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1 Cristina Nogueira da Silva Constitucionalismo e Império A cidadania no Ultramar português

Constitucionalismo e Império - run.unl.pt · Pragmatismo, nacionalismo e utilitarismo ..... 76 3.6. O “anti-colonialismo” de Jeremy Bentham..... 79 3.7. A Revolução francesa

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  • 1

    Cristina Nogueira da Silva

    Constitucionalismo e Imprio

    A cidadania no Ultramar portugus

  • 2

    NOTA PRVIA 5

    INTRODUO 7

    1. O indgena na literatura colonial dos finais do sculo XIX-incio do sculo XX

    13

    2. O indgena nas polticas coloniais da Monarquia constitucional .................. 32

    3. Colonialismo e anti-colonialismo no pensamento poltico dos scs. XVIII/XIX.

    52

    3.1. O pressuposto da civilizao. ..................................................................... 61

    3.2. Direito Internacional e colonialismo. ............................................................. 65

    3.3. Silvestre Pinheiro Ferreira anotando Vattel. ................................................. 69

    3.4. Economistas e colonialismo : a utilidade das colnias. ................................ 72

    3.5. Pragmatismo, nacionalismo e utilitarismo .................................................... 76

    3.6. O anti-colonialismo de Jeremy Bentham. ................................................... 79

    3.7. A Revoluo francesa e a representao poltica das colnias ................... 89

    3.8. A Revoluo liberal espanhola e a representao poltica das colnias ..... 93

    4. O modelo vintista positivado. ............................................................................ 96

    4.1.Uma unidade instvel: uma Nao de terras descontnuas, distantes e diversas96

    4.2. Os laos da liberdade. .................................................................................. 99

    4.3. Uma unidade instvel: a desconfiana e o cime. ................................... 103

    4.4. Especificidades ultramarinas: diversidade de interesses, diversidade de

    normas. 109

    4.5. Especificidades intra-ultramarinas: frica e sia ..................................... 111

    4.6. A unidade da Nao e o contratualismo federal: Nao, Ptria(s), Indivduos114

    4.7. Concluso ................................................................................................... 119

    5. Unidade e diversidades no primeiro texto constitucional portugus .......... 124

    6. O dogma da unidade e da representao poltica do ultramar na Carta

    constitucional e na Constituio de 1838 ............................................................................. 125

    6.1. A legislao eleitoral e as especificidades da representao poltica do

    ultramar. 128

    6.2. A memria da independncia brasileira ..................................................... 131

  • 3

    6.3. Os conhecimentos locais. ........................................................................... 132

    6.4. Concluso: a representao poltica como smbolo ................................... 136

    7. A cidadania das populaes do ultramar no direito constitucional portugus do

    sculo XIX 143

    7.1. Estado Nao e igualdade dos estatutos pessoais .................................... 143

    7.2. Direitos naturais, direitos polticos, direitos civis, nacionalidade ................ 146

    7.3. Direitos polticos e cidadania no constitucionalismo portugus. ................ 159

    7.4. Direitos civis e cidadania ............................................................................ 163

    7.5. O estatuto poltico e civil das populaes do ultramar. .............................. 165

    7.5.1 Os cidados portugueses do ultramar........................................................ 167

    7.5.2 Cidadania portuguesa e catolicidade ......................................................... 183

    7.5.3 O Cdigo civil de 1867 e os usos e costumes dos povos nativos. .......... 212

    7.6. Concluso ................................................................................................... 232

    8. Em transio para a cidadania. ........................................................................ 234

    8.1. Os escravos ................................................................................................ 237

    8.1.1. A escravido nos textos constitucionais portugueses ............................... 237

    8.1.2. A doutrina jurdica portuguesa e a escravatura. ....................................... 245

    8.1.3. Contexto poltico-ideolgico das discusses constitucionais sobre os

    escravos 252

    8.1.4. Aplicaes ptrias. .................................................................................... 265

    8.2. Os ndios ..................................................................................................... 287

    8.2.1. A independncia do Brasil e a obliterao constitucional dos nativos ... 299

    8.2.2.A alienabilidade do territrio ultramarino e o consentimento das populaes 305

    8.3. Misses civilizacionais .............................................................................. 308

    8.3.1. Um paradigma iluminista ........................................................................... 313

    8.3.2. Um paradigma utilitarista ........................................................................... 315

    9. Os quase cidados ........................................................................................ 321

    9.2. Vassalos e cidados. .................................................................................. 321

    9.2.1. Estrangeiros atpicos: os sobados ............................................................ 325

    9.2.2. O direito internacional: entre civilizados, sobre incivilizados ............... 328

    9.2.3. The black mans burden os cidados carregadores. ............................. 339

  • 4

    9.3. Graduando os cidados: os libertos. .......................................................... 354

    9.3.1. A discusso vintista ................................................................................... 357

    9.3.2. A condio dos libertos na Carta e na Constituio de 1838 ................... 367

    9.3.3. A condio dos libertos no Acto Adicional de 1852 .................................. 368

    9.3.4. As leis eleitorais. ........................................................................................ 376

    9.3.5. A doutrina jurdica...................................................................................... 377

    9.3.6. O sentido liberal da palavra liberto ............................................................ 380

    9.3.7. O estatuto dos libertos como estatuto civil. ............................................... 382

    9.3.8. Cidadania constitucional e menoridade civil ............................................. 390

    9.3.9. De libertos a ingnuos ............................................................................... 392

    9.3.10. Ingenuidade e vadiagem ......................................................................... 399

    9.3.11. Concluso ............................................................................................... 402

    10. Diferenas intra-ultramarinas: Amrica, frica, sia................................. 406

    10.1. Constituio de 1822 .............................................................................. 406

    10.2. A Carta Constitucional e a Constituio de 1838 ................................... 411

    10.3. A especificidade ultramarina na Constituio de 1838: antecedentes 414

    10.3.1. Assimilacionismo e especializao nos anos 30. ............................. 414

    10.3.2. A Madeira e os Aores no so ultramar ............................................. 420

    10.4. Constitucionalizao da diferena ultramarina e des-constitucionalizao do

    ultramar (Constituio de 1838, legislao de 1842-43, Acto Adicional). ....... 422

    10.4.1. Os fins explicitados: distncia/ urgncia/ conhecimento. ....................... 424

    10.4.2. A Constituio e o princpio do governo limitado ................................. 425

    10.4.3. Os direitos polticos dos povos do ultramar. ........................................ 427

    10.4.4. A universalidade do governo representativo e dos direitos .................... 429

    10.4.5. Os cidados ultramarinos e a participao poltica .............................. 431

    10.4.6. A representao ultramarina no Parlamento como libi ......................... 432

    10.4.7. Outras formas de participao poltica ................................................... 434

    10.4.8. Misso civilizacional e assembleias legislativas .................................. 436

    10.4.9. Os fins ocultos da especialidade das leis. ............................................ 438

    10.4.10. O princpio da constitucionalidade das leis no ultramar ....................... 441

  • 5

    10.4.11. Concluso ............................................................................................. 446

    11. Assimilacionismo legislativo ........................................................................... 455

    11.1. Execuo progressiva dos Cdigos ....................................................... 455

    11.2. Aplicao da legislao metropolitana ao ultramar ................................ 457

    11.3. Adaptao dos Cdigos ......................................................................... 460

    11.3.1. Codificao administrativa ...................................................................... 461

    11.3.2. Codificao penal ................................................................................... 463

    11.3.3. Leis de organizao judicial .................................................................... 466

    11.4. Administrao da justia ......................................................................... 472

    11.4.1. Especialidade na administrao da justia no ultramar ......................... 479

    11.5. Administrao civil .................................................................................. 491

    11.5.1. Diviso administrativa do territrio .......................................................... 491

    11.5.2. Os rgos locais da administrao ......................................................... 495

    11.6. Legislao eleitoral ................................................................................. 506

    12. Concluso .......................................................................................................... 517

    Bibliografia 527

    NOTA PRVIA

    Este livro corresponde, no essencial, dissertao de doutoramento defendida na

    Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa no ano de 2005. A sua organizao interna

    praticamente a mesma, sendo apenas de destacar a recente elaborao da introduo, a

    reviso formal do texto, para a sua edio, e algumas actualizaes bibliogrficas, resultantes de

    leituras entretanto feitas e cuja incorporao no texto original se revelou importante. Como a

    explicao da organizao do trabalho est feita na referida introduo e no captulo inicial, vou

    aproveitar este espao para agradecer s pessoas que me acompanharam e me apoiaram

    durante e a realizao do trabalho que conduziu publicao deste livro.

    Agradeo, em primeiro lugar, s pessoas que aceitaram ser os orientadores da

    dissertao. Ao Professor Antnio Hespanha, por ter estado ligado sua gnese, e a quem devo o

    melhor de toda a minha formao cientfica, adquirida ao longo de muitos anos de convvio

    intelectual e pessoal. As horas (incontveis) passadas a debater com ele os temas tratados e as

  • 6

    perspectivas tericas a partir das quais esses temas podem ser compreendidos esto presentes

    nas pginas deste trabalho. Foi ele quem me chamou a ateno para um dos lados mais sombrios

    do pensamento liberal contemporneo, o da sua convivncia com o imperialismo e a colonizao.

    Sem, contudo, me ter feito desistir de olhar para o lado mais luminoso daquele(s) pensamento(s),

    a fora expansiva dos conceitos, neles inventados, de liberdade individual e de igualdade, e

    mesmo o seu apelo a um esforo (na aparncia contraditrio) de reconstruo racional do mundo.

    Ao Professor Valentim Alexandre, pela sua disponibilidade e tambm pelas crticas que

    nunca deixou de tecer aos textos que lhe fui enviando. Sem essas crticas e sem as coordenadas

    definidas pelo seu conhecimento sobre a histria do Imprio portugus na poca contempornea e

    os seus diversos contextos temporais e geogrficos eu ter-me ia enredado ainda mais na(s)

    lgica(s) internas da narrativa doutrinal e poltica. So muitos os riscos que esse enredo comporta:

    a subtraco simplificadora dessas narrativas aos contextos polticos e sociolgicos sem os quais

    elas passam a ser descritas de forma acrtica e, no limite, a legitimao dessas narrativas e dos

    comportamentos que lhes estiveram associados.

    dispensvel referir que, apesar de orientadores, no so responsveis por eventuais

    desorientaes que o trabalho comporte.

    Agradeo tambm Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa e aos seus

    fundadores, Diogo Freitas do Amaral e Carlos Ferreira de Almeida, por terem concebido uma

    Faculdade de Direito onde pessoas como eu, com formao em Histria, primeiro, em Histria e

    Sociologia do poder, depois, puderam encontrar o seu lugar. E tambm aos colegas das vrias

    disciplinas, jurdicas e no jurdicas, por me terem ajudado a conhecer um pouco o mundo, antes

    muito distante, das formulaes jurdicas. Particularmente ao Rui Pinto Duarte, tambm pela

    ateno com que leu alguns dos meus textos. Ao Armando Marques Guedes, por ter partilhado

    comigo as suas preciosas e inesgotveis informaes bibliogrficas, que muito enriqueceram as

    aulas que fui leccionando enquanto investiguei e redigi esta dissertao. Ao Miguel Poiares

    Maduro, pelas muitas discusses, mesmo aquelas em que estivemos em desacordo, mas,

    principalmente, pelo carinho e pela amizade. Teresa Beleza, pela amizade e empatia, que

    tambm resultaram da proximidade dos nossos interesses cientficos.

    Aos funcionrios da Faculdade, pela sua simpatia e competncia, e sobretudo ao sector

    mais ligado informtica, em particular ao Dr. Antnio Delfino, por ter perdido algumas horas de

    um fim de tarde a consertar um longo texto que eu no conseguia fazer passar do cran do

    computador para o papel.

    Aos meus amigos, que se revelaram ainda mais e ainda melhores nas piores alturas, pela

    disponibilidade, pela ajuda, pelo carinho, pela inteligncia e pela empatia. -me impossvel no

    nomear primeiro aqueles que, por circunstncias da vida, estiveram mais prximos: a Alexandra

    Barbosa, o Rafael Mora, o Antnio Hespanha, o Paulo Ferreira, o Nuno Monteiro, a Lcia Amaral,

    o Marcos Ribeiro e a Carla Arajo. A ngela Barreto Xavier, o Pedro Cardim, o Carlos Petit e o

    Antnio Serrano foram (e so), alm de grandes amigos, interlocutores especiais, com quem

    continuo e continuarei a aprender muito. Mais recentemente, tambm partilhei com o Carlos

  • 7

    muitas das ideias que me ocuparam a mente durante a redao desta tese, e agradeo-lhe muito

    o carinho, a pacincia, a acutilncia das suas observaes, muitas delas mediadas por

    experincias concretas da sua vida.

    Tambm, por razes prximas das anteriores, agradeo minha famlia, ao Joaquim, e,

    particularmente, aos meus pais, aos meus sogros e minha irm, a Ana Isabel. Sem eles teria

    sido impossvel ter terminado este trabalho. Sobretudo graas a outros dois membros da famlia,

    os mais pequenos e os que, para minha felicidade, ocupam o lugar maior na minha vida, o Joo

    Rafael e o Andr.

    Dedico este livro aos meus pais e memria do meu tio, Victor Manuel Duarte Silva

    INTRODUO

    O tema deste trabalho o estatuto das populaes (sobretudo as nativas, mas no s)

    dos territrios colonizados pelos portugueses no sculo XIX, a sua posio formal face

    cidadania. Para o desenvolver, procurei responder a algumas questes que considerei

    fundamentais para conhecer essa posio. Procurei saber, nomeadamente, que direitos polticos e

    civis foram reconhecidos a essas populaes ou por elas conseguidos, se participaram

    politicamente e como (se estiveram ou no representadas no Parlamento metropolitano, se se

    fizeram representar em assembleias locais), se as Constituies oitocentistas lhes garantiram

    direitos iguais aos dos portugueses da metrpole, ou se, pelo contrrio, admitiram a vigncia de

    princpios de excepo no seu governo e na definio dos seus estatutos pessoais. Se, no caso

    das populaes nativas, elas puderam regular as suas vidas de acordo com formas jurdicas

    tradicionais, se essas formas foram respeitadas ou apenas provisoriamente toleradas pela

    administrao colonial. Finalmente, se foram percepcionados como pessoas com algum grau de

    sentimento de pertena nao portuguesa. Procurei tambm saber se os territrios que

    habitavam eram partes iguais do territrio nacional ou se, pelo contrrio, eram percebidos como

    territrios diferentes, que deviam ser governados de forma diferente. A investigao em torno

    destas questes colocou-me perante um problema mais vasto da historiografia sobre o

    colonialismo oitocentista, o de saber como que o liberalismo de oitocentos e as suas categorias

    direitos fundamentais/constitucionais, cidadania, nao, governo representativo e limitado,

    separao de poderes - conviveram com o problema do governo das populaes e dos territrios

    colonizados.

    Muitas destas questes evocam problemas que se colocam s sociedades liberais

    contemporneas. Se no fosse assim, possvel que no tivessem aqui sido formuladas, que no

    se tivessem convertido em objecto de uma investigao histrica. O mundo contemporno que

  • 8

    um dos lugares a partir do qual escrevo estas linhas tambm o mundo ps-colonial. Neste, os

    antigos ultramares (designao que se usou para descrever o conjunto heterogneo de territrios

    e de populaes que o mar separava das metrpoles europeias) esto agora na(s) Europa(s) e

    a(s) Europa(s) nos ultramares, fazendo com que o pluralismo cultural e tico das comunidades

    polticas (tambm as que resultaram dos processos de independncias que acompanharam as

    descolonizaes) se tenha transformado numa questo pensada escala global. Reflecte-se,

    por exemplo, sobre a melhor forma de encontar princpios jurdicos e politicos capazes de

    transcender essa diversidade, mas tambm sobre o risco, inerente, de esse objectivo ser trado

    pela atribuio de validade universal a valores particulares 1? Reflecte-se tambm sobre a

    possibilidade de fazer coexistir a diferena cultural, tica, religiosa, numa mesma comunidade

    poltica, sem, com isso, fragilizar a sua coeso, a sua unidade moral, sem se correr o risco de

    uma retraco comunitria para o particularismo2. A estas reflexes associam-se outras, sobre

    as vantagens e as fragilidades de modelos mais diferenciados ou modelos mais unitrios de

    cidadania. O reconhecimento da importncia da diversidade cultural deve resultar no

    reconhecimento, pela lei do Estado, de direitos especiais a grupos minoritrios3? Podem estes

    governar-se pelas suas instituies e tradies sem se correr o risco de essa acomodao

    multicultural resultar na fragilizao de direitos individuais dos cidados que so membros

    subordinados desses grupos?4 Ou, pelo contrrio, prefervel optar por modelos mais unitrios

    de cidadania? Por polticas de integrao que promovam padres mnimos de homegeneidade

    cultural, capazes de fortalecer os sentimentos de pertena e identidade considerados susceptveis

    de manter coesas as comunidades polticas, sobretudo as naes. Correndo-se, neste caso, o

    risco de suscitar fenmenos de culturalismo reactivo5. Reflecte-se, fiinalmente, sobre a

    possibilidade de construir uma cidadania transnacional, um cidado cosmopolita. Mas, nesse

    caso, fundada em que valores, em que direitos, e garantido por que instituies?

    1 Por exemplo, o falso universalismo do universalismo moral do liberalismo, nas palavras de Bo

    Strath, The State and its critics, in Quentin Skinner & Bo Strath, States & Citizens, History, Theory,

    Prospects, Cambridge, Cambridge University Press, 2003, p 186. Uma proposta para uma descoberta

    multicultural de valores universalizveis pode encontrar-se em Boaventura Sousa Santos, Por uma

    concepo multicultural de direitos humanos, in Revista Crtica de Cincias Sociais, n 48, 1997, pp. 11-32.

    2 V. Bo Strath, The State and its critics, cit., p. 186.

    3 Group-differentiated rights, na terminologia de Will Kymlicka em Multicultural Citizenship,

    Oxford, Oxford University Press, 1995, p. 6 e ss., onde procura demonstrar que o reconhecimeno desses

    direitos, que o autor organiza numa tipologia detalhada, constitui uma exigncia das sociedades liberais e

    no, como defendem os seus crticos, uma forma de enfraquecer os direitos individuais (A compreehensive

    theory of justice in a multicultural state will include both universal rights, assigned to individuals regardless

    of group membership, and certain group-differentiated rights or special status for minority cultures, p. 6).

    4 V. Ayelet Schachar, Multicultural jurisdictions, Cultural Differences and Womens Rights,

    Cambridge, Cambridge University Press, 2001, p. 3 e ss., onde se faz a exposio dos riscos que comporta

    este fenmeno que a autora designa por paradox of multicultural diversity.

    5 reactive cuturalism, [] a response aimed at group self-preservation which takes as its goal the

    maintenance of a separate and distinct ethos, v. idem, ibidem, p. 11.

  • 9

    Como disse, todas estas questes apenas evocam os problemas que se colocaram

    administrao colonial dos sculos XIX e XX. No constituem uma reposio dos mesmos

    problemas, nem as questes colocadas, como as respostas encontradas, poderiam ter sido as

    mesmas. Em primeiro lugar, porque o contexto colonial em que problemas da mesma natureza se

    colocaram j no existe. Depois, porque a cultura dos direitos e os conceitos de cidadania eram

    diferentes. Finalmente, porque era tambm outra a sensibilidade e at a conscincia da -

    diversidade cultural. Com iremos ver, a ideia de garantir a homogeneidade dos comportamentos e

    valores das comunidades polticas foi to forte na cultura poltica de oitocentos que, na verdade,

    dificilmente se podia ter concebido outra forma de integrao que no fosse a integrao do

    igual. Assim, se, hoje, a ideia de integrao comporta, quase sempre, um certo grau de

    reconhecimento das diferenas culturais - ainda que no haja acordo quanto a esse grau, que

    pode ir da indiferena, nos difference-blind citizenship models6, sua proteco positiva -, no

    sculo XIX ela comportou sempre algum grau de apagamento das diversidades culturais, de

    absoro pelo colonizado dos valores culturais do colonizador, de uma certa assimilao 7.

    Antes de o mostrar, nas pginas deste trabalho, vou tentar explicar porqu, nas restantes

    pginas desta introduo.

    *

    A estrutura universalista do pensamento liberal oitocentista, na sua matriz iluminista,

    permitiria pensar, em abstracto, que, nos primeiros anos do sculo XIX, pelo menos, a resposta s

    questes formuladas nas primeiras linhas desta introduo que foram debatidas nos

    Parlamentos da poca, tendo a gerado perplexidades e silncios, mas tambm algumas decises

    inesperadas teria sido positiva. No entanto, por motivos pragmticos, mas tambm de natureza

    conceptual, a resposta oitocentista foi muito mais complexa.

    6 V. Idem, ibidem, p. 6.

    7 Sobre os diversos processos descritos pelo conceito de assimilao e a descrio dos problemas dessa forma de integrao cultural nas sociedades contemporneas v. L. Za, Assimilacion, in Dictionary of

    Race, Ehtnicity & Culture, ed. Guido Bolaffi, Raffaele Bracalenti, Peter Braham, and Sandro Gindro,

    London, Sage Publications, 2003, pp. 19-21. Formalmente, os termos assimilao ou assilimacionismo

    designaram, quando aplicados s situaes coloniais, polticas nas quais as colnias seriam governadas de

    forma semelhante metrpole e/ou os povos culturalmente diferentes que habitavam os territrios coloniais

    passariam, depois de sujeitos a uma aprendizagem civilizacional, a ser cidados europeus. A assimilao

    podia ser parcial, quando se admitia que os indivduos nativos se tornassem cidados do Estado colonial

    desde se pudessem considerar, pelo seu comportamento, educao, grau de conhecimento da lngua do

    colonizador, ocupao e rendimento, j assimilados. E podia ser, hipoteticamente, uma assimilao total,

    quando os habitantes das colnias fossem genericamente tratados como cidados iguais aos da metrpole, o

    que nunca sucedeu. A palavra podia ainda designar o processo, progressivo e unilateral, de absoro dos

    valores culturais do colonizador, processo que pressupunha a passividade da parte assimilada, tal como foi

    imaginado nos discursos dos colonizadores.

  • 10

    Na verdade, o postulado do indivduo como sujeito de direitos, independentemente do

    tempo e das circunstncias teve alguns efeitos de incluso relativamente s populaes nativas

    dos territrios no europeus. A referncia ao indivduo livre e igual, se, por um lado, facilitou a

    ocultao de situaes de desigualdade real tornou, por outro, mais difcil legitimar as

    desigualdades formais, gerando as perplexidades de que falei atrs e alguns dos efeitos de

    incluso de que falarei neste trabalho. O tema da escravido foi, quanto a esse aspecto, exemplar:

    a impossibilidade terica e filosfica de acomodar o estatuto do escravo s categorias do

    pensamento setecentista e oitocentista tiveram um lugar importante na explicao dos processos

    abolicionistas que, lentamente, foram acabando com a escravido nos territrios colonizados pelos

    europeus.

    Houve, no entanto, ao lado de previsveis dificuldades de natureza prtico-institucional

    mas tambm da ausncia de vontade poltica, nos momentos em que o tema foi discutido, uma

    dificuldade conceptual em incluir na cidadania o conjunto daquelas populaes. Em primeiro lugar

    porque, tal como sucedeu com outras metrpoles, dificilmente os portugueses de oitocentos

    podiam incluir na sua comunidade imaginada o conjunto dos povos nativos de frica, da Amrica

    e da sia. A Nao portuguesa era, para os polticos e juristas do sculo XIX, identificada como

    uma comunidade orgnica, um conjunto de pessoas ligadas pela mesma lngua, cultura,

    genealogia e pela mesma religio8. Era tambm uma comunidade afectiva, baseava nos laos que

    ligavam os cidados portugueses comunidade, a privilegiar os sentimentos de amor, fidelidade,

    e de implicao moral, facilitados pela convivncia histrica e inter-geracional. No ultramar, onde

    viviam, como afirmavam os deputados portugueses, pessoas com hbitos, costumes, religio, e

    raas diferentes, no era fcil saber quem podia ou no podia ser portugus. Essas incertezas e

    indefinies reflectiram-se na doutrina jurdica, na legislao produzida na metrpole e nos

    regulamentos produzidos nas provncias ultramarinas, fazendo com que na metrpole portuguesa

    nunca se tenha sabido, em rigor, quem eram (e quantos eram) os portugueses que viviam no

    ultramar portugus. A esta dificuldade acrescentou-se uma outra, relacionada com a natureza

    elitista e culturalmente conotada do conceito oitocentista de cidadania: a autonomia individual, a

    condio que o pensamento liberal oitocentista exigiu, em geral, para que algum, europeu ou no

    europeu, acedesse ao exerccio pleno dos direitos, no era uma capacidade inata. Considerava-se

    que ela s emergia num certo estado de civilizao ao qual as leis do progresso histrico

    conduziriam, mas em tempos diferentes, o conjunto da humanidade. O fim desta Histria, era,

    como se mostrar, um fim cosmopoltico, uma federao de povos finalmente iguais, partilhando

    valores e culturas materiais semelhantes. Nessa altura, os princpios da liberdade, das luzes e da

    razo da Europa espalhar-se-iam por todos os continentes, como anunciaram muitos intelectuais

    8 V. Jos Sobral, Naes e nacionalismo algumas teorias recentes sobre a sua gnese e

    persistncia na Europa (ocidental) e o caso portugus, Inforgeo, n 11, 1996 e Memria e Identidade

    Nacional: Consideraes de carcter geral e o caso portugus in Manuel Carlos Silva (org.), Nao e

    Estado, Entre o Global e o Local, Porto, Edies Afrontamento, 2006, pp. 27-49.

  • 11

    da poca9. Acontece que, nesta narrativa, na qual as ambies universalistas e uniformizadoras

    da modernidade surgem expressivamente associadas universalizao da experincia histrica

    vivida por (alguns) povos europeus, o fim da Histria ainda estava longe: a generalidade dos

    povos nativos dos territrios no europeus vivia ainda estdios civilizacionais muito anteriores

    aquisio da autonomia da vontade requerida para o exerccio pleno da cidadania no mundo

    civilizado. Seriam, no entanto, inevitavelmente resgatadas da sua incivilidade, ou atravs de um

    lei de necessidade histrica, cujos fins pr-fixados o contacto com os europeus facilitaria, ou por

    meio de uma interveno poltica positiva, capaz de acelerar o seu progresso civilizacional

    atravs de mtodos que podiam ser mais ou menos interventivos/impositivos, como se ver ao

    longo deste trabalho.

    O momento da incluso universal ocorreria no momento em que todos atingissem o

    mesmo patamar civilizacional, o que significava que aquelas populaes viviam, no presente,

    numa situao de transitoriedade (entre o estado no civilizado e o estado civilizado), situao

    qual se associaram muitos efeitos de excluso. Se a diversidade de condies individuais

    obrigou a repensar, no interior das prprias sociedades europeias, o universalismo implcito nos

    conceitos do pensamento poltico da poca nomeadamente, o da igual participao poltica dos

    cidados -, a diversidade dos territrios colonizados e das suas populaes colocou dificuldades

    ainda maiores, fazendo com que, por vezes, o problema no chegasse sequer a ser formulado.

    O fim da Histria coincidiria com o fim da diversidade cultural, diramos hoje. Acontece

    que, para a maioria dos intelectuais e polticos da poca, a questo da diversidade cultural no se

    colocava nos termos em que hoje colocada. A maior parte dos povos de cultura e religio

    diferentes da europeia que tinham nascido no ultramar no eram percepcionadas como tal mas

    antes como povos que viviam estdios diferentes de um mesmo percurso histrico universal. De

    certo modo, j tinham sido assimilados (aos primitivos europeus), ainda antes da assimilao

    (aos europeus j civilizados). No entanto, a prpria reflexo sobre a diferena que separava o

    mundo j civilizado desses mundos ainda atrasados (ou estacionrios), sobre o que devia ou no

    ser feito para eliminar essa diferena, para tornar os segundos iguais aos primeiros, reforou a

    distncia, adiando cada vez mais o momento da incluso, eternizando o processo de transio.

    Capturados nesta ambivalncia, excludos e includos de forma contraditria, os povos nativos dos

    territrios colonizados passaram a ocupar um lugar situado entre a excluso baseada na sua

    diferena (no seu atraso) e um contnuo convite a tornarem-se iguais (a evoluir

    civilizacionalmente), o lugar onde se gerariam as identidades fracturadas do colonialismo e do

    ps-colonialismo10

    . Foi esse lugar que tornou difcil falar sobre as pertenas nacionais, os direitos

    9 V. Denis Diderot Esquisse dun tableau historique des progrs de lesprit humain (1793), cit em

    Tzvetan Todorov, Nous et les autres: la rflexion franaise sur la diversit humaine, Paris, ditions du Seuil,

    1989, p. 341. Diderot dedica todo este ensaio enumerao dos momentos, factos e personalidades

    (cientistas, filsofos) que ilustram o progresso histrico (v. http://fr.wikisource.org/wiki/Esquisse...).

    10 V. Peter Fitzpatrick and Eve Darian-Smith, Laws of the Postcolonial: an insistent introduction,

    in Peter Fitzpatrick and Eve Darian-Smith (eds.), Laws of the Postcolonial, Ann Arbor, The University of

    Michigan Press, 1999, p. 2 e ss.

  • 12

    e a cidadania destas populaes. Essa dificuldade explica por que que os polticos e juristas

    portugueses do sculo XIX, nos raros momentos em que foram confrontados com o problema

    que, para eles, no foi, de facto, um problema central -, nunca decidiram, de forma clara e

    definitiva, se e que populaes nativas do conjunto territorial que descreviam como sendo um

    Imprio eram integradas por cidados (ou quase cidados) portugueses, por vassalos da Coroa

    portuguesa, por sbditos por direito de conquista ou, simplesmente, por estrangeiros, s vezes

    inimigos. Era difcil distinguir, em momentos diferentes do processo, quem eram, no ultramar, os

    inimigos, os ainda sbditos, os vassalos, os quase cidados ou os plenamente cidados11

    .

    Como procurarei demonstrar neste trabalho, isso dependia, no territrio colonial portugus, de

    vrias circunstncias. Dependia, talvez em primeiro lugar, da maior ou menor proximidade ao

    padro cultural europeu/portugus. Mas dependia tambm do comportamento conjuntural dos

    diversos grupos que integravam essas populaes. Em momentos de rebelio, por exemplo, eram

    facilmente remetidas para a condio de povos rudes e selvagens, cujo governo requeria

    medidas excepcionais, musculadas. Dependia igualmente da maior ou menor disponibilidade de

    alguns desses grupos para se identificar com os projectos da metrpole ou com os das

    autoridades coloniais locais e dos equilbrios locais de poder. Dependia ainda de representaes

    sobre a hierarquia dos povos, representaes nas quais os povos africanos, de acordo com

    classificaes cannicas da poca, estavam mais distantes da possibilidade da cidadania dos que,

    por exemplo, alguns povos asiticos. Dependia, finalmente, das perspectivas dos diferentes

    governos metropolitanos em matria de poltica colonial. Como se ir, ver, nos momentos em que

    o Marqus de S da Bandeira esteve frente da Secretaria de Estado da Marinha e Ultramar, a

    tendncia foi para uma (generalizada) maior incluso. Em outros momentos, a excluso ganhou

    contornos muito definidos, como sucedeu nos primeiros anos da dcada de sessenta do sculo

    XIX.

    O discurso comum a estas conjunturas foi o de que as populaes nativas podiam

    aprender a ser civilizadas e portuguesas, variando os mtodos de ensino que se foram

    propondo. Mas houve outros momentos em que essas populaes foram mesmo esquecidas,

    passando a aco colonizadora a ser descrita como uma aco pela qual os territrios no

    europeus seriam colonizados por populao europeia, originariamente portuguesa. Por vezes,

    estes dois registos confundiram-se, tornando difcil destrinar qual seria, afinal, a origem dos

    portugueses que povoariam o Imprio.

    11 Esta dificuldade em decidir se os nativos deviam ser tratados como sbditos da nao ou

    estrangeiros inimigos, que podiam ser capturados em raids e baleados foi caracterstica de outros imprios,

    como mostra Lauren Benton, Law and Colonial Cultures, Legal Regimes in World History: 1400-1900,

    Cambridge, Cambridge University Press, 2002, p. 197. E foi um fenmeno que se verificou at muito tarde,

    como se percebe atravs das palavras de Elisabeth Thompson, quando afirma, em relao s populaes da

    Sria e do Lbano que ficaram sujeitas ao Mandato francs depois da I Guerra, que no havia uma frontiera

    clara, aos olhos dos contemporneos, que pudesse separar o estatuto de sbdito do de cidado (), v.

    Colonial Citizens, Republican Rights, Paternal Privilege, and Gender in French Syria and Lebanon, New

    York, Columbia University Press, 1999, p. 2-5.

  • 13

    Falta agora recordar, para concluir, que estas indefinies viriam a ser clarificadas com a

    criao, preparada pela literatura colonial desde os finais do sculo XIX mas s consumada no

    sculo seguinte, de um estatuto jurdico diferenciado para as populaes nativas das colnias

    portuguesas, o estatuto do indgena, semelhana do que outras naes colonizadoras estavam

    na altura a fazer ou j tinham feito12

    . A necessidade, sentida pelos autores daquela literatura, de

    reforar os fundamentos cientficos desse estatuto com as lies da histria, fez com que o

    estatuto do indgena surgisse nela como o resultado de uma desejvel ruptura com o passado

    recente do colonialismo portugus, no qual o indgena tinha sido plenamente cidado. Na verdade,

    foi esta estranha afirmao, que me conduziu investigao de que resultou este trabalho. A

    questo inicial foi, de facto, uma questo simples: saber se os indgenas de que falava a literatura

    sobre direito e administrao colonial a partir dos finais do sculo XIX tinham mesmo sido, at

    esse momento, cidados portugueses. Por esse motivo comearei, no primeiro captulo, por falar

    sobre o que foi, nessa literatura, o indgena e sobre o contexto, de manipulao da memria, no

    qual os antepassados desses indgenas foram convertidos em cidados portugueses. Depois, num

    segundo captulo, desenvolverei algumas reflexes em torno do pensamento colonialista e anti-

    colonialista europeu dos finais do sculo XVIIII primeira metade do sculo XIX. Nesse capitulo

    irei descrever as representaes setecentistas e primo-oitocentistas sobre os povos no europeus

    e mostrar que o nativo dos territrios colonizados no teve, nas reflexes sobre a colonizao, o

    mesmo peso que passou a ter na literatura colonial dos finais do sculo. Que o conceito de

    indgena por oposio a cidado no existia. A estes captulos, de contextualizao, seguem-se

    aqueles onde sero analisadas a forma como o problema ultramarino foi abordado no

    constitucionalismo, na doutrina, na legislao e no discurso poltico portugus de oitocentos.

    1. O indgena na literatura colonial dos finais do sculo XIX-incio do sculo XX

    O indgena dos territrios colonizados pelos europeus, enquanto sujeito de uma poltica

    especificamente pensada para ele, a poltica do indigenato, ocupou um lugar central nos textos

    sobre poltica e administrao colonial que se escreveram em Portugal a partir do ltimo quartel do

    sculo XIX. Ao lado do colono e do Estado metropolitano, ele constitua, nas palavras de Rui

    Ulrich (1883-1966), professor da cadeira de Administrao Colonial na Faculdade de Direito da

    Universidade de Coimbra (1906-1910), o terceiro vrtice a ter em considerao na arquitectura

    de uma boa poltica colonial13

    .

    Nesses textos escritos, sob a forma de monografias, tratados, relatrios e lies, por

    scios e colaboradores da Sociedade de Geografia de Lisboa, criada em 1875, por regentes da

    12 Por exemplo, a Frana, que, a partir de 1887, imps a todas as suas colnias a aplicao de um

    Code de lindignat, primeiramente pensado para a Arglia, no qual os indivduos nativos das colnias

    francesas foram considerados, em geral, sbditos, por oposio a cidados franceses, estatuto que s podiam

    adquirir mediante critrios definidos nesse Cdigo. Enquanto sbditos franceses o indgenas eram, por

    exemplo, submetidos a leis penais especiais e a regimes de trabalho obrigatrio

    13 V. Rui Ulrich, Poltica Colonial, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1909.

  • 14

    cadeira de direito colonial na Universidade de Coimbra, criada em 190114

    , por professores da

    Escola Colonial, criada em 190615

    , e tambm por administradores coloniais, oficiais do exrcito,

    comissrios rgios e ministros16

    , a palavra indgena designava um conceito caracterizado por um

    elevado grau de abstraco. A sua concretizao geogrfica era muito genrica, pois dizia

    respeito a povos nativos de todos os territrios colonizados por europeus, em frica, na Amrica

    ou na sia. O universo semntico do conceito era tambm muito amplo, porque s no abrangia

    os povos nativos do continente europeu. As populaes nativas dos outros continentes eram nele

    apreendidas como um conjunto humano relativamente indiferenciado, porque alm de dispensar

    qualquer referncia diversidade tnica ou cultural das comunidades em que os indgenas viviam,

    o conceito no remetia para qualquer distino ou identificao social no interior dessas

    comunidades. A palavra indgena podia designar o nativo de qualquer parte de qualquer territrio

    colonizado por europeus e, da mesma maneira, podia designar tanto o soba africano ou o prncipe

    indiano, como os respectivos sbditos.

    Havia, no entanto, um elemento antropolgico comum, que unificava este conjunto

    humano internamente indiferenciado: a sua posio distante face s formas civilizadas de vida a

    que a Histria tinha conduzido as sociedades europeias. Indgenas eram, ento, os naturais

    14 A sua criao, que foi um sinal do processo de institucionalizao, em Portugal, da cincia

    colonial, ocorreu com a reforma do curso de Direito da Universidade de Coimbra, em 1901 (v. Decreto de

    24 de Dezembro de 1901, Dirio do Governo, n 294, 28 de Dezembro de 1901, p. 1156). As primeiras lies

    escritas foram as de Marnoco e Souza, Administrao colonial, preleces feitas ao curso do 4 ano jurdico

    do ano de 1906-1907, 1906 (o autor seria Ministro da Marinha e Ultramar no ltimo governo da Monarquia),

    e as de Rui Ennes Ulrich, que escreveu Cincia e administrao colonial, I: Introduo, lies feitas ao

    curso do 4 anno jurdico no anno de 1907-1908 (1908) e Poltica colonial. Lies feitas ao curso do 4 anno

    juridico no anno de 1908-1909 (1909). 15

    Destacamos, pelo desenvolvimento e singularidade de algumas das suas reflexes, a obra

    intitulada Poltica Indgena (1910), de Lopo Vaz de Sampaio e Mello (1883-1949), oficial da Marinha e

    professor na Escola Superior Colonial, onde regeu as cadeiras de Poltica Indgena e Etnologia e Etnografia

    Coloniais (1926-46) e onde dirigiu o Anurio da Escola Colonial (1926-42). Foi, alm disso, fundador da

    Revista de Estudos Coloniais da Escola Superior Colonial (1948-1954), scio da Sociedade de Geografia de

    Lisboa (fundada em 1875) e membro do Instituto Colonial Internacional de Bruxelas. 16

    Entre os inmeros autores e ttulos podem destacar-se Antnio Enes, duas vezes Comissrio

    Rgio em Moambique (em 1891 e em 1894) e Ministro da Marinha e Ultramar depois do Ultimatum

    (escreveu Moambique - relatrio apresentado ao Governo, 1893); vrios militares que colaboraram com ele

    nas campanhas de pacificao, entre os quais Henrique de Paiva Couceiro (escreveu Angola (Dois annos de

    Governo, Junho de 1907-Junho de 1909). Histria e Comentrios, 1910, e Angola, Estudo Administrativo,

    1898); Mouzinho de Albuquerque, Governador do Distrito de Loureno Marques em 1895, depois

    Governador e Comissrio Rgio na mesma provncia (escreveu Moambique, 1896-1898, 1899); Freire d

    Andrade, Director Geral das Colnias, Secretrio-Geral do Ministrio da Marinha e Ultramar, Ministro dos

    Negcios estrangeiros em 1914, Governador-geral de Moambique (escreveu Relatrios sobre Moambique,

    1910); Aires de Ornellas, Ministro da Marinha e Ultramar em 1907 (escreveu Raas e lnguas indgenas em

    Moambique, 1901, e A nossa administrao colonial. O que , o que deve ser, 1903); Alfredo Augusto

    Caldas Xavier (escreveu Estudos coloniais, 1889); Eduardo Costa, Governador do distrito de Moambique

    (1897) e Benguela (1904) e Governador-geral de Angola em 1907 (escreveu o Estudo sobre a Administrao

    Civil das provncias Ultramarinas, 1903), O Distrito de Moambique em 1888 (notas e apontamentos), 1902

    e Ocupao militar e domnio efectivo nas nossas colnias, 1903); Albano de Magalhes, juiz no ultramar

    (escreveu Estudos Coloniais, 1907); Artur Almeida Ribeiro, Ministro do Ultramar em 1914 (escreveu

    Administrao Civil das Provncias Ultramarinas, Proposta de Lei Orgnica e Relatrio apresentado ao

    Congresso pelo Ministro das Colnias, 1914, e Administrao Financeiras das Provncias Ultramarinas,

    1917).

  • 15

    daqueles outros continentes cuja cultura e formas de vida se caracterizavam, em todas as suas

    manifestaes - morais, religiosas, econmicas -, por um certo grau de primitivismo.

    Do ponto de vista jurdico um ponto de vista de grande relevncia, porque o direito

    desempenhou um papel determinante na construo e na fixao do conceito -, eram indgenas

    aqueles nativos que no se distinguiam, culturalmente, do comum da sua raa. Ou mesmo os

    nativos que, tendo-se j distanciado, culturalmente, daqueles com quem partilhavam a raa,

    ainda no tinham adquirido, pelo menos em grau suficiente, os hbitos e valores civilizados. Por

    um motivo ou pelo outro, estes indgenas no podiam ser sujeitos de formas representativas de

    governo ou exercer direitos civis e polticos iguais aos dos cidados das metrpoles europeias. O

    seu estatuto jurdico era, portanto, o de no cidado.

    Na literatura jurdica dos sculos XIX e XX o conceito de indgena tinha uma marcada

    conotao racial, j que quase sempre se acrescentava naturalidade e cultura, enquanto

    variveis identificadoras, a raa dos indgenas. Num dos primeiros documentos em que esta

    categoria de pessoas foi juridicamente descrita em Portugal, eram indgenas os nascidos no

    ultramar, de pai e me indgenas e que no se distingam pela sua instruo e costumes do

    comum da sua raa 17

    . A primeira lei portuguesa onde foi finalmente pensado um estatuto pessoal

    (civil, poltico e criminal) prprio para o indgena, em 1914, determinou que pudesse ser cidado

    da Repblica, com todos os direitos civis e polticos, o indivduo de cor que falasse portugus ou

    qualquer outra lngua culta, que no praticasse os usos e costumes caractersticos do meio

    indgena, que exercesse profisso, comrcio ou indstria, ou que possusse bens de que se

    mantivesse. Os indivduos de cor que no satisfizessem cumulativamente aquelas condies eram

    considerados indgenas, o que significava que seriam apenas sbditos da Repblica

    portuguesa18

    .

    A racializao do conceito de indgena desapareceu no Decreto equivalente que se seguiu

    (n 7.151 de 19 de Novembro de 1920), no qual o termo indgena passou a ser aplicado aos naturais

    das colnias que vivem e desejam continuar a viver sob os usos e costumes privativos dos

    agregados sociais indgenas, mas no aos que adoptem os usos e costumes pblicos dos europeus,

    e se submetam s leis e regulamentos impostos aos indivduos europeus do mesmo nvel social19

    ,

    mas ressurgiu no Dec. lei n 12.533 de 23 de Outubro de 1926, a Carta bsica que estabeleceu o

    Estatuto poltico, civil e criminal dos indgenas de Angola e Moambique. A, voltaram a ser

    17 V. Dec de 20 de Setembro de 1894, que regulou o art. 3 do dec de 20 de Fevereiro de 1894

    (aprovando o Regimento da administrao da justia nas provncias ultramarinas), subl. nosso. 18

    Esta concluso concretizava-se, por exemplo, em disposies que afastavam os indgenas do

    exerccio dos direitos polticos nas instituies centrais, embora admitissem a sua participao em

    instituies representativas locais, v. Bases n 16 a 18 da Lei n 277 de 15 de Agosto de 1914 (Lei orgnica

    da administrao civil das provncias ultramarinas) em Artur R. de Almeida Ribeiro, Administrao Civil

    das Provncias Ultramarinas, proposta de Lei Orgnica e Relatrio apresentado ao Congresso pelo Ministro

    das Colnias, Lisboa, Imprensa Nacional, 1914, p. 20. Estas Bases foram discutidas e aprovadas, mas nunca

    chegaram a ser aplicadas. 19

    V. Dirio do Governo, n 237, de 22 de Novembro de 1920, p. 1614.

  • 16

    indgenas os indivduos de raa negra ou dela descendentes que, pela sua ilustrao e costumes, se

    no distingam do comum daquela raa (art. 3), a quem se negaram direitos polticos ou de

    participao em outras instituies que no apenas as suas, as tradicionais. Depois deste, houve

    ainda o Estatuto Poltico, Civil e Criminal dos Indgenas de 1929 (Dec. n 16 473, de 6 de

    Fevereiro), com uma definio exactamente igual anterior (art. 2) e o Estatuto dos Indgenas das

    Provncias da Guin, Angola e Moambique (D.L. n 39 666, de 20 de Maio de 1954), com algumas

    alteraes 20

    .

    A leitura dos textos doutrinrios e da legislao permite, finalmente, compreender que o

    conceito de indgena comportava uma conotao de transitoriedade mais (ou menos) evidente.

    Eram indgenas os que ainda no tinham abandonado o seu modo tradicional de vida, aqueles

    que, para os olhares europeus, ainda eram todos iguais, na sua fundamental distncia

    relativamente ao mundo civilizado. Isso significava que aqueles nativos de outros continentes ou

    aqueles indivduos de cor que j tinham franqueado o limiar da diferenciao e da

    individualidade, j no eram indgenas. Distinguiam-se (ou as autoridades coloniais os

    distinguiam) entre eles21

    . No futuro, todos acabariam por ultrapassar a fronteira que os libertaria

    da condio de indgenas. Era esse o resultado natural do fenmeno colonial, na sua dimenso de

    misso civilizadora conduzida pelo colonizador europeu. Como se fazia notar nas primeiras

    pginas dos tratados de que se tem vindo a falar, um dos elementos identificadores do fenmeno

    colonial era, exactamente, o de pr em contacto povos com graus civilizacionais diferentes,

    estando um desses povos, o povo colonizador, obrigado a cumprir a misso de conduzir o outro, o

    povo colonizado, a graus mais elevados de civilizao. A colonizao era, ela prpria, uma

    consequncia da diversidade das civilizaes e das raas, sendo a aco civilizadora sobre as

    pessoas e sobre as coisas o que a distinguia de fenmenos vizinhos, como a ocupao de um

    territrio, a conquista, a subordinao poltica, o imperialismo ou a emigrao, explicava Marnoco

    e Souza. Independentemente das suas causas e de outros fins a ela associados, como a

    vantagem econmica ou o prestgio nacional, a colonizao podia sempre definir-se como uma

    aco exercida por um povo civilizado sobre um pas de civilizao inferior, com o fim de o

    transformar progressivamente, pelo aproveitamento dos seus recursos naturais e pelo

    melhoramento das condies materiais e morais de existncia dos indgenas 22

    .

    20 V. A.D.S., Estatuto dos Indgenas in Fernando Rosas e J.M. Brando de Brito (orgs.),

    Dicionrio de Histria do Estado Novo, Lisboa, Bertrand, 1996, vol. I, p. 320.

    21O que no queria dizer que se assemelhassem logo aos cidados da metrpole. O Estatuto de 1954

    viria, por isso, a inventar um terceiro patamar, o daqueles que, distinguindo-se entre eles, ainda no se

    assemelhavam a ns, os indgenas destribalizados, v. Jos Carlos Ney Ferreira e Vasco Soares da Veiga,

    Estatuto dos Indgenas das Provncias da Guin, Angola e Moambique, Lisboa, 1957, p. 26 e ss. Por isso

    que, ao contrrio dos Estatutos dos anos 20, neste os indgenas eram [] os indivduos de raa negra ou

    seus descendentes que [] no possuam ainda a ilustrao e hbitos individuais e sociais pressupostos para a

    integral aplicao do direito pblico e privado dos cidados portugueses (art. 2, sublinhados nossos). Ainda

    que j se distinguissem do comum da sua raa. 22

    V. Marnoco e Souza, Administrao Colonial, Preleces feitas ao curso do 4 Ano Jurdico do

    ano de 1906-1907, Coimbra, Tipografia Frana Amado, 1906, p.8 e ss. Foi com estas lies que o autor, lente

    catedrtico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, deu incio, ali, ao ensino da disciplina de

  • 17

    Esta ideia dos Imprios como espaos morais no era uma ideia nova. Desde Roma que

    o objectivo tico de fundar uma comunidade humana universal, civilizada e bem governada,

    esteve associado ideia imperial. Esse objectivo foi, no discurso teolgico da missionao crist,

    um objectivo de natureza sobretudo espiritual, que converteu os imprios europeus da poca

    moderna em espaos de expanso do cristianismo. O discurso humanitarista das Luzes, como se

    ver mais detalhadamente ao longo deste trabalho, voltou a associar as formaes imperiais

    realizao de objectivos ticos universalistas, mas acentuando a dimenso laica dessa realizao:

    mais do que libertar os povos nativos de formas primitivas de religiosidade, era preciso tambm

    resgat-los da sua infantilidade civilizacional23

    , emancip-los de modos de produo primitivos (a

    pastorcia, a pesca, a recoleco), ensinar-lhes as formas civilizadas de governo. Porm, a partir

    da segunda metade do sculo XIX, a poca em que os textos aqui estudados foram escritos, essa

    misso civilizacional passou a fundamentar-se, de um modo cada vez mais claro, em teorias

    evolucionistas sobre a histria biolgica da humanidade, teorias que justificavam, em termos

    ticos, mas tambm cientficos, a conquista e a tutela dos povos mais atrasados pelos povos

    mais avanados. Nessa altura, superioridade civilizacional dos europeus acrescentou-se a sua

    superioridade racial, biologicamente determinada, explicando o seu impulso expansionista em

    direco aos territrios situados fora da Europa. A presena de populaes europeias em

    territrios no europeus passou ento a ser percebida como um sinal de fora e de superioridade

    racial: superioridade racial face s populaes nativas, constitudas por raas inferiores

    europeia, mas tambm das naes europeias entre si, distinguindo as expansionistas das no

    expansionistas24

    . O campo de referncias tericas era, ento, o da fundamentao biolgica

    (racial) da desigualdade entre as populaes humanas, que tinha tido uma das suas primeiras

    manifestaes na obra do francs Joseph Arthur (1816-1882), conde de Gobineau, em Essai sur

    lingalit des races humaines (1853-55), e o do darwinismo social, elaborado pelo filsofo ingls

    Herbert Spencer (1820-1893) a partir da teoria da seleco natural de Darwin e da sua aplicao

    direito colonial. Que esta definio recolhia unanimidade mostram as reflexes de Rui Ulrich, que em muitos

    aspectos discordava de Marnoco e Souza, em Poltica Colonial [], cit., p. 4: para haver colonizao []

    preciso que parta de um pais civilizado e que se destine a um pais desabitado ou apenas ocupado por um

    povo selvagem ou de civilizao inferior. E ainda isto no basta; para que haja colonizao indispensvel

    uma aco civilizadora dos emigrantes sobre as coisas e os homens do pas ocupado[...]. Tambm a sujeio

    poltica sem aco civilizadora no bastava, embora, juntamente com o factor econmico, todos fossem

    ingredientes da colonizao. Uma colnia era, afinal, [] uma regio subordinada econmica e

    politicamente a um estado de civilizao superior, o qual exerce nela e nos seus habitantes uma aco

    civilizadora (ibid., p. 7). 23

    Uday Singh Metha, Liberalism and Empire: A study in Nineteenth-century British Liberal

    Thought, Chicago, Chicago University Press, 1999, pp. 31 e ss.

    24 Se os seres humanos so essencialmente desiguais, se pertencem a raas superiores ou inferiores,

    em conflito entre si, se a civilidade criada pelo homem europeu constitui o ponto mais alto da caminhada

    progressiva da humanidade, se o Estado vontade de poder e expresso da vitalidade da raa, os Estados

    europeus no podiam deixar de promover uma aco de conquista que colocasse sob seu domnio as raas e

    culturas extra-europeias, para as conduzir (ou no) civilidade, V. Pietro Costa, Civitas, Storia della

    Cittadinanza[], vol. 3, cit., p. 477. Sobre o tema em geral veja-se, neste livro, pp. 405 e ss.

  • 18

    s sociedades humanas25

    . J o campo de referncias empricas era o das investigaes

    antropomtricas e craniomtricas da nova cincia antropolgica naturalista, investigaes

    conhecidas em Portugal atravs dos trabalhos inspiradores de Armand de Quatrefages (1810-

    1892), professor da cadeira de Antropologia no Museu de Histria natural de Paris, do antroplogo

    Paul Broca (1824-1880), fundador da Escola Antropolgica de Paris, em 1859, e do seu discpulo,

    Paul Topinard, a grande referncia, j nas ltimas dcadas do sculo XIX , do impulsionador da

    primeira escola universitria de antropologia em Portugal (a Escola de Antropologia de Coimbra), o

    antropobilogo Eusbio Tamagnini (1880-1972) 26

    .

    Sendo agora uma inevitabilidade cientfica, resultado da natural competio entre

    Naes que se apresentavam como organismos vivos, em crescimento ou em processo de

    degenerao, a expanso colonial preservava, como referi, o seu significado tico, com o

    correspondente dever de tutelar os povos atrasados, de os conduzir civilizao. S que, agora, a

    necessidade cientfica acrescentava a este um outro destino possvel, apropriado para os povos

    incapazes de civilidade: a aniquilao. Como recorda o historiador Pietro Costa, a colonizao

    tinha-se convertido, simultaneamente, numa imposio gerada []pelas necessidades vitais das

    populaes europeias, reduzidas a espaos restritos e superpovoados, enquanto uma boa parte

    do Globo estava nas mos de pequenos grupos de homens imbecis, impotentes, infantis e numa

    resposta adequada a []uma exigncia profunda do processo histrico, que condenava

    impiedosamente os povos incapazes de elevar-se civilizao [...] 27

    .

    O desaparecimento era, portanto, o destino que a Histria reservava aos indgenas: ou

    porque, depois de instrudos e civilizados pela presena europeia, deixariam de o ser, passariam a

    ser cidados europeus; ou em virtude de um outro processo, mais violento, de extino, que

    alguns acreditavam ser o resultado natural do confronto de uma raa e civilizao superiores com

    uma raa e civilizao inferior. Levy Maria Jordo (Visconde de Paiva Manso), um conhecido

    jurista (penalista) portugus da primeira metade do sculo XIX, discorreu, apoiando-se nos

    ensinamentos de Armand Quatrefages28

    , sobre estes dois destinos possveis:

    25 Sobre o darwinismo social na filosofia de Spencer e nos ensaios de William Graham Sumner, seu

    discpulo, professor de sociologia em Yale na segunda metade do sculo XIX, bem como as apropriaes

    contraditrias de que esta teoria foi objecto, v. Edward Caudill, Darwinian Myths, The Legends and Miuses

    of a Theory, Knoxville, The University of Tennesse Press, 1997, caps. 4 e 5. A se mostra tambm como as

    apropriaes do registo mais agressivo destas teorias resultaram da nfase na ideia de competio na teoria da

    seleco natural de Darwin e na consequente omisso da funo da cooperao na evoluo, de certa forma

    presente na ideia da misso civilizacional. Sobre o darwinismo em Portugal v. Ana Leonor Pereira, Darwin

    em Portugal (1865-1914), Filosofia, Histria, Engenharia Social, Coimbra, Almedina, 2001. 26

    Essas referncias, que foram partilhadas pelo Antroplogo Antnio Mendes Correia (1888-1969),

    o antropobilogo que liderou a Escola de Antropologia do Porto, esto documentadas em Ricardo Roque,

    Antropologia e Imprio: Fonseca Cardoso e expedio ndia em 1895, Lisboa, ICS, 2001, pp. 137 e ss. e

    p. 166.

    27 V. Pietro Costa, Civitas, Storia della Cittadinanza in Europa, vol. 3: La civilt liberale, Roma,

    Editori Laterza, 2001, p. 487, subl. nosso. 28

    Nomeadamente em Les Polynsiens et leurs migrations, publicado em 1866.

  • 19

    H porm duas leis supremas que regem os povos mais ou menos civilizados,

    logo que a onda sempre crescente da raa caucsica chega a alcan-los. Ou se retiram

    diante dela, e se aniquilam progressivamente em regies afastadas, cercados e dizimados

    pelas misrias da expatriao a lei do aniquilamento progressivo; ou se incorporam

    lentamente populao nova que absorve os seus elementos mais vivazes, no tardando

    o resto a extinguir-se, como exilado no meio de um mundo novo a lei da incorporao

    lenta. So ambas manifestaes diferentes de uma outra lei secreta e inevitvel, a da

    descrena da raa indgena, lei independente da vontade humana e verdadeiramente

    providencial 29

    .

    A centralidade que o problema indgena e os tpicos a ele associados adquiriram nesta

    poca reflecte um contexto mais geral, relacionando-se com o interesse crescente dos pases

    europeus, a partir da dcada de setenta do sculo XIX, pela posse de territrios em frica, bem

    como pela administrao das respectivas populaes nativas 30

    . Em 1884-85, durante a realizao

    da Conferncia de Berlim, a partilha do continente africano tinha sido, como se sabe,

    acompanhada da elaborao das normas do moderno direito pblico colonial que deviam presidir

    quer ao reconhecimento dos direitos de propriedade colonial, quer ao tratamento das populaes

    nativas dos territrios colonizados31

    . Este contexto favoreceu a autonomizao de um novo campo

    cientfico, vocacionado para a produo de saberes que tornassem mais racionais/produtivos os

    programas de administrao colonial, fenmeno do qual resultou a constituio de um corpus

    literrio autnomo, dirigido para a compreenso dos modernos princpios de colonizao

    cientfica, dos quais deviam ser deduzidos os direitos e deveres dos Estados colonizadores para

    com as populaes nativas dos territrios colonizados. Boa parte destes saberes foram produzidos

    com o apoio de instituies vocacionadas para o estudo da questo colonial africana, que se

    29 V. Visconde de Paiva Manso (Levy Maria Jordo), Loureno Marques (Delagoa Bay), Lisboa,

    Imprensa Nacional, 1870, p. xxvii. A mesma lei era recordada em quase todos os manuais europeus sobre

    direito e administrao coloniais, e, nomeadamente, num dos primeiros e mais citados em Portugal, o de

    Arthur Girault, professor de economia poltica na Universidade de Poitiers e membro do Instituto Colonial

    Internacional, cuja obra mais conhecida, objecto de sucessivas edies (1903, 1907, 1921, 1927, 1943) se

    constituiu num manual para os estudantes de direito em toda a Europa. Nesse livro, o autor no s

    comprovava, com exemplos, que todos os povos superiores em civilizao colonizaram, como reconhecia a

    existncia de uma lei comum a todos os seres vivos, pela qual [] os indivduos menos bem dotados

    desaparecem no confronto com os mais dotados. A extino progressiva das raas inferiores no confronto

    com as raas civilizadas [] a condio do prprio progresso, v. Arthur Girault, Prncipes de

    Colonisation et de Lgislation Coloniale, Paris, Librairie de la Socit du Recueil J.-B Sirey et du Journal du

    Palais, 1907 (3 ed.), p. 8 e p. 27. 30

    At c. de 1875, a presena europeia em frica no envolveu uma inteno planeada de

    administrar populaes africanas, situao que mudou a partir dessa altura, v. Crawford Young, The African

    Colonial State in Comparative Prospective, New Haven, Yale University Press, 1994, 82 e ss. Um primeiro

    sintoma dessa mudana foi a Conferncia (internacional) Geogrfica de Bruxelas, que reuniu a 12 de

    Setembro de 1876. 31

    Como se sabe, a partir da Conferncia de Berlim, os direitos de propriedade colonial passaram a

    fundar-se, nas zonas costeiras, pela ocupao efectiva do territrio e pela instalao de um equipamento

    administrativo mnimo, v. Nuno Severiano Teixeira, Colnias e colonizao portuguesa na cena

    internacional (1885-1930), in Histria da Expanso Portuguesa, Lisboa, C. Leitores, vol. IV, 1998, p. 501.

    Por outro lado, o art. 6 do Acto Geral da Conferncia de Berlim era dedicado conservao das populaes

    indgenas e do melhoramento das suas condies materiais e morais de existncia.

  • 20

    multiplicam na mesma poca32

    , tendo os seus postulados e os programas coloniais neles

    fundados sido discutidos em conferncias internacionais e nacionais. Exemplo desses congressos,

    que asseguraram a circulao dos novos saberes sobre a administrao colonial, foram o Congrs

    Colonial Internationale de Paris (1889, com delegados portugueses), os Congressos promovidos

    pelo Instituto Colonial Internacional de Bruxelas (fundado em 1894), ou o Congresso de Sociologia

    colonial (1900)33

    e, em Portugal, o Congresso Colonial Nacional de 1901, depois repetido em 1924

    e 193034

    , ou, j em 1934, o I Congresso Nacional de Antropologia Colonial, reflectindo este ltimo

    uma intensificao do interesse da antropologia portuguesa pelas populaes coloniais e tambm

    a colaborao oficial e activa dos antroplogos portugueses na poltica colonial do Estado

    Novo35

    . Entre os agentes cientficos desta nova cincia da administrao colonial contaram-se

    nomes vindos de reas disciplinares diversas, como o do economista francs Paul Leroy-Beaulieu,

    De la Colonisation Chez les Peuples Modernes (1874)36

    , o do j referido professor Arthur Girault,

    Principes de Colonisation et de Legislation Coloniale (1895), o do poltico e naturalista Jean-Marie

    Antoine de Lanessan (1843-1919), botnico, Professor na Faculdade de Medecina de Paris,

    governador civil e militar da Indochina francesa na ltima dcada do sculo XIX e autor, entre

    outras obras, do livro Prncipes de Colonisation (Paris, Flix Alcan, 1897), o de Paul S. Reinsh,

    professor da Universidade de Wisconsin, Colonial Administration, an Introduction to the study of

    colonial institutions (1905), o de Franois Jules Harmand, fsico da marinha fancesa que tambm

    ocupou diversos cargos na Tailndia, ndia, Chile e Japo, autor de Domination et Colonisation

    (1910), o de Charles de Lannoy, Professor da Universidade de Direito de Gand, autor de

    Lorganisation coloniale Belge (1913), ou o de Poultney Bigelow, The children of the Nations: a

    study of colonization and its problems (1901), para referir apenas alguns dos mais citados pela

    literatura colonial portuguesa. Apesar da diversidade de perspectivas sobre o tema de que

    tratavam, todos estes autores tinham em comum a ambio de fundar em bases cientficas a

    organizao e administrao coloniais.

    32 Como, em Portugal, a Sociedade de Geografia de Lisboa, em 1875, seguida da criao, no

    Ministrio do Ultramar, da Comisso Central Permanente de Geografia (1876), depois integrada na

    Sociedade de Geografia (1880), ou da Comisso de Cartografia, criada em 1883 para coordenar as

    exploraes geogrficas e a delimitao de fronteiras coloniais. Sobre o lugar destas instituies na

    constituio de saberes antropolgicos sobre o ultramar e as suas populaes v. Rui M. Pereira, introd. a

    Jorge Dias, Os Macondes de Moambique, I: Aspectos Histricos e Econmicos, Lisboa, CNCDP e IICT,

    1998 e Ricardo Roque, Antropologia e Imprio, cit., p. 282 e ss. Sobre a origem, o funcionamento e as

    motivaes dos membros da Sociedade de Geografia de Lisboa, v. ngela Guimares, Uma corrente do

    Colonialismo Portugus: a Sociedade de Geografia de Lisboa, 1875-1895, Lisboa, Livros Horizonte, 1984. 33

    Este particularmente importante, j que a poltica indgena foi o tema central das suas actas. 34

    Uma sntese dos temas tratados no primeiro Congresso Colonial pode encontrar-se em Congresso

    Colonial Nacional, teses, Lisboa, Tip. da Companhia Nacional Editora, 1900, onde est documentada esta

    centralidade concedido questo indgena.

    35 Gonalo Duro dos Santos, A Escola de Antroploga de Coimbra, 1885-1950, Lisboa, ICS, 2005,

    pp. 34 e ss. e 168.

    36 Um outro teorizador de polticas assimilacionistas, v. Martin Deming Lewis, "One Hundred

    Million Frenchmen: the Assimilation Theory in French Colonial Policy", in Comparative Studies in

    Society and History, vol. IV, n 2, Jan. 1962, p. 136.

  • 21

    Discorrer sobre a administrao e o destino das populaes nativas tornou-se ainda mais

    importante por ter ganho fora, nos encontros ento realizados, a ideia, que dominou em boa parte

    desta literatura, de que sem o contributo daquelas populaes sem o brao indgena , no era

    possvel explorar a maioria dos territrios coloniais em frica. As concluses da climatologia, uma

    nova cincia auxiliar da colonizao, ditavam que o homem branco no podia aclimatar-se na

    maioria dos territrios africanos. A colonizao africana devia especializar-se no estabelecimento

    de colnias tropicais de explorao (de fazendas), baseadas na explorao massiva de mo-de-

    obra nativa, reservando-se o povoamento europeu para zonas restritas, onde a singularidade das

    condies geogrficas e climticas o favorecesse37

    . Em 1915 essa tese j podia ser enunciada,

    num registo absolutamente cientfico, por acadmicos relativamente distantes dos problemas

    prticos que o fenmeno colonial colocava, como era o caso de Fernando Emygdio Garcia (1838-

    1904), Professor de Direito administrativo na Universidade de Coimbra cuja vida foi inteiramente

    dedicada ao ensino e, atravs dele, introduo e divulgao do sociologismo jurdico em

    Portugal:

    [...] as condies de adaptao da raa branca unicamente possveis de modo

    formal nas regies de planaltos da zona inter tropical, fazem com que a colonizao

    africana tenha como regra o carcter de fazendas: isto , de colnias onde a emigrao

    em massa dos habitantes da metrpole para o exerccio de todos os misteres e para a

    reproduo integral dos caracteres da raa impossvel ou, pelo menos, contingente e

    onde, portanto, uma minoria de capitalistas europeus explora com a mo-de-obra indgena

    a riqueza agrcola desenvolvida em ordem produo exclusiva ou largamente

    predominante dos gneros de exportao38

    .

    Estes discursos, abstraindo de algumas (importantes) diferenas que os distinguiam entre

    si, estavam embebidos de posies positivistas sobre a diversidade humana, que relegavam para

    o plano da metafsica categorias jurdico-polticas abstractas, como os direitos do Homem priori,

    anteriores sociedade, ou qualquer frmula universal de governar os homens. No era adequado

    pensar os direitos, o direito e as formas de governo independentemente da considerao dos

    povos e das suas determinaes raciais, culturais, civilizacionais. Sendo assim, a resposta que

    davam questo dos direitos e das formas de governo adequadas aos povos nativos dos

    territrios ultramarinos situava-se num registo muito distante do das doutrinas jusnaturalistas dos

    sculos XVII-XVII ou do universalismo das Luzes. Os indgenas tinham direitos, mas estes no

    derivavam da sua condio de homem igual e universal. Pelo contrrio, sendo cultural e

    racialmente muito diferentes dos europeus, no deviam ser submetidos a formas de governo

    37 Com dados fornecidos por essa nova cincia era possvel classificar as colnias em funo do

    respectivo clima e indicar, em funo disso, o tipo de colonizao que nelas podia resultar; v., por exemplo,

    Modo pratico de organizar Cartas Geogrficas populares das nossas colnias, indicando as zonas mais

    salubres e mais prprias para colnias agrcolas ou de plantao, etc., in Congresso Colonial Nacional

    Teses, Lisboa, cit., p. 4. 38

    v. Fernando Emygdio Garcia, Colonizao e Colnias Portuguesas, 1864-1914, Coimbra, F.

    Frana Amado, 1915, p. 16.

  • 22

    similares. O clculo dos seus direitos e o achamento das formas de governo que lhes eram

    apropriadas deviam resultar de uma avaliao rigorosa, cientfica, das suas caractersticas

    culturais e antropolgicas concretas, bem como das finalidades da colonizao. Dessa avaliao

    resultava sempre a necessidade de pensar e desenvolver polticas experimentais, positivas,

    capazes de, por um lado, proteger o indgena dos colonos, vindos de uma cultura superior e

    vtimas do deslize predatrio da sua prpria virilidade e, por outro lado, de o subtrair ao estado

    de menoridade em que vivia39

    . Em discursos mais racialistas, nos quais as caractersticas das

    raas eram descritas como fixas e imutveis, a ideia que assomava era mesmo a de

    funcionalizar a inferioridade racial aos objectivos dos Estados colonizadores. At que, do confronto

    entre as duas populaes, resultasse a extino da mais fraca . Estes discursos, nos quais noes

    associadas s polticas eugnicas esbatiam o ideal de misso civilizacional, no tiveram um

    impacto forte na cultura poltica e intelectual portuguesa, cuja matriz catlica era mais orientada

    pelas ideias de educao e proteco dos povos40

    . Mas foi no contexto de reflexes como as

    que acabei de descrever acerca dos direitos dos homens que o Ministro portugus das colnias

    entre 1914 e 1917, Artur Ribeiro dos Santos, interpretou a criao, em 1894, pela terceira

    Repblica Francesa, de um Ministrio das Colnias, como um sinal positivo de que os princpios

    abstractos, que o Ministro considerava serem tpicos da tradicional poltica assimilacionista dos

    republicanos franceses, tinham perdido o seu antigo predomnio:

    Sente-se que o governo central composto de homens novos, educados na escola

    moderna da cincia positiva, avessa a utopias, os quais tm a seu lado [...] os grandes tratados de

    colonizao, cheios de ensinamentos [...] e de recomendaes prticas derivadas do estudo do

    modelo ingls 41

    .

    39 Importa notar que muitas vezes, nestes discursos, o conceito de colono era quase to abstracto

    quanto o de indgena, podendo designar o senhor das roas em S. Tom e Prncipe como o mais miservel

    dos emigrados europeus, que tambm povoavam a mesma ilha, como recentemente se mostrou em Augusto

    Nascimento, rfos da Raa, Europeus entre a fortuna e a desventura no S. Tom e Prncipe colonial, S.

    Tom, Instituto Cames, Centro Cultural Portugus em S. Tom e Prncipe, 2002. Por esse motivo, optei por

    escrever a palavra colono tambm em itlico.

    40 Gonalo Duro dos Santos, A Escola de Antroploga de Coimbra, cit., p. 169. No obstante,

    aquelas orientaes manifestaram-se em obras de autores influentes, como Oliveira Martins em O Brasil e as

    Colnias Portuguesas, Lisboa, Guimares Editores, 1953 (1 ed.: 1880), ou em Eduardo Costa (v., deste

    ltimo autor, Estudo sobre a Administrao Civil das nossas possesses africanas (Memria apresentada ao

    Congresso Colonial Nacional, Lisboa, Imprensa Nacional, 1903, p. 173 e ss: Nas colnias africanas, o

    indgena no estabelece concorrncia com o europeu, estando livre, pelo menos por muitas geraes, do

    extermnio a que toda a raa inferior est votada, quando se estabelece [] em concorrncia com outra

    superior). Sobre o impacto (duradouro) das obras de Oliveira Martins na ideologia e na poltica colonial

    portuguesa dos finais do sculo XIX e XX v. Alexandre, Valentim, "Questo Nacional e Questo Colonial

    em Oliveira Martins", in Anlise Social, vol. XXXI, n 135, 1996. A mostra-se como, a partir do terceiro

    quartel do sculo XIX, a obra de Oliveira Martins est em perfeita consonncia com o nacionalismo

    organicista, com o darwinismo social, com a teoria da extino (e total sujeio) das raas inferiores, nas suas

    verses mais radicalizadas; o que, apesar da influncia das suas ideias, o singulariza na literatura portuguesa.

    41 V. Administrao financeira das provncias ultramarinas, proposta de lei orgnica e relatrio

    apresentados ao Congresso pelo Ministro das Colnias Artur R. de Almeida Ribeiro, e leis n 277 e 278,

    Coimbra, Imprensa da Universidade, 1917, p. 32.

  • 23

    Com isso, dizia ainda o Ministro, os republicanos franceses tinham posto termo ao []

    pensamento simptico, mas irrealizvel, de as amalgamar [as colnias] com o continente em um

    mesmo e nico organismo nacional, em que pretos e brancos, irmanados, gozassem da pura

    doutrina da Dclaration des Droits 42

    Face a estes objectivos e aos postulados cientficos que lhes estavam associados, a

    pergunta, retoricamente formulada, da qual se partiu, para pensar o problema do governo das

    populaes nativas, em Portugal como nos outros pases com colnias, foi a seguinte: deviam

    estes indgenas ser tratados como cidados europeus ou deviam ser pensados, para ele,

    estatutos e formas de governo alternativas, diferentes das formas de governo europeias ?

    Esta pergunta desdobrava-se em muitas outras, to retricas quanto a primeira. Os

    autores dos programas de colonizao perguntavam-se, por exemplo, se os indgenas deviam

    estar submetidos mesma lei que obrigava os cidados das respectivas metrpoles, ou se deviam

    ser sujeitos de uma legislao especialmente pensada para eles; e, tambm, se essa legislao

    especial devia submeter-se ao princpio da constitucionalidade, da garantia dos direitos e

    liberdades consagrados nos cdigos constitucionais europeus, o que equivalia a perguntar se

    esses cdigos deviam vigorar nos territrios coloniais e quais as pessoas cujos direitos eles

    deviam proteger43

    . Perguntavam-se, tambm, se os indgenas deviam ter o direito poltico de se

    fazer representar, atravs do voto, nos parlamentos metropolitanos. Se podiam participar na

    administrao colonial e de que forma: integrados nos rgos da administrao local europeia ou,

    pelo contrrio, atravs dos seus rgos tradicionais de administrao, fiscalizados pelas

    autoridades coloniais (indirect rule)?44

    .

    Igualmente importante era saber se os indgenas deviam regular-se pelas leis civis da

    metrpole, ser sujeitos aos processos civis metropolitanos, ser criminalmente condenados pelo

    direito penal da metrpole. Deviam ser julgados por tribunais europeus ? Comuns ou especiais ?

    42 V. Artur R. de Almeida Ribeiro, Descentralizao na Legislao e na Administrao das

    Colnias, in Antologia Colonial Portuguesa, Lisboa, Agncia Geral das Colnias, 1946, vol. I: Poltica e

    Administrao, p. 153. 43

    Sobre a importao dos cdigos europeus para as colnias, com especial referncia ao caso

    indiano v. Kiran Deshta, Uniform Civil code. In Retrospect and Prospect, New Delhi, Deep & Deep

    Publications, 1999. 44

    Sobre esta forma colonial de governo indirecto aplicado ndia (ou seja, no perodo que aqui nos

    interessa) v. Michael H. Fisher, Indirect Rule In India. Residents and The Residency System, 1764 -1857,

    Oxford, Oxford University Press, 1991. Os primeiros sintomas de importao, pelos portugueses, de polticas

    inspiradas na indirect rule britnica foram o Decreto de 23 de Maio de 1907, que reorganizou

    administrativamente a provncia de Moambique, da autoria do ento Ministro da Marinha e Ultramar Aires

    de Ornellas (um decreto no qual a regulamentao dos deveres dos rgulos e outras autoridades africanas foi

    entregue a um Secretrio dos Negcios Indgenas, cap.VIII, art. 37, 2) e o Regulamento das Circunscries

    Administrativas de Angola, de 1912, que reconheceu s autoridades gentlicas as suas funes tradicionais

    desde que a autoridade do chefe convenha autoridade administrativa e ela a confirme, cit. em Jos

    Gonalo de Santa Rita, O contacto das raas nas colnias portuguesas. Seus efeitos Polticos e Sociais.

    Legislao Portuguesa, in Congresso do Mundo Portugus, vol. XV: Memrias e Comunicaes

    apresentadas ao Congresso Colonial (IX Congresso), tomo 2, seco II, Lisboa, 1940, p. 25.

  • 24

    Ou deviam manter-se, para eles, as justias indgenas ? E que relao devia haver entre uma e

    a outra ordem jurdica, quando a opo era a do pluralismo jurdico ?

    Problemtico era, ainda, saber, caso a opo fosse por um modelo diferenciador, onde

    devia ser produzida a legislao para o ultramar: na metrpole (e, aqui, se no parlamento ou se

    directamente pelos governos), ou nas colnias ? E, neste ltimo caso, pelos respectivos

    governadores, nomeados pelo poder central da metrpole, ou em instituies representativas

    locais ? Que grupos populacionais deviam, finalmente, integrar estas instituies?

    Estas questes no envolviam apenas, como se percebe, problemas de poltica colonial.

    Envolviam tambm temas centrais da teoria poltica liberal e do constitucionalismo oitocentista,

    como a cidadania, os direitos constitucionais, a igualdade perante a lei, o governo representativo e

    limitado, a separao de poderes. Assim, era a prpria construo do Estado constitucional

    oitocentista que o fenmeno colonial obrigava a repensar45

    .

    A resposta s questes acima formuladas variava no detalhe. Mas, neste fim do sculo,

    numa altura em que os colonizadores j estavam a actuar no terreno, em contacto com a realidade

    das tarefas quotidianas, todas iam no mesmo sentido, o sentido da especialidade.

    Afirmar que a especialidade devia ser o princpio orientador da organizao da

    administrao colonial significava, na literatura colonial oitocentista, vrias coisas. Significava, em

    primeiro lugar, que as colnias no deviam estar sujeitas s constituies polticas da metrpole,

    mas ser dotadas de leis orgnicas especiais, de constituies privativas46

    . No que dizia respeito

    ao seu governo, os autores daquela literatura afirmavam que no era adequado concentrar as

    funes legislativas e executivas na metrpole, por causa da natureza diversa e essencialmente

    diferente da legislao ultramarina, para cuja elaborao os deputados da metrpole careciam dos

    conhecimentos (e do interesse) necessrios - uma constatao que vinha muitas vezes

    acompanhada de comentrios anti-parlamentares, j muito comuns na poca, sobretudo nos

    pases da Europa do Sul. Pelo contrrio, uma arquitectura administrativa colonial correcta exigia a

    [] descentralizao, sobre o executivo, [de] uma parte da competncia do legislativo[]47

    , a

    autonomia dos governos coloniais locais relativamente metrpole, a definio de [] sucessivas

    esferas de aco e de competncia dos governos locais, do governo da metrpole e do poder

    legislativo, transportando deste para os outros dois e do segundo para os primeiros parcelas, de

    valor decrescente, da funo legislativa e executiva, mas com carcter de concesso permanente,

    45 Sobre esse temas, numa abordagem genrica, v. Maurizio Fioravanti, Appunti di Storia delle

    Costituzioni Moderne, le Libert fondamentali, Torino, G. Giappichelli Editore, 1995, p. 81 e ss. e , do

    mesmo autor, Costituzione, Bologna, Il Mulino, 1999, pp. 85 e ss. 46

    As primeiras Leis Orgnicas para as colnias portuguesas, j citadas nesta introduo, foram

    aprovadas em 1914, v. Artur R. de Almeida Ribeiro, Administrao Civil das Provncias Utramarinas, cit.

    47 V. Ernesto de Vilhena, Questes coloniais, Discursos e Artigos, Lisboa, O Autor, 1910-11, p.

    293.

  • 25

    embora limitada48

    . Era este o regime de descentralizao administrativa adequado s colnias

    cuja populao era maioritariamente indgena porque, contrariamente ao que sucedia com as

    colnias de povoamento europeu, aquelas no dispunham de populao em nmero e capacidade

    suficientes para se governarem autonomamente. As outras de que eram exemplo alguns dos

    territrios que integravam o Imprio Britnico, como a Unio da frica do Sul, o Canad, ou a

    Austrlia, podiam existir num regime de quase independncia da metrpole, auto-governando-se

    atravs de assembleias legislativas locais, residindo a o fundamento para que o Imprio britnico

    fosse designado como um Imprio de liberdade. Nas primeiras, pelo contrrio, a simples

    desconcentrao de funes, quando muito [] acompanhada da representao dos colonos em

    corpos de constituio varivel, no raro, meramente consultivos era, para a maioria dos autores,

    o grau de autonomia adequado49

    . Foi esse o regime consagrado no nico e escassamente

    discutido ttulo da Constituio republicana de 1911 dedicado s provncias ultramarinas50

    . A

    especializao e a descentralizao estiveram tambm presentes no esprito da lei republicana de

    15 de Agosto de 1914, nomeadamente quando, no respectivo relatrio, se convidava o Parlamento

    portugus a limitar-se, em relao s colnias, a formular princpios e disposies de carcter

    geral, sem descer especializao, que da competncia do executivo da metrpole e dos

    governos locais das colnias, muito mais aptos para precisar os termos em que tal especializao

    deve ser feita51

    .

    Neste regime administrativo, o indgena no era, portanto, um sujeito poltico52

    . Era, em

    vez disso, o objecto de um regime jurdico e administrativo especial, a organizar pelas leis

    especiais do indigenato. A elaborao destas leis era tarefa do Governador-geral, no devendo

    48 V. Artur R. de Almeida Ribeiro, Descentralizao na Legislao e na Administrao[], cit., p.

    156. 49

    V. Artur R de Almeida Ribeiro, Administrao Financeiras das Provncias Ultramarinas,

    Proposta de Lei Orgnica e Relatrio apresentados ao Congresso pelo Ministro das Colnias[]e Leis ns

    277 e 278, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1917, p. 13. Tambm em Fernando Emygdio da Silva a

    [] desconcentrao das atribuies do funcionalismo colonial hierarquicamente subordinado metrpole

    era o regime adequado s fazendas, por oposio a descentralizao institucional das colnias de

    povoamento, v. Colonizao e Colnias , cit., p. 26. Eduardo Costa considerava que a autonomia

    administrativa colonial se obteria mediante a outorga de larga iniciativa e fortes meios de aco s

    autoridades coloniais (Ministro e governadores) e chamando-se (com prudncia) os representantes do seu

    comrcio, da sua agricultura, em resumo, dos contribuintes da raa dominante a dar a sua opinio e o seu

    voto sobre a administrao e economia da colnia, v. Eduardo Costa em Estudo Sobre a Administrao

    Civil[], cit., p. 8. 50

    Na administrao das provncias Ultramarinas predominar o regime de descentralizao, com

    leis especiais adequadas ao estado de civilizao de cada uma delas, tit. V, art. 67. Alm deste, havia o

    polmico art. 87, a restringir a descentralizao (Quando estiver encerrado o Congresso poder o Governo

    tomar as medidas que julgar necessrias e urgentes para as provncias ultramarinas). Foi ao abrigo deste

    artigo que se aprovaram as Leis Orgnicas de 1914. 51

    V. Relatrio da Lei n 277 de 15 de Agosto de 1914 (Lei orgnica da administrao civil das

    provncias ultramarinas), cit. em Alfredo Hctor Wilensky, La administracin de justicia en frica

    continental portuguesa,Lisboa, Junta de Investigaes do Ultramar,1971, p. 112. 52

    Os rgos da administrao eram reservados aos colonos, embora aqui as opinies se dividissem,

    havendo os que davam entrada aos indgenas, como aprendizes, naqueles organismos, e os que remetiam a

    sua participao exclusivamente para as instituies indgenas, como defendia Eduardo Costa, Estudo

    Sobre a Administrao Civil[], cit., p. 162 e ss.

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    este ser limitado, nessa sua funo legislativa, pelos direitos civis e polticos dos cidados, como

    explicava o Ministro responsvel pelo primeiro texto legislativo portugus onde se contemplou uma

    poltica