31
Bloco 1 – A inteligência coletiva nova fonte de potência..................................................1 Bloco 2 – As três etapas da evolução........... ..................................................................11 Bloco 3 – O triângulo da significação..............................................................................16 Bloco 4 – cologia de id!ias............................................................................................1" Bloco # – cono$ia da reprodução............. ...................................................................21 Bloco 6 – %apital de inteligência coletiva ........................................................................26 BLOCO LOCO 1 – A 1 – A INTELIGÊNCIA INTELIGÊNCIA COLETIVA COLETIVA NOVA NOVA FONTE FONTE DE DE  POTÊNCIA POTÊNCIA  Boa noite. stou $uito feli& de estar co$ vocês esta noite e gostaria de di&er 'ue eu se$pre tive u$a relação $uito especial co$ o Brasil e co$ os (rasileiros. 1

Conferencia Pierre Levy

Embed Size (px)

Citation preview

Boa noite

2

Bloco 1 A inteligncia coletiva nova fonte de potncia 11

Bloco 2 As trs etapas da evoluo 16

Bloco 3 O tringulo da significao 19

Bloco 4 Ecologia de idias 21

Bloco 5 Economia da reproduo 26

Bloco 6 Capital de inteligncia coletiva

Bloco 1 A inteligncia coletiva nova fonte de potncia

Boa noite. Estou muito feliz de estar com vocs esta noite e gostaria de dizer que eu sempre tive uma relao muito especial com o Brasil e com os brasileiros.

Muitas vezes aproveitei minhas passagens pelo Brasil para lanar temas e comear a discutir idias que nunca havia discutido em outro lugar. o que ocorre hoje.

H muito tempo reflito sobre inteligncia coletiva e no sou o nico a faz-lo. Isso tema de inmeras pesquisas em muitos pases do mundo, pesquisas particularmente relacionadas com a utilizao da Internet, de novas tecnologias, de fruns de discusso virtual etc. Eu diria que no apenas o nmero de pessoas interessadas no assunto cresce, mas tambm o objeto de reflexo, que h mais ou menos dez anos vem tendo um crescimento extraordinrio, pois h cada vez mais pessoas que se organizam por intermdio da Internet visando cooperao intelectual. Esse um movimento que se iniciou no domnio cientfico, pois foi a comunidade cientfica que inventou a Internet e que se serviu primeiro dela para trocas de idias, cooperaes etc. Podemos dizer que ela uma das mais antigas praticantes da inteligncia coletiva com suas jornadas cientficas, seminrios, colquios onde cada um comenta o que faz e tentam construir juntos um saber comum, ao mesmo tempo que tm liberdade de propor teorias diferentes. No , pois, de se espantar que ela tenha inventado a Internet, o correio eletrnico, os fruns de discusso e esse imenso hipertexto da web que, no fundo, reproduz a prtica muito antiga da citao, da nota de rodap, da bibliografia etc.

No s na comunidade cientfica que se pratica a inteligncia coletiva, mas tambm e cada vez mais no mundo dos negcios, porque existe a necessidade de empregar pessoas capazes de tomar iniciativas, de coordenar, de inventar novas solues, de resolver problemas e de fazer tudo isso coletivamente, de forma organizada. Evidentemente, essas novas ferramentas de comunicao so as mais adequadas para isso e h todo um movimento no management contemporneo que visa a desenvolver prticas de inteligncia coletiva.

H, tambm, outros campos, por exemplo, o da poltica ou, para falar de uma maneira mais ampla, o da cidadania. Hoje, muitas comunidades locais, muitos governos de vrios pases esto tentando aprofundar os processos de consulta da populao, os processos de democracia deliberativa atravs de fruns de discusso sobre questes de poltica local, permitindo populao deliberar sobre assuntos que lhe concernem diretamente. H, portanto, um campo geral da ciberdemocracia. Acabo de publicar um livro sobre o tema, onde fao muitas referncias a sites que tratam do assunto.

H mais de dez anos pesquisadores em cincias sociais vm refletindo sobre o vnculo social, o capital social e percebemos que uma das condies mais importantes para o desenvolvimento humano so as relaes, os vnculos de trocas, de servios, de conhecimento, de sociabilidade. Isso pode ocorrer na economia, no lazer, no jogo, em trinta e cinco mil coisas diferentes. Sempre se soube disso, mas estamos percebendo hoje a importncia da relao social organizada, inventiva e viva. Quando eu digo organizada no quero dizer por um centro, uma instncia superior, mas auto-organizada, espontnea, de alguma forma.

Eu poderia, assim, listar os campos onde se descobre que a cooperao e, mais particularmente, a troca de idias, a cooperao intelectual algo importante para o desenvolvimento cultural e social. A Internet uma das ferramentas para esse desenvolvimento e por isso que ela tem, em todo o mundo, um tal sucesso. Vocs podero argumentar que apenas 7% dos brasileiros esto conectados Internet. Evidentemente, temos conscincia disso. No entanto, preciso lembrar que isso um processo histrico, uma tendncia que deve ser avaliada em sua dimenso correta. Muitas sculos se passaram desde a inveno do alfabeto at a construo de uma civilizao da escrita. Quando se inventou o alfabeto, por volta do ano 1.000 a.C., no foi imediatamente que as pessoas aprenderam a ler e escrever. H dez anos mais ou menos que a maioria da populao mundial - eu digo a maioria e no a totalidade sabe ler e escrever. Foram necessrios, portanto, trs mil anos para se chegar a essa situao. A web existe h menos de dez anos, portanto no podemos ser impacientes e nos escandalizarmos com o fato de que a maioria da populao no est conectada. O que preciso observar a velocidade com que a curva de conexes aumenta, e isso j notvel.

Ns devemos, cada um a nosso modo, fazer com que o maior nmero de pessoas possvel possam ter acesso a esse novo recurso fundamental da cultura que a comunicao mundial interativa. Aqueles que podem ter acesso sabem at que ponto isso um recurso para o desenvolvimento pessoal, para estreitar laos sociais, para aprender coisas, para aumentar seu grau de liberdade, pois temos muito mais liberdade de expresso do que podamos ter na poca em que havia somente os jornais, o rdio, a televiso etc.

Passando, ento, nossa apresentao, podemos ver na tela um certo nmero de idias que ilustram essa noo de inteligncia coletiva.

Inicialmente, podemos tom-la no sentido simples de partilha das funes cognitivas, pois: o que inteligncia, finalmente? a memria, o aprendizado, a percepo, as funes cognitivas. A partir do momento em que essas funes so aumentadas e transformadas por sistemas tcnicos - algo de objetivo, externo ao organismo humano elas podero ser mais facilmente partilhadas. Melhor dizendo, se alguma coisa escrita, ela j no faz parte da minha memria pessoal, mas faz parte da memria da comunidade qual perteno, e que mantm seus escritos. Hoje a escrita alguma coisa que no est mais s no suporte papel, mas que est no suporte eletrnico e que, por isso, se torna mais acessvel, flexvel e, sobretudo, mais compartilhvel. Estou falando da memria, mas eu poderia falar da percepo. Com a televiso eu posso ver distncia; com o telefone eu posso escutar distncia. Com a Internet no apenas essas coisas so possveis, mas a um nvel de preciso muito maior. Por exemplo, com as webcam eu posso ver exatamente onde eu quero ver. Com os novos sistemas de informtica de imagem digitalizada, que permitem transformar dados complexos em representaes visuais facilmente compreensveis, h uma nova abertura no campo da percepo que, na verdade, a percepo de fenmenos complexos, que to cara a Edgar Morin.

Podemos, talvez, comparar a nossa poca ao sculo XVII, poca em que se inventou o microscpio e o telescpio, onde se descobriu todo um universo do infinitamente pequeno e todo um universo do infinitamente grande. Hoje estamos descobrindo o universo do infinitamente complexo porque temos um meio de represent-lo, de interagir com esse universo justamente por causa da tecnologia intelectual que a informtica. preciso ver, portanto, que se trata de uma abertura do campo do conhecimento possvel porque h tambm uma abertura do campo de percepo, do campo do raciocnio possvel.

Entretanto, a inteligncia coletiva no um tema puramente cognitivo. S pode existir desenvolvimento da inteligncia coletiva se houver o que eu chamo de cooperao competitiva ou competio cooperativa. Retomando o exemplo da comunidade cientfica, podemos dizer que trata-se de um jogo cooperativo, j que acumula-se conhecimentos, h um progresso do saber etc Mas isso s um processo cooperativo e plenamente cooperativo porque tambm um processo competitivo. Se no houvesse a liberdade de propor teorias opostas quelas que so admitidas, evidentemente o progresso nos conhecimentos seria muito menor. Portanto, porque existe essa possibilidade de competio que existe a cooperao. H, pois, dois aspectos: o aspecto da liberdade que o aspecto competio e o aspecto do vnculo social, da amizade que o aspecto cooperao. preciso acostumar-se a pensar nos dois ao mesmo tempo. a partir do equilbrio entre competio e cooperao que nasce a inteligncia coletiva. Evidentemente no a guerra de todos contra todos, nem tampouco uma cooperao obrigatria, regulada, que proibiria as diferenas de idias, as lutas, os conflitos que so naturais e que, sobretudo, permitem ao novo se expressar.

Observemos o comportamento de uma multido. Uma multido menos inteligente do que um indivduo dessa multido. O fato de diversos indivduos estarem reunidos no ajuda muito. Se observarmos uma administrao muito burocrtica, centralizadora, com uma hierarquia rgida, vamos dizer que essa administrao provavelmente mais inteligente do que uma multido porque ela pode fazer muitas operaes e chegar a um certo resultado, mas ela no equivale multiplicao de todas as inteligncias das pessoas que participam dessa hierarquia burocrtica. Provavelmente essa hierarquia burocrtica menos inteligente do que o grupo de dirigentes. O grupo de dirigentes toma decises e as decises so aplicadas de forma cada vez pior medida em que se desce na hierarquia. No se permite, obviamente, que a base tome decises.

H muitas formas de organizao e o desafio inventarmos todos juntos formas de organizao que no sejam nem anrquicas onde no haveria nenhuma forma de cooperao nem demasiadamente rgidas, mas sim as que permitam otimizar a capacidade de inveno das pessoas, suas competncias, suas experincias, suas memrias.

Se eu defendo o desenvolvimento de uma cincia da inteligncia coletiva porque estou certo que este o melhor caminho para se chegar a uma cultura da inteligncia coletiva, ou seja, com a constituio de uma vasta rede de pesquisas a perspectiva avanar em direo a uma transformao cultural que caminhe nesse sentido. Uma transformao e no uma revoluo, que deve ser feita tranquilamente, sem forar nada, a partir da conscientizao de cada um. Porque uma cultura no definida por um pequeno grupo de dirigentes ou de pensadores, algo que partilhado pelo conjunto de uma populao. Ela produzida de forma espontnea por todas as pessoas que participam dessa cultura. algo que vai levar tempo, necessariamente, mas que depende de cada um de ns. No devemos nos aborrecer pelo fato de ainda no estarmos em uma situao perfeita de inteligncia coletiva. Cada um deve se perguntar o que pode fazer para propagar novas formas de fazer. E a resposta : dar o exemplo.

Gostaria, ento, de esboar uma perspectiva um pouco mais ampla, mais extensa, que aquela do ecossistema de todos os conhecimentos, de todas as idias, de todas as prticas humanas. H sculos que se fala da humanidade em geral, mas falava-se de uma humanidade abstrata, concebida na sua universalidade. Hoje, no entanto, desde o desenvolvimento do ciberespao, podemos observar ou mergulhar na inteligncia coletiva da humanidade quando navegamos na web, quando participamos de um frum de discusso em uma lngua e depois de outro em outra lngua etc. De repente, esse ecossistema das idias humanas torna-se palpvel e percebemos que participamos dele, que ns que o tornamos vivo. Esse ecossistema emerge da atividade, do pensamento, da comunicao, da ao dos seres humanos e creio que no seria mal, de vez em quando, elevarmo-nos a esse nvel de generalidade e considerarmos que todos ns fazemos viver o mundo das idias, que ele no existiria sem ns. No seramos humanos vivendo em uma cultura se essas idias cientficas, religiosas, polticas, artsticas no existissem.

Bloco 2 As trs etapas da evoluo

Eu gostaria de situar um pouco esse mundo das idias na histria da evoluo. Podemos dizer que h um primeiro nvel do vivo que a vida orgnica, a vida dos corpos, dos micrbios, das plantas e esse primeiro nvel da evoluo da vida est baseado em um cdigo digital, o primeiro cdigo digital, que o DNA. H, portanto uma dialtica entre as mutaes que ocorrem no cdigo digital, ou seja, nos genes e sua repercusso sobre os fenotipos, ou seja, sobre os corpos das plantas, dos micrbios etc. E h uma seleo natural no s dos corpos, mas dos genes que so responsveis por esses corpos e assim por diante. E assim que podemos explicar, grosseiramente, o ciclo da evoluo.

Existe um segundo estgio da evoluo do mundo vivo que est relacionado ao surgimento, no decorrer da evoluo do estgio precedente, dos sistemas nervosos, ou seja, dos animais. Nos animais h uma interao entre as percepes e as aes e essa interao passa pelo sistema nervoso. graas a ele que o mundo sensvel aparece. Se no houvesse sistema nervoso no haveria som, no haveria imagem, formas, cor, no haveria cheiro nem sabor. O mundo sensvel existe porque o sistema nervoso existe. Temos aqui, pois, o aparecimento de um cdigo digital, que o cdigo de comunicao entre os neurnios: a corrente passa ou a corrente no passa. E verdadeiramente um cdigo digital porque ele o mesmo, quer se trate de codificar emoes, imagens, sons etc. So sempre impulsos eltricos entre neurnios.

A um segundo universo de formas, no somente orgnicas, mas sensveis, com animalidade e humanidade temos um terceiro universo de forma que, naturalmente, repousa sobre os dois precedentes, mas so formas que no existiam no mundo animal. Por exemplo, nmeros, deuses, constituies polticas, peas de teatro. E tudo isso s se tornou possvel porque um terceiro cdigo apareceu, que o da linguagem. Por que a linguagem tornou possvel o mundo das idias? Provavelmente porque, com uma grande simplicidade fontica (h trinta fonemas na maioria das lnguas) podemos produzir sequncias diferentes, uma infinidade de sequncias que possuem uma capacidade de engendrar uma infinidade de significados diferentes. E ns, como espcie humana, inventamos uma forma de inteligncia coletiva que no existia nos animais. Porque evidentemente a inteligncia coletiva no comea com a espcie humana. Todo mundo sabe que o formigueiro mais inteligente que a formiga e que a colmeia mais inteligente do que a abelha; at um grupo de zebras mais inteligente do que a prpria zebra. Por isso elas vivem em grupo. Mas ns, pela linguagem, abrimos um universo de comunicao completamente diferente. Uma das melhores ilustraes dessas diferenas que com a humanidade comea um tipo de evoluo que no existia antes, que a evoluo cultural. Os lees se comportam da mesma maneira desde que existem lees, enquanto que os seres humanos modificam seu comportamento. Houve uma evoluo tcnica, religiosa, moral e poltica. H uma evoluo dos conhecimentos, uma evoluo cientfica etc. Portanto, porque vivemos no universo da linguagem, que conseguimos formar uma inteligncia coletiva de um tipo mais poderoso do que aquela das espcies animais, que somos o que somos.

Eu gostaria de tentar relacionar o que estou dizendo com as experincias fundamentais que todos ns temos. porque falamos que todos ns praticamos uma forma de inteligncia coletiva que capaz de aperfeioamento constante. E o que quer dizer falar? Sabemos que os animais se comunicam entre si. A diferena que a linguagem nos permite fazer trs coisas que os animais no podem fazer: primeiro, fazer perguntas. Os animais no fazem perguntas. Isso quer dizer que h alguma coisa que no sabemos. Ns encontramos nossa prpria ignorncia, um vazio no esprito, uma carncia, um branco. E nesse momento ns fazemos perguntas. No estou falando de perguntas retricas, falo de verdadeiras perguntas. Fazemos uma pergunta e se no temos a resposta somos obrigados a busc-la no ambiente ou busc-la com outra pessoa. Essa uma abertura fantstica: o fato de percebermos nosso prprio limite. O animal no sabe que limitado, ns sabemos. justamente porque sabemos que somos limitados que somos ilimitados.

A segunda particularidade da linguagem humana o fato de contarmos histrias. Os animais no contam histrias e porque contamos histrias que temos uma concepo do tempo. Organizamos nosso pensamento em antes, depois, antes, depois, antes, depois, causa, efeito, causa etc, atores que interagem entre si e que, ao fazerem isso, transformam uma situao. E nesse momento podemos inventar uma medida de tempo, podemos aprofundar a noo de causalidade e, sobretudo, vivemos na significao, porque, para ns, que as coisas tenham sentido equivale a contar uma histria, fazer um relato. No incio, os relatos mais importantes da humanidade eram as lendas, as fbulas. Hoje, continuamos a contar histrias. Dizemos que no so lendas; no importa. No somos capazes de viver se no damos sentido quilo que vivemos, ou seja, ser no contamos histria. Evidentemente, no contamos sempre a mesma histria, mas produzimos sentido a partir disso. E por que a inteligncia coletiva? Porque as histrias so transmitidas. Contamos uma histria a algum e essa pessoa guarda o que lhe foi contado. Quando nos explicamos aos outros estamos contando a nossa histria, a histria das coisas que nos interessam. uma forma de vnculo entre ns, extremamente importante. E, finalmente, j que eu falo de laos entre ns, temos o dilogo.

Como eu dizia, os animais emitem sinais entre si. Quando a zebra v, pelo canto do olho, o leo aproximar-se na savana, ela comea a tremer e foge, imediatamente. As outras zebras entendem e comeam a fugir tambm. O sinal foi transmitido, mas isso um dilogo? No. No dilogo ns participamos da interioridade do outro. Ns nos apercebemos que existe um outro que no somos ns. E, evidentemente, isso cria um vnculo entre ns que muito mais profundo que aquele que existe nos animais.

Quando fazemos perguntas uns aos outros inicia-se um dilogo e, freqentemente, respondemos s perguntas com histrias. Isso o motor da produo do universo da significao, que a cultura. E algo muito dinmico, que nasce com as perguntas, com os dilogos, com as histrias que contamos etc. Fazendo tudo isso ns fabricamos ferramentas, inventamos instituies sociais e polticas, comeamos a fazer msica e a danar, e todo o universo comea a se desenvolver.

Bloco 3 O tringulo da significao

O mundo da significao, no qual se desenvolve a inteligncia coletiva, organizado em torno de trs plos, sem os quais no haveria significao. O que eu vou dizer aqui no fui eu que inventei. algo que foi dito h muito tempo, por Aristteles, por exemplo, e que foi repetido por todos os filsofos medievais, redito pelos linguistas e semilogos contemporneos. No uma teoria de Pierre Levy, algo j muito conhecido, mas sobre o qual no se reflete suficientemente. Onde ns, seres humanos, vivemos? Evidentemente, vivemos no mundo fsico, mas as pedras tambm vivem nele. O que existe de original no nosso modo de existir que vivemos na significao e as pedras no. E como se organiza essa significao? uma tenso viva entre trs plos.

Em primeiro lugar, o plo do signo. Se eu digo computador, o som computador que o signo. H o referente, aquilo do qual estou falando, a coisa. E depois h o esprito, para quem o computador significa a coisa. H, portanto, um esprito para colocar um signo em relao com aquilo que esse signo representa, porque se no houvesse esprito no haveria nem mesmo a noo de representao. Portanto, esse universo da significao forosamente organizado nesse tringulo. Uma idia um conjunto de signos que esto em relao uns com os outros. Uma idia como um ser vivo que capaz de se reproduzir, passando de um esprito para outro. Cada vez que uma idia concebida, pensada por um esprito, como se a idia se reproduzisse, de certa forma. Quando ela est escrita em algum lugar, ou quando ela est encarnada em uma estrutura material qualquer, podemos dizer que ela virtual. A partir do momento em que ela na experincia de algum ela atualizada e como se houvesse uma reproduo. H idias que se reproduzem bem, outras no tanto, e h espcies de idias que morrem, simplesmente. De um modo geral, toda evoluo cultural a histria da evoluo das idias e de sua relao com as populaes humanas, que as nutrem. O ambiente no qual a idia vive triplo, o que corresponde aos trs plos do significado. A idia tem relao com o ecossistema dos signos que, hoje, podemos talvez representar pela web, ou seja, pela Internet. A idia tambm uma ao sobre a natureza, sobre a realidade fsica ou biolgica. Por exemplo, se eu digo alguma coisa que faz vocs rirem ou chorarem, algo est se transformando na matria porque vocs receberam a idia. Se eu tiver uma idia cientfica ou tcnica, ela pode ter consequncias prticas fsicas, naturais.

A espcie humana aquela que mais transformou o ambiente real em comparao com as outras espcies de mamferos que conhecemos. Possumos tal poder de transformao porque temos idias.

Finalmente, h uma outra parte do ambiente onde a idia intervm, que a relao entre ns e a sociedade. Cada idia um movimento no jogo das relaes polticas, afetivas, ticas, jurdicas, econmicas etc. Todas essas idias vivem em sociedade. De uma certa maneira a inteligncia coletiva um ecossistema de todas essas idias que ns fazemos viver, porque ns as nutrimos e as reproduzimos. Isso no quer dizer que no haja uma noo de responsabilidade. A responsabilidade existe; somos livres para reproduzir ou no uma idia que circula em nosso ambiente.

Bloco 4 Ecologia de idias

Uma populao humana vive em simbiose com um ecossistema de idias. Se esse ecossistema favorvel populao que o abriga e nutre, essa populao vai viver melhor do que aquelas que mantm idias desfavorveis a ela. Se certas populaes no ajudam as idias a se reproduzirem, ento essas idias no sero favorveis quelas populaes. H, portanto, uma relao bidirecional, na qual no h nenhum elemento fundador ou fundamental. um sistema de auto-referncia, de auto-organizao. O leme da evoluo no est nas mos das idias nem tampouco nas mos da populao, mas, sim, na relao entre as duas.

Quero mais uma vez utilizar a abordagem de trs plos da significao para continuar a refletir sobre essa noo de inteligncia coletiva. Podemos distinguir, no desenvolvimento cultural, trs direes principais que correspondem aos trs plos de significao. H uma inteligncia tcnica que, evidentemente, prpria da espcie humana porque fomos ns que desenvolvemos a maioria dos instrumentos e continuamos sempre a inventar ferramentas. Desenvolvemos armas, desenvolvemos a arquitetura, a agricultura, a indstria, a engenharia, a tecnologia etc., e portanto, h toda uma forma de pensamento coletivo que tcnico. Mas h tambm outra forma de pensamento, que o abstrato, o pensamento conceitual, formal, que no trata da materialidade fsica mas incide sobre os signos. So as matemticas, as artes, a literatura, a comunicao, a semitica. muito difcil separar esses dois tipos de pensamento porque as grandes civilizaes tcnicas so tambm civilizaes que possuem uma escrita, que desenvolveram as artes, as cincias abstratas etc. No podemos ter um sem outro.

H, ainda, um terceiro plo, que um plo relacional, aquele das relaes entre os seres humanos, ou o plo poltico, religioso, que concerne regulao da agressividade entre as pessoas. isso que eu chamo de inteligncia emocional.

Se ns devemos refletir sobre o que inteligncia coletiva preciso conceber que ela se desenvolve quase que necessariamente nessas trs dimenses, que no podem ser separadas, pois so as trs dimenses da significao. Ento vocs podem entender quando Edgar Morin diz que se pensamos uma coisa independentemente das outras, estamos condenados a no entender o que est em jogo.

Bloco 5 Economia da reproduo

Talvez, um dos fatores mais importantes na evoluo cultural a forma como as idias se reproduzem. No incio da histria da humanidade as idias eram transmitidas oralmente e se reproduziam de gerao em gerao. As idias tambm eram transmitidas pelos rituais conjuntos, pelas ferramentas, por tudo que podia constituir uma memria. O essencial da memria era concludo nas lendas, que eram transmitidas no seio de tribo de gerao em gerao. Com o aparecimento da escrita aparece tambm uma espcie de memria autnoma das idias, que podem durar no tempo independentemente do sopro vivo de uma pessoa que est tentando transmitir essa idia. Hoje, podemos ler Plato, mesmo que ele tenha escrito algo h dois mil e quinhentos anos. Os arquelogos podem decifrar o que os egpcios haviam gravado em hierglifos nos templos. A escrita no s cria um vnculo entre geraes maiores mas permite um acmulo de conhecimentos no interior de uma sociedade que tambm muito maior e permite, alm disso, uma organizao da sociedade muito mais complexa do que uma sociedade sem escrita. O Estado, por exemplo, como forma poltica, seria muito menos desenvolvido se no houvesse a escrita. A cincia seria impensvel, as religies como as conhecemos tambm. O que eu quero dizer que os meios de comunicao so como rgos de reproduo ou como a memria das idias. Quanto mais esses rgos de comunicao se aperfeioam, mais essa memria se torna vasta e mais o ecossistema das idias se transforma, a inteligncia coletiva aumenta, se complexifica e evolui com rapidez.

Com a inveno da imprensa chega-se a uma situao ainda mais biolgica, pois as formas culturais so quase capazes de reproduzirem-se por si mesmas. Podemos ir mais longe ainda se pensarmos no telefone, no cinema, nas mdias hertzsianas. E finalmente hoje ns temos um ecossistema de idias no qual, quando uma representao se encontra em algum lugar do ciberespao, ela est ao mesmo tempo em todo o lugar da rede. Portanto, uma situao de ubiquidade, o que, evidentemente, nunca aconteceu na histria da humanidade. E ns s conhecemos essa situao h dez ou quinze anos. algo muito novo e muito difcil dizer a que civilizao essa nova situao, esse novo ambiente ecossistmico da cultura vai nos levar. H essa noo de ubiquidade e tambm a noo de interconexo, pelo menos de interconexo possvel de todas as idias, com os hipertextos da web, com o correio eletrnico e links no e-mail. Isso oferece a possibilidade de mostrar coisas em tempo real na escala planetria, o que totalmente novo na histria da cultura. Vocs podem imaginar o que isso representa para a inteligncia coletiva.

Finalmente, h essa capacidade autnoma de ao dos signos. Poderamos falar de robs, de inteligncia artificial, de vida artificial etc., mas estou me referindo a algo mais comum, que todos ns conhecemos, que o software. So fragmentos de escrita capazes de agir uns sobre os outros, ou de fazer agir os mecanismos que acionam robs, por exemplo, e que vivem no ciberespao. Creio que muito importante considerar essa nova situao da vida cultural na qual muitas coisas surpreendentes podem acontecer e na qual creio que devemos apreender as possibilidades mais emancipadoras, porque no garantido que as melhores coisas aconteam. Isso depende de ns. preciso entender que todas essas coisas so possveis e que elas dependem no s de nossa ao individual, mas da forma como vamos nos organizar para que as melhores coisas aconteam.

Para refletirmos um pouco mais sobre essa noo de idia, podemos nos deter sobre o que muitas pessoas chamam de economia da informao, economia do conhecimento. Como podemos articular essa noo de economia do conhecimento com a perspectiva da inteligncia coletiva? Eu vou adotar uma perspectiva que clssica em economia, que consiste em distinguir o capital do trabalho. Vou definir antes o que capital. Qual o significado etmolgico de capital? Etmologicamente, capital significa cabeas de gado. Capital vem de caput, cabea em latim. Quando se dizia, na poca bblica, que Abrao tinha um capital, isso significava que ele possua um rebanho. E a principal particularidade do capital que ele capaz de se reproduzir. O rebanho capaz de se reproduzir, de produzir filhotes.

Antes mesmo de termos rebanhos, a primeira coisa que consideramos capital foram as mulheres. Mas se vocs estudarem o sistema elementar de parentesco de Lvi- Strauss, vocs vero que as mulheres nas sociedades arcaicas so consideradas como a riqueza principal e a razo disso, provavelmente, que so as mulheres que fazem as crianas, que as reproduzem, pelo menos numa primeira viso ingnua. Portanto, o trabalho, naquela poca, consistia na caa e na colheita para manter a fonte da reproduo. Isso corresponde, alis, poca da oralidade. Na poca da revoluo neoltica, no momento em que se sistematiza a agricultura, a criao de animais etc., a fonte principal da reproduo so os gros e os rebanhos e o trabalho principal ser a criao de gado e a agricultura.

Com o alfabeto, podemos dizer que a nova fonte de reproduo, que capaz de ter filhotes, o dinheiro. Vocs podem perceber que vai ocorrendo um grau de abstrao suplementar , e atravs do comrcio que somos capazes de fazer com que o dinheiro se reproduza e se multiplique. Temos, ento, um novo tipo de trabalho que se generaliza, o do arteso e o do comerciante.

Na poca da imprensa, as instalaes industriais e as mquinas tornam-se a fonte de reproduo. A fbrica reproduz mercadorias, como se fosse uma grande matriz. E notem bem, a primeira mquina industrial que reproduziu mercadorias em srie foi a imprensa, ou seja, a primeira coisa que ns reproduzimos em srie, de forma industrial, foram as idias. E depois fabricamos roupas, produtos mecnicos etc.

Se observarmos o desenvolvimento do rdio, da televiso, do disco veremos at que ponto essa reproduo automtica incide, ainda hoje, sobre mercadorias informacionais, imateriais. Antes o trabalho importante era o do operrio, o do engenheiro que constri e mantm as mquinas. E hoje? Hoje, claro, as etapas anteriores no desapareceram. Por exemplo, a agricultura vai existir, provavelmente, por muito tempo ainda. Mas evidente que h cada vez menos pessoas trabalhando na agricultura, porque temos meios industriais para faz-la de forma mais eficaz. Hoje, ento, a fonte de riqueza, aquilo que capaz de reproduzir-se, o rebanho que d o leite, a carne, a l, so as idias. Quem so as pessoas mais ricas do mundo hoje? So as pessoas que tm a sua fortuna baseada na propriedade intelectual: pessoas que trabalham com software, certos artistas, pessoas que vivem da prpria imagem, porque a imagem uma idia. No apenas idias cientficas, filosficas, mas todo o tipo de idias. Pode ser msica, um jogo de futebol, por exemplo.

Bloco 6 Capital de inteligncia coletiva

Gostaria, para encerrar, de analisar essa inteligncia coletiva com conceitos econmicos, e sempre com aqueles trs plos de significao. Comeando pelo plo fsico, natural, temos o que se pode chamar de capital tcnico. Como exemplo, pensemos nesse nosso encontro. Para que ele acontecesse precisamos de um prdio isso ajuda muito e tambm de um microfone, um computador, uma tela. H um ambiente fsico que favorece nosso trabalho. Um ambiente fsico que constitudo, por exemplo, por estradas e veculos, que permitem que as pessoas se encontrem, que as idias circulem. O capital tcnico no apenas o ambiente fsico. tambm a mdia, os jornais, o radio, a televiso, os livros e, finalmente, os computadores e a Internet que so, hoje, a ponta mais avanada, mais eficaz, mais rpida na facilitao da inteligncia coletiva.

No plo do signo temos o que se pode chamar de capital cultural, ou seja, a memria gravada da cultura. Por exemplo, as bibliotecas. No estou falando aqui dos prdios, dos livros, mas sim do contedo, da organizao da estrutura abstrata das idias, que so visualizadas, so representadas por signos. H, ento, as enciclopdias, os manuais de aprendizagem escolar e h hoje a web que, de certa forma, representa o conjunto dos conhecimentos que so ainda no completamente, o conjunto todo potencialmente, assintaticamente, os conhecimentos produzidos pela humanidade. As novas idias s podero crescer em um solo que absorveu, que contm toda a memria da humanidade e quanto mais memria esse solo tiver mais idias novas poder fazer crescer.

Eu sou a favor da cibercultura mas no acho que devemos fazer tbula rasa do passado, esquecer a antiga cultura. Ela um tesouro inestimvel que devemos conservar preciosamente, manter viva o mais tempo possvel, pois sobre ela que podemos construir o novo. Portanto, o capital cultural , de certa maneira, a memria gravada da evoluo cultural, que nos oferece uma enorme quantidade de idias, de inspirao at hoje.

Finalmente, o terceiro plo o que se denomina capital social, que so os vnculos entre os seres humanos e, particularmente, no apenas a quantidade como a qualidade desses vnculos. Por exemplo: ser que confiamos uns nos outros? Ou somos honestos e sinceros ou ento passamos nosso tempo a imaginar estratagemas maquiavlicos para nos apunhalarrmos uns aos outros pelas costas. Se nos encontramos no primeiro caso, podemos imaginar que a cooperao intelectual ir funcionar um pouco melhor. Se praticamos o amor ao prximo ser muito mais fcil cooperar, ter idias juntos e melhorar nossa situao comum. Mas se ns passamos nosso tempo a nos mentir, a trairmos nossa confiana, provvel que a cooperao intelectual no funcione muito bem. Existe, pois, o clima que reina numa populao e esse clima, diria eu, uma questo de cultura, depende do regime poltico, das leis etc. Podemos dizer que, provavelmente, uma situao democrtica melhor que uma situao de ditadura, porque h menos violncia social, h mais liberdade de expresso, as idias podem circular mais livremente.

Portanto, h toda essa noo de capital social e h o que poderemos chamar de capital intelectual, ou seja, as idias originais que foram produzidas pela populao em questo. Se se tratam de idias concretas, podem ser traduzidas como propriedade intelectual mas, se forem idias abstratas so de propriedade comum, pois no pode haver propriedade com relao s idias abstratas. Mesmo as idias concretas depois de um certo tempo passam de propriedade intelectual privada para o domnio pblico.

Alm das idias que so produzidas pela populao existe tambm as competncias que dizem respeito a essas idias que a populao produz, o ecossistema que ela nutre. Esses dois aspectos, as idias originais e as competncias reais e vivas formam o capital intelectual, que alimentado pelo capital social, pelo cultural e pelo tcnico que, por sua vez so alimentados por ele.

Tentei representar as relaes entre essas quatro dimenses da inteligncia coletiva. Na base est tudo o que concreto, fsico, material e que constitui as condies de possibilidade do resto, porque se no temos as cidades, as ruas, os veculos, os meios de comunicao, provavelmente a inteligncia coletiva rapidamente encontrar limites. preciso que muitas pessoas estejam em relao intensa umas com as outras para que cheguemos ao grau de cultura e civilizao em que estamos, por mais limitado que esse grau seja, pois existem piores. Esse capital tcnico a condio do capital social. A Internet, por exemplo, nos permite estabelecer relaes uns com os outros, trocar e-mails, participar de fruns de discusso que, eventualmente, terminam em encontros reais. Esses novos meios de comunicao oferecem condies ao desenvolvimento do capital social. Oferecem condies, tambm, ao desenvolvimento do capital cultural, j que nunca houve tanta informao ou conhecimento que foi publicado on line. Alm disso, essas informaes e conhecimentos tm links, hipertextos entre si. O capital tcnico oferece, pois, as condies de um aprimoramento do capital cultural.

Quando as pessoas mantm boas relaes, relaes frequentes, relaes de confiana e dispem de uma memria informacional, numerosa e bem organizada, podemos afirmar que elas esto em boas condies de inventar coisas novas e desenvolver sua competncia pessoal. E essa inventividade ( que no a relao das pessoas entre si, nem dos signos entre si) a relao das pessoas com as idias. Ns oferecemos nossa energia, nossa ateno, nossas emoes e em troca as idias nos do mais capital social, mais capital cultural e mais capital tcnico.

Existe um ciclo. Estou convicto de que h meios de compreender cada vez melhor como funciona esse ciclo. Ns estamos apenas no incio, a nova situao criada pelo desenvolvimento do ciberespao de repente nos abre um novo campo de pesquisa e compreenso que, na verdade, o campo de pesquisas sobre a inteligncia coletiva humana, sobre aquilo que cooperao intelectual, sobre aquilo que construir juntos idias e selecion-las para o melhor bem de todos. Mas estamos ainda no comeo, como se estivssemos no incio do perodo neoltico: pegamos os gros que encontramos no campo, os selecionamos e vamos inventar o trigo. Ento, ao invs das idias crescerem desse jeito, vamos tentar sistematizar o modo de fazer e vamos inventar raas de idias, como inventou-se o milho, o trigo, o arroz, como se inventou o cachorro, o cavalo, a galinha, o pato. Como faz o pato, que barulho ele faz ? Quando ensinamos s crianas como o pato faz, ns as introduzimos em uma etapa muito importante no desenvolvimento da humanidade. a etapa do neoltico, quando inventou-se a escrita, a criao de animais, a agricultura etc. Podemos imaginar que daqui a alguns anos, talvez daqui a alguns sculos, teremos passado uma nova etapa comparvel quela do neoltico, na qual teremos aprendido a criar e cultivar as idias. Quando eu digo que sou favorvel a uma cincia da inteligncia coletiva, dessa cincia que estou falando, e espero que ns sejamos, cada vez mais numerosos para nos engajarmos nessa empreitada. Muito obrigado.

PAGE 31