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Concentração

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  • CONCENTRAORicardo Lsias

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    Damio resolveu viajar para Buenos Aires quando percebeu que a prxima crise de solido seria ainda mais forte. No comeo, ele sentia uma presso muito intensa na parte inferior da nuca e alguma di culdade para respirar. Depois, a presso come-ou a se alastrar pela regio lateral da cabea e, nas ltimas vezes, atingiu o maxilar. Quando o queixo comear a sentir aquela mal-dita presso, ele di cilmente conseguir levar uma vida normal. Desde a primeira crise, Damio passou a carregar para cima e para baixo uma boa reserva de barbeadores descartveis. Muitas vezes, a presso na nuca comea de noite, quando ele costuma tomar caf em um desses estabelecimentos que nunca fecham, e, quem sabe, escrever alguma coisa a partir das fotos dos jornais. Elas sempre o inspiram muito. Crtico, Damio j no acredita que a arte da fotogra a possa sobreviver ao excesso de arti cialismo dos jornais contemporneos. Mas o rigor no pode ser identi cado como uma das causas de suas crises de solido: a presso na nuca s vezes sur-ge enquanto ele est extasiado com uma bela fotogra a. A deciso de ir para Buenos Aires veio justamente de trs fotogra as que ele estava admirando quando a presso na parte inferior da nuca anunciou que a crise estava de volta. Com a vista meio escura, Damio estendeu o brao direito atrs de um aparelho de barbear descartvel dentro da mochila. Quando encontrou, levantou-se, tentou dominar o tremor nas pernas e se arrastou at o banheiro. Ao jogar um pouco de gua no rosto, para no passar a lmina a seco, ouviu algumas gotas respingando nas pginas do jornal e percebeu que o tinha levado junto com o barbeador para dentro do banheiro. Para no manchar a folha, Damio guardou o jornal por dentro da camisa e fez a barba.

    Damio percorreu o caminho do caf at o prdio onde vive com mais facilidade. Suas pernas ainda tremiam e a presso na parte inferior da nuca tinha aumentado, mas ele conseguiu se distrair um pouco recordando na cabea as trs fotos. Duas esta-vam ambientadas em um clube de xadrez da capital argentina. Na primeira, os jogadores, j de certa idade, conversavam. Certamente,

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    discutiam os lances de alguma partida famosa de xadrez. Na outra fotogra a, dois tabuleiros estampavam posies diferentes do que deveria ser algum momento importante da histria do jogo. En-quanto recortava a terceira fotogra a, que no tinha nenhuma re-lao com o jogo de xadrez, Damio sentiu que a presso na parte inferior da nuca se alastrava pela lateral da cabea. Suas pernas no conseguiam recobrar a rmeza e ele estava comeando a ter falta de ar. Para ver se conseguia aliviar um pouco as coisas, Da-mio tateou as paredes at o banheiro, abriu o armrio do espelho e retirou um barbeador descartvel. Dessa vez, ele passou a lmina no rosto seco mesmo. Respirando fundo, sentiu-se melhor. Aos poucos, suas pernas caram mais fortes e ele conseguiu voltar sala para procurar o telefone de alguma agncia de turismo. Como j passava das nove da manh, tentou ver se conseguia, logo para aquela noite mesmo, uma passagem para Buenos Aires. Assim, to em cima, s direto no aeroporto, e com sorte. Damio, irritado com a resposta, jogou algumas peas de roupa na mala de viagem, guardou as fotogra as e fechou o apartamento. Quando bateu a porta, sentiu o pescoo pesar e viu que a presso na parte inferior da nuca continuava. No banco, sacou um bom dinheiro, j que tinha optado por deixar suas economias em dlar no Brasil. Por um preo bem mais elevado que o regular, encontrou no aeroporto uma passagem para Buenos Aires em um vo sem escalas que sai-ria no meio da tarde. Antes de embarcar, Damio fez a barba, al-moou e passou na casa de cmbio para trocar seu dinheiro pelo peso argentino. A idia acabou se revelando uma enorme burrada: se tivesse levado dlar, teria conseguido bem mais ao chegar Argentina, pois nos dias seguintes o peso desvalorizaria bastante.

    Um pouco depois da decolagem, uma aeromoa foi at a pol-trona onde estava Damio e lhe ofereceu um band-aid. Ele aceitou a oferta, mais por delicadeza que necessidade, j que seu rosto no estava ferido. Ao acomodar a cabea no encosto do banco para ver se cochilava um pouco, sentiu a presso na parte inferior da nuca car, outra vez, muito forte. As coisas pioraram ainda mais quando Damio percebeu que tinha esquecido no Bra-sil o pacote com os barbeadores descartveis. Um pouco depois da refeio, bem no momento em que Dani recolhia o lixo dos passa-

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    geiros, a presso na parte inferior da nuca comeou a se alastrar de novo pela lateral do rosto. A prpria aeromoa j tinha nota-do que alguma coisa perturbava Damio, mas, seguindo o trei-namento, preferiu no perguntar nada enquanto algo mais grave no acontecesse. A presso obrigou Damio a cham-la e fazer o que estava tentando evitar a todo custo: perguntar se ela no tinha um aparelho de barbear descartvel. Surpresa e um tanto conster-nada, Dani respondeu que aquele tipo de coisa s est disponvel nos vos de longa distncia. Para tentar se acalmar, ele resolveu perguntar se a aeromoa conseguia identi car o lugar onde as trs fotos tinham sido feitas. Orientada pelo chefe da tripulao a cui-dar de Damio at o desembarque, ela pediu mil desculpas, mas admitiu logo de cara que no entende absolutamente nada de xa-drez. A foto no canto inferior da pgina, porm, seguramente foi tirada na rua Florida, em frente s Galerias Paci co. Aquele tipo de casal danando tango muito comum ali e ele no deve perder a oportunidade de assistir a um ou dois deles, pois muitas vezes o par at melhor do que os bailarinos dos sales especializados, apesar do preo abusivo dos ingressos que esse tipo de estabeleci-mento cobra. A presso na parte inferior da nuca, mesmo com a conversa, no arrefecia, mas Damio percebeu que, se continuas-se falando, conseguiria agentar sem desmaiar at a aterrissagem. Quando ouviu que ele estava indo a Buenos Aires para trabalhar, Dani quis saber a sua pro sso, mas s porque essa era a melhor forma de continuar a conversa. Ela j estava achando tudo meio montono. Damio respondeu dizendo que vivia de eventuais tra-balhos que oferecia imprensa. Um jornalista, portanto. No exa-tamente, esclareceu.

    Dani cou um pouco mais interessada e quis saber que tipo de texto ele gosta de escrever. Na verdade, Damio prefe-re os textos de co, mas ele tira o sustento das colaboraes para a imprensa, repetiu. Agora, Dani se interessou. Mas Damio no quis admitir que famoso. No Brasil ele muito conhecido e elogiado. Outra coisa que Damio tambm no revela para nin-gum o desagrado com que recebe as anlises do seu trabalho, sobretudo quando so usados termos como esttica, tcnica, criatividade e inveno. Sem falar nos odiosos derivativos: a

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    inventividade de um escritor como Damio rara e muito difcil de ser decodi cada em termos estticos, mas fcil ver que ele tem um domnio tcnico impressionante. Quando o capito pediu que a tripulao tomasse seus lugares, Dani se despediu oferecendo companhia para um passeio por Buenos Aires. Damio nem res-pondeu, pois quela altura a presso na parte inferior da nuca e no maxilar j no o deixava ouvir nada direito. Ele precisava arranjar um barbeador descartvel o mais rpido possvel, do contrrio desmaiaria a qualquer momento. Dito e feito: vinte minutos de-pois, Damio perdeu os sentidos na sada do tnel que leva os passageiros do avio at as esteiras de bagagem. Quando voltou a si, estava no ambulatrio do aeroporto de Ezeiza sendo observado por uma enfermeira e um mdico de cabelos brancos. Na porta, um o cial da Polcia Federal Argentina, mais ou menos da mesma idade que o mdico, olhava o brasileiro com alguma curiosidade. A enfermeira se aproximou e perguntou se estava tudo bem e se Damio queria um pouco de gua. Ele agradeceu e pediu um bar-beador descartvel. Dani achou estranho, mas explicou que seria melhor ele car uns trs ou quatro dias sem se barbear, porque seu rosto estava bem avermelhado. Na mesma hora, o mdico se aproximou, mas quem falou primeiro foi o policial. Damian perguntou se Damio tinha um documento de identidade ou um passaporte e, 15 minutos depois, voltou com um visto de turista carimbado. Antes de se despedir e de desejar boa viagem, Damian olhou de passagem para o mdico que acabava de receitar um calmante leve para Damio. Ficou claro que os dois, mdico e policial, tm algum tipo de proximidade. Damio, porm, no se interessou por isso.

    A propsito, investigar a proximidade que com certeza existe entre o mdico e o policial no foi algo que chegou sequer a passar pela cabea de Damio. Ele notou a troca de olhares, mas, como estava desesperado para comprar logo um barbeador des-cartvel, no deu ateno e, enquanto raspava o rosto no banheiro do aeroporto, esqueceu dos dois para sempre. uma pena, pois, se tivesse sido mais atento, a amizade renderia um dos melhores textos que Damio jamais escreveu. Damian e Damian se encon-traram pela primeira vez naquela mesma sala h 28 anos, no dia

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    em que o general Juan Domingo Pern retornou do exlio e causou um verdadeiro massacre no aeroporto de Ezeiza. Um grupo de militantes protagonizou um tumulto que resultou em um enorme tiroteio e em 13 mortos. O general foi desembarcar em outro aero-porto enquanto Damian, recm-contratado pelo governo, desespe-rava-se com tanta gente ferida. Um deles era justamente o policial que fora transferido naqueles dias para o controle alfandegrio. Nada disso, porm, e muito menos o que os dois zeram depois, passou perto dos planos que Damio fez no hotel, um pouco mais sossegado por causa do carregamento de barbeadores descart-veis que tinha comprado na loja de convenincia do aeroporto. A presso na parte inferior da nuca ainda o incomodava. En m, como ela estava diminuindo, talvez a crise o deixasse em paz logo. Antes de adormecer, Damio fez a barba para garantir que teria uma boa noite de sono. E ele dormiu bem mesmo, o que o ani-mou para pedir algumas folhas de papel pelo interfone. Logo, um funcionrio do hotel tocou a campainha e lhe deixou, alm do bloco de notas, um lpis. Damian agradeceu a gorjeta e, quando retornou portaria, voltou a interfonar para o hspede brasileiro, que recusou gentilmente os jornais do dia. Como o recm-chegado havia se registrado como jornalista (ainda que essa no seja a sua pro sso), Damian achou que ele gostaria, bem de manhzinha, de ler os jornais. Damio, ao recusar, justi cou-se dizendo que prefere ler enquanto toma o caf-da-manh, coisa que ele pretende fazer o mais rpido possvel, depois de se barbear.

    Antes de descer para o caf-da-manh, Damio se barbeou e rascunhou os planos para os prximos dias em Buenos Aires. Infelizmente, ele no reservou uma linha sequer para entender o que liga to intimamente o mdico e o policial que ele viu no ae-roporto de Ezeiza. Foi um enorme erro: se resolvesse investir na histria, com certeza seus leitores teriam um dos melhores textos que Damio jamais escreveu. O lapso no se deve presso que ele vem sentindo na parte inferior da nuca, sem dvida o sintoma mais terrvel de suas crises de solido. Nas outras vezes, mesmo quando a crise estava no auge, Damio tinha boas idias e s no podia realiz-las imediatamente porque a fraqueza nas pernas e os constantes desmaios o impediam de sair de casa. Tudo come-

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    ou, Damio nunca viria a saber, na tentativa catastr ca de de-sembarque de Pern no aeroporto de Ezeiza em 1973. Se tives-se seguido a pista, coisa que no fez, Damio no cairia no erro bvio de achar que os dois, na ditadura militar de Videla-Viola, tinham participado ou da represso aos montoneros ou, do lado oposto, dos grupos de oposio armada. Nenhum dos dois tem a menor ligao, ainda, com o atentado residncia do almirante Armando Lambruschini, muito embora Damio no v dizer isso. E nem qualquer outra coisa: o que ele est redigindo no bloco de notas o seu plano para os primeiros dias em Buenos Aires. Infe-lizmente o planejamento no inclui nem o mdico nem o policial que trocaram um olhar suspeito no aeroporto de Ezeiza. Damio pretende primeiro encontrar os dois jogadores de xadrez da foto e convenc-los a passar uma ou duas semanas com ele (os jogadores de xadrez, no o mdico e o policial) para reunir o maior nmero de detalhes possvel. Quando tiver material su ciente, vai partir ento para a segunda parte: a mesma coisa, mas agora com o casal de danarinos de tango. Sentindo que a presso na parte inferior da nuca tinha praticamente desaparecido, Damio fez a barba e desceu para o caf-da-manh.

    Enquanto tomava caf no hotel, Damio folheou os jornais ar-gentinos, mas no encontrou nenhuma fotogra a que lhe in-teressasse. La Nacin trazia a notcia de que, em uma provncia distante de Buenos Aires, um padre se cruci cara para protestar contra a crise econmica. A fotogra a, porm, no deixava ver se ele tinha as mos pregadas na cruz ou se elas estavam apenas amarradas. As manchetes traziam a notcia de que o ministro da Economia, Domingo Cavallo, resolvera restringir os saques ban-crios a mil dlares por ms, xando o limite mximo de 250 por semana. Logo a paridade entre o dlar e o peso, diziam os jornais, deveria cair. Damio viu que cometera um erro ao trocar, ainda no Brasil, seu dinheiro pela moeda argentina. O equvoco que no percebeu (e de que, alis, nunca se dar conta) que ele deveria ter investigado o que liga o mdico e o policial que o atenderam no aeroporto. Ao contrrio, ele realmente quis investir nas trs fotogra as que tinha trazido do Brasil. O primeiro passo, agora que est se sentindo melhor e a presso na parte inferior da nuca

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    imperceptvel, ser encontrar os dois jogadores de xadrez. Da-mian, o garom que o estava atendendo durante o caf-da-manh no hotel, explicou que no entendia nada do jogo. Talvez Damio pudesse conseguir alguma informao com os aposentados que se renem na praa Callao para jogar domin, gamo e, mais rara-mente, xadrez. Damio agradeceu, fechou a mochila e antes de entregar as chaves na portaria, foi at o banheiro do saguo fazer a barba. Antes de sair, Damio perguntou como fazia para chegar praa Callao. Damian pegou um mapa das ruas do centro da cidade e colocou o dedo no cruzamento entre a avenida Belgrano e a Nove de Julio. Eles esto ali. Basta Damio caminhar at a Entre Rios que, indo em frente, chega avenida Callao, onde est a praa. Gentil, Damian disse que, embora a cidade inteira seja bonita, a praa de Mayo um passeio mais interessante. Damio agradeceu, mas explicou que no est em Buenos Aires para fazer turismo, mas sim a trabalho.

    Damio no teve di culdade para encontrar a praa Callao. O problema mesmo era achar algum que pudesse lhe dar algu-ma pista sobre os dois jogadores de xadrez. Em um banco, dois idosos tomavam sol e jogavam cartas. Ambos pediram desculpas e disseram que no entendiam absolutamente nada de xadrez. Tam-bm no conheciam ningum que pudesse ajudar. A praa estava cheia de argentinos de todas as idades, muitos inclusive deviam ter passado a noite ali. De vez em quando algum falava um pa-lavro. Um grupo grande preparava uma faixa enorme pedindo a renncia do presidente. Cartazes menores reivindicavam a priso do ministro Domingo Cavallo. Nada disso interessou muito a Da-mio: o que ele quer encontrar os dois jogadores de xadrez e o casal de bailarinos de tango. Por isso, inclusive, Damio no deu a menor bola para a troca de olhares entre o mdico e o policial que o atenderam no aeroporto de Ezeiza. Se tivesse prestado mais ateno, quem sabe fosse possvel descobrir o que os une h tanto tempo e sua visita a Buenos Aires teria rendido o melhor texto que jamais escreveu. Com algum esforo talvez conseguisse at mesmo fotografar o corpo do general Pern. Damio muito respeitado no Brasil e, assim que anunciasse a descoberta (coisa que ele nunca vai fazer), com certeza conseguiria mobilizar uma infra-estrutura

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    poderosa. Qual no seria o susto do editor quando abrisse o e-mail e lesse que Damio tinha acabado de descobrir o paradeiro das mos do general Pern, roubadas do tmulo em junho de 1987! Mas uma coisa dessas nem passa pela sua cabea. Pelo contr-rio, ele est mesmo interessado em encontrar os dois jogadores de xadrez. Na praa Callao, no entanto, ningum tem qualquer informao. Entre os rapazes que esto pedindo a priso do mi-nistro Domingo Cavallo, um deles chegou a dizer que o av tinha uma caixa com as peas, mas acabou vendendo por um excelente preo no incio da crise. Para quem, ele no tem a menor idia. Antes de desistir e voltar para o hotel, Damio resolveu ouvir o discurso que um homem estava fazendo para um grupo grande de pessoas na lateral da praa. Tratava-se, presumiu, de um lder de desempregados planejando uma manifestao para aquela noite. Na praa Lavalle, perto dali, aonde Damio no iria to cedo, ningum jogava xadrez, mas outro grupo, esse de aposentados re-voltados pela restrio nos saques bancrios, preparava tambm um protesto. No nal da tarde, os dois grupos se encontraram em frente Casa Rosada e se juntaram aos piqueteiros que protesta-vam desde a noite anterior. Como os nimos caram exaltados e alguns manifestantes tentaram invadir o palcio do governo, a po-lcia reagiu e acabou ferindo com muita gravidade o mesmo rapaz que contara a Damio sobre as peas de xadrez do av. Damian le-vou um tiro na perna e outro nas costas, o que acabou o deixando paraplgico. Socorrido pela multido, ele foi levado a um hospital pblico que virou palco de outra manifestao, bem mais furiosa. Nem o mdico nem o policial do aeroporto de Ezeiza, no entanto, tm qualquer participao nos acontecimentos daquela noite, j que estavam em outra regio da cidade, de folga com as mos de Pern.

    Na manh seguinte, Damio sequer comeu alguma coisa no hotel: logo que acordou, fez a barba e saiu para a rua atrs de algum que pudesse lhe dar uma pista sobre os dois jogadores de xadrez. Seguindo uma informao que trouxera do Brasil, entrou em um dos tantos cafs da avenida Corrientes e pediu ajuda para um dos garons. Esse tipo de estabelecimento uma verdadeira instituio na cidade de Buenos Aires e ningum sai desamparado.

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    S mesmo Damio que, depois de percorrer quatro, no conseguiu descobrir absolutamente nada sobre os locais onde se joga xadrez na maior cidade da Argentina. irritante saber que ele alcanaria resultados bem melhores se tivesse investigado a cumplicidade que existe entre o mdico e o policial que o atenderam no aeroporto de Ezeiza. Com um pouco de ateno, ele localizaria inclusive o lugar onde os dois escondem at hoje as mos do general Pern: um antigo consultrio odontolgico na Recoleta, bem pertinho do cemitrio onde est enterrado o corpo de Evita Pern. Do hotel em que Damio se hospedou, uma corrida de txi at l no sai por mais de 10 pesos. Caro mesmo o valor que um antiqurio da avenida de Mayo quer por um conjunto incompleto de peas de xadrez. Damio chegou at ele atravs da dica de um farma-cutico. Abalado com a falta de informao, ele acabou sentindo um leve tremor nas pernas e, com medo de que a solido voltasse (e junto com ela a presso na parte inferior da nuca), correu at o banheiro do quinto caf em que entrara naquela manh e fez a barba. Como forou demais o aparelho na pele, a lmina enterrou no queixo e chegou, inclusive, a car pendurada na pele. J que o sangue no estancava de jeito nenhum, um dos garons, Damian, o acompanhou at a farmcia. Depois que o farmacutico, um cer-to Damian, fez o curativo, Damio quis saber se ele tinha alguma informao sobre onde poderiam se reunir as pessoas que gostam de xadrez em Buenos Aires. Damian pediu desculpas, admitiu que no entende nada do jogo, mas se lembrou de ter visto em uma loja de antigidades uma caixa com as peas. O dono da loja, po-rm, tambm no entende nada de xadrez. O mximo que Damian pde lhe dizer que comprou as peas em um dos tantos mercados de bugigangas que, desde o incio da crise, se tornaram to comuns na Argentina. Um dos maiores ca em um antigo galpo no bairro de Monte Castro. Damio saiu da loja e na mesma hora tomou um txi para o endereo que o antiqurio passou. A corrida cou em quase 40 pesos, 50 j que ele no quis o troco.

    Apesar de no conhecer direito o bairro, o taxista no teve mui-ta di culdade para encontrar o balco onde o mercado est funcionando. Muita gente entra e sai do lugar e a rua uma das mais movimentadas de Monte Castro. Dentro da construo, uma

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    fbrica de sapatos desativada h muito tempo, as pessoas vendem de tudo, desde a prataria antiga da famlia at uma casinha de cachorro usada. Por 70 pesos, Damio poderia comprar um sof, um carrinho de beb ou as obras completas de Jorge Luis Borges. Depois de algum tempo dentro do galpo, ele viu que, alm de vender, as pessoas tambm trocam muita coisa por comida. Uma mesa novinha vale uma boa quantidade de arroz, leo e um pou-co de p de caf. Conversando, possvel trocar o conserto de um carro velho por parte do material escolar dos lhos. Enquanto tomava notas, Damio viu uma outra caixa com peas de xadrez. A descoberta acabou se revelando, para ele ao menos (e naquele momento ao menos), muito melhor do que parecia: no fundo da caixa, Damio viu colada uma etiqueta com o nome e o endere-o do tradicionalssimo Club Argentino de Ajedrez. Sem titubear, pagou os 40 pesos que um velhote de Mendonza estava pedindo pela caixa e correu atrs de outro txi, que o levou at uma rua do centro da cidade, no muito longe do hotel onde est hospedado. um prdio pequeno, de quatro andares, com um estacionamento no trreo. O Club ca no terceiro. A sala estava cheia, mas nin-gum se parecia com os dois jogadores que ele procurava. Damio se aproximou de quatro senhores que conversavam em uma mesa e lhes mostrou as fotos. O papel passou de mo em mo, mas ningum conhecia os dois. A propsito, depois de pedir ajuda em diversas mesas, Damio notou que no havia sequer uma partida de xadrez sendo disputada. Quem tinha um conjunto de peas, completo ou no, tentava vend-lo, contando que Bobby Fischer havia tocado nelas ou que Anatoly Karpov usara aquele conjunto na famosa apresentao de partidas simultneas de 1970. Uma enorme sensao de derrota invadiu Damio, que s no saiu dali porque resolveu, antes de fazer a barba, averiguar outra descon- ana que o perturbava desde que comeou a busca. E de fato, nem mesmo no Club Argentino de Ajedrez, algum sabe como mexer as peas do antigo e nobre jogo.

    Naquela noite, no hotel, Damio fez a barba desesperadamen-te. Um peso enorme carregava suas pernas para cima e para baixo dentro do quarto e, de meia em meia hora, ele corria ao banheiro para se olhar no espelho. Ento, desmaiou. Antes de cair,

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    ele se desequilibrou por quatro vezes. Apenas na quinta, deixou de se escorar na parede ou nos mveis e viu que cava melhor no cho. Aos poucos, a presso na parte de baixo da nuca tornou-se muito forte e Damio perdeu os sentidos. Passava da meia-noite e o pouco movimento que havia no corredor era o dos ltimos hspedes entrando nos quartos. Depois da uma e meia da manh, no se ouvia barulho algum em quase todos os andares. Na rua, porm, grupos de piqueteiros ainda se reuniam para combinar o protesto do dia seguinte. s trs e meia da manh, apenas um ou outro mendigo, junto com os vultos que falavam sozinhos contra o governo de Fernando de La Rua, moviam-se no centro de Buenos Aires. Foi nesse horrio que Damio voltou a se mexer, esticando cuidadosamente as pernas, que caram espremidas entre o criado mudo e a cama. Quando recobrou parte da conscincia, concen-trou-se para ver se a crise o impedia de respirar direito. De fato, ele precisou encher os pulmes por trs ou quatro vezes para con-seguir um uxo constante de flego. A presso se expandiu pelas laterais do rosto e o maxilar parecia cheio de ferro. Uma bola de chumbo revirava seu pescoo para baixo e sua vista continuava completamente escura. Durante mais algum tempo, Damio pro-curou apenas realizar movimentos muito discretos com o corpo, para ter certeza de que no tinha perdido de novo os sentidos. Ele temia no encontrar foras para se recuperar de outro desmaio. Por isso, cou at as seis da manh arrastando-se daqui para ali no cho do quarto. Quando chegou janela, j amanhecendo, Damio ouviu um grupo de pessoas batendo panelas e, mais forte, sustentou-se no parapeito para se levantar e observar o movimen-to. Depois, arrastou-se at o banheiro e fez a barba. Muito embora a presso na parte inferior da nuca continuasse forte, resolveu sair para uma nova busca, agora atrs do casal de bailarinos de tango da terceira foto.

    Damio foi direto rua Florida onde sempre em frente s Ga-lerias Paci co um casal de bailarinos dana algumas canes de tango para as pessoas da rua. Se no forem eles prprios na fotogra a, com certeza vo saber informar o paradeiro do par que Damio est procurando. Em Buenos Aires, os bailarinos de tango tm bastante cumplicidade. A unio deles, porm, no a

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    mesma que liga o policial e o mdico que atenderam Damio no aeroporto. Damian e Damian se tornaram praticamente irmos no mesmo dia em que se conheceram e que, coincidentemente, tor-nou-se uma data histrica para a Argentina: 20 de junho de 1973. Nesse dia, o avio que trazia o general Pern do exlio aterrissou no aeroporto de Ezeiza, onde Damian tinha comeado a trabalhar na alfndega e Damian, recm-formado, no setor de emergncias mdicas. O tumulto que o retorno de Pern causou foi to gran-de que 13 pessoas, no mnimo, terminaram morrendo, vtimas do tiroteio que tomou conta do aeroporto e dos arredores por vrias horas. O avio de Pern decolou novamente e o general desembar-cou na Base Area de Morn. No tiroteio, Damian foi atingido de raspo na perna direita. Foi por isso, e no por outra coisa, que ele conheceu Damian, o mdico recm-empossado na enfermaria do aeroporto. O ferimento no era grave e ele no precisou ser transferido para o pronto-socorro. Depois que o tiroteio tinha di-minudo bastante e o tumulto estava controlado, o prprio Pern entrou na enfermaria, atrs de alguma coisa para dor de cabea. Apesar do nervosismo, o general foi bastante simptico e demons-trou preocupao com o ferimento de Damian. Antes de voltar ao avio, Pern agradeceu ao mdico que, exausto, ainda encontrou foras para abraar o dolo de sua juventude. O general despediu-se dos dois e afagou levemente as costas de Damian. Em poucas horas, a dor na coluna que o prostrava sempre que ele cava tenso diminuiu muito pena que por pouco tempo. Damian e Damian passaram anos discutindo o assunto, enquanto a dor nas costas do mdico s piorava e agora o atacava mesmo nos momentos de maior tranqilidade. Quando nem mesmo uma cirurgia conseguiu curar o problema, os dois amigos resolveram roubar as mos do tmulo do general. Damian no tinha nenhuma outra esperan-a de curar aquela dor maldita e Damian, movido um pouco por solidariedade e muito por um sentimento poltico macabro, bem argentino por sinal, acabou embarcando na aventura. No nal, at hoje os dois ainda ganham muito dinheiro com as mos de Pern. Mas Damio no vai passar nem perto dessa histria, preocupado que est em encontrar o casal de bailarinos. Na Florida, em frente s Galerias Paci co, porm, ningum dana tango, como j era previsvel, h bastante tempo.

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    Damio resolveu no repetir a mesma odissia do jogo de xa-drez e foi, dali mesmo, direto para o caf Tortoni, onde to-das as noites bailarinos de tango se apresentam h muitos anos. o que lhe disseram. A crise de solido tinha voltado com toda fora e, dessa vez, no deveria demorar muito para derrub-lo completamente. Damio sabe muito bem e a presso na parte inferior da nuca no o deixa mais esquecer que logo vai des-maiar de novo. Quase perdendo o equilbrio, cambaleou at a esquina da avenida de Mayo com a Florida. Ali, em um dos cru-zamentos mais famosos da Argentina, onde as lixeiras estampam pichaes do tipo as Malvinas so nossas ou mijaram na nos-sa cabea, Damio agachou e, ansioso, pegou um barbeador descartvel na mochila. Ele precisa, de qualquer jeito, arranjar energia para chegar ao caf Tortoni e con rmar que no pas intei-ro ningum sabe mais como danar tango e jogar xadrez. Para isso, barbeou-se ali mesmo, no cho, enquanto ouvia os gritos de uma manifestao de desempregados. Sua vista escureceu e ele precisou de meia hora para, de novo, poder andar at o caf. Na porta, Damio garantiu que no queria uma mesa, mas sim o horrio da prxima apresentao de tango. Damian lhe respon-deu que os espetculos foram cancelados h algum tempo. Infeliz-mente, o garom tambm no sabe informar onde o brasileiro pode assistir a um nmero de tango. At os sales mais tradicio-nais esto fechados. Damio agradeceu e, com receio de no con-seguir andar antes de fazer a barba, pediu para usar o banheiro. Evidentemente, Damian no s permitiu como ofereceu um pano para estancar a hemorragia da ferida no rosto dele. Mas, antes de Damio responder, dois outros garons j o seguravam pelo bra-o, pois ele ameaou cair. Do jeito que podiam, os trs o ampara-ram at uma mesa. Ele se sentou, colocou a mochila sobre a bar-riga e desmaiou. Como sempre acontece nessas situaes, um pequenino tumulto aconteceu antes que o gerente por m telefo-nasse para a polcia. Damian achava que primeiro eles deviam es-tancar o sangue, mas Da mian dizia que o fundamental reanimar a pessoa. J Damian explicava que eles tm que deit-lo no cho e erguer suas pernas para o sangue voltar cabea, ao que Damian respondeu dizendo que era s olhar para o rosto do cara para ver que ele tinha muito sangue na cabea. Os trs ainda no haviam

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    tomado qualquer deciso quando dois policiais entraram no caf e carregaram Damio at a viatura.

    II

    No Hospital Policlnico de Avellaneda, Damio foi logo levado para um quarto. Meia hora depois, j tinha sido reanimado. No mesmo momento em que Damio nalmente pedia um copo de gua, o presidente Fernando de La Rua decretava estado de s-tio em todo o pas. No entanto, Damio no vai escrever nada so-bre a grave crise argentina do nal do ano de 2001 (que ele, meio parcialmente, est testemunhando) e muito menos sobre a cumpli-cidade que existe entre o mdico e o policial que o atenderam no aeroporto de Ezeiza. Sobre a crise, ao menos, ele tinha certa no-o, mas quanto amizade entre aqueles dois, jamais suspeitaria de qualquer coisa. Se tivesse seguido a pista certa, descobriria que em junho de 1987, 14 anos depois de terem se conhecido, o mdi-co e o policial entraram pelo telhado no mausolu onde o general Juan Domingo Pern estava enterrado e, cada um com sua habili-dade, roubaram as mos do maior lder poltico que a Argentina j teve. Damian, em um curso para agentes especiais da polcia, tinha aprendido a abrir cadeados. Depois de decodi car o segredo dos 13 que trancavam o corpo de Pern, os dois usaram um maarico para cortar o vidro que cobria o caixo e Damian, com uma serra de alta potncia, cortou as mos do general. A operao toda de-morou umas seis horas, bem menos do que a imprensa estimara na poca. s quatro horas da manh as mos de Pern estavam em uma caixa de isopor em um consultrio odontolgico da Recoleta. Nos anos seguintes, o mesmo lugar serviu de alvio para algumas pessoas com muita dor nas costas e bastante dinheiro para pagar uma sesso de massagem.

    O desmaio no despertou a ateno dos mdicos do Hospital Policlnico de Avellaneda. O que os intrigava era a situao do rosto de Damio. Com certeza, para reconstruir a pele de algu-mas regies, ele iria precisar de uma cirurgia plstica. Ali, porm, no existe a menor condio de fazer isso. Com a crise, os hospitais

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    pblicos passaram apenas a atender os casos mais urgentes. No de-morou muito para descobrirem que o carto de crdito internacio-nal de Damio lhe dava direito a um seguro mdico que contempla a rede particular de Buenos Aires. Por isso, e sobretudo por causa da falta de leito, sua remoo foi rapidamente providenciada, mes-mo antes do paciente fazer outro contato que no fosse o constante pedido por um barbeador descartvel. Damio no tinha nimo para se comunicar e, para dizer a verdade, nem as enfermeiras pare-ciam dispostas a conversar. Ningum estava de bom humor na Ar-gentina, mas os funcionrios pblicos eram os mais irritados, junto com os aposentados, lgico. A mudana de clima foi bvia desde a ambulncia, tambm coberta pelo seguro de Damio: Dani, uma enfermeira exuberante e simptica, logo tentou puxar conversa en-quanto, pelo canto dos olhos, notava como era grave a situao do rosto do paciente. S que Damio estava incomodado demais com a presso na parte inferior da nuca para falar qualquer coisa que no fosse um pedido clarssimo por um barbeador descartvel. A enfermeira achou que no tinha entendido muito bem e decidiu continuar a viagem em silncio. Dani, no caminho, leu a curta cha com o resumo do caso e comeou a se interessar pelo problema de Damio, ainda que no fosse mais v-lo. Como trabalhava no setor de remoo, era difcil para ela acompanhar um paciente depois que ele se internava. Ela poderia at pedir informaes, ou visit-lo, mas nunca vai fazer isso: Dani ser demitida na manh seguinte. Do mesmo jeito, Damio tambm nunca ir escrever sobre a crise que deixou quase trinta por cento da populao economicamente ativa da Argentina desempregada. Na entrada do hospital, Damio foi registrado como jornalista. Ele no gosta, mas a quali cao no exatamente equivocada, sobretudo se considerarmos que h dois dias o editor de internacional de um dos jornais em que ele co-labora com freqncia espera a resposta de um e-mail pedindo algo urgente sobre a situao da Argentina, j que ele est, de um jeito ou de outro, testemunhando um acontecimento histrico. Mas Da-mio no vai nem responder a esse e-mail e, muito menos, chegar perto de descobrir o paradeiro das mos do general Pern.

    Logo que Damio deu entrada no hospital, o mdico ordenou a lavagem do rosto do paciente com soro siolgico e, como ele

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    parecia inquieto, a manuteno de algumas doses de calmante. No incio da madrugada, Damian voltou a conferir o sono de Damio, bastante tranqilo, e recomendou que a enfermeira no o deixasse sozinho por muito tempo. Dani, que tinha cado responsvel pelo corredor inteiro durante a madrugada, concordou: ela estava mes-mo impressionada com a situao no rosto dele. Damio, porm, continuava se recusando a responder a qualquer pergunta. Ele no aceitava sequer dizer o que estava fazendo em Buenos Aires: antes de ser internado, no auge da crise econmica da Argentina, ele passou os dias atrs de dois jogadores de xadrez e de um casal de danarinos de tango. No encontrou nem um e nem outro. A propsito, apesar de ter testemunhado o olhar de cumplicidade entre o mdico e o policial que o atenderam no aeroporto de Ezei-za, perdeu a oportunidade de, com alguma perspiccia, descobrir onde esto escondidas as mos do general Pern: em um consult-rio odontolgico da Recoleta. Damian e Damian resolveram rou-b-las depois de concluir que no existe remdio mais e caz para dor nas costas. Damian fez isso porque no tinha nenhuma outra esperana de curar a dor que o prostrava desde criana. Damian, por sua vez, foi movido por uma espcie de sentimento poltico mrbido, muito comum na Argentina, alm da solidariedade com o amigo, claro. A operao toda durou por volta de seis horas, bem menos do que a imprensa noticiou na poca, junho de 1987. O consultrio tinha sido usado por alguns anos pelo sobrinho mais velho de Damian, mas estava fechado desde que o dentista resolvera se mudar para Israel e deixara a sala trancada com al-guns mveis velhos. Se no tivesse conseguido tanto dinheiro com as mos de Pern, provavelmente Damian iria vend-los durante a crise. Mesmo em 2001, porm, quando pouca gente tinha dinheiro na Argentina, Damian e Damian zeram trs massagens com as mos de Pern, cobrando 10 mil pesos cada uma. Quem pode no reclama para pagar: de fato, depois da massagem, a dor desapa-rece por quatro ou cinco anos. Em alguns casos, no volta nunca mais. As mos de Pern, apesar do tempo, esto at hoje bem conservadas, j que Damian nunca descuida da soluo de formol em que elas cam guardadas. Quando algum aparece para fazer a massagem, eles secam dedo por dedo (das mos de Pern), fazem a pessoa sentar-se de frente para a janela, vendam seu rosto, repetem

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    um mantra que Damian inventou para ngir que tudo no passa mesmo de uma sociedade esotrica secreta e ento as mos de Pe-rn apertam o local dolorido com bastante fora. tiro e queda, como podem testemunhar o escritor Adolfo Bioy Casares (que j morreu), o ex-ministro Martnez de Oz e o socilogo brasileiro Fernando Henrique Cardoso.

    Damio, porm, jamais ter acesso lista de pessoas que foram massageadas pelas mos do general Pern: antes de ser inter-nado, ele passou os dias atrs de dois jogadores de xadrez e de um casal de bailarinos de tango e no deu a menor ateno para a cum-plicidade revelada pela troca de olhares entre o mdico e o policial que o atenderam no aeroporto de Ezeiza. Com alguma habilidade, ele conseguiria descobrir ao menos parte do segredo dos dois. Se tivesse talento para a arte da investigao, e fosse discreto, tal-vez conseguisse segui-los at a Recoleta. nesse bairro, elegante e meio kitsch, que h j alguns anos eles escondem as mos de Pern em um consultrio odontolgico desativado. O fato de pouqussi-mas pessoas, agora na crise, procurarem a sociedade secreta talvez di cultasse um pouco a vida de Damio: de tocaia, observando a entrada e a sada do prdio, ele no descobriria nada. Outro cami-nho completamente improdutivo seria tentar, provavelmente com o porteiro do prdio, saber a identidade das pessoas que tinham entrado na sala junto com Damian e Damian. Mesmo que o cara, por uns trocados, lhe dissesse alguma coisa, de nada adiantaria ele tentar descobrir o que Fernando Henrique Cardoso, por exemplo, tinha ido fazer l. Depois que o ritual termina, Damian explica que a pessoa no pode revelar para absolutamente ningum o que acontece l dentro, nem mesmo o pouco que elas vem e que, ateno, no inclui as mos de Pern. Se o ritual for revelado, a dor nas costas volta ainda mais intensa. Quem tem problemas de coluna sabe que, nem de longe, nenhuma das pessoas que freqen-taram o consultrio odontolgico da Recoleta, diante da ameaa, cogita falar qualquer coisa. O combinado o seguinte: caso co-nheam mais algum que tambm sinta dor nas costas e possa pa-gar pela massagem, eles devem passar o contato do felizardo para Damian ou para Damian, e os dois vo atrs do possvel paciente. Com isso, conseguiram manter o segredo at hoje.

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    Na noite seguinte, Damio no dormiu, como alis metade da Argentina: de la Rua fez um pronunciamento que era aguar-dado com ansiedade. Todo mundo acreditava que ele anunciaria medidas para exibilizar os limites aos saques bancrios. A fala do presidente foi decepcionante. Ele apenas explicou as medidas e pediu calma s pessoas, tudo o que ningum mais estava dispos-to a ter. As enfermeiras de planto assistiram ao pronunciamento no dormitrio, at porque os pacientes pareciam todos tranqilos. Damio aproveitou o descuido e saiu da cama. Silencioso, abriu algumas gavetas e, depois de mexer um pouco, encontrou nal-mente um bisturi. Com medo de ser ouvido, foi quase na ponta dos ps at o banheiro, onde aproveitou o espelho para fazer a barba. Quando j estava praticamente terminando (s faltava o queixo), uma enfermeira apareceu na porta e, assim que percebeu o que o paciente estava fazendo, chamou mais trs colegas para colocar Damio de volta na cama. Ele no imps nenhuma di cul-dade, mas achou estranho o fato de estar sendo amarrado. Para ele, aquilo no estaria acontecendo se a coisa toda no coincidisse com o discurso do presidente. Do hospital, Damio ouvia os gritos com que, logo depois que o pronunciamento acabou, as pessoas resolveram manifestar o enorme descontentamento que abatia o pas. Uma hora depois de ele ter sido amarrado, l pela meia-noite, uma multido se aglomerava na praa de Mayo pedindo a renn-cia do presidente. Nem Damian nem Damian, porm, estavam por perto. Damian passou a noite de planto no aeroporto enquanto Damian, de folga, tinha resolvido visitar o Uruguai, longe daquela loucura toda. Quando o dia estava nascendo e a baguna na rua tornando-se apenas um rumor distante, Damio nalmente caiu no sono. Barbeado e feliz, ele dormiu umas 12 horas seguidas, e foi despertar s na noite seguinte. Mais disposto, aceitou a comida que a enfermeira Dani ofereceu e depois, de bom humor, permitiu outro banho de soro no rosto. s 23 horas, um mdico viria v-lo. A presso na parte de baixo da nuca diminura um pouco e ele, ento, sentia-se melhor at para conversar. Primeiro, perguntou por que estava amarrado e antes de ouvir a resposta (que nunca viria), brincou dizendo-se confundido com o ministro Domingo Cavallo. Dani no respondeu, mas cou surpresa com a articula-o do paciente. Com muita experincia no setor psiquitrico, em

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    outras condies ela logo daria o diagnstico. Para no deix-lo falando sozinho e, sobretudo, para fazer o tempo passar enquanto o mdico no aparecia, Dani perguntou se Damio no podia in-formar o contato de algum de sua famlia no Brasil. Ele preferiu dizer o telefone da irm, alis mdica, para no assustar a me. Mas o editor do jornal j tinha feito esse imenso favor, ligando para perguntar se ela sabia o paradeiro do lho, pois Damio no respondia aos e-mails h uma semana.

    O mdico atrasou um pouco e veio conversar com Damio per-to da meia-noite. Buenos Aires continuava agitada, agora na expectativa da grande manifestao que prometia parar o pas no dia seguinte. Damian, responsvel por todo aquele setor do hos-pital, primeiro fez umas perguntas banais sobre a alimentao e o estado geral do paciente, e depois quis saber sem muitos rodeios por que ele tinha ferido o rosto daquela maneira. Confuso com o espanhol, Damio pediu para o mdico repetir e depois, ao ter certeza do que estava ouvindo, disse que no via nada de errado com o seu rosto. O problema todo essa maldita presso na parte de baixo da minha cabea. s vezes, no consigo nem respirar direito e as minhas pernas comeam a tremer muito. De repente, melhor desmaiar mesmo. Damian cochichou alguma coisa com a enfermeira. Ela tambm no tinha compreendido direito a respos-ta. Talvez o paciente pudesse falar um pouco mais devagar. Claro, o problema todo essa maldita presso na parte de baixo da mi-nha cabea. s vezes no consigo nem respirar direito e as minhas pernas comeam a tremer muito. De repente, melhor desmaiar mesmo. Damian agradeceu e, sem esconder o espanto, pediu en-fermeira a cha de Damio. Antes de sair, ainda falou alguma coi-sa em voz baixa com Dani e, para o paciente, prometeu voltar no dia seguinte, antes de sair para a manifestao. Diversos jornalis-tas brasileiros j estavam na Argentina cobrindo a crise, coisa que Damio, que no um jornalista tpico, no est minimamente preocupado em fazer. O que ele quer, agora, olhar-se no espelho para ver o que h de to estranho no seu rosto. Dani, porm, recu-sou-se a desamarr-lo, mas lhe trouxe um pequenino estojo de ma-quiagem com um espelhinho embutido. Damio olhou-se e pde comprovar que no h nada de errado no seu rosto. O problema

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    todo aquela maldita presso na parte de baixo da nuca. s vezes, ele sequer consegue respirar direito e suas pernas comeam a tre-mer sem nenhum controle. Apenas quando desmaia, sente algum alvio. Dani, porm, nem sequer lhe respondeu, apenas con rmou que no poderia desamarr-lo. Na mesma hora, Damio sentiu a presso na parte inferior da nuca tornar-se muito forte, mais inten-sa do que nos outros momentos crticos da crise. Se ele car calado e imvel, talvez a presso no se espalhe pelo rosto e, assim, no atrapalhe demais sua respirao. Alm de amarrado, ele no quer de jeito nenhum ser entubado naquele hospital maluco. Mas isso no vai acontecer: logo cedo, depois de uma noite terrvel, sem po-der controlar a tremedeira que se alastrou das pernas para a parte superior do tronco do paciente, o mdico decidiu administrar uma dose bem maior de calmante e Damio dormiu.

    Quando despertou, Damio ouviu o burburinho que vinha tan-to da rua quanto do corredor do hospital e percebeu que no conseguia se mover. De incio, achou que o tivessem amarrado com ainda mais fora. Com um pouco de concentrao notou que no era capaz nem mesmo de mexer os dedos. Assustado, come-ou a suar bastante. Todo mundo morre de medo de car parapl-gico. Por isso Damio fez uma fora imensa para erguer o pescoo. Nesse momento, a presso que fazia seu corpo pesar uma tonelada voltou a se concentrar na parte inferior da nuca e ele achou que estivesse caindo em um buraco enorme. Primeiro, sua cabea cho-cou-se contra o cho, depois, algum tempo depois, o resto do cor-po se esparramou como se fosse uma sacola velha cheia de pano. Ao contrrio do que imaginava quando comeou a cair, Damio sentiu-se muito tranqilo e, at, aliviado. Deitado ali, a presso tinha desaparecido completamente. O detalhe curioso que ele continuava ouvindo o burburinho que vinha tanto da rua quanto do corredor do hospital. Finalmente, mais uma de suas crises de solido tinha passado. Mas Damio no precisava se mexer: pela primeira vez em mais de dois meses, ele se sentia bem de novo. No corredor, percebeu que as enfermeiras corriam para ir mani-festao. Grupos cada vez mais barulhentos e raivosos passavam gritando pela rua. De vez em quando ele conseguia ouvir com toda clareza o que diziam: sobretudo palavres. Damio cou contente,

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    pois est evoluindo no espanhol. Mais uns dias ali, ouvindo tudo, e talvez j consiga conversar. Ento, concluiu, o ideal mesmo car quietinho, s escutando o que as pessoas diziam do lado de fora. Ele no vai ouvir, porm, a voz de Damian nem a de Damian. O policial resolveu passar alguns dias no Uruguai, at porque tudo o que menos quer ser convocado para trabalhar nas ruas durante o estado de stio. J Damian saiu do planto no aeroporto s dez horas da manh e foi direto para a sala onde os dois escondem as mos amputadas de Pern.

    Agora, s 18 horas, quando a manifestao acaba pontualmen-te de comear, Damio no sente dor nenhuma e a presso desapa-receu. preciso car claro que, como suas costas nunca o incomo-daram, a massagem com as mos de Pern no serviria para nada. Mas se tivesse seguido a pista certa talvez redigisse o melhor texto de sua vida. Agora, porm, s 18 horas, a nica coisa possvel de saber e que ser divulgada que seu corpo, mesmo naquele hospital imenso, est absolutamente sozinho.

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