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NORMAL E PATOLÓGICO Este resumo apresenta os principais desenvolvimentos encontrados no volume Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais, de Paulo Dalgalarrondo (Porto Alegre, Artes Médicas, 2000), no capítulo “Conceito de normalidade em psicopatologia” (pp.25-27). O conceito de normalidade é extremamente controverso em psicopatologia. A fronteira entre o normal e o patológico só não é difícil de ser delineada em alguns casos como: - alterações comportamentais de intensidade acentuada e longa duração. - alterações mentais de intensidade acentuada e longa duração. O problema é extensivo a todo o campo da medicina: nível de tensão arterial (hipertensão), de glicemia (diabetes) etc. O estudo do médico e filósofo francês Georges Canguilhem O normal e o patológico (Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2001) é uma referência fundamental para o assunto. O conceito de normalidade em psicopatologia implica também na própria definição do que é saúde e do que é doença mental, definição que tem repercussões em várias áreas da saúde mental: 1. Psiquiatria legal ou forense – a determinação de anormalidade psicopatológica pode ter importantes implicações legais, criminais e éticas, podendo definir o destino social, institucional e legal de um sujeito. 2. Psiquiatria cultural e etnopsiquiatria – de modo geral, o conceito de normalidade em psicopatologia impõe a análise do contexto sócio-cultural e exige o estudo da relação entre o fenômeno supostamente patológico e o contexto social no qual tal fenômeno emerge e recebe este ou aquele significado cultural. 3. Prática clínica. Critérios de normalidade: 1. Normalidade como ausência de doença: o primeiro critério que se utiliza é de saúde como “ausência de sintomas, de sinais ou de doenças”. Como diz o velho aforismo médico: “A saúde é o silêncio dos órgãos”. Normal, desse ponto de vista, seria aquele indivíduo que simplesmente não é portador de um transtorno mental definido. Tal critério é bastante falho e precário, pois, além de redundante, baseia-se em uma “definição negativa”, ou seja, definiu-se a normalidade não por aquilo que ela supostamente é, mas sim por aquilo que ela não é, pelo que lhe falta.

Conceito de Normalidade Em Psicopatologia

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Page 1: Conceito de Normalidade Em Psicopatologia

NORMAL E PATOLÓGICO

Este resumo apresenta os principais desenvolvimentos encontrados no volume

Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais, de Paulo Dalgalarrondo (Porto Alegre, Artes

Médicas, 2000), no capítulo “Conceito de normalidade em psicopatologia” (pp.25-27).

O conceito de normalidade é extremamente controverso em psicopatologia. A fronteira

entre o normal e o patológico só não é difícil de ser delineada em alguns casos como:

- alterações comportamentais de intensidade acentuada e longa duração.

- alterações mentais de intensidade acentuada e longa duração.

O problema é extensivo a todo o campo da medicina: nível de tensão arterial

(hipertensão), de glicemia (diabetes) etc.

O estudo do médico e filósofo francês Georges Canguilhem O normal e o patológico (Rio de

Janeiro, Forense Universitária, 2001) é uma referência fundamental para o assunto.

O conceito de normalidade em psicopatologia implica também na própria definição do que

é saúde e do que é doença mental, definição que tem repercussões em várias áreas da saúde

mental:

1. Psiquiatria legal ou forense – a determinação de anormalidade psicopatológica pode ter

importantes implicações legais, criminais e éticas, podendo definir o destino social, institucional e

legal de um sujeito.

2. Psiquiatria cultural e etnopsiquiatria – de modo geral, o conceito de normalidade em

psicopatologia impõe a análise do contexto sócio-cultural e exige o estudo da relação entre o

fenômeno supostamente patológico e o contexto social no qual tal fenômeno emerge e recebe

este ou aquele significado cultural.

3. Prática clínica.

Critérios de normalidade:

1. Normalidade como ausência de doença: o primeiro critério que se utiliza é de saúde

como “ausência de sintomas, de sinais ou de doenças”. Como diz o velho aforismo médico: “A

saúde é o silêncio dos órgãos”. Normal, desse ponto de vista, seria aquele indivíduo que

simplesmente não é portador de um transtorno mental definido. Tal critério é bastante falho e

precário, pois, além de redundante, baseia-se em uma “definição negativa”, ou seja, definiu-se a

normalidade não por aquilo que ela supostamente é, mas sim por aquilo que ela não é, pelo que

lhe falta.

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2. Normalidade ideal: a normalidade é tomada aqui como uma certa “utopia”. Estabelece-

se arbitrariamente uma norma ideal, o que é supostamente “sadio” e mais “evoluído”. Trata-se de

uma norma constituída e referendada socialmente. Depende, portanto, de critérios sócio-culturais

e ideológicos arbitrários. Exemplos de tais conceitos de normalidade são aqueles baseados na

adaptação do indivíduo às normas morais e políticas de determinada sociedade. Ex: diagnóstico

de dissidentes políticos como doentes mentais na antiga União Soviética.

3. Normalidade estatística: a normalidade estatística é aquela que identifica norma e

freqüência. É um conceito de normalidade que se aplica especialmente a fenômenos

quantitativos, com determinada distribuição estatística na população geral – como peso, altura,

tensão arterial, horas de sono etc. O normal passa a ser aquilo que se observa com maior

freqüência. Os indivíduos que se situam estatisticamente fora (ou no extremo) de uma curva de

distribuição normal passam a ser considerados anormais ou doentes. Este é um critério muitas

vezes falho em saúde geral e mental, pois nem tudo o que é freqüente é necessariamente

saudável, assim como nem tudo o que é raro ou infreqüente é patológico.

Exemplos de fenômenos que podem ser muito freqüentes, mas que evidentemente não

podem a priori ser considerados normais ou saudáveis:

- cáries dentárias.

- presbiopia – vista cansada.

- sintomas ansiosos e depressivos leves.

- uso pesado de álcool.

4. Normalidade com bem-estar: A OMS – Organização Mundial de Saúde – definiu em

1958 a saúde como o “completo bem-estar físico, mental e social, e não simplesmente como

ausência de doença”. É um conceito criticado por ser muito vasto e muito impreciso, pois bem-

estar é algo difícil de se definir objetivamente. Além disso, esse completo bem-estar físico, mental

e social é tão utópico, que poucas pessoas se encaixariam na categoria “saudáveis”.

5. Normalidade funcional: este conceito se assenta sobre aspectos funcionais e não

necessariamente quantitativos. Um fenômeno é considerado como patológico a partir do momento

em que é disfuncional, provoca sofrimento para o próprio indivíduo ou para o grupo social.

Concepção relativista de normalidade.

6. Normalidade como processo: nesse caso, se considera os aspectos dinâmicos do

desenvolvimento psicossocial, das desestruturações e reestruturações ao longo do tempo, de

crises, de mudanças próprias a determinadas faixas etárias. Este conceito é particularmente útil

em psiquiatria infantil e de adolescentes, assim como em psiquiatria geriátrica.

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7. Normalidade subjetiva: aqui é dada ênfase maior à percepção subjetiva do próprio

indivíduo em relação ao seu estado de saúde, à suas próprias vivências subjetivas. O ponto falho

desse critério é que muitos indivíduos que se sentem bem, muito saudáveis e felizes, como no

caso de pessoas em fase maníaca, apresentam, de fato, um transtorno mental grave.

8. Normalidade como liberdade: alguns autores de orientação fenomenológica e existencial

propõem conceituar a doença mental como perda da liberdade existencial (Henri Ey, por

exemplo). A saúde mental estaria vinculada às possibilidades de transitar, com graus distintos de

liberdade, sobre o mundo e sobre o próprio destino. A doença mental é constrangimento do ser, é

fechamento, fossilização das possibilidades existenciais. O psiquiatra Cyro Martins, do Rio Grande

do Sul, afirma que, dentro desse ponto de vista, a saúde mental poderia ser vista como a

possibilidade de dispor de “senso da realidade, senso de humor e de um sentido poético perante a

vida”, atributos esses que permitiriam ao indivíduo relativizar os sofrimentos e limitações

inerentes à própria condição humana e, assim, desfrutar do resquício de liberdade e prazer que a

existência nos oferece.

9. Normalidade operacional: é um critério assumidamente arbitrário, com finalidades

pragmáticas explícitas. Define-se o que é normal e patológico a priori e busca-se trabalhar

operacionalmente com tais conceitos, aceitando-se as conseqüências de tal redução prévia.

Donde se conclui que os critérios de normalidade e de doença em psicopatologia variam

consideravelmente em função dos fenômenos específicos com os quais trabalhamos, e também de

acordo com as opções filosóficas do profissional. Em alguns casos, pode-se utilizar uma

associação de diferentes critérios de normalidade ou de doença. Esta é uma área da

psicopatologia que exige uma postura permanentemente crítica e reflexiva dos profissionais.

Observações adicionais:

A obra A louca e o santo, de Catherine Clément e Sudhir Kakar (Rio de Janeiro, Relume

Dumará, 1997), é riquíssima para a complexa discussão sobre o que é normal e o que é

patológico. Nela, uma filósofa francesa e um psicanalista hindu fazem um surpreendente estudo

comparativo dos destinos de Madeleine, considerada louca e internada em Paris no serviço de

Pierre Janet, e Ramakrishna, grande místico indiano que gozou de liberdade e reconhecimento.

Um dos textos mais importantes para abordar a questão do normal e do patológico do

ponto de vista psicanalítico é a obra de Sigmund Freud A psicopatologia da vida cotidiana (Obras

completas, v. VI, Rio de Janeiro, Imago, 1970), especialmente o capítulo XII, intitulado

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“Determinismo, crença no acaso e superstição – alguns pontos de vista” (pp.287-332), capítulo

teórico no qual Freud trata do problema do determinismo psíquico sob o ponto de vista da

sobredeterminação inconsciente. Nessa obra, escrita em 1901, logo imediatamente depois de A

interpretação dos sonhos, datada de 1900, Freud rompe a linha que separa o normal do

patológico, ao revelar a ocorrência, na vida cotidiana, de fenômenos cuja estrutura é a mesma

encontrada nos mais graves sintomas patológicos. Obra fundamental.

Sugerimos igualmente a leitura da obra de Octave Mannoni Freud – uma biografia ilustrada

(Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1993), excelente introdução à obra de Freud, bastante ilustrada, e

de agradável leitura, que acentua bastante a ruptura estabelecida por Freud com o saber médico

de sua época. Vindo do campo da literatura, o psicanalista Octave Mannoni foi um grande

companheiro de Lacan e sua obra é atravessada pelos ensinamentos deste.

Sugere-se ainda nossa breve introdução à obra de Freud escrita em colaboração com Nadiá

Paulo Ferreira Freud – o criador da psicanálise (Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2002, 2ª. Edição),

assim como nossa introdução ao ensino de Lacan, igualmente escrita em colaboração com Nadiá

Paulo Ferreira, Lacan – o grande freudiano (Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2005).

Nosso artigo “Discurso médico e discurso psicanalítico”, publicado inicialmente como

introdução à obra de Jean Clavreul A ordem médica – poder e impotência do discurso médico (São

Paulo, Brasiliense, 1983), e republicado em nosso livro Sexo e discurso em Freud e Lacan (Rio de

Janeiro, Jorge Zahar, 1988) pode ser lido igualmente no sentido de estabelecer a necessária

distinção entre o discurso médico e o discurso psicanalítico.

Finalmente, a obra de Jean Clavreul acima citada é uma referência fundamental sobre o

assunto. Ela foi originalmente publicada por Lacan em 1978 na famosa coleção Le champ freudien

que dirigia para a editora Seuil, em Paris.