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1
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
INSTITUTO DE HUMANIDADES, ARTES E CINCIAS PROFESSOR MILTON
SANTOS
PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR DE PS-GRADUAO EM CULTURA E
SOCIEDADE
CLEDINEIA CARVALHO SANTOS
COMUNIDADE QUILOMBOLA NOVA ESPERANA: A MULHER NA
CONSTRUO DA IDENTIDADE TNICA
SALVADOR/ BAHIA
2018
https://www.google.com.br/url?sa=i&source=images&cd=&cad=rja&uact=8&ved=2ahUKEwiUlLSopf7aAhXDFZAKHYY0CScQjRx6BAgBEAU&url=https://www.infoenem.com.br/sisu-2016-ufba-tera-oferta-de-4-442-vagas/&psig=AOvVaw0uOqfqZAnFcgB7hdahBCxd&ust=1526149803060953
2
CLEDINEIA CARVALHO SANTOS
COMUNIDADE QUILOMBOLA NOVA ESPERANA: A MULHER NA
CONSTRUO IDENTIDADE TNICA
Programa Multidisciplinar de Ps-graduao Cultura e Sociedade. Linha de pesquisa
2: Cultura e Identidade pela Universidade Federal da Bahia UFBA
Orientador: Prof. Dr. Fernando Costa da Conceio
Ano: 2018
SALVADOR/ BAHIA
2018
3
CLEDINEIA CARVALHO SANTOS
COMUNIDADE QUILOMBOLA NOVA ESPERANA: A MULHER NA
CONSTRUO DA SUA IDENTIDADE TNICA
DATA DE APROVAO _______/_______/________
BANCA EXAMINADORA
FERNANDO COSTA DA CONCEIO- UFBA
EDILENE MATOS UFBA
MARIA DE FTMA DI GREGRIO UESB
4
DEDICO
s mulheres de Nova Esperana, em especial as que participaram
diretamente desta pesquisa. Dedico tambm a minha v Feliciana Maria de
Jesus (in memoriam) por ser minha inspirao para tornar-me a mulher que
sou.
5
AGRADECIMENTOS
Se queres saber quem sou, conheas meus amigos, meus amores e desamores. Conhea
tambm quem em mim acredita, afinal, ningum chega a lugar algum, sem que haja quem te
ajude a chegar. Que te ajude a seguir.
Por isso, sou imensamente GRATA!
Ao ALTO para sempre Olho quando as coisas no vo bem. de l a minha fora. Costumo
dizer que o universo conspira a favor de quem no conspira contra ningum.
A UFBA, atravs do Programa de Ps-graduao em Cultura e Sociedade por ter acreditado
no meu projeto e me oportunizar chegar at aqui. Um sonho realizado.
A comunidade quilombola de NOVA ESPERANA, por permitir a minha entrada nas
profundezas de suas memrias e concluir esse trabalho. De modo especial, agradeo a Ramon
dos Santos e Clemilda Ferreira, meus primeiros informantes. Continuarei apoiando vocs na
busca por melhorias para a comunidade. Contem comigo!
A FERNANDO CONCEIO, meu orientador querido. Sou s gratido por tudo que vivi e
aprendi contigo. Voc sempre respeitou a minha liberdade de escrita e me possibilitou passar
pelo mestrado com leveza. Desejo seguir contigo em outros projetos.
A minha ME, Dona Vane, por cuidar de meus filhos para que eu pudesse tornar esse
momento realidade.
Ao meu PAI, Otvio, meu maior professor, incentivador e orgulhoso da filha que tem. Te
amo, painho!;
FILHOS, Otvio, Arthur e Henrique, meus amores, meus sis. Tudo para vocs. Perdo
pelas ausncias e obrigada pela compreenso.
A CLUDIA MOREIRA, amiga, parceira. Obrigada, minha querida, por voc existir! Espero
sempre estarmos juntas, defendendo o que acreditamos uma educao para TODOS de fato!
Aos amigos queridos, VANUSA PIROPO, MILENA TAMBORIELLO e WESLEY DE
MATTOS, para sempre quero vocs na minha vida acadmica e pessoal.
A amigas do PACTO Vanusa, Rita e Elizete, juntas aprendemos muito. Que outras
oportunidades de trabalharmos juntas apaream.
A Secretaria Municipal de Educao de Jaguaquara SME, por me possibilitar estar
concluindo essa etapa na minha vida profissional.
6
A todos os membros do ETNOMDIA/ Ufba, vocs so incrveis. Espero continuarmos ativos
nas nossas atividades. Contem comigo sempre!
Agradeo infinitamente ao GEHFTIM, na pessoa de Ftima Di Gregrio, pelas aprendizagens
que muito contriburam para esse trabalho.
As professoras doutoras, EDILENE MATOS e FTIMA DI GREGRIO, que participaram
da banca de qualificao, teceram crticas e sugestes. Isso me ajudou muito para concluir o
trabalho, simplesmente, grata!
Expresso tambm gratido FAPESB, pela concesso da bolsa, tornando possvel essa
pesquisa.
Agradecimento a minha famlia, especialmente meus irmos Washington, Wellington,
Lucineide, Lucinete e Orlando, por me apoiarem em palavras de incentivo e demonstrao de
admirao.
Aos meus colegas de Mestrado, agradeo pelas vivncias, experincias e partilhas. Em
especial aos amigos que fiz nessa caminhada, Ana Gualberto, Moiss Viana, Vernica, Olvia,
Tamiles, Camila e Matheus Rosa. Vocs estaro sempre em um lugar especial da minha vida.
Obrigada, povo brasileiro por financiar meus estudos!
E por fim, muito obrigada LINDAURA e seus filhos pelo carinho incondicional que me
receberam em sua casa nos dias que estive em Salvador. Sem esse suporte talvez eu no tivesse
conseguido me manter. Palavras no sero suficientes para expressar minha eterna gratido.
7
MAPAS E IMAGENS
Imagem 01 Vista panormica de Nova Esperana
Imagem 02 Igreja Nossa Senhora do Rosrio
Imagem 03 - Mapa de Wenceslau Guimares Bahia
Imagem 04 Quadro de Faustino dos Santos e Antnia Maria de Jesus
Imagem 05 Quadro de Antnia Maria de Jesus
Imagem 06 Quadro de Nossa Senhora do Rosrio
Imagem 07 Fotografia de Marcelina dos Santos
Imagem 08 - Nova esperana vista do alto
Imagem 09 - Chegada de Nova Esperana
Imagem 10 - Mosaico de imagens
Imagem 11 - Certificao de Autodefinio
SIGLAS
ADCT - Ato das Disposies Constitucionais Transitrias
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estattica
INCRA - Instituto Nacional de Colonizao de Reforma Agrria
8
RESUMO
A presente pesquisa focou em narrativas de mulheres quilombolas da comunidade de Nova
Esperana, localizada no municpio de Wenceslau Guimares, baixo sul da Bahia. Ao longo
do trabalho so apresentadas narrativas dos moradores mais velhos centrados no
entrelaamento das suas memrias, as quais apresentam as trajetrias dos fundadores da
comunidade e o processo de autoreconhecimento quilombola. Buscamos contar a histria em
torno na figura feminina de Antnia Maria de Jesus Apresentamos tambm as relaes de
trabalho e cotidianidades, as identidades moldadas pelos aspectos culturais e religiosos,
especialmente o Terno de Reis, sambado em 06 de janeiro, e as celebraes aos Santos
protetores - Nossa Senhora do Rosrio e Santo Antnio. Os Santos foram trazidos para a
localidade pelos Fundadores Faustino dos Santos e Antnia Marias de Jesus, respectivamente.
Por fim, apresentamos a etnicidade identitria do lugar, a partir do que dizem as mulheres que
ali vivem. Nas suas narrativas ser possvel compreender as relaes tnicas do grupo, tanto
por aproximao quanto por fronteiras tnicas na ntima relao entre Ns e Eles. No decorrer
de todo trabalho possvel encontrar vestgios das experincias ancestrais, permitindo
mapeamento de uma histria at ento invisibilizadas.
PALAVRAS-CHAVE: Quilombo; Mulheres; Identidade tnica.
9
ABSTRACT
The present research focused on narratives of quilombolas women from the community of Nova
Esperana, located in the municipality of Wenceslau Guimares, in the south of Bahia.
Throughout the work are presented narratives of the older inhabitants centered on the
interweaving of their memories, in which they present the trajectories of the founders of the
community and the process of quilombola self-recognition. We seek to tell the story centered on
the female figure of Antonia Maria de Jesus. We also present the labor relations and daily life,
the identities shaped by cultural and religious aspects, especially the Suit of Kings, sambado on
January 6 and the celebrations to the patron saints - Our Lady of the Rosary and St. Anthony.
The Saints were brought to the locality by the Founders Faustino dos Santos and Antnia Marias
de Jesus, respectively. Finally, we present the identity ethnicity of the place, from what the
women who live there say. In their narratives it will be possible to understand the ethnic relations
of the group, both by approximation and by ethnic borders in the intimate relation between the
Nodes and They. In the course of all work it is possible to find traces of ancestral experiences,
allowing mapping of a history hitherto invisibilized.
KEY WORDS: Quilombo; Women; Ethnic id.
10
SUMRIO
INTRODUO------------------------------------------------------------------------------------- 11
CAPTULO 1- PERCORRENDO CAMINHOS: A HISTRIA DO LUGAR ------- 29
1.1 - A comunidade quilombola: uma nova histria, tempos de esperana ----------------- 29
1.2 - Histrias ouvidas e contadas sobre dona Antnia Maria: metfora da resistncia----40
1.3 - Nova Esperana e o processo de reconhecimento como lugar de remanescente de
quilombos--------------------------------------------------------------------------------------------- 47
CAPTULO 2 -A MULHER NA HISTORIOGRAFIA: UMA LUTA PARA ALM
DO PERTENCER --------------------------------------------------------------------------------- 52
2.1- A mulheres de Nova Esperana: histrias tecidas no cotidiano ------------------------- 68
2.2- F e diverso: a devoo Rosrio dos Pretos e outras manifestaes culturais ------72
2.3- Marcelina dos Santos: narrativas e conexes com a espiritualidade sincrtica --------80
CAPTULO 3 - ELAS E AS NARRATIVAS DE SI: REVELANDO IDENTIDADES
TNICAS ------------------------------------------------------------------------------------------- 86
3.1 A voz da mulher: narrativas entrecruzadas ----------------------------------------------- 90
3.2 - Sou mulher, sou quilombola: na percepo de si, narra-se a comunidade ------------ 95
3.2.1- Nova Esperana e vizinhana: o caso da Muringa ------------------------------------- 106
CONSIDERAES -----------------------------------------------------------------------------109
ANEXOS -------------------------------------------------------------------------------------------114
APNDICES -------------------------------------------------------------------------------------- 115
REFERNCIAS -----------------------------------------------------------------------------------116
11
INTRODUO
Quando nasci um anjo esbelto, desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espcie ainda envergonhada. Aceito os subterfgios que me cabem,
sem precisar mentir.
No sou feia que no possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e ora sim, ora no, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina. Inauguro linhagens, fundo reinos
dor no amargura.
Minha tristeza no tem pedigree,
j a minha vontade de alegria, sua raiz vai ao meu mil av.
Vai ser coxo na vida maldio pra homem.
Mulher desdobrvel. Eu sou.
(PRADO, Adlia in: Com licena potica).
Pedindo licena a Adlia Prado, ouso-me autodenominar desdobrvel. Afinal, ser
mulher uma construo em espiral, porque no nascemos prontas, somos forjadas pela vida,
na experincia. Lembrando Conceio Evaristo, ns, mulheres negras, vamos elaborando
escreVivncias.
Apresento-vos,
ESCREVIVNCIAS DO TORNAR-SE MULHER
Em um lugar logo ali, em um tempo no to distante, veio ao mundo uma menina pelas mos
de uma parteira, sob a luz do candeeiro.
Ainda pequena, aprendeu que no era bonita porqu de feia a chamavam. Isto lhe custou caro
pois diziam serem seus cabelos de arapu e suas pernas entortadas lhe prejudicavam o andar.
Alisaram-na!
12
Aprendeu desde pequena o lugar de menina e o de menino. Isso no a conformava porque os
seus irmos iam para o roado e ela tambm. Mas quando chegavam em casa s ela e as irms
lavavam, varriam e passavam. Se sentia injustiada e rebelava-se, por isso era sempre
castigada. Era a que mais apanhava. Na verdade, esse j era o sinal de que o sentimento por
igualdade j a incomodava.
A garota demorou de ir escola por sofrer de paralisia. Como morava distante no conseguia
ir a p, mas diante da f de sua me, que pediu ajuda para Bom Jesus da Lapa, o milagre veio
e ela ficou curada. Isto foi motivo de muita alegria. Finalmente, aos 8 anos foi a primeira vez
para a escola e aprendeu fazer seu nome j no primeiro dia. O encanto pelas letras a dominou.
Desse dia em diante a garota no mais parou, descobriu-se professora quando ainda estava
sendo alfabetizada. Suas irms, as primeiras alunas. Ela com oito/nove anos e as irms seis.
Na verdade aprenderam juntas.
Nessa histria, o seu maior feito foi ensinar sua v paterna a escrever o prprio nome. Foi
uma conquista emocionante. Os olhos da sua v brilharam, pois agora poderia assinar seu
nome para votar.
A menina foi crescendo, estudar era seu sonho, este sempre ameaado pela situao difcil
que sua famlia enfrentara.
A cada incio de ano o corao apertava com medo de no poder ir quele ano escola, mas
no final as coisas sempre se ajeitavam e com muitas lutas e renncias ano a ano a vitria se
aproximava.
A menina virou jovem, j queria namorar, mas de tanto dizerem, ela agora tambm se achava
feia, at se escondia. Ir para a escola era a nica coisa que fazia.
Formou-se professora (cabe outras escreVivncias)! Faz dessa sua misso poltica. Est certa
de que contribui para a prtica da liberdade do outro e de si.
Mesmo feia, casou-se! Arrependeu-se!
Pensou que seria feliz, mas o prncipe virou um sapo. Foi trada, agredida, humilhada, trocada,
desmoralizada. Choro e sofrimento tornram-se rotina.
Aguerrida, foi luta, tornou-se livre! Tornou-se MULHER!
13
A liberdade a fez destemida, cheia de f em si. Tem fraquezas, sim! Tristezas, decepes,
tambm. Nada fcil, mas compreendeu o seu estar no mundo. Este tornou-se seu!
Venceu o que pensara ser impossvel.
Descobriu-se bela porque entendeu que sua boniteza a esttica de dentro.
Empoderou-se! Cacheou-se! Mulherou-se!
Minha bandeira a liberdade do pensamento, os direitos humanos, o feminismo a luta contra
todas as formas de opresso.
Sou MULHER, NEGRA, FEMINISTA, ME, PROFESSORA, MILITANTE. Sou hoje
menor que amanh PORQUE NO NASCEMOS PRONTAS. NOS TORNAMOS
MULHERES NAS VIVNCIAS COTIDIANAS.
Tomando conscincia da mulher que me tornei e das lutas que lutei, justifico o presente
trabalho a partir das histrias de outras mulheres, as quais de algum modo se fazem presentes
nas vivncias coletivas entrecruzadas em suas narrativas. Essas mulheres vivem em Nova
Esperana, comunidade de reminiscncias quilombolas. Por fazer parte desse lugar, indo
periodicamente l, percebi nelas caractersticas de lideranas nas diversas atividades
desenvolvidas no lugar, inclusive no processo de seu autoreconhecimento.
Ao debruar-se na leitura do presente trabalho ser possvel identific-las, a partir das
narrativas entrecruzadas ao tempo em que tambm anunciam seu entorno. Os quais,
marcadores de identidades tnicas, so realados, revelando, assim, a comunidade.
Mediante os pressupostos, a pesquisa inicialmente interessou-me pelas inquietaes em
tentar compreender as experincias tnicas e identitrias dos moradores da comunidade de
remanescentes quilombolas de Nova Esperana, localizada no municpio de Wenceslau
Guimaraes, Bahia, Brasil.
Por ser oriunda do lugar, bisneta do fundador, e sempre presente na comunidade,
testemunhei a sua histria e representaes culturais. Isto me despertou compreender como os
moradores reelaboram a identidade e pertena tnica local. Como tenho interesse pela histria
das mulheres, especialmente ao que tange o empoderamento e liderana, optei por investigar
essas inquietaes pela tica das mulheres, pois durante o processo de reconhecimento
quilombola da comunidade, as mesmas tiveram forte participao, atravs da liderana
sindical e no construto histrico a partir das suas memrias.
14
Como j explicitado, a mulher ocupa lugar de destaque na comunidade, exercendo
algum tipo de liderana nas atividades cotidianas, na batalha pela preservao da cultura local.
Por isso, debruar sobre suas narrativas para perceber como elas enunciam e lidam com suas
identidades tnicas se faz relevante.
Compreender suas trajetrias e o modo de se perceberem no contexto em que se inserem.
Muito dito tambm sobre a comunidade, definindo as fronteiras tnicas e os traos culturais,
sob a tica das narrativas e contranarrativas, quebrando os silncios tradicionalmente
construdos.
Os resultados, por ora apresentados, colaboraro para a busca de direitos que lhes so
negados, tanto no mbito das polticas pblicas, quanto na valorizao de sua
representatividade identitria.
A Comunidade Quilombola Nova Esperana tem seu surgimento h mais de um sculo,
quando o Sr. Faustino dos Santos, junto com sua mulher Dona Antnia Maria de Jesus Santos
e parte da prole, refugiado da guerra de Canudos, chegaram regio aps terem passado por
vrias dificuldades ao longo da jornada. Considera-se o contexto em que viviam os negros no
Brasil, no qual ainda era latente os vcios da escravido recm abolida. Ali chegando, abriram
matas e passaram a viver da plantao de subsistncia. Encontraram a oportunidade de
construir uma nova vida, da batizaram o lugar de Nova Esperana. Como filhos de escravos
trouxeram consigo os ritos, crenas e mitos africanos junto com os sincretismos religiosos.
Os colaboradores da pesquisa afirmaram em suas narrativas que Nova Esperana um
lugar de quilombo no s pela trajetria e ligao com o passado opressor do povo negro, mas
tambm pelos vestgios culturais por eles tecidos. Os mesmos sabem que a comunidade no
surgiu durante o perodo escravagista, mas compreendem-se como remanescentes a partir do
conceito contemporneo de quilombo.
Na perspectiva do conceito socioantropolgico1 de quilombo, a comunidade de Nova
Esperana se autorreconhece como sendo quilombola por ser um territrio com marcadores
especficos por assim ser, como: comunidade negra rural, descendentes de ex-escravos, laos
de parentescos e compadrio, resistncia cultural, traos tnicos e biolgicos como o alto ndice
de pessoas com hipertenso.
Nova Esperana surge quando Faustino dos Santos compra as terras. O fato de ter sido
comprada no tira o seu mrito de ser quilombola, vez que esta era uma das formas de
resistncia e luta por autonomia pelos negros libertos. A mesma se enquadra no Art. 62 do
1 Conceito tratado no captulo 1.
15
Ato das Disposies Constitucionais Transitrias - ADCT, este documento legaliza as
propriedades ocupadas por afros-descendentes, pois seus costumes e resistncias se fazem
presente desde a primeira metade do sculo XIX.
A comunidade reconhecida pela Fundao Palmares, mas ainda no tem seu territrio
definido.
TRAJETRIA DA PESQUISA
Antes mesmo de iniciar a pesquisa, enfrentei o desafio do distanciamento necessrio do
pesquisador. Desafio, por entender, no haver neutralidade na sua totalidade. Pelo menos
objetivamente no, mas vlido o esforo para no deixar-se levar por suas prprias
percepes. Falar de mulheres da comunidade tambm falar de mim mesma pelos vnculos
de parentescos e afetivos j estabelecidos. No entanto, vesti-me das premissas necessrias ao
pesquisador, tentando interferir o mnimo possvel nas coletas de dados, como tambm na
escrita.
Passada a etapa de processo seletivo e cumprimento de crditos no Programa de Ps-
graduao, o primeiro contato como pesquisadora de campo se deu a partir do projeto de
Extenso Experincias e resistncias indgenas-quilombolas no Baixo Sul da Bahia,
desenvolvido pelo Programa de Ps-graduao em Cultura e Sociedade pela UFBA, sob
orientao do Professor Doutor Fernando Costa da Conceio, em outubro de 2016, no qual a
comunidade de Nova esperana fez parte do roteiro.
No encontro, consegui estabelecer os primeiros dilogos com os moradores mais velhos
e apresentei a minha inteno de realizar a pesquisa. Neste momento, pedi licena aos mesmos
e fui acolhida. Marcamos ento nossa primeiro reunio para que pudesse ouvi-los.
Os laos de confiana j existiam, mas a cada visita realizada estes foram ficando cada
vez mais fortes. Dessa forma, estreitei a amizade com a presidente da associao de
moradores, Clemilda Ferreira (60 anos), com quem pude contar diversas vezes. Com Ramom
dos Santos (34 anos), obtive informaes sobre o processo de reconhecimento do lugar. J
Senhorinha dos Santos (73 anos), Florinda dos Santos (72 anos), Getlio Jos dos Santos (86
anos), Otvio Jos dos Santos (72 anos) e Isabel dos Santos (72 anos) passaram a ser minha
referncia de investigao historiogrfica.
As vrias visitas e horas de conversa e registros serviram de base para a reconstituio
da histria de Nova Esperana, sobretudo, sobre seus familiares, suas heranas culturais
16
materiais e imateriais, sua religiosidade e as relaes de trabalho. Saber o passado
compreender quem fomos e quem somos.
No que tange o objeto da pesquisa, estabeleci laos com Elisabeth, Helena, Janana
Perseguida, Maria, Evilsia, Umberlinda e Almerinda2. Elas que so a essncia desse trabalho,
muito colaboram ao dizerem de si e das relaes com os outros.
AS MULHERES DA PESQUISA: QUEM SO ELAS?
Sendo o propsito deste trabalho buscar entender como as identidades tnicas vm
sendo construdas pelas mulheres da comunidade Nova Esperana, inicialmente precisei
observar quais delas pudessem responder sobre a questo em voga. Superada essa etapa, quis
saber quem so elas? O que fazem? O que dizem?
A princpio pretendia-se entrevistar trs mulheres, mas como prprio da Histria oral,
mtodo e tcnica utilizados na pesquisa, o nmero de sujeitos podem variar no decorrer da
pesquisa pois estamos tratando de histrias de vida e as teias construdas podem findar-se em
apenas um ou enredar por outros sujeitos, o que por fim aconteceu. Sobre isto aponta Alberti
(1989) que:
Somente durante o trabalho de produo das entrevistas que o nmero de
entrevistados necessrios comea a se descortinar com maior c1areza, pois
conhecendo e produzindo as fontes de sua investigao que os pesquisadores
adquirem experincia e capacidade para avaliar o grau de adequao do material j
obtido aos objetivos do estudo (ALBERTI, 1989, p. 36).
Quanto ao critrio de escolhas das colaboradoras, Alberti (1989) ressalta que escolha
dos entrevistados no deve ser predominantemente orientada por critrios quantitativos, por
uma preocupao com amostragens, e sim a partir da participao do entrevistado no grupo,
do significado de sua experincia (ALBERTI, 1989, p.31).
A Histria Oral, como mtodo capaz de dizer como sujeitos comuns entendem o mundo,
serviu como referncia nas tramas da memria e nas experincias dessas mulheres no
cotidiano da comunidade. Assim, as tramas subjetivas tornaram-se fontes principais nessa
tessitura. Foram elas que deram as contribuies para entendermos questes relativas
identidade, cotidianidades, tradies e fronteiras do viver na comunidade.
Elisabeth, 75 anos. Foi entrevistada em janeiro de 2018.
2 Os nomes das mulheres participantes do objeto dessa pesquisa so fictcios. As mesmas optaram pela supresso de seus nomes oficiais, escolhendo nomes que tiveram ou tem representatividade em suas vidas.
17
Elisabeth, nome fictcio da entrevistada, escolheu esse nome para homenagear sua filha
que morreu de parto. Ela considera sua filha uma representante de mulher forte, pois tornou-
se me ainda muito jovem, criou os filhos sozinha e para garantir o sustento deles trabalhou
na roa. Infelizmente foi dependente do lcool. Aos 27 anos morreu de parto. Segundo a
colaboradora, sua filha sofreu preconceitos por ser me solteira. Mas mesmo assim, para ela,
morar em Nova Esperana um presente. Considera ser um lugar abenoado por Deus.
Helena, 60 anos. Foi entrevistada em fevereiro de 2018.
Helena o pseudnimo de uma mulher forte, exerce liderana em vrios setores da
comunidade. Escolheu se chamar Helena porque no teve filhas, mas se tivesse, seria esse o
nome por simbolizar, segundo ela, fortaleza. Helena dessas mulheres que no foge luta,
cuida com carinho da memria da comunidade e das pessoas do lugar. Diz que apesar de no
ser negra quilombola e que Nova Esperana acolhedora. Ela mesma se sente acolhida.
Janana Perseguida, 60 anos. Entrevistada em dezembro de 2017 e fevereiro de
2018.
Com nome e sobrenome, Janana Perseguida explica: o nome por representar sua
companhia espiritual e o sobrenome por simbolizar sua histria de sofrimento no mbito
espiritual e social. Disse sofrer preconceito no por ser negra, mas por ser pobre. Gosta de ser
quilombola, mas gostaria que houvesse mais unio entre as mulheres.
Maria, 62 anos. Entrevistada em fevereiro de 2018.
Escolheu se chamar Maria dizendo que toda mulher um pouco Maria. Chegou na
comunidade quando se casou. Mas disse que Nova Esperana parte do que ela . So muitos
anos e no tem como no ser parte dela, mas gostaria de mais oportunidades. Comerciante,
disse que seu papel na comunidade para se ter orgulho.
Evilsia, 34 anos. Entrevistada em dezembro de 2017.
O nome em homenagem a av. Disse que sua av um smbolo de mulher guerreira
porque criou os filhos trabalhando na roa como diarista. Passou muita dificuldade, mas nunca
desistiu de lutar. Se considera um smbolo da resistncia da av. Moradora da comunidade
adjacente chamado de Muringa, foi profissional da sade na comunidade. Apesar de ter
nascido na regio, percebe que existe certa resistncia por parte dos herdeiros do fundador em
18
considerar os demais como quilombolas, mas que sabe que quilombola. Diz ser a cultura do
lugar muito importante e por isso precisa ser preservada.
Umberlinda, 15 anos. Entrevistada em dezembro de 2017 e fevereiro de 2018.
Escolheu se chamar Umberlinda em homenagem a me. Para a colaboradora sua me
uma grande mulher que, apesar de tudo o que viveu, ficando paraplgica, no desistiu dos
filhos e de ganhar o prprio sustento. Umberlinda estudante, crist, e v a escola como um
espao que contribui para fortalecer a cultura quilombola. Ela deseja mais acesso cultural para
os jovens e diz que no percebe uma preocupao por parte dos mais velhos em atrair a
juventude para os eventos tradicionais da comunidade. Diz sou branca, mas sou da
comunidade, ento sou quilombola.
Almerinda, 33 anos. Entrevistada em fevereiro de 2018.
Escolheu o nome em homenagem a av. membro da 3 gerao da famlia dos
fundadores da comunidade. Disse que guarda de sua av as melhores lembranas da infncia.
Foi criada por ela. Professora, acredita ser a educao o melhor caminho para se tornar
independente. Diz tambm que a escola tem o dever de tratar das questes que envolve a
histria da comunidade e do negro de modo geral. Acredita que a memria dos mais velhos
precisa ser preservada.
Essas so as mulheres, representantes do mulherio3 da comunidade, que se juntam, se
organizam na busca por outros horizontes. Talvez no conheam o termo sororidade, mas
sabem o que unio; talvez no entendam o que feminismo, mas mesmo assim, buscam
igualdade de direitos, como equiparidade salarial. Sabem mais de solidariedade do que de
competio; so da lida e do bem viver; tudo porque, em comum, carregam ancestralidades
da resistncia cultural e do coletivismo como sinnimo para a sobrevivncia.
Por falta de oportunidade, a maioria semianalfabeta, com exceo de uma com nvel
superior, uma estudante do Ensino Mdio e outra com formao tcnica.
Devidamente apresentadas, seguimos viagem rumo s suas memrias, de onde cavamos
informaes, entrelaamos narrativas entre as curvas dos esquecimentos e das lembranas.
Delas, abstramos experincias de si e de seus antepassados, vivenciados na comunidade.
Tudo isso s foi possvel, graas aos laos de cumplicidade e confiana estabelecidos entre
ns.
3 Termo utilizado por Llia Gonzlez para designar uma grande poro de mulheres. (Mulherio. ANO 1. N 0, 1991).
19
Ressaltamos que, no decorrer da explanao, as participantes da pesquisa sero
chamadas de colaboradoras4.
ESPAO, CATEGORIAS E MTODOS DA PESQUISA
A comunidade de Nova Esperana, a partir de 1998, passou pelo processo de
reconhecimento como remanescente quilombola. Foi um longo processo at o recebimento
pela Fundao Palmares, publicada no Dirio Oficial de 28 de novembro de 2003, a certido
de Autodefinio, conforme acordo Decreto 48.87 de 20 de novembro de 2003. O mesmo foi
lavrado em 26 de novembro de 2007. Nova Esperana, assim como a maioria das
comunidades negras, vem lutando por direitos a melhores condies de vida e pela
demarcao territorial.
As categorias abordadas na pesquisa so: Quilombo, Gnero e Fronteiras tnicas.
Acerca do conceito de quilombo, buscamos compreender as diversas ressemantizaes.
De forma sinttica, Jos Maurcio Arruti (2006, p. 318-319) define trs tipos principais do
termo quilombo: a primeira, o quilombo como resistncia cultural; o segundo, o quilombo
como resistncia poltica; e o terceiro, quilombo como cone da resistncia negra. Para o
antroplogo o terceiro o mais apropriado para o conceito de quilombo contemporneo, a
partir das proposies de Abdias do Nascimento no livro Quilombismo5 . Nesse sentido,
quilombo quer dizer reunio fraterna e livre, solidariedade, convivncia, comunho
existencial (ARRUTI, 2006, p.320).
Contemporaneamente, portanto, o termo no se refere a resduos ou resqucios
arqueolgicos de ocupao temporal ou de comprovao biolgica. Tambm
no se trata de grupos isolados ou de uma populao estritamente homognea.
Da mesma forma nem sempre foram constitudos a partir de movimentos
insurrecionais ou rebelados, mas, sobretudo, consistem em grupos que
desenvolveram prticas de resistncia na manuteno e reproduo de seus
modos de vida caractersticos num determinado lugar (Associao Brasileira de
Antropologia-ABA, 1994, p. 81)6.
4 Para A histria oral de vida, por sua vez, trata-se da narrativa da experincia de vida de uma pessoa (MEIHY, 2005, p.147).
Nessa viso, a pessoa que narra sua trajetria um interlocutor com quem se estabelece uma relao de cooperao, criando,
desta maneira, a possibilidade de uma relao dialogada. Busca-se construir uma relao de colaborao e, por isso, adotamos
nesse trabalho o termo colaboradora em substituio a entrevistado ou informante, pois em conjunto com a pesquisadora
elaboraram conjuntamente o registro de sua histria e da comunidade. 5 De acordo com Abdias do Nascimento, quilombismo aponta a ideia de que o Brasil foi construdo pelo trabalho dos
africanos, negros e mulatos. Nossos ancestrais nos legaram outra herana: a construo de um pas chamado Brasil
(NASCIMENTO, 1992, p. 25). 6 Documento do Grupo de Trabalho sobre Comunidades Negras Rurais, 1994.
20
Esta a definio que melhor elucida a comunidade em estudo, pois o lugar no
pertence to somente ao passado escravagista, tampouco uma comunidade isolada no tempo
e no espao, ao contrrio, tem exmia participao na estrutura social vigente. Diversos autores
discutem o conceito de quilombo, neste trabalho nos quais debruamos nas conceituaes de:
MOURA (1991), FREITAS (1994), LEITE (1999) ARRUTI (2006) E FIABANI (2012).
A despeito dos estudos de gnero, o recorte se fez a partir da interseccionalidade Gnero,
raa e etnia. Para o qual adentramos no universo da mulher enquanto mulher-negra-
quilombola. Abordar gnero nesse sentido, apresenta-se como possibilidades para a
compreenso das relaes de poder emaranhadas com outras categorias.
Para politizar as desigualdades de gnero, o feminismo transforma as mulheres
em novos sujeitos polticos. Essa condio faz com esses sujeitos assuma, a
partir do lugar em que esto inseridos, diversos olhares que desencadeia
processos particulares subjacentes na luta de cada grupo particular. Ou seja,
grupo de mulheres indgenas e grupo de mulheres negras (grifo meu), por
exemplo, possuem demandas especficas que, essencialmente, no podem ser
tratadas, exclusivamente, sob a rubricada da questo de gnero se esta no levar
em conta a especificidades que definem o ser mulher neste e naquele caso
(CARNEIRO, 2003, p.119).
Estudos referentes histria das mulheres apontam para variadas atividades
desempenhadas por elas em contextos socioeconmico, poltico e social de pocas distintas.
Nos ltimos tempos, inclusive no Brasil, estudos referentes histria social, do cotidiano e de
sujeitos at ento invisibilizados pela histria oficial, tem colaborando para o registro da
histria das mulheres.
Desde o surgimento de Nova Esperana, as mulheres vm trilhando caminhos de
protagonismo na histria do territrio, visto que se fazem presentes em todos os espaos. Por
isso, enquanto personagens do local, foram elas imprescindveis na elaborao desse trabalho.
No intuito de conhecer mais sobre o que sabem e o que dizem essas moradoras, as
narrativas tecidas pelos sujeitos debruaram-se na Histria Oral como um caminho possvel
para adentrar o campo da memria individual e coletiva e tambm de anunciao de
identidades tnicas. Sobre memria coletiva, Maurice Halbwachs (1990), argumenta:
Para que nossa memria se auxilie com a dos outros, no basta que eles nos
tragam seus depoimentos: necessrio ainda que ela no tenha cessado de
concordar com suas memrias e que haja bastante pontos de contato entre uma
e outras para que a lembrana que nos recordam possa ser reconstruda sobre
um fundamento comum (HALBWACHS, 1990, p. 26).
21
As narrativas apresentadas pelas pessoas de mais idade ajudaram a reconstruir a
trajetria do surgimento do lugar, bem como as manifestaes culturais e religiosas, sendo as
mulheres as que mais guardaram na memria fragmentos do passado.
Para abordar gnero, na tica da interseccionalidade, optamos por tratar a categoria,
escutando escritoras brasileiras, destacando: Beatriz NASCIMENTO (1997 e 2006), Llia
GONZLEZ (1980, 1991, 2000 e 2011) e Sueli CARNEIRO (1993 e 1995).
Ouvir o que elas pensam sobre suas identidades tnicas na mobilizao pelo
reconhecimento de si e, por conseguinte a manuteno de pertena em comunidade foi
desafiador, mas necessrio.
Sobre as anlises referentes identidade tnica, buscou-se discutir as fronteiras tnicas
acionadas nas narrativas dos sujeitos. Para isso, analisou-se elementos expressados nas
entrelinhas. Logo, as narrativas foram de fundamental importncia para abstramos elementos
da identidade que atravessam ou criam fronteiras entre os sujeitos e, por conseguinte, revela
a comunidade.
Para tanto, os sujeitos, ao enunciarem suas memrias individuais, terminam por
expressarem memrias coletivas j que afinal de contas a histria de nossa vida faz parte da
histria geral (HALBWACHS, 1990, p.73) ao tempo em que elaboram e reelamboram
identidades. Ainda sobre a memria coletiva, Halbwachs relata:
Quando o evoco, sou obrigado a me remeter inteiramente memria dos outros,
e esta no entra aqui para completar ou reforar a minha, mas a nica fonte do
que posso repetir sobre a questo (...). Trago comigo uma bagagem de
lembranas histricas, que posso aumentar por meio de conversas ou leituras
mas esta uma memria tomada de emprstimo, que no minha
(HALBWACHS, 1990, p.72).
Sobre as questes identitrias, entendemos ser o que postula Hall (2005, 206), as
identidades so uma celebrao mvel, institudas nos modos de pensar nas relaes entre
o social e o simblico, marcadas pelo jogo de interesses e na interao entre sujeitos.
A identidade , portanto, um processo interminvel de interaes entre pessoas
resultando em fronteiras e proximidades em um territrio cultural, ou seja, construmos
identidades em interao com o outro, em contato com a famlia, a comunidade, a cultura, em
espaos diversos de maneira que adquirimos informaes que resultam em subjetividades
como nos fala Roy Wagner (2010, p. 211), o homem um mediador de coisas, construtor e
capaz de transformar-se nas coisas em seu entorno, de integr-las ao seu conhecimento, ao
e ser.
22
A abordagem da identidade passa pela pertena tnica, que, por sua natureza hbrida,
apresenta nuances das fronteiras tnicas, simulando jogo para a manuteno das dicotomias e
diferenas culturais. Barth, argumenta que Nos lugares onde as identidades sociais so
organizadas e divididas por tais princpios, logo haver a tendncia para a canalizao e
padronizao da interao e a emergncias de fronteiras que mantenham e gerem a diversidade
tnica dentro dos sistemas sociais englobantes de maior amplitude (BARTH, 2011, p. 200).
Com isso o conceito de etnicidade tem-se modificado, como aponta Poutignat & Streiff-
Fernart:
[...] a etnicidade no um conjunto intemporal, imutvel de traos culturais
(crenas, valores, smbolos, ritos, regras de conduta, lngua, cdigo de polidez,
prticas de vesturio ou culinria, etc.), transmitidos da mesma forma de
gerao para gerao na histria do grupo. (POUTIGNAT, STREIFF-
FERNART, 2011, p. 11):
Logo se compreende que o termo etnicidade possui um significado dialtico, bem como
o sujeito ou grupo do qual o termo define. Sendo assim, a identidade tnica tambm algo em
movimento, se estrutura e modifica nas relaes multiculturais, nas quais diferentes
comunidades culturais convivem e tentam construir uma vida em comum, ao mesmo tempo
em que retm algo de sua identidade original (HALL, 2006, p. 50), construdas na histria
individual, de grupo e da nao. Para tanto, traos culturais so elencados para garantir a
distino entre grupos que esto em contato contnuo na sociedade onde convivem.
Portanto, abordar a etnicidade e suas fronteiras, bem como a identidade, foi substancial
para entendermos as relaes concebidas pelas mulheres e suas percepes ao derredor. Suas
narrativas so entremeadas de sentidos, por vezes ditos intencionalmente, outras
despretensiosamente.
Mediante o exposto, para discutirmos os conceitos supracitados, inclinamos em tericos
como: GEERTZ (1978), HALL (2005, 2006, 2015), WAGNER (2010), BARTH (2011) e
POUTIGNAT & STREIFF-FENART (2011).
Em sntese, problematizar os elementos que constituem as identidades tnicas apontadas
por estas mulheres enquanto quilombolas. Conforme aponta Barth (2011, p.194), ao dizer que
na medida em que os autores usam identidades tnicas para caracterizar a si mesmo e os
outros, com objetivos de interao, eles formam grupos tnicos... A base para
compreendermos essas relaes estabelecidas sero os relatos orais das mulheres enquanto
grupo tnico e que apresentam unidades tnicas correspondentes sua cultura.
Conforme j dito, para a realizao dessa pesquisa, laos de confianas foram
previamente estabelecidos. Fizemos vrias visitas comunidade: em todas elas, Clemilda
23
Ferreira, presidenta da associao de moradores, possibilitou-me o acesso a documentos e
indicao de sujeitos para a pesquisa, sendo que a partir desses outros surgiram. Florinda dos
Santos, Ramon dos Santos e Senhorinha dos Santos, estas j com vnculos j estabelecidos
tambm foram de grande ajuda.
No primeiro encontro com a presidenta da associao, a Senhora Clemilda Ferreira, as
conversas informais constituram grande valia para os passos seguintes: visitar as pessoas,
participar das atividades culturais, acesso aos documentos e colher o seu depoimento. Todas
as pessoas com as quais conversei se mostraram receptivas e felizes em poder contar o que
sabem e como vivem em Nova Esperana.
Pretendemos responder a seguinte problemtica: Como as identidades tnicas,
construdas por essas mulheres, influenciam e so influenciada pela comunidade?
Na tentativa de responder a questo traamos como objetivo: Investigar como as
identidades tnicas vm sendo construdas pelas mulheres da comunidade Nova Esperana,
afim de identificar a partir das narrativas como essas mulheres se percebem etnicamente. Por
conseguinte, registramos suas narrativas na perspectiva das percepes e pertena s heranas
quilombolas e, por fim, analisamos como as mulheres da comunidade tm construdo e
percebido a identidade tnica local.
Sabendo que as colaboradoras da pesquisa esto inseridas em um contexto social,
religioso e poltico e, portanto, permeadas por conflitos, contradies, conferido pela cultura,
a pesquisa de natureza qualitativa que (...) construda para explicar ou para compreender
um fenmeno, um processo ou um conjunto de fenmenos e processos. (MINAYO, 2008,
p.17), afirmando ainda que um processo em espiral, pois se inicia com uma pergunta que
ao ser respondido cria novos questionamentos e dvidas. Para que os objetivos sejam
alcanados a pesquisa qualitativa propiciar uma anlise dialtica da cultura entendida com
participao ativa dos atores sociais envolvidos
Por ser uma pesquisa centrada na memria humana e trajetrias de vida de sujeitos
inseridos em um contexto que ao dizer testemunham o vivido, traando acontecimentos do
seu mbito familiar e comunitrio a partir da memria, o mtodo de Histria Oral til por
apresentar possibilidades de construto histrico de sujeitos at ento invisibilizados, como
define Paul Thompson (992):
Um mtodo bastante promissor para a realizao de pesquisa em diferentes
reas. preciso preservar a memria fsica e espacial, como tambm descobrir
e valorizar a memria do homem. A memria de um pode ser a memria de
muitos, possibilitando a evidncia dos fatos coletivos (THOMPSON, 1992, p.
17).
24
A Histria Oral busca detalhar o cotidiano de um grupo, os seus mitos, rituais e viso
de mundo, dando nfase histria e a prticas sociais de comunidades especficas e a sua
cadeia de transmisso. Nesse sentido, a Histria oral, como procedimento metodolgico,
busca perpetuar as vivncias de sujeitos que ao compartilhar percepes de si tambm fala de
seu entorno mesmo que involuntariamente. Salientamos que a pesquisa com a Histria Oral
procura buscar verdades e no uma verdade absoluta, totalizante.
Por isso, ao ouvir os sujeitos annimos articula-se as narrativas de uma histria no
linear de forma que o passado seja dito no como um lugar engessado, mas em um construto
discursivo em que os sujeitos se apresentam e representam outros sujeitos que em algum
momento tiveram contato construindo e reconstruindo a memria coletiva.
Porque a voz dos sujeitos historicamente invisibilizados foram cerceadas e, portanto,
no fazem parte da histria oficial, a Histria Oral de vida ser a tcnica utilizada, por trazer
a experincia do vivido das colaboradoras que se auto- reconhecem remanescentes
quilombolas, portanto protagonistas da pesquisa. Esta tcnica dar um norteamento do
caminho a ser seguido, como aponta Verena Alberti (2005),
O conhecimento prvio do objeto de estudo requisito para a formulao de
qualquer projeto de pesquisa. No caso da histria oral, dele dependem as
primeiras escolhas que devem ser feitas no encaminhamento da pesquisa: que
pessoas entrevistar, que tipo de entrevista adotar e quantas pessoas ouvir
(ALBERTI, 2005, p. 32).
A escolha pela Histria Oral de vida deu-se ainda por conta de a pesquisa estar pautada
no resgate da memria da comunidade a partir do que dizem essas mulheres. Nossa
preocupao tem sido exatamente dar existncia participao dos membros da comunidade
na elaborao da histria do grupo, ouvindo o que dizem e, por conseguinte visibilizem-se
atravs da histria oral de vida.
A Histria Oral de vida uma tcnica que debrua sobre a fala, sua fonte de pesquisa.
Com esta tcnica amplia a possibilidade de aproximar mais as colaboradoras da pesquisa, pois,
atravs de suas falas, podemos analisar como se percebem e constituem sua identidade, valores
e cultura. Como procedimento metodolgico, a histria oral busca registrar e, portanto,
perpetuar impresses, vivncias, lembranas daqueles indivduos que se dispem a
compartilhar sua vivncia que, nesta pesquisa, ser dado nfase aos discursos das mulheres
para compreender como estas enunciam as suas identidades tnicas, pois de acordo com Jos
Carlos Bon Meihy,
25
(...) a histria oral de vida se espraia nas construes narrativas que apenas se
inspiram em fatos, mas vo alm, admitindo fantasias, delrios, silncios,
omisses e distores (...) as histrias de vida so decorrentes de narrativas e
estas dependem da memria, dos ajeites, contorno, derivaes, imprecises e
at contradies naturais da fala (B. MEIHY, 2013, p. 34 e 35).
A utilizao da escuta e o registro das vozes dos sujeitos estudados possibilitam avanos
quanto visibilizao da problemtica em seus mais variados aspectos. Sendo assim, a
Histria Oral pode fornecer subsdios para os estudos que procuram trabalhar com as mltiplas
vozes que podem surgir no decorrer da pesquisa. E por isso, a histria oral diferencia-se, pois,
o narrador assume as suas escolhas, interferncias, os esquecimentos e a omisso de fatos,
seja intencional ou no. Vale salientar que para Alberti (1989) a Histria Oral :
(...) um mtodo de pesquisa (histrica, antropolgica, sociolgica, (...) que
privilegia a realizao de entrevistas com pessoas que participaram de, ou
testemunharam acontecimentos, conjunturas, vises de mundo, como forma de
se aproximar do objeto de estudo. Trata-se de estudar acontecimentos
histricos, instituies, grupos sociais, categorias profissionais, movimentos,
etc. (ALBERTI, 2005, p. 52).
A anlise dos dados ocorre em trs etapas procedimentais. Sendo que a primeira
consistir na transcrio das entrevistas com as mulheres que transformar o oral em escrito
embasado no que diz Meihy (2005, p. 135) de que a transcrio nos aproxima do sentido e
da inteno original que o colaborador quer comunicar. E tudo vira ato de entendimento do
sentido pretendido pelo emissor, que pode ser expresso tanto oralmente quando por escrito.
Embora seja uma etapa rigorosa, exaustiva e tcnica da transcrio de grande importncia
para a construo e anlise das histrias de vida, principalmente por sua natureza reiterativa e
absoluta.
Efetivada a primeira fase, seguimos com a textualizao, etapa em que o pesquisador
adapta as falas conforme as regras gramaticais, mas, sobretudo, organizando sua cronologia e
as temticas a fim de facilitar a compreenso em favor de um texto mais liso, mas sem tirar a
sua essncia o que Bom Meihy (2005) chama de tom viral.
E, por fim, partiu-se para a Transcriao7, fase fundamental para a histria oral por sua
essncia subjetiva por garantir o que foi dito e a maneira que foi falado respeitando a
enunciao da colaboradora. Seguindo as trs etapas, confrontaremos os dados obtidos das
7 Refere-se a incorporao de elementos extra-textos na composio das narrativas dos colaboradores. Procura-se recriar o contexto da entrevista no documento escrito. Mais do que uma traduo, tenta-se elaborar uma sntese do sentido percebido
pelo (a) pesquisador(a) alm da narrativa e performance do colaborador(a).
26
entrevistas com a teoria estudada e analisar as categorias de anlises que contemplem as
narrativas
Sabemos que tcnica da histria oral de vida permite compreender subjetividade que
parte inerente da pesquisa em que aborda questes etnogrficas. Ressaltamos que o trabalho
com a fonte oral no substitui a fonte documental; complementam-se. As narrativas so
gravadas e posteriormente transcritas, tornando-se fonte escrita para a manuteno do registro.
Nessa dinmica, as falas podero contar as vivncias e percepes das mulheres da
Comunidade Quilombola Nova Esperana e como estas interferem na construo de suas
identidades.
Assim, inicialmente foi realizada entrevista com uma colaboradora, a escolha se deu
por critrios pr-estabelecido, por ser lder da associao de Moradores e com idades acima
dos 50 anos. No desenrolar das entrevistas o nmero de colaboradoras aumentaram para dez,
mas optamos por analisar a colaborao de sete mulheres, conforme o perfil j explicitado
anteriormente. Salientamos que a idade varia entre 15 e 75 anos, propositalmente, quisemos
observar tambm, como se d a percepo tnica de acordo a faixa etria.
Em sntese, esse mtodo, favorece evidenciar as pessoas historicamente silenciadas na
histria oficial, portanto, colabora para novas perspectivas para as minorias tnicas e sociais
permitindo novos olhares sobre a prpria histria. Ela favorece visibilidades estes
segmentos, possibilitando futuras aes de polticas pblicas em prol de seu bem-estar.
Propsito final dessa pesquisa.
De posse de todas essas etapas, o presente trabalho ser apresentado em trs captulos,
assim distribudos:
Captulo 1 Percorrendo caminhos: a histria do lugar: apresentado a histria do
lugar a partir das narrativas dos moradores mais velhos, extrados das suas memrias e das
prprias experincias. A fala dos sujeitos reconstri a histria do lugar, pontuadas no contexto
do seu surgimento, entrelaadas com as histrias dos fundadores, a cultura local. Como isto,
se constituem na memria coletiva e de pertencimento identitrio quilombola. Sobre a histria
dos fundadores, enfatizamos a participao da matriarca como personagem de relevncia para
a sobrevivncia do grupo.
Ainda nesse captulo abordamos o processo de reconhecimento como lugar de
remanescentes quilombolas. Nesse captulo, situamos ainda a comunidade dentro do seu
territrio de identidade baiana e falamos de suas produes agrcolas, as relaes de trabalho
e nmero de habitantes. Nesse quesito, constatou-se serem as mulheres a maioria da
27
populao. Abordamos tambm o sentimento que os habitantes tm sobre o que ser
quilombola.
Captulo 2 A mulher na historiografia: uma luta para alm do pertencer:
Iniciamos com uma abordagem historiogrfica sobre a histria das mulheres e a negao da
mesma sobre elas. Nesse mesmo tpico, discutimos sobre os estudos e estudiosas do
movimento feminista brasileiro, a interseccionalidade de gnero dando nfase a mulher negra.
Para isso, optamos majoritariamente por escritoras brasileiras ligadas a militncia negra.
Apresentamos o cotidiano das mulheres de Nova Esperana, seus afazeres domsticos,
culturais, seus trabalhos remunerados e suas relaes cotidianas. Para isto, ouvimos relatos de
mulheres que se destacam nas atividades que exercem na comunidade. Por se tratar de sujeitos
de uma comunidade quilombola, as atividades culturais e religiosas tambm foram discutidas
nesse captulo. Apontamos para a festa de Nossa Senhora do Rosrio- padroeira da
comunidade e sua proeminncia e significados na memria dos descendentes dos
fundadores. A comunidade tem fortes influncia das culturas africanas na realizao dos
festejos, especialmente no Terno de Reis, que associa elementos catlicos aos africanos.
Ainda se tratando da religiosidade, discutimos o sincretismo religioso e sua negao, a partir
da histria da parteira Marcelina dos Santos.
O captulo buscou pontuar a forma como os sujeitos da comunidade vivenciam suas
experincias cotidianas, da luta para alm do ser, do pertencer e participar ativamente nas
vrias esferas da comunidade. Para as mulheres morar nesse territrio uma luta diria na
busca do bem comum. Elas se reconhecem importantes para a visibilidade do lugar e registram
a importncia da unio do grupo.
Captulo 3 - Elas e as narrativas de si: revelando identidades tnicas: Aqui
privilegiamos as narrativas das colaboradoras, sujeitos do objeto da pesquisa. Para
fundamentar as anlises nos debruamos nos conceitos de identidade, cultura, pertencimento
e fronteiras tnicas. Constamos a proeminncia de fronteiras entre quem de dentro e de fora
ao que tange os elementos culturais, religiosos e ainda sobre as diferenas de classe. Vimos
tambm o realce dado as culturas locais e o sentimento de pertena tnica.
As narrativas apontam para o entrecruzamento de elementos comuns ao que tange a a
identidade dos sujeitos e, por conseguinte, revelam a tambm a identidade. As narrativas
colaboram para o entendimento da realidade coletiva vivida por elas, revelando o que as unem
e o que as separam. As narrativas pontuam tambm a necessidade de se passar adiante a
28
histria local no intuito de se manter viva o sentimento de pertencimento tendo a educao
como principal lugar para isto.
Em cada captulo, h resqucios da memria vivenciada, no como deslocamento do
passado para o presente, mas as releituras providas pelos sujeitos no presente vivido em um
vo e vm dos entrelao da memria coletiva.
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CAPTULO I
PERCORRENDO CAMINHOS: A HISTRIA DO LUGAR
Cacau boa lavra, eu vou colher! Na fora do vero, eu vou vender! Cacau
boa lavra! O cacau boa lavra, assim diz o lavrador! Cacau de 150, muitos
homens enricou! Cacau boa lavra!
(Cantiga de roda da comunidade)
A memria, na qual cresce a histria, que por sua vez a alimenta, procura salvar
o passado para servir ao presente e ao futuro. Devemos trabalhar de forma que
a memria coletiva sirva para a libertao e no para a servido dos homens
(LE GOFF, 2003, p. 471).
1.1 - A COMUNIDADE QUILOMBOLA: UMA NOVA HISTRIA, TEMPOS DE
ESPERANA
A histria feita por homens no seu tempo, mesmo quando precisamos nos debruar
nos acontecimentos do passado para a compreenso do momento presente. Nesse sentido, a
memria daqueles que vivem e vivenciam o cotidiano de um lugar imprescindvel para nos
reportarmos aos fatos passados. Para conhecermos a histria da comunidade, ouvimos os mais
velhos da localidade. Nas colaboraes todos eles fazem uma viagem ao tempo anterior e
articulam com o momento presente de forma a transitarem entre o saudosismo, e a realidade,
na esperana de um presente menos doloroso.
Frente ao exposto, as memrias do grupo dos moradores de Nova Esperana
apresentam a histria de sua comunidade, construda na coletividade, na luta pela manuteno
da identidade e na labuta cotidiana por melhores condies de vida para todos que ali vivem.
O territrio do qual trata o presente estudo um lugar de remanescentes quilombolas8,
localizado no municpio de Wenceslau Guimares9, Territrio de identidade do Baixo-Sul da
Bahia10, distante 290 km de Salvador. Conforme o censo 201011 a populao de Wenceslau
8 O conceito de quilombo ser exposto no decorrer deste captulo. 9 Emancipada em 1962, Wenceslau Guimares um municpio brasileiro do estado da Bahia. Sua populao estimada
em 2013 era de 23.046 habitantes. o maior produtor nacional de graviola e banana-da-terra. De acordo os dados do
IBGE o muncipio tem uma rea de 655,239 km2 e com populao estimada em 22.445 habitantes conforme dados
de 2016. 10 Ver mapa- imagem 03/ Apndices 11 Disponvel em: http://populacao.net.br/populacao-wenceslau-guimaraes_ba.html
30
Guimares de 22.189 habitantes. Sendo a populao masculina de11.475, enquanto a
populao feminina de 10.714 habitantes.
A despeito da fundao da comunidade, as narrativas dos colaboradores chegam em
um lugar comum. Segundo eles, se d pela chegada de seu fundador, o Sr. Faustino dos Santos,
e sua famlia, por volta da primeira metade do sculo XX, mais precisamente em 1929.
Oriundos do Serto da Bahia, fugiram da Guerra de Canudos e da seca que devastou a
regio, a p, carregando seus pertences em surracas12 e algumas economias em dinheiro
adquirido atravs do trabalho realizado de fazenda em fazenda. Aps meses de viagem, ele e
sua famlia chegaram regio onde hoje situa-se Nova Esperana. Neste advento, encontraram
alguns posseiros13, entre eles Manoel Calixto, com quem o patriarca adquiriu as terras onde
atualmente a comunidade apresentada.
A histria da comunidade se faz presente nos depoimentos das pessoas mais velhas do
lugar quando narram a saga da famlia dos Santos, sendo estes relatos preponderantes para
conhecermos a historiografia local.
Nas comunidades tradicionais, a memria tem seu clmax entre os mais velhos, como
netos, bisnetos, conhecidos/compadres dos primeiros moradores que guardam as histrias dos
seus ancestrais e com isto, em constante entrelaar de memrias, possvel recuperar relaes
e acontecimentos.
Halbwachs anuncia o seguinte:
Muitas vezes na medida em que a presena de um parente idoso est de alguma
forma impressa em tudo o que este nos revelou sobre um perodo e uma
sociedade antiga, que ela se destaca em nossa memria no como uma
aparncia fsica um tanto apagada, mas com o relevo e a cor de um (personagem
que est no cento de todo um quadro, que resume e o condensa (HALBWACHS,
1990, p. 85).
Os herdeiros mais velhos contam e recontam essa histria. Dentre estes o Senhor
Getlio Jos dos Santos, neto mais velho do Senhor Faustino Jos dos Santos: A ele chegou
e veio em 29 [1929] com a filharada toda, menos meu pai que tinha casado, minha me grvida
de eu no ms de ganhar nenm de forma que eu fui nascido no dia 15 de junho de 1929, em
32 ele14 veio pr aqui (Getlio dos Santos15, 2016).
12 Saco onde os sertanejos colocavam seus pertences e carregavam sobre as costas. 13 O termo posseiro aqui utilizado pelos colaboradores como sinnimo de primeiros ocupadores das terras da regio. 14 Refere-se a Maurcio Jos dos Santos, pai do entrevistado. 15 A entrevista com Getlio dos Santos foi realizada por Wesley Santos de Matos Mestrando em Relaes tnicas/
UESB, em 2016.
31
Este relato confirmado na narrativa de Florinda dos Santos, outra neta de Sr.
Faustino:
Ele era pai de 7 filhos. No trouxe todos os 7 na poca. Trouxe uma metade
porque tinha um mais velho que a esposa estava esperando o nenm, a ele
esperou o nenm nascer pra ele poder vim acompanhado, vim ao encontro do
meu av que esse filho que o mais velho chama-se Getlio. Getlio que at
hoje ele vive na Comunidade aqui tambm (Florinda dos Santos, entrevista,
2017).16
Quando o Senhor Faustino chegou j havia pessoas morando no entorno, inclusive
havia casas de taipa com cobertura de palha, era todo mundo negro, uma regio quilombola
sim senh (Getlio dos Santos, entrevista, 2016). Faustino sentiu-se realizado nas novas
terras por conta do sonho de ter um pedao de terra prpria e por isto ele nomeou o lugar de
Nova Esperana, pois havia encontrado um lugar promissor.
Na poca, a comunidade era pertencente ao municpio de Nilo Peanha Bahia
(Getlio dos Santos, entrevista, 2016). Assim, em 1929, o senhor Faustino Jos dos Santos
fundou a comunidade Nova Esperana pensando, utopicamente, em um futuro melhor para
sua famlia. E como tal, a comunidade um lugar de novas esperanas para a sua gente; gente
que nunca esqueceu o seu passado e de onde veio, que luta pela efetivao dos seus direitos
mais fundamentais que lhes foram historicamente negligenciados, como, o direito definitivo
da terra, o reconhecimento da cidadania, a preservao de seu patrimnio cultural e a reverso
de estigmas racistas.
Ao chegarem, encontrava-se ali muita mata fechada, animais ferozes como a ona-
pintada, a suuarana, animais peonhentos e silvestres. Sobre isto Getlio Jos dos Santos,
neto de Faustino, narra que, naquela poca as onas vinham durante a noite comer perus17
no quintal das casas alm de vir beber gua no rio que passa nas proximidades da
comunidade. Outros elementos compem a histria da chegada e do desenvolvimento de Nova
Esperana, incluindo as motivaes para a escolha do lugar, conforme narra Florinda dos
Santos:
Eles (refere-se aos ancestrais da 1 e 2 gerao) falavam as matas por ter muito
verde, muita chuva, muita gua. Ento ele quis vim pra mata (...) l ento meu
av chegou at aqui, isso foi no final de 1929, ele fez uma aberta porque era
mata bruta muita mata e fez um rancho. Fez um rancho e veio morar. A foi o
procedimento que ele fez esse rancho e comeou a morar, na poca tinha muitos
animais muitos bichos como a ona, a anta era um bicho que existia aqui que
16 A transcrio das entrevistas seguir o curso da enunciao dos colaboradores conforme a tcnica da Histria Oral
em Bon Meihy (2005). 17 A ona-pintada um felino da Mata Atlntica, tpico do Sul do Brasil. Na regio existia muitas onas, por isso,
era comum elas se aproximarem das casas na busca de presas como galinhas e perus.
32
ele tinha uma passagem pra beber gua nesse rio por ser um poo muito grande
que at hoje ainda existe poo da anta18 que ela tomava gua que era passagem
pra ela tomar gua e a deu continuidade e no final de e depois de quando
comeou o ano de 30[1930] ele foi l no Serto trouxe os filhos, os filhos vieram
que ele era pai de sete filhos vieram casaram e deu continuidade a famlia e hoje
somos ns aqui a 3 ou a 4 gerao eu nem sei, que nosso av j se foi,
nossos pais e a gente t aqui dando. (Florinda dos Santos, entrevista, 2017).
Faustino e sua esposa Antnia, pessoas simples, moravam numa casa de palha e terra
batida. Com o passar dos anos, os filhos foram se casando e construindo suas casas ao redor
e assim foi dando corpo ao povoado.
As declaraes dos moradores da comunidade expressam a relao contnua entre
passado e presente, entrecruzada com vivncias pessoais e coletivas para a constituio do
grupo, pois as lembranas individuais corrobora para a memria coletiva onde se destacam
as lembranas dos acontecimentos e das experincias que concernem ao maior nmero de seus
membros e que resultam quer de sua prpria vida, quer de suas relaes com os grupos mais
prximos, mais frequentemente em contato com ele (HALBWACHS, 1990, p.45).
Nessa perspectiva, a memria coletiva acontece nas relaes de contato entre sujeitos,
isto , traz importante referncias na construo do processo histrico da comunidade que, ao
recordar, remonta a identidade local (Halbwachs (1990).
A memria coletiva resultado da juno das memrias individuais que, ao recuperar
suas lembranas, acionam elementos comuns, pessoas e sentimentos e reconstroem fatos,
embora ela no est inteiramente isolada e fechada (HALBWACHS, 1990, p. 54).
As falas dos descendentes destacam a importncia de Faustino dos Santos na formao
da comunidade, bem como da liderana e respeito que ele inspirava ali, conforme conta
Getlio dos Santos (entrevista, 2016) [...] e o povo em geral que foi conhecendo ele, tinha
respeito a ele.
O povoado de Nova Esperana composto por 95 famlias, totalizando 387 pessoas.
Quanto distribuio por gnero existe aproximadamente 44% de homens e 56% por
mulheres19. Os quilombolas vivem da lavoura do cacau, da banana e da graviola, todas elas
so produzidas em escala comercial. Paralelo a estas culturas, tm ainda produes de
subsistncias, como o milho, a mandioca, laranja, feijo e criao de animais de pequeno porte
para consumo prprio.
A relao de trabalho acontece entre os proprietrios das terras e os prestadores de
servios, os chamados diaristas. Esporadicamente, h trocas de servios, conhecido como
18 Atualmente esse Poo chamado pelos moradores de Poo Danta. 19 Dados colhidos na Associao de moradores.
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dmo20. Outra relao muito comum a de meeiros, que consiste na troca de servios entre
o dono das terras e ou plantaes e o lavrador. Neste tipo de trabalho, ocorre a diviso igual
dos lucros. A convivncia estabelece-se a partir de laos de parentescos e de compadrio, isto
colabora para uma convivncia pacfica entre os moradores. Outro fator preponderante a luta
pelo reconhecimento da comunidade enquanto lugar de ancestralidade negra.
Na regio, existe uma reserva ecolgica da Mata Atlntica que leva o mesmo nome da
comunidade. O constante trnsito de profissionais da rea ecolgica no povoado favoreceu o
despertar para o processo de reconhecimento enquanto lugar de reminiscncias quilombolas.
Conta Ramom dos Santos (bisneto de Faustino dos Santos):
Os profissionais da Reserva, ao passar sempre por aqui perceberam que aqui
poderia ter sido um lugar de quilombo, por ter uma grande quantidade de
pessoas negras. Isto despertou a curiosidade e comearam a conversar com
alguns moradores sobre a Fundao Palmares. Eles levaram a informao para
a Secretaria de sade que constatou o ndice elevado de pessoas hipertensas.
Disseram eles que uma doena que d mais em pessoas negras. Tudo isso
serviu para um longo caminho at o reconhecimento (Ramon dos Santos,
entrevista, 2017).
A religiosidade, a prevalecncia de gente de pele negra, os laos de parentesco, os
festejos populares despertaram nesses sujeitos a curiosidade em ouvir os mais velhos, com
narrativas das histrias de seus ancestrais, todas elas conduzindo a um acontecimento comum:
estrias da escravido. Isto foi o primeiro momento sobre o longo processo de pesquisa at o
reconhecimento oficial que trouxe o ttulo de comunidade remanescente quilombola21.
Dentre os aspectos percebidos, os laos de parentescos despertaram curiosidade entre
os profissionais da reserva ecolgica. Outra coisa foi devido ao grande nmero de parentes
e de casamentos entre pessoas da mesma famlia (Ramon dos Santos, entrevista, 2017). Pois h
uma teia inter-relacional entre os moradores que, imbricados com seus ancestrais em um
contrato de reciprocidade, ultrapassaram a linha do tempo enlaados na contemporaneidade.
Para Leite (2008, p. 4), As famlias nucleares ou extensas compartilharam e ainda
compartilham experincias de vrios tipos, trajetrias comuns, situaes de discriminao e
explorao, circunstncias de desencontros e desarticulaes grupais.
Igualmente, a comunidade de Nova Esperana mantm atributos obtidos desde sua
fundao. Lugar de pessoas simples que buscam manter suas tradies para a manuteno da
sua identidade, demonstrada nas organizaes dos eventos comunitrios, nas atividades
20 D mo refere-se ao trabalho coletivo, tipo mutiro. 21 O processo de reconhecimento ser tratado no item 1.3 deste captulo.
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agrcolas, na escolha de seus representantes polticos, enfim, pelos interesses nos objetivos
comuns, atravs da Associao de Moradores, instituio que viabiliza a busca pelos direitos
da comunidade, a exemplo da merenda escolar diferenciada e do escoamento de parte dos
produtos agrcolas, como o cacau, a graviola e a banana.
A respeito do escoamento da produo agrcola em comunidades tradicionais, Almeida
(2011, p. 62) expe que a questo do denominado quilombo hoje passa tambm pelo
entendimento do sistema econmico intrnseco a estas unidades familiares, que produzem
concomitantemente para o seu prprio consumo e para diferentes circuitos de mercado.
Na perspectiva de Barth (2011), as relaes elaboradas nesse espao se configuram
como marcadores de identidade tnica que os diferenciam os moradores de Nova Esperana
dos moradores de comunidades adjacentes. Com essas caractersticas singulares que se
manifesta o ser quilombola, embora seja possvel que no haja conscincia desse territrio por
parte dos moradores.
Por certo, ser quilombola para os moradores dessa comunidade perpassa por um longo
processo de compreenso de seu passado histrico e de reconhecimento de si enquanto
remanescentes. Para Senhorinha dos Santos, bisneta de Faustino dos Santos, ser quilombola
:
(...) pessoas guerreiras. Pessoas que lutaram. Muitas lutam para ter uma terra.
Porque viver como escravos mais difcil. A veio isso das pessoas adquirir
terras e viver assim num quilombo, longe da cidade. Que sabemos que quilombo
quando a gente viaja muito e batalha. E no diferente a nossa comunidade
(Senhorinha dos Santos, entrevista, 2017).
Ser remanescente quilombola sugere uma srie de questes gerais tangente
identidade como: que significou a introduo de tal categoria na vida cotidiana destas pessoas?
Como foi significada a categoria por eles? Quem mais participa da significao do conceito?
A inteno, para tanto, pensar sobre as dinmicas identitrias que esto sendo
experimentadas por esta comunidade em suas lutas por reconhecimento como remanescentes
de quilombolas. Para Leite (1999),
Os novos remanescentes, os velhos quilombolas ou os tantos negros
aparecem, ressurgidos/insurgentes, presentificados no discurso e na
perplexidade de um Brasil que quer se ver brasileiro, de primeiro mundo.
Provocando as elites, os setores instalados, os velhos preconceitos, aparecem
tambm a todos que se sensibilizam com a causa (LEITE, 1999, p. 124).
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Para tentar responder a esta questo, portanto, primeiro necessrio discutir o
significado de quilombo22 enquanto conceito socio-antropolgico, de forma a compreender
seus encadeamentos polticos e tericos. Sobretudo no que tange aos remanescentes
quilombolas distribudos em diversos lugares no Brasil.
Com isto, se faz necessrio adentrarmos pela historiografia do perodo colonial
escravagista, a fim de localizarmos e compreendermos os processos da instituio do
quilombo em terras brasileiras. Para as terras brasileiras no serem invadidas por outros
estados europeus, iniciou-se de fato, no Brasil, por volta de 1532, o processo de colonizao
das terras por Portugal a partir do acordo das Capitanias Hereditrias23.
Para consolidar a poltica econmica do Brasil colnia foram utilizadas as mos de
obra de ndios e negros. Conforme Vainfas(1986):
Possuir escravos, antes de qualquer coisa, eis o meio indispensvel para se
firmar na colnia. O morador honrado era o que podia sustentar sua famlia sem
desempenhar qualquer trabalho, e tanto mais rico seria quanto mais escravos
possusse. Honra e riquezas (fazendas) eram privilgios garantidos aos que
ingressavam na classe senhorial (VAINFAS, 1986, p.70)
Primeiro foram escravizados os ndios, os gentios da terra, considerados uma das
principais riquezas da colnia. Porm a escravizao dos povos originrios (ndios) deparou-se
com a questo cultural destes com relao a lida com a terra. Posto que eles no tinham um ritmo
intensivo, regular e compulsrio de trabalho. Os ndios resistiram s vrias formas de sujeio,
pela guerra, pela fuga, pela recusa ao trabalho compulsrio (FAUSTO, 2006, p.50).
22 O conceito antropolgico de quilombo perpassa a definio de quilombo histrico proposto por Dcio Freitas (1984) para a compreenso do mesmo, como terra de pretos, conforme Alfredo Berno de Almeida (2011) para o
qual quilombo todo lugar que onde seus moradores se autodefine descentes de escravos e ali apresente caractersticas
polticas, sociolgicas e antropolgicas da lida com o essencial, a terra. Segundo Arruti (2006) quilombo um tipo
organizacional que confere pertencimento por meio de normas e meios empregados para indicar afiliao ou
excluso. Isto, principalmente aos seus aspectos polticos -organizacionais. Em sntese primeiro foi terra de preto,
e, agora, mais comum a expresso comunidades remanescentes de quilombo ou comunidades quilombolas. Nas
palavras de Arruti (2005) temos a posio ressemantizadora, que resulta da equao das expresses terras de uso
comum, categorias de auto-atribuio, novas etnias e est associada quela outra genealogia do artigo 68
(ARRUTI, 2005, p. 100- 101). 23 As capitanias hereditrias surgiram por um documento expedido por Dom Joo III no qual dividiu a nova colnia
(Brasil) em quinze faixas de terra. Transferindo assim, a responsabilidade de ocupar e colonizar o territrio colonial
para terceiros. A doao de uma capitania era feita atravs de dois documentos: a Carta de Doao e a Carta Foral.
Pela primeira, o donatrio recebia a posse da terra, podendo transmiti-la para seus filhos, mas no vend-la. J a Carta
Foral tratava, principalmente, dos tributos a serem pagos pelos colonos. Definia ainda, o que pertencia Coroa e ao
donatrio. Se descobertos metais e pedras preciosas, 20% seriam da Coroa e, ao donatrio caberiam 10% dos produtos
do solo. O modelo de colonizao adotado por Portugal baseava-se na grande propriedade rural voltada para a
exportao. Desse modo, a colonizao iniciou-se, ento, apoiada no seguinte trip: a grande propriedade rural, a
monocultura de produto agrcola de larga aceitao no mercado europeu e o trabalho escravo. Vale ressaltar que as
capitanias de So Vicente e Pernambuco foram as nicas que conseguiram prosperar e superar as dificuldades da
poca.
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Alm do supracitado, as questes religiosas implantada pela igreja atravs da
catequizao jesutica e o grande ndice de mortandade advinda das doenas adquiridas,
contriburam para o fim da escravizao indgena.
Para Vainfas (1986, p. 79) em incios do sculo XVII a populao nativa estava em
vias de desaparecer pela ao de doenas e guerras, alm da presso escravista.
Freyre (2013) ressalta que a degenerao se deu tambm pelo modo de vida nmade
dos nativos, pois, Os povos acostumados vida dispersam e nmade sempre se degradam
quando forados a grande concentrao e a sedentarizao (Freyre, 2013, p. 110).
Diante desse cenrio, a alternativa foi a utilizao de escravos africanos, os chamados
negros da Guin. Assim, um longo e doloroso projeto de colonizao de explorao iniciou-se
por aqui como cita Dcio Freitas (1984).
A escravizao africana foi a soluo bvia, j adotada com brilhantes resultados na
Madeira e nos Aores, em So Tom e na Hispaniola a importao de escravos africanos. O
objetivo inicial era empreg-los no trabalho rduo e pesado nos canaviais e na produo do acar
nas capitanias de Pernambuco e Bahia. Negros... negros... negros..., os colonizadores queriam
negros, e estes, com efeito, foram chegando, primeiro s centenas, e depois aos milhares
(FREITAS, 1984, p. 11).
Aos africanos, no Brasil, foi-lhes imposto a escravido em sua forma mais dura: no
tinham nenhum tipo de liberdade, sendo subjugados s ordens do amo e senhor e reduzidos a
qualificao de coisa. O tempo mdio de vida do escravo, aps trabalho forado nos canaviais,
era de 5 anos; tinha como moradia as senzalas e sofria de toda sorte de violncia que aquele
contexto naturalizava. Revela Freitas (1984):
H memrias de sadismos inconcebveis: a castrao, a destruio de dentes a
marteladas, a amputao de seios, o vazamento de olhos, a marca na cara com
ferro em brasa, a queimadura com lacre ardente. Registraram-se casos de
escravos emparedados vivos, afogados, estrangulados. Em Pernambuco houve
casos de escravos arremessados vivos s caldeiras ou passado em moenda.
(FREITAS, 1984, p. 26).
Frente a todo esse cenrio desumanizado e desumanizador, os negros escravizados
iniciaram as mais diversas formas de resistncias s condies que lhes foram impostas. Entre
aquelas, a de fugir e se embrenhar pelas matas, a fim de resgatar sua humanidade, rompe-se
os quilombos, smbolo maior da resistncia do negro escravido.
Surgido no perodo colonial, o quilombo tem se modificado de acordo com o contexto
e as relaes estabelecidas ao longo dos anos. Por isto, no se restringe apenas a definio de
lugar de negros fugidos, conforme ficou reconhecido por mais de um sculo aps a
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promulgao da Lei urea de 1888, que oficializou o fim do trabalho escravo no Brasil. Mas,
tambm, como todo agrupamento oriundo das resistncias ao regime escravagista.
O quilombo simboliza a expresso da luta de classes no perodo escravagista
contra o sistema opressor, quer no seu sentido econmico quer na sua significao social, o
escravo fugido era um elemento da negao da ordem estabelecida (MOURA, 1981, p. 269).
Ressaltamos que o fim do trabalho escravagista no Brasil no significou trmino da
explorao da mo-de-obra das pessoas de pele negra, ao contrrio, o sistema capitalista
vigente mais uma vez usufrui-se da populao afrodescendente marginalizada como exrcito
servil. Isto resultou na reconfigurao dos agrupamentos dos sujeitos recm libertos na luta
pela terra, o que serviu para o fortalecimento dos quilombos pautados na territorialidade tnica
e identitria dos respectivos grupos. Nesse sentido, o passado escravista e as lutas pelos
direitos estabelecem um vnculo entre as resistncias quilombolas do passado e os direitos do
presente.
Clvis Moura (1981) trata o quilombo enquanto lugar de resistncia na perspectiva da
organizao poltica de homens que fugiam da situao de opresso vivenciada. Para este
pesquisador, era considerado quilombo qualquer forma de agrupamento em oposio a
escravido. De organizaes variadas, onde existisse resistncia ao cativeiro, l se encontrava
um quilombo.
O quilombo foi, incontestavelmente, a unidade bsica de resistncia do escravo.
Pequeno ou grande, estvel ou de vida precria, em qualquer regio em que
existia a escravido, l se encontrava ele como elemento de desgaste do regime
servil. (...) O quilombo aparecia onde quer que a escravido surgisse. No era
simples manifestao tpica. Muitas vezes surpreende pela capacidade de
organizao, pela resistncia que oferece; destrudo parcialmente dezenas de
vezes e novamente aparecendo, em outros locais, ... O quilombo no foi,
portanto, apenas um fenmeno espordico. Constitua-se em fato normal dentro
da sociedade escravista. Era reao organizada de combate a uma forma de
trabalho contra a qual se voltava o prprio sujeito que a sustentava
(MOURA,1981, p.87).
A questo quilombola complexa e isto por conta das variaes de seus conceitos,
visto que cada quilombo tem histrias distintas, no sendo apenas um reduto de negros
fugidos. Uns so resultado de compras de terras por escravizados forros. Outras de terras
foram herdadas dos antigos senhores em falncia. Apesar das diversas origens, h a
convergncia da escravido - por isso, existem definies distintas em torno da questo como
terra de pretos, remanescentes de quilombos, comunidade quilombola e comunidades
negras, rurais e ou urbanas.
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Sobre o termo remanescentes quilombolas, o pesquisador Arruti (2006, p. 121)
afirma que h uma difcil relao de continuidade e descontinuidade com o passado histrico,
em que a descendncia no parece ser um lao suficiente.
Por isso, essa definio vem se ressematizando, oscilando entre a interpretao
histrica e a antropolgica. Segundo Arruti (2008, p. 2), os quilombos no so isolados e nem
todos tm origem na rebeldia e tampouco definidos pela densidade demogrfica. Nesse
sentido, so considerados quilombos grupos que desenvolveram prticas de resistncia na
manuteno e reproduo de seus modos de vida caractersticos num determinado lugar.
Entende-se que os quilombos foram se ressignificando ao longo do tempo, assim, o
termo tambm foi modificado a fim de atender as demandas atuais. Sobre isto, a Constituio
Federal de 1988 no Art. 68, no Ato das Disposies Constitucionais Transitrias, Art. 68,
passa a considerar quilombo toda rea ocupada por remanescentes dos antigos quilombos.
Sobre isto, Almeida (2011, p. 47) reala que o novo significado expressa a passagem
de quilombo, enquanto categoria histrica e do discurso jurdico formal, para um plano
conceitual construdo a partir do sistema de representaes dos agentes referidos s situaes
sociais assim classificadas hoje. Ou seja, o termo quilombo carrega em suas entranhas muito
mais que uma definio meramente histrica e, sim, um amplo conceito que perpassa pelas
subjetividades de cada grupo nas pautas pela busca de direitos, seja de territrio, seja de
identidades.
O conceito quilombo foi estendido para atender o maior nmero possvel de
afrodescendentes que no necessariamente seja fruto de um lugar de movimentos de rupturas
escravido, mas a outros grupos de pessoas que de alguma maneira tenham vnculos com
este perodo e buscaram consolidar-se em um territrio com identidades e representaes
culturais prprias.
Tem-se buscado levar em conta a especificidade de cada comunidade
remanescente estudada, assim como sua identidade, sua autor-representao,
sua histria e os vnculos com ela estabelecidos pelos sujeitos sociais no
presente. Tem-se entendido, pois, quilombo como terra de negros, como espao
de resistncia, nas diversas formas atravs das quais essa resistncia pode se
manifestar (FIABANI, 2012, p.408).
O direito quilombola perpassa pelo patrimnio cultural interligado entre o material e
o imaterial. Por isto, as narrativas dos sujeitos inseridos no contexto da autoatribuio tanto
das relaes histricas, territoriais ou culturais coloca os remanescentes quilombolas em
uma relao contnua entre seu passado histrico e seu presente de luta poltica enquanto
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sujeitos de direitos e na sua autoatribuio tnica e identitria. Isto transforma o quilombo em
uma lgica da resistncia poltica, cultural e tnica.
Para os moradores da Comunidade Quilombola Nova Esperana, as representaes
sociais que os cercam, sejam nos folguedos, sejam na histria comum de seu surgimento, nas
prticas e ou crendices locais ou na vida em comunidade, os tornam quilombolas. Sobre as
tradies do lugar, Florinda dos Santos diz:
[...] ns temos de 1 a 5 de janeiro ns festeja tambm ns tm a nossa cultura
do Reisado com bumba-meu-boi e o samba de roda e que chama muita ateno
do povo e muita gente de fora vem festejar com a gente tambm 5 e 6 de
janeiro viu, a uma festa boa que a gente faz tambm, alm da festa da
padroeira em outubro a gente tem o Reisado de 5 e 6 de janeiro (Florinda dos
Santos, entrevista, 2017).
Para alm dos dispositivos legais de legitimao de um grupo de remanescentes
quilombolas, outros elementos como a religio, a cultura e as tradies externadas oralmente
e na memria coletiva e individual validam aquela comunidade. Na escuta, especialmente
dos mais velhos, que se gera o entendimento dos saberes e valores da comunidade e do
pertencimento ao grupo.
Ser quilombola est explicitado na fala do Senhor Getlio (2016) que, ao reafirmar sua
ancestralidade, reconhece-se quilombola:
Eu carrego minha carteirinha aqui oh! Eu tenho meu documento, mas essa
carteirinha no sai de dentro da minha ... (risos). No ela? (...) Em princpio
negro, porque no tem quilombola branco, faz a baldeao, mas a apurao
exata negro. Vem da descendncia de preto n, ento isso eu me considero
porque minha descendncia toda negra meu pai era um preto velho, o meu av
era um velho de respeito de cabea branca e os filhos tudo respeitava (Getlio
dos Santos, entrevista, 2016).
A autoatribuio alimenta o construto cultural da identidade coletiva (BARTH, 2011).
Os lastros da memria individual dos laos de pertencimento os fazem reconhecer-se neste
lugar, construindo-se social e culturalmente na lgica de pertencimento.
Ser quilombola na perspectiva das definies histrico-poltico-antropolgicas
perpassam pela autoatribuio e reconhecimento, como descrevem os colaboradores Florinda
dos Santos e Ramom dos Santos:
Eu acho que ser quilombola uma assim, representao que a gente est
representando mais ou menos, alis resgatando aquelas pessoas que foram
escravos na poca, os fugitivos da escravido. Ento, ns aqui estamos
representando essas famlias. Esse povo que vieram de escravos. A, eu acho
que ser quilombola isso. Praticamente a gente pode ser considerar participante
escravos (Florinda dos Santos, entrevista, 2017).
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Ser quilombolas so habitantes que vivem em comunidade rurais n?
Comunidades negras, de pessoas que foram escravizadas, sobrevivem
basicamente da agricultura, que vivem em terras invadidas e ou ocupadas. Na
minha concepo ser quilombola isto. Aqui um lugar quilombola (Ramon
dos Santos, entrevista, 2017).
Ser quilombola um constante apropriar-se em que os sujeitos envolvidos procuram
reescrever seu passado a partir do momento presente com o intuito de reelaborar um olhar
positivo sobre as pessoas que constroem este lugar. Seja pela resistncia ao direito da terra,
seja pelo reconhecimento enquanto grupo tnico.
Com isto, a comunidade Nova Esperana pode ser descrita como espao de identidade
cultural de reminiscncia quilombola e de permanncia histrica que rememora o passado
escravagista de seus antecessores. Ser quilombola, n