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FICHA TÉCNICA Título original: The Bone Clocks Autor: David Mitchell Copyright © David Mitchell, 2014 Tradução © Editorial Presença, Lisboa, 2016 Tradução: Manuel Alberto Vieira Imagem da capa: Shutterstock Capa: Vera Espinha / Editorial Presença Composição: Miguel Trindade Impressão e acabamento: Multitipo Artes Gráficas, Lda. Depósito legal n.º 400 751/15 1.ª edição, Lisboa, janeiro, 2016 EDITORIAL PRESENÇA Estrada das Palmeiras, 59 Queluz de Baixo 2730-132 Barcarena [email protected] www.presenca.pt Reservados todos os direitos para a língua portuguesa (exceto Brasil) à

Composição: EDITORIAL PRESENÇA Queluz de Baixo · O Dan, um compincha seu que fazia parte da segurança, levou-o aos bastidores depois do concerto e o Vinny passou a noite na companhia

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FICHA TÉCNICA

Título original: The Bone ClocksAutor: David MitchellCopyright © David Mitchell, 2014 Tradução © Editorial Presença, Lisboa, 2016 Tradução: Manuel Alberto VieiraImagem da capa: Shutterstock Capa: Vera Espinha / Editorial Presença Composição: Miguel TrindadeImpressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda.Depósito legal n.º 400 751/151.ª edição, Lisboa, janeiro, 2016

EDITORIAL PRESENÇAEstrada das Palmeiras, 59Queluz de Baixo2730-132 [email protected]

Reservados todos os direitos para a língua portuguesa (exceto Brasil) à

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Uma Temporada Quente——

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30 DE JUNHO

Abro as cortinas do quarto e vejo o céu sedento e o amplo rio pejado de navios e barcos e outras coisas mais, mas já estou a pensar nos olhos achocolatados do Vinny, no champô a deslizar pelas costas do Vinny, nas gotas de suor nos ombros do Vinny, e no riso malicioso do Vinny, e por esta altura o meu coração está a entrar em desvario e, ó Deus, quem me dera ter acordado na casa do Vinny em Peacock Street e não neste meu quarto estúpido. A noite passada, as palavras «Meu Deus, amo-te tanto, Vin» encarregaram-se de falar por mim e o Vinny soprou uma nuvem de fumo e, na sua voz à príncipe Carlos, disse: «Devo dizer-lhe, Holly Sykes, que o tempo passado na sua companhia é também para mim motivo de sumo aprazimento», e quase me mijei a rir, apesar de ter ficado um bocado irritada por ele não ter respondido «Também te amo». Se me é permitida a franqueza. Mas a verdade é que os namora-dos fazem figura de parvos sempre que querem esconder alguma coisa, todas as revistas o dizem. Quem me dera poder telefonar-lhe agora. Quem me dera que inventassem telefones que nos permitissem falar com qualquer pessoa, em qualquer parte, em qualquer altura. Neste momento estará a caminho do emprego em Rochester, montado na sua Norton, enfiado no blusão de couro com LED ZEP desenhado a tachas prateadas. Quando setembro chegar, mês em que faço dezasseis anos, vai levar-me a passear na sua Norton.

Alguém lá em baixo fecha a porta de um armário com estrondo.E se ela descobriu?, diz uma voz perversa.Não. Eu e o Vinny fomos extremamente cuidadosos.Está na menopausa, a minha mãe. Não será mais do que isso.O vinil que se encontra no meu gira-discos é o Fear of Music, dos

Talking Heads, pelo que pouso a cabeça com a agulha. O LP foi-me oferecido pelo Vinny, no segundo sábado em que nos encontrámos na Magic Bus Records. É um álbum fantástico. Gosto das canções «Heaven»

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e «Memories Can’t Wait», mas não há nele um único tema que possa ser considerado fraco. O Vinny já esteve em Nova Iorque e teve a opor-tunidade de ver os Talking Heads ao vivo. O Dan, um compincha seu que fazia parte da segurança, levou-o aos bastidores depois do concerto e o Vinny passou a noite na companhia do David Byrne e dos restantes membros da banda. Se tornar a ir no próximo ano, vai levar-me com ele. Visto-me, observando uma a uma as marcas deixadas pelas mor-didelas de amor e desejando poder ir à casa do Vinny esta noite, mas ele tem um encontro marcado com um grupo de camaradas em Dover. Os homens detestam quando as mulheres se mostram ciumentas, portan-to finjo não o ser. A minha melhor amiga, a Stella, foi a Londres à caça de peças de roupa em segunda mão no mercado de Camden. A minha mãe diz que ainda sou demasiado nova para ir a Londres sem a companhia de um adulto, de maneira que a Stella levou a Ali Jessop em vez de mim. A coisa mais excitante que o dia de hoje me reserva consiste em aspirar o bar para merecer a mesada de três libras. Uh lá lá. Depois tenho de fazer a revisão da matéria para os exames da próxima semana. Mas de bom grado entregaria as folhas em branco e diria à escola onde enfiar os triângulos de Pitágoras e O Deus das Moscas e os ciclos de vida dos ver-mes. E é possível que o faça.

Iá. É bem possível que o faça.

Cá em baixo, na cozinha, a atmosfera é como a da Antártida. — Bom dia — digo, mas só o Jacko, que está sentado no lugar à ja-

nela a desenhar, ergue o olhar. A Sharon encontra-se na sala de estar, a ver desenhos animados. O meu pai está lá em baixo no corredor da entrada, a falar com o tipo do serviço de entregas — o camião da fábrica de cerveja ruge em frente ao pub. A minha mãe corta maçãs aos cubos para cozi-nhar, fazendo uso do tratamento silencioso. Deveria dizer-lhe: «O que é que se passa, mãe? O que é que eu fiz?», mas diabos me levem se vou embarcar nisso. Como é óbvio, deu-se conta de que cheguei tarde a noite passada, mas deixarei que seja ela a falar no assunto. Deito leite nos meus cereais Weetabix e levo a taça para a mesa. A minha mãe tapa a panela com o testo, produzindo um estrepitoso som metálico, e aproxima-se.

— Muito bem. O que tens a dizer em tua defesa?— Bom dia para ti também, mãe. Pelos vistos, vamos ter mais um

dia de calor.— O que tens a dizer em tua defesa, minha menina?Em caso de dúvida, adotar sempre a postura de inocente. — Em

relação a quê, exatamente?Os olhos dela agitam-se como cobras. — A que horas chegaste a casa?— OK, OK, cheguei um bocadinho tarde. Desculpa.

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— Duas horas não é «um bocadinho tarde». Onde é que estiveste?Mastigo ruidosamente os meus Weetabix. — Em casa da Stella. Per-

di a noção das horas.— Oh, mas que coisa curiosa. Mesmo muito curiosa. Às dez horas

telefonei à mãe da Stella para saber onde raio andavas tu, e sabes uma coisa? Ela disse-me que tinhas saído antes das oito. Portanto, quem é a mentirosa aqui, Holly? Tu ou ela?

Merda. — Depois de sair da casa da Stella, fui fazer uma caminhada.— E até onde te levou essa caminhada?Coloco particular ênfase em cada palavra. — À beira-rio, OK?— E diz-me uma coisa: essa caminhadazinha foi no sentido da cor-

rente ou contra?Deixo um silêncio passar. — Que diferença é que isso faz?Ouvem-se algumas explosões vindas dos desenhos animados que

passam na televisão. A minha mãe diz à minha irmã: — Desliga-me essa coisa e fecha a porta ao saíres, Sharon.

— Não é justo! A Holly é que está a levar um raspanete.— Já, Sharon. E tu também, Jacko. Quero... — Mas o Jacko já

se esfumou. Quando a Sharon se ausenta, a minha mãe volta à carga. — E diz-me lá: estavas sozinha nessa tua «caminhada»?

Porquê esta horrível sensação de que está a montar-me uma cilada? — Iá.

— E que distância é que percorreste nessa tua «caminhada» solitária?— O quê, queres que te responda em milhas ou quilómetros?— Bom, talvez a tua caminhadazinha te tenha levado até Peacock

Street, ao encontro de uma certa pessoa que dá pelo nome de Vincent Costello? — A cozinha como que anda à roda e, através da janela, na margem do rio do lado do Essex, vejo um minúsculo homem-palito desembarcar do ferry segurando a bicicleta no ar. — De repente ficaste muda? Deixa-me reavivar-te a memória: ontem, às dez da noite, persia-nas fechadas, janela da sala de estar, uma T-shirt vestida e pouco mais.

Sim, é verdade que desci as escadas para ir buscar uma cerveja loura para o Vinny. Sim, é verdade que baixei as persianas da sala de estar. Sim, é verdade que alguém passou de facto em frente à casa. Relaxa, disse a mim mesma. Qual a probabilidade de uma pessoa estranha me reconhecer? A minha mãe está à espera que eu ceda e me denuncie, mas não o faço. — É um desperdício continuares a trabalhar como empregada de bar. Devias colaborar com os serviços secretos internos como informadora.

A minha mãe lança-me o Olhar Lancinante à Kath Sykes. — Que idade tem ele?

Agora cruzo os braços. — Não tens nada a ver com isso.

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Semicerra os olhos. — Vinte e quatro, aparentemente.— Se já sabes, porque é que me ’tás a perguntar?— Porque o envolvimento de um homem de vinte e quatro anos

com uma rapariga de quinze é ilegal. Ele pode ir parar à prisão por causa disso.

— Em setembro faço dezasseis anos, e calculo que a polícia de Kent tenha coisas mais importantes com que se preocupar. Já tenho idade suficiente para tomar decisões sobre os meus relacionamentos.

A minha mãe acende um dos seus Marlboro Reds. Estava capaz de matar por um. — Quando contar ao teu pai, esse tal Costello vai ser esfolado vivo.

Sim, é verdade que o meu pai de vez em quando se vê obrigado a persuadir alguns borrachões a abandonarem o estabelecimento, como acontece a todos os proprietários de bares, mas esfolar alguém vivo não faz o seu género. — O Brendan tinha quinze anos quando começou a andar com a Mandy Fry, e se achas que eles se limitavam a andar de baloiço de mãos dadas, ’tás bem enganada. Não tenho memória de ele ter recebido o tratamento «Podes ir parar à prisão por causa disso».

Pronuncia as palavras como se eu fosse uma atrasada mental: — Com... os... rapazes... é... diferente.

Solto um ronco que diz: não-posso-acreditar-no-que-estou-a-ouvir.— Ouve bem o que te digo, Holly, se quiseres voltar a encontrar-

-te com aquele... vendedor de carros, terás de passar por cima do meu cadáver.

— Na verdade, mãe, eu encontro-me com a porra da pessoa que eu bem entender!

— Novas regras. — Apaga o cigarro. — Vou passar a levar-te e a ir buscar-te à escola na carrinha. De agora em diante, não pões os pés fora de casa a menos que estejas comigo, com o teu pai, com o Brendan ou com a Ruth. Se eu vir nem que seja a sombra desse aproveitador de me-nores por estas bandas, vou disparada à polícia apresentar queixa. Vou, sim. Podes crer que vou. E também telefonarei ao patrão dele para que todos fiquem a saber que anda a seduzir menores de idade.

Passam-se longos e volumosos segundos enquanto tudo isto é assi-milado.

Os meus canais lacrimais começam a contrair-se em espasmos, mas de maneira alguma vou dar esse prazer à Sra. Hitler. — Não ’tamos na Arábia Saudita! Não podes manter-me presa!

— Vives debaixo do meu teto, obedeces às minhas regras. Quando eu tinha a tua idade...

— Pois, pois, pois, tinhas vinte irmãos e trinta irmãs e quarenta avós e cinquenta acres de batatas para cavar porque a vida lá na porra da

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velha Irlanda era mesmo assim, mas ’tamos na Inglaterra, mãe, na In-glaterra! E vivemos na década de oitenta, e se a porra da vida na trampa daquela região chamada West Cork era assim tão magnífica, porque é que te deste sequer ao trabalho de vir para...

Zás! Uma bofetada na face esquerda.Entreolhamo-nos: eu, a tremer em choque; a minha mãe, furiosa

como nunca a vi e — presumo — ciente de que acabou de quebrar algo que jamais poderá ser reparado. Abandono a sala sem dizer uma única palavra, como se tivesse acabado de sair vitoriosa de uma discussão.

Choro apenas um bocado; um choro de abalo, não um choro buá-buá, e, findas as lágrimas, coloco-me em frente ao espelho. Tenho os olhos um pouco inchados, nada que um bocadinho de eyeliner não resolva... Agora um pouco de batom, um toque de blush. Resolvido. A rapariga refletida no espelho é uma mulher, de cabelo curto de cor preta, T-shirt alusiva ao álbum Quadrophenia, calças de ganga pretas. — Tenho uma novidade para ti — diz. — Hoje mesmo vais mudar-te para a casa do Vinny. — Começo a ouvir as razões que me impedem de o fazer e paro. — Sim — concordo, simultaneamente excitada e calma. Também vou abandonar a escola. Hoje mesmo. As férias de verão começarão antes de o agente responsável pela investigação do absentismo ter sequer tempo de levantar o cu da cadeira lá na esquadra, e em setembro faço dezasseis anos, e, depois disso, prò raio que te parta, Escola Secundária de Wind-mill Hill. Será que me atrevo?

Atrevo-me, pois. Assim sendo, toca a fazer a trouxa. Mas que trou-xa? Tudo o que couber na minha mochila cilíndrica. Cuecas, sutiãs, T-shirts, o meu casaco de aviador; o estojo de maquilhagem e a caixi-nha de lata Oxo com os meus colares e pulseiras. A escova de dentes e uma mão-cheia de tampões — o meu período está um bocadinho atrasado, portanto deve estar para vir, tipo, a qualquer momento. Dinheiro. Conto 13,85 libras em notas e moedas. Mais 80 libras na caderneta bancária da minha conta no TSB. O Vinny certamente não irá cobrar-me uma renda e, em todo o caso, para a semana procurarei emprego. A tomar conta de crianças, a trabalhar no mercado, a ser-vir à mesa: há montes de maneiras de ganhar uns trocos. E os meus LP? Neste momento, não tenho como transportar a coleção inteira para Peacock Street, e a minha mãe é bem capaz de os largar na loja de artigos em segunda mão Oxfam por pura maldade, pelo que levo apenas o Fear of Music, envolvendo-o cuidadosamente no meu casaco de aviador e introduzindo-o na minha mochila de maneira a que não fique dobrado. Escondo os restantes por baixo das tábuas de soalho soltas, só por enquanto, mas, no momento em que recoloco o tapete,

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apanho um susto de morte: o Jacko está postado à entrada do quarto, de olhos postos em mim. Ainda está de pijama e com os chinelos dos Thunderbirds.

Digo-lhe: — Ia tendo um ataque cardíaco por tua causa, rapaz.— Vais-te embora. — O Jacko fala numa voz de quem não está

propriamente presente.— Aqui entre nós, que ninguém nos ouve, sim, vou. Mas não para

muito longe, podes ficar tranquilo.— Fiz uma coisa para ti, para te lembrares de mim. — O Jacko

estende-me um círculo de cartão: uma embalagem de queijo Dairylea espalmada, com um labirinto desenhado. É obcecado por labirintos, o meu irmão, por causa de todos os livros à la Dungeons & Dragons que ele e a Sharon leem. À luz dos seus padrões, o que o Jacko desenhou é, na verdade, bastante simples, formado por oito ou nove círculos uns dentro dos outros. — Fica com ele — diz-me. — É diabólico.

— A mim não me parece assim tão mal feito.— «Diabólico» significa «satânico», mana.— Explica-me lá então porque é que o teu labirinto é assim tão

satânico.— O Crepúsculo persegue-te enquanto o atravessas. Se te tocar, dei-

xas de existir, portanto se esbarrares num beco sem saída, és aniquilada. Por isso é que tens de saber o percurso do labirinto de cor.

Santo Deus, o meu irmão mais novo é uma criatura absolutamen-te bizarra. — Certo. Bem, obrigada, Jacko. Ouve, agora tenho umas coisas para...

O Jacko agarra-me o pulso. — Memoriza o percurso deste labirinto, Holly. Faz a vontade ao teu irmãozinho esquisito. Por favor.

Sinto um ligeiro sobressalto. — Não ’tou a perceber esse teu com-portamento estranho, puto.

— Promete-me que vais memorizar o caminho até à saída para conse-guires orientar-te na escuridão no caso de um dia vires a precisar. Por favor.

Os irmãos mais novos dos meus amigos não veem mais nada à frente a não ser pistas de carros elétricas da Scalextric ou bicicletas de BMX ou o jogo de cartas Top Trumps — porque me calhou um que faz coisas como a que acaba de me dar e diz cenas como «conseguires orientar-te» e «diabólico»? Só Deus sabe como irá sobreviver em Gravesend se for gay. Passo-lhe a mão pelo cabelo, desgrenhando-o. — OK, prometo que vou decorar o trajeto para a saída do teu labirinto. — Depois o Jacko abraça-me, o que é estranho, porque o Jacko não é um puto dado a abraços. — Ei, eu não vou para longe... Quando fores mais velho vais perceber, e...

— Vais viver para a casa do teu namorado.

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Por esta altura já não deveria ficar surpreendida. — Iá.— Cuida de ti, Holly.— O Vinny é porreiro. Quando a mãe se habituar à ideia, a gente

vê-se outra vez. Afinal de contas, não deixámos de ver o Brendan depois de ele se ter casado com a Ruth, né?

Mas o Jacko limita-se a enfiar bem fundo a tampa de cartão com o seu labirinto na minha mochila cilíndrica, olha-me uma última vez e desaparece.

Deparo com a minha mãe no patamar do primeiro piso, a segu-rar um cesto de tapetes do bar, como se não estivesse de emboscada. — Não falei da boca pra fora. Estás de castigo. Volta já lá para cima. Tens exames para a semana. Já está na altura de te aplicares a sério e fazeres uma revisão da matéria como deve ser.

Agarro o corrimão. — «O nosso teto, as nossas regras», disseste tu. Pois bem. Não quero as tuas regras, nem o teu teto, nem que me batas de cada vez que perdes a cabeça. Não serias capaz de suportar isso. Ou serias?

A cara da minha mãe contorce-se um tudo-nada e, se ela disser as palavras certas agora, abrir-se-á espaço para negociarmos. Mas não, simplesmente atenta na minha mochila cilíndrica e exibe um sorriso escarninho, como se não acreditasse na extensão da minha estupidez. — Em tempos tiveste um cérebro.

De maneira que retomo a marcha em direção ao piso térreo.Por cima de mim, a voz dela põe-se mais tensa. — E a escola?— Se a escola é assim tão importante, vai tu!— Eu nunca tive a oportunidade de estudar, raios! Vi-me sempre

obrigada a gerir o pub, e a dar de comer a ti e ao Brendan e à Sharon e ao Jacko, a vestir-vos e a pôr-vos na escola para que não tenham de pas-sar a vossa vida a esfregar sanitas e a limpar cinzeiros e a dar cabo das costas sem poderem ir para a cama a horas decentes uma noite que seja.

As palavras dela nem me aquecem nem me arrefecem. Prossigo es-cadas abaixo.

— Mas vai, se é isso que tu queres. Vai. Estampa-te para aprenderes. Dou três dias até o Romeu te pôr na rua. O que interessa aos homens numa rapariga não é a sua personalidade encantadora, Holly. Nunca é.

Ignoro-a. Do corredor da entrada, vejo a Sharon atrás do bar, junto das prateleiras destinadas aos sumos de fruta. Está a ajudar o meu pai no reabastecimento, mas percebo que ouviu o que foi dito. Dirijo-lhe um breve aceno e ela retribui-mo, nervosa. Do alçapão de acesso à cave ecoa a voz do meu pai, que trauteia «Ferry ’Cross the Mersey». É me-lhor deixá-lo fora disto. Em frente à minha mãe, tomará o partido dela. Em frente aos clientes habituais, dirá: «Eu cá não sou idiota ao ponto

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de me meter no meio das duas galinhas mandonas», e todos assentirão com a cabeça e responderão entredentes: «Lá nisso tens razão, Dave.» Além de que preferia não estar presente quando ele ficar a saber da existência do Vinny. Não que me sinta envergonhada, simplesmente preferia não estar presente. O Newky está a dormir uma soneca no seu cesto. — És o cão mais fedorento de Kent — digo-lhe para travar as lágrimas que me saem —, seu velho saco de pulgas. — Dou-lhe umas palmadinhas no pescoço, desaferrolho a porta lateral e entro em Mar-low Alley. Atrás de mim, a porta faz troc.

West Street é demasiado luminosa e demasiado escura, como um televisor cujo contraste avariou, pelo que coloco os óculos escuros e o mundo se transforma num lugar como os dos sonhos e mais vívido e mais real. Dói-me a garganta e estou a tremer. Ninguém saiu do pub a correr atrás de mim. Ainda bem. Um camião-betoneira passa e a ra-jada de ar fumoso que projeta agita levemente o castanheiro-da-índia, fazendo-o murmurar. A inalação de asfalto quente, batatas fritas e lixo de semanas a transbordar dos caixotes — os homens do lixo estão outra vez em greve.

Imensas avezinhas cruzam o ar em redemoinho como as fitas presas às flautinhas irlandesas que dão aos miúdos nos aniversários, ou costu-mavam dar, e uma cambada de catraios joga ao kick the can1 no parque que circunda a igreja em Crooked Lane. Apanha-o! Atrás da árvore! Vem salvar-me! Putos. A Stella diz que os homens mais velhos são melhores amantes: com os rapazes da nossa idade, diz ela, o gelado derrete no momento em que pegamos no cone. A Stella é a única pessoa que tem conhecimento da minha relação com o Vinny — estava presente naque-le primeiro sábado na Magic Bus —, mas ela sabe guardar um segredo. Quando me estava a ensinar a fumar e eu não parava de vomitar, não se riu nem contou a ninguém, e contou-me tudo o que preciso de saber sobre rapazes. A Stella é, de longe, a rapariga mais fixe do nosso ano lá na escola.

Crooked Lane tem um desvio para cima, na direção oposta do rio, e daí viro para Queen Street, onde por pouco não sou ceifada pelo car-rinho de bebé empurrado pela Julie Walcott. O bebé berra como um desalmado e ela parece exausta. Abandonou os estudos quando engra-vidou. Eu e o Vinny somos extremamente cuidadosos, e apenas fizemos sexo sem preservativo uma vez, a primeira, e é um facto científico que as virgens não engravidam. Disse-mo a Stella.

1 Variação do esconde-esconde. (NT)

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Fiadas de panos de bandeiras cruzam Queen Street suspensas em cordas, como se para assinalar o Dia da Independência de Holly Sy-kes. A senhora escocesa na loja de lãs rega os seus cestos de vasos suspensos, e Mr. Gilbert, o joalheiro, coloca tabuleiros com anéis na montra, e o Mike e o Todd, os talhantes, descarregam um porco de-capitado da caixa de uma carrinha onde uma dúzia de carcaças pende de ganchos. À porta da biblioteca, um grupo de sindicalistas angaria dinheiro em baldes para os mineiros em greve, acompanhado de ele-mentos do Partido Socialista dos Trabalhadores que ostentam carta-zes onde se lê SIM AO CARVÃO, NÃO À RENDIÇÃO e THATCHER DECLARA GUERRA AOS TRABALHADORES. O Ed Brubeck acerca-se de bicicleta com a roda dianteira no ar. Entro no mercado coberto para que não me veja. Mudou-se para Gravesend no ano pas-sado, vindo de Manchester, onde o pai foi parar à choldra por assalto e agressão. Não tem nenhum amigo e não dá o mais pequeno sinal de querer inverter a situação. Em circunstâncias normais, isso seria mo-tivo de crucificação na escola, mas quando um finalista do secundário se meteu com ele, o Brubeck deformou-lhe o nariz com um valente soco, pelo que desde então nunca mais ninguém se aproximou dele. Passa a dar ao pedal sem me ver, uma cana de pesca atada ao quadro, e retomo a marcha. Junto do salão de jogos, um artista de rua toca música fúnebre num clarinete. Alguém atira uma moeda para o es-tojo do instrumento e ele põe-se a tocar o tema do genérico da série Dallas. Quando chego à Magic Bus Records, espreito para o interior. Eu estava na letra «R», de «Ramones». O Vinny diz que estava na letra «H», de «hiperatraente», de «hiperboa», de «Holly». A loja também tem algumas guitarras em segunda mão expostas ao fundo. O Vin sabe tocar a introdução de «Stairway to Heaven», apesar de nunca ter passado daí. Vou aprender a tocar sozinha na guitarra do Vin enquanto ele estiver no trabalho. Os dois podíamos formar uma banda. Porque não? A Tina Weymouth é mulher e toca guitarra bai-xo nos Talking Heads. Já estou a imaginar a cara da minha mãe se se puser com cenas do tipo «Ela já não é minha filha» e depois me vir no Top of the Pops. O problema dela é que nunca amou ninguém tão profundamente como eu e o Vin nos amamos. Tem uma relação por-reira com o meu pai, claro, apesar de nenhum membro da sua família de Cork gostar particularmente do facto de ele não ser nem irlandês nem católico. Os meus primos irlandeses mais velhos tinham par-ticular prazer em dizer-me que o meu pai engravidou a minha mãe do Brendan antes de estarem casados, mas já estão casados há vinte

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e cinco anos, o que não é nada mau, suponho, mas, ainda assim, a minha mãe não tem com o meu pai a ligação extraordinária que eu tenho com o Vin. A Stella diz que eu e o Vin somos almas gémeas. Diz que isso é por de mais evidente, que fomos feitos um para o outro.

À porta do NatWest Bank, em Milton Road, topo com o Brendan. De cabelo puxado para trás com espuma, gravata com cornucópias e blazer ao ombro, dir-se-ia que acabou de sair da Escola dos Bem-Pa-recidos, não dos escritórios da Stott & Conway. É motivo de palpita-ções, o meu irmão mais velho, entre as irmãs mais velhas das minhas amigas — passem-me o balde do gregório. Casou-se com a Ruth, a filha do patrão — Mr. Conway —, no edifício da câmara municipal, com um copo-d’água pomposo no Chaucer Country Club. Não fui dama de honor porque me recuso a pôr vestidos, em especial aqueles que nos fazem parecer um objeto de colecionador entusiasta de E Tudo o Vento Levou, de maneira que coube à Sharon e às sobrinhas da Ruth tratar dessas cenas, e carradas de familiares nossos de Cork marcaram presença. O menino querido da mãe do Brendan e a mãe querida do Brendan. Mais à frente, ambos irão debruçar-se sobre cada detalhe do que acabo de dizer.

— Bom dia — digo-lhe. — Que tal vão as coisas?— Não me posso queixar. O negócio no Captain tem corrido bem?— Otimamente. A mãe hoje ’tá toda bem-disposta.— Ai é? — O Brendan sorri, intrigado. — Então porquê?Encolho os ombros. — Deve ter acordado com pica.— Fixe. — Repara na minha mochila cilíndrica. — Vais de viagem?— Não propriamente. Vou rever a matéria da disciplina de Fran-

cês na casa da Stella Yearwood e fico lá a dormir. Para a semana tenho exames.

O meu irmão parece impressionado. — Fazes bem, maninha.— A Ruth ’tá melhor?— Nem por isso. Vá-se lá saber porque é que lhe chamam «enjoos

matinais» quando a meio da noite é muito pior.— Talvez seja a forma de a Mãe Natureza nos pôr mais rijas para

quando o bebé nascer — sugiro. — Todas aquelas noites sem dormir, as discussões, o vómito... É preciso capacidade de resistência.

O meu irmão não vai na cantiga. — Presumo que sim. — É difícil imaginar o Brendan como pai de quem quer que seja, mas, por altura do Natal, sê-lo-á.

Atrás de nós, as portas do NatWest abrem e os funcionários do banco começam a entrar em fila indiana. — Não que Mr. Conway vá despedir o seu genro — digo a Brendan —, mas não entras às nove?

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— Sim, entro. Vemo-nos amanhã, se já tiveres voltado da tua marato-na de revisão. A mãe convidou-nos para ir lá almoçar. Tem um ótimo dia.

— Já ’tá a ser o melhor dia da minha vida — digo ao meu irmão e, por via indireta, à minha mãe.

Um vislumbre daquele seu sorriso de homem laureado e o Brendan zarpa, juntando-se às torrentes de pessoas em fatos e uniformes a cami-nho dos respetivos empregos em escritórios e lojas e fábricas.

Na segunda-feira farei uma cópia da chave da casa do Vinny, mas hoje sigo o habitual procedimento secreto. Ao cimo de uma rua cha-mada The Grove, mesmo antes da repartição de finanças, há uma viela, meio escondida por um contentor a transbordar de sacos do lixo que fedem a fraldas mijadas. Uma ratazana castanha observa-me, qual So-berano da Imundície. Percorro a viela, viro à direita, e agora encontro--me entre as sebes dos jardins traseiros de Peacock Street e o muro da repartição de finanças. Ao fundo, na última casa antes do valado onde passa a via-férrea, é onde o Vinny vive. Comprimo o corpo para passar por entre as ripas soltas e avanço a custo através do seu jardim trasei-ro. A relva e as ervas daninhas dão-me pela cintura e as ameixieiras já começam a dar fruto, apesar de a maior parte das ameixas terem como destinatários as vespas e os vermes porque, nas palavras do Vinny, não tem pachorra para as apanhar. É como a floresta d’A Bela Adormeci-da, que sufoca o castelo enquanto todos dormem durante cem anos. O Vinny deveria tratar do jardim, assim lho pediu a tia, mas ela vive lá para cima, em King’s Lynn, e nunca o vem visitar, além de que o Vinny é um tipo que curte andar de moto, não um jardineiro. Assim que esti-ver devidamente instalada, tratarei de domar esta selva. Precisa de um toque feminino, nada mais. Talvez comece hoje mesmo, depois de uma sessão de aprendizagem solitária à guitarra. Há um barracão a um can-to, parcialmente tapado por silvas, onde estão guardados utensílios de jardinagem e um cortador de relva. Girassóis, rosas, amores-perfeitos, cravos, alfazema e ervas aromáticas em vasos de terracota, é isso que irei plantar. Farei scones e tartes de ameixa e bolos de café e o Vinny vai ficar todo «Meu Deus, Holly, como é que eu vivi todo este tempo sem ti?». Todas as revistas dizem que a melhor maneira de conquistar o coração de um homem é pelo estômago. Ao pé do barril das águas da chuva, um arbusto roxo com ramos que se assemelham a dedos está prenhe de borboletas brancas, todo ele confetes e fitas; como se estivesse vivo.

A porta das traseiras nunca está trancada porque o Vinny perdeu a chave. As embalagens de piza e os copos de vinho da noite passada continuam na bancada, mas não há vestígios do pequeno-almoço — o Vinny deve ter adormecido e saiu a correr para o emprego, como é seu

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costume. Toda a casa está a precisar de uma boa arrumação, limpeza do pó e passagem com o aspirador. Mas, antes disso, um café e um cigarrinho — só comi metade da minha taça de Weetabix antes de a minha mãe começar a sua investida estilo Muhammad Ali. Esqueci-me de comprar cigarros a caminho daqui — escapou-se-me depois de ter encontrado o Brendan —, mas o Vinny tem sempre alguns de reserva na mesinha de cabeceira, de maneira que subo as escadas íngremes e en-tro no quarto dele. No nosso quarto, melhor dizendo. As cortinas ainda estão corridas e cheira a peúgas usadas, portanto deixo a luz entrar, abro a janela, dou meia-volta e apanho um susto de morte quando deparo com o Vinny na cama, com ar de quem se borrou todo.

— Sou eu, sou só eu — digo, meio apalermada. — Desculpa, eu... eu... eu... eu pensava que ’tavas no trabalho.

Ele leva as mãos ao coração e solta uma risada que não é bem risada, como se tivesse acabado de ser alvejado. — Chiça, Holly. Pensava que eras um ladrão!

Também eu soltei uma risada que não é bem risada. — ’Tás... em casa.— Fizeram cagada na escala de serviço. A nova secretária é uma au-

têntica nódoa. Portanto, o Kev deu-me uma ligadela a dizer que, afinal, tenho o dia livre.

— Boa — digo. — Isso é excelente, porque... tenho uma surpresa para ti.

— Altamente! Adoro surpresas. Mas, antes disso, podes pôr a cafe-teira ao lume? Desço já. Merda, o qu’é qu’eu estou pr’aqui a dizer? Já não há café. Sê uma querida e dá um saltinho à Staffa’s para comprar um frasco de Gold Blend. Pago-te, hum, quando voltares.

Antes preciso de dizer isto: — A minha mãe descobriu que tu e eu temos um caso, Vin.

— Ah? Ah. — Parece pensativo. — Certo. Como é que ela, hum...De repente sou assaltada pelo medo de ele não me querer. — Não

muito bem. Na verdade, passou-se completamente dos carretos. Disse que eu ’tava proibida de te voltar a ver e, tipo, ameaçou trancar-me na cave. Por isso, pus-me a andar. De maneira que...

O Vinny olha-me nervosamente, sem perceber o que ficou em suspenso. — De maneira que gostava de saber se podia... tipo... ficar aqui

contigo. Pelo menos por um tempinho.O Vinny engole em seco. — O-K... Certo. Estou a ver. Bom. OK.Não soa lá muito OK. — Isso é um sim, Vin?— Si-im. Claro. Sim. Mas agora preciso mesmo de tomar um café.— A sério? Oh, Vin! — O alívio é como um banho quente. Abraço-o.

Está transpirado. — És uma pessoa incrível, Vinny. ’Tava com receio de que pudesses não...

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— Não íamos permitir que uma gatinha sexy ronronante e com um pelo tão sedoso como tu ficasse a dormir debaixo da ponte, pois não? Mas, a sério, Hol, estou a precisar de café como o Drácula precisa de sangue, por isso... — Não termina a frase porque o estou a beijar, ao meu Vinny, ao meu namorado que esteve em Nova Iorque e deu um aperto de mão ao David Byrne, e o meu amor por ele faz tipo fsch, como uma panela de pressão, e empurro-o para trás e rebolamos por cima das colinas de um edredão, mas as colinas meneiam-se e a minha mão desvia o edredão e os meus olhos esbarram na Stella Yearwood, a minha melhor amiga. Completamente nua. Como se estivesse num sonho mau com sexo à mistura, com a diferença de que não é um sonho.

Limito-me a... olhar boquiaberta para o entrepernas dela. — Não há de ser assim tão diferente da tua, pois não?

A seguir fixo-me, pasmada, no Vinny, que está com ar de quem per-deu o controlo do esfíncter, soltando aquele seu risinho aflito: — Não é o que parece.

Com a maior das calmas, a Stella cobre-se com o edredão e diz ao Vinny: — Não sejas estúpido. Isto é precisamente o que parece, Holly. Íamos contar-te, mas, como está fácil de ver, os acontecimentos anteci-param-se a nós. A verdade é que levaste com os pés. O que não é agra-dável, mas acontece aos melhores; ou melhor, à maior parte das pessoas, portanto c’est la vie. Não te preocupes, não faltam Vinnys por aí. Dito isto, que tal poupares a tua energia para coisas mais úteis e pores-te a andar? Enquanto te resta alguma dignidade?

Quando finalmente paro de chorar, dou por mim num degrau frio dentro de um pequeno pátio onde se ergue um edifício com cinco ou seis pisos de tijolo burro e estreitas janelas com estores de cada lado. Er-vas daninhas perfuram as juntas das lajes e penugem de dentes-de-leão esvoaça num e noutro sentido como neve num globo. Depois de bater com estrondo a porta da casa do Vinny, os meus pés trouxeram-me até aqui, às traseiras do Gravesend General Hospital, onde o Dr. Marinus afastou Miss Constantin de mim quando eu tinha sete anos. Esmurrara o Vinny? A sensação que tive foi a de me mover em melaço. Não con-seguia respirar. Ele agarrou-me pelo pulso e doeu — ainda dói —, e a Stella pôs-se a ladrar: «Cresce e baza daqui, Holly. Isto é a vida real, não é um episódio da série Dinastia!», e depois saí disparada, batendo a porta da rua e correndo o mais depressa que conseguia, não sei para que lugar, para lugar nenhum, para onde quer que fosse... Sabia que, no momento em que parasse, desataria a soluçar numa crise de baba e ranho, e que uma das espiãs ao serviço da minha mãe me veria e lhe relataria o sucedido e isso seria a cereja no cimo do bolo dela. Porque

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a minha mãe tinha razão. Amava o Vinny como se ele fosse uma parte de mim e ele amava-me como se eu fosse uma pastilha elástica. Depois de perder o sabor, cuspiu-me, desembrulhou outra e meteu-a à boca; e não foi uma pessoa qualquer, foi a Stella Yearwood. A minha melhor amiga. Como é que ele foi capaz? Como é que ela foi capaz?

Para de chorar! Pensa noutra coisa qualquer...

Holly Sykes e as Cenas Maradas, Parte 1. Em 1976, tinha sete anos. Não choveu o verão todo e os jardins ficaram castanhos, e lembro-me de estar numa fila com o Brendan e a minha mãe ao fundo de Queen Street de baldes em punho para recolher água de tubos de emergên-cia — eis a extensão da gravidade da seca. Os meus pesadelos diurnos tiveram início nesse verão. Ouvia vozes na cabeça. Não furiosas, nem salivadas, nem sequer particularmente assustadoras, não no princí-pio... As Pessoas do Rádio, chamava-lhes, porque no começo pensava que as vozes provinham de um rádio ligado no quarto ao lado. Mas acontece que não havia rádio nenhum no quarto ao lado. Eram mais nítidas à noite, mas também as ouvia na escola, desde que se fizesse silêncio suficiente para tal — durante um teste, por exemplo. Três ou quatro vozes punham-se a murmurar ao mesmo tempo, e nunca conseguia distinguir o que diziam. O Brendan fez menção a hospitais psiquiátricos e homens de bata branca, por isso não me atrevi a contar a ninguém. A minha mãe estava grávida do Jacko, o meu pai andava atarefadíssimo com o pub, a Sharon tinha apenas três anos e o Brendan já nessa altura era parvo. Sabia que ouvir vozes não era normal, mas na verdade não estavam a causar-me nenhum mal, portanto talvez não passasse de mais um daqueles segredos com os quais as pessoas vivem.

Certa noite, tive um pesadelo com abelhas assassinas à solta no Cap-tain Marlow e acordei a transpirar. Aos pés da minha cama estava sen-tada uma senhora que disse: «Não te preocupes, Holly, está tudo bem», ao que eu respondi: «Obrigada, mãe», porque, na verdade, que outra pessoa poderia ser senão ela? Depois ouvi a minha mãe rir na cozinha ao fundo do corredor — isto foi antes de transferir o meu quarto para o sótão. Foi assim que percebi que tinha sonhado com a senhora na minha cama e acendi a luz para o comprovar.

E, de facto, não estava lá ninguém.«Não tenhas medo do que te vou dizer», disse a senhora, «mas sou

tão real como tu.»Não gritei nem entrei em parafuso. Estava a tremer, claro, mas, apesar

do medo, sentia que aquilo era uma espécie de quebra-cabeças ou um teste. Não estava ninguém no meu quarto, mas alguém estava a falar comigo. De modo que, com toda a calma que consegui convocar, per-

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guntei à senhora se era um fantasma. «Não sou um fantasma», respon-deu a senhora que não estava lá, «mas alguém que visita a tua mente. Por isso não me consegues ver.» Perguntei à minha visita como se cha-mava. Miss Constantin, disse ela. Afirmou ter afugentado as Pessoas do Rádio, porque eram uma distração, acrescentando que esperava que eu não me importasse. Respondi-lhe que não. Miss Constantin disse que tinha de ir embora mas que adoraria voltar em breve porque eu era «uma menina singular».

Depois calou-se. Demorei uma eternidade a adormecer, mas quando isso aconteceu, senti que, de certa forma, tinha feito uma amizade.

E agora? Regresso para casa? Preferia espetar alfinetes nas gengivas. Se o fizer, a minha mãe vai preparar-me uma fumegante tarte de mer-da, a pingar molho de merda, para depois ficar ali especada, toda cheia de si, a ver-me comer cada garfada merdosa, até ao fim dos tempos, e se em momento algum me atrever a algo mais do que sim-senhora--não-senhora-obedeço-com-todo-o-gosto, ela trará à baila o Incidente Vinny Costello. OK, não estou a viver em Peacock Street, mas isso não me impede de voltar para casa, pelo menos durante o tempo suficiente para provar à minha mãe que já tenho idade para cuidar de mim e, dessa forma, fazer com que ela pare de me tratar como se eu tivesse sete anos. Tenho dinheiro que chegue para me alimentar por uns tempos e a temporada quente parece ter vindo para ficar, pelo que encararei a si-tuação como uma antecipação das minhas férias de verão. Que se lixem os exames, que se lixe a escola. A Stella vai dar a volta ao texto de modo a dar a entender que me comportei como uma patética lapa dada a his-terias que não foi capaz de aceitar o facto de o namorado se ter saturado dela. Na manhã de segunda-feira, pelas nove horas, a Holly Sykes será o Motivo de Chacota Oficial de Windmill Hill. Tão certo como dois e dois serem quatro.

A sirene de uma ambulância aproxima-se, mais urgente, ecoa em redor do pátio e para, tipo, como se tivesse deixado uma frase a meio... Ajeito a mochila cilíndrica e levanto-me. Certo, para onde agora? Todas as adolescentes fugitivas em Inglaterra vão direitinhas para Londres, idealizando que à sua espera estará um caça-talentos ou uma fada madrinha, mas eu vou no sentido oposto, paralelamente ao rio, na direção dos pântanos de Kent: quando se é criado num pub, fica-se a saber exatamente que tipo de caça-talentos e fadas madri-nhas abordam as adolescentes fugitivas que chegam a Londres. Talvez consiga encontrar um celeiro ou um chalé de férias desocupado onde possa passar uns dias. Talvez assim aconteça. Portanto, lá sigo eu, contornando o hospital até à fachada. O parque de estacionamento

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está pejado de para-brisas que reluzem sob a fulgente luz do Sol. Na fria e sombria zona da receção do hospital, vejo filas de pessoas a fu-mar, à espera de notícias.

Lugares curiosos, os hospitais...

Holly Sykes e as Cenas Maradas, Parte 2. Passaram-se algumas se-manas e comecei a pensar que Miss Constantin não tinha passado de um sonho, pois não tornou a aparecer. Excetuando o facto de não co-nhecer aquela palavra que ela me tinha chamado, «singular»... Procu-rei o seu significado e perguntei-me como é que me tinha entrado na cabeça sem que Miss Constantin a tivesse lá posto. Ainda hoje não sei a resposta para essa pergunta. Mas mais tarde, numa noite de setembro, depois do regresso às aulas e de eu já ter completado oito anos, acor-dei e percebi que ela estava ali, e senti mais satisfação do que medo. Agradava-me a ideia de ser singular. Perguntei a Miss Constantin se era um anjo e ela soltou uma breve risadinha, dizendo que não, que era hu-mana, tal como eu, mas que tinha aprendido a sair do próprio corpo para ir visitar os amigos. Perguntei-lhe se eu tinha passado a fazer parte do seu grupo de amigos, ao que ela replicou: «Gostavas que assim fos-se?», e eu respondi sim, por favor, que era a coisa que eu mais queria, ao que ela retorquiu: «Então sê-lo-ás.» Perguntei-lhe também de onde era e respondeu que era da Suíça. Para me exibir, perguntei se a Suí-ça era o país onde o chocolate tinha sido inventado, ao que ela disse que eu era uma das fofuras mais inteligentes que alguma vez conhecera. A partir daí, passou a visitar-me todas as noites, durante alguns minutos, e eu contava-lhe coisas sobre como me tinha corrido o dia, e ela ouvia-me e mostrava-se solidária ou fazia por me animar. Estava sempre do meu lado, contrariamente ao que parecia acontecer com a minha mãe e o Brendan. Também fazia perguntas a Miss Constantin. Às vezes ela dava-me respos-tas diretas, como quando lhe perguntei de que cor era o seu cabelo e ela me disse «louro platinado», mas, na maior parte das vezes, esquivava-se às minhas perguntas dizendo: «Não vamos desvendar todo o mistério de uma só vez, está bem, Holly?»

Depois, certo dia, a rufia mais dotada da nossa escola, a Susan Hil-lage, apanhou-me enquanto fazia o trajeto da escola para casa a pé. O pai dela era um soldado do exército em Belfast e, pelo facto de a minha mãe ser irlandesa, pôs-se de joelhos em cima da minha cabeça dizen-do que não me soltava a menos que eu admitisse que armazenávamos o nosso carvão na banheira e adorávamos o IRA. Recusei-me a fazê-lo, de modo que ela atirou a minha mochila para a copa de uma árvore e afirmou que me ia fazer pagar pelos camaradas do pai que tinham sido mortos em Belfast, acrescentando que, se eu contasse alguma coisa a

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alguém, o pelotão do pai atearia fogo ao meu pub e toda a minha família ficaria esturricada e a culpa disso seria toda minha. Não era nenhuma lorpa, mas não passava de uma catraia, e a Susan Hillage tinha acertado em cheio nos meus pontos fracos. Não comentei nada com a minha mãe nem com o meu pai, mas estava atemorizadíssima em relação ao que poderia acontecer no dia seguinte quando voltasse para a escola. No entanto, nessa noite, quando acordei no aconchegante refúgio da minha cama e ouvi a voz de Miss Constantin, não era só a sua voz que ocupava o espaço — ela estava ali, em pessoa, sentada no cadeirão aos pés da minha cama a dizer: «Toca a abrir os olhos, dorminhoca.» Era jovem e tinha um cabelo branco-dourado, e o que seriam lábios vermelho-rosados adquiriam um tom roxo-enegrecido ao luar; vestia uma espécie de túnica. Era belíssima, como um quadro. À custa de al-gum esforço, consegui perguntar-lhe se estava a sonhar e ela respondeu: «Estou aqui porque a minha menina brilhante e singular estava muito triste esta noite e queria saber o motivo.» Portanto contei-lhe o episó-dio da Susan Hillage. Miss Constantin não disse uma única palavra até eu terminar, altura em que afirmou sentir desprezo por rufias de toda a espécie e perguntou se eu queria que ela resolvesse a situação. Respon-di-lhe sim, por favor, mas, antes de poder perguntar-lhe o que quer que fosse, ouvi passos aproximarem-se no corredor e o meu pai abriu a por-ta, e a luz do patamar incidiu-me nos olhos, encandeando-me. Como ia eu explicar a presença de Miss Constantin no meu quarto, tipo, à uma da madrugada? Mas o meu pai agiu como se ela nem sequer lá estivesse. Limitou-se a perguntar-me se eu estava bem, dizendo que tinha ouvido uma voz, e, de facto, Miss Constantin não estava ali. Disse-lhe que pro-vavelmente estaria a sonhar e teria falado durante o sono.

E acabei por me convencer de que assim era. Vozes são uma coisa, mas mulheres em túnicas sentadas aos pés da minha cama? Na manhã seguinte, como sempre, fui para a escola, mas não vi a Susan Hillage. Aliás, ninguém a viu. O nosso diretor chegou atrasado e em grande afã a uma reunião para a qual foram convocados professores e alunos e anunciou que a Susan Hillage tinha sido atropelada por uma carrinha enquanto seguia de bicicleta para a escola, que o seu estado era muito grave e devíamos rezar pela sua recuperação. Ao ouvir tudo isto, senti--me paralisada e gélida, e foi tal a quantidade de sangue que se me escapuliu da cabeça que o pavilhão como que se dobrou em redor do meu corpo e, depois disso, não me lembro sequer de ter caído no chão.

Hoje o Tamisa está agitado e azul-terroso e sigo a pé, passo atrás de passo atrás de passo, para longe de Gravesend, na direção dos pân-tanos de Kent, e, quando dou por mim, são onze e meia e a cidade é

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uma maqueta de si própria, bem lá ao longe, atrás de mim. O vento desmancha as nuvens que se projetam das chaminés da fábrica da Blue Circle, como uma sucessão de lenços a sair do bolso de um ilusionis-ta. À minha direita, a A2 ruge do outro lado dos pântanos. O Velho Mr. Sharkey afirma que foi construída por cima de um caminho feito pelos romanos no tempo dos romanos, e que a A2 continua a ser o itinerário para chegar a Dover, onde se apanha o barco para o conti-nente, tal como faziam os romanos. Postes de alta tensão estendem--se em dupla fila. Lá no pub, o meu pai deve estar a aspirar o bar, a menos que a Sharon se tenha voluntariado para ficar com as minhas três libras. A manhã pôs-se sufocante e penosa, como uma aula de Matemática, e começo a sentir dor nos olhos por causa do sol. Deixei os óculos escuros na cozinha do Vinny, pousados no escorredor da louça. Catorze e noventa e nove, foi o que me custaram. Comprei-os numa altura em que estava com a Stella, que me disse que tinha vis-to um par igualzinho em Carnaby Street ao triplo do preço, portanto achei-os uma pechincha. Depois, imagino-me a estrangular a Stella e as minhas mãos e os meus braços ficam rijos, como se estivesse realmente a fazê-lo.

Tenho sede. Por esta altura, a minha mãe já terá falado ao meu pai do motivo pelo qual a Holly se pôs a andar em pleno acesso de fúria adolescente, mas aposto o que quiserem que distorceu tudo. O meu pai estará a fazer piadas acerca da «Rixa das Mulheres» e o PJ e o Nipper e o Dex Balofo estarão a fazer que sim com a cabeça e a exibir sorrisos rasgados como bando de parvalhões que são. O PJ fingirá que lê o Sun. «Olhem o que está aqui escrito: “Astrónomos da Universidade do Con-dado das Balelas acabaram de encontrar novas provas que atestam que os adolescentes são, de facto, o centro do universo.”» Todos desatarão a casquinar e o Bom Velho Dave Sykes, o proprietário de um estabeleci-mento querido acima de todos os outros, juntar-se-á a eles com o seu riso tens-tanta-graça-que-estou-capaz-de-me-mijar-pelas-calças-abaixo. Veremos se na quarta-feira, quando perceberem que não voltei para casa, continuarão a rir.

Mais à frente, na lonjura, homens pescam.

Cenas Maradas, Último Ato. Mesmo enquanto era (mais ou menos) transportada para a enfermaria da escola, consegui aperceber-me do regres-so das Pessoas do Rádio. Às centenas, todas a sussurrar em simultâneo. Fiquei apavorada, mas não tanto quanto perante a ideia de ter matado a Susan Hillage. De maneira que falei à enfermeira das Pessoas do Rádio e de Miss Constantin. A senhora, tão querida, pensou que eu estava em choque, na melhor das hipóteses, ou pílulas, na pior, pelo que telefonou à

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minha mãe, que por sua vez contactou o nosso médico de família, e mais tarde nesse mesmo dia fui vista por um otorrino no Gravesend General Hospital. Não me diagnosticou nenhum problema, mas sugeriu que con-sultasse um pedopsiquiatra que conhecia dos tempos em que trabalhara no Great Ormond Street Hospital, em Londres, e era especialista em casos como o meu. A minha mãe pôs-se logo com cenas do tipo «A minha filha não é maluca!», mas o médico assustou-a ao mencionar a palavra «tumor». Depois daquela que foi a pior noite da minha vida — rezei a Deus que impedisse o regresso de Miss Constantin, mantive a Bíblia guardada por baixo da almofada, mas, graças às Pessoas do Rádio, mal consegui pregar olho —, recebemos um telefonema do otorrino a informar que o amigo dele, o especialista, deveria estar em Gravesend dentro de uma hora e a perguntar se a minha mãe podia levar-me ao hospital naquele momento.

O Dr. Marinus foi o primeiro chinês que conheci, excluindo aqueles que trabalham no restaurante Thousand Autumns, onde eu e o Bren-dan íamos buscar comida numa ou noutra altura em que a minha mãe se sentia demasiado cansada para cozinhar. O Dr. Marinus expressava--se de forma afetada no seu inglês irrepreensível, mas num tom muito suave, pelo que era necessário prestar-lhe a máxima atenção para per-ceber tudo o que dizia. Era baixo e magricela mas havia algo nele que dava a impressão de que preenchia a sala. Começou por fazer-me per-guntas sobre a escola e a família e esse tipo de cenas, e depois centrou-se na questão das vozes que eu ouvia. A minha mãe pôs-se logo a dizer: «A minha filha não é maluca, se é isso que está a insinuar. Apenas está atordoada da pancada que sofreu na cabeça.» O Dr. Marinus disse à minha mãe que concordava, que eu não estava de todo louca, mas que o cérebro podia ser um lugar ilógico. Para poder excluir a suspeita da existência de um tumor, ela teria de me deixar responder às perguntas sozinha. De modo que lhe falei das Pessoas do Rádio e da Susan Hilla-ge e de Miss Constantin. A minha mãe ficou novamente toda agitada, mas o Dr. Marinus assegurou-lhe que não era incomum a ocorrência de alucinações auditivas — «pesadelos diurnos» — em raparigas da mi-nha idade. Disse-me que o acidente da Susan Hillage era uma grande coincidência, e que as coincidências, mesmo daquela dimensão, eram um fenómeno que naquele preciso instante estava a acontecer a pessoas em todo o mundo: tinha chegado a minha vez, nada mais do que isso. A minha mãe perguntou se havia algum medicamento que pusesse fim aos tais pesadelos diurnos, e lembro-me de o Dr. Marinus dizer que, antes de seguirmos por essa via, gostaria de experimentar uma técni-ca mais simples do «Velho País». Os princípios eram os mesmos da acupunctura, explicou, mas sem o recurso a agulhas. Pediu à minha mãe que apertasse um ponto específico do meu dedo médio — assinalou-o

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com uma esferográfica — e depois colocou o polegar no centro da mi-nha testa. Como um artista que acrescentasse uma pequena porção de tinta à sua tela. Os meus olhos fecharam...

... e as Pessoas do Rádio desapareceram. Não no sentido de se terem calado, mas de terem desaparecido mesmo. A minha mãe percebeu, pela expressão no meu rosto, o que tinha acabado de acontecer, e ficou tão atónita e aliviada como eu. Virou-se para o médico: «É só isto? Não vai precisar de ser entubada? Nem de tomar comprimidos?» Ao que o Dr. Marinus disse que sim, que em princípio seria suficiente para resolver o problema.

Perguntei se também Miss Constantin tinha desaparecido para sempre.O médico respondeu que sim, que era expectável que assim fosse. Fim de história. Saímos, fui crescendo, e nem as Pessoas do Rádio

nem Miss Constantin tornaram a aparecer. Assisti a alguns documen-tários e cenas do género sobre como a mente nos prega partidas, e agora sei que Miss Constantin não passava de uma espécie de amiga imaginá-ria com os fusíveis queimados, como o coelhinho saltitante da Sharon. O acidente da Susan Hillage não passou de uma brutal coincidência, tal como me disse o Dr. Marinus. Não morreu, mas mudou-se para Rams-gate, o que, aos olhos de algumas pessoas, é basicamente a mesma coisa. O Dr. Marinus aplicou-me uma técnica qualquer de hipnotismo, como aquelas cassetes que se podem comprar para deixar de fumar. A partir desse dia, a minha mãe deixou de usar a palavra «chinoca», e ainda hoje se passa completamente com quem o faça. «É “chinês”, não “chinoca”», diz-lhes, «e são os melhores médicos do Sistema Nacional de Saúde.»

Segundo o meu relógio, é uma da tarde. Atrás de mim, bem ao longe, homens-palito pescam nos baixios em frente ao forte de Shornemead. Mais adiante está uma saibreira com um enorme cone de pedra e um tapete rolante que transporta areia argilosa para o interior de uma barca. Também consigo ver o forte de Cliffe, com janelas como órbitas ocas. Nas palavras do Velho Mr. Sharkey, serviu de albergue a baterias antiaé-reas durante a guerra, e sempre que os habitantes de Gravesend ouviam o troar dos colossais canhões, sabiam que dispunham de sessenta segun-dos — no máximo — para se refugiarem nos seus abrigos antiaéreos, debaixo das escadas ou ao fundo do jardim. Quem me dera que neste momento uma bomba caísse numa certa casa em Peacock Street. Mas a verdade é que estão a morfar piza como dois desalmados — a alimenta-ção do Vinny é feita à base de piza porque, quando se trata de cozinhar, a sorna fala mais alto. Aposto que se estão a rir de mim. Pergunto-me se a Stella terá passado lá a noite. Duas pessoas apaixonam-se e isso é sufi-ciente, pensava eu. Estúpida! Pontapeio uma pedra que não é uma pedra,

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mas um pequeno afloramento rochoso que me esmaga o dedo grande. A dor traça uma linha que se estende veloz até ao cérebro. E agora os meus olhos ardem e vertem água — de onde diabo vem toda esta água? O único líquido que ingeri hoje foi quando lavei os dentes e comi os meus cereais Weetabix com leite. A minha língua parece aquela cena dos oásis que se usam para fazer arranjos florais. A minha mochila, por causa da fricção, começa a provocar-me ardência no ombro. O meu coração é uma cria de foca agredida à mocada. O meu estômago deve estar vazio, mas ainda me sinto demasiado devastada para o sentir. No entanto, não vou dar meia-volta e regressar para casa. Raios me partam se vou.

Pelas três horas, toda a minha cabeça está desidratada, não apenas a boca. Nunca caminhei tanto na minha vida, creio. Não vislumbro qualquer sinal de uma loja ou mesmo de uma casa onde possa pedir um copo com água. Depois reparo numa mulher pequena a pescar na extre-midade de uma espécie de pontão, como se a sua figura tivesse sido de-senhada num lugar afastado onde ninguém a conseguirá ver. Está à dis-tância de um longo arremesso de uma pedra, mas percebo que despeja um líquido de uma garrafa-termo para uma caneca. Em circunstâncias normais, jamais faria isto, mas a minha sede é tanta que desço o talude e avanço ao longo do pontão ao seu encontro, dando passos pesados e ruidosos sobre as pranchas de madeira de modo a não correr o ris-co de a apanhar de surpresa, sobressaltando-a. — Desculpe, mas por acaso não tem um bocadinho de água que me possa dispensar? Por favor?

Nem sequer olha para trás. — Chá frio. Pode ser? — A sua voz rou-ca parece proveniente de um qualquer lugar quente.

— Claro que pode, obrigada. Não sou esquisita.— Então, se não és esquisita, serve-te.Encho a caneca, sem pensar em germes ou coisa que o valha. Não

é chá normal mas é a coisa mais refrescante que alguma vez bebi, pelo que deixo o líquido rumorejar em círculos pela boca. Agora olho-a com atenção pela primeira vez. Olhos que de certa maneira lembram os de um elefante, encaixados num rosto velho povoado de rugas, cabelo curto e grisalho, uma camisa safári imunda e um chapéu de abas largas de um material semelhante a couro que parece ter cem anos. — É bom? — pergunta.

— Iá — respondo. — Sabe a erva.— É chá verde. Ainda bem que não és esquisita.Pergunto: — Desde quando é que existe chá verde?— Desde que os arbustos produzem folhas dessa cor.Um chape de um peixe. Vejo onde estava, mas não onde está.

— A pesca ’tá a correr bem?

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Uma pausa. — Cinco percas. Uma truta. Tem sido uma tarde pouco produtiva.

Não vejo nenhum balde nem nada que se pareça. — Onde é que ’tão?Uma abelha aterra-lhe na aba do chapéu. — Eu deito-os à água.— Se não quer os peixes, porque é que os apanha?Passam-se alguns segundos. — Pela substância da conversa. Olho em redor: o passadiço, um silvado, um matagal e um trilho

estorvado por ramos. Só pode estar a mangar. — Não ’tá aqui ninguém.A abelha está satisfeita no seu poiso, mesmo quando a mulher se

move para puxar a linha. Desvio-me para o lado enquanto ela verifica se a isca se mantém no anzol. Gotas de água esparrinham as pranchas sedentas do pontão. Ao embater na margem, a água do rio produz um ruído semelhante a uma sorvedela e agita-se numa sucessão de chapes em redor das cenas de madeira tipo pilares. Ainda sentada, com um hábil movimento súbito do pulso, a velhota arremessa o chumbo em voo serpeante, o carreto emite o seu ruído de cítara e a extremidade do fio aterra no mesmo sítio de onde fora puxado. Círculos flutuam con-centricamente. Numa serenidade imensa...

Depois faz algo verdadeiramente estranho. Saca do bolso um pau de giz e, numa das pranchas junto ao pé, escreve: O MEU. Na prancha imediatamente a seguir, escreve: NOME. Depois, na prancha contígua, grafa a palavra COMPRIDO. Em seguida, a velhota guarda o giz e torna a concentrar-se na pesca.

Espero por uma explicação, que não aparece. — O que é isso?— Isso o quê?— O que acabou de escrever.— São instruções.— Instruções para quem?— Para alguém a quem serão úteis daqui a muitos anos.— Mas ’tá escrito a giz. Vai-se apagar com o tempo.— Do pontão, sim. Mas não da tua memória.OK, confirma-se que é completamente chanfrada. Mas prefiro não

lho dizer porque gostava de beber um pouco mais daquele chá verde.— Bebe o resto do chá, se quiseres — diz. — Daqui até Allhallows-

-on-Sea, tu e o rapaz não vão encontrar nenhum estabelecimento.— Muito obrigada. — Encho a caneca. — Tem a certeza? Já só resta

este bocado.— Amor com amor se paga. — Lança-me um olhar astuto de sniper.

— Talvez venha a precisar de asilo.Asilo? Ela precisa de um asilo psiquiátrico? — Como assim?— De um refúgio. Um esconderijo. Caso a Primeira Missão fracasse,

pois receio bem que vá ser esse o caso.

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Os loucos são criaturas difíceis. — Tenho quinze anos. Não tenho nenhum asilo, nem, hum, nenhum esconderijo. Lamento.

— És a pessoa ideal. És inesperada. O meu chá pelo teu asilo. Ne-gócio fechado?

O meu pai costuma dizer que a melhor maneira de lidar com os bêbados é não os contrariar e depois pô-los na rua, e se calhar os lou-cos são uma espécie de bêbados sem nenhum momento de sobriedade. — Negócio fechado. — A velhota faz que sim com a cabeça e eu bebo até o sol não ser mais do que um brilho mortiço através da base fina da caneca de plástico.

A cota torna a rodar a cabeça, fixando-se em frente. — Obrigada, Holly.Retribuo-lhe o agradecimento e regresso ao chão seco. Depois dou

meia-volta e avanço ao seu encontro uma segunda vez. — Como é que sabe o meu nome?

Não se vira. — Qual é o meu nome de batismo? Que jogo estúpido, este. — Esther Little.— E como é que tu sabes o meu nome?— Porque... Porque ainda agora mo disse. — Terá mesmo dito?

Com certeza que o terá dito.— Então está tudo esclarecido. — E foram essas as últimas palavras

de Esther Little.

Por volta das quatro da tarde, chego a uma praia pejada de seixos jun-to a um quebra-mar de madeira. Descalço as minhas Doc Martens. Tenho uma bolha esquisita com’ó caraças no dedo grande, semelhante a uma amora silvestre pisada. Nham, nham. Tiro da mochila cilíndrica o meu LP Fear of Music, arregaço as calças de ganga e entro na água até esta me ficar à altura dos joelhos. O rio encurvado está frio como água da torneira e o Sol fulgurante, embora não tanto como quando deixei a velhota louca a pescar. A seguir, convocando toda a minha força, atiro o LP como se fosse um disco voador. Não é particularmente aerodinâmico, pelo que descreve um voo ascendente e a capa interior que envolve o vinil sai pela abertura, embatendo na água com um chape. A capa preta do álbum cai como um pássaro ferido e flutua durante algum tempo. Lágrimas atrás de lágrimas escorrem-me dos olhos doridos e imagino-me a avançar através da água até ao local onde o disco se afunda agora em espiral, descendo a inclinação no leito do rio, caminhando por entre as trutas e as percas até às bicicletas enferrujadas e aos ossos de piratas afogados e aviões alemães e alianças tiradas dos dedos e deitadas fora e sei lá mais o quê.

Porém, faço o caminho de volta para a margem e deito-me numa cama de seixos quentes, ao lado das botas. Neste momento, o meu pai estará no piso superior com os pés repousados no sofá: «Acho que vou

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dar uma ligadela a esse tal Costello, Kath», dirá. Em resposta, a minha mãe mergulha o cigarro no café frio depositado no fundo da caneca. «Não, Dave. É precisamente isso que Sua Senhoria quer. Ignora a Ati-tude de Imposição dela o tempo suficiente e verás que vai começar a dar valor a tudo o que fazemos por ela...»

Mas, ao final do dia de amanhã, a minha mãe vai começar a ficar preocupada com a questão da escola na segunda-feira, porque quando lhe perguntarem onde é que eu estou e por que razão não compareci aos exames, a arrogância dela face à minha Atitude de Imposição vai descer a pique. Seguirá disparada até à casa do Vinny, a deitar fogo pe-las ventas. Vai desancá-lo — boa! —, mas continuará sem saber onde estou. Está decidido. Acampo duas noites e depois vejo como me sinto. Desde que não compre cigarros, as minhas 13,85 libras em moedas são suficientes para dois dias de uma dieta à base de sandes de batatas fritas, maçãs e bolachas Rich Tea. Se chegar a Rochester, talvez levante algum dinheiro do TSB de maneira a ampliar as minhas curtas férias.

Um gigantesco cargueiro que se desloca no sentido da corrente faz res-soar a sua buzina. No casco cor de laranja está escrito Estrela de Riga a le-tras brancas. Pergunto-me se Riga será um lugar ou outra coisa qualquer. A Sharon e o Jacko de certeza que saberiam. Escancaro a boca num valente bocejo, deito-me nos seixos que produzem estalidos e ponho-me a observar as ondas provocadas pelo enorme navio embaterem nas pedras em baixo.

Meu Deus, assim de repente fiquei com uma pedrada de sono brutal...

— Sykes? ’Tás viva? Ei... Sykes. — A tarde instala-se e na minha cabeça perguntas desfilam em tropel: Onde estou? e Porque é que estou des-calça? e Por que diabo está o Ed Brubeck a tocar-me no braço? Afasto-o dele num movimento rápido, levanto-me e palmilho apressadamente uns quantos metros ao mesmo tempo que as plantas dos meus pés fazem ai ai ai de cada vez que tocam nos seixos quentes e depois bato com a cabeça na estrutura do quebra-mar.

O Ed Brubeck não se mexeu. — Ui, essa doeu.— Eu sei que doeu, raios. Foi na porra da minha cabeça.— Queria só ter a certeza de que não ’tavas morta.Esfrego a cabeça. — Pareço-te morta?— Bom, sim, há uns segundos parecias, um bocadinho.— Pois, mas não ’tou. — Vejo a bicicleta dele deitada ao seu lado

com as rodas ainda a girar. A cana de pesca continua atada ao quadro. — ’Tava só... a passar pelas brasas.

— Não me digas que vieste da cidade até aqui a pé, Sykes.— Ná, vim numa bola-canguru mas a filha da mãe pinchou prò lado

e fugiu-me das mãos.

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— ’Tou a ver. Nunca te imaginei como o tipo de pessoa dada a ati-vidades ao ar livre.

— E eu nunca te imaginei como alguém do tipo Bom Samaritano.— ’Tamos sempre a aprender. — Uma ave emite os seus trinados

marados cerca de dois quilómetros acima. O Ed Brubeck puxa o cabelo preto para trás, destapando os olhos. Tem uma pele tão bronzeada que passaria por turco ou coisa que o valha. — E então, aonde é que vais?

— Para bem longe daquela merda de lugar, tão longe quanto os meus pés me conseguirem levar.

— Oh, diabo. O que é que a danada da cidade de Gravesend te fez desta vez?

Aperto os atacadores das Doc Martens. A bolha dói-me. — E tu, aonde é que vais?

— O meu tio vive pr’àquelas bandas. — Acena com o braço para a zona afastada do rio. — Não tem grande mobilidade e ’tá quase cego, por isso vou fazer-lhe um bocado de companhia. ’Tava a pedalar em direção a Allhallows para pescar um coche e foi aí que te vi e...

— Pensava que tinha morrido. O que, pelos vistos, não aconteceu. Não te prendas por minha causa.

Chama ao rosto uma expressão tu-é-que-sabes e sobe o talude.Grito-lhe: — Qual é a distância daqui até Allhallows, Brubeck?Ergue a bicicleta no ar. — Dez quilómetros, mais ou menos. Queres

boleia de bicla?Penso no Vinny e na sua Norton e abano a cabeça. O Brubeck monta

na bicicleta, todo armante, e zarpa. Agarro num punhado de pedras e atiro-as com força para a água, furiosa.

Um Ed Brubeck do tamanho de um grão de areia desaparece por detrás de um maciço de árvores pontiagudas bem lá ao longe. Não olhou para trás. Agora arrependo-me de não ter aceitado a sua proposta. Sinto os joe-lhos perros e os meus pés são dois colossais latejos e os tornozelos parecem ter sido perfurados por minúsculos berbequins. A este ritmo, percorrer dez quilómetros vai demorar-me uma eternidade. Mas o Ed Brubeck é um gajo, tal como o Vinny é um gajo, e todos os gajos são armas de esperma. O meu estômago ronca de fome e o corpo queixa-se de sede. O chá verde é ótimo enquanto o bebemos, mas faz-nos mijar como um cavalo de cor-rida, e agora tenho a sensação de que uma ratazana moribunda me cagou na boca. Sim, o Ed Brubeck é um gajo, mas não é um idiota chapado. Na semana passada, envolveu-se numa discussão com Mrs. Binkirk, a nos-sa professora de Religião e Moral, e foi chamado ao gabinete de Mr. Nixon por lhe ter dito que era a «Fanática do Ano». Um insulto de adulto, diga-se. As pessoas são icebergues, apenas com um pouco à mostra e muita coisa

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escondida. Tento não pensar no Vinny, mas é o que faço, e lembro-me de como ainda esta manhã sonhei formar uma banda com ele. Mais à fren-te, de detrás do maciço de árvores pontiagudas, surge o Ed Brubeck, do tamanho de um ponto, a pedalar no sentido inverso, onde me encontro. Provavelmente entendeu que é demasiado tarde para pescar e está de re-gresso a Gravesend. A sua figura vai crescendo e crescendo até adquirir o tamanho normal, e, num gesto de exibicionismo, trava com a roda traseira a derrapar, lembrando-me que ainda é um rapaz, para além de ser gajo. Os olhos dele são brancos no rosto escuro. — Porque é que não montas, Sykes? — Dá uma palmada no selim. — Allhallows fica a quilómetros da-qui. Vai anoitecer antes de lá chegares.

Avançamos pelo caminho a um bom ritmo com a bicicleta a vacilar. De cada vez que transpomos uma lomba, o Brubeck diz: «’Tás bem?», ao que eu respondo: «Iá.» A brisa do mar e a brisa causada pela bicicleta en-tram-me pelas mangas e acariciam-me as mamas como um Sr. Cócegas ta-rado. A T-shirt do Brubeck cola-se-lhe às costas por causa do suor. Recuso--me a pensar no suor do Vinny e no suor da Stella... O meu coração racha de novo e dele goteja uma gosma que arde, como Betadine pomada numa esfoladela. Agarro-me ao quadro da bicla com ambas as mãos, mas depois o piso fica mais irregular e mantenho o equilíbrio enganchando um po-legar numa das presilhas das calças de ganga do Brubeck. É provável que o meu gesto o esteja a deixar com tesão, mas o problema é dele, não meu.

Cordeiros cobertos de pelagem fofa mordiscam erva. Ovelhas ob-servam-nos como se planeássemos servir-lhes as crias numa bandeja acompanhadas com couve e puré.

Assustamos aves pernaltas de bicos em forma de colher: apressam-se a fugir ao longo do rio. As pontas das asas tocam na água, desenhando círculos que se alastram concentricamente.

Aqui o Tamisa transforma-se em mar e o Essex transforma-se em ouro. Aquela mancha é a ilha de Canvey; mais adiante, Southend.

O canal da Mancha é azul-esferográfica; o do céu é idêntico ao giz de bilhar. Trepidamos através de uma ponte pedonal por cima de um riacho cor de ferrugem, meio pântano, meio duna, entrando em terra firme: BEM-VINDO À ILHA DE GRAIN.

Convém, no entanto, notar que não é propriamente uma ilha. Sê-lo-á, porventura, de vez em quando.

Aquela ave dos trinados marados seguiu-nos. Só pode.

Allhallows-on-Sea é basicamente um enorme parque de férias que se derrama até à costa a partir de uma povoação que nem é nem deixa de ser. Tudo se resume a renques de caravanas e daquelas cabinas oblon-

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gas pousadas em pequenas estacas a que nos filmes americanos dão o nome de caravanas residenciais. Veem-se putos seminus e bebés em pelota em grande algazarra, a dispararem pistolas de água e a jogarem ténis de corda e a correrem de um lado para o outro; mães tocadas pelo álcool a revirarem os olhos a pais de pele rosada pelo sol que as-sam salsichas em churrascos. Tento comer o fumo. — Quanto a ti, não sei — diz Brubeck —, mas eu cá ’tou esfaimado.

Num tom excessivo, replico: — Só um nadinha. — De maneira que ele estaciona a bicicleta ao pé da casa de fish and chips, contígua ao Mi-nigolfe Excitante do Molengão Ambulante. O Brubeck pede uma dose de bacalhau e batatas fritas, que custa duas libras, mas eu peço apenas batatas fritas porque só custam cinquenta pence.

Mas depois o Brubeck diz ao tipo atrás do balcão: — São duas doses de bacalhau com batatas fritas, por favor. — Em seguida, estende-lhe uma nota de cinco libras e o tipo olha-me de soslaio e dirige ao Brubeck aquele olhar de belo-gesto-rapaz que os homens trocam entre si, o que me deixa abespinhada porque eu e o Brubeck não somos namorados e raios me partam se algum dia o seremos, por muito bacalhau panado que me ofereça. O Brubeck também pede duas latas de Coca-Cola e apercebe-se da expressão no meu rosto. — É só fish and chips, sem qualquer compromisso.

— Podes crer que não há nenhum compromisso. — As palavras saem-me mais irritadas do que tencionava. — Mas obrigada.

Passamos pela última caravana residencial e caminhamos um pouco mais até alcançarmos um abrigo em cimento, mesmo no li-mite das dunas. Uma baforada de mijo atravessa a abertura estreita, mas o Brubeck trepa para a cobertura baixa e plana. — Isto é uma casamata — diz. — Aqui eram posicionadas metralhadoras durante a guerra, para o caso de uma invasão alemã. Ainda há às centenas por aí, se prestares bem atenção. Se pensarmos bem, não existe me-lhor conceito de paz: ninhos de metralhadoras utilizados como mesas de piquenique. — Olho para ele: jamais alguém ousaria dizer algo tão perspicaz na escola. Trepo também e detenho-me na paisagem. Southend situa-se do outro lado da foz do Tamisa, com mais de dois quilómetros de largo, e, na direção oposta, consigo ver as docas de Sheerness, na ilha de Sheppey. Depois abrimos as nossas Coca-Colas e puxo a argola da tampa com cuidado para mais tarde a introduzir na lata. Podem ferir as patas de um cão. O Brubeck estende-me a sua e abro-a com um ruído seco, como se fosse uma garrafa de vinho, mas não o olho nos olhos, não vá ele interpretar-me mal, após o que bebemos. O meu primeiro trago é um buuum de efervescência gelada. As batatas fritas estão quentes e avinagradas e a massa queima-nos os dedos enquanto a puxamos para extrair as grossas lascas de bacalhau.

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— ’Tá uma delícia — digo. — Bom proveito.— Não tão bom como os das casas de fish and chips em Manches-

ter — diz o Brubeck.Um papagaio de papel desenha as suas acrobacias no azul com a sua

cauda cor-de-rosa.

Encho os pulmões com um dos Dunhills do Brubeck. Bem melhor, agora. Depois penso na Stella Yearwood e no Vinny a fumarem os Marlboros dele na cama e, de repente, sou obrigada a fingir que um cis-co me entrou no olho. Para me distrair, pergunto ao Brubeck: — Afinal que tio é esse? O que foste visitar há bocado.

— É o meu tio Norm. Irmão da minha mãe. Trabalhava como ope-rador de grua na Blue Circle Cement, mas teve de largar o emprego. ’Tá a ficar cego.

Aspiro mais uma longa fumaça. — Isso é horrível. Coitado.— O tio Norm costuma dizer que «a piedade é uma forma de insulto».— Ele ’tá completamente cego, ou só parcialmente, ou...— Perdeu cerca de três quartos da visão em ambos os olhos, e o

que lhe sobra vai de vela. O que o deixa mais em baixo é já não poder ler o jornal. É como procurar as chaves no meio de neve suja, diz ele. De maneira que quase todos os sábados vou de bicicleta até ao bangaló onde vive e leio-lhe partes do Guardian. Depois ele põe-se a falar da luta entre a Thatcher e os sindicatos, do porquê de os russos estarem no Afeganistão, do porquê de a CIA estar a derrubar os governos democrá-ticos na América Latina.

— Parece-me o tipo de coisas que se ouve lá na escola — digo.O Brubeck abana a cabeça. — A maior parte dos nossos professores

só pensa em ir para casa às quatro da tarde e reformar-se quando chegar aos sessenta. Mas o meu tio Norm adora falar e pensar e, quando o faz, quer que quem o ouça sinta o mesmo entusiasmo. É fino como um rato. Depois a minha tia faz um almoço farto e o meu tio passa pelas brasas. A seguir, se o tempo ’tiver bom, vou pescar. A menos que veja alguém da minha turma morto na praia. — Apaga a beata do cigarro no cimen-to. — Então, afinal o que é que se passa, Sykes?

— Como assim, o que é que se passa?— Às oito e quarenta e cinco vejo-te subir Queen Street, a esguei-

rares-te...— Tu viste-me?— Iá, a esgueirares-te para dentro do mercado coberto. Mas, sete

horas depois, o alvo é avistado quinze quilómetros a oeste de Grave-send, paralelamente ao rio.

— Mas o que é isto? Agora és o Ed Brubeck, Detetive Privado?

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Um cãozinho sem cauda aproxima-se com o traseiro a agitar-se. O Brubeck atira-lhe uma batata frita num gesto de desprezo. — Se fosse detetive, diria que tem a ver com problemas amorosos.

A minha voz põe-se severa: — Não tens nada a ver com isso.— É verdade. Mas o paspalho não merece que ’tejas assim, seja ele

quem for.De sobrolho carregado, atiro uma batata frita ao cão. Morfa-a com

uma sofreguidão tal que me pergunto se será vadio. Como eu.O Brubeck faz do papel que envolve as batatas um funil para despe-

jar na boca os pedacinhos estaladiços. — Tencionas voltar para a cidade à noite?

Reprimo um murmúrio de lamentação. Gravesend é uma nuvem negra. O Vinny e a Stella e a minha mãe estão dentro dela. São a cidade. O meu relógio marca as 18:19 e a animação e o falatório no Captain Marlow já deve ter começado com a chegada dos clientes habituais. Por cima do pub, o Jacko e a Sharon estarão alapados no sofá a assistir à série Soldados da Fortuna enquanto metem para o bucho aperitivos de queijo e uma tablete de chocolate. Gostaria de lá estar, mas e a bofetada da minha mãe? — Não — digo ao Brubeck —, não tenciono.

— Daqui a três horas vai ’tar escuro. Não te resta muito tempo para encontrares um circo com o qual possas dar de frosques.

A vegetação das dunas oscila. Nuvens desenrolam-se através do céu, vindas de França. Visto o casaco. — Talvez encontre uma casamata confortável. Que não seja usada como mictório. Ou celeiro.

Acercam-se gaivotas em voo que lembra um elástico esticado, a grasnar, também elas ávidas de batatas fritas. O Brubeck levanta-se e desata a esbracejar, qual Príncipe Louco de Allhallows-on-Sea, com o intuito de as fazer dispersar, por puro divertimento. — Conheço um sítio que é capaz de ser melhor.

Estamos de novo montados na bicicleta, avançando ao longo de uma estrada digna desse nome. Campos enormes no cu do mundo, plano como uma panqueca, com longas sombras negras. O Brubeck mostra--se todo misterioso acerca do sítio para onde vamos — «Tens duas hipóteses, Sykes: ou confias em mim ou não confias» —, mas diz que é quente, sem humidade e seguro, e que ele próprio já lá ficou a dormir umas cinco ou seis vezes quando foi pescar durante a noite, de maneira que decido alinhar, por enquanto. Diz que depois de me deixar vai zarpar para casa. É esse o problema dos rapazes: tendem a ajudar-nos só porque nos acham piada, mas não existe nenhuma forma não-cons-trangedora de descobrir os seus verdadeiros motivos até já ser tarde de mais. O Ed Brubeck parece ser um tipo decente, e passa as tardes

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de sábado a ler o jornal a um tio cego, mas, graças ao raio do Vinny e da Stella, não estou assim tão certa de que seja boa a avaliar o caráter dos outros. No entanto, com a aproximação da noite, não tenho gran-des alternativas. Passamos por uma fábrica gigantesca. Estou prestes a perguntar ao Brubeck o que lá produzem quando ele me diz que se trata da central elétrica de Grain e abastece Gravesend e metade da zona sudeste de Londres.

— Iá, eu sei — minto.

A igreja é baixa e larga, possui uma torre com frestas cruciformes e adquire uma cor dourada no lusco-fusco. O bosque emite sons como o de ondas ininterruptas e gralhas descrevem círculos como meias pre-tas numa máquina de secar roupa. «IGREJA PAROQUIAL DE ST. MARY HOO», diz a placa, com o número de telefone do pároco por baixo. A aldeia de St. Mary Hoo situa-se mais adiante, mas na verdade resume-se a algumas casas velhas e um pub no cruzamento de duas rue-las. — As condições para dormir reduzem-se ao básico — diz Brubeck enquanto desmontamos da bicicleta —, mas o Pai, o Filho e o Espírito Santo cuidam da segurança e, a zero libras por noite, o preço é bem competitivo.

Estará a referir-se à igreja? — ’Tás na tanga, não ’tás?— O registo de saída é feito às sete em ponto, caso contrário a ge-

rência irrita-se.Sim, refere-se à igreja. Ponho uma cara de dúvida.O Brubeck põe uma cara que diz: É pegar ou largar.Terei de pegar. Os pântanos de Kent não estão salpicados de acolhe-

dores celeiros cheios de palha quente, como em Uma Casa na Pradaria. O único que vi foi uma construção de chapa ondulada alguns quiló-metros atrás, guardada por dois dobermanns raivosos. — As igrejas não são trancadas?

O Brubeck diz «Iá» da mesma maneira que eu diria «E daí?». Depois de verificar se não há ninguém por perto, leva a bicicleta pelas mãos até ao cemitério. Esconde-a entre um aglomerado de densas árvores escuras e o muro, após o que me conduz ao alpendre. Confetes acumulam-se em sinuosidades que lembram marcas de borracha queimada deixadas por carros em derrapagem. — Fica de olho no portão — diz-me. Saca do bolso uma cena de couro que parece um porta-moedas e do seu inte-rior tira um molho de chaves de haste estreita e uma peça de metal fino em forma de L. Um último olhar à ruela e a seguir enfia uma chave na fechadura, agitando-a levemente.

O medo de sermos apanhados toma-me de assalto. — Onde é que aprendeste a abrir fechaduras dessa maneira?

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— Jogar futebol ou consertar furos não foram propriamente as ha-bilidades que o meu pai me ensinou.

— Ainda nos podemos lixar por causa disto! O que tu ’tás a fazer é... é...

— Forçar a entrada em propriedade alheia. Por isso mesmo tens de manter os olhos bem abertos.

— Mas o que é que eu devo fazer ao certo se aparecer alguém?— Finge que estás envergonhada, como se tivéssemos sido apanha-

dos no comilanço.— Hum... Não me parece, Ed Brubeck.Emite o seu meio-sibilo, meio-riso. — Finge, disse eu. Relaxa,

só vais dentro se a bófia conseguir provar que foste tu quem abriu a fechadura. Se não confessares e se tiveres o cuidado de não dar cabo do mecanismo... — introduz uma chave-mestra no buraco da fecha-dura — ... quem pode afirmar com toda a certeza que não passaste aqui por acaso, viste a porta entreaberta e entraste para satisfazer o teu interesse pela arquitetura religiosa anglo-saxónica? Já agora, esta é a nossa versão oficial caso a coisa dê prò torto. — Tem o ouvido en-costado à fechadura e tenta rodar a chave. — Embora tenha dormido aqui três sábados desde a Páscoa sem ter ouvido um barulhinho que fosse. Além disso, não estamos a roubar nada. E outra coisa: és uma rapariga, portanto basta-te desatar a chorar até os olhos te saírem das órbitas e fazeres o papel de «Por favor, senhor pároco, escondi--me aqui porque tive de fugir do meu padrasto violento» e o mais provável é ele te oferecer uma chávena de chá e um biscoito Pen-guin. — Ergue uma mão para que eu não fale: um estalido. — Já ’tá. — A porta da igreja abre-se com uma chiadeira de dobradiças digna da Transilvânia.

Por dentro, a igreja de St. Mary Hoo cheira a lojas de caridade, e a escuridão nos vitrais transforma-os numa espécie de salada de frutas. As paredes são tão grossas como as de um bunker nuclear e o trum que se ouve quando o Brubeck fecha a porta ecoa por toda a parte, como se estivéssemos numa masmorra. No teto só se veem vigas e madeira-mento. Percorremos a pequena nave, ladeada por dez a doze bancos. O púlpito é de madeira, a pia batismal de pedra; o órgão parece um pia-no todo pomposo com tubos de escape. A cena onde se pousa a Bíblia deve ser de ouro falso, caso contrário um ladrão — o pai do Brubeck, por exemplo — já a teria surripiado há muito tempo. Alcançamos a mesa do altar e erguemos o olhar na direção do vitral que ilustra a cru-cificação. Raios assomam de uma pomba no céu colorido pela vidraça. As Marias, dois discípulos e um romano na base da cruz parecem dis- cutir se começou a chover ou não. O Brubeck diz: — És católica, não és?

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Surpreende-me que isso lhe tenha aflorado ao pensamento. — A mi- nha mãe é irlandesa.

— Então acreditas no Paraíso e em Deus e nessas coisas?Deixei de ir à missa no ano passado: essa opção originou a mais vio-

lenta discussão que tive com a minha mãe, até hoje de manhã. — De-senvolvi uma espécie de alergia.

— O meu tio Norm chama à religião «paracetamol espiritual», e, de certa forma, espero que ele tenha razão. A menos que Deus faça transplantes de personalidade antes de chegarmos lá acima, o Paraíso seria uma infindável reunião familiar com tipos como o meu tio Trev. Assim de repente, não me ocorre nada mais próximo da ideia de inferno.

— Então o teu tio Trev e o teu tio Norm são muito diferentes.— Como a água do vinho. O meu tio Trev é o irmão mais velho do

meu pai. «O Cérebro Que Comanda as Operações», palavras dele, o que até acaba por ser verdade: tem miolos suficientes para convencer fa-lhados como o meu pai a fazerem o trabalho sujo. Se a operação for um sucesso, o meu tio Trev deita as mãos à mercadoria e açambarca-a, mas quando a coisa corre mal, transforma-se no Senhor Não-Tenho-Nada--a-Ver-com-Isso. Chegou mesmo a tentar usar a mesma estratégia com a minha mãe depois de o meu pai ir parar à choldra, o que explica, em parte, a nossa mudança para o Sul.

— Parece ser um cabrão de primeira.— Iá, o meu tio Trev é mesmo assim. — A luz psicadélica no rosto

dele dissipa-se à medida que o Sol se esconde. — E só pra que saibas, se eu ’tivesse num hospício às portas da morte, é bem possível que quises-se deitar a mão a todo o paracetamol que conseguisse.

Pouso a mão no gradeamento do altar. — E se... e se o Paraíso for real, mas só em determinados momentos? Como um copo de água num dia quente em que estejas a morrer de sede, ou quando alguém é bondo-so contigo sem razão, ou... — As panquecas da minha mãe com molho de chocolate Toblerone; o meu pai a abandonar o bar e a subir as escadas apressadamente só para me dizer: «Dorme bem, sonhos cor-de-rosa»; ou o Jacko e a Sharon a cantarem «Hoje é dia de festa, saquem as vos-sas armas» em vez de «Hoje é dia de festa, cantam as nossas almas» em todos os aniversários e a fazerem chichi pelas pernas abaixo, apesar de isso não ter graça nenhuma; e o Brendan a oferecer-me o seu velho gira-discos em vez de o dar a um dos seus compinchas. — Imagina que o Paraíso não é como um quadro que está ali pendurado para sempre, mas tipo... tipo a melhor canção de sempre, mas uma canção da qual só ouves bocadinhos enquanto ’tás vivo, seja de um carro que está a passar ou... de janelas altas quando estás perdido...

O Brubeck olha-me como se estivesse realmente a ouvir-me.

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E, fosga-se, estou a corar. — Porqu’é que ’tás a olhar assim pra mim?Antes de ele ter oportunidade de responder, uma chave chocalha na porta.Segundos passam por mim em câmara lenta, como um desfile de

bêbados a dançar conga, e eu e o Brubeck somos o Bucha e o Estica e o Starsky e o Hutch e duas metades de um cavalo de pantomima, e ele empurra-me de supetão através de uma porta de madeira na qual não tinha reparado, atrás do órgão, uma porta que abre para uma divisão estranha na forma, com o pé-direito alto e uma escada que desemboca num alçapão. Acho que se chama sacristia, este espaço, e a escada deve servir para aceder ao campanário. O Brubeck põe-se à escuta através da frincha da porta: não há outra saída, apenas uma espécie de armário a um canto. Na nossa direção avolumam-se vozes de pelo menos dois homens; julgo ter ouvido uma terceira, a de uma mulher. Merda. O Brubeck e eu entreolhamo-nos. As nossas opções são: permanecer aqui e tentar sair por via da persuasão; escondermo--nos no armário; ou trepar escada acima e esperar que o alçapão abra e que quem quer que esteja a aproximar-se não faça o mesmo. Mas, neste momento, provavelmente já não teríamos tempo para subir a escada. De repente, o Brubeck empurra-me para dentro do armário, depois entra e fecha a porta o melhor que consegue. É mais pequeno do que parecia visto de fora: é como estar escondida numa das me-tades de um caixão pousado na vertical — com um rapaz contra o qual não se tem o menor interesse em estar comprimido. O Brubeck fecha a porta...

— Mas o homem julga-se a Segunda Encarnação da porra do Fidel Castro! — As vozes entram na sacristia. — Adore-se ou deteste-se a Maggie Thatcher, e não falta quem por ela nutra ambos os sentimen-tos, a verdade é que ganhou de facto uma corrida às eleições, coisa que o Arthur Scargill não conseguiu. Ele nem sequer foi capaz de levar a cabo uma votação no seu próprio sindicato para saber se o apoio à greve era consensual.

— Não é essa a questão — diz um londrino. — Esta greve tem que ver com o futuro. É por esse motivo que o governo está a fazer uso de todos os golpes baixos possíveis e imaginários: espiões do MI5, mentiras aos meios de comunicação social, nenhum subsídio para as famílias dos mineiros... Ouça bem o que lhe digo: se os mineiros per-derem, os seus filhos terão horários de trabalho vitorianos em troca de ordenados vitorianos.

A pressão da rótula do Brubeck contra a minha coxa está a adorme-cer-me a perna lentamente.

Giro o corpo um nadinha: os au au au que ele emite são mais suaves do que um sussurro.

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— Não podemos manter indústrias moribundas vivas para sem-pre — replica o campónio —, essa é a questão. Caso contrário, ainda estaríamos a financiar construtores de castelos ou escavadores de canais ou druidas. O Scargill é defensor da economia da Ilha da Fantasia e da política da Montanha da Treta.

Sinto o peito do Brubeck a inchar e a desinchar contra as minhas costas.— Alguma vez esteve numa cidade mineira? — pergunta o lon-

drino. — Agora não pode ir porque a polícia não o deixa lá entrar, mas quando a mina for à vida, a cidade morrerá. O País de Gales e o Norte não são o Sul, Yorkshire não é Kent, e o setor da energia não é uma indústria qualquer. Energia é sinónimo de segurança. As jazidas petrolíferas do mar do Norte não vão durar para sempre. Depois de se esgotarem, como é que vai ser?

— É sem dúvida um debate pertinente, o vosso, meus senhores — diz a mulher —, mas e os sinos?

Pés calcam ruidosamente as travessas da escada: ainda bem que não optámos por subir ao campanário. Passa-se um minuto. Ainda nenhum som na sacristia. Estou em crer que subiram os três. Viro-me um tudo--nada e o Brubeck arqueja de dor. Arrisco sussurrar: — ’Tás bem?

— Não. ’Tás a esmagar-me os tomates, já que perguntas.— Podes sempre adotar. — Tento dar-lhe mais espaço, mas não há

mais espaço. — Achas que devíamos fugir?— Talvez devêssemos tentar sair pela calada, assim que...Nas trevas abafadas ressoa o bater dos sinos. O Brubeck abre a porta

— um ar mais fresco invade o armário —, sai meio aos cambaleios e depois ajuda-me a sair. Bem lá em cima, um par de barrigas das pernas rechonchudas baloiça na abertura do alçapão. Avançamos em bicos de pés até à porta, como dois totós do Scooby-Doo...

Ambos desatamos a correr ruela abaixo, como se tivéssemos acabado de fugir da prisão de Colditz. Os sinos soam piegas e cintilantes na es-curidão azulada. Sinto uma pontada, pelo que paramos num banco jun- to da placa com a indicação da aldeia. — É mesmo típico — diz o Brubeck. — Eu aqui a querer mostrar os meus Dotes de Sobrevivência na Natureza e, em vez disso, dá-se a Invasão dos Campónios. ’Tou a precisar de um cigarro. Queres?

— OK. Vão ficar ali a discutir por muito tempo?— Acho que sim. — O Brubeck estende-me um cigarro e acende

o isqueiro: mergulho a ponta na chama. — Levo-te de volta quando tiverem zarpado. As fechaduras Yale são bué fáceis de abrir, mesmo na escuridão.

— Mas não tens de voltar para casa?

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— Vou ali à cabina telefónica junto do pub e dou uma ligadela à minha mãe a dizer que afinal vou pescar à noite. Uma mentirinha inofensiva.

Preciso da ajuda dele, mas estou nervosa face a uma possível moeda de troca.

— Não te preocupes, Sykes. As minhas intenções são as melhores.Penso no Vinny Costello e estremeço. — Ainda bem.— Nem todos os gajos pensam só em engatar raparigas.Disparo uma nuvem de fumo diretamente contra a cara dele, obrigan-

do-o a fechar os olhos e a desviar a atenção de mim. — Tenho um irmão mais velho — digo-lhe. Estamos num vergel denso e, quando acaba-mos de fumar, trepamos uma árvore e arrancamos algumas maçãs ainda verdes. Existe um muro de tijolo a que subimos para nos sentarmos. As maçãs são ácidas como limas, mas boas depois de um jantar cheio de gordura. Luzes tremeluzem na central elétrica por onde passámos antes.

— Pr’àquelas bandas — o Brubeck atira um caroço de maçã na di-reção indicada —, a seguir às luzes esbatidas na ilha de Sheppey, existe um pomar, do Gabriel Harty. Trabalhei lá o ano passado na apanha do morango e ganhava vinte e cinco libras por dia. Há dormitórios para quem faz a apanha e, mal terminem os exames, vou lá voltar. Ando a juntar dinheiro para um InterRail em agosto.

— O que é um InterRail?— ’Tás a falar a sério?— ’Tou.— É um passe de comboio. Paga-se cento e trinta libras e depois po-

de-se viajar por toda a Europa de graça durante um mês. Em segunda classe, mas ainda assim... É possível ir do ponto mais extremo de Por-tugal ao limite mais a norte da Noruega. Com os países do Leste incluí-dos, a Jugoslávia e outros lugares. O Muro de Berlim. Istambul. Em Istambul há uma ponte, ’tás a ver? De um dos lados fica a Europa e, do outro, a Ásia. Vou atravessá-la a pé.

Ao longe, um cão solitário ladra, ou talvez seja uma raposa.Pergunto-lhe: — O que é que se faz em todos esses países?— Olha-se em volta. Caminha-se. Procura-se um sítio barato para

dormir. Come-se o que os locais comerem. Procura-se uma cerve-ja barata. Faz-se por não ser depenado. Fala-se. Aprende-se algumas palavras do país onde se estiver. Simplesmente ’tá-se lá, ’tás a ver? Há alturas... — Dá uma trinca na maçã. — Há alturas em que a mi-nha vontade de ’tar em todo o lado ao mesmo tempo é tão grande que ’tava capaz de... — Faz o gesto de uma bomba a detonar-lhe na caixa torácica. — Nunca tens essa sensação?

Um morcego passa por nós batendo as asas, como se preso a um fio numa cena de um filme de vampiros chunga.

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— Para te ser franca, nem por isso. O mais longe que ’tive daqui foi quando viajei até à Irlanda, para visitar os familiares da minha mãe em Cork.

— E o que é que achaste?— É diferente. Não há postos de controlo e bombas por toda a parte

como lá em cima no Norte, apesar de o conflito na Irlanda do Norte ain-da pairar um bocado no ar, e o melhor é uma pessoa não abrir o bico para falar de política. Eles lá odeiam a Thatcher por causa do Bobby Sands e das greves de fome. Tenho uma tia-avó, uma tia da minha mãe chamada Eilísh, que é espetacular. Cria galinhas e tem uma arma na cavezinha onde guarda o carvão, e quando era mais nova viajou até Catmandu de bicicleta. A sério, não ’tou na tanga. De certeza que sentia essa cena ex-plosiva de querer ’tar em todo o lado. Vi fotografias e recortes de jornal e cenas desse tipo. Vive num promontório comprido perto de Bantry, na península de Sheep’s Head. Parece a orla do mundo. Não existe lá nada, nenhuma loja nem coisa que o valha, mas — e não são muitas as pessoas a quem eu confessaria isto — a verdade é que adorei aquilo.

A Lua está tão afiada que se alguém lhe tocasse correria o risco de cortar o dedo.

Permanecemos alguns momentos sem dizer nada, mas não é um nada que cause constrangimento. Depois o Brubeck diz: — Já ouviste falar no segundo cordão umbilical, Sykes?

Já não lhe consigo ver o rosto. — No quê?— Quando se ’tá no ventre materno, existe um cordão...— Sei perfeitamente o que é um cordão umbilical, obrigada. Mas

um «segundo»?— Bem, os psicólogos dizem que existe um segundo cordão umbili-

cal, um cordão invisível, emocional, que nos liga aos nossos pais duran-te toda a nossa infância e parte da juventude. Depois, um dia, tem-se uma desavença com a mãe, no caso das raparigas, ou com o pai, no caso dos rapazes, e essa discussão corta o segundo cordão. Nessa altura, e só nessa altura, é que se ’tá preparado para enfrentar o vasto mundo e ser um adulto que vive segundo as suas próprias regras. É uma espécie de rito de passagem.

— Eu discuto com a minha mãe, tipo, diariamente. Ela trata-me como se eu fosse uma criança de dez anos.

O Brubeck acende mais um cigarro, puxa uma fumaça e passa-mo. — ’Tou a falar de uma discussão mais séria e feia. Depois de acontecer, a pessoa percebe. Deixou de ser a criança que era.

— E ’tás a partilhar comigo estas pérolas de sabedoria porque...?Prepara cuidadosamente a resposta. — Se te puseste a andar por-

que o teu pai é um valente cabrão que dá porrada à tua mãe e te atira

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pelas escadas abaixo de cada vez que o tentas impedir, então fugir é a coisa mais sensata a fazer. Vai. Se quiseres, dou-te o meu dinheiro do InterRail. Mas se ’tás sentada neste muro pela simples razão de o teu cordão umbilical ter sido cortado, nesse caso, iá, é lixado, mas tinha de acontecer. Dá um desconto à tua mãe. É apenas uma parte do processo de crescimento. Não devias ’tar a castigá-la por isso.

— Ela deu-me uma bofetada.— Aposto que ela se sente na merda por ter feito o que fez.— Tu nem sequer a conheces!— E tu, Sykes, tens a certeza de que a conheces?— Que porra é que tu queres dizer com isso?O Brubeck decide ficar por aqui. Eu também decido ficar por aqui.

Na igreja impera um silêncio sepulcral. O Brubeck dorme num ni-nho de almofadas poeirentas. Instalámo-nos numa cena tipo galeria ao longo da parede do fundo, cá em cima, para não sermos vistos caso algum grupo de devotos de Satanás decida aparecer para uma missa negra. Doem-me as barrigas das pernas, a bolha no dedo grande lateja e a mente não para de recuar à cena do Vinny e da Stella. Será que eu não era suficientemente boa na cama? Será que não me vestia bem, que não falava como devia ser, que não gostava da música certa?

22:58, reluz no meu Timex. Os minutos mais marados da semana no Captain Marlow acontecem precisamente agora: os últimos pedidos numa noite de sábado. A minha mãe, o meu pai e a Glenda, que só tra-balha aos fins de semana, não terão mãos a medir: um muro rugidor de sujeitos ávidos de álcool a agitar notas de cinco e dez libras através do nevoeiro de fumo e a balbúrdia de conversas, gritos, risadas, palavrões, engates... Ninguém quererá saber aonde foi parar a Holly esta noite. Na jukebox, «Daydream Believer» ou «Rockin’ All Over the World» ou «American Pie» estará a ressoar através do edifício. A Sharon adorme-ceu com a lanterna acesa por baixo do cobertor. O Jacko está a dormir, com pessoas a murmurar línguas estrangeiras no seu rádio. Lá em cima no meu quarto, a cama está por fazer, a mochila encontra-se pendurada na cadeira. Um cesto de roupa lavada foi pousado logo à entrada da di-visão, no lugar onde a minha mãe o põe quando está chateada comigo. O que, nos dias que correm, acontece quase sempre. O imenso brilho que o Essex emite à noite projetará uma luz alaranjada ao longo do rio, através das minhas cortinas abertas, sobre os pósteres das capas dos álbuns Zenyattà Mondatta e The Smiths que consegui arranjar na Magic Bus. Mas não vou começar a sentir saudades do meu quarto agora.

Rai’s ma partam se vou.

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