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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE
CENTRO DE CIÊNCIAS BILÓGICAS E DA SAÚDE
DEPARTAMENTO DE BIOLOGIA
TÚLLIO DIAS DA SILVA MAIA
CONHECIMENTO ECOLÓGICO TRADICIONAL SOBRE
DÍPTEROS HEMATÓFAGOS EM UMA COMUNIDADE
DE PESCADORES ARTESANAIS NO POVOADO DE
AREIA BRANCA (SERGIPE, BRASIL)
São Cristóvão/SE
2013
1
TÚLLIO DIAS DA SILVA MAIA
CONHECIMENTO ECOLÓGICO TRADICIONAL SOBRE
DÍPTEROS HEMATÓFAGOS EM UMA COMUNIDADE
DE PESCADORES ARTESANAIS NO POVOADO DE
AREIA BRANCA (SERGIPE, BRASIL)
Monografia apresentada referente à disciplina
Iniciação à Pesquisa em Biologia II da Universidade
Federal de Sergipe e requisito parcial para obtenção
do título de Bacharel em Ciências Biológicas.
Orientador (a): Profª Dra. Roseli La Corte dos Santos
São Cristóvão/SE
2013
2
TÚLLIO DIAS DA SILVA MAIA
CONHECIMENTO ECOLÓGICO TRADICIONAL SOBRE
DÍPTEROS HEMATÓFAGOS EM UMA COMUNIDADE DE
PESCADORES ARTESANAIS NO POVOADO DE AREIA
BRANCA (SERGIPE, BRASIL)
Monografia apresentada referente à disciplina
Iniciação à Pesquisa em Biologia II da
Universidade Federal de Sergipe e requisito parcial
para obtenção do título de Bacharel em Ciências
Biológicas.
Monografia apresentada em: _____/______/______
Banca examinadora
_____________________________________________________
Profª Dra. Bianca Giuliano Ambrogi
Universidade Federal de Sergipe (NEC/UFS)
______________________________________________________
B.ela biol. Ingrid Mendes Guimarães
Universidade Federal de Sergipe
_______________________________________________________
Profª. Dra. Roseli La Corte dos Santos
Universidade Federal de Sergipe (DMO/UFS)
Orientadora
3
Trabalho dedicado aos pescadores e pescadoras do Povoado de Areia Branca.
4
AGRADECIMENTOS
Gostaria de começar os agradecimentos refletindo sobre a figura mitológica do
Oroboro, representada por uma cobra mordendo a própria cauda. O desenvolvimento
deste trabalho pode ser análogo a essa cauda, marcando um ponto final no meu processo
enquanto graduando, mas ela deve ser saborosamente deglutida para a construção de
uma nova caminhada. Nesse longo ciclo pude contar com algumas pessoas e esta
singela homenagem é insuficiente para expressar o meu sentimento de gratidão.
Agradeço primeiramente à minha base, meus pais: Jeanne e Rosenberg,
essenciais na minha construção enquanto ser humano, cientista e cidadão; aos meus
irmãos Júnior e Tham, por todo o apoio e afeto; às amadas avó e tia, respectivamente:
Marieta e Jack, por todo o carinho; a minha cunhada Ruas pelos momentos de
descontração; aos queridos Brutus e Obina, por seu amor não verbalizado e pela
harmonia que trazem ao lar. Por fim, agradeço a meu irmão Yann, pelo suporte
estrutural e companheirismo, que foram essenciais na construção e no desenvolvimento
deste trabalho.
Agradeço à amiga e orientadora Roseli La Corte, que confiou e me deu total
liberdade para desenvolver o projeto à minha maneira, pela paciência, pelas conversas
construtivas e até pelos “puxões de orelha” sem perder a ternura que lhe é peculiar. Um
obrigado especial também aos professores Sílvio e Luciene, sempre tão atenciosos,
divertidos e solícitos.
Ao Professor Eraldo Costa Neto, sem o qual o meu encontro com o
etnoconhecimento, sobretudo a etnoentomologia, não teria sido possível.
À Equipe LEPaT, lab girls e boys, em especial Gabi, Letícia, Liz, Mércia, Ranna,
Helaina, Jucy, Jurema, Mari, John, Thales e Danilo por tornarem a árdua rotina, no
insetário ou no laboratório, dinâmica e divertida.
À grande mestre e tutora 荒牧マリ ナ , por me apresentar com paciência e
perspicácia à gramática e cultura nipônicas, pelas sugestões sempre acertadas de
músicas e filmes e por me apoiar sempre em minhas escolhas e caminhos.
Às grandes amigas que fiz na biologia: Bené, Camila, Dani, Dryca, Isabela, Ísis,
Jaci, Monalisa e Yule. À ENEBio, nos nomes de Kelvyn, Vivi, Guilherme e David,
dentre tantos outros/as companheiros e companheiras espalhados/as por esse Brasil, por
me apresentar a importância de pensar numa ciência emancipatória e compromissada
com o povo e com a classe trabalhadora.
5
Ao Coletivo Mão Roxa de diversidade sexual, nos nomes de Emilly, Leo, Iago,
Thay, Rafa e tantxs outrxs roxinhos e roxinhas, por apresentar uma forma mais colorida
de encarar a realidade heteronormativa ainda presente na nossa cultura, sobretudo nas
nossas universidades.
À companheirada do Levante Popular da Juventude, nos nomes de Jessy, Tatá e
Bananinha.
Aos irmãos e irmãs que não compartilham consanguinidade, mas que são minha
família: Aninha, Xinxas, Tito, Palominha, Palomão, Analys, Bidu, Jordas, Thyago,
Rural, Jotapê, Larissa, Iza, Igor, Jess, Olga, Amanda; às boas e recentes surpresas que a
vida me apresentou: Mônica, Artur e Tiago. Sem vocês essa caminhada teria sido um
tanto mais tortuosa.
Ao Posto de Saúde do Povoado de Areia Branca, nos nomes de Rubens e Hélio,
por colaborar ativamente com o trabalho. Por fim, aos pescadores e pescadoras, pelo
carinho e receptividade.
6
“Não há saber mais, nem saber menos, há saberes diferentes.”
Paulo Freire
7
RESUMO
Os dípteros hematófagos apresentam importância na saúde pública pelo
incômodo de sua picada ou como vetores de patógenos. A valorização do
conhecimento tradicional em questões epidemiológicas propõe uma nova
epistemologia no combate aos insetos vetores. O objetivo deste trabalho foi
investigar o conhecimento ecológico tradicional local sobre dípteros hematófagos e
de que maneira esses animais foram classificados pela comunidade. O Povoado de
Areia Branca (Sergipe, Brasil) é localizado na Zona de Expansão da cidade de
Aracaju, sendo habitado por comunidades tradicionais de pescadores artesanais. Foi
montada uma caixa entomológica com espécimes de dípteros hematófagos de
ocorrência no povoado. Os animais foram enumerados e separados de acordo com a
taxonomia padrão própria para cada grupo. Foram, então, realizadas entrevistas,
através da aplicação de questionários baseados na metodologia geradora de dados.
As entrevistas foram gravadas e transcritas. Os pescadores entrevistados
demonstraram classificação própria para as diferentes espécies de dípteros
hematófagos da região. Apresentaram também ciência a respeito da ecologia destes
animais, algumas convergentes com o que se tem na literatura científica, outras
divergentes; além de apresentarem medidas profiláticas próprias. Dados
etnoepidemiológicos demonstraram falhas nas campanhas de combate aos vetores e
promoção de saúde. A pretensão deste trabalho foi apresentar uma nova forma de
abordar questões epidemiológicas no controle de insetos vetores sem abrir mão do
rigor científico.
Palavras-chave: Comunidade Tradicional, controle de vetores,
etnoentomologia, etnotaxonomia, etnoecologia, etnoepidemiologia.
8
ABSTRACT
Hematophagous dipterans are important for public health for the discomfort
caused by their sting or as pathogen’s vectors. The appreciation of traditional
knowledge purposes a new epistemology for the combat against vector insects. The
objective of this study was to investigate the traditional local ecological knowledge
about hematophagous dipterans and how these animals were classified by the
community. Areia Branca village (Sergipe, Brazil) is located on Aracaju city’s
expansion zone and is inhabited by artisanal fishermen’s traditional communities. An
entomological box was built containing specimens of hematophagous dipterans from
the village. The animals were ordered and separated according to the specific taxonomic
classification for each group. Interviews were applied, trough the realization of
questionnaires based on the data generator methodology. The interviews were recorded
and transcribed. The interviewed fishermen showed their own classification for region’s
different hematophagous dipterans species. They also presented appropriation about the
animals’ ecology, some of them converged with available scientific literature, others
diverged; also showed their own way of prophylaxis. Ethnoepidemiologic data showed
fail on local campaign against vectors and for health promotion. This study’s intention
was to show a new way to approach epidemiologic questions on vector insects control
without abandoning scientific rigor.
Keywords: Traditional communities, vectors control, ethnoentomology,
ethnotaxonomy, ethnoecology, ethnoepidemiology.
9
SUMÁRIO
1- INTRODUÇÃO ............................................................................................ 12
2- REFERENCIAL TEÓRICO ......................................................................... 13
2.1- DÍPTEROS HEMATÓFAGOS ................................................................... 13
2.1.1- Culicidae ................................................................................................... 14
2.1.1.1- Aedes ...................................................................................................... 15
2.1.1.2- Culex ...................................................................................................... 15
2.1.1.3- Mansonia ............................................................................................... 16
2.1.1.4- Anopheles ............................................................................................... 16
2.1.2- Psychodidae .............................................................................................. 17
2.1.3- Ceratopogonidae ....................................................................................... 17
2.1.4- Tabanidae .................................................................................................. 18
2.2- EPIDEMIOLOGIA ...................................................................................... 18
2.2.1- Epidemiologia Ambiental ......................................................................... 19
2.3- CONHECIMENTO ECOLÓGICO TRADICIONAL E POPULAÇÃO
TRADICIONAL ................................................................................................. 20
2.4- ETNOBIOLOGIA, ETNOECOLOGIA E ETNOTAXONOMIA .............. 21
2.5- METODOLOGIA EM ESTUDOS ETNOECOLÓGICOS ......................... 24
2.5.1- Metodologia Geradora de Dados .............................................................. 24
2.5.2- Interpretações ética e êmica ...................................................................... 25
2.6- ETNOEPIDEMIOLOGIA ........................................................................... 26
3- JUSTIFICATIVA ........................................................................................... 28
4- HIPÓTESE ..................................................................................................... 28
5- OBJETIVOS ................................................................................................... 29
3.1- OBJETIVO GERAL .................................................................................... 29
3.2- OBJETIVOS ESPECÍFICOS ...................................................................... 29
6- MATERIAIS E MÉTODOS ........................................................................... 30
6.1- ÁREA DE ESTUDO E POPULAÇÃO ....................................................... 30
6.2- COLETA DE DADOS ................................................................................ 31
10
6.2.1- Elaboração do guia ético ........................................................................... 31
6.2.2- Elaboração do guia êmico ......................................................................... 32
6.3- CONSIDERAÇÕES ÉTICAS ..................................................................... 33
7- RESULTADOS E DISCUSSÃO ................................................................... 34
7.1- ETNOCONHECIMENTO ........................................................................... 34
7.1.1- Etnotaxonomia .......................................................................................... 34
7.1.2- Etnoecologia ............................................................................................. 39
7.1.2.1- Percepção Ambiental ............................................................................. 39
7.1.2.2- Conhecimento ecológico local ............................................................... 40
7.1.3-Etnoepidemiologia ..................................................................................... 45
7.1.3.1- Percepção da comunidade a respeito da competência vetorial .............. 45
7.1.3.2- Medidas profiláticas .............................................................................. 48
7.1.3.3- Perspectiva etnoepidemiológica ............................................................ 49
8- CONCLUSÕES .............................................................................................. 52
9- REFERÊNCIAS ............................................................................................. 53
10- ANEXOS ...................................................................................................... 64
11
LISTA DE FIGURAS
Figura 1: Representação esquemática da Etnoecologia como um campo científico na
interface entre os campos do conhecimento científico e tradicional, em que “a”, “b”, “c”
e “d” representam as diferentes vertentes de cada disciplina ........................................ 23
Figura 2: Ortofotocarta de Aracaju com localização da Zona de Expansão Urbana ..... 31
Figura 3: Caixa entomológica com dípteros hematófagos. 1- Psychodidae, 2-
Ceratopogonidae, 3- Aedes aegypti, 4- Anopheles sp., 5- Mansonia sp., 6- Culex
quinquefasciatus, 7- Tabanidae ..................................................................................... 32
Figura 4: Pluviosidade mensal e números de Lutzomyia longipalpis machos e fêmeas,
capturados no povoado do Mosqueiro (Sergipe, Brasil) ............................................... 44
Figura 5: Mapa dos casos humanos de leishmaniose visceral em Aracaju (Sergipe,
Brasil) de 2005 a 2010 ................................................................................................... 51
LISTA DE QUADROS
Quadro 1: Fatores ambientais que podem afetar a saúde .............................................. 19
Quadro 2: Diferenças entre a abordagem êmica e ética ................................................ 25
Quadro 3: Equivalências entre as nomenclaturas da etnotaxonomia e taxonomia padrão
baseadas nas identificações visuais de dípteros hematófagos por pescadores artesanais
do Povoado de Areia Branca (Sergipe, Brasil) .............................................................. 35
Quadro 4: Equivalências entre as nomenclaturas da taxonomia padrão e etnotaxonomia
de dípteros hematófagos baseadas nas identificações visuais e dados fornecidos por
entrevistas semi- estruturadas e conversas informais com pescadores artesanais do
Povoado de Areia Branca (Sergipe, Brasil) ................................................................... 36
12
1. INTRODUÇÃO
Os insetos constituem o maior grupo de animais, sendo conhecidas um milhão
de espécies no mundo e 90.000 no Brasil (RAFAEL et al, 2012). Especula-se que ainda
há milhares de espécies a serem descritas (ERWIN, 1997). Esses animais desempenham
papel ecológico significativo, podendo atuar como polinizadores, herbívoros,
decompositores, predadores, parasitoides, ou como vetores de patógenos.
Como vetores, os insetos desempenham tal função por meio da hematofagia ou
de forma mecânica. O hábito hematofágico é desempenhado pelas fêmeas, com exceção
dos Hemiptera, Siphonaptera e algumas espécies de Diptera, ordens nas quais o hábito é
desempenhado por ambos os sexos (SILVA, 2009).
A ordem Diptera representa uma das maiores ordens de insetos, com cerca de
100 famílias descritas e 85.000 espécies conhecidas (NEVES, 2005). Apresentam
importância médica tanto por serem vetores mecânicos ou hematófagos.
A epidemiologia, ciência amplamente aplicada no combate aos insetos vetores, é
o estudo da distribuição e dos determinantes de estados ou eventos relacionados à saúde
em populações específicas, e sua aplicação na prevenção e controle dos problemas de
saúde (LAST, 2001). Esta ciência usa métodos quantitativos para estudar a ocorrência
de doenças nas populações humanas e para definir estratégias de prevenção e controle
(BONITA, BEAGLEHOLE & KJELLSTRÖM, 2010).
O conhecimento ecológico tradicional (CET) pode ser entendido como “um
corpo cumulativo de conhecimento, práticas e crenças, sobre as relações entre os seres
vivos e o meio ambiente, que evolui e é repassado por gerações pela cultura” (BERKES,
COLDING & FOLKE, 1998). O CET é característico de comunidades tradicionais
(MORAIS, MORAIS & SILVA, 2009), que podem ser entendidas como aquelas que se
reconhecem a um grupo social particular (DIEGUES & ARRUDA, 2001).
A valorização do conhecimento tradicional traz consigo a proposta
epistemológica de que os dados fornecidos pela comunidade estudada tenham
relevância, no sentido de complementar o conhecimento acadêmico, além de poderem
gerar dados mais completos para as questões epidemiológicas e nortearem ações como o
combate aos insetos vetores.
13
2. REFERENCIAL TEÓRICO
2.1. DÍPTEROS HEMATÓFAGOS
A ordem Diptera é composta de insetos que, na forma adulta, possuem um par
de asas funcionais e um par de asas vestigiais, os alteres ou balancins. Representa um
dos grupos de insetos mais diversos, tanto ecologicamente quanto em termos de riqueza
de espécies (PINHO, 2008). Além disso, é cosmopolita, tendo colonizado praticamente
todos os habitats e continentes, com exceção da Antártica (MERRITT; COURTNEY;
KEIPER, 2003).
Quanto à classificação, os dípteros são divididos em duas subordens:
Nematocera, caracterizado por espécimes com antenas longas e Brachycera, com
espécimes de antenas curtas (HALL & GERHARDT, 2002). A primeira subordem é
representada pelos insetos conhecidos popularmente como mosquitos (Culicidae e
Psychodidae) e maruins (Ceratopogonidae) e a segunda agrupa as moscas (Muscidae) e
mutucas (Tabanidae).
Dípteros adultos apresentam vida terrestre e não formam colônias. Possuem
hábitos alimentares diferenciados, como: predadores, parasitoides, detritívoros,
fitófagos (FORATINI, 1962), hematófagos (NEVES, 2005) ou visitantes florais
(REICHERT, 2010). Apresentam importância médica tanto por serem vetores
mecânicos (Muscidae) (NEVES, 2005) ou devido à hematofagia (Ceratopogonidae,
Culicidae, Psychodidae, Tabanidae, etc) (SILVA, 2009).
Com relação à hematofagia, apresentam duas posturas básicas: solenofagia e
telmofagia. A solenofagia é caracterizada pela retirada do sangue diretamente pelos
vasos sanguíneos ou sangue extravascular, utilizando-se de uma probóscide longa e
flexível, já a telmofagia é caracterizada pela sucção do alimento sanguíneo através da
dilaceração de pequenos vasos, produzindo micro-hemorragia, pois os insetos que a
praticam possuem probóscide curta (SILVA, 2009).
Pelo menos 12 famílias apresentam hábito hematofágico, dentre elas: Culicidae,
Psychodidae, Ceratopogonidae e Tabanidae (FORATINI, 1962). Apenas a primeira
pratica a solenofagia, sendo os representantes das outras famílias considerados dípteros
telmófagos (SILVA, 2009).
14
2.1.1. Culicidae
Os culicídeos são os insetos popularmente conhecidos como mosquitos. Eles são
cosmopolitas, não ocorrendo apenas na Antártica, e podem ser encontrados desde
1250m abaixo do nível do mar até 5.500m de altitude (SERVICE, 1993). Os mosquitos
são conhecidos pelo incômodo de sua picada, fato que, dentre outras consequências,
causa impactos no desenvolvimento turístico de áreas costeiras, por inviabilizar
atividades nesses locais (RUEDA, 2007).
A picada é decorrente do hábito hematofágico praticado pelas fêmeas. Essa
família apresenta o maior número de espécies, dentre os artrópodes, que praticam a
hematofagia (NEVES, 2005). Esse hábito atinge não apenas aos seres humanos, mas
também a outros mamíferos, aves, répteis e anfíbios (RUEDA, 2007). Em humanos, as
picadas podem causar reações alérgicas como: pruridos, endemas e eritemas, devido a
enzimas contidas na saliva desses animais (RUTLEDGE & DAY, 2002). Além da
sensação de desconforto decorrente da picada do mosquito, há o risco de transmissão de
patógenos de doenças como: dengue, febre amarela e encefalites (viroses), malária
(protozoose) e elefantíase (helmintose) (NEVES, 2005). Tem sido investigada também
sua capacidade enquanto vetores de bactérias (ALVES, GORAYEB & LOREIRO,
2010).
A dengue, principal arbovirose no Brasil, levou a óbito, só no país,
aproximadamente 1300 pessoas nos últimos 10 anos (BRASIL, 2012). A febre do Nilo
Ocidental apresentou, nos últimos 10 anos, nos EUA, aproximadamente 30.000 casos de
infecções, estimando-se que 4% das vítimas tenham vindo a óbito (CDC, 2011).
Estimam-se em 200.000 casos de febre amarela por ano, com 30.000 mortes, e em
50.000 por ano os casos de encefalite japonesa, com 14.000 mortes (WHO, 2004;
WHO, 2013). Estima-se também que em 2006 tenham ocorrido 247 milhões de casos de
malária, com 881.000 mortes, dos quais 92% em crianças com menos de cinco anos de
idade (WHO, 2008). Quanto às filarioses linfáticas, também conhecidas por elefantíase,
estima-se que haja um total de 120 milhões de casos da doença, com aproximadamente
30% dos infectados desfigurados ou incapacitados devido às consequências dela (WHO,
2013).
Os mosquitos em geral apresentam importância médica, no entanto alguns
gêneros são mais destacados de acordo com a ocorrência nas localidades. Neste
trabalho, serão destacados quatro gêneros: Aedes, Culex, Mansonia e Anopheles.
15
2.1.1.1. Aedes
O gênero Aedes compreende aproximadamente 900 espécies distribuídas em 44
subgêneros, sendo um dos mais importantes o Stegomyia (CLEMENTS, 1999;
FORATTINI, 1962). As espécies de maior importância médica são Ae. albopictus,
considerado vetor secundário do vírus da dengue no Velho Mundo (FORATTINI,
1986); e Ae. aegypti, principal vetor da dengue e febre amarela urbana nas Américas,
onde a incidência desses arbovírus tem crescido significativamente nos últimos 25 anos
(GUBLER, 2005). Casos de coexistência entre as duas espécies já foram observados
(BARKS et al, 2003; GOMES et al, 2005; FANTINATTI et al, 2007; PROPHIRO et al,
2011).
A. aegypti originou-se na região etiópica, dispersando-se, posteriormente, para
zonas antrópicas, sendo encontrado, atualmente, em regiões tropicais e subtropicais do
globo (FORATTINI, 1962; CLEMENTS, 1992; CONSOLI & LOURENÇO DE
OLIVEIRA, 1994). No Brasil, foi introduzido no período colonial, adaptando-se com
facilidade em áreas tropicais e subtropicais, principalmente, dentro de zonas isotermais
de 20ºC (CONSOLI & LOURENÇO DE OLIVEIRA, 1994). Desde a década de 70,
quando houve uma reinvasão do Ae. aegypti devido à descontinuidade nos programas de
controle (GUBLER, 1998), esta espécie representa um grande problema de saúde
pública no Brasil. É uma espécie antropofílica e urbana, podendo ser encontrada nos
domicílios ou nos peridomicílios.
2.1.1.2. Culex
Culex é também um gênero cosmopolita, podendo ser encontrado em zonas
tropicais ou temperadas, em todos os continentes, exceto Antártica (VINOGRADOVA,
2000). São os mosquitos mais comuns em áreas urbanas (ANDERSON et al, 1999;
GODDARD et al, 2002; REISEN et al, 2004). A espécie deste gênero de maior
importância médica no Brasil é o Cx. quinquefasciatus, que tem a capacidade de se
adaptar facilmente a ambientes domésticos, sobretudo em ambientes com água poluída,
fontes ou tanques (LEE et al, 1989), uma vez que necessitam de águas ricas em matéria
orgânica para a proliferação (BRASIL, 2011).
São vetores da Wucheria bancrofti, agente etiológico da filariose e do vírus do
oeste do Nilo (WNV) (VAN DEN HURK, RITCHIE & MACKENZIE, 2009), agente
16
etiológico da febre do oeste do Nilo, doença eminente no Brasil. Seus hábitos noturnos,
associados à alta antropofilia e ao zumbido por eles produzido, fazem destes mosquitos
animais conhecidos por atrapalharem o sono reparador (NEVES, 2005). Devido às
queixas relacionadas ao incômodo causado, as pesquisas em saúde pública
desenvolveram o Fator de Incômodo, que é um índice subjetivo e sujeito a variáveis de
difícil quantificação (BRASIL, 2011).
2.1.1.3 Mansonia
O gênero Mansonia compreende mosquitos robustos, de porte médio ou grande.
Espécies deste gênero costumam depositar seus ovos em vegetação flutuante ou
emergente (GOUVEIA DE ALMEIDA, 2011) e apresentam a peculiaridade de suas
formas imaturas fixarem-se nessas plantas (FORATTINI, 2002), sendo salvínias e erva
de Santa Luzia (Pistia) exemplos delas (CONSOLI & LOURENÇO- DE- OLIVEIRA,
1994).
Embora não sejam vetores de doenças endêmicas no Brasil, alguns arbovírus
causadores de encefalites (CONSOLI & LOURENÇO- DE- OLIVEIRA, 1994) e
filárias (GOUVEIA DE ALMEIDA, 2011) já foram encontrados infectando esses
animais, sendo, assim, vetores em potencial. São considerados mosquitos
predominantemente exófilos (têm preferência por se alimentarem em peridomicílio) e
florestais (FORATTINI, 2002). Seu hematofagismo agressivo inviabiliza, muitas vezes,
a habitação ou criação de animais em determinadas áreas (CONSOLI & LOURENÇO-
DE- OLIVEIRA, 1994). Tendem a se aproximar de ambientes domiciliares, devido à
sua forte atração por luminosidade, sendo esse hábito interpretado como visita
(FORATTINI, 2002).
2.1.1.4. Anopheles
Pertencente à subfamília Anophelinae, o gênero Anopheles é cosmopolita. Este
gênero é composto de aproximadamente 50 espécies que ocorrem no Brasil, agrupadas
em cinco subgêneros (CONSOLI & LOURENÇO- DE- OLIVEIRA, 1994).
Sua importância para a saúde pública se dá por ser o principal vetor da malária
humana no Brasil. A malária é uma doença infecciosa e febril, aguda, causada por
protozoários (PORTES et al, 2010). Endêmica na região amazônica, apresentando quase
100% dos casos registrados (BRASIL, 2001; BRASIL, 2005), apresenta altas taxas de
17
mortalidade e morbidade, sendo considerada, por isso, a doença parasitária mais
importante da região tropical.
2.1.2. Psychodidae
A família Psychodidae apresenta seis subfamílias, das quais apenas duas são
hematófagas: Sycoracinae, que picam exclusivamente animais ectotérmicos, e
Phlebotominae, que picam de anfíbios a mamíferos, inclusive seres humanos (NEVES,
2005). Os flebotomíneos apresentam vasta ocorrência, em diferentes ambientes, desde
selvagem a urbanos e são endêmicos em Sergipe, sobretudo no Povoado de Areia
Branca, com predominância da espécie Lutzomyia longipalpis (JERALDO et al, 2012).
São vetores de patógenos causadores de várias doenças, sendo os únicos
conhecidos para a Leishmaniose tegumentar americana (NEVES, 2005). Esta doença é
um problema de saúde pública no Brasil desde a década de 1980 e está associada a áreas
de transição entre ambiente silvestre e urbano, uma vez que alguns animais silvestres
atuam como reservatório (COSTA, 2008). Seus diversos nomes populares sugerem que
a população consegue diferenciar os espécimes desta família de outros hematófagos
(NEVES, 2005).
2.1.3. Ceratopogonidae
Ceratopogonidae é uma das mais comuns e diversas famílias de dípteros
hematófagos do mundo, com quase seis mil espécies existentes conhecidas (Borkent,
2009). Conhecidos popularmente como maruins, os ceratopogonídeos estão divididos
em quatro subfamílias, sendo o gênero Culicoides o de maior importância médico-
veterinária, seja pelo grande incômodo da sua picada (NEVES, 2005), seja pela sua
capacidade de transmitir protozoários e vermes filarídios (TRINDADE & GORAYEB,
2005).
Essa família também é associada à transmissão do vírus Oropouche, que causou
algumas epidemias em humanos, sobretudo na década de 60 (PINHEIRO et al, 1976).
Esse vírus causa dor de cabeça, muscular e nas articulações, não levando a óbitos ou
causando sequelas (NEVES, 2005).
18
2.1.4. Tabanidae
Pertencem à família Tabanidae insetos popularmente conhecidos como mutucas.
São moscas de pequenas a grandes, com distribuição geográfica mundial, sendo
essencialmente hematófagas (NEVES, 2005). Nesta família, o hábito hematofágico
também é desempenhado exclusivamente pelas fêmeas, sendo os machos florícolas ou
nectívoros (KROLOW, HENRIQUES & RAFAEL, 2010).
Sua importância médico-veterinária se dá, tanto por serem vetores mecânicos de
vírus, protozoários e parasitoides, quanto pela hematofagia de equinos, bovinos, cães,
humanos (NEVES, 2005) e até mesmo répteis (FERREIRA, HENRIQUES & RAFAEL,
2002).
2.2. EPIDEMIOLOGIA
Epidemiologia é a ciência que estuda padrões de ocorrência de doença em
populações humanas, bem como os fatores determinantes destes padrões (LILIENFELD
& LILIENFELD, 1980). Ela se originou há mais de 2000 anos, nas observações de
Hipócrates de que fatores ambientais exercem influência no desenvolvimento de
doenças, estabelecendo-se enquanto ciência apenas no século XIX (BONITA,
BEAGLEHOLE & KJELLSTRÖM, 2010). O alvo da epidemiologia são sempre
populações humanas e suas aplicações são diversas, desde a descrição da saúde da
população à avaliação da utilização dos serviços de saúde (MENEZES, 2001).
Atualmente, a epidemiologia se utiliza de métodos quantitativos para estudar a
ocorrência de doenças nas populações humanas e para definir estratégias de prevenção e
controle (BONITA, BEAGLEHOLE & KJELLSTRÖM, 2010). Essas estratégias são
definidas baseadas em três situações: as ações primárias, que se baseiam na prevenção;
as secundárias que, após a instalação do período clínico ou patológico das doenças,
visam fazê-lo regredir ou impedir sua progressão para óbito ou sequela; e as terciárias,
que procuram minimizar os danos já ocorridos com a doença (MENEZES, 2001).
Embora as doenças sejam atribuídas a fatores genéticos, a maioria delas resulta
da interação destes fatores com o ambiente, que é, então, definido da forma mais ampla
possível para permitir a inclusão de qualquer fator, que não genético, na análise do
desenvolvimento das doenças (BONITA, BEAGLEHOLE & KJELLSTRÖM, 2010).
Dessa forma, a casualidade em epidemiologia baseia-se na multicasualidade ou
19
multifatorialidade na análise da gênese das doenças, defendendo que a maioria delas
advém de uma combinação de fatores que interagem entre si e acabam desempenhando
importante papel na sua determinação (MENEZES, 2001).
2.2.1. Epidemiologia Ambiental
A maneira pela qual um agente do meio ambiente (entendendo ambiente, neste
contexto, como qualquer fator externo promotor de doença) interfere na saúde deve ser
compreendida para o desenvolvimento de delineamentos de programas de prevenção. O
quadro 1 exemplifica alguns destes fatores ambientais:
Quadro 1: Fatores ambientais que podem afetar a saúde.
Fator Exemplos
Psicológico Estresse, desemprego, mudança de turno de trabalho, relações
humanas.
Biológico Bactérias, vírus, parasitas.
Físico Clima, ruído, radiação, ergonomia.
Acidental Situações perigosas, velocidade, uso de drogas e bebidas
alcoólicas.
Químico Tabaco, produtos químicos, poeira, irritantes de pele, aditivos
alimentares.
Fonte: BONITA, BEAGLEHOLE & KJELLSTRÖM, 2010.
Segundo algumas estimativas, entre 25% e 35% da carga global de doenças
podem ser devido à exposição a fatores ambientais (SMITH, CORVALAN &
KJELLSTROM, 1999; PRUESS-USTUN & CORVALAN, 2006), sendo a falta de
saneamento básico e água tratada, por exemplo, dois fatores bastante expressivos
(PRUESS-USTUN & CORVALAN, 2006). A carga de doenças ambientais é maior em
países periféricos em detrimento de países do eixo, o que sugerem ganhos na promoção
de saúde, caso haja estímulo a ambientes saudáveis (BONITA et al, 2010).
20
A epidemiologia ambiental fornece as bases científicas para o estudo e a
interpretação das relações entre o ambiente e a saúde nas populações (BONITA et al,
2010). Oferece, também, tanto a possibilidade de calcular riscos pela exposição a
determinados poluentes ambientais como também a implantação de programas de
intervenção e mitigação de riscos (FUNASA, 2002).
2.3. CONHECIMENTO ECOLÓGICO TRADICIONAL E
POPULAÇÃO TRADICIONAL
O conhecimento ecológico tradicional (CET) pode ser entendido como “um
corpo cumulativo de conhecimentos e crenças, passado adiante através das gerações
pela transmissão cultural, acerca das relações dos seres vivos (incluindo os humanos)
entre si e com seu ambiente” (GADGIL et al, 1993 Apud POSEY, 2000). Ele pode ser
percebido, nas comunidades, no “contato direto com os recursos naturais, a observação
diária desses recursos e a dependência econômica de recursos aquáticos e da vegetação
que representam relações ecológicas em seu sentido estrito” (BEGOSSI, 2004). Para
Posey (2000):
O conhecimento ecológico tradicional é muito mais que uma simples
compilação de fatos: é a base para a tomada de decisões no nível local em
áreas da vida contemporânea, incluindo o manejo de recursos naturais, a
nutrição, o preparo de alimentos, a saúde, a educação, e a organização
comunitária e social. O Conhecimento Ecológico Tradicional é holístico,
inerentemente dinâmico e evolui constantemente pela experimentação e
inovação, com discernimentos renovados e estímulos externos (POSEY, 2000
p. 36).
O Conhecimento Ecológico Local (CEL) é a generalização progressiva das
observações dos usuários locais em contextos socioecológicos específicos, não tendo
relação com a transmissão através das gerações (BERKES, 1999). É importante a
abordagem dos conceitos dos dois tipos de conhecimento (CET e CEL), uma vez que,
segundo BERKES (1999), ambos têm se mostrado relevantes para a compreensão dos
processos ecológicos, manejo dos recursos naturais, conservação de áreas protegidas,
conservação da biodiversidade, avaliação ambiental, desenvolvimento social e ética
ambiental.
O conhecimento tradicional na pesca é entendido como o conjunto de práticas
cognitivas e culturais, habilidades práticas e saber-fazer, transmitidas oralmente nas
comunidades de pescadores artesanais em sua relação com o ambiente aquático e com a
própria sociedade (DIEGUES, 2004). Trabalhos com pescadores artesanais, como os de
21
Ribeiro, Silvano e Begossi (1998), Thé (1999), Montenegro (2002), Moura (2002) e
Cortez (2010), sobretudo do litoral, como os de Souto (2004) e Ramirez, Molina &
Hanazaki (2007), também têm revelado que esses sujeitos possuem conhecimento
profundo a respeito de peixes e outros recursos aquáticos por eles explorados.
O CET, segundo Morais, Morais & Silva (2009), é característico de
comunidades tradicionais. Não há consenso, na literatura, sobre o conceito de população
tradicional. Barreto Filho (2006) conceitua “população tradicional” como “aquela que
expressa um conjunto de valores culturais coletivos relativos ao meio ambiente, às
percepções, aos valores e às estruturas de significação”. Na perspectiva do autor, esses
valores orientam e estão na origem de certas políticas ambientais. Para Diegues e
Arruda (2001), um dos critérios para a definição de culturas ou populações tradicionais
é reconhecer-se como pertencente àquele grupo social particular. Colchester (2000)
associa o termo “tradicional” com longa residência numa determinada área. Na
perspectiva de Vianna (2008), o conceito dessas populações, que as diferencia de outros
grupos sociais, está relacionado ao baixo impacto causado no meio ambiente,
preservando os recursos naturais que são utilizados, bem como, a utilização coletiva dos
recursos naturais.
2.4. ETNOBIOLOGIA, ETNOECOLOGIA E ETNOTAXONOMIA
A etnobiologia, na concepção de Posey (1987), é entendida como o estudo do
conhecimento e das conceituações desenvolvidas por qualquer sociedade a respeito da
biologia. Segundo o autor, tal ciência enfatiza as categorias e os conceitos cognitivos
utilizados pelos povos em estudo. Toledo (1992) caracteriza a etnobiologia como “um
campo interdisciplinar dedicado à interação entre os seres humanos e seus ambientes:
vegetal, animal e fúngico”. A concepção de Posey (1987) sugere que a etnobiologia seja
capaz de gerar dados que deem suporte para que especialistas nos diversos campos
científicos possam iniciar coletas de dados referentes às suas especialidades, tais como:
etnoentomologia, etnobotânica, etnofarmacologia, etnopedologia, etnogeologia,
etnoapicultura, etnoecologia, etc. O autor também ressalta a importância do estudo
dessa ciência destacando três pontos:
22
Alguns conceitos defendidos pela comunidade em estudo podem
gerar novas hipóteses a serem testadas;
Algumas ideias, não passíveis de ser analisadas, devem ser
arquivadas;
Algumas crenças, entretanto, por mais ilógicas e absurdas que
possam parecer, podem vir a demonstrar seu papel de mecanismos sociais
para regular o consumo de alimentos ou para a manutenção do equilíbrio
ecológico (POSEY, 1987 p. 303).
Dessa maneira, a etnociência e, neste caso, a etnobiologia, traz uma proposta
epistemológica para a ciência convencional, em que as percepções do meio biótico e
abiótico da comunidade em estudo devem atuar como elementos norteadores dos
planejamentos de intervenções em determinada área.
O conceito de etnoecologia não é unificado e consensual. Na concepção de
Alves & Souto (2010), essa falta de consenso representa aspectos positivos e afirmam:
Tendo em vista que um dos pressupostos da etnoecologia é a
valorização da diversidade cultural que se manifesta dentro de cada
sociedade, isto talvez deva ser aplicado também no interior do próprio meio
acadêmico, através de uma maior tolerância e da tentativa de estabelecer
conexões entre concepções teóricas e metodológicas aparentemente
divergentes (ALVES & SOUTO, 2010 p 19).
Os autores, no entanto, fazem a ressalva de que com o aumento no número de
estudos fundamentados na etnoecologia, é necessária a sistematização de informações
para compreender melhor a grande diversidade de teorias, métodos e técnicas utilizáveis
neste campo de conhecimento.
Segundo Martin (1996), a etnoecologia tem sido usada para designar todos os
estudos que descrevem a interação de uma população local com seu ambiente natural.
Para Toledo (2003), é a aproximação interdisciplinar entre “como a natureza é vista por
grupos humanos através de um conjunto de crenças e conhecimentos e como eles,
através de suas imagens, utilizam os recursos naturais”. Segundo Freschi (2004), “os
estudiosos dessa disciplina são basicamente antropólogos e biólogos de tradição
ocidental, preocupados com a valorização dos sistemas de conhecimento ecológico de
populações tradicionais”. Para Basi, Coelho-de-Souza & Kubo (2010), é um ramo da
etnobiologia que tem como foco as inter-relações envolvendo humanos em seus
ambientes, apresentando maior abrangência em suas abordagens, ou ainda o modo como
os grupos humanos se inter-relacionam, material e intelectualmente com o ambiente em
que vivem, sendo um campo que se propõe a compreender a inter-relação entre os
mundos natural e social. Em qualquer que seja o conceito, a ideia de
interdisciplinaridade está presente, sendo, então, abordada como “um campo científico
23
que abarca a interface entre diferentes disciplinas, principalmente as situadas no campo
antropológico e ecológico” (COELHO-DE-SOUZA, 2009) (Figura 1).
Figura 1: Representação esquemática da Etnoecologia como um campo
científico na interface entre os campos do conhecimento científico e tradicional, em que
“a”, “b”, “c” e “d” representam as diferentes vertentes de cada disciplina. .
Fonte: BASI, COELHO-DE-SOUZA & KUBO (2010).
Freschi (2004) comenta que é consenso na ciência a necessidade de uma
formação diferenciada, aproximando mutuamente conhecimentos e métodos da
antropologia e da biologia. Defende-se, então, que a etnoecologia, por considerar ambas
as áreas, é capaz de gerar dados mais completos. O desenvolvimento da etnoecologia
tem trazido a perspectiva de adequação do conhecimento tradicional ao manejo e à
conservação local de recursos, seja na elaboração de propostas oficiais de manejo e
conservação (MORIN-LABATUT & AKATAR, 1992), ou para gerar desenvolvimento
com sustentabilidade ecológica e cultural (OVERAL & POSEY, 1996). Tais
perspectivas, considerando a importância da etnoecologia na obtenção de resultados
mais completos, são essenciais para nortear trabalhos posteriores envolvendo educação,
saúde pública, manejo e preservação de recursos naturais.
A etnotaxonomia, segundo Montenegro (2002), caracteriza-se como o
conhecimento biológico sob o domínio intelectual de populações tradicionais
classificando animais e plantas. Segundo Posey (1987), é a área que investiga a
24
capacidade humana de classificar os seres vivos. O autor também defende que, quanto
maior o grau de importância de determinados seres para uma comunidade, mais refinada
é a classificação etnotaxonômica. O termo inseto demonstra peculiaridades relacionadas
à sua classificação etnotaxonômica, sendo geralmente associado a animais considerados
nocivos pela população estudada (COSTA NETO, 2004). Costa Neto (2003) constatou
que parte dos moradores do povoado de Pedra Branca, Bahia, consideram os
hemípteros, sobretudo percevejos e cigarras, como barbeiros. Sumabila & Lugo (2007)
constataram que os Cuiva, na divisa da Colômbia com a Venezuela, têm um sistema
próprio de classificação para os diferentes gêneros de mosquitos (Aedes, Culex e
Anopheles), diferenciando-os, embora não os associe à patogenicidade.
2.5. METODOLOGIAS EM ESTUDOS ETNOECOLÓGICOS
2.5.1. Metodologia geradora de dados
A metodologia geradora de dados consiste na aplicação de perguntas abertas,
visando obter o máximo de informações e categorias locais (MOURA & MARQUES,
2007). Segundo Molina, Lui & Silva (2007), nessa metodologia, os informantes devem
ser considerados pelo pesquisador como especialistas locais, autoridades em sua área de
conhecimento, devendo-se considerar também as diferenças de saberes de acordo com o
gênero e a idade.
Por ser baseada no diálogo, esta metodologia dá a liberdade de os entrevistados
deixarem evidente sua visão de mundo, sendo importante o esforço do pesquisador em
não impor seus conceitos e ideias durante a entrevista (FRACCARO, SILVA &
MOLINA, 2010).
Tal metodologia propõe a identificação de especialistas dentro da comunidade.
Pessoas mais velhas podem ser elementos-chave na preservação de conhecimentos
locais e os especialistas em um dado assunto costumam ser reconhecidos e indicados
pelos habitantes locais, devendo ser considerados para a obtenção dos resultados
(HANAZAKI, 2004; RODRIGUES, 2006).
25
2.5.2. Interpretações ética e êmica
Interpretações éticas são aquelas desenvolvidas por pesquisadores com
propósitos analíticos (POSEY, 1992), referindo-se a aspectos de outra cultura a partir
das categorias daqueles que a observam (ROSA & OREY, 2012). Para Harris (1985), a
interpretação ética baseia-se em “conceitos e distinções que são significativas e
apropriadas para os observadores”.
Interpretações êmicas são aquelas que refletem “categorias cognitivas e
linguísticas da comunidade estudada” (POSEY, 1992). Para Harris (1985), elas são
como “os observadores empregam conceitos e distinções que são significativas e
apropriadas para os participantes”. Para Sumbalia & Lugo (2007), a interpretação êmica
no caso de estudo de mosquitos “é focada principalmente na explicação da interpretação
de comunidades ou grupos étnicos específicos sobre os mosquitos”.
Rosa & Orey (2012) elaboraram um quadro (Quadro 2) com as principais
diferenças entre as abordagens e resumem seus conceitos da seguinte maneira:
A abordagem ética é a visão externa dos observadores e
investigadores que estão olhando de fora em uma postura transcultural,
comparativa e descritiva, enquanto a abordagem êmica é a visão interna, dos
observados que estão olhando de dentro, em uma postura particular, única e
analítica (ROSA & OREY, 2012 p. 867).
Quadro 2: Diferenças entre a abordagem êmica e ética.
Abordagem êmica Abordagem ética
Perspectiva dos nativos (internos) Perspectiva dos observadores (externos)
Visão local (interna) Visão global (externa)
Tradução prescritiva Tradução descritiva
Cultural Analítico
Estruturas mentais Estruturas comportamentais
Transcrição cultural Transcrição acadêmica
Fonte: ROSA & OREY, 2012.
Sobre a relação que os pesquisadores podem estabelecer com a comunidade
estudada, Posey (1992) afirma que:
Os nativos podem se tornar conscientes de alguns atos comuns (de
manejo) quando alertados ao fenômeno pelo pesquisador, mesmo se as
26
terminologias êmica e ética forem diferentes. Mas o informante também
aprende as categorias utilizadas pelo pesquisador e pode modificar a maneira
como olha para sua própria cultura (POSEY, 1992 p. 23).
Posey (1992) afirma que as classificações êmica e ética são difíceis se de dar na
prática e que, para que interpretações mútuas aconteçam, realidades precisam ser
compartilhadas. Ainda afirma que para entender a visão êmica do assunto, deve-se
voltar à análise cognitiva de termos e expressões (da comunidade) relativos a várias
categorias adicionais por nós desconhecidas, anônimas ou inimagináveis.
2.6. ETNOEPIDEMIOLOGIA
A perspectiva de uma base antropológica em estudos de epidemiologia não é,
necessariamente, novidade. Autores como Barreto & Alves (1994), Sevalho & Castiel
(1998) e Almeida Filho (2000) têm contestado direta ou indiretamente os métodos
empregados no estudo epidemiológico, considerando o conhecimento biomédico como
soberano e desconsiderando, ainda que algumas vezes de forma branda, as construções
sociais a respeito dos temas relacionados à saúde.
Considerando o caráter interdisciplinar da epidemiologia (BRASIL, 2002), fica
evidenciada a abertura que se tem dentro da própria epidemiologia para a elaboração de
novas formas de análise. O desafio, no entanto, se dá no desenvolvimento de um
método que consiga abarcar elementos culturais enquanto categoria de análise. Gadelha
et al. (2000) ressaltam os desafios ainda existentes em elaborar este método,
considerando as diferenças entre as duas áreas:
As diferenças metodológicas remetem às finalidades da pesquisa e à
construção de seu objeto. Nesse sentido, não se quer a integração de dois
objetos — o epidemiológico e o antropológico. A possibilidade de integração
supõe a perspectiva de construção de objetos, isto é, de problemas que
possam ser pensados de forma integrada. Os diferentes campos de
conhecimento não são autônomos e, ao mesmo tempo, não conseguem
encontrar uma integração absoluta. Não há como perseguir a construção de
um objeto fechado. O estudo epidemiológico persegue as causas etiológicas
dos problemas de saúde e doença nas populações. Esses problemas são
previamente definidos de acordo com um critério básico de classificação de
doenças, o CID (Classificação Internacional de Doenças). Tal critério
obedece a uma lógica diferente daquela que orienta os estudos
antropológicos, que buscam apreender os diferentes significados culturais do
sofrimento humano ligado ao adoecer (GADELHA et. al.,.2000)
Sobre a base epistemológica que garanta a inter-relação entre as duas disciplinas
em questão, Béhague, Gonçalves & Victoria (2008) concluem que a melhoria da
27
colaboração entre as duas áreas do conhecimento não é um desafio acadêmico, embora
seja relacionado às pesquisas e práticas na saúde pública. Também afirmam que quanto
mais disciplinas convergirem e modificarem modos padronizados de conhecimento,
estarão melhor preparadas para promover profunda e contextualmente explicações
sensíveis à emergência de padrões de doença e, assim, a solução do problema
(BÉHAGUE, GONÇALVES & VICTORIA, 2008).
A etnoepidemiologia é uma ciência bastante recente. Ela surge da demanda de
elaboração de métodos qualitativos de análise tão eficazes quanto os quantitativos,
amplamente utilizados na epidemiologia (Fernandes, 2003). Almeida Filho (1992) Apud
Fernandes (2003) conceitua a etnoepidemiologia como:
Disciplina que não será uma mera aplicação de métodos
epidemiológicos à pesquisa transcultural em saúde, nem a introjeção de etno-
modelos dentro de estruturas de explicação baseadas na abordagem de risco.
A etnoepidemiologia poderá dedicar-se a explorar alternativas metodológicas
para a pesquisa sobre processos e práticas sociais ligadas à saúde, aptas a
combinar de modo competente as abordagens qualitativas e quantitativas em
uma única estratégia etnoepidemiológica (ALMEIDA FILHO, 1992 Apud
FERNANDES, 2003 p. 767).
O enfoque etnoepidemiológico no controle de zoonoses faz-se, então, necessário
uma vez que tem uma capacidade maior de diálogo com a comunidade, reforçando a
lógica de complementaridade de saberes, já apropriada pelas etnociências.
28
3. JUSTIFICATIVA
A vigilância em saúde é a coleta, análise e interpretação sistemática de dados em
saúde para o planejamento, implementação e avaliação das atividades em saúde pública
(BONITA, BEAGLEHOLE & KJELLSTRÖM, 2010) com a finalidade de adotar
medidas de prevenção e controle das doenças ou agravos. A vigilância epidemiológica
começou a se desenvolver, de fato, no Brasil, a partir da década de 1970 (BRASIL,
2009).
Considerando as zoonoses como um sério problema que ameaça a saúde pública
mundialmente (KAHN, 2009), é consensual a defesa de medidas de alertas precoces de
surtos de doenças em animais com potencial zoonótico, permitindo adotar medidas
preventivas sobre a morbidade e mortalidade humana (GUIMARÃES et al, 2010).
Defendem-se, então, programas de vigilância que incluam animais domésticos e
selvagens, assim como a população humana, permitindo conduzir medidas eficazes de
controle, além da interação entre médicos e veterinários, uma vez que são preparados
para reconhecer, relatar focos e manter a comunicação entre as classes dos profissionais
de saúde, ampliando-lhes os conhecimentos sobre hospedeiros e agentes infecciosos
com potencial zoonótico (KAHN, 2009). Além disso, de acordo com ações e respostas
efetivas para os problemas de saúde pública envolvendo a inter-relação ser humano-
animal-ambiente e a existência de infecções transmitidas pelos animais, insetos, água e
alimentos, exige-se uma forte ligação entre a saúde humana e animal, entre clínicos,
pesquisadores, laboratoristas e demais servidores da área de saúde pública (KING &
KNABBAZ, 2009).
4. HIPÓTESE
Os moradores do povoado de Areia Branca possuíam conhecimento apurado a
respeito da distribuição sazonal e espacial de dípteros hematófagos da região. Esse
conhecimento estaria relacionado às atividades ocupacionais, sobretudo pesqueiras, por
eles desenvolvidas.
29
5. OBJETIVOS
5.1. OBJETIVO GERAL
Investigar o conhecimento ecológico tradicional local de dípteros hematófagos e
de que maneira esses animais são classificados pela comunidade, de acordo com a
etnotaxonomia.
5.2. OBJETIVOS ESPECÍFICOS
Investigar o conhecimento ecológico tradicional local sobre a dinâmica espacial
e sazonal de dípteros hematófagos.
Investigar possíveis similaridades entre o conhecimento local sobre insetos
vetores e a literatura científica disponível, reforçando o aspecto de complementaridade
entre estas duas formas de conhecimento.
Registrar possível reconhecimento dos dípteros hematófagos como vetores.
30
6. MATERIAIS E MÉTODOS
6.1. ÁREA DE ESTUDO E POPULAÇÃO
O povoado de Areia Branca está localizado na Zona de Expansão Urbana do
município de Aracaju, definida pela Lei Municipal de n° 873, compreendendo todo o
litoral costeiro sul do município, tendo como limites, o rio Vaza Barris e o canal Santa
Maria ao sul, o Oceano Atlântico a leste, o município de São Cristóvão a oeste e ao
norte, com o bairro Aeroporto (Figura 2) (FRANÇA & REZENDE, 2012).
França & Rezende (2012) afirmam que a Zona de Expansão Urbana de Aracaju
ainda não dispõe de todo aparato de infraestrutura necessária para proporcionar uma boa
condição de vida, especialmente quanto ao abastecimento de água, drenagem e
esgotamento sanitário. Para comprovar tal afirmação, trazem os seguintes dados:
Isso é comprovado quando se verifica que cerca de 28,10% (2.240)
dos 7.970 domicílios da área, ainda são abastecidos de água através de poços
artesianos, o que, de certa forma, limita o parcelamento, em decorrência da
baixa qualidade da água. (...) Quanto à coleta de esgoto sanitário, esse é,
talvez, o maior dos obstáculos. É realizado em 72,15% das edificações (5.707
domicílios), por meio de fossas sépticas e sumidouro ou fossa rudimentar,
ambas com recolhimento individual, enquanto cerca de 10% das casas não
dispõem de banheiro nem sanitário (IBGE, 2000 Apud FRANÇA &
REZENDE, 2012 p.18).
As autoras também colocam que “a dificuldade de sanar essas questões tende a
se acentuar”, uma vez que as áreas verdes, sobretudo os coqueirais, têm sido
drasticamente reduzidas devido ao crescimento da ocupação atual que, segundo
Wanderley & Wanderley (2003) “impermeabilizará parte dos terrenos que hoje são
superfícies infiltráveis, causando inundações periódicas”.
O posto de saúde do povoado de Areia Branca divide a área em nove micro-
áreas, sendo cada acompanhada por um agente de saúde. Grande parte desses agentes
tem contato direto com, ou são moradores do povoado.
31
Figura 2: Ortofotocarta de Aracaju (com os limites em linha vermelha) com
localização da Zona de Expansão Urbana (com os limites em tracejado amarelo).
Fonte: FRANÇA & REZENDE, 2012.
6.2. COLETA DE DADOS
6.2.1. Elaboração do guia ético
Para a elaboração do Guia Ético, foi montada uma caixa entomológica (Figura 3)
com espécimes pertencentes às famílias: Psychodidae, Ceratopogonidae, Culicidae e
Tabanidae (Diptera). Para a captura dos dípteros, foi usada a armadilha luminosa tipo
CDC (Gomes et al, 1985) em dois diferentes pontos: um próximo ao manguezal, outro
urbano, em peridomicílio durante 12 horas (das 18h às 6h). Após serem capturados, os
animais foram levados ao Laboratório de Entomologia e Parasitologia Tropical da
Universidade Federal de Sergipe, onde foram identificados de acordo com a
classificação taxonômica padrão para cada grupo. Foram capturados apenas espécimes
de Ceratopogonidae e Psychodidae. Os espécimes de Culicidae e Tabanidae na caixa já
se encontravam no laboratório e foram montados por haver registros destes animais na
própria área ou em áreas próximas. Os grupos receberam diferentes numerações, sendo:
1- Psychodidae, 2- Ceratopogonidae, 3- Aedes aegypti, 4- Anopheles sp., 5- Mansonia
sp., 6- Culex quinquefasciatus, 7- Tabanidae (Figura 3).
32
Figura 3: Caixa entomológica com dípteros hematófagos. 1- Psychodidae, 2-
Ceratopogonidae, 3- Aedes aegypti, 4- Anopheles sp., 5- Mansonia sp., 6- Culex
quinquefasciatus, 7- Tabanidae.
6.2.2. Elaboração do guia êmico
Para a elaboração do guia êmico, foram aplicadas entrevistas semi estruturadas
(Anexo 1) baseadas na metodologia geradora de dados (Posey, 1987), com
modificações.
Os moradores entrevistados foram indicados pelo agente de saúde que
acompanhou o desenvolvimento do trabalho. Para a aplicação das entrevistas, foram
prioritários os moradores mais antigos da região, pois estes possuíam contato maior com
o ambiente natural anterior às ações antrópicas em larga escala. Essas pessoas
mantinham vínculo com a maré, seja para atividades de pesca artesanal, seja para
atividades de lazer. Não foram identificados especialistas no povoado de Areia Branca,
uma vez que as pessoas manifestaram não possuir conhecimento aprofundado com
relação aos animais abordados.
Foram selecionadas oito pessoas que ainda mantinham ou que mantiveram por
um longo período de suas vidas um vínculo com a maré e a pesca artesanal. Além
dessas oito pessoas, que aceitaram participar da entrevista, foram mantidos diálogos
33
informais com outros moradores da região com o mesmo perfil, em que foi estimulada a
geração de dados relacionados à etnotaxonomia e às distribuições sazonal e espacial dos
animais. Muitas vezes a aplicação da entrevista serviu como estímulo para as outras
pessoas, que não as entrevistadas, participarem e contribuírem ativamente no
fornecimento dos dados. Outras pessoas se sentiram intimidadas com o fato de ter que
gravar entrevistas e preferiram conversar informalmente sobre o assunto, falando sobre
as suas percepções a respeito dos dípteros hematófagos.
Na aplicação das entrevistas, a caixa entomológica com os espécimes coletados
foi mostrada aos entrevistados, sem menção aos nomes científicos ou populares, para
que fossem posteriormente analisados os dados relacionados à distribuição espacial e
sazonal, na perspectiva da etnoecologia, e à etnotaxonomia dos animais mostrados.
Foram realizadas perguntas (Anexo 1) relacionadas aos insetos coletados. As
entrevistas foram gravadas e transcritas para que o discurso fosse analisado de acordo
com os dados já registrados na literatura a respeito da ecologia dos animais analisados.
Os entrevistados foram informados da natureza do estudo e assinaram um termo de
consentimento (Anexo 2).
Além dos dados relacionados à distribuição sazonal e espacial dos animais,
analisou-se como os moradores classificam os insetos de acordo com a etnotaxonomia,
investigando se havia diferenciações e nomenclaturas próprias para diferentes espécies
ou gêneros, bem como se havia a percepção desses animais enquanto vetores potenciais.
6.3. CONSIDERAÇÕES ÉTICAS
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa envolvendo seres
humanos do Hospital Universitário, protocolo CAAE: 13163313.8.0000.5546.
34
7. RESULTADOS E DISCUSSÃO
Os pescadores do Povoado de Areia Branca apresentaram dificuldades para
identificar os espécimes na caixa entomológica devido ao tamanho dos animais. A
maioria dos sujeitos entrevistados apresentava idade avançada e muitos reclamaram que
não conseguiam enxergar bem. Não foram identificados especialistas no assunto, pois as
pessoas não se julgavam conhecedoras o bastante da temática abordada. Sr. JF,
pescador, 72 anos, morador da área há 35, numa conversa informal, afirmou que não
entendia de inseto e que se a pesquisa fosse sobre maré, peixe ou pesca, seria mais fácil
para ele ajudar. Ainda assim, por vezes, Sr. JF foi apontado como referência por ser um
pescador bastante antigo e conhecido na região.
Apesar dos entraves na visualização dos insetos, alguns moradores, sobretudo os
mais antigos, apresentaram convicção ao identificá-los. Outra dificuldade encontrada foi
o número significativo de moradores que não puderam ou quiseram participar da
entrevista. Tais dificuldades sugeriram considerar outros elementos na construção do
guia êmico, como a promoção de rodas de conversa informais (muitas vezes geradas
pela própria aplicação das entrevistas), contemplando aqueles que não puderam
contribuir com as entrevistas semi-estruturadas, em que os dados ecológicos (e.g
distribuição sazonal e espacial) e epidemiológicos (e.g a descrição da intensidade da dor
da picada) servissem como fontes de investigação complementares à identificação
visual dos espécimes.
7.1. ETNOCONHECIMENTO
7.1.1. Etnotaxonomia
A equivalência entre a classificação taxonômica padrão e a etnotaxonômica se
deu em dois processos: a identificação visual dos espécimes e a coleta de dados
ecológicos e epidemiológicos fornecidos na aplicação das entrevistas e nas conversas
informais.
A identificação visual não forneceu dados suficientes para fazer a equivalência
nas duas classificações devido ao tamanho dos espécimes analisados. Outra limitação
apresentada foi a de os entrevistados alegarem dificuldades para visualizar os
espécimes, devido à idade avançada de alguns, variando de 48 a 76 anos. A fragilidade
35
na identificação dos animais também pode ter se dado devido às diferenças
morfológicas apresentadas entre os insetos, ainda que da mesma espécie, montados e in
natura. As duas situações podem, por exemplo, apresentar diferenças significativas no
padrão de cores, por vezes utilizadas como referência na classificação etnotaxonômica
(Quadro 3). Além desse fator, foi possível perceber a resignificação na noção das
dimensões dos animais, uma vez que, quando montados lado a lado, foi possível ter um
parâmetro em que foi colocada a perspectiva de “um animal maior que outro” e não
mais “um animal pequeno”. Essa problemática ficou perceptível quando muitos
entrevistados tiveram dúvidas no reconhecimento de espécimes de Ceratopogonidae e
Psychodidae, ambos considerados pequenos in natura, até que foi apresentada a
perspectiva de “um maior que o outro”. O quadro a seguir (Quadro 3) demonstra a
equivalência entre a classificação elaborada pelos moradores do Povoado de Areia
Branca e a taxonomia padrão para os animais mostrados durante as entrevistas:
Quadro 3: Equivalências entre as nomenclaturas da etnotaxonomia e taxonomia
padrão baseadas nas identificações visuais de dípteros hematófagos por pescadores
artesanais do Povoado de Areia Branca (Sergipe, Brasil).
Classificação etnotaxonômica Classificação taxonômica padrão
Filhote de muriçoca vermelha, Mosquito,
muriçoca, pernilongo pequeno, pintador.
Lutzomyia longipalpis
Maruim, mosquito, mosquito de mangue,
pintador.
Ceratopogonidae
Filhote de muriçoca, muriçoca preta, pernilongo
pequeno, pintador.
Aedes aegypti
Muriçoca, muriçoca preta, perna-longa, perna-
longo, pernilongo.
Anopheles sp.
Mosquito da dengue, muriçoca, muriçoca preta,
muriçoca vermelha, perna-longa, perna-longo,
pernilongo.
Mansonia sp.
Muriçoca, muriçoca vermelha, perna-longa,
perna-longo, pernilongo, pintador.
Culex quinquefasciatus
Abelha, muriçoca do animal, mutuca, mutuca de
animal, mutuca de mangue, mutuca do agreste,
mutuca mole.
Tabanidae
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Apesar da heterogeneidade apresentada na identificação visual, as conversas
informais e as entrevistas sugeriram convergências em cinco categorias
etnotaxonômicas: muriçoca, mutuca, maruim, pintador e mosquito (Quadro 4).
Quadro 4: Equivalências entre as nomenclaturas da taxonomia padrão e
etnotaxonomia de dípteros hematófagos baseadas nas identificações visuais e dados
fornecidos por entrevistas semi- estruturadas e conversas informais com pescadores
artesanais do Povoado de Areia Branca (Sergipe, Brasil).
Classificação etnotaxonômica Classificação taxonômica padrão
Muriçoca Culicidae de grande e médio porte
Mosquito Grupo generalista envolvendo Culicidae
de pequeno porte, Psychodidae e
Ceratopogonidae
Pintador Psychodidae
Maruim Ceratopogonidae
Mutuca Tabanidae
As categorizações muriçoca e mosquito não se apresentaram fixas, sendo, por
vezes, utilizadas como sinônimos. No entanto, as muriçocas, de maneira geral, referem-
se aos culicídeos de médio e grande porte. Foram mencionados também os termos:
pernilongo, perna-longa e perna-longo, usados em geral para designar muriçocas com
“pernas” longas.
Alguns entrevistados mencionaram classificações baseadas nas cores dos
animais (Quadro 3), alegando que existem muriçocas pretas e vermelhas. Srª ON, 55
anos, referiu-se aos espécimes de Mansonia sp. e Culex quinquefasciatus como
muriçocas vermelhas e associou seus hábitos à maré; já os espécimes de Aedes aegypti e
Anopheles sp., denominou muriçoca preta e associou seus hábitos à vegetação
circundante. Sr. CQS, 72 anos, por sua vez, classifica as muriçocas em brancas e pretas,
afirmando que as pretas se originam da sujeira e do esgoto.
37
O termo dengue é bastante apropriado pelas pessoas do povoado. Na concepção
dos moradores, a dengue é uma muriçoca também chamada de pernilongo devido às
suas “pernas” longas. Sr. PJ conceitua dengue como um animal grande com um
“sistemozinho” branco. A ideia de que a dengue é uma muriçoca grande induziu um dos
moradores afirmar que os espécimes de Mansonia sp. tratavam-se de exemplares da
dengue.
Mosquitos foram categorizados como espécimes muito pequenos. A utilização
mais comum do termo mosquito é para se referir aos espécimes de Ceratopogonidae. No
entanto, por vezes são utilizados para outros animais, como os flebotomíneos e
culicídeos de pequeno porte, como Ae. aegypti. Sendo assim, foi possível perceber o
domínio etnotaxonômico mosquito subdividido em: mosquito (Culicidae de pequeno
porte), pintador (Psychodidae) e maruim (Ceratopogonidae).
O pintador foi o inseto mais citado nas entrevistas e conversas informais. Os
moradores referem-se a ele como um mosquito pequeno ou muito pequeno. Dois
padrões de coloração foram descritos: vermelho (ON) ou amarelado (JF). Além da
dimensão e do padrão de cores, foram descritas as seguintes características: “asinha
muito grandinha e o rabinho grande” (ON), “asinha bem fininha” (CN) e “asinha pra
cima” (moradora da região em conversa informal). JF também descreveu o pintador da
seguinte forma: “ele é pequeno, tipo mosquito que anda em cachorro”.
A maioria das pessoas entrevistadas demonstrou ter apropriação a respeito do
pintador muito mais pela peculiaridade de sua picada que pelos seus caracteres
morfológicos. Sobre a picada, Sr JF descreve: “é um insetozinho miserável pra morder,
de queimar; é que nem fogo”. Os entrevistados também reconheceram diferenças no
ruído produzido pelo pintador e pela muriçoca. Sr. CN, 48 anos, descreve da seguinte
forma: “A muriçoca vem: uuuhhhhh; ele não, ele vem: biiiiiip”. Sra. CeN, 78 anos,
também comenta sobre as diferenças dos ruídos: “(o ruído do pintador é) fincadozinho,
bem de leve! E a muriçoca já é diferente”.
Dados relacionados ao padrão de voo do pintador também foram utilizados na
investigação para realizar a equivalência entre a etnotaxonomia e a taxonomia padrão.
Sr. JF descreveu o voo da seguinte maneira: “é difícil de matar ele porque ele fica só
pulando de um canto pro outro” e complementou: “É que eles fica assim ói (simulou
com as mãos um padrão de voo em que o inseto “pula” de um ponto a outro)... pousou,
mordeu, já voou. Aí já tá em outro canto, cê vai com a mão, já tá cá! É ligeiro”.
38
Tais dados foram essenciais para fazer a equivalência do pintador à subfamília
Phlebotominae. A ciência convencional afirma que as asas dos flebotomíneos não são
um caracter importante para a distinção de espécies (NEVES, 2005). No entanto, a
posição das asas entreabertas e levantadas quando os animais estão em repouso é uma
característica marcante desta subfamília. A picada dos flebotomíneos causa uma reação
diferente da dos culicídeos, sendo geralmente descrita como extremamente dolorosa
(NEVES, 2005). Outro dado importante para fazer a equivalência taxonômica e
etnotaxonômica foi a descrição do padrão de voo, como “pulos” de um ponto a outro,
que é característico da subfamília.
Considerando que o Povoado de Areia Branca é uma área endêmica para
flebotomíneos (JERALDO et. al., 2012), fica clara a importância que o pintador exerce
na região, sendo, muitas vezes, o primeiro animal a ser mencionado, tanto em
entrevistas como em conversas informais. Este fato condiz com a afirmação de Neves
(2005), de que o conhecimento popular consegue diferenciar os flebotomíneos de outros
dípteros hematófagos. Em termos etnotaxonômicos, esse fato confirma a perspectiva de
Posey (1992) de que quanto mais intensa a relação entre a comunidade e o ser vivo
abordado, mais refinada é a classificação.
O termo maruim é notadamente empregado para os Ceratopogonidae, que
também são chamados de mosquito, muruim e mosquito de mangue. A mutuca,
claramente associada aos Tabanidae, foi também identificada como mosquito do animal.
Dois taxa, qualidades, no linguajar da comunidade, foram apresentados: mutuca de
mangue e mutuca de agreste. A mutuca e o maruim, dentre os dípteros analisados,
foram os que apresentaram maior associação às marés e às atividades pesqueiras.
Houve, ainda, menção a outro hematófago que não estava na caixa: a muriçoca
da testa branca. Esse animal foi bastante citado em conversas informais e Sr. JF refere-
se da seguinte maneira:
A muriçoca que eu tô dizendo, num tem nenhuma dessa aí. Essa que
vai chegar agora é diferente, ela tem a testa branca. (...) Cê anda aí, cê não
vê ninhuma, só vê assim... toda de uma cor só. Agora, depois dessa chuvada,
todas que você ver têm a testa branca (JF, 2013).
As descrições dadas sobre a muriçoca de testa branca sugerem que este animal
seja o Ochlerotatus scapularis, uma vez que esta espécie apresenta manchas claras na
cabeça e no mesonoto (FUNASA, 2001).
39
O Povoado de Areia Branca, área constantemente alterada por ações antrópicas,
tem o perfil do tipo de ambiente relacionado à maior distribuição do Oc. scapularis
(FORATTINI et. al., 1995). São animais oportunistas e ecléticos com relação aos
hospedeiros e sua maior densidade é relacionada à época chuvosa, utilizando-se de
criadouros naturais majoritariamente, embora existam ocorrências na literatura da
utilização de criadouros artificiais (CONSOLI & LOURENÇO-DE-OLIVEIRA, 1994).
7.1.2. Etnoecologia
Os moradores do Povoado de Areia Branca enquadram os dípteros hematófagos
na categoria “inseto” e sua percepção é similar à dos moradores de Pedra Branca
(Bahia, Brasil), atribuindo a estes animais sentido negativo (COSTA NETO, 2004). Foi
possível constatar também que existe uma associação ao comportamento dos animais de
acordo com a sazonalidade (no caso dos Culicidae e Psychodidae) e com o ciclo das
marés (no caso de Ceratopogonidae e Tabanidae).
7.1.2.1. Percepção ambiental
Embora não tenha sido possível elaborar o mapa mental da região, alguns dados
relacionados à maneira como os moradores percebem o ambiente foram obtidos. De
maneira geral, os moradores dividem o espaço do povoado entre a zona maré, como a
zona de ocorrência da maré propriamente dita, utilizada para atividade da pesca
artesanal, a zona periurbana, caracterizada pela ocorrência de casas próxima à maré e a
zona urbana, com casas mais afastadas das marés, em sua maioria, casas de veraneio.
Cada área, para os moradores, apresentou eventos ecológicos característicos.
Os moradores mais antigos apresentaram conhecimento próprio relacionado à
dinâmica das marés, mesmo aqueles que não exercem mais a atividade pesqueira, seja
devido às limitações relacionadas à idade ou ao forte processo de expansão e
urbanização que o povoado tem sofrido.
Em conversas informais, foram fornecidos dados a respeito da dinâmica das
marés, indicando que os moradores têm uma explicação própria para a dinâmica das
marés, associando-a a eventos biológicos, sobretudo relacionados à pesca artesanal.
Para eles, a maré apresenta três fases: a maré de lançamento, a maré de quebra e a maré
morta. A primeira fase é caracterizada como uma maré com um alto volume hídrico e
40
com uma atividade mais expressiva, segundo JA, 52 anos, “é quando a maré tá
potente”. A segunda caracteriza-se pela fase em que o volume hídrico começa a
diminuir, bem como a sua potência. A terceira representa a maré no seu volume hídrico
mais baixo. Os pescadores geralmente utilizam a maré como recurso na maré de
lançamento. O ciclo descrito, segundo os pescadores, acontece quinzenalmente. Embora
não tenham associado a atividade das marés à lua diretamente, eles apresentaram as
classificações: maré de lua, que ocorre quando a lua está cheia e a maré de escuro, que
ocorrem com a lua nova.
7.1.2.2. Conhecimento ecológico local
De maneira geral, os pescadores associaram a origem de dípteros hematófagos a
sujeira ou materiais em decomposição. Foram observadas diferentes explicações da
origem, associando ao hábitat dos animais em questão. As muriçocas, por exemplo,
foram associadas a esgoto urbano, como evidencia Sr. CQS: “Ah, aí... a muriçoca vem é
de água pôdi, é de... esgoto, é de fossa, é dessas coisa”. Os maruins, por sua vez,
tiveram sua origem associada à matéria orgânica do manguezal, como comenta Sr. JF:
“O mosquito do mangue, você sabe de onde ele se gera? De folha pôdi (...)”.
O conhecimento local a respeito do tempo de vida dos animais não foi unânime.
A maioria dos entrevistados afirmou, sem muita convicção, que o que o tempo de vida
dos dípteros mostrados é até que os animais sejam mortos ao praticarem a hematofagia,
como explicou Sr. JAN, 63 anos: “Se num matar, véve uma vida toda”. Sr. CN, por sua
vez, afirmou que o tempo de vida dos animais é de um ano.
O conhecimento a respeito do tempo de vida da mutuca apresentou
peculiaridade, como exposto por Sra. ON, que afirmou que esses animais vivem 48
horas. Ela afirmou também que esse conhecimento foi ensinado pela sua avó. Este dado
não é condizente com o da ciência convencional, que afirma que, na fase adulta, esses
animais vivem pouco mais de um mês (RAFAEL & CHARLWOOD, 1980).
Alguns moradores têm apropriação da necessidade direta da água para
reprodução e desenvolvimento dos dípteros abordados. Sr. PJ afirmou que eles só se
reproduzem na água. Sra. ON, além de reforçar a relação entre a abundância de água e
aumento na taxa reprodutiva, trouxe em sua fala outros elementos como a afirmação de
que os animais põem ovos e formam ninhos nas matas:
41
Eu acho que (a reprodução) é através de ovo. De ovinho, é. Algum
ovinho que eles têm, que põe, aí gira um bocado de coisa né? Em qualquer,
assim, lugarzinho, no mato escondidinho né? Faz aquele ninhozinho
escondidinho e põe. Nas folhas... mais nas folhas né? Nos mato. Tudo que é
folha! Eles vive nos mato. Pronto, vamo dizê: pegue as planta! Quando é
tempo de chuva, elas reproduze mais, porque car’da água! Elas são vivência
mais de água. Se elas vêri água, tem uma lagoa, com três dia depois, você vê
um monte de muriçoca voando na sua casa, que é reproduzida pela água.
Reproduzi mais ni mato fresco(ON, 2013).
Dados a respeito da reprodução das muriçocas apresentaram peculiaridades,
como a necessidade da matéria orgânica para realizá-la. A associação do domínio
etnotaxonômico muriçoca à sujeira influencia na maneira como os moradores percebem
as características biológicas dos culicídeos. Tal dado ficou claro na fala de Sr. CN, que
afirmou: “Rapaz, eles prodruz por a água né? Ou pela bosta dos animais, parece, né?
A bosta do animal. E pela água, mais pela lama né?”.
Os pescadores apresentaram ciência a respeito do desenvolvimento
holometabólico das muriçocas, denominando as larvas com uma nomenclatura própria:
cabeça de prego, conceituados como “insetinhos que ficam dentro d’água” (JF) ou
animais miúdos com pernas e cabeças transmitidos por muriçocas (Sr. PJ, 76 anos). A
associação dos cabeças de prego às muriçocas se dá de maneira fantasiosa, de modo que
a metamorfose é encarada como um “transformar-se”. Sobre essa relação de mudança,
Sr. PJ fez associações como: “a lagarta é um inseto que vira uma borboleta” e até
mesmo “o rato é um rato e vira morcego”.
Apesar da noção de desenvolvimento holometabólico, alguns moradores
alegaram que espécies de porte menor, como Lutzomyia longipalpis e Aedes aegypti
tratavam-se de formas jovens de espécies robustas como Mansonia sp. e Culex
quinquefasciatus. A respeito das formas jovens, Sr CQS explica: “Porque todos eles é
um jeito só, só porque talvez seja uma filhote, e outra adulto. Que às vezes, o cara né
criança? Ele tem uma folosomia, quando fica adulto muda!”.
Todos os entrevistados apresentaram ciência a respeito do hábito hematofágico,
associando-os, sem muita convicção, a alimentação, como afirmou Sr. RS:
Meu amigo, agora... eu acho... eu acho que é uma coisa que eu não
tenho muita certeza, eu acho que a muriçoca e o mosquito, ele morde a
gente, eles véve alimentado, eu acho que do sangue da gente (RS, 2013).
Apesar da apropriação a respeito do repasto sanguíneo, as pessoas tinham ideia
de que os animais têm outras necessidades nutricionais, embora não conseguissem
explicar do que constituiria essa alimentação, como afirmou Sr. JF, com relação à
mutuca: “Num sei como é que ele se alimenta no mangue”.
42
Outro fato constatado foi a percepção dos hábitos oportunistas dos animais
relacionados à alimentação, sobretudo das mutucas, como explicitado pela Sra. ON:
Vive de sangue, assim, de animal, de gente... (...) de bichinhos. Sobe
no passarinho, ela chupa o sangue dos bicho. Porque ela não gosta de lama,
não bebe só água, elas chupa o sangue. Você vê que a mutuca é uma
desgraçada pra morder gente, ela com tudo ela morde, chupa o sangue da
sua carne. (...) Você vê quando tem um cachorro, elas cai em cima dum
animal, dum cavalo, tudo aí ela chupa o sangue! (ON, 2013).
Outros dípteros foram apontados como hematófagos em potencial de outros
vertebrados. Alguns moradores, inclusive, associaram esse hábito ao desenvolvimento
de enfermidades em seres humanos e outros animais.
A distribuição espacial dos dípteros hematófagos como um todo foi dividida em
três grupos: os de ocorrência urbana, periurbana e os de ocorrência na maré. O
representante urbano é a muriçoca; o periurbano, o pintador. Os maruins e mutucas, por
sua vez, tiveram sua ocorrência restrita à maré, salvo a mutuca de agreste, que ocorre na
vegetação circundante.
Alguns moradores apresentaram ciência a respeito da característica cosmopolita
da distribuição das muriçocas, como Sr. RS: “Porque a muriçoca, ela roda o Brasil
inteiro (...)”. Embora as muriçocas tenham sido frequentemente associadas a sujeira e
esgoto urbano, seu habitat foi bastante associado a recursos naturais abundantes na
região, como expuseram Sr. RS: “Eu acho que eles véve, como eu falei inda agora, é
dentro do mangue, é debaixo de um pé de árvore (...)” e Sr. CN: “É. A muriçoca véve
em todo canto né? (...). Debaixo de mangueira, assim... elas gosta de tá debaixo de
mangueira”.
Com relação ao pintador, embora, na concepção dos moradores, sua distribuição
se dê nos perímetros urbanos, mas com maior intensidade nas casas próximas à maré,
foi colocado que o crescimento urbano do povoado tem diminuído a ocorrência desses
animais na região.
De modo geral, segundo os pescadores, os animais têm maior ocorrência no
inverno, com exceção do pintador, que tem maior atividade no verão. É importante
esclarecer que o estado de Sergipe não apresenta as quatro estações bem definidas, mas
um período de aproximadamente quatro meses (abril – julho) de chuva, que é chamado
de inverno; e um longo período de estio que dura os oito meses restantes (verão).
Maruim e mutuca, por sua vez, apresentaram especificidades na distribuição, tendo sua
ocorrência associada às atividades das marés.
43
A respeito da atividade maior das muriçocas durante o inverno, Sr. RS explicou:
Porque a muriçoca no verão, ela não ataca muito mode o calor,
agora no inverno, que chove, aí elas, a chuva bate no... nos pé de árvore,
molha, elas tão embaixo do pé de árvore, das fôia e sai mordendo a gente.
(RS, 2013)
E complementou: “No verão num dá por que mode o calor, num é? Aí mata
muito ela”. A ideia da necessidade direta da água para o desenvolvimento é apresentada
no discurso, porém, a associação feita é relacionada à temperatura, em detrimento da
abundância ou escassez de recurso.
Outro dado trazido pelos moradores em conversas informais ou de forma
indireta durante as entrevistas foi a utilização de recursos naturais como árvores,
sobretudo mangueiras, como abrigo por parte das muriçocas. A relação que eles fazem
entre o habitat e a chuva é a de que esta serve como um fator que inviabiliza o abrigo
das muriçocas, fazendo com que estes animais se dispersem no inverno.
Sr. JAN, por sua vez, explicou maior atividade no inverno pelo fato de as
muriçocas gostarem mais de água doce, afirmando que no verão estes animais vão para
o brejo. Esta afirmação transmite a ideia de que os animais necessitam diretamente da
água e reflete apropriação por parte do morador a respeito do caráter oportunista desses
animais.
As percepções a respeito das distribuições sazonal e espacial de culicídeos
condizem com os dados de Guimarães et. al. (2001), que constataram que meses mais
quentes e úmidos foram determinantes na maior distribuição e diversidade de 28
espécies de culicídeos. Devido à baixa amplitude térmica anual de Aracaju, é esperado
que a disponibilidade de chuva seja um fator determinante na distribuição e abundância
de culicídeos em detrimento da temperatura.
Para a comunidade, o verão é a época do ano em que o pintador apresenta
atividade mais intensa, como afirmou Sr. CQS: “Ataca mais no verão; gosta mais de
calor”. Sr. CN e Sra. ON também associaram a atividade intensa do pintador ao verão.
Jeraldo et. al. (2012), no entanto, constataram que nos anos de 2008 e 2009, a
distribuição de L. longipalpis foi diretamente proporcional aos grandes picos de chuva
no povoado do Mosqueiro, vizinho ao de Areia Branca, como mostra a Figura 4:
44
Figura 4: Pluviosidade mensal e números de Lutzomyia longipalpis machos e
fêmeas, capturados no povoado do Mosqueiro (Sergipe, Brasil).
Fonte: JERALDO et al, 2012.
Os dados discrepantes entre a percepção da comunidade e a coleta
realizada na região sugerem a realização de investigações sobre a relação entre o
maior número de L. longipalpis e seu período de maior atividade.
Os hábitos de maruins e mutucas, de maneira geral, foram associados à
dinâmica das marés, com exceção da mutuca de agreste. Esta última teve sua
maior ocorrência relacionada à distribuição das chuvas, sendo mais frequente no
inverno. Neves (2005) comenta a respeito de distribuições sazonais
características de algumas espécies de tabanídeos. A informação fornecida pelos
pescadores a respeito das mutucas sugere uma investigação a respeito da relação
entre sua sazonalidade e maior ocorrência.
A associação da atividade de maruins e mutucas não é unânime. Alguns
defendem maior atividade destes animais na maré de lançamento, outros na maré
morta. Foi percebido que os sujeitos que ainda exercem a atividade da pesca
artesanal associaram a grande quantidade desses animais à maré de lançamento,
sendo a outra ideia defendida por pessoas que não praticam mais tal atividade.
45
7.1.3 Etnoepidemiologia
7.1.3.1. Percepção da comunidade a respeito da competência vetorial
De maneira geral, os moradores associaram os dípteros hematófagos a seres
nocivos. A gênese desta associação pode ter se dado devido à visão negativa sobre o
domínio etnotaxonômico inseto, como explicitou Sr CQS: “Porque animal, inseto,
nunca atrai nada bom. Atrai, só traz o que? Ruína pro corpo da gente”. Em conversas
informais, pessoas enquadraram grupos taxonômicos distintos no domínio
etnotaxonômico inseto, como ratos, por exemplo. A visão negativa a respeito desses
animais são, por si, um dado etnoepidemiológico relevante, uma vez que, ao serem
aprofundados os motivos, foram colocadas duas situações: os dípteros enquanto seres
incômodos devido às picadas e enquanto transmissores de doenças.
O incômodo da picada foi o principal fator para a associação a uma imagem
negativa desses animais, como explicitado por Sr. CQS: “Rapaz, esses inseto aqui, eu
acho que num traz nada bom né? Porque... sempre deixa uma coceirinha no corpo da
pessoa”. Sr. RS comentou a respeito do perigo da picada:
Eu acho que é perigoso porque quando morde ele deixa aquela
coceira terrívi, e tem gente que tem elergia. Tem gente lá que vai se bater no
hospital, por picada de mosquito, de muriçoca demais, vai se bater no
hospital (RS, 2013).
Para alguns moradores, a alergia causada pela picada de alguns dos animais, por si, já
pode ser considerada uma enfermidade.
Sra. ON afirmou que os animais não transmitem doenças. Sr. JF complementou
a ideia alegando conviver com os animais há um longo tempo sem que eles lhe
causassem nenhuma injúria a não ser o incômodo das picadas. Sra CeN afirmou:
“Rapaz, tem gente que quando o mosquito morde, o corpo fica meio assim... coça
muito, sabe? Fica aqueles calombo. Mas aquilo ali depois some. De doença nunca ouvi
falar não”.
Muitos moradores, no entanto, afirmaram que os dípteros abordados causavam
doenças, como afirmou Sr. RS: “Todos eles causa doenças”, porém não sabiam dizer o
tipo de doença. A construção cultural a cerca do domínio etnotaxonômico inseto se
demonstrou eficaz na associação à transmissão de patógenos, como explicitou Sr. JF:
“Devem causar doenças porque são insetos”.
Um fator associado à transmissão das doenças é o hábito hematofágico
generalista. Tal dado sugere uma apropriação, por parte dos moradores, de outros
46
vertebrados como reservatórios naturais de seres patogênicos. Sr. RS comentou: “Meu
amigo, eu acho que... bom, eu acho que... realmente causa (doenças), porque quando a
muriçoca morde a gente, é um inseto que morde tudo, todos bicho, né? Morde cavalo,
morde... tudo!” Para Sr CQS, a única maneira de uma mutuca transmitir doença é: “Se
morder um animal doente e depois vim morder uma pessoa, pode incomodar né?”.
O conhecimento a respeito da capacidade das muriçocas como vetores de
patógenos não foi uniforme, uma vez que majoritariamente, as pessoas não associaram a
muriçoca a doenças, porém, consideraram a dengue como um tipo de muriçoca e foi a
única doença citada. A análise a respeito das muriçocas foi parecida com a dos outros
dípteros, em que as pessoas alegaram que são animais nocivos pelo incômodo de sua
picada. As pessoas entrevistadas, no entanto, deram maior ênfase ao domínio
etnotaxonômico muriçoca e apresentaram sua própria maneira de explicar a febre
causada pela picada desses animais, como explicitou Sr. CN: “Elas, assim, a muriçoca,
se for demais, ela prejudica a pele da pessoa, né? Que fica todo cheio de calombo e tal,
aí pode dar uma febre né?”. Sr CQS, no entanto, expôs seu ponto de vista a respeito da
capacidade das muriçocas enquanto vetores: “Eu acredito que ali eles vêm contaminado
de tudo né? Pode dar uma coceira, pode abrir uma ferida, pode dar uma elergia, e isso
tudo acontece né?”. Apresentaram também hipóteses para a reação alérgica das picadas,
como explicou Sr RS: “Chega nas veia dela, no sangue dela quando ela... aí... dá
arguma reação e quando chega no da gente, fica esse negócio”.
A única doença associada à muriçoca foi a dengue, embora nenhum deles tenha
reconhecido os espécimes de Ae. aegypti na caixa entomológica. Sra CeN, por exemplo,
afirmou nunca ter visto um mosquito da dengue, apenas na televisão. A dengue, na
visão dos moradores, por vezes é abordada como doença, outras como um tipo diferente
de muriçoca ou mosquito. Foi possível perceber que a utilização dos termos “mosquito”
e “pernilongo” para se referir à dengue são influências das campanhas de saúde
realizadas no povoado e assistidas na televisão. Na concepção da parcela entrevistada da
comunidade, a dengue é a única muriçoca patogênica. Tal ideia foi explicitada na fala
de Sr. CN: “Agora, o que ataca mermo, que diz que ataca mermo, é o tal do, tal do... do
mosquito da dengue”.
O domínio etnotaxonômico pintador foi o mais citado nas entrevistas, devido ao
incômodo peculiar causado pela sua picada associada aos seus hábitos periurbanos e o
seu tamanho diminuto. A reação violenta na pele devido à picada desse animal foi a
razão para ele ser chamado de pintador. Sr JF comentou: “Tinha noite que eu não
47
dormia não, quando amanhecia o dia, eu mermo dizia que eu tava com sarampo”. O
incômodo da picada foi descrito de diversas formas pelos moradores. Sr JF comentou:
“Agora, mermão... né todo mundo que suporta não” e complementou: “(...) é um
insetozinho miserável pra morder. De queimar. É que nem fogo”. Ainda sobre a picada,
Sra ON comentou: “É ardoso! Ele queima mermo que você pensa que... que é a
furadinha, assim, de qualquer injeção”. Sra CeN comenta a respeito da diferença da
picada do pintador e da muriçoca: “(...) eu conheço da dentada dele e é diferente da
muriçoca que é forte e fica queimando”.
O tamanho diminuto do pintador foi outro problema apresentado, uma vez que,
segundo os entrevistados, são capazes de atravessar barreiras mecânicas como telas,
mosqueteiros, lençóis e até mesmo vestimentas. Sra CeN comentou a respeito da
diferença de tamanho entre o mosquito e o pintador, o primeiro consegue ser barrado
pelo mosqueteiro e o segundo atravessa. Sr JF apresentou as seguintes problemáticas:
Não, ele passa na malha do lençol! Na brecha da (...). Uma
camisetinha dessa (apontando para a camiseta de malha sintética de um dos
entrevistadores), meu amigo, ele passa tranquilo! No fundo do pano ele
ainda passa. Às vezes eu tô aqui ói... (...) acendo a luz e fico... quando tem
muito. Eles passando no, no... no furo do, do.. na máia do lençol, no
furozinho, ele ainda passa ali! (CeN, 2013).
Sr JF apresentou bastante apropriação ao afirmar que o pintador praticava
hematofagia em outros vertebrados. Referiu-se ao pintador como “mosquitinho que dá
em cachorro” e mencionou:
Se você quer (...), ouça o que eu tô dizendo: onde tiver um animal
que durma preso, um cavalo ou uma vaca, pode botar o aparelhozinho
(armadilha de CDC) pra pegar... que você vai ver a quantidade que vai pegar
desse mosquitinho aí (JF, 2013).
Reconheceu que existem maneiras de evitar o contato entre vertebrados e o pintador,
afirmando que a armadilha teria que ser colocada perto de criadouros de “gente pobre”,
pois “gente rica” tem como evitar o contato dos vertebrados com o pintador. Sobre a
grande quantidade de pintador na região, ele comentou: “É o que eu tô dizendo, se você
for num lugar que tiver um animal preso por aqui por essa região, aquele
aparelhozinho (armadilha de CDC) num vai caber não”.
Não foi associado nenhum tipo de enfermidade ao pintador. Semelhante ao que
ocorreu em outros grupos, alguns entrevistados associaram o incômodo intenso da
picada à enfermidade, como Sr. CQS: “O pintador também dá (doença)! É uma coceira
danada que eu num gosto, ma rapáiz, ninguém pode dormir não!”. Sra ON afirmou que
o pintador não causa doença alguma. Sr JF, que reconheceu a atividade hematofágica do
48
pintador em outros vertebrados e reconheceu a forte reação causada na pele, ao ser
questionado sobre manchas na pele de alguns felinos criados por ele, respondeu: “Não,
eles tão pintado assim é... é porque... dorme no chão né? E também, no chão... contém
pulga (...) Eu dei remédio de verme, já tão melhorando (...)”.
Nenhum tipo de enfermidade foi associado ao maruim. As pessoas comentaram
sobre incômodos causados pela picada desses animais, que só são percebidos em
atividades pesqueiras, uma vez que sua ocorrência está restrita às marés.
7.1.3.2. Medidas profiláticas
Os entrevistados apresentaram mecanismos próprios de controle e prevenção dos
dípteros hematófagos. Os primeiros, em geral, baseiam-se no controle mecânico, com a
utilização de calçados ou as mãos para matar os animais, ou controle químico, com a
utilização de inseticidas. Os métodos de prevenção adotados foram a utilização de
mosqueteiros, utilização de cremes (inclusive protetor solar) e a realização de pequenas
queimadas, alegando que o cheiro da fumaça serve como repelente para esses animais.
Com relação á mutuca e ao maruim, Sr. JAN descreveu algumas maneiras que
julga eficazes para evitar o contato com os dípteros: “O cara faz um facho de pati de
coco, de coqueiro ói o peixinho assim ói, o peixinho assim, e amarra e toca fogo, aí é
como (...) aí ele num encosta”; e também descreveu: “Pegava cocô de boi, bota num...
num vaso, d’uma lata assim né... e leva pro mangue, toca fogo e fica fumaçando lá aí
ele num encosta”. Afirmou que aprendeu essas técnicas acidentalmente, quando jovem,
e que as utiliza desde então.
Foi possível observar em uma ida a campo a realização de queimada de folhas e
madeiras. O estudo para desenvolver produtos com capacidade de repelência para
mosquitos é baseado em compostos químicos provenientes de vegetais, sobretudo as
folhas e madeiras. A queima destas últimas libera produtos prejudiciais à saúde humana
e ao meio ambiente (BARBOSA, NASCIMENTO & MORAIS, 2007), deixando clara a
necessidade de acompanhamento dessas atividades.
49
7.1.3.3. Perspectiva Etnoepidemiológica
A valorização do conhecimento tradicional traz consigo a proposta
epistemológica de que os dados fornecidos pela comunidade estudada tenham
relevância, no sentido de complementar o conhecimento acadêmico, além de poderem
gerar dados mais completos, na perspectiva de Posey (1992), para as questões
epidemiológicas e nortearem ações como o combate aos dípteros hematófagos.
Moradores do Povoado de Areia Branca apresentaram algumas peculiaridades na
maneira como constroem o conhecimento a respeito dos dípteros hematófagos. Apesar
dessas peculiaridades, as campanhas de prevenção e controle desses animais parecem
não dialogar com a realidade local. As formas subjetivas como as populações
interpretam os processos de saúde/doença devem, então, ser consideradas demandas
emergentes na perspectiva epidemiológica.
Posey (1992) comenta sobre a dificuldade metodológica de distinguir a
interpretação ética da êmica, uma vez que as duas interpretações dialogam
constantemente. No entanto, na perspectiva do autor, é importante perceber as duas
formas de conhecimento para elaborar uma medida eficaz de diálogo não só entre os
pesquisadores e as comunidades, mas entre os conhecimentos, numa maneira de, a
longo prazo, criar uma nova cultura em que o conhecimento científico e o popular não
sejam necessariamente discrepantes.
A proposta de considerar aspectos etnotaxonômicos no planejamento do controle
de dípteros hematófagos não é inédita, embora pouco usual. Sumabila & Lugo (2007),
baseados em sua experiência na maneira como os Cuiva, na Venezuela, se relacionavam
com mosquitos, propuseram que:
Os serviços de controle de saúde precisam promover programas
intensivos de identificação de mosquitos e fornecer informações pertinentes
com relação a eles. Isso poderia ser implementado incorporando
conhecimento nativo tanto sobre o meio ambiente quanto sobre os padrões
comportamentais dos mosquitos.
Um melhor entendimento na relação entre o sistema de crença dos
Cuiva e as doenças causadas por mosquitos poderiam possivelmente reduzir
sua incidência (SUMABILA & LUGO, 2007 p. 85).
A falta de esclarecimento dos pescadores do povoado a respeito do Ae. aegypti
alerta para uma deficiência nas campanhas de vigilância epidemiológica e promoção de
50
saúde. Foi possível perceber que as pessoas não associaram os espécimes mostrados na
televisão com os animais no seu dia a dia. A utilização do nome pernilongo nas
campanhas induziu as pessoas a associarem a espécie a muriçocas com as pernas longas,
o que dificulta na identificação do Ae. aegypti, culicídeo de pequeno porte. A associação
da dengue com culicídeos de grande porte foi percebida na maioria das falas, seja ao
associarem a dengue aos espécimes de Mansonia sp., seja ao afirmarem a ausência de
mosquitos da dengue na caixa entomológica, como colocou Sra CeN: “O que passa (na
televisão) é diferente né? Esses daí são miudinho (...)”. Considerando a diferença
semântica apropriada pela comunidade dos domínios muriçoca e mosquito, fica
evidente a necessidade de conhecer as construções culturais da comunidade a respeito
dos dípteros hematófagos como um todo para um combate eficaz aos insetos vetores.
Para os moradores mais antigos, a dengue é um problema distante de sua
realidade. Esta ideia ficou clara numa conversa informal com uma moradora antiga da
região ao informar que nem eles (responsáveis pela veiculação das informações sobre
saúde) sabem o que é a dengue, pois “a vida inteira cabeça de prego foi muriçoca e
agora eles dizem que é a dengue”. A participação efetiva da comunidade nas
campanhas tem se dado muito mais por imposição que por compreensão, de fato, dos
problemas epidemiológicos. Sra CeN afirmou que toma as medidas de precaução
necessárias porque os agentes podem “dar bronca”, caso as medidas preventivas não
sejam cumpridas.
A leishmaniose visceral é endêmica no estado de Sergipe, com quase 1900 casos
confirmados de 1990 a 2011 (Brasil, 2012). No município de Aracaju, há dois bairros
com maior ocorrência para a enfermidade: Bairro América e Mosqueiro, como mostra o
mapa abaixo (Figura 5):
51
Figura 5: Mapa dos casos humanos de leishmaniose visceral em Aracaju
(Sergipe, Brasil) de 2005 a 2010.
Fonte: BRASIL, 2013.
De 2003 a 2009, foram registrados 109 casos de leishmaniose visceral em
humanos no município de Aracaju, dos quais aproximadamente 30% foram do bairro
mosqueiro (BRASIL, 2013). O número de caninos infectados de 2004 a 2010 pode ser
considerado alarmante, com 112 positivos, dos 1287 examinados (BRASIL, 2013).
Além dos dados a respeito da doença, foram encontradas quantidades significativas de
Lutzomyia longipalpis na região estudada (JERALDO et al, 2012), ficando evidente a
necessidade de desenvolvimento de programas de controle e prevenção desta
enfermidade.
O estudo realizado por Jeraldo et. al. (2012), no entanto, foi o primeiro a respeito
da fauna flebotomínica na região e requer ações conjuntas com a comunidade. O
controle da doença ainda se dá através da eutanásia dos vertebrados infectados. Em uma
conversa informal com uma moradora, ela demonstrou grande aflição relacionada ao
calazar, nome popular da leishmaniose. Em nenhum momento, no entanto, nem com a
aplicação das entrevistas, nem em conversas informais, o pintador foi associado ao
calazar, o que sugere que tanto o pintador quanto o calazar são domínios bem
apropriados na região, no entanto, as campanhas não foram capazes de conscientizar a
população a ponto de associar os dois fatores.
52
8. CONCLUSÕES
Os entrevistados demonstraram um sistema próprio de classificação dos dípteros
hematófagos. Os animais estudados foram associados a um aspecto negativo. As
nomenclaturas foram diferenciadas de acordo com o habitat, a intensidade das picadas,
o padrão de voo e caracteres morfológicos como a coloração e, principalmente, o
tamanho. Os maruins e mutucas foram considerados animais de ocorrência apenas nas
marés, o pintador, periurbano e mosquitos e muriçocas, urbanos.
As percepções a respeito das características biológicas e distribuições sazonal e
espacial dos dípteros analisados apresentaram alguns pontos em comum com o
conhecimento acadêmico. De maneira geral, a apropriação a respeito dos culicídeos é
equivalente com o conhecimento acadêmico. Conhecimentos bastante específicos
relacionando as atividades de ceratopogonídeos e tabanídeos à dinâmica das marés, bem
como a afirmação de maior atividade de flebotomíneos no verão, foram consideradas
fontes de investigação para um posterior respaldo científico.
Os moradores entrevistados e abordados não reconheceram o potencial
patogênico dos animais analisados, a não ser a dengue. Tal fato evidencia a necessidade
de trabalhos contínuos com a proposta de complementaridade entre os saberes. Isso se
evidencia no caso dos flebotomíneos, que para a comunidade trata-se do pintador, um
mosquito reconhecido apenas pela sua picada incômoda. Por outro lado, o nome
pintador na academia é inédito, sendo um dado fundamental para nortear ações com o
intuito de controlar esses insetos.
Considerando as discrepâncias entre o conhecimento acadêmico e popular a
respeito dos dípteros hematófagos e a sua capacidade de transmitir patógenos, fica clara
a demanda da elaboração de um método mais eficaz de sensibilização da comunidade. A
incorporação do etnoconhecimento nas demandas epidemiológicas traz consigo a
responsabilidade para os pesquisadores de desenvolverem trabalhos constantes e
contínuos, de forma a diminuir a polarização entre as duas formas de saberes.
Este trabalho não pretende sanar as questões epistemológicas pendentes da
elaboração de um método que considere o etnoconhecimento na resolução de problemas
epidemiológicos. Há de se considerar as limitações devido ao pouco acúmulo na ciência
de trabalhos com essa perspectiva. A pretensão deste trabalho é, então, apresentar uma
nova forma de fazer ciência sem abrir mão do rigor científico, padrão tão necessário
para gerar dados de confiabilidade.
53
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64
ANEXOS
65
Anexo 1- Modelo de entrevista semiestruturada
A. Informações sobre o sujeito entrevistado
Nome:____________________________ Idade:____anos Sexo: ( ) M ( )F
Comunidade/município em que vive: ________________________________
Estado civil:__________________ Possui filhos: Sim ( ) Não ( ). Quantos: ____
Grau de instrução: __________________________
B. Informações sobre a entrevista
Local:________________ Endereço:______________________ Data: _________
Há interferência de outros sujeitos: Sim ( ) Não ( )
C. Informações sobre culicídeos e flebotomíneos
1. O (A) senhor (a) sabe dizer o que está vendo aqui? (O entrevistado observa uma caixa
entomológica contendo espécimes de dípteros hematófagos enumerados de acordo com
a taxonomia padrão para cada grupo). Sim ( ) Não ( )
2. Além desse nome, por quais outros nomes eles são chamados aqui na região?
3. Onde você viu da última vez?
4. Sabe dizer o que eles comem?
5. Sabe dizer quanto tempo eles vivem?
6. Sabe dizer como eles se reproduzem?
7. Sabe dizer de onde eles vêm?
8. Em qual época do ano eles são mais frequentes?
9. Eles causam alguma doença? Sim ( ) Não ( ) Se sim, qual o nome da doença?
10. O que você faz quando o encontra em casa ou no quintal?
11. Sabe o que deve ser feito para evitar que eles apareçam dentro ou perto de sua casa?
66
Anexo 2:
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
Nome da Pesquisa
Conhecimento ecológico tradicional sobre dípteros hematófagos numa comunidade de
pescadores artesanais no povoado de Areia Branca (Sergipe, Brasil).
Pesquisadores responsáveis
Orientadora: Roseli La Corte dos Santos (79) 2105.6626 [email protected]
Graduando: Túllio Dias da Silva Maia (79)9119-7192 [email protected]
Instituição responsável pela pesquisa
Universidade Federal de Sergipe (UFS) – Departamento de Morfologia (DMO)
Informações aos voluntários
O/a Sr/Sra está sendo convidado/a para participar de uma etapa da pesquisa
Conhecimento ecológico tradicional sobre dípteros hematófagos em sua comunidade.
Sua participação não é obrigatória. A qualquer momento, o/a Sr/a pode desistir de
participar e retirar o seu consentimento, sem que haja qualquer prejuízo em sua relação
com os pesquisadores ou com a Universidade Federal de Sergipe.
O objetivo deste trabalho é investigar o conhecimento ecológico tradicional
local sobre a dinâmica espacial e sazonal de insetos.
Sua participação nesta etapa da pesquisa consistirá em participar de uma
entrevista em que serão respondidas perguntas a respeito da relação dos insetos com a
comunidade e as atividades por ela desenvolvidas. A entrevista será gravada e transcrita.
As informações obtidas através desta pesquisa serão confidenciais e
asseguramos o sigilo sobre sua participação.
O/a Sr./Sra receberá uma cópia deste termo onde constam os telefones dos
pesquisadores, podendo tirar dúvidas sobre o projeto e sua participação em qualquer
momento.
Eu: ___________________________________________________________________
RG: ______________________, abaixo assinado, tendo recebido as informações no
verso e ciente dos meus direitos abaixo relacionados, concordo em participar como
voluntário da pesquisa citada.
67
1- A garantia de receber a resposta a qualquer pergunta ou esclarecimento a
qualquer dúvida a cerca dos procedimentos, riscos, benefícios e outros,
relacionado com a pesquisa a que serei submetido(a);
2- A liberdade de retirar o meu consentimento a qualquer momento e deixar de
participar do estudo;
3- A segurança de que não serei identificado(a) e de que será mantido o caráter
confidencial da informação relacionada com a minha privacidade;
4- O compromisso de me proporcionar informação atualizada durante o estudo,
ainda que esta possa afetar a minha vontade de continuar participando;
5- Que se existirem gastos adicionais, estes serão absorvidos pelo orçamento da
pesquisa;
Tenho ciência do exposto acima e desejo colaborar com a pesquisa.
Aracaju,_____ de _______________ de __________.
__________________________________________
Assinatura do/a voluntário/a
__________________________________________
Assinatura da coordenadora do projeto