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A CONCEPÇÃO DO INDIVÍDUO PELA ARTE: UMA LEITURA DE A CONFISSÃO DE LÚCIO E O RETRATO DE DORIAN GRAY Rita de Cássia Moser Alcaraz 1 Resumo. O presente artigo propõe a análise de duas obras literárias: A confissão de Lúcio de Mário de Sá Carneiro e O Retrato de Dorian Gray de Oscar Wilde, nas quais os autores, ao elaborarem em suas obras, espaços de reflexão sobre a arte e permitem aos personagens criarem obras artísticas inigualáveis por possuírem a centelha viva, capaz de materializar-se em A confissão de Lúcio com Marta, ou do retrato de Dorian Gray deter o seu envelhecimento, propondo um caminho na arte a ser definido pelos personagens, contra as modificações advin- das do estabelecimento da sociedade moderna. Considera-se também a modernidade como base para os movimentos artísticos que surgem, trazendo uma nova perspectiva para a arte. Por isso, leva-se em consideração as modificações na concepção do homem advindas do progresso. Palavras-chave: modernidade, arte, razão científica, imaginário. The art’s individual conception: a reading of A confissão de Lúcio and O retrato de Dorian Gray. Abstract. The present article analyses two literary works, The confession of Lúcio of Mário de Sá Carneiro and The Picture of Dorian Gray of Oscar Wilde, in which authors elaborate, in its workmanships, reflection spaces on the art and allow the personages to create different artistic workmanships for possessing the flash alive, capable to materialize itself in The confession of Lúcio with Marta, or of the picture of Dorian Gray it withhold its aging, considering a way in the art to be defined by the personages, against the happened modifications of the establishment of the modern society. Modernity is also considered as basis for the artistic movements that appear bringing a new perspective for art. Therefore, it takes in consideration the modifications in the conception of the man caused by progress. Key-words: modernity, art, scientific reason, imaginary, civilization. 1 Mestre em Letras com enfoque na área de Literatura pela UFPR. Professora nas Faculdades Opet em Curitiba. Pensamento Plural | Pelotas [04]: 181 - 201, janeiro/junho 2009

Confissao Dorian

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  • A CONCEPO DO INDIVDUO PELA ARTE:UMA LEITURA DE A CONFISSO DE LCIO

    E O RETRATO DE DORIAN GRAYRita de Cssia Moser Alcaraz1

    Resumo. O presente artigo prope a anlise de duas obras literrias: A confisso de Lcio deMrio de S Carneiro e O Retrato de Dorian Gray de Oscar Wilde, nas quais os autores, aoelaborarem em suas obras, espaos de reflexo sobre a arte e permitem aos personagenscriarem obras artsticas inigualveis por possurem a centelha viva, capaz de materializar-seem A confisso de Lcio com Marta, ou do retrato de Dorian Gray deter o seu envelhecimento,propondo um caminho na arte a ser definido pelos personagens, contra as modificaes advin-das do estabelecimento da sociedade moderna. Considera-se tambm a modernidade comobase para os movimentos artsticos que surgem, trazendo uma nova perspectiva para a arte.Por isso, leva-se em considerao as modificaes na concepo do homem advindas doprogresso.

    Palavras-chave: modernidade, arte, razo cientfica, imaginrio.

    The arts individual conception: a reading of A confisso de Lcio and O retrato deDorian Gray.

    Abstract. The present article analyses two literary works, The confession of Lcio of Mrio deS Carneiro and The Picture of Dorian Gray of Oscar Wilde, in which authors elaborate, in itsworkmanships, reflection spaces on the art and allow the personages to create different artisticworkmanships for possessing the flash alive, capable to materialize itself in The confession ofLcio with Marta, or of the picture of Dorian Gray it withhold its aging, considering a way in theart to be defined by the personages, against the happened modifications of the establishmentof the modern society. Modernity is also considered as basis for the artistic movements thatappear bringing a new perspective for art. Therefore, it takes in consideration the modificationsin the conception of the man caused by progress.

    Key-words: modernity, art, scientific reason, imaginary, civilization.

    1 Mestre em Letras com enfoque na rea de Literatura pela UFPR. Professora nas FaculdadesOpet em Curitiba.

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    1 Introduo

    Cidade a fervilhar, cheia de sonhos, onde/ O espectro,em pleno dia, agarra-se ao passante!/Flui o mistrioem cada esquina, cada fronde,/Cada estreito canal

    do colosso possante. (...)

    Charles Baudelaire

    Pretende-se refletir nesse artigo sobre o espao fundado pelospersonagens de duas obras literrias, a novela de Mrio de S-Carneiro,A confisso de Lcio sua primeira edio foi em 1913, com a tradeRicardo, Marta e Lcio (CARNEIRO, s/d) e o romance de OscarWilde, com o personagem Dorian, O retrato de Dorian Gray suaprimeira edio foi em 1891 (WILDE, 2001) como uma esfera emque o indivduo afirma sua identidade pela arte e se ope a algumasquestes abordadas na modernidade, dentre elas a nova concepo dohomem com a sociedade. Para tal, prope-se uma leitura de algumasobras que se inserem em trs linhas, porm entrelaadas na discussopelo dilogo entre a modernidade, o homem e a arte: a histrica, asociolgica, antropolgica e a literria, com os autores Marshall Ber-man, Malcolm Bradbury e James McFarlane, Alain Touraine, GilbertDurand, Edmund Wilson e Anna Balakian.

    Dividimos o artigo em duas partes especficas. Na primeira,pretende-se apresentar a leitura da idia de que a modernidade estfundamentalmente ligada ao desenvolvimento da razo, e essa por suavez modificou a relao do homem com o trabalho e com a histria.

    Para discutir as questes histricas e sociais sobre a moderni-dade, em um primeiro momento, apresentamos o pensamento deMarshall Berman (2001), Tudo que slido desmancha no ar: a aven-tura da modernidade, a de Alain Touraine (2002), O Nascimento dosujeito, tambm se utiliza alguns ensaios do livro O modernismo: umguia geral (BRADBURY, McFARLANE, 1999) e depois verificamos,por uma linha antropolgica, como o desenvolvimento da cinciacoloca as relaes simblicas e conseqentemente o imaginrio de lado

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    atravs do livro O imaginrio de Gilbert Durand (1999). Em um se-gundo momento, o artigo trabalha com os conceitos de modernismo,simbolismo e decadentismo utilizando alguns ensaios do livro, jmencionado acima, O modernismo: um guia geral. Para a leitura cor-respondente a rea literria sobre os movimentos simbolistas e deca-dentistas utiliza Edmund Wilson (2004), O castelo de Axel, AnnaBalakian (2000) O simbolismo.

    Nosso interesse analisar as personagens Lcio Marta Ri-cardo e Dorian Gray a partir das consideraes tericas sobre o indiv-duo moderno. Dessa forma, busca-se aproximar as personagens emsuas caracterizaes das teorias apresentadas abaixo e seus desdobra-mentos, e discutir a concepo do indivduo, articulada pelos autoresna construo dos personagens Dorian Gray e Lcio, como um cami-nho de oposio lgica objetiva e racional.

    O triunfo da racionalidade definiu um mundo objetivo, ligadoao desenvolvimento do progresso, oposto ao da subjetividade, entendi-da como liberdade individual. A razo proposta como o nicocaminho para o desenvolvimento e o progresso social no incio dosculo XIX, devido a essa definio o Ocidente deixa de lado todas asimagens que no podem ser explicadas pelas cincias exatas, mas noresgate do imaginrio existente e na re-criao de outras imagens que oartista e a arte resistem ao tecnicismo dessa poca.

    Na segunda parte abordarei, de uma forma breve, as bases domodernismo. As linhas tericas sero entrelaadas para demonstrar oembate e as mudanas ocorridas na concepo de mundo e do homem.Apesar da distncia temporal entre as duas obras pode-se aproxim-las,pois os escritores cada um a sua poca elaboraram personagens quetransgridem o meio para afirmarem uma identidade nica, essa trans-gresso cria uma esfera paralela, na qual residem seus objetos artsticosou pessoas. Nesse, a esfera artstica fundada como um espao simbli-co dentro das narrativas observa-se dois movimentos, o de refgio snormas, das leis e assim fundam para o leitor mais atento um espaode reflexo sobre a modernidade, a arte e o homem, e possibilita emum breve tempo tornarem-se diferentes em meio ao comum, demons-trando o embate constante no qual eles sucumbem.

    2 Bases tericasO termo modernidade refere-se em geral a um momento hist-

    rico que modificou o pensamento, as noes clssicas de verdade,

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    identidade, progresso, razo, f e instaurou uma nova estrutura social,marcando novas concepes sobre o tempo, a histria e o homem. Otermo modernismo refere-se ao movimento artstico e literrio dessapoca, que foi influenciado por vrias descobertas cientficas, at atentativa e o rompimento com esse dilogo.

    Como um caminho extenso e as linhas tericas so vrias,esse artigo fica com a leitura da modernidade e do modernismo par-tindo de trs obras e alguns ensaios que constituem uma anlise hist-rica, sociolgica e antropolgica da modernidade e do imaginrio. Asobras so: a de Marshall Berman (2001), Tudo que slido desmanchano ar: a aventura da modernidade, a de Alain Touraine (2002), ONascimento do sujeito e O imaginrio de Gilbert Durand (1999) e osensaios so do livro O modernismo: um guia geral.

    Devido ao desenvolvimento da cincia e o progresso nas cida-des, Marshall Berman (2001) aponta para uma dicotomia em que atradio posta de lado e Deus no mais concebido como um ref-gio para o homem, a responsabilidade de seus atos recai sobre si mes-mo.

    Marshall Berman (2001) aponta para uma transformao daconcepo do indivduo pelo dinamismo que ganha o desenvolvimen-to tecnolgico e cientfico. A modificao na estrutura do pensamentohumano influenciado pela razo marca a relao do indivduo comsua histria presente, passada e futura.

    A tomada de conscincia de que se vive um estado de trans-formao precria. H ainda muitos bolses de tradio ligadosprincipalmente concepo crist de que Deus o senhor que permiteas engrenagens sociais permanecerem estticas, ou redime o pobre ou odoente pela reza, trabalho e caridade. A idia espiritual de mundoentra em choque com a viso cientfica desenvolvida na modernidade,com o pensamento objetivo e material acerca das relaes de trabalho edo desenvolvimento econmico. Mas, nessa conturbada relao entreo homem e as novidades da poca, nesse contexto de contradies, quea prpria idia de modernidade se afirma. Enquanto uma minorialucra com o esplendor do progresso, boa parte dos trabalhadores submetida a condies subumanas. A extensa jornada de trabalho,aliada fome e falta de higiene, faz com que o indivduo afaste-se desi mesmo. O trabalho excessivo o afasta da famlia, dos amigos. Sempossibilidades de recuar ou refugiar-se na religio, pois a crena emDeus est abalada, o sujeito j no mais divino passa a ser consideradona relao pessoal com o grupo, com o coletivo.

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    O cenrio que se desdobra no sculo XIX, seguindo agora ospassos de Alain Touraine (2002), o da explorao cada vez maior dosrecursos naturais, associado expanso e automatizao das fbricas.Em meio a essas transformaes o sujeito procura entender seu papelnessa nova sociedade, sobretudo razo e a objetividade.

    A modernidade definiu-se durante muito tempo pelo que eladestrua, como questionamento constante das idias e formas de orga-nizao social, como trabalho de vanguarda nas artes. Porm quantomais o movimento de modernizao se ampliou, mais a modernidadearremessou-se sobre culturas e sociedades incapazes de se adaptarem,que mais a suportavam do que a utilizavam. O que havia sido vividocomo libertao tornou-se alienao e regresso [...] (TOURAINE,2002, p. 334).

    A modernidade torna-se presente na maioria das sociedades eenvolve a todos dentro de um sistema de produo. O mundo estmodernizado e o descontentamento com tal processo ocasiona movi-mentos sociais organizados pelos operrios que lutam contra o sistemaprecrio de trabalho. Se a ruptura com a tradio encerrada na crenareligiosa torna o homem sem esperanas no presente, tambm o colocana observao dos fatos sob pontos de vista mais racionais e objetivos.

    Segundo Touraine (2002), na Frana e em pases de tradio ca-tlica a modernidade era definida pela razo que traria luz s crenasreligiosas consideradas obscuras e passadistas. O pensamento moderno estritamente racional o pensamento cientfico torna-se a crena dasociedade de produo, modificando de vez a representao de mundoe a imagem do homem.

    Touraine (2002), no ensaio citado, aponta que a busca da razo to importante que as escolas pblicas da Frana adotam um pensa-mento lgico para a formao dos seus alunos, o que define bem comoa imagem da razo torna-se suprema, pondo de lado a irracionalidadedas crenas, incorporando nessa definio sobre irracionalidade asimagens subjetivas e os smbolos que no podem ser explicados pelascincias exatas. Ao ignorar os processos pessoais subjetivos do homemem detrimento de uma lgica objetiva, o novo sistema fere outrosprincpios criadores capazes de organizar o mundo, cuja base so asexperincias subjetivas.

    O drama de nossa modernidade que ela se desenvolveu lu-tando contra a metade dela mesma, fazendo a caa ao sujeito em nomeda cincia, rejeitando toda a bagagem do cristianismo que vive aindaem Descartes e no sculo seguinte, destruindo em nome da razo e da

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    nao a herana do dualismo cristo e das teorias do direito naturalque haviam provocado o nascimento das Declaraes dos direitos dohomem e do cidado nos dois lados do Atlntico. De forma que con-tinuamos a chamar de modernidade o que a destruio de uma parteessencial dela mesma. No existe modernidade a no ser pela interaocrescente entre o sujeito e a razo, entre a conscincia e a cincia, porisso quiseram nos impor a idia de que era preciso renunciar idiade sujeito para que a cincia triunfasse, que era preciso sufocar o sen-timento e a imaginao para libertar a razo, e que era necessrio es-magar as categorias sociais identificadas com as paixes, mulheres,crianas, trabalhadores e colonizados, sob o jugo da elite capitalistaidentificada com a racionalidade (TOURAINE, 2002, p. 219).

    A racionalizao do mundo coloca o homem em crise: pelorompimento com uma tradio religiosa e com a subjetividade dohomem, e por definir suas aes como um exerccio racional e objetivoexercido exclusivamente pelo indivduo. Essa relao com a moderni-dade desloca o indivduo para uma histria escrita por ele mesmo: noh mais refgios fora de si, ele deve procurar as respostas em seu novopapel definido principalmente pela referncia com o grupo, isto coma coletividade, e pela busca de sua individualidade.

    No final do sculo XIX, ocorre a crise na infalibilidade do m-todo cientfico e a procura pela verdade relativizada. Ao mesmotempo em que a sociedade se estrutura poltica, tcnica e cientifica-mente, a arte reivindica para si o domnio da imaginao. Touraineafirma:

    Os intelectuais com maior freqncia procuraram re-fgio contra a sociedade tecnicista na nostalgia do Serou no prazer esttico, mas foi essa ruptura voluntriacom o mundo moderno que, levando ao extremo a cr-tica da concepo racionalista da modernidade e no asubstituindo por nada, provocou a separao crescenteentre os intelectuais e os atores da sociedade (2002, p.306).

    Os artistas concebem caminhos prprios na arte para sua ex-presso refugiando-se na imaginao e resgatando a subjetividade postade lado pela razo. Esse processo no acompanhado por todos tor-nando a literatura algo quase incompreensvel para os no intelectuais.

    Nessa discusso, retomo as idias do antroplogo francs Gil-bert Durand (1999) em seu livro O Imaginrio, o qual deixa clara adificuldade do homem moderno em aceitar possveis imagens como

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    conhecimento. O autor procura rastrear as possveis causas que leva-ram o imaginrio a ser posto de lado. Dentre as causas apontadas, esta estrutura instaurada no incio do sculo XIX na mente do homem,com todo o avano da cincia e tecnologia, baseado na razo que insti-tui o conhecimento como bipolar, ou seja, verdadeiro ou falso. Asupremacia da razo no Ocidente, nesse perodo, recebeu vrias in-fluncias anteriores; a principal, apontada por Durand, foi a dos con-ceitos desenvolvidos por Scrates em seu estudo e desenvolvimentosobre o mtodo da verdade, no qual ele observava sempre uma lgicabinria: o verdadeiro e o falso e que veio posteriormente a influenciarPlato e Aristteles.

    Outro motivo que Durand (1999) destaca o sistema desenvol-vido na escrita pelas civilizaes ocidentais e no ocidentais, enquantoas civilizaes no ocidentais sempre utilizaram os ideogramas. Mistu-rando a imagem com a escrita, o ocidente privilegiou a grafia em vezda imagem mental:

    Todas estas civilizaes no-ocidentais, em vez de fun-damentarem seus princpios de realidade numa verda-de nica, num nico processo de deduo da verdade,num modelo nico do Absoluto sem rosto e por vezesinominvel, estabeleceram seu universo mental, indi-vidual e social em fundamentos pluralistas, portanto,diferenciados (DURAND, 1999, p. 7).

    Durand afirma, ainda, que o Ocidente sustenta, a partir doraciocnio socrtico combinado influncia religiosa, uma verdadenica.

    Esse pequeno histrico sobre o pensamento ocidental servecomo base para entender-se como a arte resgata a subjetividade, crian-do imagens e revisitando os smbolos, postos de lado pela viso racio-nal. Ao privilgio sempre dado pesquisa cientfica, as imagens passa-ram a ser estudadas na matemtica, na fsica, pois tudo deveria serexplicado pela cincia. Por isso, no sculo XVII, a cincia est em seupleno desenvolvimento, vindo mais tarde, no sculo XIX, a estabelecersua supremacia, como um cone do conhecimento, apresentando m-todos e formulaes para explicar a realidade. Nesse momento dahistria a imagem foi deixada de lado. Na verdade, a marginalizaoda imagem e do imaginrio uma herana do monotesmo pregadopela bblia, como afirma Durand:

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    A proibio de criar qualquer imagem (eidlon) comoum substituto para o divino encontra-se impressa nosegundo mandamento da lei de Moiss (xodo, XX. 4-5). Outrossim, como podemos constatar no Cristia-nismo ( Joo, V. 21; I Corntios, VIII. 1-13; Atos, XV.29...) e no Islamismo (Coro, III. 43; VII. 133-134; XX.96, etc), a influncia do judasmo nas religies mono-testas e que se originaram nele foi enorme. O mtododa verdade, oriundo do socratismo e baseado numalgica binria (com apenas dois valores: um falso e umverdadeiro), uniu-se desde o incio a esse iconoclasmoreligioso, tornando-se com a herana de Scrates, pri-meiramente, e Plato e Aristteles em seguida, o nicoprocesso eficaz para a busca da verdade (DURAND,1999, p. 9).

    No sculo XIX, as cincias em todas as reas passam a ser dis-cutidas como formas de se conhecer a realidade. O avano da cinciaeconmica com a teoria de Marx se estende discusso de fatoreshumanos, modificando a concepo sobre o indivduo, que passa a serestudado por fatores sociais. Enfim, o mtodo cientfico se consagracomo forma de traduzir a realidade.

    Apesar dessa marginalizao, o imaginrio no desapareceu porcompleto das estruturas sociais, ficando latente. Durand descreve omovimento no sculo das luzes como sendo a quarta resistncia doimaginrio (1999, p. 27), pois o defende dos ataques de correntescomo o positivismo e o racionalismo, propondo um sexto sentidopara explicar a arte, pois ela no pode ser concebida apenas pelas duasvias propostas, as do verdadeiro e falso. O belo pode ser atingido poroutro conhecimento, permitindo aos artistas inaugurarem uma novaordem para explicar o universo artstico, a qual privilegia mais aintuio pela imagem do que a demonstrao pela sintaxe (DU-RAND, 1999, p. 27). Foram os simbolistas que conseguiram ultrapas-sar as formalidades dos romnticos e parnasianos e elevar a imagemicnica, potica, at musical, a vidncia e conquista dos sentidos(DURAND, 1999, p. 29).

    Durand observa que nos sculos em que a cincia reina comoinquestionvel, final do sculo XVIII e incio do sculo XIX, os movi-mentos pr-romntico e romntico descrevem um sexto sentido para seatingir o belo, alm dos cinco comuns percepo, baseando-se noimaginrio como forma possvel de se traduzir a realidade.

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    Lgico que, se um dado da percepo ou a conclusode um raciocnio considerar apenas as propostas ver-dadeiras, a imagem, que no pode ser reduzida a umargumento verdadeiro ou falso formal, passa a serdesvalorizada, incerta e ambgua, tornando-se imposs-vel extrair pela sua percepo (sua viso) uma nicaproposta verdadeira ou falsa (DURAND, 1999, p.10).

    Tais premissas influenciaram a forma de representao literriae os movimentos de vanguarda europia no incio do sculo XX, comoo expressionismo e o surrealismo, formas preocupadas em retratarimagens nascidas no mundo interior do homem. Os expressionistasso os mais sensveis ao sofrimento humano, procurando retratar suaangstia frente ao mundo, por exemplo, na pintura O grito de 1893, de Edvard Munch, com seus traos retorcidos que expressam dor eangstia. Essa distoro da representao do homem distancia-o deuma beleza pr-definida. Ela demonstra o interior do homem.

    Movimentos, como o cubismo, tambm redescobrem geome-tricamente o homem, redefinindo conceitos e valores como o real e abeleza atravs da arte. Tais movimentos ecoam na literatura como umanova maneira de representar o real.

    Assim, a realidade velada seria o terceiro caminho possvelpara entender as respostas sem apenas considerar a lgica binria. Arealidade velada ou sexto sentido so as inmeras propostas para ver-dadeiro e falso contidas no imaginrio. Dentre as possveis leituras daobra do autor portugus e do autor Irlands, a proposta para entendera criao de personagens como Ricardo, Marta e Lcio e Dorian Gray a do imaginrio, no como possvel forma de desvelamento do obje-to, mas como uma das possibilidades de compreenso da estrutura queimpulsiona o movimento dos personagens em relao ao outro, maisespecificamente na relao de Ricardo com Lcio.

    As imagens propostas por Durand no so formas fixas e simmoventes. Se considerado o seu poder de origem, pode-se obter enten-dimentos diferenciados entre as experincias passadas (o que a imagemrepresentou) e presente (o que a imagem representa). Com a possibili-dade de se utilizar a imagem como recurso criador, o escritor podecriar um novo conhecimento do mundo a cada variao representadapela imagem no presente. Mesmo sendo permitida a variao da ima-gem por uma mudana histrica de sua simbologia, o valor antigo um conhecimento arraigado na histria e modificado pela dinmicapresente.

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    Na novela A confisso de Lcio e na narrativa O Retrato deDorian Gray, de Wilde, no podemos reduzir sua simbologia, nem ainteno de uma idealidade a imagens apenas verdadeiras ou falsas.Para explicar a diversidade das sensaes provocadas nos personagenspela caracterizao artstica de sentimentos, no podemos nos aterapenas aos cinco sentidos propostos pela percepo fsica; por isso,procuramos descrever, em parte, um pouco da teoria de Durand, queauxilia o entendimento da criao de um mundo particular como opresenciado na novela A confisso de Lcio e em O Retrato de DorianGray, naquilo que eles tm em comum, em que os personagens buscamuma nova forma de se comunicar com o belo, de descobrir-se em umaidentidade mltipla, mesmo no conseguindo manter um espao in-termedirio para realizar o ideal na novela o de no ser um, mas simvrios, e no romance em experimentar todas as experincias do mundosem ter marcas dessas transgresses no corpo fsico; tal espao pode serentendido como uma forma de no-aceitao do convencional.

    Para Touraine, o indivduo necessita descobrir o sentido pesso-al de experincias e histria, sendo que a razo no necessita triunfarsobre os sentidos. A construo do sujeito, na modernidade, deve seracompanhada por um equilbrio entre o pensamento racional e asubjetividade do homem. Porm, esse equilbrio implica perceber-secomo agente modificador das relaes sociais. Dando a palavra aoautor:

    A subjetivao a penetrao do Sujeito no indivduoe, portanto, a transformao parcial - do indivduoem Sujeito. O que era ordem do mundo torna-se prin-cpio de orientao das condutas. A subjetivao ocontrrio da submisso do indivduo a valores trans-cendentes: o homem se projetava em Deus; doravante,no mundo moderno, ele que se torna o fundamentodos valores, j que o princpio central da moralidadese torna a liberdade, uma criatividade que seu pr-prio fim e se ope a todas as formas de dependncia(TOURAINE, 2002, p. 222).

    Apesar de o indivduo necessitar encontrar em si novas basespara interligar-se aos novos padres, ele no deve fechar-se em si, pois aconscincia de seu papel social um esforo dele em unir seus desejospessoais ao coletivo para integrar-se socialmente. Percebendo as mu-danas sociais e culturais, a arte procura escapar de uma viso nica emultiplica suas teorias, culminando com movimentos que servem debase para o modernismo.

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    Ao analisar as obras propostas, consideraremos os pressupostosde Berman, Touraine e Durand sobre a modernidade, o indivduo e oimaginrio. Ao fechar esse parntese, antes de passarmos ao tpicoseguinte, temos em mente que, no obstante grande parte dos discursossobre a modernidade estar concentrada principalmente nas especifici-dades do sculo XIX, as mudanas vm de pocas mais afastadas. Emtodo caso, em hiptese alguma se pretende sugerir que os trs autoresignoram isso.

    No entanto, essas rupturas no ocorrem repentinamente: so,antes, uma soma de acontecimentos que se iniciam desde o surgimentoda burguesia, que, a partir do sculo XV, necessita de novos mercadose, para isso, incentiva as navegaes, descobrindo novas terras e umnovo caminho para fortalecer o seu comrcio com as ndias. A relaodo homem com o tempo e o espao acaba expandindo-se por causa detais descobertas, aprimorando a sua relao comercial. O tempo come-a a ganhar uma nova perspectiva a do comrcio. Observa-se que otempo ganha uma nova acepo com os modernos. Apesar de Tourai-ne e Berman reconhecerem que essas mudanas vm de longe, os doisautores olham sobretudo para o sculo XIX, momento em que essasmanifestaes se revelam mais concentradas, mais densas. Dentre osvrios poetas que escrevem a respeito dessa nova definio, Mrio deS-Carneiro acaba definindo bem a instantaneidade que o tempo as-sume na vida do homem, modificando a forma de pensar a relao doindivduo com o seu passado, o presente e o futuro:

    Viver momentos radiosos, ter corpos ureos, bocasimperiais, e a glria ungir-nos em aurolas que ascen-dem isso ser feliz? Mentira! Pois tudo passa, esvoato rpido como o tempo. E sofremos da saudade: dasaudade do que foi, a menos cruel porque j passou, dasaudade do futuro que desconhecemos da saudadedo presente, que sentimos bem o que , e por isso senos torna a mais contorcida de angstia (S-CARNEIRO, 1998, p. 187).

    Dentro da massa de informaes sobre a modernidade, co-mum a de que a vida se torna mais angustiante. um momento detransio entre o desenvolvimento progressivo de indstrias e o papel aser desempenhado pela maioria das pessoas ainda est se definindo;essas relaes marcam uma nova concepo sobre a vida e a morte(BERMAN, 2001). Essa relao expressa pelos personagens a seremanalisados; ambos tentam imortalizar suas expresses atravs daquiloque consideram arte. Dorian entrega-se a todos os tipos de prazer

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    como se fosse um artista a viver uma grande histria e Lcio aceitafazer parte de uma relao amorosa com o amigo Ricardo atravs deMarta, existente apenas em um plano paralelo. Essa concepo literriada arte aproxima esses dois autores que viveram em momentos diferen-tes, porm perceberam as modificaes sociais e humanas, cada qual asua maneira. O importante enfatizar que todos os apontamentosdemonstram as mudanas como: as condies de vida que surgem pelaprpria modificao da estrutura da cidade moderna que separam oindivduo da tradio, de seu passado, de sua histria e modificam asrelaes de trabalho e o relacionamento com seus semelhantes. Emconseqncia, os artistas concebem uma arte complexa, cheia de enig-mas prprios e smbolos, ao mesmo tempo mais fechada em si mesmae a distanciam do homem comum, mas o possibilitam a pensar novoscaminhos para a arte, marcando a configurao dos personagens sobuma nova tica.

    At aqui procuramos nos orientar pelos pressupostos de Ber-man, Touraine e Durand, naquilo que eles tm em comum, que aconstatao de que a modernidade pode ser traduzida como sinnimode mudana. No uma simples mudana, mas uma mudana abrupta osuficiente para que diversas relaes passem a ser equacionadas demodos inditos: desde as relaes sociais at a percepo ntima dosujeito sobre si. Daqui para frente vamos analisar algumas das configu-raes apontadas nesse primeiro tpico e que servem de base para asnovas propostas da arte, entendida como aproximao naturalismo erealismo e resistncia simbolismo e decadentismo ao pensamentonico e objetivo.

    3 Arte como refgio ou como identidadeNesse segundo momento do artigo, pretende-se apresentar al-

    guns dos movimentos que serviro de base ao modernismo utilizandoos ensaios do livro: O modernismo: um guia geral (BRADBURY,McFARLANE, 1999) e a discusso correspondente rea literria sobreos movimentos simbolistas e decadentistas com os autores EdmundWilson (2004), O castelo de Axel, Anna Balakian (2000) O simbolismoe alguns ensaios do livro modernismo: um guia geral.

    importante considerar que o autor portugus insere-se nomovimento modernista pela elaborao, publicaes e pelo seu esforona produo da Revista Orpheu considerada como marco do mo-dernismo em Portugal , porm os elementos encontrados na novelaanalisada so simbolistas. Para embasarmos essa discusso, interessan-

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    te perceber o percurso da literatura frente modernidade, isto , emface das modificaes do homem e da sociedade e as interpretaes daarte acerca desse movimento. Considero importante mencionar que hmuita divergncia sobre a existncia do movimento simbolista naInglaterra; porm, sob o respaldo de Wilson (2004), a narrativa deWilde apresenta vrios elementos que remetem para essa reflexo e quesero apresentados no decorrer desse tpico.

    Nas bases do movimento modernista, encontra-se uma srie detendncias as quais se articulam e sobrepem-se, rejeitando os ideaisantigos para desenvolver novos conceitos. Nesse turbilho de idiasnascidas da transformao do momento histrico e social do homem,fundam-se diversas estticas, como o naturalismo, o simbolismo, odecadentismo uma srie de ismos que pretende reformular o conceitode arte.

    Na literatura, a linguagem; na pintura, as cores, os tons, o rele-vo; e na msica, as ousadias meldicas e harmnicas de Wagner, quemisturavam poesia, teatro e dana. Trata-se, enfim, de um momento deengajamento no campo das artes. A busca por uma arte liberta dequalquer padro acaba expandindo-se e ganhando uma definio quese modifica de lugar para lugar e de artista para artista. Alguns artistaspreferem no filiar-se a nenhum grupo especfico, mas suas obras aca-bam contribuindo para entender o movimento de expanso ocasiona-do pelo modernismo, que se desloca nas vrias correntes estticas dofinal do sculo XIX, desenvolvendo-se com vigor nas primeiras dcadasdo sculo XX.

    Pretende-se com esta formulao sobre o movimento modernis-ta destacar algumas influncias anteriores a ele e observar como asobras A confisso de Lcio e O retrato de Dorian Gray estudadas nestetrabalho dialogam ou rejeitam a influncia destes movimentos, fun-dando uma nova esttica ou reorganizando as idias anteriores, paraento articular novos conceitos sobre arte. Isto s possvel a partir daperspectiva de que as diversas tendncias, mesmo dividindo-se em fasesou linhas tericas divergentes, agrupam-se em torno da mesma questo:uma formao esttica capaz de fundamentar a arte sob novos ideais.Este conceito observado no livro O modernismo: um guia geral. Paraambos, o movimento modernista possui caractersticas abrangentes,mas que, em conjunto, constituem a formao de uma esttica domi-nante rumo a um novo entendimento sobre a arte.

    O movimento modernista surge como resposta s mudanaspolticas, religiosas e sociais. As descobertas cientficas, em suas diver-

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    sas reas de estudo, influenciam os artistas a repensar a esttica nasartes e procurar uma nova linguagem seja na literatura, pintura,escultura, etc. para divulgar a nova tendncia. O naturalismo aprimeira tendncia a ser referida no estudo de Bradbury e McFarlane(1999) influenciada pela filosofia, pela psicologia de Freud, pelodeterminismo, que procura refletir sobre o conflito do indivduo con-sigo e com o social. Segundo Bradbury e McFarlane (1999), pensaruma arte que acompanhe as novas tendncias modernas, ao mesmotempo, que englobe os sentimentos contraditrios como a insatisfaodo homem e suas esperanas frente ao desenvolvimento social, cientfi-co e tecnolgico, condensar a arte em imagens cada vez mais subjeti-vas, retratando as convenes sociais e os ambientes domsticos, comofez o naturalismo.

    Na passagem de 1880 para a dcada de 1890, desenvolvem-sevrios movimentos considerados por Bradbury e McFarlane (1999)como sendo de base modernista, j que buscavam respostas para en-tender a modernidade.

    A subjetividade expressa pelos naturalistas, na descrio psicol-gica ou determinista dos personagens, recorre a uma subjetividade que seacentua em movimentos como o impressionismo, o simbolismo, o neo-romantismo e decadncia, que do continuidade reflexo sobre oindivduo atravs dos personagens criados, mas que rompem com omovimento anterior. As disposies gerais dos movimentos referidosacabam por determinar rupturas com a esttica anterior, enquanto ou-tros preferem modificar alguns conceitos, aplicando-os de maneira dis-tinta da inicial. A terminologia para identificar as vrias correntes estti-cas varia de lugar e tambm conforme a ordem poltica e social.

    O movimento modernista pode ser entendido, ento, da perspec-tiva de novas formas artsticas de conceber a arte, como uma esttica quevaria conforme o movimento dos artistas rumo ao novo, mas tambmcomo grupo social, no qual h um engajamento poltico com repercus-so internacional, como o Jugendstil (tido freqentemente, ainda queno com inteira justeza, como equivalente alemo do art nouveau)(BRADBURY; McFARLANE, 1999, p. 160). Na verdade, os movimentosderivados do naturalismo, com base modernista, variam de acordo comas geraes, podendo mudar seus rumos ou condensar a teoria conformea experincia histrica. Por isso, o mesmo movimento pode estar eclo-dindo como novo em alguns pases, enquanto em outros est perdendosuas foras pelo surgimento de novas discusses. Um dos exemploscitados pelos autores o do naturalismo em relao Alemanha, Franae Escandinvia: quando o movimento est sendo fortalecido no primei-

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    ro pas, nos outros perdeu foras pelo surgimento de novas tendnciasestticas. Essa sobreposio de movimentos novos uma tentativa dosartistas em desenvolver caractersticas prprias e distintas que servirocomo base para o modernismo.

    O simbolismo entendido por Clive Scott, em seu ensaio Sim-bolismo, decadncia e impressionismo, como [...] a passagem de umaesttica romntica para uma esttica modernamente irnica (SCOTT,1999, p. 166). Ele cita autores como Paul Valry e Mallarm para apon-tar as mudanas na linguagem. O entendimento da palavra torna-semltiplo, capaz de expressar novos significados pela substantivao deverbos e advrbios no poema. Segundo Scott, essa caracterstica lega-da ao modernismo pelos simbolistas, alinhando-se s idias de Ed-mund Wilson: (...) o qual em Axels castle, via as bases da literaturamoderna no desenvolvimento do simbolismo e em sua fuso ouconflito com o naturalismo (SCOTT, 1999, p. 166). Essa caracteriza-o possibilita uma nova leitura dos poemas e estende-se obra emprosa, quando o simbolismo deixa de lado a questo de gneros emistura a obra em prosa com a potica.

    Os espaos em branco nos poemas so entendidos como formade composio destinados reflexo. As imagens criadas nos poemasso independentes de um referencial exterior: elas so compostas pelopoema com um sentido intrnseco obra. Assim o poema passa a ser[...] composto de palavras e rasuras, o smbolo composto de objeto eidia, presena e ausncia (SCOTT, 1999, p. 168). Essa inventividadena linguagem importante para entender-se que a subjetividade nosimbolismo aprofunda-se e torna a arte mais independente dos concei-tos adotados pelos naturalistas. Aqui h uma preocupao maior comas palavras e as possveis imagens que elas podem criar, assegurando aopoeta uma possibilidade em modificar a representao imagtica dopoema conforme o uso da palavra. A apropriao da linguagem comomaterial possvel de ser moldado, esvaziando o sentido da obra oupreenchendo lacunas, torna essa apropriao um dos elementos fun-damentais para se entender como S-Carneiro e Oscar Wilde apropri-am-se desse elemento transformador em suas obras, para criar univer-sos baseados na busca dos personagens por um aprimoramento da artepelo smbolo criado com o jogo de palavras e de imagens.

    Mesmo observando que as duas obras, a novela e o romance, fo-ram elaboradas em momentos histricos distintos, possvel perceberelementos simbolistas em ambas. Dentre eles destaco a semelhana emrefugiar-se em um espao fundado paralelamente ao do cotidiano, naqual a criao artstica de fundamental importncia. Dorian pretende

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    transformar sua vida em arte, j Lcio cria uma personagem femininapara se aproximar de seus amigos e experienciar amizades verdadeiras.

    Cada autor, sua maneira, imprime nos personagens a capaci-dade de desvencilhar-se de uma ordem cartesiana para adentrar em ummundo prenhe de imagens e de elementos enigmticos. Como afirmaAntnio Quadros na introduo da obra A confisso de Lcio:

    Talvez que o mais original da escrita de Mrio de S-Carneiro seja no propriamente o inslito das situa-es e das personagens que elaborou, projeces deuma realidade-alm e de um homem-Outro, isto , dadupla aspirao quimrica de uma objectividade e deuma subjectividade diferentes das que o envolvem edefinem social e psicologicamente no extrnseco doser, mas o modo surpreendente como utilizou os ad-jectivos e os advrbios ao servio de tal diferena, pro-curada e obtida, fazendo-os caracterizar ou ferir ossubstantivos e os verbos, (...) isto , a substancialidadedo mundo e o seu movimento, de forma to singular,bizarra, inslita e contudo intencional, que dir-se-iapretender o escritor a criao de uma nova realidadeaqui (QUADROS, s/d, p. 24).

    Mrio de S-Carneiro, na novela A confisso de Lcio, incor-pora outros elementos simbolistas: a dissociao entre a idealidade e ocotidiano; a necessidade do personagem Ricardo em ultrapassar a sirumo ao outro ou a criao de um mundo singularizado por ele; oaguamento das percepes e sentimentos, uma espcie de [...] delriosensorial, tal o que poderia obter-se pelo pio ou pelo lcool, e que foium caminho percorrido, antes de S-Carneiro, pelos poetas simbolistase decadentistas, desde Baudelaire e Rimbaud [...] (QUADROS, s/d, p.18).

    O poeta portugus imprime em sua obra todo um conjunto deimagens capaz de criar um smbolo prprio, pela necessidade dospersonagens de buscar no outro uma forma de completude. Essanecessidade faz com que se desdobrem em outros, despertando seussentidos para uma nova percepo de si e do mundo, colocando-se emuma perspectiva entendida somente na leitura da obra carneiriana,pois cria elementos prprios em outras narrativas, como a incidnciade suicdio de personagens em suas obras; a busca incessante pelooutro; a tentativa de imprimir vida obra de arte ou em criar elemen-tos artsticos que transitem na fico. Essas caractersticas poderiam serapontadas como pertencentes ao sensacionismo escola potica defi-

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    nida por Fernando Pessoa. Todavia, Antnio Quadros refuta essaalternativa. Segundo ele, S-Carneiro cria uma expresso lingsticaprpria e sensaes diferentes da proposta por Pessoa, aqui modifica-das principalmente pelo elemento bizarro. Considerando a tese deEdmund Wilson, semelhana de outros romancistas modernos inspi-rados pelos simbolistas, Mrio de S-Carneiro adota a linguagem sim-bolista, atribuindo valores prprios ao conjunto de sua obra e conse-guindo criar uma expresso capaz de confrontar e questionar a normapadro e os valores modernos.

    Em S-Carneiro, dentre os vrios elementos do romance men-cionados como pertencentes ao simbolismo, destaca-se principalmentea linguagem, enquanto em Oscar Wilde as caractersticas encontradasna obra O retrato de Dorian Gray se inserem no esprito decadente dofinal do sculo. Embora, Graham Hough (BRADBURY, McFARLA-NE, 1999, p. 23) acredite nunca ter havido um movimento simbolistana Inglaterra, ele afirma: que o que houve no mximo foi um simbo-lismo sem magia. Mas adotamos a premissa de Edmund Wilsonquando aproxima o movimento moderno ingls e o americano dosimbolismo, por isso analisamos a obra O retrato de Dorian Gray deOscar Wilde em seus elementos que dialogam com o simbolismo e odecadentismo, movimentos cujas caractersticas se confundem nodecnio final do sculo XIX (WILSON, 2004).

    Anna Balakian, ao falar acerca do decadentismo e do simbo-lismo, afirma que se Verlaine foi considerado como o precursor dosimbolismo pelos franceses, Mallarm influenciou o decadentismo pelaconduta retrada, a preocupao com o mistrio da vida, a inutilidadedo livre arbtrio, a iminncia da morte na existncia diria do homem,o abismo de nossas incompreenses (BALAKIAN, 2000, p. 91). Mas,dentre as caractersticas apontadas por Balakian sobre Mallarm, aprincipal consiste em considerar a arte como refgio para o artista epara a permanncia de sua memria.

    Como Anna Balakian aponta em seu estudo sobre o simbolis-mo, no final do sculo XIX, recorreu-se ao helenismo como formasimblica, os artistas sob a inspirao de Vnus de Milo e as descober-tas na Trcia instauram o estilo helnico na arte (BALAKIAN, 2000, p.91). Alguns poetas como Wilde, que estende tal discusso para suaobra em prosa, O retrato de Dorian Gray, utilizaram o helenismocomo forma de construir um ideal de beleza. No romance, os persona-gens Lorde Henry e Basil recorrem constantemente ao ideal helnicode beleza para referir-se a Dorian Gray. Ao utilizar o valor da belezacomo ideal de vida, Dorian e os amigos esto evocando o mito de

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    Narciso, criando uma dupla referncia: a primeira consiste em intensi-ficar a aura de mistrio na narrativa pela pintura do retrato de Dorian,que envelhece no lugar dele; a segunda enuncia que o personagem, porenamorar-se da beleza, acaba por modificar a natureza do quadro parapermanecer jovem. Cria-se, portanto, uma dupla conotao, em que oconcreto e o abstrato transcendem o seu significado para elevar a expe-rincia de Dorian esfera artstica.

    O quadro uma espcie de espelho de contemplao de Dori-an Gray e funciona como uma lembrana de quem ele , revelando omedo do personagem em tornar-se feio, mas tambm de morrer. Comono deseja envelhecer e morrer, tenta transformar sua vida em experi-ncia artstica pelo estudo e refinamento de suas percepes, e assimfugir da ao temporal. Porm, a morte o persegue na figura de James irmo de Sibyl que deseja vingana pela morte da irm , ou pelaimagem velha e feia estampada no quadro aps seus atos. Quando ojovem tenta destruir a imagem horrorosa estampada no quadro, elecomete um suicdio involuntrio.

    Busca-se destacar, com bastante nfase, que na novela A confissode Lcio e no romance O retrato de Dorian Gray os autores sugeremum recolhimento dos personagens em mundos resguardados pela esferaartstica, que os envolve e nela os personagens podem criar um esferaartificial, como a personagem Dorian, ou elaborar smbolos e imagens,como a criao de Marta por Ricardo, repudiando a norma social ecriando uma identidade possvel apenas nessas esferas.

    4 ConclusoO que se buscou neste artigo foi evidenciar uma reflexo sobre

    o desajustamento do homem moderno, o qual possui ecos na prosaanalisada. Apesar de seus vinte e dois anos de diferena, tanto a novelaA confisso de Lcio quanto o romance O retrato de Dorian Grayapresentam personagens que procuram na arte uma alternativa deescapar das contingncias prprias do cotidiano. Apesar de em Confis-ses de Lcio as cidades no serem descritas de forma minuciosa, hum tdio frente vida, esse sentimento compartilhado por Dorianque olha a maioria das pessoas, mesmo os de sua classe, como sendomedocres e comuns. A arte lhes propicia o recolhimento contra ocotidiano, o tdio, a melancolia, enfim, contra aquilo que julgamcomo fatos no suficientemente ricos para suas experincias. Um dosimpasses apresentados neste artigo para os personagens que desejam,cada um a sua maneira, implantar uma ordem diferente daquela en-

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    tendida como padro ou seja Dorian aplica a arte vida, inicial-mente sem preocupaes com a tica, enquanto Ricardo inaugura umaesfera que possibilita a ele uma identidade feminina. Assim, os autores,de maneira distinta, acabam refletindo acerca da individualidade dohomem na modernidade. Os personagens do romance, Dorian e seusmentores, e da novela, Ricardo, Marta e Lcio, utilizam artifcios pr-prios da arte para ser diferentes dos que eles consideram homens co-muns: a) dos indivduos que no so polidos e fazem parte da grandemassa de proletrios; b) dos aristocratas preguiosos que no optampelo desenvolvimento e refinamento dos sentidos; c) e ainda daquelescuja identidade foi perdida em meio multido, coletividade, comoas danarinas do Olmpia descritas por Ricardo e Lcio. No lhes seiatribuir uma vida um amante, um passado; certos hbitos, certasmaneiras de ser. No as posso destrinar do seu conjunto: da, o meupavor (S-CARNEIRO, p. 80).

    O medo de existir como mais um rosto em meio a multidomotiva Ricardo em particularizar sua vida, sua arte, criando assim, umaidentidade cindida, mltipla, que se fragmenta no descompasso comLcio. Dorian deseja criar uma identidade distinta daquela dos homenscomuns. A constante influncia de Lorde Henry Wotton ajuda a moldaro comportamento do jovem de maneira particularizada, privilegiando assensaes de corrupo, mas o objeto escolhido para depurar a suaprpria vida. O final, em ambas as obras, no aponta a arte como umasoluo permanente para os problemas dos personagens.

    No percurso dos personagens em privilegiarem a arte, as obrasapontam para o mergulho na subjetividade contra o pensamento raci-onalista e determinista. Por isso, o imaginrio foi referido como pontode reflexo. Procuramos entender que as respostas procuradas na artepelos personagens da novela e do romance, assim como a existncia deMarta, ou a vida no quadro, so entendidas como imagens criadaspelos autores para possibilitar obra maior riqueza de detalhes, etambm como solues para os personagens criarem uma identidadesingular, particularizada e refletida em suas obras artsticas, sejam elasentendidas como objeto ou vida. Destacamos tambm a importnciade Marta, na novela, e Sibyl, no romance, como fontes de inspiraopara seus respectivos parceiros. Marta quem possibilita a Ricardo suaaproximao com os amigos enquanto Sibyl demonstra no palco a artede representar to influente na vida de Dorian. Dessa forma, buscou-seem teorias sobre o desenvolvimento da modernidade e sua influnciana literatura e sobre o imaginrio uma leitura que revelasse novasleituras sobre as duas obras. Tambm comum e honesto tentar refa-zer as perguntas. O resultado que muitas respostas foram observadas:

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    a) o simbolismo e o decadentismo so influentes nas duasobras, a ponto de orientar-lhes na composio dos personagens,nos discursos destes sobre a arte e nos espaos narrativos que osentornam;

    b) a resistncia concepo cientfica da realidade faz-se pre-sente na opo de ambos os autores que recuperam o imagin-rio como recurso capaz de apontar a complexidade do real;

    Como ficou esclarecido, o choque entre a arte que os persona-gens acreditavam ser uma forma superior de vida e as exigncias ouintransigncias de se viver em uma sociedade pautada por valores ou-tros que aqueles nos quais os personagens da novela e do romanceacreditavam os coloca em conflitos to intensos a ponto de s lhesrestar como alternativa a destruio de sua obra e a morte: na novelade S-Carneiro, Ricardo tenta matar Marta e acaba cometendo umsuicdio involuntrio, no romance de Oscar Wilde, Dorian tenta des-truir o quadro e provoca sua prpria morte de forma involuntria; jSybil, personagem que de fato possui a inteno do suicdio, leva-o acabo. A morte nas duas obras indica a inteno dos autores S-Carneiro e Oscar Wilde em refletir sobre a arte como transcendncia.A arte tem sim o papel de criar, elaborar o real e fundar novos planosna fico, apresentar tipos humanos singularizados pela busca de umaidentidade diferenciada, e de imortalizar o nome dos escritores comverdadeiras obras de arte. Mas no possvel a arte ultrapassar de for-ma definitiva a contingncia social.

    Portanto, este um dos impasses apresentados neste artigo paraos personagens que desejam, cada um de uma maneira, implantar umaordem diferente daquela entendida como padro ou seja Dorianaplica a arte vida, inicialmente sem preocupaes com a tica, en-quanto Ricardo inaugura uma esfera que possibilita a ele uma identi-dade feminina. Assim, os autores, de maneira distinta, acabam refle-tindo acerca da individualidade do homem na modernidade e expres-sam o seu desajustamento; porm, o contingente social persiste noembate com a arte e quem sucumbe so os seus personagens.

    Referncias

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    Rita de Cssia Moser AlcarazE-mail: [email protected]

    Artigo recebido em novembro/2007.Aprovado em outubro/2008.