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CONTEXTOS CONTEMPORÂNEOS E DEMANDAS POPULARES Lílian do Valle Gostaria de começar dizendo da minha alegria de estar aqui, inaugurando um ano que espero seja muito fecundo e muito feliz para todos vocês, e para o seu Programa, também. Mas, em seguida, devo lhes fazer uma confissão: é que, ao ser tão gentilmente convocada para aqui estar, eu me assustei quando soube da temática: «Contextos Contemporâneos e Demandas Populares». «Meu Deus, eu pensei, mas que sei eu sobre as demandas populares?» Mas, ato contínuo, me dei conta de que esta não era uma questão. Porque o ofício intelectual que é o meu – que é o de todo nós – significa, exatamente, esta liberdade, de não saber, de poder interrogar-se; e mais ainda, em nossa área, que tem o humano como centro, nosso ofício implica em estar-se o tempo todo na obrigação de construir sentido. Poder interrogar-se: para isto, a filosofia é uma arma muito, muito poderosa, que nunca nos deixa na mão, vem sempre em socorro de nossa inteligência, de nosso espanto,

Contextos contemporâneos e demandas populares

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CONTEXTOS CONTEMPORÂNEOS E DEMANDAS POPULARES

Lílian do Valle

Gostaria de começar dizendo da minha alegria de estar aqui,

inaugurando um ano que espero seja muito fecundo e muito feliz

para todos vocês, e para o seu Programa, também.

Mas, em seguida, devo lhes fazer uma confissão: é que, ao ser tão

gentilmente convocada para aqui estar, eu me assustei quando

soube da temática: «Contextos Contemporâneos e Demandas

Populares». «Meu Deus, eu pensei, mas que sei eu sobre as

demandas populares?» Mas, ato contínuo, me dei conta de que esta

não era uma questão. Porque o ofício intelectual que é o meu – que

é o de todo nós – significa, exatamente, esta liberdade, de não

saber, de poder interrogar-se; e mais ainda, em nossa área, que

tem o humano como centro, nosso ofício implica em estar-se o

tempo todo na obrigação de construir sentido. Poder interrogar-se:

para isto, a filosofia é uma arma muito, muito poderosa, que nunca

nos deixa na mão, vem sempre em socorro de nossa inteligência, de

nosso espanto, oferecendo-nos instrumentos e procedimentos para

pensar além, para ir mais longe. Quanto à construção de sentido,

ela sem dúvida nasce desta interrogação, mas ela é, para quem

trava o doce combate da formação humana, mais do que um

privilégio, uma necessidade. Eu gosto de dizer que educar é

construir os sentidos de educar.

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Assim – neste momento introdutório em que eu estou ainda

tentando acertar minhas contas com esta demanda tão especial que

me foi feita – eu vou me permitir uma pequena digressão e,

abusando da paciência de vocês, vou dizer o que me aflige no

cenário intelectual da educação, hoje: é a volta de uma concepção

que eu julgava ultrapassada, que pensava havia ficado para sempre

enterrada naqueles tempos pré-históricos em que eu era estudante.

Doce ilusão! Nos idos dos anos… hum, não vou dizer setenta, não,

vou parecer ainda mais velha, e eram bem os dois últimos anos da

década… sim, nos idos dos anos oitenta, a luta travada contra a

concepção tecnicista da educação parecia ter chegado a bom porto.

Sim, sabíamos que a educação era uma atividade eminentemente

política, e que a ciência, ou as chamas «ciências da educação»

entravam aí como saberes auxiliares, e nunca, jamais, como poder

normatizador; sim, sabíamos que não há «milagres» educacionais, e

que as tecnologias não iam nos isentar de nosso dever de

deliberação e escolha; tanto quanto sabíamos, ademais, que a boa

teoria é aquela que critica nossas certezas, e não a doutrina de que

nos servimos a cada vez que estamos embaraçados em explicar os

automatismos que acabamos inconscientemente por adquirir.

E, antes de voltar à nossa temática, eu queria compartilhar com

vocês este sentimento, esta convicção profunda: a beleza de nossa

área, a grandeza da educação está justamente no fato de que nada,

nesta atividade, se deixa aprisionar em receitas, em fórmulas, em

teorias, por melhores que sejam; a grandeza da área está no fato de

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ela nos forçar a ser criativos. Eu me lembro das palavras de um

grande helenista, Moses Finley. Ele disse um dia que, criando a

democracia, os atenienses passaram a estar condenados à

inventividade. Eles passaram a estar obrigados a criar

continuamente seu regime. É um pouco como eu vejo a educação. E

é isto, exatamente, que está implicado na ideia de que a educação

é eminentemente política: isto não quer dizer que ela é um assunto

de leis, de governo, de poder – decerto ela também é isto. Mas ela

só é isto porque ela deriva de uma atividade instituinte que é diária,

que é coletiva, que é anônima – e é isto, mais que tudo, que define

sua dimensão política.

Aristóteles dividia o conhecimento entre as ciências que cuidavam

das coisas determinadas e «que não podiam ser de outra forma»,

isto é, que eram sujeitas às leis e ao conhecimento preciso (acribia);

e as ciências das coisas que comportavam indeterminação, isto é,

que podiam ser, ou não de uma certa forma. No caso destas

últimas, do saber que deve lidar com a indeterminação, duas

situações são possíveis. A primeira delas é aquela em que a

indeterminação é absoluta: estamos, aqui, diante do que

denominamos de «simples acaso» – que não permite,

evidentemente, nenhuma forma de saber ou especulação, porque

nada do que ocorre está submetido a uma regularidade a partir da

qual possamos construir alguma forma de expectativa; mas há uma

segunda situação, que é aquela que pode, ou não, ser regulada por

uma determinação, isto é, nos termos aristotélicos, que é objeto de

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uma determinação que não é necessária, mas apenas frequente.

Neste segundo caso, a reflexão lida com um conhecimento que

nada tem de exato, que não está seguro de servir para cada caso

particular, mas que deve se limitar a definir algumas probabilidades.

Ora, na filosofia aristotélica, o comportamento humano não se

conta, evidentemente, entre as coisas completamente

determinadas: se assim o fosse, nada sobraria para a liberdade

humana, e toda ciência do humano estaria reduzida a uma física ou

a uma teologia. Mas tampouco o comportamento humano é dado

como inteiramente aleatório, o que significaria a total

impossibilidade não só do conhecimento sobre o humano, mas de

qualquer sociedade ou instituição humana permanente. Assim,

Aristóteles nos diz que é possível, e é preciso buscar aí certas

regularidades – isto é, aquilo que se realiza «mais frequentemente»,

e que hoje chamaríamos de «tendências». P\E é neste sentido que

ele diz que, no caso do humano, o conhecimento que podemos

buscar é estocástico, isto é, relativo ao que não é nem necessário

nem radicalmente aleatório, mas submetido a probabilidades1.

Entendamo-nos bem: é evidente que, no que se refere à dimensão

biológica de sua existência, o humano se submete, como tudo que

goza de existência material, às leis físicas – tanto a leis gerais

quanto àquelas específicas da anatomia e da fisiologia humanas.

1 Cf. Carlo Natali, L’action efficace. Etudes sur la philosophie de l’action d’Aristote. Louvain-la-Neuve : Ed. Peeters, 2004 p. 19.

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Mas este modo de conhecimento que acabamos de reconhecer pelo

pomposo nome de «estocástico», isto é, que trabalha, não com

certezas, mas com possibilidades é o mais perto se poderia chegar

de alguma precisão, e é particularmente apropriado para o exame

do agir humano, que nunca pode ser inteiramente determinado. O

que não é pouco importante, já que é nisto que consiste,

precisamente, nossa liberdade, toda nossa possibilidade de

deliberação : «Delibera-se, diz Aristóteles, em seu estudo sobre a

ética, sobre coisas que ocorrem com frequência e cujo resultado é

claro; e sobre o que é [ainda] indeterminado»2 – isto é, a ser

determinado.

Pois uma decisão que não se apoia sobre nada, que é totalmente

aleatória, não é uma deliberação! Nós queremos colocar em relevo

a liberdade da ação humana. Mas, em nosso ofício, é igualmente

importante poder distinguir aí algumas constâncias, sem as quais

tampouco seria possível realizar qualquer deliberação, já que, por

este nome, estaríamos apenas jogando com o acaso – como em

uma loteria, quando contamos apenas com a sorte.

Mas, no que se apoiaria um conhecimento voltado, não para

identificar regularidades indiscutíveis – tais, por exemplo, como a lei

da gravidade, um modo limitado de conhecimento que, em cada

caso que se apresente, pode ou não ser válido? No que apoiaria um

conhecimento do qual se sabe por antecipação que ele não nos dá

previamente nenhuma certeza, que não trabalha com o

2 Aristóteles, Ética a Nicômaco, III, 1112 b 8-9.

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estabelecimento de regularidades infalíveis, com o cálculo? Este

conhecimento que afirmamos ser próprio das questões humanas e

que, contrariamente àquilo que entendemos por ciência, não pode

resultar de uma decisão teórica que nada deve à experiência, este

conhecimento, digo eu, tudo deve à possibilidade de observação. (E

esta, evidentemente, ao contínuo questionamento, ao espanto). É

assim que este conceito tão desprezado pela educação, o modelo, o

exemplo, enfim, a identificação e formalização de regularidades

comportamentais encontra seu lugar na reflexão sobre o humano:

O uso do paradigma é ligado, em

Aristóteles, a esta característica do agir

humano: a falta de necessidade em

nossas ações torna útil o uso de exemplos

e, por outro lado, a relativa constância dos

comportamentos humanos torna provável

a repetição dos mesmos comportamentos

em circunstâncias análogas (…) Portanto,

a relativa constância das ações humanas

é a base antropológica sobre a qual

Aristóteles pode construir sua

interpretação sobre o uso dos exemplos…3

A constância do comportamento humano deita raízes nas leis

psicológicas que, como relembra Castoriadis4, Aristóteles foi o

3 Carlo Natali, op. cit., p. 20.4 Cornelius Castoriadis,

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primeiro a descobrir. Além disto, grande parte do que somos, da

forma como pensamos e nos comportamos deriva de determinações

que são a cada vez instituídas pela sociedade. Estas influências

tornam-se, sem dúvida, extremamente fortes em sociedades que

não preparam os indivíduos para o questionamento de seus valores.

Nestes casos, dizia H. Arendt, o poder de inciativa humana, que ela

denominava simplesmente de «ação» é substituída pelo

comportamento estereotipado, e é sob as bases desse fenômeno

que as estatísticas podem obter tanto sucesso: a liberdade

transforma-se previsibilidade mais precisa e estatística na medida

em que a alienação substitui a deliberação. Por outro lado, está

claro que a alienação também é responsável, em certa medida, pelo

caráter justamente imprevisível de ações que já não são fixadas,

nem pela deliberação, nem pelo costume social, mas seguem

devidas a impulsos. Por isto, a conduta ética deve ser dita uma ação

que delibera segundo a livre adoção de um princípio, em vista de

um resultado que nunca é mais do que uma possibilidade…

Tudo isto tem a ver, penso eu, com esta noção de «demandas

populares» que é objeto de nossa reflexão hoje.

Seria de fato muito ingênuo supor que há demandas «espontâneas»

– ao menos se, por «espontâneas» entendemos comportamentos,

expectativas, intenções que simplesmente “brotariam” na

sociedade, e que retirariam força e legitimidade do fato de não

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podermos, justamente, atribuir a elas nenhuma autoria

determinada: demandas, enfim, que não poderiam ser

questionadas, simplesmente por estarem instaladas no seio da

sociedade como se fossem exigências naturais.

Ora, valores, modos de ser e de se comportar, de esperar e de

desejar nunca são naturais, isto é, não podem jamais ser

simplesmente deduzidos da natureza humana. Não resta dúvida de

que muitos deles se apoiam, mais ou menos intensamente, em

exigências de nossa constituição física, biológica; mas isto não

dispensa o fato de que devem ser ressignificados pela cultura, e que

somente assim eles aparecem, eles existem para nós. (Esta

exigência de representação está presente na fase mais primitiva de

nossa vida psíquica, mas não é assunto para nós, hoje). Em outras

palavras, estes valores, modos de ser e de se comportar, de esperar

e de desejar de que falamos, como tudo que se refere à cultura e à

formação humana, são criações humanas, frutos de uma instituição

que é, em grande parte, coletiva e anônima, mas nem por isto

menos artificial.

É que o poder de criação humana vai muito além do que dispõe a

natureza, e chega mesmo a criar novas disposições que a natureza

não havia previsto: é o que os filósofos costumam chamar de

«segunda natureza», já que, como formula Hannah Arendt5, elas

5 «…as coisas que devem sua existência exclusivamente aos homens também condicionam os seus autores humanos…os homens constantemente criam as suas próprias condições que,…possuem a mesma força condicionante das coisas naturais.»Hannah Arendt, A Condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987, p. 17.

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têm «a mesma força condicionante das coisas naturais». E é sobre

esta força que opera a educação. A educação só existe porque,

rompendo com as disposições que são suas ao nascer, o humano

adquire, cria outras determinações para si.

De modo que, chegados a este ponto, podemos já refletir sobre o

caráter inegavelmente instituído das demandas sociais, que está

presente inclusive quando a demanda assenta-se claramente sobre

uma exigência vital – como é o caso, por exemplo, da nutrição.

Nenhum humano sobrevive sem se alimentar, mas basta olhar a

variedade de hábitos alimentares para reconhecer que, se todos os

humanos se alimentam, eles nunca o fazem da mesma forma.

A sociedade, diz-nos Castoriadis, precisa, a cada vez, dar uma forma

cultural ao que, no resto dos viventes, tende a variar apenas de

acordo com as condições do ambiente. Assim, algumas espécies são

obrigadas a abandonar certos hábitos alimentares por razões

pragmáticas (escassez de certos víveres, dificuldades de acesso),

mas só os humanos se dão razões religiosas, ou estéticas, de

etiqueta, ou afetivas que moldam inteiramente os modos

alimentares de uma civilização.

A tal ponto natureza e cultura se misturam, que nos seria impossível

isolar hoje o que seriam as «necessidades vitais» dos humanos. É

bem conhecido o fracasso da tentativa de Marx em determinar com

precisão este mínimo vital, de modo a poder calcular a mais valia

sobre os salários dos operários.

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Assim, as demandas populares – todas as demandas sociais,

ousamos dizer, têm uma origem situada e datada, que é a da

sociedade no seio da qual emergem. Seria ingenuidade, dizíamos,

supor uma espontaneidade das demandas: mas, na verdade, seria

mais do que uma simples ingenuidade, seria naturalizar

indevidamente uma instituição social, ocultando que ela se deve a

seu poder de criação humana.

Esta naturalização foi, diga-se de passagem, o movimento

amplamente realizado na Modernidade, que buscou dissolver o

caráter polêmico e decididamente político de algumas de suas

proposições, fazendo-as integrar um suposto direito natural. A ideia

de direito natural não é, evidentemente, moderna; mas os

modernos, por assim dizer, a reinventaram e a reintroduziram em

defesa de suas causas. E se, do ponto de vista estratégico, a

operação se mostrou eficaz, a longo prazo ela é uma herança difícil

de combater até hoje – e isto particularmente para a educação, mas

não só aí.

Eu gostaria de ressaltar duas consequências terríveis e

complementares do sucesso de que o direito natural gozou, a partir

da Modernidade: a primeira, refere-se à ilusão de que certos valores

humanos e sociais se explicariam por si sós, adviriam de um

mandamento supra-humano e extra-social; a segunda, que já

mencionei, é relativa ao ocultamento da ação humana, assim

atribuída a forças exteriores a ela, e sua total desmobilização.

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A Modernidade repetiu, por exemplo, que «todos os homens nascem

livre e iguais»: os antigos, mais cuidadosos com estas coisas, jamais

afirmaram que a igualdade era um princípio natural. Pelo contrário,

buscaram entender a desigualdade, a profunda diversidade

presente na Natureza e buscaram inventar leis e um regime político

como artifício capazes de engendrar, ao menos no espaço público,

uma igualdade que, de outra forma, jamais existiria. E as reflexões

de Aristóteles na Política nos fazem ver os enormes desafios que

foram assim colocados àquela sociedade.

Não, nós não nascemos livres e iguais, porque não nascemos

«indivíduos» isolados de um contexto social específico; ao nascer,

nós recebemos em partilha um lugar no mundo, expectativas,

modos de ser, de sentir, de pensar. A possibilidade de questionar

esta herança é, ela própria, uma conquista social; liberdade e

igualdade são valores a serem conquistados, a serem criados, mas

esta criação tem limites, encontra inúmeros resistências que

parecem insuperáveis, mas também limites que se devem,

justamente, à nossa natureza. Estes limites introduzem também a

distinção entre a esfera social e a esfera política.

No caso da educação, inventou-se, no auge do período moderno,

uma falácia que até hoje é sustentada: a de que haveria um «direito

à educação» natural e genérico, isto é, aplicável a todos os

humanos simplesmente por sua condição de humanos.

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Nada mais distante da realidade, nada, a meu ver, mais prejudicial

à causa da universalização do direito à educação – que, para existir,

ainda deve ser objeto de uma construção social lenta e bastante

complexa: a dificuldade é que o direito natural responde

imediatamente, ainda que de forma ilusória e equivocada, à

questão do fundamento, isto é, do porquê da igualdade, da

liberdade, do direito à educação: «porque é assim que está inscrito

na natureza humana». Que resposta confortável! Mas, deste ponto

de vista, ela nada é senão uma variante de outra resposta

dogmática: «porque Deus assim o quis, porque assim Ele nos criou».

Convenhamos que é muitíssimo mais difícil e impactante afirmar

que isto o é somente e por tanto tempo quanto persistirmos

julgando que assim deve ser, que são estes valores que elegemos e

que queremos colocar como fundamento e como fim último de

nossa existência coletiva.

Em outras palavras, a grande dificuldade é que estes valores

fundamentais, estes princípios sobre os quais todo o resto deveria

se basear em sociedade, eles não podem ser explicados, eles não

derivam de uma razão anterior à iniciativa, à vontade, à

deliberação, à criação humanas.

Esta longa volta sobre o tema das demandas tinha, assim, de minha

parte, um objetivo: a de nos levar, por nossa vez, a nos

interrogarmos o que estamos dispostos, o que achamos que

devemos reconhecer como demandas sociais legítimas. Não

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podemos evitar este questionamento. Porém, com isto não estou

conclamando ninguém a adotar uma atitude autoritária, a usar a

reflexão como pretexto para atitudes dogmáticas, a pretender

pensar pelos outros o que melhor lhes convém, longe de lá!

Gostaria, sim, de chamar a sua atenção para o fato de que não é

prudente, nem muito útil ou honesto tratar como realidades divinas,

ou naturais, aquilo que chamamos de necessidades, exigências, ou

demandas populares, isentando-nos de qualquer julgamento.

É inevitável, neste ponto, que falemos do capitalismo, e da

formidável galáxia de demandas por ele continuamente impostas,

que faz mover sua maquinaria, engendrando as importantes

novidades e avanços que conhecemos, tanto quanto os conflitos e

guerras, desigualdades e injustiças com as quais parcelas enormes

da população mundial devem se afrontar quotidianamente.

Mencionei, contra a tendência de naturalização das demandas

populares, a exigência de julgamento – temática à qual H. Arendt

dedicou belíssimas páginas, ao examinar o que denominou de

«banalidade do mal». Contudo, consistira em equívoco supor que

nos caberia, e que poderíamos assim distinguir as «demandas

legítimas», de outras que proclamaríamos como ilegítimas: se

estamos falando de instituições humanas, onde então enraizar este

conceito de “legitimidade”? Melhor seria, pois, que começássemos

cada uma de nossas dissertações e teses sobre as «demandas

populares» simplesmente nos interrogando sobre os reais

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fundamentos de nosso trabalho: que valores, que princípios,

adotaremos na definição deste objeto de estudo? Alguns dirão: o

respeito incondicional ao que o povo manifesta (através de que

canais, perguntaria eu); outros: o compromisso com a autonomia,

com a democracia, com o direito ao prazer estético, ao conforto, à

segurança… Em outras palavras, não há, a meu ver, outra maneira

de lidar com a temática, além de definir, a cada vez, o que

pretendemos chamar de «demandas populares», definição esta que

servirá para evidenciar o arsenal conceitual e teórico de que

lançaremos mão em nossas análises. Será preciso, pois, que

questionemos nossos próprios princípios, e de que forma

pretendemos implica-los em nosso estudo de forma aberta e

expositiva.

Contudo – e chego aqui finalmente ao cerne do que gostaria de lhes

dizer sobre este tema, hoje – no campo da formação humana, uma

constatação me aflige, que nasce de minha própria prática docente:

é que está cada vez mais difícil identificar a educação a uma

demanda popular.

Há, é claro, uma série de explicações, de causas para este

fenômeno. O primeiríssimo, evidentemente, é o perverso efeito

retroativo de um descaso social com a educação: menos se valoriza

a educação, menos no futuro ela será valorizada, se nada for feito

para reverter o processo.

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Em segundo lugar, o desenvolvimento e a difusão em larga escala

do que se convencionou denominar de «tecnologias da informação e

comunicação» acabou por solapar um monopólio que a escola,

desde a Modernidade, vinha conseguindo manter sobre as práticas

coletivas de formação humana. (E outras causas poderiam, ainda,

ser enunciadas. Mas deixo a tarefa para vocês…)

O risco, porém, é mergulharmos ainda mais na ilusória mas

conveniente valorização da «espontaneidade» da cultura popular,

que ajuda a vender música e programas de televisão, mas pouco

nos compromete com a aquisição de um poder de crítica e de

deliberação sem os quais não há de fato autonomia.

Penso que a palavra «cultura» envolve mais do que a criação

artística, por mais valiosa que ela possa ser: desde suas raízes

etimológicas, a palavra refere-se a um processo de construção que

é longo e coletivo, que envolve intencionalidade, reflexão,

constantes questionamentos, finalidades compartilhadas.

Nós somos profissionais da educação, este é um título; mas se

somos, verdadeiramente, militantes da causa da educação pública,

se estamos comprometidos com a formação humana, então não

podemos nos dar ao luxo de esperar que a sociedade se transforme

milagrosamente e descubra a importância da educação. Mas, diria

eu, de que educação?

Por isto, a grande questão que deve nos desafiar, hoje, é: como

contribuir para que a educação comum continue sendo, ou volte a

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ser, mais do que uma demanda social entre tantas, uma prioridade?

Como contribuir para fazer da educação um valor evidente, como

anunciar a todos e a cada um de nossos concidadãos, alunos,

colegas, familiares, a importância vital das exigências da formação

humana?

Uma parte deste desafio depende de nossa capacidade de reflexão

– e eu volto aqui aos instrumentos que a filosofia da educação nos

pode fornecer. Mas todo o resto depende da força de nossa própria

convicção, que só se mantém se diariamente alimentada pela

criação dos sentidos desta formação humana. Eu termino, assim,

pelo que comecei, enunciando a grandiosidade de nossa tarefa: que

é daquelas que não podemos empreender sós, apenas em uma

coletividade.

Rio de Janeiro, UFRRJ, 16 de março de 2015

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