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1 Contexto histórico, relações intertextuais e ideologia no cinema infantil Uma análise de O Gigante de Ferro Raquel Aparecida Cesar da Silva (Universidade de Passo Fundo/ RS) Fabiane Verardi Burlamaque (Universidade de Passo Fundo/ RS) INTRODUÇÃO Baseado em obra do poeta inglês Ted Hughes, O Gigante de Ferro é um longa- metragem de animação dirigido pelo norte-americano Brad Bird e lançado nos cinemas dos Estados Unidos no ano de 1999. Realizado através de técnicas tradicionais de desenho, pintura e filmagem quadro a quadro, o filme apresenta uma trama repleta de referências a importantes momentos da história norte-americana e também àquilo que o crítico norte-americano de cinema Roger Ebert chamou de “ET type of story 1 , ou seja, ao momento de encontro entre dois sujeitos provenientes de realidades radicalmente diferentes, cujos discursos ideológicos se consolidam justamente durante o tempo em que lhes é dado conviver um com o outro. Apesar de ter obtido um modesto sucesso de público quando de seu lançamento nos cinemas, segundo o site IMDB, o filme foi bastante laureado, recebendo, inclusive, alguns prêmios voltados especificamente para obras cinematográficas infantis, como o BAFTA 2 Children’s Award. Hoje O Gigante de Ferro ocupa o lugar de filme cult, sobretudo entre os adultos que descobrem nele evidentes ressonâncias de uma reflexão filosófica e de um discurso ideológico marcadamente pacifista. O robô gigante é na verdade um armamento bélico, cuja descoberta da existência em tempos de Guerra Fria entre os Estados Unidos e a antiga União Soviética o filme é ambientado no ano de 1957 , provoca medo e perplexidade entre os habitantes da pequena cidade de Rockwell, e acaba atraindo a atenção do governo federal. A intenção a partir da qual o robô é criado, bem como a identidade de seus criadores, não são reveladas em nenhum momento da obra, justamente porque o que é importante para o filme e para o estudo aqui proposto é a negação, por parte do gigante, dessa natureza originalmente orientada para a violência. O teórico russo Mikhail Bakhtin (1997) afirma que o herói de uma criação estética precisa ser entendido 1 Referência ao filme ET O Extraterrestre, dirigido por Steven Spielberg e lançado nos Estados Unidos em 1982. 2 Trata-se de um evento do cinema inglês adulto, com uma categoria especificamente voltada aos filmes infantis. O Children’s Award, portanto, é uma premiação dentro da premiação.

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Contexto histórico, relações intertextuais e ideologia no cinema infantil

Uma análise de O Gigante de Ferro

Raquel Aparecida Cesar da Silva (Universidade de Passo Fundo/ RS)

Fabiane Verardi Burlamaque (Universidade de Passo Fundo/ RS)

INTRODUÇÃO

Baseado em obra do poeta inglês Ted Hughes, O Gigante de Ferro é um longa-

metragem de animação dirigido pelo norte-americano Brad Bird e lançado nos cinemas

dos Estados Unidos no ano de 1999. Realizado através de técnicas tradicionais de

desenho, pintura e filmagem quadro a quadro, o filme apresenta uma trama repleta de

referências a importantes momentos da história norte-americana e também àquilo que o

crítico norte-americano de cinema Roger Ebert chamou de “ET type of story1”, ou seja,

ao momento de encontro entre dois sujeitos provenientes de realidades radicalmente

diferentes, cujos discursos ideológicos se consolidam justamente durante o tempo em

que lhes é dado conviver um com o outro.

Apesar de ter obtido um modesto sucesso de público quando de seu lançamento

nos cinemas, segundo o site IMDB, o filme foi bastante laureado, recebendo, inclusive,

alguns prêmios voltados especificamente para obras cinematográficas infantis, como o

BAFTA2 Children’s Award. Hoje O Gigante de Ferro ocupa o lugar de filme cult,

sobretudo entre os adultos que descobrem nele evidentes ressonâncias de uma reflexão

filosófica e de um discurso ideológico marcadamente pacifista. O robô gigante é na

verdade um armamento bélico, cuja descoberta da existência em tempos de Guerra Fria

entre os Estados Unidos e a antiga União Soviética – o filme é ambientado no ano de

1957 –, provoca medo e perplexidade entre os habitantes da pequena cidade de

Rockwell, e acaba atraindo a atenção do governo federal.

A intenção a partir da qual o robô é criado, bem como a identidade de seus

criadores, não são reveladas em nenhum momento da obra, justamente porque o que é

importante para o filme – e para o estudo aqui proposto – é a negação, por parte do

gigante, dessa natureza originalmente orientada para a violência. O teórico russo

Mikhail Bakhtin (1997) afirma que o herói de uma criação estética precisa ser entendido

1 Referência ao filme ET – O Extraterrestre, dirigido por Steven Spielberg e lançado nos

Estados Unidos em 1982. 2 Trata-se de um evento do cinema inglês adulto, com uma categoria especificamente voltada

aos filmes infantis. O Children’s Award, portanto, é uma premiação dentro da premiação.

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e recriado por meio do outro, através de uma vivência exterior a si mesmo, para que sua

alma (a representação narrativa da alma) adquira integridade e significação dentro da

obra. O Gigante de Ferro se desvincula de sua origem por meio do relacionamento que

estabelece com o menino e dos símbolos que lhe são apresentados por ele, o que acaba

por evidenciar o processo de reconstrução do discurso produzido por meio do signo

ideológico físico no qual o robô se constitui. A amizade com o menino permite ao

gigante o acesso a uma nova linguagem, cujo significado vai muito além de seu aspecto

exterior.

Os demais temas que fazem parte do enredo geral da animação, e que compõem

uma atmosfera cinematográfica cujo ponto central é o encontro entre o menino e o robô,

contribuem tanto para evidenciar as características infantis da obra, quanto para

distanciar-lhe dos paradigmas pré-concebidos dentro dos quais uma narrativa para

crianças deveria enquadrar-se. Estudos acerca da natureza de obras literárias voltadas

para o público infantil, bem como a melhor maneira de analisá-las criticamente,

aproximados da trama exposta em O Gigante de Ferro, contribuem para evidenciar-lhe

os traços que, muito embora pertençam a uma linguagem artística diferente, colocam-no

sob a mesma perspectiva a partir da qual os estudiosos examinam seus exemplos. O que

já foi dito acerca do filme pela crítica especializada em cinema, representada aqui por

Roger Ebert, em consonância com as ideias dos pesquisadores de literatura infantil,

auxiliam na melhor compreensão do contexto histórico e de sua representação em obras

relacionadas à infância.

O trabalho aqui apresentado tem como principal objetivo evidenciar a

complexidade da história e da realização de O Gigante de Ferro, capaz de torná-lo uma

experiência estética singular, para além de categorias dentro das quais seus elementos

narrativos poderiam encerrá-lo. O artigo divide-se em três momentos: uma seção

dedicada ao exame dos elementos narrativos e intertextuais da obra à luz das percepções

de Ebert e das ideias de críticos e estudiosos de narrativas infantis, uma seção contendo

a resenha do recorte teórico de Mikhail Bakhtin e uma análise final, onde os signos

ideológicos através dos quais o robô – aqui entendido como o herói do filme – se

expressa, encontram-se traduzidos por meio dos postulados bakhtinianos expostos

previamente. Delimitar as características internas da obra, tais como personagens,

ambientes e período, e relacioná-las não apenas com o contexto social que representam,

mas também com as demais obras às quais aludem, direta ou indiretamente, por meio de

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teorias e pensamentos críticos, significa aproximar linguagens e comprovar o valor

estético de uma bela história.

1 ENQUANTO O GIGANTE NÃO VEM: REALISMO E INTERTEXTUALIDADE

NA HISTÓRIA

Em primeiro lugar, é preciso esclarecer que, muito embora se trate da adaptação

de uma obra literária, O Gigante de Ferro será sintetizado e analisado aqui

exclusivamente em sua versão cinematográfica, sem que sejam feitas, em momento

algum, alusões ao conteúdo do trabalho escrito de Ted Hughes. O filme, lançado em

1999 e ambientado no ano de 1957, é repleto de referências à história e a determinados

ícones da cultura estadunidense, que possuem importância crucial tanto para o

desenvolvimento da trama quanto para sua compreensão. A natureza claramente

intertextual da obra, portanto, lhe confere riqueza e autonomia, permitindo-lhe ser

descrita e estudada exclusivamente em seus próprios termos.

O filme começa, já, com uma referência histórica: o satélite Sputnik, lançado ao

espaço pelos russos no mesmo ano em que a história toma lugar aparece na primeira

cena da animação. O objeto que gravita em torno da Terra tem a foice e o martelo,

símbolo da então chamada União Soviética, gravados em sua lateral. Ainda não se pode

saber a real dimensão que o objeto ocupará na trama, mas já se pode depreender que

algo de importante sairá dali. O contraste entre imagens animadas e a exposição de um

signo amplamente associado – via de regra pelo senso comum – à ideologia comunista,

evidencia a iminência de uma história cujos desdobramentos suplantarão em muito

aquilo que se espera de uma narrativa tradicionalmente infantil. Porém, é no que ambos,

imagens animadas e símbolo ideológico, possuem de convergente, que o longo caminho

alusivo de O Gigante de Ferro se inicia.

Lançado pela produtora Warner Brothers, o filme abre com o logotipo da

empresa – um escudo com as iniciais WB –, cujo braço animado da companhia tem no

coelho esperto e algo sarcástico, Pernalonga, seu mais notório representante. É Roger

Ebert (1988) quem aponta, a propósito do lançamento de Who Framed Roger Rabbit3

3 Dirigido por Robert Zemeckis, Uma cilada para Roger Rabbit inovou ao misturar personagens

de desenho animado com atores reais, em uma trama que alude a temas e ícones pertencentes a ambos os universos.

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nos cinemas, a estreita relação entre os old school movie cartoons realizados durante as

décadas de 30, 40 e 50 do século passado e a situação política e social atravessada pelos

Estados Unidos no período. Uma das séries de desenhos animados produzida e lançada

pelo estúdio dos irmãos Warner na década de 1940 foi batizada de Looney Tunes e se

configurou na grande responsável pela consolidação de Pernalonga como um dos

maiores ícones da cultura popular norte-americana. Durante os primeiros anos de

produção da série, os Looney Tunes protagonizaram tramas de espionagem, mistério e

sedução – inclusive com veladas insinuações sexuais –, bem como histórias de cunho

social, que representavam a condição de pobreza extrema da legião de desempregados

da grande depressão econômica.

A primeira cena do filme, portanto, além de se constituir em uma representação

simbólica do medo e da paranóia provocados pela guerra fria, principais elementos

problematizadores da obra, é um retorno ao passado das animações, onde os desenhos

planos, em duas dimensões, encerravam possibilidades de exploração de temas tão

complexos quanto perigosos. Entretanto, O Gigante de Ferro difere dos cartoons

clássicos norte-americanos não apenas por ter sido produzido e lançado recentemente

ou, ainda, por ser a adaptação de uma obra literária inglesa, mas porque o

distanciamento histórico dentro do qual tem sua história situada, bem como os detalhes

realistas de sua trama, não permitem que o filme seja relacionado ao conteúdo

claramente alegórico e panfletário dos desenhos lançados durante as primeiras décadas

do século passado.

O teor potencialmente político de O Gigante de Ferro se dilui rapidamente com

o decorrer o filme, sobretudo quando começamos a vislumbrar o perfil dos habitantes da

cidade de Rockwell e a maneira como se relacionam uns com os outros. As personagens

do filme são suficientemente bem construídas para sustentarem conflitos de natureza

realista, que poderiam ser enfrentados por pessoas de qualquer lugar do mundo, em

qualquer período dos últimos 100 anos; muito embora tais conflitos permaneçam em

segundo plano, funcionando como o cenário sobre o qual a história principal acontece.

Hogarth Hughes, o protagonista4 do filme, é um menino de 9 anos que vive em uma

4 Durante a análise aqui proposta será feita uma diferenciação entre os termos “protagonista” e

“herói”, baseada em alguns aspectos da teoria bakhtiniana e em definições amplamente utilizadas pela crítica especializada em cinema. Hogarth é o protagonista porque está situado no centro da imensa maioria das cenas, e o robô é o herói do filme por ser ele o objeto da reconstrução discursivo-ideológica do eu.

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casa afastada da cidade onde nasceu e onde a mãe trabalha como garçonete; é a esse

menino, filho de uma mulher solteira trabalhando fora de casa nos anos 1950, que

caberá a condução da história, bem como grande parte da responsabilidade no destino

final do robô. E é justamente quando o gigante de metal entra em cena e começa a

interagir com o menino que o filme adquire os contornos de uma história real. O

Gigante de Ferro é um longa-metragem de difícil qualificação: é um desenho animado

com características de ficção científica, aventura, comédia dramática e fantasia. A única

definição sobre a qual todos parecem acordar é que se trata de uma obra infantil e, para

muitos, uma denominação tão generalista quanto essa significa tudo que é preciso saber

para se assistir, ou não, a um filme.

Depois que o gigante “cai” na Terra, o filme passa a se dedicar ao menino

Hogarth, à sua personalidade, e ao modo como ele interage com as pessoas e os objetos

de seu cotidiano. O jovem protagonista da trama é uma personagem muito bem

construída, dotada de características típicas de qualquer menino de 9 anos – curiosidade,

destemor e desobediência, são algumas delas –, porém com especificidades de

comportamento e personalidade que o singularizam. Hogarth é, a trama parece indicar,

uma criança solitária, incompreendida pelos colegas de escola e que procura em

pequenos animais de estimação e em filmes e revistas de super-heróis a companhia e a

amizade que lhe são sonegadas pelos humanos. A fantasia, portanto, faz parte da

realidade do menino, sendo, inclusive, indissociável da forma aberta e generosa através

da qual ele se torna responsável pela “educação terrestre” do robô. As pessoas com as

quais Hogarth convive constituem um painel bastante eloquente do american way of life

da primeira metade do século passado, com seus trabalhadores beberrões, seus artistas

locais, seus burocratas engravatados, todos vivendo apartados uns dos outros, presos às

reminiscências da II Guerra Mundial e ao pavor de um iminente holocausto atômico.

Annie Hughes, a mãe de Hogarth, sustenta o filho sozinha, trabalhando num

Diner e, muito embora não acredite na palavra do menino sobre a existência de um robô

gigantesco, é tolerante e compreensiva para com ele. Outra personagem importante para

a trama é o dono do ferro-velho local, Dean, uma personagem cuja figura lembra

bastante o modo de vestir, falar e agir da juventude “rebelde sem causa” dos anos 50,

que teve em Marlon Brando e no seu quase homônimo James Dean seus principais

representantes cinematográficos. Annie e Dean parecem habitar as margens da cidade

de Rockwell, tanto física como socialmente, uma vez que ambos moram em lugares

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retirados e suas relações pessoais, pelo menos aquelas que são mostradas dentro do

espaço-tempo da história, não vão além de conversas superficiais trocadas com colegas

ou clientes profissionais. A solidão e o isolamento das três personagens, no entanto,

vem a ser justamente o que acaba por garantir ao robô a possibilidade de se manter

incógnito por cerca de três quartos da trama, período no qual o menino estabelece com

ele uma relação genuína de confiança e afeto.

Hogarth, Anne e Dean podem ser considerados os “mocinhos” da trama, porque

a eles se opõe um vilão cuja intenção é não apenas comprovar a existência do gigante

para o governo federal, como também incitar seus representantes – o exército – a

eliminá-lo sumariamente. Quando Kent Mansley, o agente enviado para verificar a

veracidade dos rumores sobre uma criatura enorme que, depois de cair no mar, andaria

pelos arredores da cidade a devorar objetos e construções de metal, o filme aproxima-se

pela primeira vez do fantasma da “facilidade” temática que, segundo Regina Zilberman

(1987), vem acompanhando a literatura infantil desde seu surgimento no século XVIII

até os dias de hoje. Mansley força os limites entre o arquétipo e o estereótipo, porque

personifica o sentimento de medo e paranóia do período e porque sua construção, desde

a figura física, cujo destaque é um queixo pronunciado, quase draculesco, passando pela

obstinação que demonstra em encontrar e destruir o robô, até chegar à maneira como se

expressa – and all that that implies é o bordão que repete constantemente para

convencer seus interlocutores de que todo e qualquer fato possui desdobramentos –

destoa sutilmente das demais personagens. Kate Mansley é rígido e imutável em sua

representação estética e ideológica.

Porém, o que pode ser considerado fácil em O Gigante de Ferro é aquilo que

pode ser considerado fácil em grande parte dos filmes de aventura e fantasia e não

apenas naqueles voltados exclusivamente para o público infantil. A história do cinema,

segundo Roger Ebert, foi feita da construção e desconstrução sistemática de

comportamentos e posturas exemplares, que, em maior ou menor grau, ajudaram a

moldar as expectativas do público, qualquer público, de uma obra cinematográfica. O

agente federal é a única personagem que se mantém pensando e agindo de acordo com o

pavor nuclear herdado pela geração posterior à descoberta e utilização da bomba

atômica e, se isso faz dele o vilão, é tão somente porque num filme, muito mais do que

numa narrativa escrita, como um conto ou romance, a intransigência é, quase sempre,

sinônimo de antagonismo. Em oposição ao menino, cuja coragem e abertura para

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enfrentar o inesperado e receber o desconhecido são marcas tanto de sua idade quanto

do lugar que lhe coube ocupar na trama, Kent Mansley adquire também sua parcela de

profundidade.

A realização técnica da obra, a despeito da simplicidade do resultado final, é um

dos fatores que contribuem para que seus elementos possam ir muito além daquilo que

parecem ser numa primeira observação do universo narrativo do filme. A sincronia

entre as cenas animadas e a dublagem das vozes permite ao longa um ritmo muito

semelhante à de qualquer trabalho live-action, com atores de carne e osso e cenários

reais. Hogarth, por exemplo, é uma personagem cujos movimentos e palavras

acompanham à perfeição o raciocínio ágil e a disposição para as façanhas físicas de um

menino de 9 anos; o gigante, por sua vez, movimenta-se com a lentidão e a gravidade

esperada de uma criatura de 30 metros de altura feita inteiramente de metal. E é também

essa atenção conferida à concepção e criação dos detalhes do filme que, segundo Ebert,

“make you forget from time to time that these are moving drawings, because the story

and characters are so compelling5”.

Roger Ebert lembra, ainda, que O Gigante de Ferro é uma das obras que melhor

evidenciam a liberdade de concepção e realização encontrada pelos cineastas no

universo das animações tradicionais. A construção do gigante, em um filme “real”, não

custaria menos de 100 milhões de dólares, o que acabaria por amarrar o trabalho a uma

obrigatoriedade de resultados financeiros – o que certamente lhe cercearia a

originalidade – e por concentrar grande parte da atenção dos expectadores nos efeitos

visuais, em detrimento da história e, para o crítico norte-americano, o longa metragem

é, antes e acima de tudo, uma bela história, narrada de uma maneira envolvente. Ebert

afirma que, mais do que simplesmente aludir ao fato, o filme é, verdadeiramente, uma

parábola da Guerra Fria, na qual a criança ensina a um robô criado para ser e fazer o que

se espera de uma arma de destruição em massa, que somos aquilo que escolhemos ser, e

que é errado ferir e matar, em qualquer circunstância. O fato de ser ambientado nos anos

1950 é parte indissociável daquilo que se pode buscar compreender sobre a animação, e

parte indissociável dos gêneros dentro dos quais ela poderia ser enquadrada, sendo a

ficção científica o mais evidente.

5 Do original, em tradução livre: “fazem com que você esqueça, de tempos em tempos, que se

trata de desenho animado, porque a história e as personagens são muito convincentes”.

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Teresa Colomer (2003), em um estudo acerca do perfil da narrativa juvenil e

infantil atual, lembra que a ficção científica se consolidou como gênero literário a partir

do início do século XIX, com a publicação de Frankenstein. Para a pesquisadora

espanhola, as obras que vieram na esteira da criação clássica de Mary Shelley e que

estabeleceram, por assim dizer, o cânone do gênero, estiveram durante muito tempo

afastadas do público infantil por conta das descrições técnicas nas quais a uma narrativa

de ficção científica deve forçosamente estar baseada, e também por aquilo que ela

chama de “complexidade de sua possível especulação moral”. Essa especulação

mencionada por Colomer – utilizando ainda o exemplo da obra de Shelley, na qual um

cientista visionário recria vida a partir de corpos mortos – nos dias de hoje, passa de

possível a evidente. E ela prossegue:

Mas o crescimento do romance juvenil, a partir dos anos 70, propiciou

sua [da ficção científica] aceitação nesse corpus literário. Ao mesmo

tempo, a crescente complexidade tecnológica atual começou a

dificultar a possibilidade de uma especulação científica compreensível

para o público e admitiu uma certa presença de fatos e personagens

simplesmente estranhos, que aproximaram a ficção científica às

formas da fantasia tradicional e facilitaram, pois, sua assimilação por

parte da narrativa infantil e juvenil. (COLOMER, 2003, p. 195)

Se lembrarmos das palavras de Regina Zilberman acerca da maneira como a

necessidade da presença do fantástico em obras destinadas ao público infantil contribui

tanto para garantir a esse segmento uma parcela genuína de criatividade temática,

quanto para encerrá-lo dentro de uma obrigatoriedade que lhe compromete a

verossimilhança, a aproximação mencionada por Colomer torna-se menos uma solução

do que o prolongamento do problema. A narrativa de ficção científica, no que diz

respeito a obras infantis e juvenis, parece ter encontrado um ponto de consonância com

a fantasia justamente naquilo que ambas possuem de inverossímil, e de superficial; sem

a possibilidade de que suas “especulações científicas e morais” sejam percebidas e

examinadas.

Em O Gigante de Ferro, entretanto, ficção científica e ficção fantástica ocupam

exatamente o mesmo lugar de representação, porque uma não funciona sem a outra; e

ambas se encontram no espaço de interação entre forma e conteúdo, apontado por Peter

Hunt como um dos fatores que mais influenciam a maneira como a crítica observa a

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narrativa infantil. Para o pesquisador britânico, mais importante do que constatar o que

uma criança consegue ou não compreender em uma obra, é perceber as formas através

das quais essa obra se mostra capaz de representar a totalidade narrativa que emerge do

embate entre as situações de problema que se estabelecem ao longo da história, e suas

resoluções (HUNT, 2010). Hogarth vive em um mundo à parte, feito de revistinhas de

super-heróis e “scary movies” e o universo alegórico de sua infância reside todo no

imaginário tecnológico daquele período específico. Para o menino, a ficção científica é

a única fantasia que existe, e é por meio de sua materialização na figura do robô – cuja

descoberta é tão possível quanto improvável de acontecer no tempo presente, como em

toda ficção científica –, que ele resolve seus conflitos.

Nesse sentido, alguns momentos do filme são bastante ilustrativos: Kent

Mansley, a certa altura, faz referência ao Sputnik afirmando que seu enorme perigo

reside tanto no fato de ter sido criado por estrangeiros, quanto na impossibilidade de seu

país de vigiá-lo da mesma maneira como o satélite os vigia. A ameaça da “era atômica”

encontra-se menos naquilo que ela representa de fato do que naquilo que se pode

imaginar sobre ela. A paranóia do agente, ressaltada como traço principal de sua

personalidade, apesar de baseada em informações e acontecimentos reais, possui

proporções fantasiosas e, o filme parece afirmar, descabidas. Outro momento

importante é quando Hogarth pede a Dean para que acolha o robô em seu ferro-velho,

alegando que seria o espaço perfeito para se esconder um enorme “devorador de metal”.

Dean é um artista cujo trabalho com sucata possibilita a matéria prima para a criação de

suas peças; ele torna belo o que para os outros já não possui utilidade alguma. Vivendo

isolado da cidade, o dono do ferro-velho não pode afirmar com certeza se é “a junkman

who makes art or an artist who sells junk”6 e é exatamente essa indefinição, essa

condição ambígua de sua própria identidade, o que permite a ele ter condições de ajudar

ao menino e ao robô, porque, se com o espaço e “alimento” de que dispõe pode

acomodar o gigante, é muitas vezes em meio às suas palavras que Hogarth vai buscar os

ensinamentos que transmite a seu amigo de metal.

A aproximação entre os elementos de sci-fi e fantasia na obra aqui estudada não

acontece através da simplificação de ambos os universos, de uma redução da

complexidade de sua estrutura e conteúdo até um plano comum mais visível e

6 Em tradução livre: “um vendedor de sucata que faz arte ou um artista que vende sucata”.

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quantificável, como é o caso da admissão por si só da presença do estranho mencionada

por Colomer, ou da aceitação pura e simples do que parece inverossímil sob todos os

ângulos. Não são coelhos, patos ou porcos falantes que precisam lidar com os dramas de

um cotidiano feito de trabalho duro, solidão, medo e incomunicabilidade. Em O Gigante

de Ferro, a fantasia encontra-se atrelada ao realismo do filme, e não existe possibilidade

de que seu principal destinatário não seja capaz de compreender-lhe as referências

intertextuais ou aquilo que nele permanece inclassificável, porque deixar-se encantar

pela história antes mesmo de reconhecer-lhe todos os signos, como crianças deixam-se

encantar pelo que é belo e simples antes mesmo de perceber-lhe os desdobramentos, ou

como Hogarth deixa-se encantar por um gigante de metal antes mesmo de conhecer-lhe

a origem e o destino, é, ontem e hoje, o passo mais importante para apreciar e

compreender um objeto estético, seja ele literário ou cinematográfico.

2 O HERÓI DA OBRA: CRIAÇÃO ESTÉTICA E RECRIAÇÃO IDEOLÓGICA

Para Mikhail Bakhtin, o homem criado na e pela arte, exterioriza sua consciência

através de um discurso que é primordialmente ideológico, porque composto de signos

que se encerram num bloco intencional único que, ainda que guarde uma enorme

variação de sentidos, forçosamente será observado a partir de um ponto de vista

delimitado. O valor “plástico-pictural” do herói de uma construção estética é

absolutamente exteriorizado; ele é aquilo que é capaz de mostrar ser, por meio dos

gestos que pratica e das palavras que pronuncia. A alma, aqui entendida como a

vivência interior do homem na arte, nesse sentido, é parte de uma reconstrução de fora

para dentro, de uma refração dos signos capturados na fronteira entre o eu e o outro

(BAKHTIN, 1997, p. 114 -116).

É importante considerar que Bakhtin trata de narrativas escritas, nas quais a

palavra, mais do que ser o que o teórico russo chama de “signo ideológico por

excelência”, é o próprio suporte sobre o qual é fixada a intencionalidade do autor do

objeto estético (BAKHTIN, 1995, p. 36). Numa manifestação artística cinematográfica

que, por mais que seja pontuada por diálogos, faz da imagem em movimento a

expressão maior de sua discursividade, o valor plástico-pictural compreende a totalidade

da obra. Tudo pode ser analisado e julgado no espaço da intersubjetividade mediante a

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observação visual, e o que se pode depreender dela. A forma do homem estético, no

caso específico de um filme, é particularmente devedora da contemplação do outro; e,

segundo Bakhtin, numa criação artística, a própria existência do eu é devedora de tal

contemplação:

Quando a vivo fora de mim, no outro, essa vivência comporta uma

exterioridade interna voltada para mim, apresenta-me uma face interna

que posso e devo contemplar com amor, guardar em minha memória,

assim como guardo a lembrança de um rosto (e não do modo que

guardo a lembrança de minha própria vivencia passada), devo validar,

modelar, amar, acariciar com um olhar interior e não com um olhar

fisiológico, externo. Essa exterioridade da alma do Outro, semelhante

a um tênue invólucro carnal, é precisamente o que constitui a

individualidade artística, intuitivamente perceptível: o caráter, o tipo,

etc., a refração do sentido da existência, a refração e a condensação do

sentido na individualidade, a carne interna mortal de que se reveste o

sentido – tudo o que pode ser idealizado, heroificado, ritmizado, etc.

(BAKHTIN, 1997, p. 117-118)

A longa citação acima diz respeito à recriação do outro para além das fronteiras

fisiológicas do corpo do outro. Amar e acariciar, nesse caso, equivale a modelar e

validar, e aquilo que é validado pelo outro é menos uma existência física do que uma

ideia de existência física, percebida no momento do relacionamento interpessoal,

traduzido pelo olhar, pela palavra e pelo toque. O sentido de que se reveste a

individualidade é oferecido pelo olhar exterior, porque apenas ele é capaz de “idealizar”

a subjetividade interna e torná-la algo mais do que uma simples abstração encerrada em

si mesma. Bakhtin aproxima tais conceitos da “estética expressiva”, opondo-a à

“estética impressiva”, para a qual o valor intrínseco de um objeto de arte encontra-se

limitado àquilo que seus componentes externos oferecem em termos de significado, e

afirma que, para a primeira, “o objeto estético é expressivo enquanto tal, é a

representação externa de um estado interior” (BAKHTIN 1997, p. 79).

A presença do eu e do outro em uma narrativa cinematográfica, portanto, força

os limites entre a impressão e a expressão, entre o que é puramente visual e o que, muito

embora encontre ressonância no exterior, é composto de signos e discursos interiores,

que demandam interação ideológica. Porém, o próprio teórico russo, no decorrer de seu

pensamento, constata que uma definição tal como é a da estética expressiva, que diz

respeito à percepção de uma externalidade representativa de signos internos, também é

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falsa, justamente porque parte do princípio de que pode haver a apreensão e recriação

do eu como um todo no espaço da percepção do outro, no espaço da vivência

interacional. Para Bakhtin, “o todo estético não é algo para ser vivido, é algo [sim] para

ser criado”, mas essa criação acontece ainda dentro do espaço da individualidade

cognitiva do eu (BAKHTIN, 1997, p. 80-83).

Uma das maneiras através das quais a individualidade do eu pode ser

verdadeiramente percebida e transformada em discurso – cultural, ideológico, narrativo

– numa obra artística, é a consciência de finitude, de antecipação da morte, que permite

que a manifestação da alma individual seja apreendida e recriada de maneira quase

completa pelo outro. Bakhtin entende, ainda, que a ingenuidade de um herói estético é

pressuposto básico de sua existência, porque é a prova de que seu autor, bem como o

recriador de seu discurso dentro do universo narrativo – ambos não precisam,

necessariamente, comungar de uma única voz –, apesar de moldarem-lhe a alma, não se

confundem jamais com ela (BAKHTIN, 1997, 142-144). Ingenuidade e consciência de

finitude, assim, são formas de sobrevivência da individualidade do herói, porque lhe

asseguram a posição de objeto contemplado ao mesmo tempo em que permitem que seu

contemplador, ao reconstruir-lhe o sentido discursivo, valide sua presença na obra.

3 NO ATOMO, I SUPERMAN: AO ROBÔ, FINALMENTE, UMA VOZ

Em primeiro lugar é preciso que se conheça um pouco mais da trajetória do

gigante de ferro na obra, porque é por meio dos gestos por ele praticados ao longo do

filme que se tornam evidentes tanto a sua natureza original quanto a influência do

menino sobre seu modo de agir e pensar acerca dos humanos e de si mesmo. Logo após

cair na Terra, o robô se refugia em uma floresta localizada nos arredores da cidade de

Rockwell e é encontrado por Hogarth durante um incidente em uma torre de energia

elétrica. O gigante é eletrocutado ao tentar arrancar os componentes de metal da torre

para se alimentar e é salvo pelo menino, que desliga a alavanca de força. A partir desse

momento a criança e o robô tornam-se inseparáveis, e o processo de reconstrução

ideológica do segundo tem início.

O laço de amizade que une os dois personagens se torna mais e mais forte na

medida em que eles atravessam as dificuldades provocadas pela perseguição incansável

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do agente Kent Mansley e descobrem juntos os perigos da vida, representados na obra

pelo medo e pelo ódio que o robô é capaz de despertar nos habitantes de Rockwell. O

gigante de ferro é verdadeiramente uma arma de guerra, construída para atacar e, no

entanto, antes que se passe mais de uma hora de filme, não podemos ter certeza disso.

Em duas cenas em especial, a primeira logo após Mansley se apresentar à Hogarth e à

sua mãe e a segunda depois que o menino finalmente consegue convencer Dean a

aceitar esconder seu amigo no ferro-velho, torna-se explícita a maneira pela qual os

autores da obra fazem da criança o espelho no qual o gigante enxerga aquilo que deseja

se tornar. Mas antes de descrever e analisar tais sequências, é preciso refazer alguns dos

passos do “homem de metal”.

Depois de encontrar o gigante e salvar-lhe a vida na torre de energia, Hogarth

começa lentamente a interagir com ele, ensinando-lhe palavras e surpreendendo-se com

a rapidez com que seu amigo apreende as lições. O início do relacionamento entre o

menino e o robô não difere muito do modo como o primeiro tentava se relacionar com

seus animais de estimação, e o fato de o segundo ser capaz de falar parece menos um

ato consciente do que mero mimetismo, o que leva Hogarth a considerar o robô, em um

primeiro momento, como uma descoberta sua, equivalente aos guaxinins e esquilos que

encontrava durante as brincadeiras e, através do afeto, procurava transformar em

amigos. Desde o princípio o gigante se mostra imensamente grato ao menino e procura

imitar-lhe não apenas as palavras, como também os gestos; e Hogarth não demora muito

para perceber que finalmente encontrou um companheiro de fato, alguém com quem

poderá compartilhar seus gostos e, principalmente, sua maneira de enxergar a realidade.

O relacionamento entre Hogarth e seu amigo se fortalece na mesma medida em

que a permanência do gigante na cidade se torna insustentável. Kent consegue, por meio

de uma fotografia que descobre na máquina do menino, fazer com que o exército entre

em Rockwell, causando pânico generalizado na população e despertando no robô sua

adormecida natureza bélica. Em seus momentos finais, O Gigante de Ferro volta a

evocar algumas obras que fazem parte da história do cinema mundial. Em algumas das

últimas sequências do filme o robô carrega Hogarth nas mãos enquanto tenta escapar à

perseguição dos militares, lembrando a clássica cena de King Kong (1933), na qual o

enorme gorila escala o Empire State Building, em meio a aviões e rajadas de

metralhadora, carregando a atriz Fay Wray entre os braços. E a maneira furiosa com que

o gigante é atacado remete à perseguição cega sofrida pela criatura concebida pelo Dr.

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Frankenstein na já mencionada obra literária homônima de Mary Shelley, e que teve em

Boris Karloff, no filme dirigido pelo cineasta inglês James Whale e lançado em 1931,

uma de suas mais marcantes representações cinematográficas.

Porém, é na comparação entre o herói de O Gigante de Ferro e a figura icônica

de Superman que pode ser melhor percebida a maneira através da qual a identidade do

robô é recriada por meio dos signos que lhe são oferecidos pelo menino nos momentos

de interação entre eles. O próprio aspecto físico do gigante parece ter sido criado de

maneira e aproximá-lo das representações do Homem de Aço. O robô possui ombros e

tórax largos, cintura fina e em seu rosto se destaca uma mandíbula quadrada, angulosa,

características que o tornam muito semelhante a algumas das principais imagens do

Superman imortalizadas em histórias em quadrinho e desenhos animados, assim

também como em filmes e seriados live-action ao longo de boa parte do século XX.

Aliadas a determinadas posturas adotadas pelo gigante ao longo do filme, tais

semelhanças potencializam a impressão que temos de que o gigante não é uma máquina,

mas um herói, bravo e bom.

A personagem criada pelos norte-americanos Jerry Siegel e Joe Schuster durante

as primeiras décadas do século passado é um alienígena enviado para a Terra pelos pais

às vésperas da destruição de seu planeta natal por um enorme meteorito quando ainda

não passa de um bebê, e que é adotado por um casal de humanos que ensinam a ele as

primeiras lições de justiça e generosidade, permitindo-o, assim, crescer fazendo bom

uso das magníficas – e sobre-humanas – habilidades que a atmosfera terrestre lhe

proporciona. Superman, entre outros poderes que manifesta sob a luz do sol, é capaz de

voar, de sustentar pesos descomunais e de disparar raios-laser dos próprios olhos. A

semelhança entre a personagem e o gigante de ferro é evidente, e não passa

despercebida aos olhos de um menino cuja imaginação é impregnada pela iconografia

fantástica da época.

Imediatamente depois de receber a primeira visita de Kent Mansley em sua casa,

e de uma sequência cômica na qual tenta de todas as formas esconder a mão –

desmembrada por um acidente envolvendo um trem – do robô dos olhos da mãe e do

agente, Hogarth vai até o celeiro onde escondera seu amigo levando algumas revistas,

entre elas uma edição das histórias do Superman. O menino apresenta o super-herói ao

gigante informando-lhe que sua história é muito semelhante à dele e enfatizando que o

homem de aço usa seus poderes “apenas para o bem, jamais para o mal”. Ao perceber

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que seu amigo demonstra interesse por outra revista, que traz na capa um enorme robô

cujo aspecto físico se parece muito com o dele, Hogarth afirma que Atomo, a ameaça de

metal, é um vilão, e que por isso difere completamente do gigante que, assim como

Superman, é um dos mocinhos. Esse jogo de semelhanças físicas que se estabelece

desde o princípio contribui para que seja possível perceber as profundas modificações

ideológicas sofridas pelo herói na obra, bem como a maneira através da qual a

comparação mais óbvia entre ele e uma gigantesca estrutura ambulante de metal,

concebida para destruir, se torna mais e mais distante da realidade apresentada no filme.

Muito embora seja igualmente um gigante de metal, e que mais tarde venhamos a

descobrir que também possui um potencial destrutivo, o robô permanecerá, aos olhos de

Hogarth e dos espectadores, muito mais similar à figura altiva e justa do herói do que à

representação de um vilão frio e impiedoso, inclusive fisicamente.

Hogarth não duvida nem por um segundo de que o gigante possui uma alma – e

de que essa alma é boa –, sobretudo porque projeta nele os principais aspectos da ideia

que faz da maneira como um indivíduo detentor de habilidades especiais deve se

comportar. O robô não possui memória de seu passado e nem perspectivas em relação

ao futuro, é como uma criança, ingênuo, crédulo e completamente vulnerável a quem

quer que seja; e parece verdadeiramente uma sorte que ele seja “encontrado” pelo

menino e que esse, ao enxergar nele o mesmo heroísmo que move seus ídolos dos

quadrinhos, acabe por transformá-lo efetivamente em um herói. Quando oferece as

revistas a seu amigo e se detém na explicação sobre as origens do Superman, Hogarth

dá início a um processo de reconstrução ideológica que nem o gigante e nem ele podem

ter certeza de que resultará em uma nova consciência, ou em um novo modo de pensar e

agir; o segundo porque não se recorda de nada e o primeiro porque ainda não conhece a

natureza original de seu amigo e procura, por meio de conselhos e orientações, apenas

ajudá-lo a se tornar aquilo – o menino não demonstra nenhuma dúvida quanto a isso –

que ele já é.

Em determinados momentos da animação, os ensinamentos que Hogarth oferece

a seu amigo adquirem as dimensões de uma verdadeira lição de humanidade, capaz de

calar em seu pensamento e impedi-lo de, nos momentos finais do filme, quando é

cruelmente perseguido e agredido pelos militares, utilizar os “superpoderes” que possui

para destruir seus algozes. Em uma sequência que toma lugar por volta da metade do

filme, com o gigante já escondido no ferro-velho de Dean, menino e robô testemunham

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a morte de um veado, atingido pelas balas de uma dupla de caçadores, e ficam

extremamente abalados com a cena. Nesse momento do filme, Hogarth transmite ao

amigo as lições mais preciosas que ele poderia receber: de que é errado matar, de que

armas são feitas para matar e, principalmente, de que você pode escolher não ser uma

arma, de que você pode escolher não matar. O gigante possui um mecanismo que é

acionado todas as vezes em que ele faz contato visual com uma arma de fogo,

obrigando-lhe a reagir e atacar instintivamente, como um animal ameaçado, sem

preocupar-se com as consequências de seu ato ou com a identidade de seu alvo. É

principalmente contra essa personalidade impulsivamente violenta que Hogarth luta,

mesmo sem saber.

Não é apenas na imaginação do menino ou mesmo no espaço de interação criado

pelo fortalecimento dos laços de amizade entre eles, que o gigante se distancia da

imagem de um vilão ameaçador como Atomo e ganha os contornos de um herói capaz

de renunciar à própria natureza para preservar a vida de pessoas inocentes. O que

Hogarth faz é construir uma história para um indivíduo que parece não possuir

nenhuma, oferecendo-lhe, assim, uma nova identidade. Ao menino não interessam os

obscuros propósitos dos hipotéticos criadores do robô porque para ele, desde o

princípio, O Gigante de Ferro é apenas e tão somente um amigo, no qual deseja

encontrar qualidades e potenciais e do qual procura ignorar ou esquecer os defeitos. A

ingenuidade e vulnerabilidade do robô permite que um menino de 9 anos, que ainda

constrói para si mesmo uma identidade individual, apartada da de seus responsáveis

adultos, e por meio de confiança, imaginação e ternura, lhe valide a existência. E nas

últimas sequências do filme, quando o gigante assume completamente a identidade do

herói radicalmente altruísta e voa em direção à bomba atômica lançada contra a cidade,

o que muito provavelmente resultará em sua destruição completa, Hogarth, o

protagonista, pronuncia para o herói – da história e de sua própria construção –, as três

palavras que sintetizam aquilo que todos, crianças ou adultos, desejam dizer a um amigo

de verdade: “eu te amo”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

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A literatura e o cinema para criança, muito embora pertençam a linguagens

diferentes, historicamente enfrentam problemas similares no que diz respeito ao

reconhecimento de seus próprios signos e de sua importância em meio a uma enorme

quantidade de manifestações artísticas veiculadas através dos mais diferentes tipos de

mídia, e cuja identificação de um público alvo específico é, senão impossível de ser

definida, ao menos bastante nebulosa. O filme O Gigante de Ferro, desde seu

lançamento, arregimenta, ao redor do mundo, admiradores das mais diferentes origens

culturais e faixas etárias imagináveis e, se isso não diz tudo o que precisamos saber

sobre a obra, seguramente nos aponta alguns caminhos.

No estudo Crítica, teoria e literatura infantil, Peter Hunt trata exclusivamente de

literatura, ou de palavras e ilustrações colocadas sobre o suporte físico do livro, sem

mencionar, em momento algum, produções cinematográficas. No entanto, as

dificuldades por ele apontadas sobre uma possível classificação ideal de obras voltadas

para crianças e sobre a consolidação de uma crítica que assegure a esse segmento

artístico visibilidade acadêmica, inspiraram não apenas a escolha do corpus do artigo

aqui apresentado como também e, sobretudo, as questões que foram levantadas sobre

ele.

O filme de Brad Bird é, sim, um trabalho infantil, tanto na forma de sua

realização quanto no conteúdo de sua narrativa e é, também, uma obra para adultos,

porque a maneira através da qual mobiliza referências históricas, sociais e, sobretudo,

ideológicas, o torna uma inesgotável fonte de atração e inspiração para indivíduos já

habituados com associações desse tipo e seus consequentes desdobramentos cognitivos.

A extensa rede alusiva evocada pelo filme, suas conotações políticas ou mesmo a

confirmação de seu sucesso junto ao público adulto correspondem às mesmas dúvidas

que movem os teóricos de literatura infantil mencionados ao longo do trabalho e, de

certa maneira, contribuem para ampliá-las, porque carregam o problema para fora dos

limites do livro.

Porém, é na capacidade de seus autores de amplificar o raio de ação da obra por

meio de um intenso conteúdo intertextual sem, contudo, comprometer as características

mais evidentes e luminosas da história que desejam narrar, que as dúvidas começam a

parecer menos uma continuação do problema do que uma possível solução para ele.

Teóricos e críticos da literatura feita para a criança, como Hunt, são unânimes em

afirmar que, se não existe um conceito fixo para obras infantis – assim como para o que

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costumamos chamar de infância –, a melhor maneira de classificar um trabalho de arte

é, ainda e sempre, através de suas qualidades e do respeito que demonstra em cada linha

(ou em cada sequência) por seu público. E O Gigante de Ferro é um filme que encanta

sem jamais parecer condescendente.

REFERÊNCIAS

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COLOMER, Teresa. A formação do leitor literário: narrativa infantil e juvenil atual.

São Paulo: Global, 2002.

EBERT, Roger. RogerEbert.com. In: Chicago Sun-Times. Revista Eletrônica.

Disponível em <http://rogerebert.suntimes.com/>. Acesso em 25 de mar. 2011.

FRANKENSTEIN. Dirigido por James Whale. Escrito por Garret Fort e Francis Edward

Faragoh baseado em livro de Mary Shelley. Los Angeles, Universal Movies, 1931. 70

min.

KING KONG. Dirigido por Merian C. Cooper e Ernest B. Schoedsack. Escrito por

James Creelman. Los Angeles, RKO Radio Pictures, 1933. 100 min.

O GIGANTE DE FERRO (The Iron Giant). Dirigido por Brad Bird. Escrito por Brad

Bird e Tim McCanlies baseado em livro de Ted Hughes. Los Angeles, Warner Bros.

Feature Animation, 1999. 86 min.

HUNT, Peter. Crítica, teoria e literatura infantil. São Paulo: Cosac Naify, 2010.

IMDB (Internet Movie Database). Banco de dados. Disponível em

<http://www.imdb.com/>. Acesso em 25 mar. 2011.

SHELLEY, Mary. Frankenstein. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

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SIEGEL, Jerry; SCHUSTER, Joe. SUPERMAN. Los Angeles: DC Comics, 1938.

ZILBERMAN, Regina. O estatuto da Literatura Infantil. In: ZILBERMAN, Regina;

MAGALHÃES, Ligia Cadermatori. Literatura Infantil: autoritarismo e emancipação.

São Paulo. Ática, 1987. p. 03-24.