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Prefácio
Este é o espaço ao qual Levi explana de modo geral sobre os temas tratados durante
o decorrer do livro. Memória, esquecimento, entendimento, culpa, tormentos. É clara a
preocupação sobre o que ficará para a História. Muitas provas foram apagadas, o
acontecido dentro dos Lager, como nos diz, para opressores e oprimidos, era um
verdadeiro absurdo, digno de descrédito, havia uma própria "consciência do absurdo".
Quem contaria essa história?De qual modo? Talvez essa fosse uma preocupação de Levi
na época, e tavez por isso tenha escrito este livro, para contar a história daqueles que
viveram a realidade dos campos de concentração, até porque deixa claro que os que
"tocaram o fundo do poço" realmente, não sobreviveram. Sobre a memória, Primo Levi
deixa claro, as que restaram foram aquelas de pessoas que por uma combinação quase
improvável de acontecimentos saíram com vida. E com marcas profundas. É deste modo
que Levi denomina o massacre nazista como a "mancha do século XX".
Capítulo I – A memória da ofensa
O tema recorrente neste capítulo refere-se à memória, à recordação. Os eventos
transcorridos durante o III Reich foram excessivamente violentos e traumáticos, como
nos diz o autor,para os dois lados, obviamente que de maneiras distintas. Deste modo,
Levi demonstra o modo como em situações diversas, essa memória, ou essas
recordações são postas à tona.Por serem traumáticas, muitas vezes necessitam serem
transformadas, reconfiguradas, ou até mesmo, apagadas. A vivência de um trauma pode
realizar um processo de “auto-engano”, como forma de amenizar o acontecido. É como
se devido a recorrência de uma "falsa verdade", ou da narrativa desta, a pessoa passasse,
convenientemente, como forma de amenizar sua dor, a acreditar piamente em sua
reconstrução da realidade.Ela tem duas faces, uma daqueles que foram os algozes, e
outra daqueles que foram as vítimas.Ao momento em que os primeiros a usam como
forma de fugir de suas responsabilidades,e porque não,de seus tormentos,os segundos
podem usá-la como forma de refúgio,de esquecimento,de busca de entendimento de um
evento tão traumático.
Capítulo II – A zona cinzenta
Neste capítulo, Primo Levi se dedica a compreender, ou ao menos problematizar a
vida dentro dos “Lager”. O aspecto principal que ele utiliza como exemplo são os
prisioneiros-funcionários. Os utiliza para demonstrar a complexidade que se estende
junto à compreensão de como se desenvolviam as atividades dentro do esquema que ele
denomina “concentracionário”. Os prisioneiros–funcionários eram pessoas que ao
mesmo tempo em que estavam aprisionadas, detinham uma posição (mesmo que
irrisória) “privilegiada”. Neste ponto é aberta também a discussão sobre o poder, sua
busca e também sua consolidação. O sistema montado pelos nazistas alemães propiciava
ações bizarras, do ponto de vista moral ou ético. Muitas vezes a opção por um período a
mais de sobrevivência, ou até mesmo de alimentação significava uma escolha ambígua,
aparentemente injustificada sob a luz de um julgamento posterior.Levi utiliza o termo
“faixa cinzenta” para designar esta vivência ambígua, de difícil compreensão em que
estavam inseridos os “privilegiados”.É emblemático no texto o caso dos Esquadrões
Especiais, que eram compostos por judeus escolhidos pelos nazistas, que detinham a
função de administrar os fornos crematórios. Seria, segundo o autor, uma das formas
mais cruéis de “aproximação forçada” entre as vítimas e os agressores, é como se
dissessem: “vocês são iguais a nós, praticaram crimes da mesma forma, somos iguais”.
Seria a degradação completa do ser humano. Sendo assim abre-se a questão: como
proceder? Aceitar a moléstia por momentos (incertos) a mais de vida?Negar o
“privilégio” e ser assassinado? A complexidade deste tema não permite julgamentos
rasos, talvez nem permita julgamentos. Segundo o autor essa ambiguidade, essa
dualidade, poderia surgir justamente pela opressão. Deste modo, o julgamento dos
indivíduos deveria ser posto de lado, em favor de um julgamento ou punição do sistema
posto em prática pelos nazistas, que tinha o terror e a opressão como gênese.
Capítulo III – A vergonha
Este é o trecho no qual Levi se debruça sobre toda a angústia e sobre uma das
cicatrizes mais profundas deixadas por sua experiência. O sentimento de vergonha, de
culpa. Mesmo tendo passado por essa tragédia do lado dos que sofreram as agressões
ininterruptas, Levi tenta entender o sentimento de culpa que se instala após a libertação.
Contrariando,o estereótipo cinematográfico e literário que reduz o momento da
libertação como uma reviravolta positiva de liberdade e alívio, a libertação pode trazer
consigo a inquietante pergunta de "por que eu estou aqui e outros (talvez melhores que
eu), não". É algo que perturba a consciência, pois os sobreviventes são a exceção à
regra, são talvez mesmo aqueles que não "tocaram o fundo do poço", e por isso
sobreviveram. Neste espectro ele se aprofunda nas várias faces em que o sentimento de
culpa pode aparecer, pois cada prisioneiro não seria uma "ilha isolada",tudo o que
acontecia dentro dos Lager ressoava em todos. É compreensível a angústia que permeia
o texto de Levi, visto a situação traumática que viveu. A tentativa de achar explicações,
muitas vezes para pessoas que não possuem uma compreensão adequada e por isso
emitem juízos distorcidos, é muito difícil. Levi nos diz que "a regra principal do lugar,
que prescrevia a cada qual cuidar antes de tudo de si mesmo" era uma constante. Talvez
esta posição, em um contexto de busca pela sobrevivência diária, seja uma posição
muito cruel,porém necessária, que se traduz posteriormente em toda essa angústia e
perturbação,mas que pode ter sido o que o manteve vivo.
Capítulo IV – Comunicar
O que entra em discussão nesta parte é uma das funções essenciais da espécie
humana, a comunicação. Levi analisa, através das diversas línguas faladas nos Lager, o
poder que a comunicação,ou a não-comunicação exercia sobre a capacidade de
sobreviver ou atenuar a dura vivência. A fala articulada,ou a linguagem é uma
característica especialmente humana. Quando esta capacidade nos é cortada, ou nos é
negada, seria como se nos tolhessem essa especificidade, nos comparando a animais
"quaisquer". Esta era uma constante nos Lager. A dificuldade de compreensão dos
estrangeiros, da língua alemã falada nos campos (que Levi demonstra que é uma língua
específica, com suas características próprias, transformada pelos Nazistas) gerava uma
série de respostas e consequências como constrangimentos,e até a perda de
alimentação,por exemplo. Dominar aquela linguagem significava uma capacidade maior
de adaptação e também de leitura dos acontecimentos e das normas. Outro fator é a
própria comunicabilidade com o mundo. O silêncio e a desinformação nos atormentam,
e essa era uma lei geral, pois salvo exceções os prisioneiros viviam o isolamento e a
incomunicabilidade. A falta de informação poderia causar a morte. E em um lugar onde
os códigos linguísticos eram o do outro, essa era uma opção muito próxima.
Capítulo V – Violência inútil
Degradação de velhos, mulheres, crianças. Ofensa e violação do pudor humano. Uso
do corpo como mero objeto a ser testado, violado.Trabalho forçado aflitivo e não-
produtivo.Estes eram elementos do Lager. O regime nazista foi deliberadamente
racional e metódico na orquestração de seu terror, mas por que a violência gratuita, ou
melhor, inútil? Ao certo Primo Levi não faz essa pergunta com o intuito de respondê-la.
É uma pergunta de indignação, de incompreensão da crueldade humana. É difícil
entender o ato cruel quando nele não se vê um propósito. A degradação humana como
um norma, a humilhação moral, o rebaixamento como forma de dominação.
VI – O intelectual em Auschwitz
Neste, Levi tem como pano de fundo a seguinte questão: ser um intelectual em
Auschwitz era uma vantagem?Utilizando os pensamentos de seu amigo e também
prisioneiro, um judeu chamado Hans Mayer ou Jean Améry, como parâmetro de
comparação, realiza reflexões sobre o "ser intelectual". Torna-se claro, ao decorrer do
texto, que essa posição, que pode ser útil ou prestigiosa em condições normais, em
Auschwitz, poderia ser ou não, de acordo com o contexto e as situações. Ora, para
trabalhos manuais, que exigiam uma técnica não muito apurada, mas porte físico, a
cultura não serviria de muito. E o trabalho manual era a atividade principal dos
prisioneiros. Da mesma forma, Levi entende que seu ofício de químico, e também sua
intelectualidade, ou seu maior entendimento foram úteis, na medida em que pôde
transferir alguns raciocínios ou práticas da química em elementos de observação dentro
do campo, apesar de afirmar que justamente aqueles "incultos" que não possuíam o
hábito do questionamento poderiam absorver melhor a vida dura, eximindo-se de
compreender toda a agressão,e desse modo, absorver "melhor" o acontecido.Neste caso,
a simplificação,a pouca reflexão,poderia servir como um ponto crucial, um ponto de
escape. Talvez a intelectualidade se tornava útil em situações específicas. Como o autor
nos diz a moral e a lógica foram ceifadas no mundo dos campos de concentração. Desse
modo criar um objetivo, simples, talvez seria de qualquer forma mais útil, do que a
capacidade de buscar explicações racionais.
Capítulo VII – Estereótipos
Aqui, Levi trata daquilo que pode surgir devido a não vivência dos fatos, ou do
distanciamento temporal: o estereótipo. É algo que as testemunhas, em contato com
aqueles que não experimentaram eventos traumáticos, podem se deparar. Perguntas as
mais variadas emergem nesse sentido, buscando explicações, realizando julgamentos.
Um dos exemplos utilizados para tratar desse assunto é o binômio "cativeiro-fuga".
Porque não fugiram, porque não resistiram?Levi com sua percepção consegue desvelar
algumas situações, demonstrando como os acontecimentos reais se dão de forma muito
mais complexa do que se pode ter ideia à partir de um julgamento distanciado.
Aprofunda os exemplos que sempre surgem em questionamentos, como os de fuga ou
de rebelião.Tenta demonstrar como pensar estes eventos através de um raciocínio
moralista, ou maniqueísta, reduz o significado destes em casos extremos. Ou seja, como
nos elucida: à partir dos primeiros momentos no Lager a ideia de fuga era afastada pela
total fragilidade e impotência. É importante a passagem que Levi complexifica a noção
de aprisionamento-rebelião, ou literalmente "cativeiro-fuga", pois muito além de uma
obrigação moral há a realidade bruta e implacável dos Campos de concentração.Da
mesma forma, até mesmo citando o caso extremo de fuga da prisioneira Mala
Zimetbaum, do Lager de Auschwitz-Birkenau, nos mostra como poderia acontecer a
fuga. Em casos isolados e extremos. A ideia de fuga era algo que só poderia passar,
como nos diz, na cabeça de um novato. A violência, aquela "útil", tinha como serviço
"cortar pela raiz toda a veleidade de fuga"(p. 133). É desta forma, que Primo Levi
destaca a importância do papel dos historiadores através da pesquisa histórica, em
"sanar as discrepâncias" entre uma idéia idealizada do assunto e sua possibilidade
prática e real.
Capítulo VII – Cartas de Alemães & Conclusão
Por considerá-lo significativo, começarei a consideração desta última parte com o
trecho de um verso contido antes do Prefácio: "Since then, at uncertain hour,that agony
returns: and till my ghastly tale is tols,this heart whitin me burns".Estas palavras de S. T.
Coleridge denotam muito bem o tom em que se desenvolvem as páginas deste livro.
Primo Levi, após passar pela aterrorizadora experiência de um campo de concentração,
recorre a escrita como tentativa de compreensão, de análise, de apreensão de tudo o que
passou. É a memória e reflexão de alguém que viveu um dos maiores absurdos dos
tempos modernos. A humanidade da técnica e da razão, do progresso, capaz de perpretar
tamanho horror. Penso que antes de mais nada esse livro serve como um aviso, um
pedido de cuidado. Após a perpretação do extermínio em massa, será que a humanidade
está imune à um acontecimento na posteridade? Será que os elementos que propiciaram
a aberração nazista estão todos apagados? Levi nos faz pensar nesse sentido. Expõe sua
experiência não como algo a ser tomado como exemplo de superação ou algo do tipo.
Pretende entrar, de alguma forma, nas entranhas desse "naufrágio", desse "lá embaixo"
que significou sua experiência em Auschwitz. Não como modo explicativo,mas talvez
como forma de mostrar a "realidade" em contrapsição ao que os estereótipos criados
pelo cinema, pela literatura,entre outros, criaram, ou poderiam criar. Ao utilizar as cartas
que recebeu de cerca de 40 alemães, homens e mulheres, como resultado da tradução de
seu livro para o alemão, Levi consegue realizar de certa forma uma conversa com
aqueles que, consciente ou insconcientemente, perpretaram a violência contra si e seu
povo. E deixa claro, ao possível consegue compreender o ocorrido, mas nunca perdoar.
O questionamento de como foi possível a adoção de um povo inteiro ao delírio nazista
não exime de culpa aqueles que o fizeram. Penso que ter a serenidade que Primo Levi
demonstrou para escrever este livro, e realizar as proposições expostas, é um trabalho
descomunal. Talvez por isso exigiu que a tradução para o alemão ganhasse ares de uma
restauração: queria que o livro exibisse exatamente aquilo que pretendeu exibir, pois
Levi: "queria que naquele livro, especialmente em sua versão alemã, não se perdesse
nada da dureza, da violência imprimida na linguagem".(p.147/148). De certa forma, foi
um cara-a-cara com o ofensor, um modo de perceber a reação psicológica e emocional
ao seu livro pelo povo alemão. Acho que sua sentença é clara: "a culpa verdadeira,
coletiva,geral, de quase todos os alemães de então foi de não ter tido a coragem de
falar". (p. 156).
É com uma reflexão sobre a juventude e sobre a atualidade geopolítica que Levi
encerra seu livro. Denota que a Segunda Guerra e seus "Auschwitz", rebaixaram a
condição humana, enquanto capacidade de reconhecer o humano no outro. Para ele,
depois do "Deus está conosco" nazista, as coisas mudaram. É como se a humanidade se
olhasse no espelho e não se reconhecesse, ou talvez visse um monstro. Penso que
podemos pensar em termos de uma grande embarcação pujante e veloz, que sem ao
menos ninguém esperar, naufragou.