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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Letras Geraldo Alves Lacerda CONS-CIÊNCIAS SEM FRONTEIRAS: da narrativa às operações cognitivas em traumatizados Belo Horizonte 2014

CONS-CIÊNCIAS SEM FRONTEIRAS: da narrativa às operações ... · “faculdades da alma”, uma a uma, e estudá-las, minuciosamente2, até a exaustão. Tal estudo Tal estudo leva

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Programa de Pós-Graduação em Letras

Geraldo Alves Lacerda

CONS-CIÊNCIAS SEM FRONTEIRAS:

da narrativa às operações cognitivas em traumatizados

Belo Horizonte

2014

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Geraldo Alves Lacerda

CONS-CIÊNCIAS SEM FRONTEIRAS:

da narrativa às operações cognitivas em traumatizados

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Letras da Pontifícia Universidade

Católica de Minas Gerais, como requisito parcial

para obtenção do título de Mestre em Linguística e

Língua Portuguesa.

Orientador: José Carlos Cavalheiro da Silveira

Belo Horizonte

2014

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Geraldo Alves Lacerda

CONS-CIÊNCIAS SEM FRONTEIRAS:

da narrativa às operações cognitivas em traumatizados

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Letras da Pontifícia Universidade

Católica de Minas Gerais, como requisito parcial

para obtenção do título de Mestre em Linguística e

Língua Portuguesa.

____________________________________________

Prof. Dr. José Carlos Cavalheiro da Silveira (Orientador) – FM/UFMG

____________________________________________

Profa. Dra. Rosilane Ribeiro da Mota – EBA/UFMG

_____________________________________________

Prof. Dr. Milton do Nascimento – Letras/PUC Minas

Belo Horizonte, 18 de dezembro de 2014.

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FICHA CATALOGRÁFICA

Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Lacerda, Geraldo Alves

L131c Cons-ciências sem fronteiras: da narrativa às operações cognitivas em

traumatizados / Geraldo Alves Lacerda, Belo Horizonte, 2014.

90 f.: il.

Orientador: José Carlos Cavalheiro da Silveira

Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

Programa de Pós-Graduação em Letras.

1. Narrativa (Retórica). 2. Self (Psicologia). 3. Imaginação. 4. Filosofia e

ciência cognitiva. 5. Trauma psíquico. I. Silveira, José Carlos Cavalheiro da. II.

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação

em Letras. III. Título.

CDU: 159.93

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Dedico esta dissertação a minha guerreira mãe,

que sempre foi guerreira antes de ser mãe e

nunca se esqueceu de ser mãe ao ser guerreira.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço à minha família, aos meus irmãos, aos amigos e a quem me acompanhou

com paciência e motivação.

Agradeço aos meus professores que me ajudaram e iluminaram meu caminho dentro

dessa floresta escura da linguagem. Em especial, agradeço ao José Carlos Cavalheiro da

Silveira (meu orientador), ao Milton do Nascimento (pela disponibilidade em compartilhar

seu cérebro em banquete), ao Marco Antônio de Oliveira (pelo intenso saber), ao Hugo Mari

(pela mediação nas discussões), à Maria Angela Paulino Teixeira Lopes (pela gentileza), à

Juliana Alves Assis (pelo rigor profissional), à Josiane Andrade Militão (por ser desafiadora),

à Sandra Maria Silva Cavalcante (pelo seu jeito doce e professoral), ao João Henrique Rettore

Totaro (pelas gentilezas), à Arabie Bezri Hermont (pela produtividade), à Márcia Marques de

Morais (pelas contribuições ao coordenar essa turma toda).

Agradeço aos meus colegas de jornada pelo companheirismo e por compartilhar os

sofrimentos e alegrias pelos quais passamos.

Agradeço à PUC pelo acolhimento e pela existência de tamanho espaço de construção

do saber. Agradeço aos funcionários da secretaria (Rosária, Giovani e Berenice).

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Para que a uva

se transmute em vinho,

precisa ser pisada, amassada e deixada

de lado.

Fiquemos com a embriaguez do vinho!

(Autoria própria)

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RESUMO

Este trabalho parte do tema geral da formação do conhecimento humano que é observado, de

maneira metonímica, nas significações emergentes do corpo, a fim de alcançar as operações

cognitivas subjacentes a tais significações. Para tanto, consideramos como nosso objeto de

análise algumas emergências, tais como comportamentos, enunciados, emoções e a

psicofisiologia de sujeitos que experienciaram eventos traumatizantes. Isso nos possibilitou

categorizar tais sujeitos traumatizados em dois grupos: hipo e hiper-responsivos. Todas essas

emergências foram conceituadas, de forma paradigmática, como narrações de um sistema

corpóreo que se atualiza ao seu próprio ambiente, ao significar, em função da interação de

suas experiências com seus potenciais inatos. Tais narrações deste órgão que produz

linguagem, o corpo, tiveram discretizadas algumas operações cognitivas, a saber, recursão,

imaginação, eventivação, narração e memoração. Esta discretização tem a finalidade de

entender a construção dinâmica do self traumatizado, que se institui como um sistema

complexo recorrente e recursivamente atualizado, de forma imaginativa, como “Estou em

perigo”. Como conclusão, foi possível integrar em sistemas complexos ramificados em redes,

que interconectam categorias, campos conceituais e processos de análise, o teor

transdisciplinar do conhecimento que recusa fronteiras delineadas, a fim de promover a

construção de uma nova epistemologia que não responde mais por disciplinas, mas por uma

centralidade que coloca o corpo em sua dimensão mais plural, fundador de todas as formas do

conhecimento humano.

Palavras-chave: Narrativa. Evento. Self. Imaginação. Recursão.

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ABSTRACT

This work starts the general theme of the formation of human knowledge, which is observed,

in a metonymic way, in emerging meanings of the body, in order to achieve the cognitive

operations underlying such meanings. Therefore, we consider as our object of analysis

emergencies, such as behaviors, statements, emotions and psychophysiology of subjects who

experienced traumatizing events. This allowed us to categorize these traumatized subjects

into two groups: hypo- and hyper-responsive. All these emergencies were conceptualized, in a

paradigmatic way, as narrations of a bodily system that updates itself to the environment that

surrounds it, when means, in function of interaction of its experiences with its innate

potentials. Such narrations of this organ that produces language, the body, had discretized

some cognitive operations, namely, recursion, imagination, eventivation, narration and

memoration. This discretization aims to understand the dynamic construction of the

traumatized self, which establishes oneself as a complex system recurrently and recursively

updated, in a imaginative way, as "I'm in danger". In conclusion, it was possible to integrate

in complex systems branched in networks, that interconnect categories, conceptual fields and

analysis processes, the transdisciplinary content of knowledge which refuse delineated

borders, in order to promote the construction of a new epistemology that no longer responds

to disciplines, but to a centrality that puts the body in its most plural dimension, founding of

all forms of human knowledge.

Keywords: Narrative. Event. Self. Imagination. Recursion.

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LISTA DE QUADROS

QUADRO 1 - Exemplos de avaliações idiossincráticas e negativas levando ao julgamento de

ameaça atual em TEPT persistente. .......................................................................................... 24

QUADRO 2 - Exemplos de avaliações com estratégias cognitivas e comportamentais

disfuncionais associadas. .......................................................................................................... 25

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LISTA DE SIGLAS

DSM - Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders

EBA - Escola de Belas Artes

EMDR - Eye Movement Desensitization Reprocessing

FLA - Faculdade da Linguagem no Sentido Amplo

FLE - Faculdade de Linguagem no Sentido Estreito

FM - Faculdade de Medicina

GU - Gramática Universal

PUC - Pontifícia Universidade Católica

TEPT - Transtorno de Estresse Pós-Traumático

UFMG - Universidade Federal de Minas Gerais

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 21 1.1 Problema ................................................................................................................... 22 1.2 Formulação do objeto de estudo ............................................................................. 23 1.3 Corpus ........................................................................................................................ 23

1.4 Objetivos .................................................................................................................... 26 1.5 Justificativa ............................................................................................................... 27 1.6 Organização da dissertação ..................................................................................... 27

2 MÉTODO E METODOLOGIA ..................................................................................... 29

3 REFERENCIAL TEÓRICO .......................................................................................... 30

3.1 Algumas considerações acerca do modelo médico do trauma .............................. 31 3.2 O órgão da linguagem .............................................................................................. 36 3.3 Recursão .................................................................................................................... 41 3.4 Definição de narrativa .............................................................................................. 42

3.5 Definição de evento ................................................................................................... 45 3.6 Imaginação ................................................................................................................ 46

3.6.1 Pretence ............................................................................................................... 48

3.6.2 Predição .............................................................................................................. 50

3.6.3 Imagens mentais ................................................................................................. 52 3.6.4 Integração conceitual de duplo escopo .............................................................. 54

3.7 Memoração e self ...................................................................................................... 55

4 PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE .............................................................................. 58 4.1 Agrupamentos das narrativas ................................................................................. 58 4.2 Categorização analítica ............................................................................................ 59

4.2.1 Hiporresponsivos ................................................................................................ 60

4.2.2 Hiper-responsivos ............................................................................................... 68 4.2.3 Análise por agrupamento ................................................................................... 73

4.3 Análise global ............................................................................................................ 77

5 DISCUSSÃO .................................................................................................................... 79

6 CONCLUSÃO .................................................................................................................. 80

REFERÊNCIAS.................................................................................................................. 82

ANEXOS.............................................................................................................................. 86

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1 INTRODUÇÃO1

A natureza do conhecimento humano é tema de várias publicações na Filosofia, nas

Ciências Cognitivas e na Linguística Cognitiva. Pensar como nós conhecemos o mundo e a

nós mesmos é uma tarefa árdua e desafiante, pois os processos pelos quais o conhecimento é

formado ainda não foram totalmente desvendados. O que se tem feito em relação ao modo de

se pesquisar o que promove nosso conhecimento de mundo é separar o que já foi chamado de

“faculdades da alma”, uma a uma, e estudá-las, minuciosamente2, até a exaustão. Tal estudo

leva a uma mudança de patamar do conhecimento acerca de cada uma das faculdades que se

estuda e, assim, sucessivamente, pode ser feito com todas as faculdades da alma. Uma

possível crítica a esse tipo de estudo é que ele leva a uma compreensão de apenas uma parcela

do que seria o conhecimento humano. O contrário disso seria um estudo integrativo do

fenômeno do conhecer. O que se percebe é que um estudo holístico do humano como

conhecedor é bastante complicado de ser realizado por envolver uma quantidade de pesquisa e

dedicação muito maiores. Além disso, um estudo desse tipo é de difícil realização, devido à

indisponibilidade de métodos de mensuração adequados para ele e a necessidade de quebras

de paradigmas. Quando tentamos ajuntar todo o conhecimento que se tem de cada uma de

nossas operações cognitivas, criamos um Frankenstein de “faculdades sem alma”. Parece-nos

que um entendimento de como conhecemos, abordado de uma forma integrativa, assemelha-

se a uma epopeia ainda não escrita.

Visto dessa maneira, podemos nos aventurar a (d)escrever uma jornada épica na qual

nos colocamos diante do mar revolto do conhecimento humano tomado em sua representação,

isto é, podemos estudar como as pessoas representam seu conhecimento. Representar aqui é

utilizado no sentido de que as pessoas atuam no mundo de uma determinada forma em relação

ao conhecimento, consciente e inconsciente, que elas têm do mundo e delas mesmas nesse

mundo. Portanto, a forma como estudaremos o conhecimento humano aproxima-se daquilo

que os atores fazem no palco da vida e, consequentemente, afasta-se de uma representação

interna do mundo externo. Podemos entender essas representações como emergências desse

1 Caro leitor, na extensão de todo este trabalho você encontrará palavras não registradas no vocabulário oficial da

Língua Portuguesa – VOLP (ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS, 2014). O emprego de tais palavras, não

oficiais, justifica-se ora pela especificidade do tema aqui abordado, ora pela insuficiência de termos na Língua

Portuguesa para a tradução de termos técnicos e científicos em Língua Inglesa. Não destacaremos tais palavras

na extensão do texto, devido ao volume de utilização. 2 Há palavras como esta que foram adverbializadas a fim de dar ênfase à ideia a qual ela se liga. Temos

consciência de que palavra como, minuciosamente, metonimicamente, paradigmaticamente, imaginativamente,

etc., não estão registradas no vocabulário oficial da Língua Portuguesa. No entanto, pedimos licença ao leitor

para o uso das mesmas.

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conhecimento, assim, elas são, portanto, formas indiretas de se ter acesso ao conhecimento de

uma dada pessoa. Nossas atuações no mundo dizem respeito ao nosso conhecimento de

mundo.

Neste trabalho, o conhecimento que nos interessa, isto é, as representações que dizem

respeito ao modo do conhecer humano que nos interessam, são aquelas emergências

encontradas em sujeitos que passaram por algum trauma de vida suficientemente impactante

para caracterizá-los como traumatizados. O que entendemos por emergência, neste texto, é

justamente aquilo que o sujeito manifesta em termos de comportamentos [automáticos-

reflexivos ou conscientemente intencionados], enunciados, emoções, alterações

psicofisiológicas e sentimentos [parte consciente da emoção].

Para tal empreendimento, elegeremos narrativas (TALMY, 2000) de nossos sujeitos

com trauma acerca do evento (TALMY, 2000) traumatizante. Tais narrativas são aspectos da

língua-E (HAUSER; CHOMSKY; FITCH, 2002) que nos possibilitarão entender a

maquinaria cognitiva envolvida em tais emergências. Neste texto, especificamente,

trabalharemos com algumas operações cognitivas, a saber: pensamento imaginativo (ROTH,

2007), recursão (CORBALLIS, 2014), memoração e self (BEIKE; LAMPINEN; BEHREND,

2004). No que tange à linguagem, nós a entenderemos como um órgão (ANDERSON;

LIGHTFOOT, 2004), o qual deve ter suas propriedades funcionais exploradas.

Dito isso, faz-se necessário que expliquemos a que, exatamente, refere-se esta

dissertação. A fim de sanar as dúvidas que o leitor possa ter neste momento, passemos às

próximas seções de nossa introdução.

1.1 Problema

Pessoas que vivenciaram um evento traumatizante podem ou não evoluir para um

estado em que o trauma, recorrentemente, se constitui em um objeto da consciência e das

formas de atuação no mundo dessas pessoas, ou melhor, das emergências dessas pessoas. O

que faz com que isso aconteça, ou não, é o tema de várias pesquisas. No entanto, tais

pesquisas ainda não elaboraram uma resposta suficientemente convincente para explicar

porque pessoas diferentes evoluem de formas díspares diante de um evento traumatizante.

Esse parece ser um problema que exige uma resposta que leve em conta os diversos fatores

envolvidos no entendimento do conhecimento humano.

De toda forma, nosso problema não diz respeito às pessoas que evoluem

satisfatoriamente após um evento traumatizante e sim àquelas pessoas que evoluem com

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recorrências mnêmicas intrusivas e prejuízos funcionais decorrentes daquele evento. Assim,

buscaremos responder à seguinte pergunta: por meio da identificação e análise de objetos

trauma-relacionados recorrentemente emergentes [na [da]consciência]3 de sujeitos

traumatizados, quais são os padrões4[cognitivos] encontrados nesses sujeitos, que os

caracterizam como traumatizados? Após respondermos essa questão, poderíamos afunilar

nossas dúvidas em outra pergunta: o que subjaz esses padrões [cognitivos]? Ou melhor, quais

operações cognitivas estão envolvidas na emergência dos padrões encontrados na primeira

pergunta?

1.2 Formulação do objeto de estudo

Como pôde ser notado nas perguntas referentes ao nosso problema (seção 1.1), nosso

objeto de estudo se pauta exatamente, primeiro, pelas emergências [na [da] consciência] de

sujeitos traumatizados que são relacionadas ao evento traumatizante e, segundo, por meio da

descrição e análise dessas emergências, pretendemos identificar o que subjaz tais padrões

cognitivos adotados por esses sujeitos. Como não temos meios de acessar diretamente as

funções cognitivas e sua atuação, iremos inferir tais funções de objetos que se apresentam à

consciência e são verbalmente enunciados como narrativas desses sujeitos traumatizados,

assim como as manifestações comportamentais e psicofisiológicas dispostas na literatura,

quando se fizer cabível.

1.3 Corpus

Nosso corpus constitui-se de dois Quadros (1 e 2) de enunciados coletados em sujeitos

traumatizados. Tal seleção foi realizada por Anke Ehlers e David Clark (2000). Nós

pesquisamos sobre o assunto trauma ou Transtorno de Estresse Pós-traumático em várias

fontes (ALEXANDROV; FEDOSEEV, 2012; BECK; SLOAN, 2012; FOREMAN; FULLER,

2013; SHIROMANI; KEANE; LeDOUX, 2009) e, com exceção do artigo escolhido por nós,

não encontramos relatos na forma de enunciados. Todas as demais fontes, ou têm o mesmo

3 Chamamos a atenção para o conteúdo desse colchete, pois as emergências não são somente no âmbito

consciente. Elas são também de âmbito emocional, comportamental e por outras ordens que não passaram por

processos de reflexão consciente. De toda forma, nossa análise visa às narrações, sendo assim uma análise de

emergências. Citaremos, em determinado momento, fenômenos não conscientes, tais como os psicofisiológicos e

os comportamentos automatizados de sobressalto ou reflexos. 4 Padrões têm uma conotação de fenômenos recorrentemente emergentes, tais como formas de pensamento,

emoções mais frequentes, narrativas recorrentemente presentes, etc. Cada padrão ou um conjunto de padrões

podem ser emergências de uma dada operação cognitiva ou um conjunto delas.

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propósito de descrição do fenômeno em termos categoriais, ou até mesmo não descrevem

narrativas de sujeitos traumatizados. Vale ressaltar que Wilson e Lindy (2013) descrevem, de

maneira muito particular, o tema metáforas do trauma. No entanto, tal referência poderá nos

ser útil em outro trabalho, mas não agora. Logo, tomaremos os Quadros a seguir como nosso

corpus, pois eles são suficientes para nosso propósito.

Cada um dos enunciados aqui enumerados será abordado como fazendo parte de uma

expressão metonímica que representa o todo de um corpo que narra. Sendo assim, nós

chamaremos tais enunciados de narrativas, pois para nós, a parte (metonímia) representa o

todo (narrativa) sem deixar de ser parte desse todo.

Assim considerado, podemos notar, no Quadro 1, algumas narrativas de avaliações

negativas agrupadas pelos autores do artigo (EHLERS; CLARK, 2000) e enumeradas por nós

para facilitar a análise.

Quadro 1 - Exemplos de avaliações idiossincráticas e negativas levando ao julgamento

de ameaça atual em trauma persistente.5

O QUE É AVALIADO? AVALIAÇÃO NEGATIVA

Circunstância em que o trauma aconteceu 1 “Nenhum lugar é seguro.”

2 “O próximo desastre irá irromper logo.”

O Trauma aconteceu comigo 3 “Eu atraio desastres.”

4 “Os outros podem ver que eu sou uma vítima.”

Comportamento/emoção durante o trauma 5 “Eu desejo que coisas ruins aconteçam comigo.”

6 “Eu não posso lidar com estresse.”

Sintomas iniciais do TEPT

Irritabilidade, explosão de raiva

7 “Minha personalidade tem mudado pra pior.”

8 “Meu casamento irá fragmentar.”

9 “Eu não posso confiar em mim mesmo com relação às

minhas próprias crianças.”

Embotamento emocional 10 “Eu estou morto por dentro.”

11 “Eu nunca serei capaz de me relacionar com as pessoas

novamente.”

Flashbacks, lembranças intrusivas e

pesadelos

12 “Eu estou ficando louco.”

13 “Eu nunca vou superar isso.”

Dificuldade de concentração 14 “Meu cérebro tem estado danificado.”

15 “Eu irei perder meu emprego.”

Reações de outras pessoas depois do trauma

Respostas positivas

16 “Eles pensam que eu estou fraco para lidar comigo

mesmo.”

17 “Eu sou incapaz de me sentir próximo de alguém.”

Respostas negativas 18 “Ninguém existe para mim.”

19 “Eu não posso confiar em outras pessoas.”

Outras consequências do trauma

Consequências físicas

20 “Meu corpo está arruinado.”

21 “Eu não irei nunca ser hábil para lidar com a vida normal

novamente.”

Perda de emprego, dinheiro, etc. 22 “Eu irei perder minhas crianças.”

23 “Eu irei ficar sem casa.” Fonte: Adaptado de Ehlers; Clark, 2000.

5Tradução nossa do Anexo B adaptado.

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25

No Quadro 2 são citadas as avaliações que Ehlers e Clark (2000) entendem estarem

promovendo a emergência de estratégias, comportamentos e cognições disfuncionais. Os

autores escolhem o termo disfuncional para tais estratégias por elas produzirem mal-estar,

adoecimento e manutenção do transtorno. Tais estratégias disfuncionais podem ser

consideradas como emergências comportamentais e cognitivas que sustentam os sintomas.

Quadro 2 - Exemplos de avaliações com estratégias cognitivas e comportamentais

disfuncionais associadas.6

(continua) AVALIÇÃO ESTRATÉGIA DISFUNCIONAL

24 “Se eu pensar sobre o trauma...

...eu irei enlouquecer.

...eu irei desmoronar.

...eu irei perder o controle e me ferir.

...eu terei um ataque do coração.

...eu irei danificar seriamente minha saúde.”

Tentar de forma intensa não pensar sobre o trauma; manter

a mente ocupada o tempo todo; controlar os sentimentos;

beber álcool e usar drogas.

25 “Se eu não controlar meus sentimentos

firmemente...

...eu não serei hábil para trabalhar e perderei

meu emprego.

...eu irei perder a paciência e ofenderei

pessoas.”

Entorpecer emoções; evitar tudo que possa causar

sentimentos negativos ou positivos.

26 “Se eu não apurar como esse evento poderia

ter sido prevenido...

…alguma coisa similar irá acontecer

novamente.”

Ruminar sobre como o evento poderia ter sido prevenido.

27 “Se eu não encontrar um jeito de punir o

assaltante, ele terá vencido e eu não serei um

homem apropriado por mais tempo.

Ruminar sobre como se vingar de assaltantes.

28 Se eu for ao local do evento...;

29 Se eu usar as mesmas roupas novamente...

...eu irei ter outro acidente.

...eu irei ter um colapso nervoso.”

Evitar o local do evento.

Evitar usar roupas similares.

30 “Se eu não tomar precauções extras...

...eu irei ser atacado novamente.”

Carregar arma; vigilância para pessoas perigosas; evitar

multidões; ter certeza de estar próximo à saída.

31 “Se eu não checar os espelhos retrovisores...

...alguma coisa irá dirigir-se para o meu carro

novamente.”

Manter-se checando os espelhos.

32 “Se eu fizer planos (tais como para um

feriado) ...

...a próxima coisa terrível vai acontecer.”

Não fazer qualquer plano para o futuro.

33 “Se eu ver meus amigos...

...eles irão me perguntar sobre o trauma e eles

irão pensar que eu sou um patético, porque eu

ainda estou tão desconcertado.”

Evitar ver amigos.

34 “Se eu fizer as coisas que costumava fazer

para me divertir...

...eu irei ser punido novamente.

Desistir de atividades prazerosas.

6Tradução nossa do Anexo C adaptado.

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(conclusão) ...eu irei ser lembrado do trauma e não irei ser

hábil para enfrentar.

...eu serei dominado pela emoção.”

35 “Se eu mostrar meu rosto... pessoas irão

ficar aborrecidas por causa de minhas

cicatrizes.”

Evitar outras pessoas; cobrir a face com as mãos;

maquiagem pesada; olhar para baixo.

36 “Se eu for dormir...

...eu irei ter pesadelos.

...eu não irei notar os invasores.”

Ficar de pé até muito tarde.

37 “Se eu tiver mais estresse...

...eu irei ter um ataque do coração.

...eu irei ter um colapso nervoso.”

Evitar qualquer coisa que possa ser estressante.

Fonte: Adaptado de Ehlers; Clark, 2000.

1.4 Objetivos

Algumas das pessoas que, após um trauma, apresentam idiossincrasias em sua

significação de mundo que as tornam disfuncionais em campos de atuação como trabalho,

estudo, produção intelectual, relações afetivas e familiares, etc., podem ser consideradas como

traumatizadas. Podemos resumir os achados idiossincráticos, limitantes, dessas pessoas como

compondo o contexto da frase “Estou em perigo!”, pois os padrões comportamentais,

cognitivos e emocionais são compatíveis com uma atuação diante de uma situação de risco

iminente à vida da pessoa, nesse caso, traumatizada. No entanto, essa(s) situação(ões) de risco

iminente à vida ocorreu(eram) apenas em algum(ns) momento(s) do passado, mas no

momento da enunciação não é percebido um risco de fato. Daí, infere-se que existe algo que

produz, consciente ou inconscientemente, uma atualização do evento traumatizante do

passado, no presente. Esse algo pode compor o que anteriormente chamamos de “faculdades

da alma”, ou seja, nossas capacidades ou poderes ou funções ou operações cognitivas que

dirigem nossos estados mentais e, melhor dizendo, corporais. No caso dos sujeitos

traumatizados, tais operações cognitivas estão diretamente atualizando o trauma do passado

no presente.

Como pôde ser notado na seção 1.2, nosso objeto de estudo se pauta, em primeiro

lugar, pelas emergências em sujeitos traumatizados e, em segundo lugar, pelas operações

cognitivas que subjazem essas emergências. Sendo assim, nosso objetivo central é elaborar

uma leitura daquilo que subjaz tais emergências em termos de funções cognitivas nos [dos]

sujeitos traumatizados, utilizando alguns pressupostos teóricos da Linguística Cognitiva, a

qual é tomada como ciência integrativa que rompe barreiras disciplinares e coloca o corpo

como fundador de todas as formas do conhecimento humano. Tentaremos explicar que a

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27

recursão e o construto imaginação estão intimamente relacionados ao promover tais

emergências.

1.5 Justificativa

Sujeitos traumatizados são conhecidos nos meios médicos como portadores do

Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) segundo critérios classificatórios

estabelecidos pela American Psychiatric Association (APA, 2002), instituição que

regulamenta a redação do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM), o

qual se caracteriza por uma abordagem puramente descritiva, não baseada em inferências

teóricas, mas com base em critérios operacionais com vistas ao diagnóstico multiaxial

categorial. Cada categoria de transtorno deve ser qualitativamente diferente das outras. É

importante ressaltar que existem muitas diferenças entre diagnosticar e reduzir uma pessoa a

um rótulo. O diagnóstico é uma necessidade prática que visa facilitar a comunicação entre os

profissionais da área médica e proporcionar uma possibilidade de previsões prognósticas,

além de favorecer as investigações científicas e fundamentar medidas terapêuticas e

preventivas (CHENIAUX, 2008).

Com o propósito de ampliar a abordagem dos manuais classificatórios médicos, este

trabalho se justifica tendo em vista que os manuais médicos de critérios diagnósticos operam

com apenas um método de análise, dito categorial, deixando de lado várias outras formas de

abordar um mesmo fenômeno. Logo, é importante que surjam novas e inovadoras formas de

se ler padrões psicopatológicos emergentes de sujeitos traumatizados, assim como de outros

quadros ditos como transtornos. A abertura de um leque de possibilidades de análise do

fenômeno do trauma e sua mais ampla compreensão, na perspectiva de como o homem

conhece, é nossa principal justificativa para a condução e elaboração deste trabalho, pois

formas menos estanques e mais integrativas de análise de emergências fenomenológicas são

mais bem vindas ao paradigma das Ciências Cognitivas, principalmente, à Linguística

Cognitiva.

1.6 Organização da dissertação

Esta seção é meramente formal e pode ser deixada a parte pelo leitor apressado. Mas,

para aqueles de leitura minuciosa, ela servirá para organizar as ideias em relação à

distribuição do conteúdo deste trabalho, o qual sucederá da maneira descrita a seguir.

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No capítulo 2 abordamos, de forma sucinta, o referencial teórico que compõe nossa

revisão bibliográfica. Esse capítulo serve apenas para orientar o leitor em relação ao método e

metodologia aplicados.

Já no capítulo 3 apresentamos todo o referencial teórico abordado para organizar

nossos argumentos em relação ao que foi exposto do início ao final deste trabalho. Iniciamos

com alguns achados do modelo médico que nos orientam, psicofisiologicamente falando, a

dividir os sujeitos traumatizados em dois grupos: aqueles hiper-responsivos e aqueles

hiporresponsivos. Essa divisão é mais bem abordada na seção 3.1. Já a seção 3.2 apresenta

nossa visão de linguagem como órgão. A seção 3.3 organiza nosso conceito de recursão, o

qual é aplicado na seção precedente e também em algumas posteriores. A seção 3.4 define

como vemos nosso corpus, ou seja, como metonímias de narrações. A seção 3.5 define

evento como eventivação. A seção 3.6 nos dá fundamentos para defendermos nossa

conclusão, trazendo dados da literatura a respeito do construto imaginação e suas derivações,

pretence, predição, imagens mentais e integração conceitual. A seção 3.7 ajuda-nos a entender

a memoração na emergência do self.

No capítulo 4, nós realizamos a análise de nosso corpus em função do nosso

referencial teórico. O capítulo 5 apresenta nossa discussão e o capítulo 6 nossa conclusão de

que o pensamento imaginativo, necessariamente, recursivo é o ponto chave das emergências

em sujeitos traumatizados.

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2 MÉTODO E METODOLOGIA

O método adotado foi a revisão crítica da bibliográfica da literatura científica

pertinente ao nosso objeto de pesquisa. Portanto, revisamos brevemente o fenômeno do

trauma na perspectiva médico-categorial, o construto teórico imaginação (ROTH, 2007), os

conceitos de narrativa e evento (TALMY, 2000) com os quais trabalhamos, o conceito de

linguagem como órgão (ANDERSON; LIGHTFOOT, 2004), o conceito de recursão

(CORBALLIS, 2014) e a memoração no self (BEIKE; LAMPINEN; BEHREND, 2004).

A metodologia adotada foi a análise descritiva e exploratória, pois o que deu suporte

aos nossos argumentos foram eventos linguísticos, descritos exploratoriamente e analisados,

tendo como base as prerrogativas da Linguística Cognitiva.

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3 REFERENCIAL TEÓRICO

Nosso referencial teórico gira em torno de uma tentativa de investigação do fenômeno

do trauma pelo viés da Linguística Cognitiva como forma de ciência integrativa, a fim de que

possamos entender melhor como sujeitos traumatizados significam seu conhecimento de

mundo. A pretensão à integração vem da necessidade de entender o homem de forma mais

abrangente como propomos na introdução. Para atingirmos tal pretensão, tomamos o homem

como um sistema dinâmico. Uma definição de sistema dinâmico utilizada na física e adaptada

ao nosso propósito, neste trabalho, é a de Monteiro (2006, p. 41), que entende o primeiro

termo, sistema, como sendo “um conjunto de objetos agrupados por alguma interação ou

interdependência, de modo que existam relações de causa e efeitos nos fenômenos que

ocorrem com os elementos desse conjunto”. Já o segundo termo, dinâmico, diz respeito à

variação temporal de algumas grandezas que caracterizam seus objetos constituintes.

Monteiro (2006, p. 50) afirma que em um “sistema dinâmico (como memória) a resposta num

dado instante depende dos valores das entradas passadas”. Tal afirmação nos permite

acrescentar que entendemos a cognição humana como um sistema dinâmico potencialmente

recursivo que utiliza seu próprio output como input.

O Springer Complexity7, um programa transdisciplinar de estudos em complexidade,

define sistemas complexos como sistemas que compreendem muitas partes em interação,

tendo a capacidade de gerar uma nova qualidade de comportamento coletivo macroscópico,

cujas manifestações são a formação espontânea de estruturas temporais, espaciais ou

funcionais distintas (SPRINGER COMPLEXITY, 2014). Em obra publicada por esse

programa, encontramos em um dos artigos a defesa da aplicabilidade da teoria dos sistemas

dinâmicos complexos à cognição humana. Em tal artigo, os autores entendem que a teoria dos

sistemas complexos dinâmicos provê os meios formais para analisar como o acoplamento

entre corpo, cérebro e meio ambiente leva aos padrões comportamentais que se sobrepõem ao

longo do tempo (HASELAGER; BONGER; VAN-ROOIJ, 2003). Isso somado à definição de

Monteiro (2006), esclarecemos mais um pouco o raciocínio de que a cognição humana é um

sistema dinâmico. Agora podemos fazer outros esclarecimentos que serão apresentados nas

seções a seguir, tal como aquilo que entendemos como importante nos modelos médicos de

7 Springer Complexity é um programa interdisciplinar que publica o melhor em pesquisa e ensino de nível

acadêmico acerca de ambos os aspectos, fundamentos e aplicação, dos sistemas complexos – atravessando todas

as disciplinas tradicionais das ciências naturais e da vida, engenharia, economia, medicina, neurociência,

ciências social e computacional.

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abordagem do fenômeno do trauma.

3.1 Algumas considerações acerca do modelo médico do trauma

Ao longo de toda a evolução da espécie humana, a seleção natural e outros fatores

evolutivos vieram a selecionar características promotoras da sobrevivência e adaptatividade

(SYMONS, 1992) frente a eventos traumatizantes, tais como catástrofes naturais, guerras,

estupros, etc. Nossos ancestrais, em interação com o ambiente, tiveram selecionados tais

mecanismos de sobrevivência, adaptatividade e superação que levaram à manutenção da

espécie. Mas alguns desses mecanismos de sobrevivência podem se mostrar desregulados, ou

para mais ou para menos, resultando em alterações cognitivas e comportamentais

disfuncionais em algumas pessoas expostas a eventos traumatizantes, os quais ultrapassam os

limiares (PRIGOGINE; STENGERS, 1993)8 da normalidade e resulta em aspectos

caracterizados como “doença”. Em relação ao trauma, muitos teóricos, ao observar essa

desregulação que culminava em disfunções adaptativas, cunharam termos como “trauma

psíquico”, “trauma emocional”, “choque nervoso”, “neurose traumática”, “neurose de

guerra”, etc., na tentativa de descrever esses achados psicofisiológicos e comportamentais das

consequências desses traumas nos sujeitos que os vivenciaram. Essas descrições foram

acumuladas e validadas como um construto categórico, o qual foi reconhecido como

transtorno pelo DSM III9 apenas em 1980 (CAMINHA, 2004; SADOCK; SADOCK, 2007;

VENTURA, 2011). A categorização do trauma como um transtorno tornou possível a

construção de uma narrativa diagnóstica nos dizeres médicos. Essa narrativa pode ser tomada

como a forma que os sujeitos traumatizados conhecem e significam o mundo e eles mesmos.

Tais disfunções adaptativas em uma pessoa que vivenciou um evento traumatizante, só

são utilizadas para categorizar um sujeito como portador de um transtorno, caso estejam

presentes por mais de um mês e sejam desencadeadas por um estressor externo com

sobrecarga suficiente para afetar quaisquer outras pessoas, segundo Sadock e Sadock (2007) e

em consonância com o DSM IV10.

O estressor externo é revivido pela pessoa em sonhos e pensamentos, determinando

8 “A noção de limiar está ligada, antes de mais nada, às noções de qualitativo e de quantitativo. Um limiar é

transposto quando a variação de um fator - variação que até esse momento não tinha produzido qualquer efeito,

ou então tinha produzido um efeito sobre a sua medida – produz repentinamente um efeito global novo e

desmedido. Na linguagem popular abundam os testemunhos que revelam o conhecimento da existência dos

limiares: a palavra a mais, a gota que faz transbordar o copo, o ponto de não retorno.” (PRIGOGINE;

STENGERS, 1993, p. 83) 9 Terceira edição do DSM. 10 Quarta edição do DSM.

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comportamentos evitativos, hipervigilância e alterações cognitivas como má concentração,

além de sintomas de depressão e ansiedade. Sendo assim, o trauma é diagnosticado, após a

exposição a um evento traumatizante, por sintomas da ordem: do reexperimentar do evento

traumatizante; do comportamento evitativo em relação a estímulos associados direta ou

indiretamente ao evento traumatizante; dos sintomas dissociativos; e da disfunção

autonômica. O quadro de critérios diagnósticos proposto pelo DSM IV-TR11 pode ser

consultado no Anexo A. Esse quadro de critérios compõe todas as emergências implicadas no

diagnóstico médico categorial do trauma. Recentemente, o DSM teve sua quinta edição

publicada, levando ao estabelecimento de algumas diferenças nos critérios diagnósticos em

relação à quarta edição. Esse fato não interfere na proposta desta dissertação, pois, como

apresentamos nos objetivos, visamos à descrição do trauma por meio de outra linha teórica,

que se afasta da categorial.

Na medida em que o trauma foi narrado de forma categorial no DSM, pudemos lidar

com tais categorias diagnósticas de modo que permitissem outras inferências classificatórias

estatisticamente validadas, tal como a prevalência do trauma na população mundial a qual está

em torno de 10 a 12% em mulheres e entre 5 a 6% em homens, sendo mais prevalente em

adultos jovens (SADOCK; SADOCK, 2007). Na população norte-americana encontra-se uma

prevalência de trauma na vida de 10,3% em homens e de 18,3% em mulheres (YEHUDA;

DAVIDSON, 2000 apud CAMINHA, 2004). Talvez tais diferenças de prevalência entre os

distintos gêneros, masculino e feminino, estabeleçam-se em decorrência de diferenças

culturais de criação e educação dadas pelos pais às crianças em função do gênero (FIVUSH,

2014). Assim também, os sintomas descritos no Anexo A puderam ter sua duração

mensurada, identificando-se sua permanência de meses a muitos anos. Pôde-se perceber a

ocorrência de flutuação sintomática com piora em momentos de maior estresse de vida e

melhora em momentos mais harmônicos. Da mesma forma que se mensurou que, sem

tratamento, cerca de 30% dos sujeitos se recuperam, 40% mantém sintomatologia leve, 20%

sintomatologia moderada, e 10% não se alteram (SADOCK; SADOCK, 2007). Outro dado

importante é que algumas pessoas tiveram mudança permanente da personalidade, prejuízo

funcional, laboral e da qualidade de vida, além do aumento da taxa de problemas da saúde

física e transtornos médicos (APA, 2008).

Por meio de todos esses dados estatísticos, pudemos perceber que ocorre,

insistentemente, uma atualização do trauma no sujeito traumatizado talvez ao longo de toda

11 Quarta edição revisada do DSM.

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uma vida, tendo em vista que a sintomatologia e o (re)experienciar do evento traumatizante

pode se manter indefinidamente. Sendo assim, a forma usada para conhecer o mundo fica

drasticamente influenciada pelo trauma ocorrido no passado.

Toda essa sintomatologia tem uma explicação ou um modelo neurobiológico. Não é

nosso objetivo fazer tal leitura neurobiológica aprofundada aqui, em virtude das afinidades

teórico-metodológicas. Mas, de toda maneira, relataremos alguns dados na consideração de

padrões comportamentais, cognitivos e emocionais apresentados por tais sujeitos

traumatizados, segundo esse modelo de entendimento do trauma. Nós consideramos que os

seres humanos não se resumem à sua neuroquímica ou aos seus sistemas biológicos.

Acreditamos que esses sistemas fazem parte do sistema maior, influenciando-o e também

sendo influenciado por ele de forma dinâmica e auto-organizadora12 (CAPRA, 1982, 2002;

LARSEN-FREEMAN; CAMERON, 2008). Além disso, o sistema humano está inserido em

outros sistemas: a natureza e a cultura. Então o sistema humano se constitui pelos

microssistemas internos e pelos macrossistemas externos, não podendo ser resumido à sua

biologia, mas podendo ser definido, em partes, metonimicamente, por meio dela e da cultura

circunjacente. Cada um desses sistemas tem seus limiares e cada um deles constrange13 um ao

outro (PRIGOGINE; STENGERS, 1993). Tanto a biologia quanto a cultura influenciam

grandemente as formas que adotamos para conhecer o mundo, pois estes dois âmbitos do

sistema, dinamicamente, influenciam a auto-organização do sistema humano, sem, no entanto,

determina-la.

Um aspecto importante a se considerar é que a neurobiologia peculiar desses sujeitos

com trauma resulta em alterações cognitivas importantes no âmbito da memória, tais como

12 “A plasticidade e flexibilidade internas dos sistemas vivos, cujo funcionamento é controlado mais por relações

dinâmicas do que por rígidas estruturas mecânicas, dão origem a numerosas propriedades características que

podem ser vistas, como aspectos diferentes do mesmo princípio dinâmico – o princípio de auto-organização. Um

organismo vivo é um sistema auto-organizador, o que significa que sua ordem em estrutura e função não é

imposta pelo meio ambiente, mas estabelecida pelo próprio sistema. Os sistemas auto-organizadores exibem um

certo grau de autonomia; por exemplo, esses tendem a estabelecer seu tamanho de acordo com princípios

internos de organização, independentemente de influências ambientais. Isso não significa que os sistemas vivos

estejam isolados do seu meio ambiente; pelo contrário, interagem continuamente com ele, mas essa interação não

determina sua organização. Os dois principais fenômenos dinâmicos da auto-organização são a autorenovação –

a capacidade dos sistemas vivos de renovar e reciclar continuamente seus componentes, sem deixar de manter a

integridade de sua estrutura global – e a autotranscendência – a capacidade de se dirigir criativamente para além

das fronteiras físicas e mentais nos processos de aprendizagem, desenvolvimento e evolução.”(CAPRA, 1982, p.

263) 13 Nessa passagem vemos a definição de constrição com que trabalhamos: “Epistemologia, biologia e física

serão, no entanto, suficientes para apresentar as diversas dimensões do problema que aqui tencionamos colocar,

isto é, o da passagem de um conjunto de noções onde a constrição se identifica com limitação do que pode

existir, a outro conjunto onde, pelo contrário, a constrição é algo a partir do que qualquer outra coisa pode

acontecer, e onde determinação é algo a partir do que qualquer outra coisa pode acontecer, e onde determinação

e abertura, longe de se oporem, se reúnem.” (PRIGOGINE; STENGERS, 1993, p. 63)

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memórias do trauma hiperconsolidadas, indeléveis e com recorrência intrusiva interrompendo

o sono e os pensamentos. Essas memórias são evocadas até por estímulos remotamente

ligados ao trauma original. A hiperconsolidação das memórias pode ser explicada, do ponto

de vista neurobiológico, pelo excesso de catecolaminas por ocasião do trauma não refreado

pelos corticosteroides. Outros aspectos são o embotamento afetivo, as intrusões mnêmicas, os

fenômenos dissociativos e os flashbacks que seriam influenciados pelos opioides endógenos

(GRAEFF, 2003).

É percebido que pessoas normais podem responder a eventos traumatizantes, tanto

com reação de “luta ou fuga” quanto com “congelamento” ou dissociação. Orr, Metzger e

Pitman (2002) afirmam que de um quarto a um terço dos sujeitos que apresentam o

diagnóstico de trauma não apresentam reatividade aumentada frente a estímulos associados ao

trauma. Tais autores supõem que os métodos psicofisiológicos atuais podem não ser sensíveis

o bastante ou que esses sujeitos hiporresponsivos podem ter formas de trauma mais brandas,

do ponto de vista psicofisiológico. Sendo assim, é possível dividir sujeitos com trauma, pelo

menos, em dois grupos: aqueles hiper-responsivos (luta ou fuga); e aqueles hiporresponsivos

(congelamento). Esses dois grupos de sujeitos hiper ou hiporresponsivos

psicofisiologicamente falando, em testes laboratoriais, corresponderiam às maneiras deles

atuarem no ambiente. Nos sujeitos hiper-responsivos, alguns dos sintomas do trauma, que são

decorrentes de uma hiperestimulação autonômica, são: irritabilidade, insônia, sobressalto

excessivo; e hipervigilância. Nesse estado, o sujeito pode, diante de estímulos mínimos,

apresentar taquicardia, taquipnéia e tensão muscular, ou mesmo um leve barulho pode causar

sobressalto acentuado (FIGUEIRA; MENDLOWICZ, 2003). O estado de alerta constante

pode levar a prejuízos atencionais, afetando a leitura e os estudos. Este estado de hiper-

responsividade (hiperestimulação e hipervigilância) pode ser definido em termos de arousal

(PFAFF, 200614). Os sujeitos hiporresponsivos são aqueles que apresentam mais sintomas

conversivos, dissociativos e de embotamento afetivo.

Até aqui, nós respondemos a nossa primeira pergunta, a qual nos pedia para, por meio

da identificação e análise de objetos trauma-relacionados recorrentemente emergentes em

sujeitos traumatizados, estabelecer um conjunto de padrões [cognitivos] emergentes desses

sujeitos. Tais padrões podem ser divididos em duas categorias: hiper e hiporresponsivos. Os

padrões mais comumente encontrados nos sujeitos hiper-responsivos, psicofisiologicamente

14 Para mais esclarecimentos, o leitor pode consultar a obra citada, na qual Pfaff descreve o arousal generalizado

que se apresenta nos humanos como: maior alerta a estímulos sensoriais de todos os tipos; uma função motora

mais ativa; e maior reatividade emocional.

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falando, são aqueles de hiperestimulação autonômica, tais como irritabilidade, insônia,

sobressalto excessivo, hipervigilância, taquicardia, taquipnéia e tensão muscular [critério D do

Anexo A]. Outros, ainda, são memórias do trauma hiperconsolidadas, indeléveis e com

recorrência intrusiva interrompendo o sono, os pensamentos e o comportamento [critério B do

Anexo A].

Os padrões de sujeitos hiporresponsivos são, mais comumente, aqueles característicos

de sintomas conversivos, dissociativos, de perda de memória e embotamento afetivo [critério

C do Anexo A].

Em relação aos padrões de objetos trauma-relacionados, da ordem das narrativas

enunciadas por nossos sujeitos, ficaremos com aqueles encontrados nos Quadros 1 e 2 do

nosso corpus, o qual foi apresentado na seção 1.3. Essas não são todas as narrativas possíveis,

mas são um conjunto delas que refletem também os mesmos grupos de padrões dos sujeitos

hiper-responsivos ou hiporresponsivos. Aqui, fazemos apenas uma ressalva: não conhecemos

o padrão global dos produtores de tais narrativas, então nossa classificação das narrativas em

relação a esses dois padrões é puramente especulativa.

Esses dois padrões de atuação (hiper e hiporresponsividade) encontrados nos sujeitos

com trauma podem também influenciar as emergências que dizem respeito a várias outras

funções cognitivas, como, por exemplo, a integração do self, a qual foi demonstrada por

Fivush (2004) em um trabalho com memória autobiográfica declarada e não declarada na

construção do self de mulheres abusadas. Fivush (2004) percebeu que a narrativa de mulheres

com padrões dissociativos e de negação predispunha-se a descrever um autoconceito menos

integrado do que a narrativa de mulheres abusadas que utilizaram de estratégias de

enfrentamento adequadas. O exemplo de Fivush (2004) nos mostra a importância da

identificação e divisão desses padrões de atuação, no caso do trauma, uma vez que a

emergência de um dado padrão cognitivo é resultante de aspectos peculiares das operações a

ele subjacentes.

Sendo assim, nas seções que se seguem, tentaremos, por meio da análise de algumas

operações cognitivas, reunir dados suficientes, a fim de poder responder à nossa segunda

pergunta: o que subjaz aos padrões cognitivo hiper e hiporresponsivos em sujeitos com

trauma?

Para introduzir a seção seguinte, deixamos claro que, para que os sujeitos

traumatizados construíssem suas narrativas, foi necessária uma linguagem. Então, é mister

que definamos com qual conceito de linguagem trabalharemos nesta dissertação. Assim, como

já prenunciado na introdução, a próxima seção será aquela na qual apresentaremos a

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linguagem como um órgão.

3.2 O órgão da linguagem

As línguas podem ser estudadas em função de sua história (Linguística Histórica com

as hipóteses monogênica e poligênica), das relações de umas com as outras, das relações entre

língua e meio (Ecolinguística), das conformações anatômicas possíveis ao se falar (Fonética),

das variações acústicas (Fonologia), dos aspectos perceptuais do discurso, etc. Esses aspectos

superficiais da linguagem podem ser estudados com relativa facilidade de acesso. No entanto,

outro aspecto do estudo da linguagem que é mais peculiar, por assumir um âmbito mais

virtual, é a natureza e a forma do conhecimento linguístico que, de forma ubíqua, está

presente nos seres humanos normais (ANDERSON; LIGHTFOOT, 2004).

Desde o estabelecimento da Linguística como ciência, ela assumiu um carácter

investigativo da língua em seus aspectos históricos e foi grandemente influenciada por

Ferdinand de Saussure (1989). Esse autor se interessou em reorientar o estudo da parole, fala,

para a langue, sistema de signos, que dava emergência às estruturas linguísticas das línguas.

Saussure afirmava que as bases para se construir um sistema linguístico não se encontravam

nos indivíduos e sim primariamente no social, na comunidade discursiva que emprega um

código particular. Mais tardiamente, outros vários linguistas, como Leonard Bloomfield

(1933), adotaram a hipótese behaviorista de investigação da linguagem, a qual usava métodos

empíricos de investigação que desconsideravam a existência da mente (ANDERSON;

LIGHTFOOT, 2004).

O fato de pensar que a mente estava fora do alcance das ciências daquela época, fez

com que o foco de estudo da Linguística fosse as expressões externas da linguagem. Nesse

período, o objeto de investigação não foi mais a Linguística Histórica, e sim os modos

externos de apresentação da linguagem, ou seja, os conjuntos de sons, palavras, sentenças,

etc., mais especificamente a língua-E nos termos de Chomsky (HAUSER; CHOMSKY;

FITCH, 2002). O que se fazia, naquela época de influências behavioristas, era mudar o foco

de estudo devido às limitações de ferramentas, ao invés de desenvolver as ferramentas certas

para alcançar o objeto de estudo desejado. Só nas últimas décadas do século XX, após o

declínio do tal pressuposto behaviorista de que a mente não poderia ser um objeto de estudo

científico, pôde-se chegar a um consenso muito mais amplo sobre a necessidade de entender a

mente em seus próprios termos. Assim, como consenso do resultado de vários campos de

pesquisa na área da linguagem, pensamos que a Linguística também pôde assumir-se

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enquanto um ramo da Ciência Cognitiva a partir do momento em que seu objeto de estudo

passa a ser a língua-I, internal language, que é, necessariamente, um aspecto da estrutura da

mente/cérebro: o órgão da linguagem, definido em algum nível de abstração, o qual deve ser

estudado como tal e cujo estudo pode levar a novos insights sobre a arquitetura da cognição

(ANDERSON; LIGHTFOOT, 2004). Novamente nós escolhemos nos voltar ao tema da

dissertação, o conhecimento humano, nesse caso, o conhecimento linguístico.

Chomsky (1959) foi o primeiro a fazer uma crítica devastadora aos conceitos

skinnerianos de aquisição da linguagem e de aprendizado da segunda língua, questionando

como poderia uma criança aprender tão rapidamente uma língua natural por mecanismos

unicamente skinnerianos. Chomsky mudou o ponto de investigação de “O que as pessoas

fazem ao falar uma língua?” para “Como elas fazem para falar dada língua?”. E assim passou-

se a investigar a estrutura do conhecimento que se tem para falar dada língua, isto é, o órgão

da linguagem como abordado por Anderson e Lightfoot (2004). Chomsky viu a linguagem,

então, como um fato interno dos falantes, uma forma de conhecimento, ou língua-I, em

oposição à sua manifestação externa como enunciados, textos, conjuntos de sentenças,

convenções sociais ou língua-E (ANDERSON; LIGHTFOOT, 2004).

O estudo da língua-E nos permitiu, ao longo dos tempos, entender um conjunto de

elementos observáveis, tais como: os sons e a articulação das palavras por meio da fonologia;

as unidades morfológicas das palavras, frases e sentenças, por meio da fonética e da sintaxe e

do formalismo como um todo; além do entendimento do texto e do hipertexto, etc. Mas,

segundo Anderson e Lightfoot (2004), não existe razão para acreditar que tais elementos

externos sejam objetos de pesquisa bem definidos e coerentes, pois, por exemplo, não existe

nenhum algoritmo geral para caracterizar uma dada língua e não existem razões para esperar

encontra-lo. Dessa forma, linguagem, no sentido da língua-E, não é uma entidade bem

definida, pois ela não existe independente de atos concretos de fala e não há nenhuma razão

para acreditar que o seu estudo irá revelar quaisquer propriedades nesse sentido. Assim, ao

estudo da língua, segue-se que, se quisermos desenvolver uma verdadeira ciência da

linguagem, essa deve ter como objeto de estudo, em vez da língua-E, a noção de língua-I das

gramáticas, as propriedades do órgão da linguagem de uma pessoa (ANDERSON;

LIGHTFOOT, 2004). Faremos dessa maneira em relação aos atos linguageiros15 de nossos

sujeitos, uma vez que utilizaremos as manifestações da linguagem para entendermos os

mecanismos linguísticos que subjazem aos atos linguageiros considerados.

15 “O uso da linguagem enquanto prática social, cultural, pessoal, em uma dada situação” (CHARLOT, 2000, p.

124).

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Em relação ao órgão da linguagem, Anderson e Lightfoot entendem que:

O Órgão da linguagem trata a linguagem humana como a manifestação de uma

faculdade da mente, um órgão mental, cuja natureza é determinada pela biologia

humana. Suas propriedades funcionais devem ser exploradas assim como a

fisiologia explora as propriedades funcionais dos órgãos físicos.16 (ANDERSON E

LIGHTFOOT, 2004, p. I, tradução nossa)

Novamente, enfatizamos o fato de que Noam Chomsky e colegas foram os primeiros a

empenharem-se, justamente, não no entendimento das manifestações externas da linguagem, e

sim no entendimento do que ocorre dentro de um falante, naquilo que está por trás das

manifestações linguísticas habitualmente estudadas. Eles tomaram a Linguística como um

componente do estudo da mente, ou melhor, do estudo de um dos sistemas de conhecimento

humano, o órgão da linguagem, que forma uma importante parte da nossa organização

cognitiva. Para que esse estudo dos processos cognitivos internos (o que eles chamaram de

língua-I) ocorresse, foi e é necessário o desenvolvimento de um nível de abstração

considerável (ANDERSON; LIGHTFOOT, 2004).

A Linguística tomada em seu caráter cognitivo assume que, em vez de ser vista como

um fenômeno externo, como uma coleção de sons, palavras, textos, etc., existentes

independentemente de qualquer sujeito em particular, deve ser vista como uma ciência

interessada na organização interna e na ontogenia do conhecimento linguístico. Dessa forma,

a linguagem como aspecto da cognição humana assume uma propriedade específica da nossa

espécie e, portanto, está enraizada em nossa natureza. Mais especificamente, a linguagem está

enraizada na natureza do nosso conhecimento (ANDERSON; LIGHTFOOT, 2004).

Portanto, o conhecimento humano de língua natural é, em grande parte, uma

capacidade biologicamente determinada e específica da espécie humana que assume um

caminho crescente durante a maturação ontogenética. O órgão da linguagem, assim como o

órgão da visão ou quaisquer outros órgãos do sentido, precisa da experiência, isto é, da

exposição do organismo ao mundo circunjacente para desencadear a organização de

propriedades específicas do sistema envolvido com a linguagem. Nessa visão, o crescimento

da linguagem resulta mais de capacidades inatas específicas do que de bases puramente

indutivas da observação da linguagem ao redor de nós. Isso é sustentado pelas similaridades

entre as diversas línguas no mundo, assim como pela improvável responsabilização do

aprendizado, por si só, no crescimento linguístico (ANDERSON; LIGHTFOOT, 2004). Por

16 The Language Organ treats human language as the manifestation of a faculty of the mind, a mental organ

whose nature is determined by human biology. Its functional properties should be explored just as physiology

explores the functional properties of physical organs.

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meio dessa consideração, de que o conhecimento linguístico iminentemente depende da

experiência, podemos especular se a experiência traumatizante não moldaria esse

conhecimento linguístico a ponto dele se organizar em volta daquele evento.

Em relação à aquisição de uma língua natural, temos duas considerações, a saber, a

especificidade de domínio da faculdade da língua e a especificidade da espécie humana em

adquirir linguagem. A primeira assegura, em vários exemplos, a natureza biológica da

linguagem, enquanto a segunda é vista no fato de que toda criança normal adquire uma língua,

se exposta habitualmente, enquanto outros animais não aprendem sistemas sintáticos, mesmo

se exaustivamente ensinados.

Um fato importante em relação à aquisição da linguagem é que crianças apreendem

infinitamente mais conhecimento do que aquele a que elas são expostas [Problema da pobreza

de estímulo]. Isso significa que existe um sistema produtivo, uma gramática, que engloba

tanto os fatos para os quais as crianças foram expostas, como também permite a produção e

compreensão de uma ampla série de enunciações (ANDERSON; LIGHTFOOT, 2004). Tem

se tentado explicar o problema da pobreza de estímulo através de algumas hipóteses possíveis,

vamos a elas e às suas refutações: i. A criança não generaliza. Essa hipótese afirma que

crianças não produzem formas linguísticas que elas nunca ouviram. Isso pode ser

experimentalmente falseado pelo fato das crianças construírem, amplamente, formas

linguísticas que os adultos não falam; ii. Nós formamos novas sentenças por analogia. Essa

hipótese também pode ser falseada pelo fato de observarmos que algumas analogias são

válidas e outras não, sendo que comumente as crianças não fazem as analogias não válidas;

iii. Crianças são corrigidas pelos adultos quando enunciam formas não válidas. Essa hipótese

exige que os adultos corrijam as crianças insistentemente e que elas aceitem essas correções.

De fato, nenhuma das duas condições são encontradas; iv. O problema da pobreza de estímulo

não existe. Essa hipótese garante que o ambiente é rico o bastante para suprir toda a

diversidade de estímulos necessária para o aprendizado das formas linguísticas faladas pelas

crianças. Isso é um absurdo, pois em dois anos, crianças já usam de todo seu conhecimento

linguístico com perfeição e o ambiente não consegue suprir todo esse conhecimento

linguístico em tão pouco tempo; v. A linguagem é inteiramente determinada pela genética.

Essa hipótese também é absurda, pois ninguém nasce falando, e mais especificamente,

ninguém nasce falando uma dada língua se não for exposto a ela; vi. De fato, a linguagem

emerge através da interação entre nossa herança genética e o ambiente linguístico ao qual a

criança é exposta. Embora não saibamos se a existência de informações independentes da

experiência, que emergem na gramática de crianças, seja o resultado da codificação direta no

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genoma ou se ela resulta da epigenética, propriedade do desenvolvimento do organismo, ela é,

de qualquer forma, inata. É assumido que o genótipo linguístico (Gramática Universal,

doravante GU) seja uniforme em nossa espécie. A GU não é a gramática de uma língua, e sim

o conjunto de princípios pelos quais se pode inferir, na base de dados limitados disponíveis no

ambiente, a capacidade gramatical inteira que constitui o conhecimento linguístico de um

falante maduro (ANDERSON; LIGHTFOOT, 2004). A GU é formada por regras profundas

que se aplicam a todas as línguas. A hipótese (vi), a qual é a mais plausível dentre todas,

também promove sustentação à nossa especulação de que a experiência do evento

traumatizante dá suporte ao conhecimento linguístico de sujeitos traumatizados.

O genótipo está diretamente implicado na aquisição da gramática por quaisquer

crianças. Esse genótipo gera estruturas cerebrais finitas que produzem uma infinidade de

sentenças possíveis, ou seja, gramáticas finitas são constituídas num conjunto de operações

que produzem variações infinitas nas expressões emergentes (ANDERSON; LIGHTFOOT,

2004). O que faz com que a gramática produza infinitas variações é o fato de ela ser

organizada pela recursão (HAUSER; FITCH; CHOMSKY, 2002).

A recursão provê a capacidade de gerar uma série infinita de expressões de um

conjunto finito de elementos. Hauser, Fitch e Chomsky (2002) afirmaram isso num artigo que

aborda o problema da linguagem levando em consideração conhecimentos da Linguística, da

Biologia Evolutiva e da Psicologia Evolutiva. Em tal artigo, os autores defendem que existe

uma faculdade da linguagem no sentido amplo (FLA) e outra no sentido estreito (FLE). A

FLA inclui o sistema sensório-motor, o sistema intencional-conceptual e o mecanismo

computacional da recursão. A FLE inclui apenas a recursão e é o componente presente apenas

na comunicação desempenhada por humanos. Para eles, a faculdade humana da linguagem

está organizada de forma hierárquica, gerativa, recursiva, e virtualmente ilimitada em seu

âmbito de expressão. Os autores também afirmam que a recursão não é exclusiva da

linguagem, ao contrário, está presente em outras funções, tais como navegação, números e

relações sociais. Para nossa pesquisa, as considerações desses autores são importantes no

sentido de indicar que a recursão na linguagem é uma capacidade exclusivamente humana e é

ela que possibilita as infinitas combinações das expressões linguísticas na língua-E.

Já que tocamos tanto no assunto da recursão organizando a linguagem e sua expressão,

voltemo-nos ao tema com maior afinco.

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3.3 Recursão

Para explorar o assunto recursão, preferimos a obra de Corballis (2014). Em tal obra, o

autor entende que vai além da visão chomskyana de que a linguagem é recursiva, ao dizer que

o pensamento é recursivo. Ele aponta dois tipos de pensamentos que exemplificam a presença

da recursão, a saber, a viagem no tempo mental e a teoria da mente. Para ele, nossa

capacidade de inserir os pensamentos dos outros nos nossos próprios, inserir experiências e

memórias passadas ou futuras em atuais, o que ele chama de viagem no tempo mental, são

provas explícitas da recursão no pensamento. A viagem no tempo mental é o que ele

denomina de “a habilidade de evocar episódios passados à mente e também para imaginar

episódios futuros”17 (CORBALLIS, 2014, p. XI, tradução nossa).

O segundo aspecto do pensamento abordado por Corballis (2014, p. XI, tradução

nossa) é a teoria da mente a qual é definida por ele como “a habilidade para entender o que

está indo na mente dos outros”18. Para o autor, esse aspecto é igualmente recursivo, pois

podemos não só pensar no que o outro está pensando, mas também, pensar no que o outro

pensa que eu mesmo estou pensando e assim por diante.

Além de a recursão ser uma propriedade da mente humana que distingue nossa

linguagem da comunicação de outros animais, ela delineia nossa habilidade para refletir sobre

nossa própria mente e acerca da mente dos outros, por simulação. A recursão permite-nos

viajar mentalmente no tempo, inserindo conscientemente o passado ou o futuro na consciência

presente. Outra característica assumida pela recursão é que ela toma seu próprio output como

input, formando um loop que pode ser estendido infinitamente, a fim de criar sequências ou

subestruturas de tamanho ou complexidade ilimitada. Na prática, as limitações da recursão

são dadas pelas limitações do tempo em que elas devem ocorrer para serem funcionais, além

do espaço de memória de trabalho para lidarmos com operações recursivas na mente e da

nossa capacidade e fisiologia orgânica, tal como o tamanho dos pulmões, etc. Sendo assim,

ocorrem loops dinâmicos em sistemas recursivos, tais como a linguagem e o pensamento.

A recursão pode ser entendida como um princípio que dá origem a um processo que

emerge em uma estrutura. Um princípio é algo que governa um processo qualquer. Um

processo recursivo - como o pensamento, a linguagem e a imaginação - pode dar origem a

estruturas que não são recursivas por si mesmas, tais como uma língua e uma escrita

quaisquer. Vários exemplos de línguas supostamente não recursivas são levantados por alguns

17 The ability to call past episodes to mind and also to imagine future episodes. 18 The ability to understand what is going on in the minds of others.

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autores citados por Corballis (2014). A recursão em Corballis é tomada como um princípio, e,

portanto, não deve ser considerada como um módulo mental, tal como entendido por Steven

Pinker (1997).

O pensamento recursivo provavelmente depende de outros atributos mentais, tais

como a memória de trabalho e o processamento executivo. A memória de trabalho é

necessária para que as informações a serem manipuladas de forma recursiva pelo pensamento

fiquem suspensas ao alcance do processamento executivo. O que emerge de nós tem por base

um entrelaçamento dinâmico de nossas operações cognitivas.

Até aqui, foi apresentada nossa proposta de abordar os mecanismos do conhecimento

humano, mais especificamente aqueles de sujeitos traumatizados. Tais mecanismos podem ser

abordados por suas emergências comportamentais, emocionais, cognitivas, psicofisiológicas

ou linguageiras. Tendo em vista que compusemos nosso corpus principal por enunciados,

retirados do trabalho de Ehlers e Clark (2000), de sujeitos que vivenciaram eventos

traumatizantes, precisamos definir, nessa ordem, o que são esses enunciados, como serão

tomados e também o que seria essa espécie de evento.

3.4 Definição de narrativa

Para abordar a ideia que temos de narrativa, usaremos a definição de Talmy (2000).

Antes disso, vamos ver o que embasa o pensamento do autor em relação ao estudo da

linguagem. Talmy (2000) entende que o estudo da linguagem perpassa basicamente três áreas,

ao se deixar de lado a Fonologia, encontramos a área formal, a psicológica e a conceptual. A

abordagem conceptual da Linguística Cognitiva ou, melhor ainda, da Semântica Cognitiva

concentra seu interesse nos padrões e processos pelos quais o conteúdo conceptual se organiza

na língua, isto é, a maneira como a linguagem estrutura o conteúdo conceptual. Acima de

tudo, a Linguística Cognitiva busca verificar o sistema global integrado de estruturação

conceptual na linguagem por meio do estudo: da estruturação de categorias conceptuais

básicas; das categorias ideacionais e afetivas; das estruturas semânticas de formas

fonológicas, lexicais e sintáticas; e das inter-relações de estruturas conceptuais. Além disso, a

Linguística Cognitiva, como forma transdisciplinar que é, busca interesses comuns tanto da

abordagem formal quanto da psicológica. Primeiramente, ela examina, da perspectiva

conceptual, propriedades formais da linguagem e assim considera a estrutura gramatical em

termos de sua função representada conceptualmente. Secundariamente, procura explicar o

comportamento do fenômeno conceptual dentro da linguagem em termos de estruturas

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psicológicas enquanto elabora as propriedades dessas estruturas em função de como a

linguagem a realiza. Assim, o termo “Linguística Cognitiva” unifica estruturas linguísticas

com estruturas psicológicas no estudo da linguagem. Nada menos do que buscamos fazer

neste trabalho, já que estaremos nos concentrando em tais estruturas psicológicas das

narrações dos nossos sujeitos. Além de tudo, cabe dizer que a definição de linguagem para

Talmy não inviabiliza nossas considerações acerca da linguagem como órgão. Pelo contrário,

linguagem aqui também tem função de órgão, já que as propriedades funcionais investigadas

por Talmy são justamente aquelas propriedades psicológicas da linguagem.

Narrativa, para Talmy (2000), deve ter um enquadramento amplo, a fim de averiguar e

caracterizar a estrutura de toda forma de narrativa existente e potencial, assim como o

contexto mais amplo dentro do qual a narrativa está situada. Tal narrativa tratada do ponto de

vista das Ciências Cognitivas, da Psicologia Cognitiva e da Linguística Cognitiva assume a

existência de uma mente que produz a narrativa, assim como também de uma mente que

compreende, de forma consciente, essa narrativa. Isso significa que existe aquele que é o

“produtor” e aquele que é “percebedor” da narrativa, sendo que eles podem ser ambos um só.

O percebedor também pode, por si só, experienciar um evento externo de ocorrência natural

e não-intencional, num dado período de tempo, como uma narrativa. Dessa forma, podemos

tomar narrativa enquanto compreendendo um produtor, nossos sujeitos com trauma, e um

percebedor, nós mesmos enquanto analistas daquela narrativa. Ao mesmo tempo, o evento

traumatizante pode ser visto como uma narrativa e é, portanto, narrado pelo sujeito

traumatizado. Mas, no nosso caso, assumiremos que esse corpo, que narra ao representar ou

atuar no mundo, fá-lo por meio de narrações. Veremos mais sobre isso posteriormente. Por

agora, basta dizer que nosso corpus é composto por fragmentos de narrativas já recortados de

narrativas maiores e não a narrativa do evento traumatizante inteira e sequencial. Nosso

quadro de análise, cognitivamente baseado, irá aplicar-se diretamente à cognição do produtor

da narrativa por nós escolhido, assim como à cognição do “experienciador” da narrativa,

nesse caso, a nós mesmos. Então, podemos perguntar: como esses nossos fragmentos de

narrativas podem ser postos no contexto cognitivo?

Narrativa, algo que é produzido e/ou experienciado cognitivamente, no sentido amplo

de Talmy (2000), pode ser colocada dentro do contexto cognitivo ao trazer a noção de

sistemas cognitivos. Sistema cognitivo consiste em um conjunto de capacidades mentais que

se complementam para desempenhar uma função particular integrada e coerente. Eles não são

inteiramente autônomos. Eles interconectam uma reunião de experiências mentais e formam

padrões globais, integrando sequências de experiências têmporo-espaciais dentro de um

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padrão, que pode ser reconhecido conscientemente como uma história ou mesmo uma vida.

Daí, Talmy (2000) caracteriza e nomeia o sistema cognitivo de formação de padrão e o

sistema cognitivo de narrativa. Ao ser tomada dessa forma, a narrativa representa a operação

de um sistema cognitivo cujas características compartilham propriedades que são comuns

entre sistemas cognitivos de forma geral, de modo que este último pode, em contrapartida, ser

usado para melhor entender a natureza das propriedades da narrativa. Assim, o sistema

cognitivo de narrativa atua por meio da narração.

Em acréscimo ao conceito de narração até aqui apresentado, nós, assim como Talmy

(2000), tomamos as culturas e subculturas das quais os produtores e experienciadores de

narrativas cognitivamente participam, pois esses sistemas podem constituir um sistema

cognitivo coerente, mais amplo, que informa muito da estrutura cognitiva, da estrutura

afetiva, dos pressupostos, dos valores e, de forma geral, da “visão de mundo” daqueles

sujeitos. Esse sistema cognitivo culturalmente baseado dentro da organização psicológica

desses sujeitos pode afetar ou determinar um conjunto de características narrativas, e assim

ele é um alvo adicionalmente apropriado para o tipo de quadro analítico proposto aqui. Haja

vista a discussão em relação a como a cultura e o gênero podem dar voz ou silenciar nossa

narrativa de memória autobiográfica do trauma já realizada anteriormente na seção 3.1

(FIVUSH, 2014). Além de nossa discussão, na seção 3.2, sobre como a cultura pode, em

interação com a herança genética, promover a aquisição da linguagem em crianças, assim

como do padrão linguístico de sujeitos com trauma.

Talmy (2000) acredita que o sistema cognitivo de narrativa está robustamente ativo e

comanda muitas de nossas fontes atencionais e é responsável por nossa sensação de termos

sido apanhados por uma história e estarmos relutantes em interrompê-la até sua conclusão.

Isso significa que o sistema cognitivo de narrativa é uma especialização temporal do sistema

cognitivo de formação de padrões.

A linha de pesquisa da semântica cognitiva adotada por Talmy (2000) tem o objetivo

de examinar propriedades estruturais em comum entre linguagem e cada um dos outros

sistemas cognitivos maiores, como percepção, raciocínio, afeto, memória, projeção

antecipatória e estrutura cultural. A linguagem, aqui, é tomada por meio da análise dos

sistemas cognitivos de formação de padrões e de narrativa.

Talmy (2000) adota o modelo de sistemas cognitivos sobrepostos, no qual cada

sistema tem certas propriedades estruturais que são unicamente dele próprio, certas

propriedades estruturais que compartilha com um ou poucos sistemas cognitivos e certas

propriedades estruturais que ele compartilha com mais de um ou todos os outros sistemas

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cognitivos. Esse modelo não foge à organização da cognição como um sistema dinâmico

complexo e auto-organizável, como dissemos no início desse capítulo.

O autor trabalha em sua obra com um quadro heurístico que trata do contexto narrativo

em três divisões. Tais divisões são os domínios, os estratos e os parâmetros. Em resumo, os

parâmetros são princípios de organização muito gerais, os estratos são propriedades

estruturais que pertencem à narrativa e os domínios são áreas diferentes dentro do contexto

narrativo total para o qual se pode aplicar os primeiros dois conjuntos de categorias analíticas

(TALMY, 2000).

Os domínios são: a própria narrativa; o produtor da narrativa; o experienciador da

narrativa; a cultura na qual a narrativa e seu produtor e experienciador estão situados; e o

mundo espaço-temporal circunvizinho.

Os estratos são as estruturas: temporal; espacial; causal; e psicológica.

Os parâmetros são: a relação de uma estrutura com outra; a quantidade relativa; o grau

de diferenciação; as estruturas combinatórias; e o acesso avaliativo. Além disso, esses

parâmetros, juntamente com outros não relatados aqui, parecem constituir o conjunto de

princípios de organização que se aplica em comum ao longo de todos os sistemas cognitivos

maiores.

Assim, Talmy (2000) toma narração como uma operação de um sistema cognitivo

atuando de forma contextual e em íntima conexão com outras operações cognitivas, a fim de

dar a possibilidade de conhecermos o mundo. Isso significa dizer que é por meio de

narrações que construímos conhecimento linguístico de mundo. Melhor dizendo, a narração

faz parte de nossa arquitetura de conhecimento linguístico de mundo.

Em relação às narrações do nosso corpus, visto que, em grande parte, elas referem-se

ao evento traumatizante no passado, ou, de certa forma, retomam algo dele, faz-se necessário

definir o que entendemos como evento. E mais ainda, é importante definirmos qual a relação

entre eventivação e o modo como conhecemos o mundo.

3.5 Definição de evento

Narrativas progridem coextensivamente para sistemas de estruturação básica de um

domínio que Talmy (2000) denominou estratos. Os estratos da estrutura temporal têm

unicamente a propriedade de “progressão” e se estruturam sob a forma de “eventos” e

“texturas”. Por meio do particionamento conceitual juntamente com a propriedade cognitiva

de atribuição de qualidade de individuação, a mente humana é capaz de criar limites no

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continuum temporal tanto na percepção quanto na concepção. Esse limite no continuum

temporal leva esse recorte temporal a ter a propriedade de ser uma entidade única, cuja

percepção ou conceptualização é aquela de um evento. Logo, um evento possui, em interação

dinâmica, uma parte concebida como um continuum e outra concebida do seu domínio

quantitativo recortado. Em função de estarmos lidando, também aqui, com uma operação

cognitiva, preferimos, neste trabalho, utilizar a palavra eventivação, pois esse neologismo

remete ao dinamismo da operação de particionamento conceptual e atribuição de identidade,

ambas operações realizadas pela mente no continuum temporal da percepção e da concepção.

Pinker (2007), em sua obra, também aborda a noção de evento de forma compatível com a de

Talmy (2000), em vários pontos. No entanto, preferimos esse último autor, pelo fato da sua

obra ser mais completa, didática, mais aplicável ao nosso corpus e de manejo prático

surpreendente.

Para Talmy (2000), um evento varia em função de uma série de parâmetros, podendo

ser discreto, com um início e fim claros, ou podendo ser contínuo, experienciado como não-

limitado dentro do âmbito da atenção. Um evento pode ser um processo quando seus

conteúdos mudam ao longo do período dele próprio. No entanto, o conteúdo do evento pode

permanecer inalterado ao longo da sua extensão, caso em que o evento é estático, constituindo

uma situação ou circunstância. Um evento pode ser global, abrangendo, por exemplo, o

comprimento inteiro de uma narrativa, ou local, ou mesmo microlocal, pensado como

abrangendo apenas um ponto do tempo. Além disso, um evento poderia se relacionar com

outro evento ao longo de qualquer dos parâmetros de relacionamento, por exemplo, ser

incorporado nele, alternado em parte com ele, ao mesmo tempo sobrepondo-o, ou exibir parte

para correlações com parte dele.

Assim, nosso conhecimento de mundo é, necessariamente, além de narrado,

eventivado. Isso significa dizer que a nossa mente particiona o continuum de nossa percepção

e até mesmo de nossa concepção, por meio da eventivação. Dito isso, vamos a mais uma

função cognitiva imprescindível para nosso projeto de análise narrativa: a imaginação, um

construto da ordem do pensamento.

3.6 Imaginação

Outra faculdade cognitiva responsável pela forma como conhecemos o mundo é a

imaginação. Ela é abordada, belamente, na obra de Roth (2007). Nessa obra, a autora propõe

que a imaginação deve ser tomada, em sua saliência, como um construto ou um agrupamento

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de construtos relevantes para o entendimento da mente e do comportamento humanos. Para

ela, a palavra “imaginação” tem conteúdo lexical com várias significações, que incluem:

formação de imagens mentais sensoriais [contemplando os cinco sentidos]; estados da mente,

tais como sonhar acordado e fantasiar; planejamento de curso de ações e estratégias possíveis

conhecidos como contrafactuais ou pensamentos “e se...?”; imaginação criativa, cujos

resultados são concepções ou ideias altamente originais e novas, além de produtos culturais; e

o pensamento metafórico (ROTH, 2007). Logo, tal construto é usado para se referir a muitas

“coisas” diferentes que nos possibilitam conhecer [pensar] o mundo. Sendo assim, tais coisas

podem e devem ser pesquisadas separadamente.

Em relação às pesquisas no campo de investigações psicológicas, Roth (2007) relata

que imaginação, em seus vários aspectos, dá origem a campos de investigação também

separados, a saber: imagens mentais, as que são ativadas sensorialmente; fenômeno do

desenvolvimento, em especial a pretence, definida como a atividade infantil de imbuir

eventos, objetos ou entidades com propriedades imaginárias; crenças fantásticas, por exemplo,

em fadas, anjos, magia e amigos imaginários; teoria da mente, isto é, a capacidade de

conceber os pensamentos e sentimentos dos outros, considerados como imaginário social em

alguns exemplos; pensamento contrafactual, que implica em imaginar “o que poderia ter sido”

ou “e se...?”; e a criatividade.

Pudemos ver que só dentro do campo psicológico de investigação existem vários

papéis ocupados pelo construto imaginação, então uma possível crítica levantada por Roth

(2007) em relação a tal amplitude conceitual é que ela impossibilita a distinção entre

imaginação e outras formas de cognição. Mas, ao mesmo tempo, sendo a imaginação um

conjunto de construtos, ela pode ser entendida como a emergência de várias habilidades da

mente em interação integrada e, consequentemente, não pode ser entendida de forma

discretizada, isolada. Mesmo que a imaginação não possa ser isolada de outras funções

cognitivas, Roth enfatiza a importância de podermos diferenciar, por exemplo, o pensamento

imaginativo do pensamento sem os acréscimos da imaginação, usando para tal, o pensamento

característico de alguns sujeitos do espectro autista. Esse exemplo pode nos abrir espaço de

trabalhar com o conjunto de construtos, imaginação, sem confundi-lo com outras formas de

cognição, em especial, diferenciando-o do próprio pensamento em geral (ROTH, 2007). E, ao

mesmo tempo, incluindo-a como uma modalidade de pensamento, e, sendo assim, numa

modalidade de construtos da ordem da recursão. Isso significa que, por extensão, a

imaginação é essencialmente recursiva, assim como toda modalidade de pensamento

(CORBALIS, 2014).

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Em relação ao campo das Neurociências, Geake e Kringelbach (2007) propõem que

imaginação pode ser vista e estudada tanto como um produto mental, estado cognitivo

estimulado por outros estados cognitivos internos (espontâneos ou estimulados pelo exterior),

quanto como um processo mental que cria e manipula produtos mentais em função de

necessidades, tais como planejamento estratégico ou qualquer ato de pensamento criativo.

Esses mesmos autores (GEAKE; KRINGELBACH, 2007, p. 308, tradução nossa) identificam

os componentes da imaginação apresentados por Roth como subcomponentes sobrepostos do

pensamento imaginativo e os resumem como “predição através de antecipação; imagens

perceptiva, sensorial e motora, incluindo a dor; pretence; mindedness e empatia (teoria da

mente); pensamento contrafactual incluindo ilusão; e criatividade”,19 os quais são propostos

por meio de abordagens experimentais no campo das Neurociências ao longo da mesma obra.

Outro modo de entendermos a imaginação é pela forma de estudo do pensamento

adotada nas Ciências Cognitivas que, deliberadamente, dividiram as formas do pensamento

entre aquelas que são: eficientes e direcionadas a um objetivo, além de serem mais racionais e

mais acessíveis aos métodos científicos; e aquelas que são ricas, caóticas e ineficientes. A

imaginação parece ser um agrupamento de conceitos que perpassa essa distinção dicotômica e

engloba formas de pensamento que podem ser racionais e intuitivas, mutuamente. Além disso,

a imaginação tem um importante componente cultural que a molda e, em contrapartida, a

imaginação molda a cultura. Assim sendo, a imaginação, em todas as suas formas, deve ser

entendida tanto do ponto de vista das Ciências Cognitivas, quanto interdisciplinarmente por

intermédio de perspectivas transdisciplinares (ROTH, 2007).

Para o nosso trabalho, consideraremos, com maior ênfase, alguns temas do construto

imaginação de determinados capítulos da obra organizada por Roth, tais como a predição

(abordado nos capítulos 2, 11 e 14), pretence (capítulos 2, 4 e 11), as imagens perceptivas

(capítulo 9), o pensamento contrafactual (capítulos 3, 4 e 11), e, brevemente, a teoria da

integração de duplo escopo de Mark Turner (capítulo 10).

3.6.1 Pretence

Pretence é um substantivo da língua inglesa que não encontra equivalente em

Português sem perdas consideráveis. Portanto, escolhemos manter a palavra em sua língua

original. A pretence é um dos aspectos do construto imaginação que pode ser mensurado pelo

19 Prediction through anticipation; perceptual, sensory and motor imagery, including pain; pretence; mindedness

and empathy (theory of mind); counterfactual thinking including delusion; and creativity.

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comportamento de sujeitos que pretend. A pretence emerge no jogo simulado da criança, por

volta do segundo ano de vida, e é acompanhada pela habilidade de criar mundos mentais

habitados por uma multiplicidade de seres, objetos, propriedades e narrativas não reais. Logo,

a pretence, como aspecto da imaginação, invoca aspectos inventivos em algum grau de

extensão, mas vai além da inventividade em outro âmbito, pois pretence capacita a mente para

distinguir entre o hipotético e o real. Além de que pretence refere-se a operar mentalmente em

um mundo pretend. Whiten e Suddendorf (2007) entendem que inventividade é um aspecto da

imaginação mais amplo do que pretence, quando ambos são tomados em seus status

psicológicos. Inventividade é a capacidade para gerar inovação e diversidade de respostas

comportamentais para qualquer dada circunstância ambiental.

Whiten e Suddendorf sugerem que pretence:

É uma manifestação de uma capacidade mais geral para a representação secundária,

que pode subscrever um conjunto de habilidades cognitivas nos grandes símios,

incluindo raciocínio meio-fim, acompanhamento de deslocamentos invisíveis de

objetos, e ler estados mentais simples, para os quais existem evidências

experimentais mais robustas do que existem para pretence per si.20(WHITEN;

SUDDENDORF, 2007, p. 31, tradução nossa)

Logo, a pretence capacitaria os grandes símios e, por conseguinte, os humanos a

realizar vários âmbitos do ato imaginativo que serão abordados ao longo dessa seção, tais

como a predição e o pensamento contrafactual. Taylor, Carlson e Shawber (2007)

demonstram que pretence é fundamental para as crianças explorarem comportamentos pela

via da fantasia do desempenho de papeis de amigos imaginários leais e indisciplinados. Os

autores especulam que se algum adulto se especializasse em pretence, ele poderia libertar-se

da atenção consciente e tornar o processo de simulação automatizado. Eles admitem que, em

crianças, a automatização da pretence é espontânea e que existem particularidades na

fenomenologia da pretence nessas duas fases do desenvolvimento humano que ainda precisam

ser decifradas. Pensamos que sujeitos com trauma poderiam ajudar a explicar essas diferenças

da fenomenologia apresentada, pois essas pessoas apresentam, significativamente, alterações

na discriminação da realidade em detrimento dos mundos ameaçadores imaginados por elas.

Em relação à criação de amigos imaginários na infância, Taylor, Carlson e Shawber

(2007) propõem três explicações e, dentre essas, destacam como mais adequada a explicação

20 It is a manifestation of a more general capacity for secondary representation, which may underwrite a cluster

of cognitive abilities in great apes, including means–end reasoning, tracking invisible displacements of objects,

and reading simple mental states, for which there is more robust, experimental evidence than exists for pretence

per se.

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50

que sugere que crianças com amigos imaginários produzem altos níveis de ativação de

fantasias associadas a níveis baixos de inibição dos pensamentos e ações. Essa combinação

poderia predispor indivíduos a ter dificuldades de controlar conscientemente os produtos de

sua imaginação, o que geraria a ilusão de atuação independente, por parte do amigo

imaginário. Um dado empírico apresentado por Taylor, Carlson e Shawber (2007) e

encontrado em Carlson et al. (2004)21 deixa evidente que o grupo de crianças que

descreveram amigos imaginários incontroláveis tiveram pior desempenho em medidas de

controle inibitório do que outras crianças, embora as crianças com amigos imaginários como

um todo mostraram maior controle inibitório do que aquelas sem eles. Supomos que altos

níveis de ativação de pensamentos imaginativos catastróficos associados a baixos níveis de

inibição de pensamentos intrusivos e ações podem, teoricamente, explicar os padrões hiper e

hiporreativos dos sujeitos com trauma. Do mesmo modo, pensamos que os hiper-responsivos

têm, de fato, inibição de ação adotando a esquiva e a fuga, além das outras características

motoras comumente emergentes nesse grupo, tal como o sobressalto excessivo. Os

pensamentos e memórias intrusivos contínuos associados às ruminações são um exemplo de

pensamentos não refreados encontrados em ambos os grupos. Já os hiporresponsivos adotam

padrões comportamentais pouco inibidos ao apresentarem conversão motora como

emergência.

Taylor, Carlson e Shawber (2007) entendem que a valência negativa do conteúdo

imaginário em desacordo com os desejos, crenças e intenções conscientes podem contribuir

para a ilusão de atuação independente, tanto em crianças com amigos imaginários quanto em

escritores de ficção para adultos. Os dados desses autores também nos levam a pensar que o

mesmo poderia estar ocorrendo com sujeitos traumatizados, em que a valência negativa de

seus conteúdos imaginários pode facilitar a ilusão de que o ambiente ou os outros atuem para

lhe fazer mal, ou algo parecido.

3.6.2 Predição

A importância da imaginação na produção de trabalhos criativos e originais é sem

contestação (BOYER, 2007). No entanto, ela assume importância, sem igual, também nos

mais comuns processos cognitivos subjacentes as várias outras atividades. Nessa última

21 CARLSON, S. M., TAYLOR, M. and MARING, B. L.. Sustained interactions with imaginary others. In.:

Subbotsky, Eugene; and Taylor, M. (co-convenors), Causation in Non-physical Domains: Magical Thinking

and Human Communication. Ghent: International Society for the Study of Behavioral Development, 2004.

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perspectiva, temos a predição, definida como envolvimento da imaginação nas construções

altamente estáveis e bastante previsíveis de situações possíveis. Segundo Boyer:

Em alguns domínios da experiência, as mentes humanas parecem automaticamente

sugerir ‘e se’ alternativos à experiência atual ou passada. Por exemplo, diante de um

resultado negativo, não podemos deixar de imaginar o que teria acontecido se as

condições reais fossem um pouco diferentes (BOYER, 2007, p. 239, tradução

nossa).22

Esse recurso aos “e se” alternativos nos dá a possibilidade de criar situações

imaginativas ou mesmo estratégias diferentes daquelas que tenhamos vivenciado inicialmente.

Nossa capacidade imaginativa nos possibilita planejar ações futuras ou mesmo perspectivar

eventos ainda não ocorridos. Em relação à tomada de perspectivas de eventos ainda não

ocorridos, podemos predizer a ocorrência de perigos potenciais em nossos ambientes para os

quais só existem sinais indiretos. Para Boyer (2007, p. 239, tradução nossa), em tais situações

“a produção de cenários ‘e se’ está amplamente fora do controle consciente e da deliberação,

embora os resultados, na forma de resultados possíveis, são conscientemente

experimentados.”23. Logo, o que no evento desencadeou o processo criativo preditivo ou

mesmo o motivo pelo qual ele foi desencadeado, são respostas que estão muito profundas em

nossos corpos, enquanto as emergências criativas desses processos profundos são

experienciadas de forma consciente. Pensamos que, em sujeitos traumatizados, a reação de

sobressalto tenta, de alguma forma, predizer uma possível ocorrência de ameaça ou dano

potencial e evita-los. O sobressalto pode ocorrer em resposta a pequenos estímulos que,

ocasionalmente, não estão relacionados diretamente ao evento traumatizante. Tal reação não é

conscientemente planejada, sendo pois, reflexiva, estando incrustada no corpo, enquanto a

experiência concomitante à reação é, geralmente, consciente.

Para Geake e Kringelbach (2007), predição pode ser vista como a forma mais simples

de imaginação e definida como a construção mental imaginativa de possíveis acontecimentos

ou experiências futuras. O cerebelo tem sido cada vez mais implicado em mecanismos

preditivos motores, mas também cognitivos e emocionais complexos, além de outras regiões

cerebrais, tais como gânglios basais, córtex orbitofrontal e vias dopaminérgicas. Alguns

estudos têm sugerido que a predição é, em grande parte, inconsciente ao invés de consciente.

22 In some domains of experience, human minds seem automatically to suggest ‘what if’ alternatives to current

or past experience. For instance, faced with a negative outcome, we cannot help imagine what would have

happened had the actual conditions been slightly different 23 The production of ‘what if’ scenarios is largely outside conscious control and deliberation, although the

results, in the form of possible outcomes, are consciously experienced.

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Esse achado não é surpreendente, visto que o fato do processamento inconsciente ser mais

rápido que o consciente leva à possibilidade de ação mais imediata diante de uma previsão

com valência negativa em relação ao ambiente. Assim foi demonstrado por Morris e outros

(2001) em relação aos estímulos relacionados ao medo, que podem ser processados

independentes da percepção visual consciente. Mas no caso das predições com gerações de

imagens mentais, ela é consciente. Imagens mentais podem assumir um caráter transmodal,

isto é, imagens mentais produzidas como se estivessem vindo de uma modalidade sensorial

desencadeadas por percepções em outro domínio sensorial, tal como imagens visuais

desencadeadas pela audição (GEAKE; KRINGELBACH, 2007).

3.6.3 Imagens mentais

Pearson (2007) propõe que o termo imagem mental seja usado para descrever um

estado de consciência quase perceptual em que a mente parece capaz de simular ou (re)criar a

experiência sensorial. Esta experiência sensorial recriada pode ser da ordem do visual,

auditivo, olfatório, gustativo e háptico, ou seja, imagens mentais podem ser criadas em todas

as modalidades sensoriais, sendo que as imagens visuais e auditivas são as mais frequentes. O

que perpassa todos os modos de imagens é uma aparente correspondência entre a experiência

consciente de manter uma imagem na mente e a experiência consciente associada a perceber

aqueles estímulos particulares no mundo real. Percebemos que, em sujeitos traumatizados, a

experiência consciente da imagem mental na mente e seu referente no mundo real assumiu, no

passado, uma grande carga afetiva, a qual se repete, mesmo sem a experiência consciente

completa do referente no mundo real, no presente. Entendemos que a fenomenologia quase-

perceptual de imagens mentais é, ao mesmo tempo, sua característica mais marcante e mais

controversa, já que é ela que, em sujeitos com trauma, desencadeia o quadro experiencial.

Pearson (2007) propõe que imagens mentais podem assumir ou um caráter

experiencial de memória perceptual verídica ou de objeto fantástico da imaginação que nunca

foram percebidos diretamente. Esses caracteres experienciais podem assumir particularidades

em termos de nitidez, detalhe e frequência de ocorrência, sendo que alguns sujeitos podem

nunca relatar experiências de imagens perceptuais em quaisquer das modalidades. Mas, de

forma geral, mesmo que a experiência consciente não esteja presente, podemos encontrar

alguma forma de julgamento perceptual sem objeto referente externo, o que indica que há

manipulação imagética.

Pearson (2007) faz um levantamento de vários autores para propor que nossa cognição

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exerce efeitos restritivos mais intensos sobre enquadramentos de referência, ou perspectiva,

de imagens mentais geradas a partir da memória de longo prazo. Isso, primeiramente, porque

essas imagens mentais são mais dependentes de informação não-perceptual abstrata, ou seja,

essas emergências imaginativas, produzidas a partir da memória de longo prazo, não têm uma

fonte perceptual imediata e elas são geradas por informações abstratas, sem objeto perceptual

presente. Logo, tais emergências imaginativas têm maiores restrições em suas manipulações

mentais. Secundariamente, as emergências imaginativas produzidas pela memória de longo

prazo não apresentam o frescor sensorial, ou melhor, características de superfície perceptuais

tão nítidas quanto àquelas produzidas diretamente de objetos perceptuais. O frescor sensorial

de uma imagem mental reduz as restrições cognitivas da manipulação dessas imagens,

possibilitando maior liberdade imaginativa. Pensamos que, talvez, em sujeitos traumatizados,

tais imagens mentais da memória de longo prazo também tenham restrições em relação à sua

manipulação e elaboração o que, de certo modo, sustenta a sintomatologia mnêmica, mas, sem

dúvidas, tais imagens preservam o frescor sensorial, diferentemente de outras imagens

advindas da memória de longo prazo, possivelmente pela sua permanente atualização.

Pearson (2007) também identificou, em diversos autores, que o uso da linguagem

prejudica o pensamento imagético criativo. Visualizar eventos com carga emocional negativa

associado a uma tarefa verbal leva ao maior aumento da frequência de intrusões de memória

negativa do que apenas visualizar o evento negativo. Isso baliza dados sugestivos de que

interferir com o processamento verbal durante a codificação pode aumentar a quantidade de

informação perceptual armazenadas na memória de longo prazo, ou seja, estimular o

processamento verbal durante a codificação de informação perceptual leva à elevação da

qualidade do frescor sensorial de emergências cognitivas da memória de longo prazo.

Consequentemente, a elevação da qualidade perceptual da memória de longo prazo leva ao

aumento da frequência de pensamentos intrusivos dessa memória, principalmente em relação

à memória autobiográfica de eventos traumatizantes. Contrariamente, a realização de uma

tarefa visuoespacial concomitante à visualização de um evento afetivamente negativo leva a

uma redução do conteúdo perceptual na memória, resultando numa menor frequência de

pensamentos intrusivos do evento em questão. Pearson (2007, p. 205, tradução nossa) conclui

que “isto sugere que as mesmas condições que aumentam o pensamento imaginativo por

aumentar a codificação e o armazenamento de informação perceptual na memória, podem ter

potencialmente consequências danosas, se a valência emocional das imagens associadas for

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54

tanto negativa quanto alta24.”

Os dados citados são compatíveis com uma das formas de tratamento de memórias do

trauma, a saber, o Eye Movement Desensitisation Reprocessing (EMDR), que usa o

processamento do trauma por meio de movimentos oculares. Assim, o EMDR reduz intrusões

e a valência afetiva de memórias traumáticas por meio de movimentos oculares (SHAPIRO,

2001).

Da mesma forma, podemos especular que, em eras nas quais não existia a tecnologia

da escrita, as alegorias e as parábolas tinham grande importância por levar a uma,

provavelmente, maior fixação das narrativas ao associá-las a imagens mentais que causariam

muito mais intrusões imagéticas nos ouvintes. Assim, esse fato deve ter sido muito importante

nas sociedades que preservavam as tradições culturais pelas narrativas orais, como deve ter

sido significativo nas pregações de Jesus Cristo, posteriormente, escritas, de forma alegórica,

na Bíblia.

3.6.4 Integração conceitual de duplo escopo

Segundo Roth (2007, p. XXXIII, tradução nossa), “Turner afirma que um processo

análogo – a capacidade para a integração conceptual ou ‘blending’ – repousa no núcleo de

toda cognição imaginativa25”. Essa afirmação de Turner, citada em Roth, possibilita-nos um

agrupamento de todos os construtos trabalhados aqui referentes à imaginação, assim como nos

permite a agrupação de todos aqueles construtos trabalhados na obra organizada por Roth.

Sendo assim, pretence, predição, imagens mentais são necessariamente organizadas pela

integração conceitual e são todos, recursiva e dinamicamente, organizados.

Turner (2007) admite que em sua obra conjunta com Fauconnier, The Way We Think

(2002), eles propuseram que o mecanismo que dá origem à imaginação humana seria a

capacidade mais forte, dentre os animais, de integração conceptual, denominada mescla de

duplo-escopo. Os autores acreditam, altamente, na existência de tal mecanismo, embora

apresentem pouca evidência científica quanto a isso.

Para Turner, nas redes de duplo-escopo, as duas entradas conceptuais têm diferentes e

até discordantes enquadramentos estruturais. A mescla tem enquadramentos estruturais que

24 This suggests that the same conditions that enhance imaginative thought by augmenting the encoding and

storage of perceptual information in memory, may have potentially damaging consequences if the emotional

valence of the associated images is both negative and high. 25 Turner argues that an analogous process—the capacity for conceptual integration or ‘blending’—lies at the

core of all imaginative cognition.

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recebem projeções de cada um desses enquadramentos estruturais de entrada. A mescla

também possui estrutura própria, emergente dela mesma e não encontrada em nenhum dos

enquadramentos de entrada. As diferenças ou discordâncias dos enquadramentos de entrada

oferecem desafios à integração imaginativa, gerando um enquadramento na mescla altamente

criativo. A referência e o que ela representa são fundidos na mescla como um único elemento.

3.7 Memoração e self

Nossa abordagem de memória e self, nesta dissertação, será fundamentada na obra de

Beike, Lampinen e Behrend (2004). Tal obra apresenta como temas: a emergência da

memória autobiográfica; a natureza narrativa da memória pessoal; e a emoção e o tempo na

memória autobiográfica. Todos os temas são entrelaçados ao conceito de self apresentados

pelos autores em questão. Sendo assim, o foco do livro é a relação entre self e memória

autobiográfica, um subtipo de memória, que é também denominada de memória pessoal ou

memória episódica para ser distinguida da memória para fatos. A memória autobiográfica é a

memória para eventos que aconteceram com a própria pessoa que memora. Ela é uma fonte de

informação sobre nossa própria vida, torna-nos capazes de fazer julgamentos sobre nossa

própria personalidade e fazer predição de nosso próprio comportamento e do comportamento

dos outros. Ela também promove o sentido de continuidade e identidade. A memória

autobiográfica pode ser considerada composta de narrativas verbais, imagens visualmente

descritas e emoção (BEIKE; LAMPINEN; BEHREND, 2004). Ela emerge, de forma ampla,

por volta dos 3,5 aos 4,5 anos de idade (BARTH; POVINELLI; CANT, 2014). Vale ressaltar

que não entendemos memória como um estoque estanque que pode ser acessado por nós, e

sim como um processo dinâmico com algum grau de estocagem atualizado pela dinâmica

interna e externa, momento a momento, durante nossas interações com o mundo. Por isso

escolhemos o neologismo memoração para afirmar a dinâmica dessa operação cognitiva.

Em relação ao self, ele tem sido abordado pela ciência por meio de alguns aspectos de

sua natureza, tais como sua fluidez, seus aspectos temporais e sua relação com objetivos

momentâneos e duradouros. O pensamento, as emoções e as percepções são compreendidos

como pertencendo ao self, isso define uma abordagem psicológica ao redor do self. Podemos

fazer uma diferenciação do self em duas instâncias, o “eu” e o “me”. O “eu” num sentido

subjetivo do self como um pensador, conhecedor e agente causal e o “me” num sentido

objetivo do self como os traços únicos e reconhecíveis que constituem o autoconceito de

alguém (BEIKE; LAMPINEN; BEHREND, 2004). Quando se liga o self à memória, podemos

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dizer que selves rememorados são construtos cognitivos e emocionais que se sustentam

mutuamente. Sendo assim, self e memória pessoal se entrelaçam para formar o núcleo da

experiência humana (BEIKE; LAMPINEN; BEHREND, 2004). O livro editado por Gallagher

e Shear (1999) apresenta o tema, self, abordado por várias linhas de pesquisa e pode ser

consultado por quem quiser expandir seu conhecimento sobre o assunto. Para esta dissertação,

o que foi e será exposto, é suficiente para a análise do objeto de estudo.

Alguns autores defendem a origem corpórea do self. Dentre esses estão aqueles que

pesquisam aspectos cinestésicos do autoconceito de crianças. Tais autores apostam que, em

qualquer dado momento, existe uma dimensão múltipla do self que pode ou não ser

representada ou reconhecida. Tais dimensões emergem gradualmente durante o

desenvolvimento humano. À vista disso, não se deve surpreender que, em vários pontos do

desenvolvimento, esses aspectos possam, ou não, ser acessíveis (BARTH; POVINELLI;

CANT, 2014). Pensamos que, diante da teorização da origem corpórea do self, poderíamos

encontrar, por exemplo, narrações nas quais isso fosse evidenciado. Como nosso corpus é

coletado de sujeitos com trauma, essa busca pode ser empreendida nesse sentido com a

finalidade de entendermos se isso ocorre ou não em nossos sujeitos.

Um dos múltiplos aspectos do self é, exatamente, o cinestésico da experiência, o qual

possibilita a equivalência entre o que se vê e o que se experimenta. Esse aspecto pode ser

observado nos comportamentos ditos como de autorreconhecimento (BARTH; POVINELLI;

CANT, 2014).

Outro aspecto do self é o autoconceito, o qual está intimamente ligado à memória

autobiográfica de modo que a maneira como nos definimos influencia nosso foco atencional

(interno e externo) e nossos registros mnêmicos de nossas experiências ordinárias. Quem nós

somos também influencia o que recuperamos no momento de lembrar eventos

autobiográficos. Tanto o autoconceito influencia o que se memoriza, quanto o que é

rememorado influencia o autoconceito. De forma alguma a memória é um componente

passivo da cognição, em vez disso, seu conteúdo é influenciado pelo nosso autoconceito no

momento em que ocorreu o evento memorizado. O conteúdo da memória muda nosso

autoconceito ao longo do tempo, assim como também muda nosso autoconceito no momento

em que rememoramos nossos selves passados, ou seja, esses conceitos são dinâmica e

mutuamente influenciados (HOWE, 2014).

No self cognitivo, o “eu” emerge a partir do segundo ano de vida, sendo um evento

chave para a memória autobiográfica. Nessa mesma época, a aquisição de linguagem vem

fornecendo uma saída expressiva para as lembranças autobiográficas que se desenvolvem.

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Dessa forma, a expressão linguística preserva, por meio da repetição e reintegração, e altera,

através da reconstrução, registros mnêmicos experienciados pessoalmente (HOWE, 2014). A

habilidade narrativa autobiográfica alcança um ápice em crianças em torno dos 5 a 6 anos de

idade (HOWE, 2014). As expressões linguísticas também fornecem um filtro, ao

concentrarem-se em aspectos específicos da experiência e, por necessidade, silenciar outros,

através do qual chegamos a compreender nossas vidas e nossos selves (FIVUSH, 2014).

Primeiro, existe a emergência de um self não verbal nas crianças e depois esse self

pode ser transladado para uma língua natural, constituindo a memória autobiográfica verbal. É

provável que tanto o self quanto a consciência emerjam antes da língua natural e que sejam

modificados por essa última (HOWE, 2014).

Apesar de toda controvérsia em relação ao self, existe concordância em dois aspectos,

a saber: o processo de individuação, ou separação do ambiente, é gradualmente construído

desde o nascimento; e o self tem pelo menos dois aspectos, que são o “eu” que pensa, conhece

e age e o “me” que constitui o autoconceito. Acredita-se que antes do reconhecimento

explícito do self como “me”, há um “eu” que está sendo ativamente desenvolvido desde o

nascimento (HOWE, 2014).

A noção de self como sujeito da experiência pode ter sua emergência ligada a outros

processos, tais como percepção sensorial, autocontrole e imitação que se desenvolvem desde

o nascimento (HOWE, 2014).

Em relação à memória antes da emergência do self cognitivo, organizador da

experiência, podemos especular que pelo fato do estoque ser dinâmico e maleável em resposta

às novas experiências, é extremamente improvável que o que lembramos dos primeiros

eventos, especialmente aqueles que não estão codificados com relação ao self, permaneça

inalterado pelas experiências acumuladas de uma vida (HOWE, 2014).

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4 PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE

Nosso procedimento de análise será realizado por meio de uma tentativa de classificar

as narrativas26 de nosso corpus de acordo com o que foi apresentado no capítulo 3 sobre

referencial teórico. Tal capítulo nos fornece as bases teóricas para construirmos nossa análise,

de modo que o leitor assimile os fundamentos teóricos e as definições conceituais adotadas

por nós. Tentaremos seguir a mesma ordem das seções apresentadas no capítulo 3 e faremos,

inicialmente, um agrupamento de todas as narrativas para fins de facilitação do acesso do

leitor a elas.

4.1 Agrupamentos das narrativas

Esta seção tem como objetivo facilitar o acesso do leitor às narrativas que serão

comentados na seção 4.2. Assim, faço um agrupamento de todas as narrativas vistas no

capítulo 1, seção 1.3.

1 “Nenhum lugar é seguro.”; 2 “O próximo desastre irá irromper logo.”; 3 “Eu atraio

desastres.”; 4 “Os outros podem ver que eu sou uma vítima.”; 5 “Eu desejo que coisas ruins

aconteçam comigo.”; 6 “Eu não posso lidar com estresse.”; 7 “Minha personalidade tem

mudado pra pior.”; 8 “Meu casamento irá fragmentar.”; 9 “Eu não posso confiar em mim

mesmo com relação às minhas próprias crianças.”; 10 “Eu estou morto por dentro.”; 11 “Eu

nunca serei capaz de me relacionar com as pessoas novamente.”; 12 “Eu estou ficando

louco.”; 13 “Eu nunca vou superar isso.”; 14 “Meu cérebro tem estado danificado.”; 15 “Eu

irei perder meu emprego.”; 16 “Eles pensam que eu estou fraco para lidar comigo mesmo.”;

17 “Eu sou incapaz de me sentir próximo de alguém.”; 18 “Ninguém existe para mim.”; 19

“Eu não posso confiar em outras pessoas.”; 20 “Meu corpo está arruinado.”; 21 “Eu não irei

nunca ser hábil para lidar com a vida normal novamente.”; 22 “Eu irei perder minhas

crianças.”; 23 “Eu irei ficar sem casa”. Várias dessas narrativas se assemelham àquela de

nossa suspeita [Estou em perigo]. Além disso, elas compreendem temas da ordem da(o):

insegurança; vitimização; vulnerabilidade; culpa; incapacidade; imperfeição;

inadequação; embotamento afetivo; e desconfiança.

As narrativas seguintes apresentam-se na forma geral de contrafactuais: 24 “Se eu

26 Como explicitamos na seção 3.3, tomamos tais fragmentos de narrativas como narrativas no sentido de Talmy

(2000).

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pensar sobre o trauma... (... eu irei enlouquecer... eu irei desmoronar... eu irei perder o

controle e me ferir... eu terei um ataque do coração... eu irei danificar seriamente minha

saúde.)”; 25 “Se eu não controlar meus sentimentos firmemente... (... eu não serei hábil para

trabalhar e perderei meu emprego... eu irei perder a paciência e ofenderei pessoas.)”; 26 “Se

eu não apurar como esse evento poderia ter sido prevenido... (... alguma coisa similar irá

acontecer novamente.)”; 27 “Se eu não encontrar um jeito de punir o assaltante, ele terá

vencido e eu não serei mais um homem apropriado.”; 28 “Se eu for ao local do evento... (... eu

irei ter outro acidente... eu irei ter um colapso nervoso.)”; 29 “Se eu usar as mesmas roupas

novamente... (... eu irei ter outro acidente... eu irei ter um colapso nervoso.)”; 30 “Se eu não

tomar precauções extras... (... eu irei ser atacado novamente.)”; 31 “Se eu não checar os

espelhos retrovisores... (... alguma coisa irá dirigir-se para o meu carro novamente.)”; 32 “Se

eu fizer planos (tais como para um feriado)... a próxima coisa terrível vai acontecer.”; 33 “Se

eu ver meus amigos... (... eles irão me perguntar sobre o trauma e eles irão pensar que eu sou

um patético, porque eu ainda estou tão desconcertado.)”; 34 “Se eu fizer as coisas que

costumava fazer para me divertir... (... eu irei ser punido novamente... eu irei ser lembrado do

trauma e não irei ser hábil para enfrentar... eu serei dominado pela emoção.)”; 35 “Se eu

mostrar meu rosto... (... pessoas irão ficar aborrecidas por causa de minhas cicatrizes.)”; 36

“Se eu for dormir... (... eu irei ter pesadelos... eu não irei notar os invasores.)”; 37 “Se eu tiver

mais estresse... (... eu irei ter um ataque do coração... eu irei ter um colapso nervoso.)”.

4.2 Categorização analítica

Nesse agrupamento, seguiremos a proposta de separação dos sujeitos traumatizados

em dois grupos, aqueles com narrativas claramente com referência ao embotamento afetivo,

dissociação e conversão, ou seja, o grupo dos hiporresponsivos (subseção 4.1.1). E aqueles

com sintomas de hiperatividade autonômica, tais como irritabilidade, insônia, sobressalto

excessivo e hipervigilância, ou seja, o grupo dos hiper-responsivos (subseção 4.1.2). Em

relação às narrativas claramente com sintomas de hiporresponsividade, nós só encontramos

três em nosso corpus, a saber, as narrativas 10, 11 e 25. Condizente com o achado do trabalho

de Orr, Metzger e Pitman (2002) acerca da menor frequência de sujeitos hiporresponsivos

entre aqueles com trauma, é provável que essas três narrativas também indiquem essa menor

frequência, dentre todas as coletadas. É claro que essa classificação, levando em conta apenas

esses trechos de narrativas, pode levar a muitos problemas metodológicos, pois tal

classificação é realizada tomando-se a ativação autonômica mensurada diretamente nos

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sujeitos. Já em nossas narrativas, sem sujeitos, é impossível fazer tal medida.

Em relação aos hiper-responsivos, aparentemente todas as outras narrativas se

vinculam a essa classificação, tendo em vista as próprias descrições colocadas nos Quadros (1

e 2) pelos autores do artigo (EHLERS; CLARK, 2000). Manteremos, então, nossa análise da

forma apresentada a seguir.

4.2.1 Hiporresponsivos

Narrativa 10: “Eu estou morto por dentro.”

I. Considerações categoriais – seção 3.127

A hiporresponsividade, nesse caso, é indicada pelo embotamento afetivo relatado pelo

produtor. Ele enuncia algo do tipo: “Não tenho mais sentimentos por dentro”; ou algo como

“Não sei mais reconhecer meus sentimentos como estando presentes.”. Existe uma dificuldade

de nomeação ou de reconhecimento das próprias emoções internas.

II. Considerações acerca da narrativa – seção 3.4

II.I. Domínios:

II.I.I. Contexto: sujeito traumatizado avaliando seu estado emocional interno como

sendo inacessível ou inexistente;

II.I.II. Produtor (eu28): sujeito traumatizado instanciando seu estado interno ao

enunciar uma narrativa;

II.I.III. Percebedor (tu): neste instante, o percebedor somos nós que analisamos a

narrativa. O sujeito produziu essa narrativa em algum ambiente de pesquisa direcionada a

algum pesquisador e não temos acesso à exatidão dessa situação. Sendo assim, tomamos em

todos os casos analisados, nós próprios como percebedores, além, é claro, do próprio

produtor como explicado na seção 3.4; Entendemos que, nessa narrativa, ocorre uma

hipergeneralização da dificuldade de acesso às emoções em todos os âmbitos. O sujeito

desconsidera todas as suas funções vitais e o alcance consciente de seus sentimentos ao dizer

27 Essa categoria será em grande parte especulativa, pois em alguns casos é difícil avaliar a qualidade da resposta

do narrador. 28 Para Benveniste (2006, p. 68-69, grifo nosso), “o discurso apresenta uma estrutura de oposição linguística do

eu por oposição ao tu e ele. Aquele que fala sempre apresenta o indicador eu quando se refere a si mesmo. Esse

ato de discurso que enuncia o indicador eu parece ser sempre o mesmo para aquele que o entende, mas para

aquele que o enuncia é sempre um ato novo por inserir o locutor num tempo-espaço de locução referentes a uma

circunstância discursiva, cada vez, únicos.

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61

que está “morto por dentro”;

II.I.IV. Mundo circunvizinho (ele): o mundo externo é considerado como não capaz de

estimular ou desencadear quaisquer reações compatíveis com sinais de vida emocional

interna. O mundo circunvizinho é anulado da mesma forma como o mundo interno.

II.II. Atenção: ocorre um hiperfoco na falta de sensação interna e isso anula quaisquer

outros estímulos atencionais internos ou externos.

II.III. Estratos:

II.III.I. Estrutura espacial: o termo “por dentro” é direcionador da “qualidade de estar

morto” para o interior do sujeito que narra. Esse termo direciona os aspectos qualificativos da

narrativa para aquele espaço referencial;

II.III.II. Estrutura temporal: o verbo no presente do indicativo “Estou” indica que a

qualificação do que se sente é realizada no momento presente;

II.III.III. Estrutura causal: o embotamento emocional ocorreu após o evento

traumatizante, então a pessoa que diz estar morta, no momento presente, evoca seu estado

interno do passado à mente como referência para comparar com o estado interno atual e

caracterizá-lo como “morto”;

II.III.IV. Estrutura psicológica: a estrutura psicológica está indicando

hipergeneralização de um aspecto interno para todos os outros, de modo que os outros

aspectos internos são anulados em detrimento daquele hipergeneralizado.

II.IV. Parâmetros: o produtor relaciona seus estados internos do passado supostamente

indicativos de estar vivo por dentro com os estados internos atuais indicativos de se estar

morto.

III. Considerações acerca da eventivação – seção 3.5:

III.I. O evento atual narrado é contínuo, pois é indicativo de que o sujeito está morto

por dentro e que não existe indicação de cessação do evento;

III.II. O evento indica uma situação de estado interno;

III.III. O evento é local, já que é internamente localizado.

IV. Considerações acerca da imaginação recursiva – seção 3.6

O mais impressionante dessa narrativa é o estado mental que se atinge a ponto de se

experienciar a sensação de já estar morto por dentro. O produtor experiencia uma sensação

de embotamento afetivo tão intensa que não percebe algo correspondente a sensação de se

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estar vivo, no momento da enunciação da narrativa. A mente do produtor simula a experiência

sensorial consciente de estar morto por dentro, ao mesmo tempo em que parece perder a

distinção entre o hipotético e o real, pois não está, em definitivo, morto por dentro. Existe,

nesse caso, um déficit na atuação da pretence. É como se o processo de simulação estivesse

no automático e o sujeito não levasse em consideração a realidade à sua volta ao enunciar tal

narrativa.

Outra consideração é a relação da não inibição dos pensamentos negativos e da

anulação emocional (“morto por dentro”) durante a enunciação da narrativa em questão e, em

contrapartida, o alto nível do aspecto imaginativo da narrativa. A predição, nessa narrativa, é

de um estado de anulação interior, parecendo um processo recursivo em que se traz de volta a

sensação do trauma, que anula a sensação corporal atual. A imagem mental de anulação pode

estar presente trazendo a sensação quase perceptual de estar “morto por dentro”. O sujeito

pode estar, imaginativamente, trazendo essa sensação à consciência. O blending vem

mesclando as sensações internas com a sensação, possivelmente, do estado interno durante o

evento traumatizante, levando à emergência de uma mescla de que se está morto por dentro

temporalmente contínua e ininterrupta.

V. Recursão: ela se dá aqui na inserção da memória do estado interno, no momento do

evento traumático, na memória do estado interno atual, o que resulta na emergência

imaginativa de um estado atual de morte interna. A recursão também está iminentemente

ligada ao processo imaginativo de sobreposição de imagens mentais. Tal sujeito que imagina,

mescla memórias sensoriais e cognitivas de vários âmbitos (transmodalmente), a fim de

produzir uma emergência única e atual, nesse caso, de sensação de “morto por dentro”.

VI. Considerações acerca da memoração e do self – seção 3.7

O self rememorado, que é instanciado, constrói-se por meio de experiências e

vivências anteriores, especificamente, aquelas relacionadas ao evento traumatizante. Tanto o

autoconceito, “me”, influencia o que é rememorado de modo que a avaliação feita é negativa,

quanto a própria avaliação negativa leva a um autoconceito negativo. Em relação ao aspecto

cinestésico do self, o que se vê é um corpo vivo, que sente, que se meche, mas o que se

experiencia é um corpo que está morto e que não sente. Ocorre uma cisão entre o que se vê e

o que se experiencia em relação à construção do self.

Vemos o “eu” desse self, que pensa nele mesmo, verbalizando-o como “morto por

dentro”, enquanto o “me” do self tem seus traços identificados com a sensação de se estar

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morto. O “eu” julga os traços do “me” compatíveis com o estado de se estar morto.

A memória da sensação interna de embotamento afetivo se atualiza constante e

continuamente, mas mantendo o tema de embotamento afetivo presente no tempo atual. Essa

memória dá origem a um self desintegrado, pois ele não é capaz de aperceber-se de seu estado

interno como faria antes do trauma.

Narrativa 11: “Eu nunca serei capaz de me relacionar com as pessoas novamente.”

I. Considerações categoriais – seção 3.1

Este sujeito também é categorizado como hiporresponsivo, pois sua narrativa diz

respeito a um embotamento afetivo direcionado a objetos externos, no caso, pessoas do

convívio do produtor da narrativa.

II. Considerações acerca da narrativa – seção 3.4

II.I. Domínios:

II.I.I. Contexto: produtor vítima de um evento traumatizante narrando sua

impossibilidade de sentir emoção para com pessoas do seu convívio;

II.I.II. Produtor (eu): sujeito traumatizado se instanciando enquanto falante de um

discurso a respeito de seu estado interno no que concerne às suas relações interpessoais;

II.I.III. Percebedor (tu): percebemos um sujeito que sofre com uma sensação de

embotamento afetivo em relação às suas relações;

II.I.IV. Mundo circunvizinho (ele): o mundo interno de embotamento afetivo é muito

mais importante nessa narrativa, sendo que o mundo das pessoas com quem o produtor se

relaciona é apenas um gatilho para desencadear a sensação, ou melhor, a falta de sensação

interna, isto é, o embotamento afetivo.

II.II. Atenção: a atenção tem como gatilho as relações interpessoais para direcionar seu

foco para a falta de sensação emocional interna.

II.III. Estratos:

II.III.I. Estrutura espacial: o espaço a que a narrativa se refere é aquele das relações

interpessoais. Não existe um espaço específico, mas sim um espaço onde ocorrem as relações;

II.III.II. Estrutura temporal: essa estrutura se mostra como um evento contínuo para

além da eternidade. O “nunca” é um advérbio que indica que o produtor acredita que esse

quadro não vai acabar jamais e se estenderá enquanto o produtor existir;

II.III.III. Estrutura causal: essa estrutura é marcada pela contraposição dos advérbios

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de tempo “nunca” e “novamente”, pois tal contraposição deixa claro que algo que nunca mais

ocorrerá, já ocorreu em algum momento do passado. É provável que esse momento do

passado se estenda anteriormente ao trauma e o momento a que o “nunca” se refere, estenda-

se do trauma ao momento atual;

II.III.IV. Estrutura psicológica: o sujeito produtor enuncia uma narrativa com

generalização e hipérbole em relação ao seu estado relacional social e ao seu estado

emocional interno. É provável que exista uma crença de incapacidade ativada.

II.IV. Parâmetros: os advérbios “nunca” e “novamente” se relacionam de forma muito

íntima, pois eles definem o estado emocional atual e o anterior ao trauma. A relação social a

que o produtor se refere também é marcada nessa narrativa. O acesso avaliativo aos

sentimentos é considerado inexistente por parte do produtor e sua capacidade de se relacionar

também.

III. Considerações acerca da eventivação – seção 3.5:

III.I. O evento de embotamento afetivo após o trauma é contínuo ao longo do tempo e

“nunca” cessará;

III.II. O trauma iniciou um evento de embotamento afetivo situacional permanente. A

situação se estende da mesma forma, do momento do trauma até o infinito da vida, pois ela

“nunca” vai terminar;

III.III. O embotamento afetivo assume um caráter local interno, mas, ao mesmo

tempo, ele se estende para as relações também, podendo-se dizer global.

IV. Considerações acerca da imaginação recursiva – seção 3.6

A pretence aparece aqui ao se levar em consideração a situação atual real de possível

dificuldade de se relacionar com pessoas e uma situação simulada de se relacionar com

pessoas num futuro qualquer, ou mesmo no passado, quando o sujeito produtor da narrativa

mantinha outro tipo de relação interpessoal. A não diferenciação do que é real e do que é

hipotético está clara quando se acrescenta o advérbio “nunca” à narrativa. Também podemos

notar a presença, com maior afinco, da predição de um futuro de embotamento afetivo

relacional com possíveis pares, pois as relações atuais se dão, possivelmente, com essa

sensação desde o evento traumatizante. É provável que a pretence juntamente com a predição

formem um mundo simulado que não leve em conta o mundo real. E o principal dessa

narrativa é que ela se faz de forma que esse “não leve em conta” é automático, ou seja, as

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65

fantasias novamente não são refreadas e produzem narrativas que fazem evidenciar tal

processo.

O mundo ameaçador das avaliações negativas está recorrentemente presente e se

atualizando nas várias narrativas de nosso corpus. Os pensamentos negativos estão,

provavelmente, pululando a mente desse sujeito, pois esses pensamentos não são refreados

pela automatização da pretence e as ações na forma de discurso estão prontamente

relacionadas a essa automatização. A imagem mental de embotamento afetivo possui frescor

sensorial forte o bastante para que o sujeito se perceba sem emoção e isso significa que o

caráter experiencial dessa memória perceptual é verídico e com provável origem no trauma. O

blending mescla o estado atual de embotamento afetivo com as relações interpessoais,

produzindo uma mescla de relacionamentos sem afeto, além de mesclar o estado de

embotamento do momento do trauma com quaisquer outros momentos da vida da pessoa após

o trauma, gerando um sentimento de embotamento contínuo e ininterrupto evidenciado pelo

“nunca” da narrativa. Todos os aspectos simulados, hipotetizados, são mesclados com os

atuais e também com os aspectos negativos experienciados no tempo da ocorrência do

trauma e, assim, produzem uma mescla que emerge na forma de tal narrativa.

V. Recursão: aparece como uma viagem do tempo mental inserindo o tempo passado

no presente e no futuro. A recursão está atuando em todo o processo imaginativo e de

memória autobiográfica levando à produção da narrativa que circunscreve o passado, o

presente e o futuro.

VI. Considerações acerca da memoração e do self – seção 3.7

O “eu” do self que se avalia sendo “incapaz” de perceber traços do “me”, os quais

referenciam essa incapacidade enunciada na narrativa. Essa maneira definidora adotada pelo

“eu” para dizer do “me”, autoconceito, leva a um foco atencional na construção de uma

memória autobiográfica de incapacidade relacional para o futuro, assim como a emergência

de tal memória autobiográfica de incapacidade relacional leva à emergência de um

autoconceito negativo em relação a esse aspecto do self. A memória de embotamento do

trauma emerge continuamente atualizada, mas insistentemente com indicações de

embotamento afetivo. O self se constitui enquanto pessoa que não tem acesso às próprias

emoções. Os aspectos cinestésicos do self podem estar afetados levemente, nesse exemplo,

mas é fácil notar o quanto ele pode estar afetado nos quadros conversivos, onde o sujeito não

se vê enquanto agente de um membro, etc. Esse self, em definitivo, não emerge de forma

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66

integrada; ele está dividido e gera uma memória autobiográfica descontínua.

Narrativa 25: “Se eu não controlar meus sentimentos firmemente...

…eu não serei hábil para trabalhar e perderei meu emprego.

…eu irei perder a paciência e ofenderei pessoas.”

I. Considerações categoriais – seção 3.1

Esse enquadramento narrativo é eminentemente hiporresponsivo, pois o produtor tenta

insistentemente controlar seus sentimentos, impedindo que eles sejam manifestados.

II. Considerações acerca da narrativa – seção 3.4

II.I. Domínios:

II.I.I. Contexto: o produtor narra o que sustenta seu comportamento evitativo em

relação aos seus próprios sentimentos;

II.I.II. Produtor (eu): o produtor da narrativa se instancia por meio de uma operação

imaginativa de previsão contrafactual de futuros trágicos;

II.I.III. Percebedor (tu): percebemos enunciações narrativas imperativas do tipo

“se...então” sempre com possibilidades de pouca adequação social;

II.I.IV. Mundo circunvizinho (ele): o mundo a que a narrativa se refere é

contrafactualmente construído de forma que o “se” se refere ao mundo interno e o “então” se

refere ao desastre no mundo externo que o “se” deve evitar, caso o sujeito obedeça a ordem

“se...então”.

II.II. Atenção: ela se direciona para o mundo interno e a luta por manter as emoções

embotadas e inalcançáveis ao próprio sujeito.

II.III. Estratos:

II.III.I. Estrutura espacial: são contraposições entre o espaço interno, emoções e algo

que deve ser feito nesse espaço para que não ocorra algo no espaço externo, o mundo;

II.III.II. Estrutura temporal: é marcadamente construída em torno do contrafactual com

um verbo no infinitivo na primeira parte dele e um verbo, quase sempre, no futuro do

presente, na segunda parte dele;

II.III.III. Estrutura causal: ela é marcada como algo que deve ser feito no presente para

se evitar algo que possa ocorrer causalmente no futuro próximo;

II.III.IV. Estrutura psicológica: existe claramente uma crença de descontrole

emocional e comportamental, pois o produtor se vê impelido ao descontrole comportamental,

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67

caso não controle as emoções, embotando-as.

II.IV. Parâmetros: a relação construída pelo produtor da primeira parte com a segunda

do contrafactual é, eminentemente, causal e consequencial. Caso a primeira parte não se

cumpra, a segunda se seguirá.

III. Considerações acerca da eventivação – seção 3.5:

III.I. O evento é um contínuo no qual um evento desemboca na ocorrência do outro;

III.II. O evento ocorre na forma de um processo que evolui e gera repercussão;

III.III. O evento é local, dando-se no trabalho ou na relação com os filhos.

IV. Considerações acerca da imaginação recursiva – seção 3.6

Essa narrativa diz respeito a uma simulação no presente de um fato hipotético que

pode ocorrer no futuro, caso o presente não seja controlado. O sujeito da narrativa perde a

distinção entre o que é hipotetizado e o que, de fato, ocorrerá. O fato de se ter sentimentos e

não controla-los não, necessariamente, levará a ofensas às pessoas ou à perda do emprego,

mas o sujeito não leva isso em consideração. O evento do futuro é considerado real, mesmo

não tendo ocorrido ainda. A pretence promove uma quebra do espaço-tempo do sujeito que

produz a narrativa. Parece-nos que essa pretence também é automatizada e leva julgamentos

simulados a serem narrados como se fossem realidades presentes definidas. Novamente,

existem altos níveis de pensamento negativo catastrófico e baixos níveis inibitórios sobre

pensamentos intrusivos e sobre as próprias narrativas negativas sem freio do julgamento. O

sujeito da narrativa pretend uma predição por meio dos “e se”, que dão saídas evitativas para

o fato de se tentar, a todo custo, controlar o pensamento, as emoções e tudo que possa fazer

emergir alguma emoção. As tomadas de perspectivas que são utilizadas sempre levam ao

embotamento afetivo. A imagem mental que se gera é de que as emoções vão desencadear

situações negativas. O blending emerge justamente na forma da narrativa que mescla o

presente (se) e o futuro (então), além de ter elementos do passado que indicam sintomas do

trauma, tal como o descontrole emocional. O blending mescla o pensamento avaliativo

negativo com situações catastróficas no futuro, fazendo com que o produtor da narrativa não

consiga diferenciar a realidade da mescla imaginada.

V. Recursão: dá-se novamente como uma viagem no tempo mental, na qual o produtor

se projeta para o futuro, englobando o embotamento afetivo do evento traumatizante do

passado no futuro. A recursão traz emergências mnêmicas mescladas à imaginação,

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68

promovendo a atualização do passado no presente e do futuro no presente de forma não

criteriosa. O produtor não julga a veracidade e a realidade da narrativa, apenas narra.

VI. Considerações acerca da memoração e do self – seção 3.7

O self que se vê enquanto sujeito da experiência de ter que controlar seus próprios

sentimentos percebe traços de seu autoconceito, “me”, que indicam um descontrole

comportamental em função desses traços. A memoração é uma condição de atualização das

experiências do sujeito, ao embotar as emoções pós-trauma e suas vivências posteriores a esse

evento com subsequente tentativa de manter o embotamento ativo, a fim de evitar reações

comportamentais desenfreadas. Esse relato muito diz a respeito da menor inibição das ações

promovida pela automatização da pretence.

4.2.2 Hiper-responsivos

Narrativa 1: “Nenhum lugar é seguro.”

I. Considerações categoriais– seção 3.1

Condizente com o que encontramos em Orr, Metzger e Pitman (2002) acerca da maior

frequência de sujeitos hiper-responsivos entre aqueles com trauma, é provável que essa

narrativa também indique essa concordância, pois ela denota um sinal de hipervigilância por

parte de seu produtor.

II. Considerações acerca da narrativa – seção 3.4

II.I. Domínios:

II.I.I. Contexto: sujeito traumatizado avaliando a circunstância na qual o trauma

aconteceu e projetando-a para o tempo-lugar presente;

II.I.II. Produtor (eu): sujeito traumatizado que se instancia enquanto falante de um

discurso;

II.I.III. Percebedor (tu): nós que fazemos a leitura;

II.I.IV. Mundo circunvizinho (ele): o objeto do discurso dessa narrativa é justamente o

mundo como um todo. De forma generalizada e globalizante, todo o mundo é tomado como

perigoso e inseguro.

II.II. Atenção: a atenção desse produtor está voltada para a avaliação da circunstância

em que o trauma aconteceu. É lícito, então, que as operações cognitivas tenham esse fato

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69

como norteador da narrativa, assim como a própria narrativa acerca desse fato norteie a

atenção para os dados que confirmem o que é dito do mundo no próprio mundo (interno e

externo) do falante.

II.III. Estratos:

II.III.I. Estrutura espacial: o quantificador “nenhum” faz referência lógica ao

substantivo “lugar” para dizer da insegurança apresentada pelo produtor da narrativa diante de

quaisquer locais em que se encontre. Visto que nossa suspeita é de hiper-responsividade, esse

sujeito deve estar atento a quaisquer sinais que o mundo apresente que denotem insegurança,

mesmo que o dano potencial de tais sinais seja infinitamente menor do que aquele imaginado

pelo produtor em questão;

II.III.II. Estrutura temporal: o verbo “ser” no presente do indicativo diz respeito à

insegurança no momento presente;

II.III.III. Estrutura causal: pelo fato de ter ocorrido um evento que provocou grande

sensação de insegurança no passado, essa narrativa generaliza e projeta esse evento do

passado para quaisquer locais possíveis, tomando-os como inseguros;

II.III.IV. Estrutura psicológica: o que mais chama a atenção em relação à estrutura

psicológica desse produtor, nessa narrativa, são a avaliação e pressuposição negativas

mediadas pela crença de que o mundo é inseguro;

II.IV. Parâmetros: as relações acessadas pelo produtor da narrativa são,

fundamentalmente, as circunstâncias em que o trauma ocorreu e o contexto circunvizinho

atual.

III. Considerações acerca da eventivação – seção 3.5

O evento atual de insegurança é tomado como uma continuação de um evento ocorrido

no passado, o trauma. A insegurança experimentada no evento traumático se arrasta ao longo

da vida da pessoa. A experiência do trauma é atualizada e se transforma num processo

traumatizante contínuo ao longo do tempo-espaço, ou seja, se torna um evento globalizante

têmporo-espacialmente falando.

IV. Considerações acerca da imaginação recursiva – seção 3.6

Nessa narrativa, a pretence pode estar automatizando a mescla da realidade [segura]

com a memória autobiográfica do evento traumatizante [inseguro e danoso], levando a uma

predição de um mundo inseguro no presente vivido. Esse fenômeno pode também ser

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70

resultante de altos níveis de fantasias associados a baixos níveis de inibição de pensamentos e

ações, como encontrado nas outras narrativas.

Tal predição inverídica é imaginada por meio de imagens mentais de todos os âmbitos

sensoriais, mantidas na mente consciente com caráter quase perceptual, de forma que a mente

(re)cria, no presente, uma atualização, uma memória perceptual verídica, de um evento

traumatizante do passado. O caráter fenomenológico dessas imagens demonstra um grande

frescor sensorial a ponto do produtor dessa narrativa não diferenciar a imagem mental da

percepção sensorial atual, ou mesmo, corromper a percepção sensorial atual com um caráter

imaginário da memoração. Essa corruptela da informação sensorial pela memoração do

evento traumatizante surge em função do blending fundir emergências sensoriais com

memorações do trauma, emergindo em uma nova informação de insegurança globalizante e

indiscriminada. Pelo fato da memória biográfica está intimamente ligada à narrativa e às

imagens mentais, ela foi acrescentada a este comentário, ao anterior e ao próximo item a

seguir.

V. Recursão: essa operação aqui se mostra, primordialmente, em função de inserção

de memórias de locais inseguros dentro da percepção de locais atuais.

VI. Considerações acerca da memoração e do self – seção 3.7

Pelo fato da memória autobiográfica estar intimamente ligada à predição, às imagens

mentais e ao self, ela ocupa um lugar central na psicopatologia da narrativa do trauma. As

memórias intrusivas do evento traumatizante não podem ser vistas apenas como relatos do

evento traumatizante em si, e sim como influenciando todas as construções narrativas

preditivas e imaginárias, além daquelas que dizem respeito às mudanças no self em função do

trauma. Na narrativa 1, o produtor não está enunciando um fato do evento traumatizante em

si, e sim a retomada da insegurança experienciada naquele evento, a qual é projetada no

momento presente como um evento que, por meio da atualização mnêmica imaginária, é

mesclada à realidade e não acabou.

Narrativa 2: “O próximo desastre irá irromper logo.”

I. Considerações categoriais – seção 3.1

Novamente, como na narrativa 1, essa apresenta um produtor hiper-responsivo e

hipervigilante a dados do ambiente que possam indicar um desastre iminente.

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71

II. Considerações acerca da narrativa – seção 3.4

II.I. Domínios:

II.I.I. Contexto: sujeito traumatizado avaliando as circunstâncias circunjacentes em

função daquelas nas quais o trauma aconteceu, sendo essas projetadas para o tempo-lugar

presente daquelas;

II.I.II. Produtor (eu): sujeito traumatizado que se instancia enquanto falante de um

discurso que, por si só, denota toda uma história de vida;

II.I.III. Percebedor (tu): nós, em nossa análise, como abordado anteriormente;

II.I.IV. Mundo circunvizinho (ele): o objeto do discurso dessa narrativa é justamente o

mundo e os possíveis sinais de um desastre iminente.

II.II. Atenção: a atenção está direcionada justamente para quaisquer sinais que

informem sobre o próximo desastre que está para “ocorrer logo”. A narrativa direciona a

atenção para tais sinais e a atenção promove a produção de tais narrativas que sinaliza o foco

atencional em questão.

II.III. Estratos:

II.III.I. Estrutura espacial: ocorre um visível deslocamento do espaço em que o trauma

ocorreu para o espaço atual percebido pelo produtor. Ao mesmo tempo em que o espaço

passado está sendo localizado num possível espaço-tempo de um futuro próximo [“logo”], a

narrativa apresenta uma estrutura espacial de um caminho em que o desastre é iminente;

II.III.II. Estrutura temporal: o tempo aqui é principalmente marcado pela partícula

“logo” que denota brevidade para a ocorrência de algo, nesse caso, “o próximo desastre”. O

verbo ‘ir’ no futuro do presente do indicativo, de fato, leva um evento do passado para ser

atualizado no futuro;

II.III.III. Estrutura causal: a causa da iminência do próximo desastre só pode ser

explicada por leituras causais comprometidas, pois esse narrador, que produz tal narrativa,

não está, de fato, num meio onde a ocorrência de desastres iminentes é provável, visto que ele

deve estar em um ambiente muito mais seguro do que ameaçador;

II.III.IV. Estrutura psicológica: essa narrativa mostra uma iminência de se ter que

decidir algo acerca do próximo desastre. Os focos atencional e perceptivo estão direcionados

para pistas ambientais que digam respeito a esse desastre iminente. A crença é de insegurança

contínua e persistente. A avaliação acerca da circunstância em que ocorreu o trauma atualiza a

narrativa para os sinais do mundo atual que dizem respeito a uma grande probabilidade de um

próximo desastre.

II.IV. Parâmetros: aqui ocorre uma relação do desastre com uma proximidade

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temporal [“logo”], com uma dada frequência [“próximo”] encadeada e sua ocorrência de

forma precipitada e impetuosa.

III. Considerações acerca da eventivação – seção 3.5:

III.I. Essa narrativa assume um caráter de eventos discretos no tempo, ou seja, cada

desastre tem ocorrência recorrente, mas com fim e início determinados;

III.II. Cada desastre é um evento situacional no tempo-espaço, portanto, estático;

III.III. Esse evento narrado pode ser visto como local.

IV. Considerações acerca da imaginação recursiva – seção 3.6

Aqui também a capacidade de distinguir o hipotético do real da pretence está

deficiente, visto que o produtor da narrativa enuncia a certeza de um desastre iminente e

surpreendente em um ambiente de possível segurança. O mundo simulado de “desastre” deixa

de levar em conta o mundo real de segurança. Ocorre uma alteração na discriminação da

realidade em detrimento dos mundos ameaçadores imaginados pelo produtor. Esse mesmo

mecanismo se repete inúmeras vezes em várias de nossas narrativas. Assim como nas

narrativas anteriormente analisadas, também percebemos uma provável alta ativação de

fantasias com baixa inibição de pensamentos negativos e ações, pois esse sujeito apresenta-se

hiperativado para fuga ou luta, ou seja, hiper-reativo.

Assim como Taylor, Carlson e Shawber (2007) relataram que a valência negativa do

conteúdo imaginário em desacordo com conteúdos conscientes poderia contribuir com a

ilusão de atuação independente tanto em crianças com amigos imaginários, quanto em

escritores de ficção, aqui também a alta carga negativa da valência imaginativa pode levar o

produtor a entender que o ambiente atue para lhe fazer mal. O ambiente assume um caráter

intencional contra o produtor da narrativa.

A pretence também capacita a predição a sugerir “e se” alternativo à experiência atual

de segurança. Este “e se” alternativo é justamente aquele da insegurança, da iminência do

desastre. Este “e se” alternativo de insegurança nos dá a possibilidade de criar estratégias

diferentes daquelas vivenciadas anteriormente, no momento do trauma. Tais estratégias

alternativas são aquelas possivelmente protetivas de hiperativação autonômica, ou seja, de

hiper-responsividade. Tais cenários “e se” são, para Boyer (2007), automatizados, ou seja,

fora do controle consciente, assim, também estão de acordo com aqueles que pesquisam as

respostas de sobressalto em traumatizados (McMANIS, et al., 2001; POLE, 2007).

Tal como Morris (2001) demonstrou em relação aos estímulos relacionados ao medo,

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73

processados por vias inconscientes, que imagens mentais podem assumir um caráter

transmodal, no qual imagens desencadeadas por uma percepção em um domínio sensorial

desencadeiam imagens mentais em outro(s) domínio(s) sensorial(is), assim também podemos

observar nesses sujeitos hiperativado [arousal] ou hiper-responsivos, em que quaisquer sinais

ambientais podem desencadear a formação de imagens mentais nos mais diversos domínios

sensoriais. Barulhos podem desencadear imagens visuais de perigo; cheiros podem

desencadear a lembrança do rosto de um estuprador, etc. Nessa narrativa, o produtor pode

também, por estar hiperativado, responder dessa forma transmodal relatada por Morris.

O blending está presente e é responsável pela mesclagem deste algo que “irá irromper

logo” com “o desastre” anterior, ou seja, o desastre do trauma. O produtor está mesclando a

memoração imaginativa do evento traumatizante com o “e se” de um evento futuro,

transformando o futuro na emergência de uma hipótese de desastre iminente.

V. Recursão: a recursão, novamente, ocorre na forma de viagem no tempo mental,

donde o produtor insere experiências e memórias autobiográficas passadas nas atuais e nas

futuras, promovendo um julgamento de desastre iminente reiteradamente.

VI. Considerações acerca da memoração e do self – seção 3.7

A memoração nessa narrativa é ativada por meio da imaginação recursiva que mescla

as memórias de imagens mentais à percepção atual, emergindo em uma narrativa de

hipervigilância em relação a um possível desastre iminente. O self desse sujeito não apresenta

aparente emergência de descontinuidade ou alterações identitárias, mas sem dúvida ele se

constitui enquanto hipervigilante, um self em perigo constante, um self iminentemente

vulnerável em relação ao ambiente.

A fim de que a análise não fique exaustivamente repetitiva, visto que nós já

mostramos como ela está sendo realizada, vamos passar a uma subseção resumo deste

capítulo que agrupa todas as narrativas por semelhanças.

4.2.3 Análise por agrupamento

I. Considerações categoriais – seção 3.1

Produtores hiporresponsivos: narrativas 10, 11, 25.

Produtores hiper-responsivo: narrativas 1, 2, 7, 8, 9, 30, 31, 36.

Narrativas de difícil avaliação: 3, 4, 5, 6, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23,

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24, 26, 27, 28, 29, 32, 33, 34, 35, 37.

II. Considerações acerca da narrativa – seção 3.4

II.I. Domínios:

II.I.I. Contexto: o Quadro 1 mostra as circunstâncias em que a narrativa ocorreu na

coluna “O QUE É AVALIADO”, então todas as narrativas são enunciadas nas circunstâncias

discriminadas naquele Quadro, as quais vão do item 1 ao 23. O Quadro 2 não especifica as

circunstâncias contextuais de enunciação da narrativa e sim a “ESTRATÉGIA

DISFUNCIONAL” adotada pelo sujeito ao avaliar sua produção narrativa;

II.I.II. Produtor (eu): em todas as 37 narrativas, o produtor foi um sujeito vítima de um

trauma violento que desenvolveu sintomas em decorrência da experiência traumatizante;

II.I.III. Percebedor (tu): em todos os casos, somos os analistas das narrativas.

II.II. Direcionamento atencional para:

O direcionamento atencional ocorre para circunstância têmporo-espacial nas

narrativas: 1 e 2;

A atenção direciona-se para o “eu” nas narrativas: 3, 5, 6, 7, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 16,

17 e 20;

O foco da atenção nas narrativas é nos outros em: 4, 9, 11, 16, 17, 18 e 19;

Narrativas cujo foco foi expresso por um único tema: foco no casamento, 8; foco no

emprego, 15; foco na vida, 21; foco na casa, 23; foco nos filhos, 22;

As narrativas 11, 16 e 17 têm foco de direção atencional duplo, tanto nos outros

quanto no próprio “eu”.

II.III. Estratos:

II.III.I. Estrutura espacial:

Ocorre um deslocamento da estrutura de aspectos do trauma, situação ou roupas, para

um momento futuro, na narrativa 29. É como se algo que foi realizado de forma semelhante

ao momento do trauma não pudesse mais ser realizado, pois poderá atrair outro evento

traumatizante;

Há um deslocamento de características do local onde ocorreu o trauma para o local

atual nas narrativas 1 e 30. É como se o produtor declarasse que existe algo no ambiente que

denote a ocorrência de um novo evento traumatizante e que, caso ele se previna na

identificação desse algo, ele será capaz de evitar o novo dano traumatizante;

Na narrativa 28, ocorre uma identificação da estrutura espacial local com o evento

traumatizante, situação na qual o produtor figura um possível dano atribuído ao local e não ao

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evento. É como se o local criasse autonomia e intencionalidade para causar o dano.

Novamente, pode ser que haja uma ilusão de atuação independente do ambiente, assim como

exposto em Taylor, Carlson e Shawber (2007);

Em algumas narrativas, ocorre o deslocamento da situação em que ocorreu o trauma

para a situação atual: 3, 4, 5 e 6;

Em outras narrativas, ocorre o deslocamento do evento traumatizante, localizado no

espaço, para um caminho: 2, 13 e 14;

Narrativas que narram um caminho interno: 24, 25, 26, 27, 31 e 33;

Em apenas uma narrativa, foi evidenciado um caminho externo: 34;

A narrativa 8 faz referência à mudança de uma situação externa para uma situação

pior, que no caso é o casamento. A narrativa 15 diz de uma mudança situacional externa,

assim como acontece nas narrativas 18, 22 e 23. A narrativa 35 faz referência a uma situação

externa, assim como a 36;

A narrativa 7 não faz referência direta à estrutura espacial, mas podemos dizer que, em

algum grau, ocorre uma mudança de estrutura situacional interna, mudança da personalidade.

A 9 também adota esse formato, em que ocorre uma mudança da estrutura situacional interna

de confiabilidade do produtor em relação aos cuidados com as crianças. A narrativa 10 diz de

uma mudança de estrutura situacional interna [“por dentro”]. A narrativa 11 diz de uma

mudança situacional interna e externa. A narrativa 12 diz de mudança situacional interna. A

narrativa 16 apresenta uma situação interna, assim como as narrativas 17, 19, 20, 21, 32 e 37;

II.III.II. Estrutura temporal:

A temporalidade marcada pela conjugação verbal, de forma geral, ou se encontra no

presente do indicativo (1, 3, 4, 5, 6, 7, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19 e 20), ou no

futuro do presente do indicativo (2, 8, 21, 22 e 23). De 24 a 37, as narrativas se organizam

com o formato temporal de um tempo no presente marcado pelo infinitivo do verbo e um

tempo no futuro marcado pelo futuro do presente. De forma geral, a temporalidade, ou se

expressa categorizando algo negativo no presente em função do passado (1, 3, 4, 5, 6, 18 e

19), ou categorizando um futuro negativo (2, 8, 20), ou categorizando o presente negativo

caminhando para um futuro negativo (7, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 21, 22 e 23), ou unicamente

no presente (16 e 17);

II.III.III. Estrutura causal:

De 24 a 37, temos uma estrutura causal bem delineada, de forma que existe uma

função lógica com algo que deve ser feito no presente para evitar algo ruim no futuro. As

outras narrativas assumem particularidades, tais como as abordadas nas seções 4.2.1 e 4.2.2;

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II.III.IV. Estrutura psicológica: foi apresentada como “AVALIAÇÕES NEGATIVAS”

pelos autores (EHLERS; CLARK, 2000). A característica mais marcante foi o tom

catastrófico de tais narrativas, geralmente, indicando um evento ruim em si mesmo, no mundo

ou em relação às pessoas em volta do produtor da narrativa. Tais catástrofes, geralmente,

referem-se a um futuro próximo e, muitas vezes, inevitável e repentino, já, outras vezes,

demandando alguma ação presente para evitar o dano num futuro próximo. Ou seja, todas as

narrativas têm um fundo psicológico de vulnerabilidade, como se o sujeito enunciasse “Estou

em perigo!”;

II.IV. Parâmetros: esse item é o mais diverso possível, já que depende da intricada

organização da narrativa e é de difícil agrupamento;

III. Considerações acerca da eventivação – seção 3.5

III.I. Evento discreto: 2, 8, 15, 22 e 23;

Evento contínuo: 1, 3, 4, 5, 6, 7, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 16, 17, 18, 19, 20 e 21. Da

narrativa 24 à 37, todas são eventos contínuos pelo caráter contrafactual da narrativa;

III.II. Evento processual: 2, 7, 8, 12, 13, 15, 22 e 23. Da narrativa 24 à 37 existem

processos pelo caráter contrafactual adotado por elas;

Evento situacional: 1, 3, 4, 5, 6, 9, 10, 11, 14, 16, 17, 18, 19, 20 e 21;

III.III. Evento global: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 11, 12, 13, 16, 17, 18, 19 e 21;

Evento local: 7, 8, 9, 10, 14, 15, 20, 22 e 23;

Não ocorreram eventos microlocais. Os eventos enunciados nas narrativas de 24 a 37

têm suas classificações influenciadas pelo tipo de enunciado na segunda parte do

contrafactual e não têm como serem agrupados de forma integral, já que em alguns casos a

junção da primeira com a segunda parte resultará em eventos, ora local, ora global.

IV. Considerações acerca da imaginação recursiva – seção 3.6

De forma geral, todas as narrativas apresentam alguma atuação imaginativa trazendo

do passado algo que tem a ver com o trauma para o presente ou projetando no futuro um

evento catastrófico. A pretence tem ação preponderante, ao se automatizar, levando à baixa

inibição dos pensamentos intrusivos e ações e, ao mesmo tempo, elevação das fantasias e

pouca diferenciação entre o real e o imaginado. A predição está presente de forma bem

intensa nos contrafacturais do Quadro 2. O blending sempre é responsável pela mesclagem

desses conteúdos têmporo-espacialmente localizados, enquanto a recursão é a responsável

pela inserção de um tempo-espaço noutros ou pela leitura mental.

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V. Considerações acerca da memoração e do self – seção 3.7

A constituição do self fica eminentemente influenciada pela memória do trauma a

ponto de que todas as narrativas [negativas] têm alguma inserção recursiva do evento

traumatizante. O self se constitui desintegrado nas narrativas de hiporresponsivos e sempre

considerando aspectos negativos de seu autoconceito em todas as narrativas. Os aspectos da

memória autobiográfica estão presentes, influenciando a negatividade das narrativas ou vice-

versa.

4.3 Análise global

A natureza do conhecimento humano é definitivamente influenciada pelas

experiências a que nossos corpos são expostos. Quando consideramos a expressão “nossos

corpos”, estamos fazendo referência a toda construção experiencial que se faz presente ao

atuarmos no mundo, visto que precisamos ver para poder enxergar e ouvir para poder falar.

Nossas experiências vão moldando nossos corpos e, por contiguidade, nosso sistema

cognitivo, o qual se prepara para poder superar possíveis dificuldades ambientais e integrar-se

ao meio circunjacente. Essa integração ocorre por meio de emergências adequadas à

adaptatividade e à sobrevivência. Em função das emergências comportamentais, emocionais,

psicofisiológicas e linguageiras, nós atingimos ou não estas adaptatividade e sobrevivência.

No caso dos sujeitos com trauma, esses dois aspectos ficam intensamente comprometidos por

emergências disfuncionais. Chamamos de disfuncionais aqui os dois padrões avaliados por

nós e categorizados em relação aos sujeitos traumatizados, isto é, hipo e hiper-responsividade,

pois, tais padrões levam a prejuízos funcionais desses sujeitos no meio circunjacente, já que

várias funções exercidas antes do trauma são marcadamente prejudicadas, ocasionalmente,

para o resto da vida desses sujeitos. Por meio desta consideração, de que o conhecimento

linguístico iminentemente depende da experiência, parece que a experiência traumatizante

molda esse conhecimento linguístico a ponto dele se organizar, em narrativas, em torno

daquele evento.

Podemos evidenciar, por meio de tais narrativas, significações idiossincráticas, nas

quais o órgão da linguagem opera em consonância com outros sistemas cognitivos para

produzir narrativas cuja natureza demonstra alterações, por exemplo, da pretence, ou melhor,

em sua capacidade de promover a distinção entre o hipotético e o real. O mundo simulado dos

sujeitos traumatizados, automaticamente, deixa de levar em conta o mundo real, produzindo

avaliações negativas a respeito do mundo real que não têm precedente no próprio mundo real

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e sim no mundo simulado ou no mundo atualizado da memória autobiográfica. Vemos isso

em todas as narrativas coletadas nos Quadros 1 e 2.

De forma geral, ocorrem altos níveis de pensamentos imaginativos catastróficos

associados a baixos níveis de inibição de pensamentos intrusivos e ações. As ações não

refreadas podem ser notadas no sobressalto excessivo e nas reações de fuga, muito presentes

nos hiper-responsivos. Assim como os sintomas conversivos também demonstram ações não

refreadas nos sujeitos hiporresponsivos. Os pensamentos e memórias intrusivos e contínuos

associados às ruminações também são demonstrações de baixos níveis de inibição de

pensamentos de forma geral. As fantasias, então, tomam o palco da consciência e se fazem

self tanto do ponto de vista daquela parte do self que pensa, conhece e age, quanto daquela

parte que constitui o autoconceito.

A predição promovida pela criação de cenários “e se” é de extrema utilidade tanto do

ponto de vista consciente quanto do inconsciente, visto que as últimas são profundamente

estabelecidas em nossos corpos e se tornam automáticas e reflexivas, promovendo estratégias

de enfrentamento rápidas e possivelmente eficazes. Embora as estratégias sejam

inconscientes, os resultados possíveis são conscientemente experimentados pelos sujeitos

traumatizados e podem emergir na forma de narrativas, tais como estas de nossa análise. A

criação de tais cenários possíveis é vista eminentemente nos contrafactuais das narrativas de

24 a 37, mas esse tipo de predição inconsciente e automática pode ser vista em quaisquer

narrativas que promovam ou demonstrem reações de sobressalto ou mesmo conversão.

O frescor sensorial trazido pelas imagens mentais do trauma tem grande função no

automatismo, disfunção, da pretence. Já que a simulação de predições negativas ganha

vividez e reconhecimento quase sensorial pela atualização da memória autobiográfica do

evento traumatizante, a qual é justamente não refreada pelo automatismo da pretence,

fechando e sustentando o ciclo patopsicofisiológico. Todo esse processo é recursivamente

construído, visto que, o pensamento imaginativo é, por definição, pensamento e,

imediatamente, recursivo. Assim, o self destes sujeitos traumatizados recorrentemente se

constitui enquanto hipo ou hiper-responsivo após o evento traumatizante.

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5 DISCUSSÃO

Gostaríamos de iniciar esse capítulo com a observação de que o conhecimento

emergente nesta dissertação veio a se concretizar como materialização do processo de estudo,

que de longe superou em muito tal materialização. O processo caótico de busca e organização

de informação é muito superior ao que ele deixa emergir, tal como a emergência desse

processo não é a soma de suas partes. Assim também entendemos que acontece com nosso

conhecimento de forma geral e, mais especificamente, com o conhecimento dos sujeitos

traumatizados. Eles deixam emergir apenas a ponta do iceberg de todo um processo caótico

bioquímico, psicofísico e existencial de um ser biopsicossociocultural, tal como o ser humano

é. E tal ponta do iceberg é substancialmente diferente da soma dos processos que a ela deu

origem.

De toda forma, atingimos nosso objetivo de ampliação do modo como entendíamos o

trauma e sua psicopatofisiologia. Hoje, vemos o processo por um olhar da narração e da

cognição como emergências da dinâmica da interação do sistema humano com o meio que o

circunda. Sendo que tais emergências dinamizam-se em torno da imaginação recursiva e suas

alterações, ou melhor, do seu deslocamento da “faixa da normalidade” a que o sistema tende

em pessoas categorizadas como traumatizadas.

Ademais, podemos fazer algumas observações acerca de dificuldades ou problemas

encontrados nesse tipo de trabalho descritivo exploratório, que é dependente de dados de

revisão da literatura, unicamente, não se utilizando de dados produzidos por testes ou mesmo

análise de dados produzidos por um método de coleta direta. Tais dificuldades podem ser

resumidas no parágrafo que se segue.

Nossas narrativas não foram diretamente colhidas por nós, dificultando o processo de

análise, assim como também não coletamos diretamente os dados psicofisiológicos para

cruzar com os dados das narrativas, o que dificultou nosso processo categorial em termos de

quais narrativas provinham definitivamente de sujeitos hipo ou hiper-responsivos. Mais um

ponto a ser considerado é que não sabemos quais eram os padrões cognitivos das pessoas

antes do evento traumatizante e se este padrão primário foi alterado ou não após o trauma.

Diante do exposto, podemos deixar espaço para outro momento, aquele de produção

de dados, ou seja, podemos pensar na montagem de experimentos que promovam a produção

de dados diretamente coletados em interações com sujeitos com sintomas de trauma, que

confirme ou neguem o que foi especulado nesta dissertação.

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6 CONCLUSÃO

Após um trauma, algumas pessoas desenvolvem um padrão cognitivo,

comportamental, psicofisiológico, emocional e enunciativo de atuar no mundo que as

caracteriza como portadoras de Transtorno de Estresse Pós-traumático. Tais padrões podem

ser categorizados como o que chamamos de hiporresponsividade e hiper-responsividade. Os

hiporresponsivos são aqueles sujeitos que apresentam mais sintomas conversivos,

dissociativos, de embotamento afetivo e de pouca integração do self. Os hiper-responsivos são

aqueles com sintomas de hiperestimulação autonômica, tais como irritabilidade, insônia,

sobressalto excessivo e hipervigilância. Todos os dois grupos apresentam em comum um

conjunto de emergências, que se dão de forma idiossincrática em cada sujeito, e tais

emergências advêm [na [da] consciência] após o evento traumatizante. Tais objetos trauma

relacionados são aqueles considerados pelos sistemas classificatórios diagnósticos, como o

DSM, e são facilmente encontrados na literatura científica sobre o tema trauma. No entanto, a

literatura sobre esse assunto ainda apresenta um olhar ortodoxo e pouco integrativo do

conhecimento científico vigente na atualidade, não levando em consideração formas mais

dinâmicas e inter ou transdisciplinares de entendimento do conhecimento humano.

Parece-nos que a Linguística Cognitiva nos possibilita tal entendimento mais

integrativo e também possibilita um olhar diferenciado sobre o fenômeno do trauma e suas

consequências para a vida psíquica de sujeitos traumatizados. Essa disciplina nos orienta a

concluir, que grande parte das características idiossincráticas comuns aos sujeitos que

vivenciaram um evento traumatizante, ou melhor, grande parte do padrão cognitivo,

comportamental, psicofisiológico, emocional e enunciativo advém da atuação da imaginação

recursiva associada à atualização da memória [memoração] na constituição do self observado

em narrações produzidas por esses sujeitos. Melhor dizendo, pudemos notar que tais padrões

de responsividade, baixa ou aumentada em relação a estímulos internos ou externos adotados

pelos sujeitos traumatizados, têm como subjacências alterações nas operações imaginativas

sustentadas pela recursão, o que leva a um viés de leitura do mundo, dos outros e de si mesmo

[do self] deficiente, ou melhor, disfuncional em relação ao mundo atual vivido observado nas

narrações produzidas por esses sujeitos. Tais sujeitos com sintomas pós-traumáticos passam

a significar o mundo por um viés eminentemente imaginativo [recursivo] catastrófico e

ameaçador.

Para encerrar nossa conclusão, podemos notar que a Linguística Cognitiva, como

representante de um modelo científico integrativo de estudo da cognição humana por meio da

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linguagem, nos possibilita um entendimento muito mais profundo da forma de conhecimento

humano adotada por sujeitos vítimas de eventos traumatizantes, pois, além de nos permitir a

observação do fenômeno do trauma, ela também nos propicia a explicação dos fenômenos

cognitivos subjacentes às ocorrências fenomenológicas observáveis. Sendo ela, uma forma de

integrar em sistemas complexos ramificados em redes, que interconectam categorias, campos

conceituais e processos de análise, o teor transdisciplinar do conhecimento que recusa

fronteiras delineadas, a fim de promover a construção de uma nova epistemologia que não

responde mais por disciplinas, mas por uma centralidade que coloca o corpo em sua dimensão

mais plural, fundador de todas as formas de conhecimento humano. Portanto, é um modelo a

ser considerado no estudo do trauma e também de outros transtornos da mente.

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ANEXOS

ANEXO A – CRITÉRIOS DIAGNÓSTICOS DO DSM-IV-TR PARA

TRANSTORNO DE ESTRESSE PÓS-TRAUMÁTICO

(continua) A. Exposição a um evento traumático no qual os seguintes quesitos estiveram presentes:

1. A pessoa vivenciou, testemunhou ou foi confrontada com um ou mais eventos que

envolveram morte ou grave ferimento, reais ou ameaçadores, ou uma ameaça à integridade física,

própria ou alheia.

2. A resposta da pessoa envolveu intenso medo, impotência ou horror. Nota: em crianças,

isso pode ser expressado por um comportamento desorganizado ou agitado.

B. O evento traumático é persistentemente revivido em uma (ou mais) das seguintes maneiras.

1. Recordações aflitivas, recorrentes e intrusivas do evento, incluindo imagens,

pensamentos ou percepções. Nota: em crianças pequenas, podem ocorrer jogos repetitivos, com

expressão de temas ou aspectos do trauma.

2. Sonhos aflitivos e recorrentes com o evento. Nota: em crianças, podem ocorrer sonhos

amedrontadores sem conteúdo identificável.

3. Agir ou sentir como se o evento traumático estivesse ocorrendo novamente (inclui um

sentimento de revivência da experiência, ilusões, alucinações e episódios de flashbacks

dissociativos, inclusive aqueles que ocorrem ao despertar ou quando intoxicado). Nota: em crianças

pequenas, pode ocorrer reencenação específica do trauma.

4. Sofrimento psicológico intenso quando da exposição a indícios internos ou externos que

simbolizam ou lembram algum aspecto do evento traumático.

5. Reatividade fisiológica na exposição a indícios internos ou externos que simbolizam ou

lembram algum aspecto do evento traumático.

C. Esquiva persistente de estímulos associados com o trauma e entorpecimento da reatividade geral

(ausente antes do trauma), indicados por três (ou mais) dos seguintes quesitos:

1. Esforços no sentido de evitar pensamentos, sentimentos ou conversas associadas com o

trauma;

2. Esforços no sentido de evitar atividades, locais ou pessoas que ativem recordações do

trauma;

3. Incapacidade de recordar algum aspecto importante do trauma;

4. Redução acentuada do interesse ou da participação em atividades significativas;

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(conclusão) 5. Sensação de distanciamento ou afastamento em relação a outras pessoas;

6. Faixa de afeto restrita (p. ex., incapacidade de ter sentimentos de carinho);

7. Sentimento de um futuro abreviado (p. ex., não espera ter uma carreira profissional,

casamento, filhos ou um período normal de vida).

D. Sintomas persistentes de excitabilidade aumentada (ausentes antes do trauma), indicados por dois

(ou mais) dos seguintes quesitos:

1. Dificuldade em conciliar ou manter o sono;

2. Irritabilidade ou surtos de raiva;

3. Dificuldade em concentrar-se;

4. Hipervigilância;

5. Resposta de sobressalto exagerada.

E. A duração da perturbação (sintomas dos critérios B, C e D) é superior a um mês.

F. A perturbação causa sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social

ou ocupacional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo.

Especificar se:

Agudo: se a duração dos sintomas é inferior a três meses;

Crônico: se a duração dos sintomas é superior a três meses.

Especificar se:

Com início tardio: se o início dos sintomas ocorre pelo menos seis meses após o estressor.

Fonte: SADOCK, 2007, p. 668.

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ANEXO B – EXAMPLES OF IDIOSYNCRATIC, NEGATIVE APPRAISALS

LEADING TO SENSE OF CURRENT THREAT IN PERSISTENT PTSD

What is appraised? Negative appraisal

Fact that trauma happened ``Nowhere is safe''

``The next disaster will strike soon''

Trauma happened to me ``I attract disaster''

``Others can see that I am a victim''

Behaviour/emotions during trauma ``I deserve that bad things happen to me''

``I cannot cope with stress''

Initial PTSD symptoms

Irritability, anger outbursts

``My personality has changed for the worse''

``My marriage will break up''

``I can't trust myself with my own children''

Emotional numbing ``I'm dead inside'',

``I'll never be able to relate to people again''.

Flashbacks, intrusive recollections and

nightmares

``I'm going mad'', ``I'll never get over this''.

Difficulty concentrating ``My brain has been damaged'', ``I'll lose my job''.

Other people's reactions after trauma

Positive responses

``They think I am too weak to cope on my own''

``I am unable to feel close to anyone''

Negative responses ``Nobody is there for me''

``I cannot rely on other people''

Other consequences of trauma

Physical consequences

``My body is ruined''

``I will never be able to lead a normal life again''

Loss of job, money etc. ``I will lose my children''

``I will be homeless''

Fonte: EHLERS; CLARK, 2000.

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ANEXO C – EXAMPLES OF APPRAISALS WITH ASSOCIATED

DYSFUNCTIONAL BEHAVIOURAL AND COGNITIVE STRATEGIES

(continua) Appraisal Dysfunctional strategies

If I think about the trauma…

…I will go mad.

…I will fall apart.

…I will lose control and hurt someone.

…I will have a heart attack.

…I will seriously damage my health.

try hard not think about the trauma; keep mind

occupied all the time; control feelings; drink

alcohol/ take drugs.

If I do not control my feelings tightly…

…I will not be able to work and lose my

job.

…I will lose my temper and offend

people.

numb emotions; avoid anything that could cause

negative or positive feelings.

If I do not find out how this event could have

been prevented…

…something similar will happen again.

ruminate about how event could have been

prevented.

If I do not find a way to punish the assailant he

will have won and l will not be a proper man

any longer.

ruminate about how to get even with assailant.

If I go to the site of the event…;

If I wear the same clothes again…

…I will have another accident.

…I will have a nervous breakdown.

avoid site of the event.

avoid wearing similar clothes.

If I do not take extra precaution…

...I will be attacked again

carry weapon; vigilant for dangerous people;

avoid crowded places; make sure to stay close to

exit.

If I do not check the rear mirrors…

…someone will drive into my car again

keep checking mirrors.

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(conclusão) If I make plans (such as for a holiday)...

…the next awful thing is going to

happen

do not make any plans for the future.

If I see my friends…

…they will ask me about the trauma

and they will think that I am pathetic because

I am still so upset

avoid seeing friends.

If I do things that I used to enjoy...

…I will be punished again.

...I will be reminded of the trauma

and will not be able to cope.

...I will be overwhelmed by emotion.

give up pleasant activities.

If I show my face…

...people will be disgusted because of

my scars.

avoid other people; cover face with hands; heavy

make-up; look down.

If I go to sleep…

...I will have nightmares.

...I will not notice intruders.

stay up until very late.

If I have more stress…

…I will have a heart attack.

...I will have a nervous break-down.

avoid anything that could be stressful.

Fonte: EHLERS; CLARK, 2000.