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Roberto Axe CONTOS CURTOS 1

CONTOS CURTOS

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Contos breves, mas não leves...

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Roberto Axe

CONTOS CURTOS

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ÍNDICE

Pág. 3 .................................................O QUADROPág. 6.......................................................O PINGOPág. 9.........................................................O POTEPág 12..........................................O MORIBUNDOPág 15.................................................O ESPELHOPág.17......................................................A PORTAPág.19.....................................................A GOSMAPág 21 ..............................................A SENTENÇAPág 24..............................................O PORTADORPág 29..................................A RAINHA DA RUA! Pág 32...............................O EDITOR BONZINHOPág 36...........................OS OLHOS DA SOMBRAPág 41 ...................NADA INTERESSA A ELES...Pág 44......O QUASE MORTO E O QUASE VIVOPág 47....................................................DOSADOR

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O QUADRO

A velha tinha saudade de quando era velha... agora julgava-se 'muito velha'. Passava os dias ali, sentada na cadeira junto à janela de sua pequena casa. Era uma observadora silenciosa da vida que brotava, incessante e indomável, através dos ruidosos risos das crianças que brincavam alheias pela rua. Ela ali, sentada, só olhava para fora... a seu lado o baú imaginário em que guardara suas infinitas lembranças, e que agora acomodava, zelosa, os instantes estéreis e sem cor de seu dia a dia. Acondicionava os segundos com carinho neste

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baú invisível e inseparável, pois haveria de ser ele o companheiro em sua última e definitiva viagem. Ou não. Ficara íntima da morte, até conversava com ela; certa vez se flagrou servindo chá para dois, quando se deu conta, riu. Foi a última vez que riu. Não encontrava mais motivo para risos, já não conversava com ninguém, dizer o que? Apenas olhava pela janela. As pessoas passavam indiferentes pela rua, nem notavam seu semblante cansado, seu olhar perdido nas banalidades lá de fora. Era só um rosto velho na velha janela da velha casinha, nada mais. Um belo dia, foi comprar frutas em uma feira ali perto, não muitas, pois não podia carregar peso. Quando voltou para casa, parou seus passos arrastados bem em frente à sua moradia. Olhou para a janela vazia, aberta, e imaginou-se ali, sentada. Visualizou seu rosto triste naquela janela e concluiu que aquilo mais parecia um quadro, sim, um quadro melancólico que tinha como adequada moldura o velho marco e a descascada guarnição da janela; a escuridão dentro da casa - quase não acendia as luzes, pois recolhia-se cedo - emprestava as tintas lúgubres com que era pintado o fundo daquela tela na parede caiada. Sorriu. Entrou, humilde, em sua residência, largou as frutas na cozinha e foi ao quarto. Revirou em uma gaveta até achar um velho batom, em seguida postou-se em frente ao espelho e com sua mão trêmula, pintou, ou melhor, borrou os lábios de vermelho. Retirou os grampos e penteou os cabelos brancos e finos. Terminada a tarefa, dirigiu-se à sua cadeira na janela, sentou-se e abriu um imenso sorriso de

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acrílico. Agora, a velha inclinava a cabeça numa reverência respeitosa aos transeuntes da rua e presenteava-os com seu melhor sorriso. Era correspondida. Ficou feliz... se era para protagonizar uma obra de arte, mesmo que num quadro que tenha como moldura o marco e a acabada guarnição de sua janela, que estivesse alegre. Quem sabe assim contrariasse, zombeteira, o artista... este artista que com a destreza dos mestres, tão bem soube usar o martelo e o cinzel para esculpir-lhes os sulcos no rosto; este artista que tão bem soube misturar tintas até encontrar o tom de cinza com que lhe pintou o olhar e a alma. Quem sabe seu sorriso representasse um pequeno deboche, uma pilhéria, uma provocação, qualquer coisa... a este impertinente, hábil e irreversível artista chamado Tempo...

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O PINGO

Era na hora das refeições que a tensão se abatia sobre aquela familia. Na comprida mesa, todos se reuniam para comer sob o olhar severo do patriarca. Um homem duro, que não gostava de conversas durante as refeições, e era obedecido. Todos comiam em silêncio, cabeça baixa, e só mesmo o ruído dos talheres nos pratos eram percebidos. Na cabeceira da mesa o pai, ao lado a mãe, do outro lado a filha mais velha e depois as duas meninas menores. Desde pequenas eram alertadas para os momentos 'cruciais' do dia. - Na mesa, educação e silêncio - que nunca esquecessem disto. Havia ainda um problema maior: a toalha de mesa. Não era raro ver o patriarca com o olhar congelado na direção de algum garfo, durante o

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temeroso trajeto do prato para a boca. Não admitia nenhuma mácula na toalha de mesa, um farelo de pão, nada. Então chegou um dia em que a preocupação atingiu seu ponto máximo: o novo namorado da filha mais velha iria, finalmente, almoçar com a família naquela mesa tão cheia de recomendações. A coisa piorava por conta de ser Domingo, dia de usar a toalha de linho branca com belos brocados dourados. A moça fez todas as recomendações ao rapaz, pois todo o cuidado era pouco. Chegada a hora, todos sentaram sob o olhar autoritário do pai, a tensão era imensa, e o silêncio de sempre permeava os gestos calculados com que os guardanapos eram colocados nos colos. Tão logo começaram a comer, silentes, o rapaz percebeu no olhar do homem na cabeceira um aviso mudo, que tivesse muito cuidado então. Procurou no sorriso de sua amada à sua frente o alívio para aquela situação constrangedora, mas, aos poucos viu o semblante alegre da namorada ir minguando; ao olhar para as outras pessoas na mesa percebeu que sua mão era alvo de olhares apavorados; caprichosamente, um pingo de molho começava a formar-se embaixo de seu garfo, refém do abraço inexorável da Lei da Gravidade. Ficou imóvel, se tentasse deslocar o talher até o solo seguro do prato, o pingo poderia cair, qualquer gesto poderia fazer o pingo cair, sua respiração poderia fazer o pingo cair... O patriarca tinha os olhos fixos naquela catástrofe iminente, e os demais deslocavam seus olhos com vagar do pai para o pingo... do pingo para o pai... mas o desastre era irreversível, já não havia volta... E o pingo

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pingou. Tal qual um tiro assassino que deixasse sua marca de sangue em uma camisa muito branca. Agora todos olhavam para o pingo na toalha. Um pequeno ponto vermelho redondo e ruidoso, como que a desafiar a autoridade imaculada daquela brancura inelutável e infinita. Lentamente, todos foram virando seus rostos a um só tempo, como se aquilo fosse ensaiado, em direção ao pai. O homem estava vermelho e sua veia jugular palpitava uma tempestade com conseqüências incalculáveis. O rapaz tremia. O silêncio que revestia aqueles segundos dava um ar de eternidade ao tempo. Tudo agora estava suspenso, inclusive as respirações. Foi quando o patriarca tirou os olhos do pingo e os perdeu no nada. Ficou parado, extático. Sua boca foi abrindo lentamente e para surpresa de todos um sorriso se achegou manso ao semblante sempre fechado daquele homem, em seguida riu, e logo depois explodiu em uma imensa gargalhada! Gargalhava, gargalhava, e todos, aliviados começaram a rir também, no começo risos meio tímidos, mas depois gargalhavam a valer também. O homem só dava rápidas paradas em seu riso frenético para olhar e apontar para o pingo ali na toalha, e logo seguia com as ruidosas gargalhadas. Dizem as boas línguas que nesse dia dava para escutar as risadas lá do outro lado da rua. Dizem mais, dizem também que depois daquele pingo aquela família nunca mais foi a mesma.

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O POTE

- Nunca mexa neste pote - dizia o pai com o pote na mão - mas se um dia o fizer, arque com as conseqüências! - escutou várias vezes esta frase quando era garoto. O pai fazia a recomendação com tal seriedade, que com o passar do tempo, nem perto do pote ele passava. Não foram poucas as vezes que olhava para aquele pote com raiva; por que não podia pegá-lo? Que implicância era essa de seu pai em relação a ele e aquele objeto? Um pote comum, de louça branca, que não tinha nada de mais? Restou disso tudo uma espécie de trauma, bem como, uma curiosidade infinita: o que lhe aconteceria, afinal, se o desobedecesse e pegasse em suas mãos a misteriosa peça? Lembrava da voz do progenitor basicamente por causa da recomendação do pote; não era de falar muito,o velho, era, até mesmo, um homem solitário.

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Lembrava do pai sentado na sala, só, fumando seu cachimbo. Ficava horas absorto, observando a fumaça azulada; no que estaria pensando? O tempo passou, casou, teve filhos, o velho pai se foi... e ele nunca tocou naquele pote. O pote estava agora em sua casa, jazendo no fundo de um armário, embrulhado em papel. Sua esposa embrulhou a peça rapidamente, pois ele não queria saber daquilo, afinal, não era para ficar longe? Sempre fora obediente ao velho pai, e embora não soubesse o 'por que', respeitava seu pedido, ou ordem, nem sabia direito. A verdade é que aquilo sempre lhe incomodou, não era possível depois desse tempo todo ainda remoer esse assunto, mas ele remoia. Um dia, no trabalho, pensava no pote quando algo lhe ocorreu: seu pai dizia - Nunca mexa nesse pote, mas se um dia o fizer, arque com as conseqüências. - Ora, já não era um menino! Seu pai há muito tempo já não estava neste mundo! Sim, arcaria com as conseqüências! Estava decidido, tão logo chegasse em casa, pegaria o pote e, mais que isto, o colocaria no centro da mesa de jantar como uma espécie de troféu pela sua ousadia. Quando chegou em casa estava nervoso, cumprimentou rapidamente a mulher, os filhos e foi ao seu quarto, trancando-se à chave para ficar mais à vontade com seus fantasmas. Abriu o armário e esticou seu braço até pegar o pote embrulhado atrás de algumas blusas de lã dobradas. Tremia. Sentou-se na cama com o maior mistério de sua infância nas mãos, procurou não pensar no velho, abriu o embrulho e quando retirou a tampa do pote viu um papelzinho

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dobrado, amarelado pelo tempo... Seus olhos ficaram paralisados por um momento. Então, com calma ele abriu o bilhete, ali se lia: VOCÊ ESTÁ LIVRE! Reconheceu a caligrafia do pai, e naquele momento sentiu que se livrava do imenso peso que sempre o acompanhara em sua existência.Faziam, ambos, pai e filho, uma reconciliação muda, através justamente da transgressão, mesmo tardia, da ordem dada. Aquelas três palavras naquele sucinto bilhete eram a chave para todo o seu passado, e... para seu futuro. - Então... - pensou ele - meu pai era um brincalhão? dado a enigmas? Um homem misterioso e com um lado lúdico que nunca conheci? Ou, ainda, quem sabe, um sábio? Droga, por que não abri este pote antes! - se emocionou. Sim, arcaria com as conseqüências de ser livre,segundo aquela zelosa recomendação, e com a responsabilidade que a verdadeira liberdade traz. A partir desta descoberta sua vida mudou. Estava mais alegre, tranqüilo... e desenvolveu o hábito de ao deitar, pensar em sua infância, no relacionamento distante com o pai; lembrar de conversas, procurar outros indícios, metáforas, qualquer coisa... enfim, garimpar outras pequenas pistas que o velho tenha deixado, tal qual pequenas migalhas de pão em uma floresta, para que o filho, talvez um dia, encontrasse o caminho até seu duro, solitário, misterioso, mas nunca fechado coração...

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O MORIBUNDO

Seu amigo estava morrendo. Entrou no quarto do hospital e o encontrou ali,deitado, abatido, magro, nas últimas. Achou melhor não falar nada. Deixou as flores que levara em uma mesa de canto, só estavam os dois. Olhou novamente para aquele homem de olhar longínquo, tão débil, e não pode deixar de lembrar de todos aqueles anos passados. Foram muito amigos, embora ultimamente a vida os tenha colocado em caminhos muito diferentes. O moribundo ali, atirado para morrer, que ironia, sempre fora um homem de espírito positivo, um otimista inveterado, um sonhador até. Já ele não. Era tido como 'pessimista', havia até quem dissesse que era 'agourento'. - É o que dá... ter os pés no chão, não fugir da fria e inexorável realidade, de que valeu todo seu espírito otimista? - pensou. Aquela visita era quase uma vitória. - Nosso time joga na quinta. - disse, quebrando o gelo, mas logo

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se deu conta da gafe: era domingo, talvez o moribundo não estivesse neste mundo na quinta. O homem na cama não falava nada, apenas acompanhava, através de seus olhos afundados em olheiras, os movimentos do amigo pelo quarto. Não encontrando nada para dizer, o visitante parou em frente à janela e perdeu o olhar no movimento ruidoso da vida lá fora. Era um homem de hábitos.Imaginava que teria de quebrar sua preciosa rotina para ir a um velório, detestava velórios. Bem, se o moribundo morresse durante o dia, estaria trabalhando, era uma bela desculpa. Se fosse à noite, aí nem pensar, via sua novela e depois recolhia-se ao leito; e de madrugada em hipótese alguma saía de casa. Estava decidido, inventaria uma desculpa, mas não arredaria pé de sua tranqüila rotina. Resolveu que já não tinha mais nada a fazer ali; caminhou silencioso até a cama do amigo e inclinou-se lentamente, até seus olhos frios encontrarem o olhar embaçado e patético do doente, aproximou bem o rosto, para que o 'otimista' constatasse o brilho duro daquele olhar. Por alguns segundos mantiveram olhos nos olhos e uma lágrima desceu solitária pela face do moribundo, enquanto a ponta de um sorriso se fez notar nos lábios do visitante. Sentiu uma agradável sensação de vitória, já podia ir embora para o abraço morno de sua rotina. Saiu do quarto, desceu no elevador, atravessou o saguão, sempre pensando se o que fizera era o correto. Sim, sim, era o certo, não podia fraquejar agora. Já estava na rua, distraído por estes pensamentos, quando ao

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atravessá-la foi colhido por um automóvel. Morreu na hora. No dia seguinte, em seu velório, o caixão jazia solitário na capela mortuária quando o moribundo apareceu em uma cadeira de rodas, conduzido por dois enfermeiros. Um deles, só para carregar o soro. Estacionou, consternado, em frente ao caixão. Fez um sinal com sua mão trêmula e o outro enfermeiro inclinou-se, quase encostando sua orelha na boca do paciente, este então sussurrou com sua voz nas últimas: - Ele esteve lá no hospital ontem. Que tragédia. Sabe, eu pressenti algo ruim. Sim, quando nos despedimos, sei lá... meu coração apertou, me emocionei. Naquele momento eu tive certeza que aquela era a última vez... - traído pela emoção, começou a chorar. Encontrou forças ainda para dizer suas últimas palavras: - Sentirei saudades...

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O ESPELHO

O espelho era a primeira coisa que avistava com interesse, tão logo levantava pela manhã. Ao sair do quarto, ainda zonzo pelo sono, ia direto ao banheiro, lá olhava através do espelho para sua cara desarrumada. Foi numa manhã dessas, quando fazia a barba,que foi acometido por um estranho raciocínio: aquele pedaço quadrado de vidro à sua frente era onde havia pousado seus olhos ainda confusos, todas as manhãs, nos últimos quarenta anos. Quarenta anos!Desde que começou a acordar cedo para ir trabalhar. Ficou extático olhando-se nos olhos com o aparelho de barba suspenso ao lado do rosto lambuzado pela espuma. Quarenta anos! Aquele espelho ali à sua frente, tão próximo e íntimo, viu tudo! Seu rosto envelheceu aos poucos, mas aquele espelho, amigo fiel, não deixou que

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percebesse. Mas agora percebia. Afoito, Removeu o creme com a toalha, enxaguou o rosto e olhou-se com atenção. Envelhecera. Mas, por que só agora se dava conta? Um sorriso, então, se achegou manso emprestando sua luz serena àquele rosto já sulcado e começando a mostrar sinais de cansaço. Reparou nas pequenas rugas ao redor dos olhos, reparou também em alguns sinais que não tinha, presente indigesto com o qual o tempo lhe brindara. Por que? - pensou - só agora percebia tudo isto? Envelheceu e não viu. Sorriu novamente, um sorriso meio amargo é verdade, mas um singelo reconhecimento a este, que agora reconhecia, sempre fora seu melhor amigo. Não, não podia culpar o espelho pelo tempo que passou e deixou suas marcas ao redor de seus olhos. Na verdade, ingrato era ele, que ao passar do tempo nunca olhou para seu amigo fiel. Egoísta, sempre viu a si mesmo através do espelho, nunca vira o espelho, só a sua imagem refletida nele. Agora reparava com calma, quase carinhosamente naquele vidro tão próximo, tão comum... tão corriqueiro... tão banal... que nunca foi merecedor de sua atenção. Ficou envergonhado. Sim, envelheceu, mas seu amigo, o espelho, na sua frieza neutra e caprichosa, nunca deixou que percebesse...

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A PORTA

Odiava portas. Tudo que 'fecha e têm dois lados' lhe preocupava, mais que isto, lhe tirava o sono. O que havia por detrás da porta? Quem poderia saber! Dormia de porta aberta, pois se a fechasse, imaginava o que estaria se passando do outro lado, e vice-versa; também não podia ver quartos fechados sem que sua imaginação se pusesse a trabalhar freneticamente. Afinal, o que há do outro lado da porta? Até que ponto, o que não via podia assustá-lo tanto?Quando deitava demorava a dormir, pois mesmo com a porta do quarto aberta, como sempre, perdia o sono por conta do exíguo espaço entre a porta e a parede, sim, mesmo aquela pequena sombra que restava deveria portar seus mistérios. Não gostava de mistério.Gostava das coisas às claras, bem iluminadas pelo Sol; coisas que podia ver. - por que inventaram as portas? o que tanto precisam esconder? Que intimidades bizarras precisam ser 'varridas' para trás de uma porta? - certa vez experimentou um alívio filosófico: de tanto pensar no assunto descobriu que

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pelo menos sabia o que se encontrava atrás de um lado da porta: ele mesmo!já era um começo. Mas quando concluiu que metade do mistério estava resolvido, algo lhe ocorreu; havia sobrado 50% do problema!As coisas pioraram. Já não conseguia dormir. Numa de suas vigílias teve um estalo!O Problema não é o 'outro lado' e sim, 'a porta'! Levantou, estourou champanha, dançou de felicidade! Finalmente a partir de agora haveria de dormir! Não perdeu tempo: retirou as portas de sua casa e teve prazer maior quando o fez em seu quarto. Embriagado pela alegria, naquela noite sem portas, dormiu como um anjo... ou talvez, como um demônio...

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A GOSMA

A Gosma gruda tão logo acordamos. Ninguém vê a Gosma, não a ouve, bem, pelo menos não com sua própria voz. A Gosma fala pela voz dos outros, nos vê através dos olhos alheios, nos atinge morna e mansa através de seus agentes, ingênuos agentes que ela usa e abusa, tão inocentes que são; carregam a Gosma mas não percebem. A Gosma está em tudo. Está na voz do apresentador de TV,na notícia do jornal, no olhar da vizinha, no riso do cara da banca, na bondade da professora, na mão esticada do novo amigo,na saudação do velho que passa, no pedido da empregada, na mensagem do Presidente, a Gosma é nojenta, gruda. Não há banho que a remova. Ela vem pelo rádio, TV, revistas, Internet, e... livros, mas... aí há um problema para a Gosma; não são todos os livros que se dispõem a serem melados pelo seu gosto

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sem gosto, seu cheiro sem aroma, até porque a Gosma fala mas não diz, ouve mas não escuta! A Gosma é amorfa e inodora. Bem, os livros... aí a salvação! É da Arte que se serviram e se servem os que se negaram ao conforto morno da Gosma... ufa! Sim,uma saída! A Gosma odeia tudo que não fala da Gosma.A Gosma não gosta de nada que anda, ela é estagnada, mansa, pegajosa. Seus agentes nos cercam com seus olhares piedosos e nos pedem, silentes, que nos lambuzemos com a Gosma, mas agora já é tarde, já passamos muito tempo atendendo pedidos gosmentos. É a nossa vez, corremos então em direção ao mar, nada ficará em nosso corpo, é um banho purificador! Sabemos que a Gosma detesta o mar!Detesta a Noite!Odeia o que não vê! Mergulhamos finalmente alegres na imensidão; um mergulho na liberdade da Arte, um mergulho satânico!

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A SENTENÇA

De volta ao lar, finalmente! Mas... que lar? Poderia chamar a casa da filha de ‘lar’? Podia sim, concluiu. Afinal, quem comprara a casa fora ele, em seus bons tempos, e aquela imensa biblioteca dentro da qual agora jazia, quieto, em sua cadeira de rodas, fora toda montada às suas expensas financeiras e intelectuais. Velho e combalido, olhava com carinho paternal para aquelas estantes abarrotadas de livros e poeira. Quanta saudade! Havia meses que sonhava com aquele encontro; sua biblioteca, sua paixão, sua vida! Enfim, ali, sentia-se em casa, ali, afinal, era sua casa! E não aquele asilo horrível em que passara os últimos meses. Achava que não merecia isso. Achava que sua filha e seu genro, aquele aproveitador, não teriam coragem de livrar-se dele feito um traste velho que já não servisse para nada; mas percebera que, agora trancado por dentro, indefeso, afásico e semimorto, tornara-se uma presa fácil para decisões alheias... Quem diria! Logo sua filha, aquela menina que cansava de encontrar, criança e ranhenta em suas recorrentes memórias; memórias estas que eram revisitadas a todo instante, pois não havia mais nada a fazer... nada, só lembrar, lembrar e

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lembrar. Tentava amenizar suas recordações tentando recompor coisas novas, como aquele garotinho que agora brincava ali aos seus pés, Paulinho, o neto. Paulinho de tanto em tanto estacionava seu carrinho ao pé de uma cadeira e olhava para o avô. Este então esboçava um sorriso na tentativa de capturar a atenção do menino, mas Paulinho logo retomava seu brinquedo e seguia alheio ao velho. O idoso então desviou seu olhar para a janela aberta e imaginou quando a Morte entraria, suave, vestida de cortinas vermelhas, as mesmas que agora esvoaçavam, para finalmente brindá-lo com seu beijo frio e balsâmico, pondo fim a tantas lembranças recorrentes que agora lhe doíam. Sua companheira de jornada havia falecido há anos, ao que ele atribuía o derrame que sofrera, pondo-o prostrado e inútil em uma maldita cadeira de rodas. Amava sua mulher profundamente, e ante a sua partida repentina, realmente, não havia nada que o consolasse. – Mas algo saiu errado – pensava ele – pois eu deveria ter partido por inteiro e não pela metade! Pois o que de mim sobrou na Terra, agora sei, não é bem-vindo, infelizmente, infelizmente...

Era um velho juiz. Sua profissão também não lhe saía da cabeça; teria sido justo em suas sentenças? Tinha agora todo o tempo do mundo para ruminar pensamentos, investigar, esmiuçar... Teria sido traído em suas convicções aplicando sentenças injustas? Quanto ódio teria suscitado em pessoas que lhe veriam em sua atual situação de miséria existencial com a alma em júbilo? Pessoas que exclamariam exaltadas que o velho juiz teve, finalmente, o que merecia!

Não, não, não... cuidara com especial zelo para não cometer injustiças. E aqueles livros à sua volta em muito lhe ajudaram na sua imparcialidade. Era um manancial de sabedoria jurídica, jurisprudências, etc. lia e relia sobre Direito Romano, enfim, se por

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ventura errara em alguma decisão, com certeza não teria sido por desleixo em seus estudos. Um livro em especial recebia agora seu olhar combalido: De Legibus de Marcus Tullius Cícero. – Cícero... Cícero... – pensava com seus botões – quanta eloqüência... as Catilinárias! as Catilinárias! Quo usque tandem abutere, Catilina, patietia nostra?- finalmente o velho esboçou um sorriso, sem tirar os olhos do livro na estante. De Legibus... Sim, por que não? Queria agora aquele livro em seu colo. Sentia-se como que renascendo; uma alegria estranha se apossou de seus instintos há muito mortificados – Cícero! Cícero! – queria ler Cícero, pronto, estava decidido! Iria mostrar a todos que não estava morto, não, o velho juiz ressurgia das cinzas tal qual uma Fênix! Mas agora uma outra tarefa se fazia necessária, falar. Há algum tempo não conseguia dizer palavra, como poderia pedir o livro? Ora, estava sob o efeito de uma verve tão intensa que, alegre, reuniu finalmente as forças que transitavam por seu espírito naquele momento e ergueu o braço com dificuldade; apontou seu dedo trêmulo para frente e, vitorioso, balbuciou: - Cícero... Paulinho, surpreso, parou sua brincadeira com o carrinho e encarou espantado o avô, que sorria emocionado. - Mamãe! Mamãe! O vovô me chamou de Cícero! – gritou. Sem demora a mulher entrou na biblioteca e, carinhosa, passou a mão na cabeça do velho. - Coitado – disse a filha – está cada vez pior...Na manhã seguinte o idoso estava novamente no asilo.

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O PORTADOR

E olhe que escolhi esta cabana por ficar bem longe! De madeira crua, rústica, acanhada... só uma porta... e a solidão da montanha...

Foi assim que eu quis. Ficar longe de tudo, de todos, só mesmo a imensa floresta à minha volta. Faço passeios pela mata à hora que me dá na telha, aliás, faço tudo que me der na telha, aqui, isolado em minha solidão. Na cabana não há luz artificial... não, não, luz aqui só a do fogo de minha pequena lareira. Fogo que faz dançar imagens negras e estranhas nas paredes de pau. Quando noite, lá fora a escuridão é total e os ruídos são muitos, oriundos de meus amigos animais

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silvestres, que livres, fazem a algazarra de sempre para saudar o manto negro e misterioso que se estende, calmo, fazendo brotar estrelas no céu.

Não existe acesso à minha casa, não quis nenhuma picada, estrada, nada. Só o mato virgem em volta, nada mais. Quando preciso comprar minhas coisas, saio por entre as árvores e desço a montanha até o vilarejo. Quando volto, certifico-me de que não estou sendo seguido, pois não quero intrusos em meu pequeno mundo. Pois é... Eu voltava de uma dessas incursões ao pé do morro quando, surpreso, vi que a porta do barraco estava aberta. Já era noite e as estrelas no céu claro sorriam suas luzes em direção à minha casa. Sim, dava para ver bem, a porta estava aberta! Dentro, escuridão total. De minha parte nunca precisei de lanterna ou algo parecido, pois conheço a anatomia de meu chão como conheço a palma de minha mão.

Entrei.

Livrei-me das compras colocando-as em umas prateleiras em um canto e nessa pantomima no escuro, já aproveitei e peguei minha afiada adaga. Aos poucos comecei a escutar uma respiração pesada e descompassada. Sem dúvidas o invasor estava na casa, e mais, conseguia percebê-lo sentado em minha poltrona – que impertinência! – agora eu estava com raiva, uma raiva mortal, dessas que acomete a gente quando somos invadidos por imbecis em nossa privacidade. A cara de pau do intruso fez borbulhar meu sangue, normalmente tão calmo. Resolvi então que se ele era calmo e frio, eu deveria lhe dar o troco. Comecei a acender a lareira como se não o tivesse percebido, embora lhe desse às costas, temerariamente. Quando o fogo estabilizou voltei-me calmamente para encará-lo.

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Mirabolava coisas em minha cabeça, truques e mais truques, para não ficar, definitivamente, refém do medo, pois isto estragaria tudo.

Encarei o Homem.

Era algo grotesco. Vestia andrajos negros e escondia suas feições sob um imenso capuz, com exceção – uma exceção sinistra – de um olho... um olho... um olho vermelho e arregalado, que conseguiu gelar meus nervos de imediato. Nunca mais esqueci aquele olho. O sujeito então levantou calmamente uma de suas mãos e me apontou o dedo para em seguida pronunciar o meu nome. Era uma voz terrosa que saía daquele capuz. - Sim sou eu – respondi com uma voz meio sumida, e emendei em seguida – E você, afinal, quem é? - Meu nome é Portador... meu nome completo é Portador de Teus Medos. Demorei a encontrá-lo, mas finalmente estou aqui. - Mas não por muito tempo. Gostaria que se fosse! Agora! – esbravejei. O homem levantou-se calmamente e partiu silencioso. Tranquei a porta. Mas aquele olho vermelho ficou encravado em minha mente.

Algum tempo se passou e uma noite ao retornar à casa depois de um passeio pelo mato, vi a porta aberta e a lareira acesa. Quando entrei ele estava lá, o desgraçado do Portador! O filho da puta aquecia-se junto ao fogo. Quando recebi o olhar injetado daquele olho horrendo, tremi. Mas agora já era abuso, como assim? Aquecendo-se junto à minha lareira? O monstrengo impertinente julgava mesmo que poderia vir à

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qualquer hora e instalar-se tranqüilamente nas minhas coisas! Era só o que faltava! - Vá embora agora! - ordenei com raiva – e lhe garanto, se voltar vai se dar mal! Minha paciência acabou! O Portador, resignado, retirou-se. Tinha o andar lento e andava encurvado, além de não cheirar bem. Era uma figura nojenta e assustadora.

Depois da última visita, funesta, do Portador, cheguei a pensar em cercar a casa, mas justamente havia escolhido aquele local para me livrar das cercas! Não, não... haveria de encontrar outra solução, pois uma coisa era certa, o desgraçado sabia o caminho para minha cabana. Eu tentava também não ficar com a imagem daquele olho em minha lembrança, aquele olho arrepiante e escroto! Se cercasse a casa ou ficasse com a imagem daquele olho perturbando minha mente, saberia que o asqueroso teria vencido. Bem, se não voltasse já seria uma grande coisa, mas tinha o forte pressentimento de que voltaria... e voltou!

A porta aberta, a lareira acesa e... o nojento dormindo em minha cama! Dessa vez não agüentei! Acometido por uma raiva visceral, peguei minha adaga e me acheguei a ele. - Hei, acorde! O imenso olho então brotou da escuridão do capuz, sonolento e vermelho. Saltei sobre o invasor com minha faca e a enfiei com ódio naquele olho! Diversas vezes! O monstro gritava, esperneava, mas em vão. Só parei quando me certifiquei de que estava cego! Depois disso peguei aquela praga pelo braço e desci a montanha, pouco me lixando para suas gritarias e faniquitos. Deixei o Portador, que agora era portador de uma séria deficiência física, bem longe de minha montanha. Que vagasse a esmo e me esquecesse!

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Finalmente à paz voltou ao meu pequeno reino. O único inconveniente é aquela mancha de sangue do lado de minha cama. Não houve jeito de removê-la... tentei de tudo, mas não deu. Logo ao lado da cama, palco do crime, como a me lembrar que aquele homem, mesmo sem o terrível olho, ainda existe e me procura. Nesses momentos olho para minha adaga, esta sim, de lâmina brilhante e limpa, e fico tranqüilo. Não me arrependo de nada. Faria de novo e de novo, faço qualquer coisa para a casa continuar assim, sem cerca em volta e freqüentada, à noite, apenas pelos sorrisos das estrelas...

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A RAINHA DA RUA!

Cinderela, Cinderela, rainha da rua! Rainha Cadela!

Pobre puta Cinderela. Condenada a vagar pelo vilarejo, agora velha e enrugada vestida apenas por andrajos sujos, e mal-tratada. Louca, não ligava à mínima para isso. O que irritava Cinderela era aqueles meninos na sua cola! Eram muitos garotos a lhe seguir pelas ruelas, a não lhe deixar em paz. Sempre zombavam, cuspiam, jogavam alguma coisa... era humilhante para a puta velha este tratamento que julgava não merecer. Agora era ‘a louca’ – Pois sim, louca, então, - pensava ela – louca é? Mas quando jovem me achavam ‘bem normal’, aliás, mais normal que as ‘mulheres certinhas’, quando vinham comprar meus favores e realizar fantasias que só julgam possível com putas. Aí eu prestava!

Pobre Cinderela.

O apelido ‘Cinderela’ era justamente oriundo da formosura da prostituta, em seus anos vicejantes. Que ironia! Agora era só uma velha louca esquecida por tudo e por todos, menos pelo Tempo, este carrasco inexorável, e pelos garotos maldosos,

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claro. Nos seus tempos, tinha cabelos louros e finos que esvoaçavam feito trigo no campo, e suas formas generosas atraiam a simpatia e prontidão de todos, desde o figurão até o pobretão, que muitas vezes ela atendia por pura compaixão. Gente que chegava ao cabaré se esgueirando pelas ruas, afinal, tinham reputações a zelar. Eram ‘homens de bem’. Tudo isso ela compreendia. Facilitava as coisas, ajudava, e até oferecia o ombro para que marmanjos desmamados chorassem suas desventuras burguesas e desinteressantes. Tinha uma santa paciência, a puta Cinderela.

Cinderela, Cinderela, rainha da rua! Rainha cadela!

Agora isso... recebia como prêmio, como uma espécie de aposentadoria desabonadora, aquele coro em seus ouvidos. Condenada a vagar pelas ruazinhas de pedra com aqueles garotos horríveis às suas costas feito o rabo de um crocodilo. Como se já não bastasse ter de viver com ajutórios e esmolas. Revirava lixo atrás de restos de comida e às vezes parava e pensava que já fora linda, desejada, e então aquecia um pouco seu coração ferido com essas migalhas de lembranças... seus pensamentos sempre embalados pelo fundo musical do deboche...

Cinderela, Cinderela, rainha da rua! Rainha cadela!

Seus cabelos brancos, agora grudentos. Seus restos de dentes podres. Suas roupas rasgadas. Seu futuro... que agora tinha o nome de Morte. Seu corpo agora cansado e velho, que proporcionou, há muito, muito tempo, as delícias lascivas daqueles homens tão respeitados. Pois, agora todos lhes viraram as costas. Quem sabe não seria ela um cisco no olho

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do respeitado vilarejo... um cisco a ser varrido permanentemente pra lá e pra cá, até chagar o dia fatal em que seu corpo – há muito imprestável -fosse encontrado entre algumas latas de lixo - Ufa! – todos respirariam aliviados – Já foi tarde a puta louca! Puta Cinderela! – Mas o problema maior para a velha era realmente aqueles garotos e aquela estrofe repetida e repetida infinitamente. Era muita maldade com a louca! Louca, louca! Ma aí a velha teve um estalo! - Louca! Louca! Este é o problema! E se eu ficar ‘normal’ como eles! E se eu agir, como os normais, só uma vez? E se eu agir como os respeitáveis, só uma vez? Não falaria, finalmente, a sua linguagem? Não me faria entender? Sim, porque não? Se eles são normais só entenderão se eu falar como eles... acho que poderei livrar-me desses garotos!

Cinderela, Cinderela, rainha da rua! Rainha cadela!

A puta velha então parou e ficou em silêncio. Os garotos pararam também, um pegou uma pedra. A mulher sorriu com seus cacos de dentes e perguntou a um deles se era neto do doutor Angenor. – Sim – respondeu o menino surpreso. – Pois então pergunte à sua avó se ele ainda tem aquele cancro horrível no saco! – em seguida a mulher virou-se para outro – E você, menino. Não é neto do ex-delegado Valdir? – o garoto assentiu com a cabeça, meio sem jeito – Então pergunte para sua avó se ele continua gostando do ‘dedinho’ – e assim foi... com um por um. Até todos saírem, intrigados, a procurarem suas avós. A partir daquele dia, Cinderela pode ser louca à vontade, sem o coro desabonador atrás de si. Deixaram-na definitivamente em paz. Revirando lixo. Louca! Louca! Cinderela... a Rainha Cadela...

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O EDITOR BONZINHO

- Oh, sim, meu caro escritor, adorei seu livro! Puxa, de onde tirou essa estória? Que imaginação, hein? Sabe, você tem talento. Acredite, eu conheço um gênio de longe, sim, meu garoto, de longe! E você é bom, aliás, diria... muito bom! Quantos anos você tem? É quase um menino, acredito.... é a primeira vez que submete manuscritos?

- Sim. – respondeu o rapaz, sentado do outro lado da imensa mesa; mal podia disfarçar a alegria provocada pelas palavras do editor. Um riso meio tolo e impertinente lhe invadia o semblante amiúde, teimando em deixar transparecer uma felicidade pura e ruidosa. Era seu primeiro trabalho, e havia colocado ‘sua alma’ naquele livro.

- Veja, querido – prosseguiu o editor – não é da minha índole ficar massageando ego de escritor, que já é bem dilatado, hehe... mas no seu caso... bem, estou

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impressionado. Seu livro é profundo, bem articulado, inteligente, instigante... bem, resumindo, não vou publicá-lo!

O rapaz sentiu um soco no estômago! Como assim? Depois de tudo que foi dito? Seu mundo desmoronou em um segundo – malditas palavras aquelas do editor: ‘não vou publicá-lo’ – não encontrou palavras para rebater a impertinência. Manteve, então, sua decepção em silêncio, em venenoso silêncio...

- É que... entenda, meu jovem – continuou o carrasco – isso não vende! Pois é, fazer o quê? É o mercado, compreende? Sei que você deve estar me odiando, mas diga-me, o que posso fazer? Sou um empresário, sobrevivo das vendas de minhas publicações e... digo isto com um aperto no coração: seu livro é muito bom, logo, não vende... Ninguém quer ter de ficar quebrando a cabeça para decifrar códigos existenciais, querem sim é decifrar códigos Da Vinci, percebe? Olhe, nem tudo está perdido, quero lhe fazer um convite, quero convidá-lo a escrever para mim! Quero o seu talento, meu rapaz! Tenho cá comigo uma idéia que você poderá desenvolver com sua impressionante criatividade; é uma idéia para um livro que vende, percebe? A estória é a seguinte: uma vampira se apaixona por um fantasma, ou um morto-vivo, você escolhe, bem, o problema é que a vampira quer sugar o sangue do amado para torná-lo imortal como ela, porém, isso é impossível uma vez que ele é morto!Não tem sangue! Caramba! Isso vende! Entendeu?

O rapaz baixou a cabeça, estava morto por dentro.

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- Não fique assim meu geniozinho.... vamos ganhar dinheiro juntos! Pare com idealismos bobos, mercado é mercado, filhote, fazer o quê! Isso que você está sentindo passa logo, é coisa de iniciante, é coisa de sangue novo, é ingenuidade. O negócio é grana, irmão. Grana! Entendeu? Olhe, vou lhe dar um pequeno adiantamento – ato contínuo, o editor puxou seu talão de cheques e rapidamente escreveu uma quantia, assinou e entregou o papel ao escritor; este pegou o cheque, examinou e sentiu o azedume de seu espírito esvaecer um pouco - Um profissional, hein? – prosseguiu o, agora, patrão - Como se sente? É bom, né? Pois é, isso é ser um autor. De que adianta todo seu romantismo se você não tiver grana? É grana que conta, irmão. Taí, trabalhe para mim, conceda-me seu talento e ganharemos muito dinheiro, você agora é um autor! – em seguida levantou-se de sua confortável cadeira, no que foi seguido pelo escritor, e dirigiu-se à porta do escritório. Cumprimentou mais uma vez o novato e abriu a porta – Uma vampira e um fantasma. Ou morto-vivo, não esqueça.... volte quando tiver alguma coisa. – deu um tapinha nas costas do moço, que saiu silencioso e em seguida escutou a porta bater atrás de si. Caminhou pelo comprido corredor do prédio em direção à rua, estava mais tranqüilo, quem sabe não era apenas um romântico irrecuperável? Ora, estava na hora de encarar a Realidade... ‘é o mercado’ disse o editor. Sim, estava certo ele... Começou então a sentir uma sensação de bem-estar, pegou o cheque no bolso e conferiu mais uma vez, sorriu e

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prosseguiu caminhando rumo a porta da saída – Vampiros? Zumbis? Ora, por que não? - apaziguado, resignado, um pouco feliz até, saiu do prédio e misturou-se aos transeuntes na calçada... nem reparou nas duas profundas marcas de dentes caninos bem finos que ostentava, alheio, em seu pescoço...

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OS OLHOS DA SOMBRA

Lembro bem da primeira vez que o vi. Eu tinha chegado em casa cansado, os ossos doíam, havia sido um dia duro de trabalho. Tomei banho, desci para o patamar inferior, - minha casa tem dois pisos - comi alguma coisa e fui ler algo, não lembro o quê, acho mesmo que era alguma coisa de Poe... Bem, sabia que o sono logo viria, estava morto. Recostei-me em minha cadeira de leitura, pus meus óculos e deslizei prazerosamente para as letras. Pronto. Casa escura, só a luz para a leitura jorrando amarelada em meu livro. Clima. Agora nada poderia me deter...Nada? Que nada! Um barulho estranho veio do

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outro cômodo, parecia um ronco ou algo parecido. Num primeiro momento, mesmo um pouco apreensivo, não dei bola, afinal, são muitos os barulhos contidos em uma casa escura; parece mesmo, que quando apagamos as luzes, seres de outros mundos vêm nos pregar peças, caçoar de nossos medos. Continuei lendo. O ronco repetiu-se, agora não havia dúvidas, tinha algo ameaçador no outro cômodo. Quando pensei nisso já era tarde demais... senti a presença ameaçadora em minhas costas... Num primeiro momento fiquei paralisado, a cabeça vazia, a mão fria do pavor tocou minha espinha e senti o sangue gelar. Não havia sombra de dúvidas, aliás, se havia alguma sombra, esta continha algo sinistro em seu ventre e que respirava; sim, respirava... senti o bafo quente que vinha por trás da cadeira. Lembro-me bem de que precisei de algum tempo para ajuntar algumas migalhas de coragem. Mesmo para fechar calmamente o livro foi preciso muita força, que eu buscava não sei de onde. Era um hálito enjoativo aquele, comecei a ficar nauseado. Reuni então o que podia para reforçar meus nervos e comecei a me levantar lentamente, obviamente, sem cometer a audácia de olhar para trás. Recordo que tive a impressão de ter demorado umas duas horas – incrível como perdemos a noção de tempo em momentos de pânico – até ficar totalmente em pé, ereto. Pronto, eu agora era um poste plantado em minha própria sala e o observador sombrio continuava lá, a respiração lenta e forte. O que faria agora? Atacaria-me pelas costas? Mas não. Nada aconteceu e iniciei então a operação mais difícil e apavorante da minha vida; iria virar-me com cuidado, e finalmente encarar o invasor. É verdade que pensei em correr em direção à porta, mas temi ser alcançado com facilidade pela aterrorizante iminência

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parda. Voltei-me lentamente e aos poucos os pelos do meu corpo começaram a eriçar, meus olhos vítreos começaram a divisar algo negro, baixo, disforme e logo estacaram em outros olhos... nunca esquecerei aqueles olhos... eram imensos, vermelhos, e a agudeza das pupilas enormes me trespassaram feito uma faca! Não sabia o que era aquilo e senti que minha mente perdera a condição de avaliar, pois era refém do pavor. O monstro moveu-se lentamente e num sorriso ameaçador deixou à mostra suas presas afiadas, como a me dizer que as possuía e não teria a menor cerimônia em usá-las. Era algo monstruoso que se movia nas sombras, lenta e pesadamente; seus olhos sinistros não desgrudavam da frieza cadavérica dos meus. Chegou mais perto então, como que a me farejar. Hoje não tenho vergonha de dizer que urinei nas calças e se aquele bicho tivesse algum senso de humor, teria dado gargalhadas regozijando-se pela sua vitória. Depois de me rodear com suas quatro patas com garras imensas, voltou para as sombras desaparecendo lentamente na escuridão. Eu ainda fiquei por muito tempo parado, extático, frio. Incrível, mas foi só quando amanheceu que consegui mover-me. O Sol agora iluminava a casa e então, movido pela segurança da claridade e uma espécie de ódio – ou sei lá o quê - pela criatura noturna, corri ao meu quarto, peguei meu revólver e vasculhei a casa. Mas era tudo bobagem, aquela era uma criatura das sombras, era impossível encontrá-la de dia, sob o abraço quente e protetor do Sol. Fui trabalhar, teria de pegá-lo à noite quando surgisse da infinita escuridão, seu lar, sem dúvida. Mas... bem, para resumir a história... foi tudo em vão, pois quando o monstro aparecia eu não conseguia pegar a arma, mesmo ao meu lado, petrificado que ficava com a

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sua presença. Mas o mais estranho em tudo isso é que fui me acostumando com a aparição do bicho, passei até a observá-lo; ele sempre lento, ameaçador, inoportuno, e quase, diria, íntimo. Algum tempo se passou e resolvi botar um ponto final naquilo, afinal, a casa é minha! Ora, se não mandar em minha casa, o que me sobra? E tem mais! Se a casa é minha, as sombras da casa também são só minhas! Resolvi que se ele era o rei das sombras, então eu deveria ser mais que isso... deveria mostrar ao monstro que aquela escuridão tinha dono, e este não era ele! Foi então que decidi, antes da noite esticar seu véu preto e misterioso, que deveria alojar-me naquele cômodo, que é o mais escuro da casa, e ali aguardar que tudo ficasse em sombras. Ele então surgiria, mas desta vez os papéis se inverteriam e o intruso saberia, finalmente, quem mandava. E assim foi. Deixei acesa a luz do abajur de leitura para atraí-lo e fiquei em meu canto no escuro. Quando a noite já ia alta ele surgiu, sempre calmo, seguro, arrogante. Ao não me ver na cadeira voltou-se de supetão, mas seu olhar, sempre tão amedrontador, deu com o meu. Meus olhos eram sanguíneos, bem abertos, donos de si... Desarmado pela surpresa, o monstrengo deu sinais de medo, isso mesmo, medo. Movi-me lentamente em sua direção, tinha em meus olhos o brilho sinistro do assassino, do matador... um grande e assustador exterminador vindo das sombras, das suas sombras, só suas, de mais ninguém! O intrujão, então, amedrontado pela presença inusitada, procurou abrigo junto à tímida luz do abajur, em seguida deitando-se no chão e ficando de barriga para cima. Agora se refestelava e grunhia feito um pequeno bichano a pedir carinho. Senti pena. Acabei desarmado em meus instintos e quando dei por mim

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coçava-lhe a barriga, sorrindo. Mais adiante me surpreendi jogando, amiúde, uma pequena bola amarela para o escuro e o bicho a correr para a escuridão e voltar com ela entre os dentes. Acariciava-lhe a cabeça e o dócil animalzinho deixava a bola cair livre pelo chão, solta de suas presas afiadas. É incrível como um bichinho desses pode nos fazer felizes! Hoje em dia continuo com minha rotina, casa/trabalho-trabalho/casa, porém, devo reconhecer que é uma delícia chegar ao conforto do lar, tomar um banho, descer para o andar no solo e ler um bom livro só com a velha e boa luz do abajur acesa. Ao redor, a silenciosa e mansa escuridão da casa sempre embala meu sossego, e aos meus pés meu animalzinho dorme enroscado e satisfeito. De tanto em tanto nos olhamos, pois temos uma cumplicidade muito íntima, e sorrimos. Sabemos que só assim, livre do medo, a casa segue tranqüila...

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NADA INTERESSA A ELES...

Nada interessa a eles...

Se não for manipulávelSe não for comprávelSe não for tributávelSe não for corruptívelSe não for arrecadávelSe não for usurpávelSe não for delineávelSe não der pra sugarSe não render jurosSe não der lucroSe não der voto

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Nada interessa a eles...

Se não for alinhadoSe não for alienadoSe não for endividadoSe não for marcadoSe não for bem-mandadoSe não for gado

Nada interessa a eles...

Se não for lugar-comumSe não for medíocreSe não for baixoSe não for capachoSe não der pra manipularSe não der pra tirarSe não der pra enganarSe não der pra ludibriarSe não der pra abraçarSe não der pra se roçarSe não der pra morderSe não se deixar doerSe não se deixar roerSe não se deixar morrerSe não crer

Nada interessa a eles...

Se não for indecenteSe não for complacente

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Se não for doenteSe não for meramenteSe não for condescendenteSe não for indolenteSe não for pequenoSe for em frenteSe tiver em menteSe tiver um pingo de dignidadeSe não tiver interesse na amizadeSe tiver uma sobra de hombridadeSe tiver, ainda, alguma honradezSe não quiser trapacearSe tiver firmezaSe não se deixar corromper

Nada interessa a eles...

Se tiver aquilo... que eles não têm

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O QUASE MORTO E O QUASE VIVO

O homem quase-morto recebeu seu amigo quase-vivo.

O homem quase-morto estava quase morto.

Estava em uma cama de hospital, nas últimas.

O homem quase-vivo estava aflito:

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– Aquela mulher acabou comigo! – disse com um pouco de raiva – Desgraçada! Se ela pensa que darei o braço a torcer está muito enganada! Caramba o que eu faço? Sou louco por ela! me ajude, diga alguma coisa! Você nunca me deu um conselho na vida! Um, que seja... que amigo você é, hein? Só me lembro daquela baboseira que me disse certa vez de que não deveríamos ser carregados no colo quando andamos em nossa própria estrada, sei lá, ou coisa parecida.... Você sempre foi meio enigmático...

O homem quase-morto sorriu.

- Bem, estou para iniciar um novo negócio, o que você acha? Sim, eu sei, são tempos difíceis coisa e tal... mas quem não arrisca... né? Sei lá... o que você acha? Diz alguma coisa, porra! Qualquer coisa! Nem que seja da minha camisa, paguei duzentos paus nela! Bonita? Diz aí! Bonita?

O homem quase-morto sorriu.

- Você está me irritando, meu! Esse silêncio está me irritando... Diga-me o que achou do meu bronzeado? – o homem quase-vivo abriu a alguns botões de sua camisa nova de duzentos paus deixando o peito à mostra – Veja, que bronzeado, hein? É que estive na praia no fim de semana, cara, que mulherada! Pensei em você... sim, eu penso em você, seu ingrato! Gostaria que estivesse comigo, ah... que mar! Azul, azul, você precisava ver. Sim, o lugar ideal para me divertir e esquecer aquela cadela! Você não acha? O que me diz?

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O homem quase-morto sorriu, depois riu e depois tossiu.

O homem quase-vivo foi até a janela e olhando para fora comentou:

- Ah, que dia! A noite vai ser boa! Vou encher os cornos hoje à noite, tomar todas, eu mereço né compadre, é ou não é? Mereço ou não mereço? Claro que mereço, porra! Com tudo isso que ando passando por causa daquela vagabunda! Aquela vagabunda! Mas até que é gostosa, né? Hehehehe... eu sou foda, meu! Você sabe, não preciso repetir. Olha, enchi o saco! Você aí, não me diz nada, não me dá um bom conselho, daqueles que só os bons amigos dão... nem isso você faz! Sinto que estou é perdendo meu tempo aqui, fui!

O homem quase-vivo saiu do quarto e o homem quase-morto ficou por muito, muito tempo fitando a parede branca.

Os minutos foram passando, depois as horas...

O homem quase-morto, quieto, imóvel, enfim morreu.

Mais vivo do que nunca...

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DOSADOR

Bebendo só em um bar chalaçahá de se mediro tom da cachaça

A primeira dose abre a menteassim, de mansinho,num crescente

A segunda dosejá alegra a alma

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que já pensa numa terceiracom alegria e calma

A terceira traz bate-papocom a mesa do lado‘valeu gente fina,falou ta falado!’

A quarta é a dos abraçosdo riso alto, da alegriaque venha mais uma!Coisa boa a euforia!

A quinta é dos infernos!Êta que tá boa!Fala bastanteconversa à toaA sexta já vem um pouco azedaté parece discussãotodo mundo falaninguém tem razão

A sétima tem gosto de sanguede tapa, safanãode gente valentecabe uma oitava, como não?

A oitava...A oitava...

Tem a forma de fio de facaque bêbado tem cu na estaca!

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Turma do deixa disso...‘qualé a tua babaca!’

‘Quer tomar mais uma?Procura outro bar!’Avisa o bodegueirocom o dedo no ar

Eu voltoe vou matar todo mundo!que eu sou trabalhadornão sou vagabundo!

E caminha na ruade pé trocadoe pensa vingança‘foi dado o recado!’

Minha faca, minha faca!Minha faca, minha faca!Cai duro em um cantoo resto é ressaca...

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