que tal postura implica algo de difícil crença, isto é, que o

intérprete seja indiferente ao produto de seu trabalho.

50. Considerando-se que a atividade interpretativa não é passiva –

mas construtiva da norma jurídica – parece impossível conceber que no processo

de atribuição de sentido e alcance à norma o intérprete não venha a sofrer

Page 356: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

influências de diversas naturezas, ou seja, que ele possa manter-se em posição

de absoluta neutralidade. Em suma, o intérprete sofre a influência da ideologia,

considerada valoração de valores.

51. Sobretudo nas hipóteses de interpretação da Constituição – em

que normalmente estão envolvidos diversos princípios constitucionais que se

podem revelar em conflito no caso concreto (com os respectivos valores que lhes

são subjacentes) e nas quais existem mais de uma possibilidade de interpretação,

igualmente dotadas de razoabilidade – há de se considerar a influência exercida

pela ideologia, tomada como o conjunto de valores que se revelam

suficientemente relevantes ao intérprete, a ponto de interferir na tomada de

decisão, na sua opção por um dos valores implicados na interpretação.

52. Considerar a influência da ideologia não significa defendê-la nem

fustigá-la; não implica afirmar que ela é boa ou má, mas apenas reconhecer que

ela existe e que não pode ser desprezada. Ademais, não é tolerável a influência

de quaisquer valores apenas porque contam com a simpatia do intérprete, mas

deve-se considerar somente aqueles prestigiados pelo ordenamento jurídico.

53. Afirmar que a atividade do intérprete é construtiva e que se trata

de atribuição de sentido e alcance à norma diante do caso concreto não implica

desconhecer os limites da interpretação, dados pelo próprio texto legal e, de

resto, por outros parâmetros fornecidos pelo ordenamento jurídico.

54. Os limites da interpretação levam-nos ao denominado coeficiente

de elasticidade da norma jurídica, que representa a medida de sua maleabilidade,

isto é, o ponto até o qual ela pode ser, pela interpretação, adaptada ao caso

concreto. Com o desrespeito aos limites de construção da norma jurídica, dá-se a

Page 357: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

violação de seu coeficiente de elasticidade, hipótese na qual já não há

interpretação, mas superinterpretação – interpretação sem limites – que não é

autorizada pelo sistema do direito positivo.

55. A desobediência ao coeficiente de elasticidade da norma jurídica

pode dar-se tanto pela interpretação marcada pela estrita positividade, quanto

pela que se afasta de modo extremado dela.

56. Apontar os limites da interpretação é tarefa difícil porque eles

podem variar segundo as especificidades do caso concreto, razão pela qual são

mencionados parâmetros iniciais de abordagem do tema, denominados cinco

possíveis limites da interpretação: o sentido literal possível; o âmbito ou domínio

da norma; a exigência de decidibilidade; a proibição do excesso e os efeitos

concretos da decisão.

57. A existência dos conceitos constitucionais pressupostos é

imperativo lógico e sistemático pois não faria sentido que, utilizados para a

discriminação da competência tributária, pudessem ficar à livre disposição do

legislador, a quem cabe o seu exercício, em enviesada hipótese na qual a lei

infraconstitucional determinaria a dimensão da competência fixada pela Carta.

58. Os conceitos adotados pela Constituição Federal – como, por

exemplo, renda, receita, faturamento e veículos automotores – são elementos

integrantes e indissociáveis da regra constitucional de outorga de competência

tributária e representam os fatos signos presuntivos de riqueza que o legislador

está autorizado a tributar. Embora o seu conteúdo semântico possa ser

relativamente trabalhado pelo legislador no momento da edição da lei instituidora

do tributo, tais conceitos permanecem com dignidade constitucional e restringem

Page 358: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

o âmbito de atuação do ente tributante, daí serem considerados limitações

constitucionais ao poder de tributar.

59. Estabelecer o conteúdo dos conceitos equivale a determinar os

limites do seu campo de irradiação significativa e, para essa delimitação de

significado, há de se considerar o seu conteúdo semântico mínimo (aquilo que os

conceitos evidentemente significam) e o seu conteúdo semântico máximo (aquilo

que não podem significar).

60. Para a construção do conteúdo dos conceitos deve-se, pela

interpretação dos dispositivos constitucionais, partir do texto normativo e ir ao seu

contexto, isto é, considerar as condições externas aos conceitos e o modo como

são utilizados, em pelo menos quatro situações: o contexto intranormativo, o

internormativo, o interdisciplinar e o do uso lingüistico.

61. O direito tributário, considerado direito de sobreposição, pode

valer-se de conceitos utilizados por outros campos do direito positivo e mesmo

por outras áreas do conhecimento humano. Tanto na primeira quanto na segunda

hipótese, importa examinar o conteúdo de significação (amplitude semântica) com

o qual os conceitos foram incorporados pela Constituição Federal, tendo-se em

vista que este deverá ser respeitado pelo legislador ordinário.

62. Na interpretação dos dispositivos constitucionais para fins de

construção do conteúdo semântico dos conceitos, não se pode desprezar a

variável representada pelo transcurso do tempo, que exerce influência sobre

praticamente todas as questões de interpretação jurídica. O intérprete, assim, vê-

se obrigado a considerar pelo menos quatro momentos distintos: o tempo da

Page 359: Competencia Tributaria e Conceitos Constitucionais

promulgação da Constituição Federal, o da edição da lei de tributação, o da

ocorrência do fato jurídico tributário e o da aplicação da lei ao caso concreto.

63. O artigo 110 do Código Tributário Nacional contém norma

jurídica presente na Constituição Federal, de modo que, caso o artigo fosse

revogado, nem por isso a referida norma que dele deflui deixaria de estar

presente no ordenamento.

64. A interpretação atualizada do artigo 110 permite concluir que as

formas e os conceitos de direito privado, utilizados para definir ou limitar

competências tributárias, não podem ser alterados pela lei tributária. Da mesma

forma, os de direito público (em se aceitando a subsistência dessa dicotomia),

para entender que o dispositivo trate de conceitos de direito positivo.

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