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Autor de Reflexivas numa mesa de boteco
Livro registrado e catalogado. Reprodução proibida.
Belo Horizonte
Março 2007
Agradeço à Deus.
Se eu fosse virtual
“Chegou o tempo em que ou você é algué[email protected] ou você não é
ninguém”
Se pudesse ser uma coisa, uma outra coisa, eu queria ser um
software, digital, virtual. Não seria muito exigente. Bastava ser virtual.
Se eu assim fosse, eu dominaria as dimensões do tempo e do espaço e
viajaria pelo planeta digital e me deliciaria congestionando o tráfego
na Trafalgar Square. Literalmente passearia pelos sites literários e
num dia de sol enviaria um e-mail a Castro Alves e num navio
negreiro, navegaríamos por mares nunca dantes navegados em
companhia de Camões e Robinson Crusoe. Também por e-mail,
convidaria Helena e Capitu para ir à Espanha assistir a uma tourada e
mais tarde, em casa de Almodóvar, descansaríamos numa cama para
três.
Nas terras da Rainha, pesquisaria na Enciclopédia e com
pontualidade Britânica iria ao chá das cinco com Shakespeare e
Sherlock. Convidaria Rimbaud para um bate papo na Gallerie La
Fayette e numa sexta à tarde me conectaria com Belo Horizonte,
aonde iria ao clube da esquina, tomar um café com bytes em
companhia de Milton e Lô Borges.
Ah, se eu fosse virtual! Se eu fosse virtual, teria memória sem
limites e poderia guardar tudo do passado e do presente. Então, me
presentearia com um álbum dos Mutantes. Seria amigo de Vinícius, de
Chico e de Janis Joplin. Com Lennon e McCartney, Pena Branca e
Xavantinho, formaria uma banda larga inusitada e tocaríamos juntos
em MP3.. Seria virtual, mas com sentimentos e, com Noel e
Adoniram, choraria melosas canções de amor numa rádio digital.
Mesclaria Pixinguinha e Marisa Monte em uníssono, cantando Rosa,
em poesia não em prosa, para fazer alguém feliz. Se eu fosse virtual,
Bach me ensinaria que na música, a nota codifica o som, e eu o
explicaria que na informática, o bit codifica a ação.
Se eu fosse virtual e cometesse crimes, Dostoievski seria meu
advogado e meus castigos minimizados. Poderia até ser processado,
mas por processadores, que me mandariam pra Alcatraz. Lá eu
escreveria minhas memórias do cárcere e um postal eletrônico para
Marco Polo. Planejaria uma fuga lá para o reino de Khan, a quem eu
contaria de minhas andanças pelas terras do sem fim. Depois, criaria
um portal de games para jogar Dama com as Camélias e enviaria
flores virtuais para Madame Bovary. Digitalizaria o amor, para que
minha musa não guardasse de mim apenas impressões digitais e
fundaria com Gullar a Academia Brasileira de Bytes. Não seria um
Highlander, mas seria imortal.
Se eu fosse virtual, simularia o meu Taj Mahal, onde leria As
mil e uma noites em uma só, deitado confortavelmente em minha rede.
Iria ao Louvre e admiraria cada píxel da Mona Lisa. Materializaria-me junto
ao túmulo de Salvador e o tiraria dali para meu alívio e para a persistência
de sua memória. Gravaria em placas homenagens a Sebastião Salgado,
Picasso e Caetano constatando que a Guernica é aqui. Aprenderia com
Freud sobre Édipo e o Ego num site de psicologia e entenderia que quando
os sonhos assumem forma concreta, surge a beleza. Seria menino e correria
Brasil afora em busca de pica-paus amarelos ou de uirapurus cantantes.
Pularia carniça nas pinceladas de Portinari em companhia de Bardi e me
deixaria deslizar nas curvas generosas de Niemeyer. Imprimiria elogios de
louvor á brasilidade de Macunaíma e Mário de Andrade me convidaria para
um banquete antropofágico em casa de Tarsila, numa mensagem com a
Muiraquitã em anexo.
Se eu fosse virtual, conversaria com Da Vinci em código e
compilaria com Einstein o quântico dos contos . Instalaria-me com
Clarice em uma rede e a ouviria explicar sobre como (d)escrever o
amor. Entenderia grego, português, inglês e outras línguas porque
armazenaria todas as línguas na memória. Entraria nos arquivos do
FBI, do DOPS, do SNI e da CIA, de onde hackearia informações sigilosas e
as compartilharia com Henfil e Betinho. Criaria uma comunidade alternativa
no Orkut e Raul Seixas seria o síndico. Em uma página de poesia, jogaria
conversa fora com Drummond, depois andaríamos por uma rua qualquer de
Itabira, e no meio do caminho, nos assentaríamos em um banco de dados
também qualquer para escrever às crianças.
Se eu fosse virtual, programaria com Júlio Verne, dez voltas
ao redor da Terra, à velocidade de um download, num Led Zeppelin
amarelo. Buscaria no Google, um trabalho para Marx e trocaríamos
informações sobre workgroups. Após o almoço, Newton me ofereceria uma
maçã e eu o convidaria a ensinar física aos engenheiros da Apple por
videoconferência. Se eu fosse virtual, ao envelhecer, não me preocuparia
com a forma física e nem sofreria cirurgias plásticas ou lipoaspiração. No
máximo, Ivo Pitangui me atenderia em uma clínica de upgrades e eu sendo
velho, não morreria. Bastaria um update, um download, e eu me
renovaria como a Fênix.Tudo isso seria possível se Deus, o criador,
fosse programador e, se no ato de me criar, tivesse feito um software,
não um escritor. Ah, se eu fosse virtual.
Conto inflamado
Era uma vez um homem. Não. Não era uma vez um homem. É
a vez de um homem. Um homem simples, porém determinado e que
passava a vida vivendo fatos e experimentando decisões. Esse homem
era João Almeida, 43 anos, deputado e advogado. Separado pai de
duas filhas, uma lésbica e ele com problemas de memória.
Às vezes até brincava com coisas mais complexas, mas no
fundo sua vida era muito simples. Tudo ia bem ate o dia em que teve
uma overdose de absinto com Bauhauss. Foi na casa do Trindade. A
casa rodava, as pessoas também rodavam e elas eram meio retorcidas e
de um colorido meio misturado como tintas numa aquarela. Mas o que
o intrigava mesmo era a sensação de que flutuava e que tudo se
movimentava em câmara lenta. E que gosto amargo era aquele na
boca? Um misto de amargo e adocicado. Pela primeira vez na vida
João entendeu o significado do que era agridoce, e olhe que já tinha
recorrido ao Aurélio várias vezes. A vida apresenta fatos e fatores que
apenas podem ser compreendidos quando vividos e o agridoce era um
deles.
Dois meses depois João voltava a trabalhar e depois de um
longo dia de trabalho, resolveu reler aquele fim do Oeste Causticante.
Não conseguiu se concentrar e ligou a TV. Estavam mostrando a cena
em que Jody conversava com o terrorista irlandês que estava
encarregado de matá-lo. Adormeceu sentindo um torpor suave e vez
por outra um mosquito o perturbava e ele espantava o mosquito com o
Clarim Diário que estava amassado perto da poltrona. Novamente o
mosquito aparecia com seu zumbido supersônico e passeava próximo
ao seu ouvido com vôos rasantes. Ele se contorcia espantava o
mosquito novamente e logo se esquecia. Se sua memória ajudasse,
mandaria o mosquito para Pasárgada para atormentar o Rei, mas
esquecia-se facilmente das coisas desde aquela noite do absinto. Sua
memória de curto prazo estava avariada e a avaliação médica dizia que
certamente depois de alguns meses isso iria melhorar. Esqueceu-se até
da TV ligada e João adormecia e acordava na sua incansável batalha
contra o mosquito. De fato o que estava acontecendo era que ele se
esquecia do mosquito e quando se lembrava tinha medo de mata-lo.
Mas como pode um homem vivido e experimentado se deixar
amedrontar por um Anopheles Nyssurhynchus? Mas tinha, tinha medo
do mosquito e dos finais tristes dos filmes. Isso porque os fins de filme
sempre o deixavam confuso, já que se esquecia do que levara o filme
àquele final.A soma dos seus medos era tão intensa que se assustava
até mesmo com um ser desprezível e efêmero que vive por apenas três
dias.
João mantinha o significado das coisas fixo na memória e
associava o significado ás palavras, então o problema era que como
uma máquina, ele não conseguia mudar o significado de acordo com o
contexto. A semântica era uma verdade absoluta dentro do que ele
apreendia e isso não mudava, porque se algo era ambíguo, ele
assimilava logo o mais geral, não conseguia abstrair das palavras um
sentido diferente do que encontrava no dicionário.
João nunca sabia o que guardar e o que descartar e vivia a
confundir as coisas. Não sabia se Nero era um programa ou um
político como ele. Não sabia ainda que uma reação química resultante
de comburente, combustível e fogo resultam em modificações na
natureza da matéria. E essa reação química tinha nome: combustão.
Num lapso de lembranças semi-adormecidas, se apossou do jornal e
ateou fogo, ciente de que a fumaça espantaria o inseto repugnante. O
único problema era que o sofá em que estava deitado era de tecido
sintético e listrado
Atração sanguínea
Alto, magro e esguio, Morfino andava pela redondeza do
Maletta com um ar de preocupado. Sabia que seria um zeninguém se
não conseguisse uma nova vítima para seu plano. Morfino não
aparentava ter a idade que tinha, era muito mais velho e era impossível
determinar com quem se parecia. Diziam à boca miúda que era a cara
do Herchovich e que, mesmo feio, era um sedutor sem limites. Desde
que aparecera na região, dizia-se advogado, mas ninguém sabia ao
certo o que fazia ou de onde viera. Era uma incónigta. Diziam que
Mazinho foi parar no Galba Veloso por causa do distinto após
conhecê-lo
Um dia, bêbado no boteco do Sapão, deixou escapar um dos
seus muitos segredos: Morfino não sonhava. E isso acontecia há
muitos anos. Deixou transparecer também que vinha de longe, sempre
viajando para “ganhar a vida”. Morfino mora bem, mora em Santa
Teresa e gosta muito do à bolonhesa da esquina da praça. Se pudessem
averiguar sua vida, os taxistas descobririam que por não sonhar,
Morfino, sugava mentes alheias para viver dos sonhos das vítimas.
Ninguém sabia, mas Ele era um vampiro decadente. Filho do demo.
Em Santa Teresa Morfino conhecia vários taxistas, dentre esses
Adão, um ex-funcionário público aposentado, barrigudo e careca.
Adão era o que alguém poderia considerar como sendo peça rara e
sortudo. Usava roach, perfume da Avon, corrente de ouro e toda quinta
cortava cabelo no Mercado Central. Além do táxi, Adão tem uma
coceira gostosa no pé esquerdo e uma namoradinha de parar o trânsito.
Morfino nunca a tinha visto quando um domingo, andando pela praça
viu Adão conversando com uma morena gostosa que chamava a
atenção até de outras mulheres. Adão parecia bêbado pela mulher e a
despia com os olhos. Os olhares dos outros taxistas também pareciam
desnudar aquela Vênus cor de ébano. Morfino enlouqueceu, ia chegar
perto para se deliciar da visão, mas Adão deu algum dinheiro a tesuda
e ela se foi rebolando pela Mármore.
De manhã Morfino não sonhou, mas desejou aquela mulher
como se ela fosse a última do planeta. Bebeu algum vinho, fumou dois
Cadillacs e se deitou na varanda do apartamento. Maquinava uma
forma de se aproximar da morena, que imaginava, além de bela teria
muitos sonhos a realizar. À noite Morfino se levantou e foi ao Spa-
ghetto, o bar que fica em frente ao ponto de táxi. De lá de dentro,
podia ver o ponto e o movimento da praça.
Subitamente sente um toque no ombro. Era Adão.
-Diz ai ô Morfino gente boa, que cara é essa de desanimado
homem?
- Nada, só estou de veneta mesmo, tomando um ar.
-Rapaz você não dorme? Vi você ontem à noite andando pela
praça por horas.
-Sofro de insônia. Isso é coisa antiga e, além disso, gosto da
noite.
- Morfino, cê não me engana, acha que não vi como comia
minha mulher com os olhos?
O vampiro se assustou e fingiu não entender o tom de ironia.
-Ela é bonita. Cara sortudo você. Tem pelo menos uns 25
anos?
-Nada cara, ninfetinha a Natasha. Mas fica comigo pela grana,
ela não me ama. Mas mete como ninguém e não me amola. É tudo que
um velho como eu poderia querer.Só tem um problema. Ela me leva
toda a féria do fim de semana. Isso é osso. E eu que tenho que pagar as
prestações do carro, fico apertado.
Nesse momento os olhos fundos do ladrão de sonhos brilharam e ele
arriscou alto:
-Tá desistindo dela? Podemos dar um jeito nisso aí. Mas vai ter
que me ouvir.
O taxista, que era ganancioso até os ossos abanou a cabeça e ouviu o
plano do vampiro.
De salto alto, saia curta jeans e bustiê, Natasha mora num
prédio invadido em Santa Efigênia. Ela como toda jovem, sonha em
ser famosa, além de ser fã da Luciana Gimenez. O que a faz mais
orgulhosa e a destaca das amigas é um book feito na Sonora, ter sido
musa do boteco do Caixote e amante de Adão, o que lhe rende algum
dinheiro.
Natasha estava muito feliz porque Adão a levaria à final do
concurso Comida de Buteco, na Casa do Conde. Ajuntou seu
dinheirinho e foi à Paraná comprar um vestidinho na Binoca. Mas
Natasha estava se cansando de Adão porque ele não se resolvia com a
ex-mulher e nem assumia Natasha definitivamente.
Já Morfino, sabia bem o que queria e como o conseguir.
Assim, sentindo o cheiro da cobiça no espírito do taxista, lhe oferece
seu opala Comodoro e uma suíte no JK de frente pra Raul Soares em
troca de uma noite de amor com a beldade. Adão aceitou sem
hesitação:
-Putaquiupariu, isso é muito mais do que consegui em 25 anos
de repartição e 15 de táxi.
Feitos os acertos, Morfino foi pra casa arquitetar o plano de ataque e
Adão entrou no táxi e foi pra Lagoinha tomar uma Original pra
comemorar o negócio da China.
Fim de semana seguinte se encontram na Casa do Conde num
festão com muitos convidados e show do Martinho da Vila. Morfino
se aproxima de Adão. Adão se afasta de Natasha e acerta os últimos
detalhes com o capiroto. Ela lindamente num coladinho de barras
plissadas aparece e se insinua para o servo de Satã. Adão sai de
fininho e vai pra mesa onde está servido o frango ao molho pardo.
Enquanto o garçom lhe oferece um chouriço à palito, Morfino trava
uma conversa sem conteúdo com a ninfeta. Natasha está apalermada
por aquele homem que ela não saberia definir como bonito ou
charmoso, mas que a amarrava com as cordas da simpatia.
- Lingüiça de boi com arroz branco, vinho chapinha ou sangue
de boi.
-Nada não, prefiro só uma cachacinha com chouriço. E você
Natasha o que prefere?
Morfino tentava ser boa-praça enquanto Natasha recusava a comida.
-Ô seu Morfino, que tal a gente dar uma andadinha por ai?
Aqui tá meio cheio né?
- Sem formalidades mocinha. Pode me chamar de Morfino.
Foram para o lado esquerdo do pátio onde havia galpões vazios e
algumas velhas peças de locomotiva.
De dentro do galpão ouvem a música vindo de fora e o
Esquerdo convida a moça pra dançar, beijando-a com volúpia.
Morfino é esperto, ele sabe que ela cairá no seu plano e tira uma
garrafinha com ungüento de dentro do paletó. Enquanto dançam ele
fala palavras indecifráveis no ouvido da moça. Bêbada, Natasha acha
graça e se deixa levar pelo príncipe da escuridão. Assim que abre a
garrafinha o demo esfrega o líquido nos cabelos da moça, que já está
se contorcendo de prazer. Natasha quer sexo, Morfino quer sonhar.
Usa uma navalhinha de inox pra raspar os cabelos dela e ela o lambe
no peito magro e incolor. O cinzento joga o resto do chouriço no chão
e põe os cabelos da morena dentro do prato e ateia fogo. Natasha
apresenta os seios redondos à mostra e rasga o vestido ao meio,
Morfino aspira a fumaça do prato e entra em transe, transando, nu.
Natasha passa a retorcer o corpo como se estivesse possuída e está.
Morfino se contorce de prazer e renovo. Natasha é rasgada por dentro
e por fora e os bicos dos seios se endurecem. Rebola e dá gritinhos de
dor. Após longos minutos de peleja o vampirão uiva orgásmico. A
moça enfraquece e cai como um lençol, desmaiada e pálida. Pobre
corpo de vestido preto. Morfino se sente renascido. Agora é alto, forte
e tem uma tez saudável e corada. O galpão fede a enxofre e fumaça.
Lá fora a festa rola sem parar e o antes magro morcegão vai
andando, ajeitando as calças com as mãos e toma um táxi pro
aeroporto. Dentro do galpão Natasha é apenas uma mistura de sexo e
pano preto rasgados. Está careca e desfalecida. Está morta.
A polícia chega com a sirene das veraneios zoando e com os
braços do lado de fora. Descendo das viaturas, abrem o galpão e
sentem o cheiro forte de coisa queimada. No Boletim de Ocorrência
Policial redigida pelo soldado Sanguinetti pode-se ler: “cadáver
encontrado inerte em decúbito ventral, causa mortis desconhecida.
Acusado foragido do local, modus operandi também desconhecido.
Ausência de sangue no local e no corpo da vítima”.
Segunda feira de manhã, em uma kitchenete no edifício JK
Adão se diverte lendo no Diário da Tarde as notícias do seu Leão do
Bonfim e tomando uma cerveja gelada. No Rio, numa clínica em
Santa Teresa, um paciente alto e com cara de polaco está sentado em
uma máquina de hemodiálise e lê no jornal a notícia sobre um
assassinato em Belo Horizonte.
-Como se sente senhor?
A enfermeira não sabe, mas, para ele a hemodiálise é apenas um ritual.
Em sua cadeira o polaco relaxa:
-Não quero a cura, só quero trocar de alucinações.
X imagem de Y ou deslocamento ou a degola
Estou um ser periférico, deslocado do mundo real e sinto-me
perdido num labirinto cretino. Minha vida é um caleidoscópio mas
sobrevivo de desbotadas lembranças. Minha mente é seccionada em
duas e tenho dificuldade em me entender. Criei uma sub-língua mental
para me comunicar com um Eu que eu mesmo descobri. Esse eu é meu
amigo e meu inimigo, eu o amo e o odeio. Somos dois e somos um,
Abel e Caim, bem e mal, sim e não. Gêmeos da mesma placenta,
quase siameses. Se um lado meu é superficial, o outro é profundo,
visceral e sobrevive à minha revelia.
Há poucas pessoas com quem mantenho contato. Durkheim,
Freud, Borges e Eu. Sei ler em vários idiomas, mas o alemão revolve
minha alma. Meu único hábito é a leitura, às vezes me entrego à
contemplação. O meu outro ser, aquele que está em meu corpo, é
amante da música. Meu mundo se resume a um quarto e sala, um
banheiro, uma pequena biblioteca e um jardim nos fundos da casa.
Morei em vários lugares, mas meu canto preferido é Intuí. Meu
habitante, vou chamá-lo X, perdeu a capacidade de falar, mas se
comunica comigo no inconsciente. Tem um gato, um canário e já
morou em Barbacena.
Quando deixei minha casa e fui morar comigo mesmo, minha
mãe cuidava de um fantoche que pensava ser um filho. Meu pai a
trocou por meu tio, depois se suicidou. Das lembranças que minha
mãe me deixou, a que mais aprecio é a gaiola onde guardo minhas
fotos. Passo horas observando-as. Por vezes me surpreendi em
monólogo regurgitando poemas de Pessoa que nunca li, mas sei que
são dele. X acha que sofro de esquizofrenia, mas ele é egocêntrico
demais pra conhecer minhas verdades. A biblioteca é meu Éden e
passo horas cheirando meus livros. X acha isso repugnante, prefere se
deitar na rede que habita o jardim e ouvir Bach. X ainda insinua que
sou um relapso, um degenerado. Ele, que em outra vida foi um
caçador, é discípulo de Baco e ama as mulheres. X é impulsivo, diz
que tem ânsia de viver, mas é egoísta. Ás vezes, simplesmente ignora
minha presença e passa horas inerte, absorto. Eu não sou impulsivo,
mas tento estar racional. Demoro dias para tomar uma decisão. Com o
passar dos anos, X tornou-se indecifrável. Passa muito tempo
narrando mentalmente caçadas que fizera no passado. Isso me assusta.
Acho que ele era tão violento quanto um gladiador. Cismo até que
gostava de ver sangue.
Temos dois quadros em casa. O grito e A persistência da
memória. Amamos esses quadros e embora tenham características
estilísticas bem diferentes, descobrimos que ambos sintomaticamente
nos representam. Há vezes em que X quer se livrar de mim e evoca
Münch olhando o quadro. Ele acha que há algo querendo sair daquela
figura retorcida. Metáfora. Algo que quer se libertar. X já tentou o
suicídio, mas eu impedi. Não posso permitir que se vá. Somos co-
existentes. X é carne da minha carne. Somos areia e deserto.
Recipiente e conteúdo, cada um a seu tempo.
Um dia, ao me barbear em frente ao espelho, notei que X
estava estranho. Eu molhava o rosto e X afiava a navalha. Era sempre
assim. Barbear era um ritual no qual cada um de nós tinha uma função,
como um ato comunitário. Ouvíamos o epílogo das valsas nobres e
sentimentais de Ravel e X tremia muito, parecendo nervoso. Súbita e
determinadamente, X tomou a navalha na mão direita, levantou meu
rosto com a mão esquerda e se degolou num único golpe.
Encontro marcado
(livremente inspirado no poema Anônimo de Ana Cristina César)
Desceu rápido a Tupinambás e tomou a Bahia sem nem olhar
pra trás. Estava decidida. Iria ver um filme, qualquer que fosse.
Precisava mesmo era espairecer. A briga fora muito séria. Porque ele
tinha feito aquilo? Ela o queria como homem, ele a queria como
amante. Mas brigaram, brigaram feio no Parque Municipal. Ela se
sentiu só e desesperada saiu correndo deixando-o no parque. Ela
andava a toa e queria ver um filme. Ela era assim, amava cinema
embora não soubesse nada além das estórias por trás da tela. Gostava
mesmo era de um prazer momentâneo.
- Onde tem um cinema por aqui? Perguntou a um transeunte
que distribuía santinho do Valdivino do bordéu.O homem apontou em
uma direção desconfiado. Ela entrou pelo corredor rápida e ofegante.
Passou em frente a escritórios de contabilidade e a um cartório. Viu o
cinema e sem nem mesmo perguntar o nome do filme comprou um
ingresso do velho que estava à portaria.
Entrou e assentou-se numa das ultimas fileiras. O filme já tinha
começado. Um homem estava sentado na outra ponta da fileira.
Não via o filme, pois estava vazia de si mesma, mas sabia que
era de má qualidade. – Que me importa qualidade se a solidão me
consome? Indagou a si mesma. Qualquer filme servia.
Atentou-se ao filme no momento em que ouviu um casal à sua
frente gemer. Nem se importavam com as outras pessoas. Enquanto se
consumiam no chupa e lambe, Cicciolina se contorcia de prazer com
Rocco. O telefone vermelho. Era esse o nome do filme. Não deu
importância ao fato, mas notou que chorava. O homem na sua fileira
parecendo pressentir isso, se aproximou. Ela sentindo, permitiu e ele a
abraçou carinhosamente. Ela retribuiu como se precisasse proteção.
Ela sabia que o filme não importava, e se amanteigava nos braços dele.
Ela sentia que o cinema cheirava a desinfetante barato. Teve náusea.
Ela chora mais ainda e ele a aperta junto dele. Ela aceita reconhecendo
o perfume dele e se acariciam por longos minutos. (...)
O desejo escorre pra fora dela. Estão arfantes e suados quando
os créditos sobem na telona enquanto ela se sente mais mulher, mais
confiante.
Levantam-se e saem do cinema abraçados e calados. Junto
deles saem outras pessoas que não se conhecem na penumbra. Velhos,
noivos, negros, albinos, açougueiros e gordos. Trombadinhas e
morféticos. Todos viram o mesmo filme. Todos pulsando de desejo.
Ao chegar fora do cinema vê pela primeira vez o rosto do homem. Era
ele. Ele mesmo. O amante do parque.
Sorriem e ela diz enquanto caminham:
-Essa cidade é mesmo muito movimentada.
Atrás deles, em azul e vermelho brilha a placa do Cine Regina.
Eu quero encontrar um amor
“Somos feito da mesma matéria que os sonhos”
William Shakespeare
Quero ler um livro, apenas mais um. Aquele que me indique o
caminho para encontrar um grande amor. Não precisa ser desses
amores de novela, nem daqueles para a vida toda, mas precisa ser
amor. Através de várias viagens, sou um cidadão do mundo mas
desconheço o amor. Tenho dividido os últimos anos de minha vida
entre os discos de bolero, meus livros e um grande sonho. Nunca
encontrei um grande amor. Sempre fui rodeado por sentimentos
passageiros, nunca amor. Quero mesmo é viver nos poemas de
Vinícius, porque acredito que lá o amor é um sentimento concreto,
embora isso possa parecer paradoxal. Quero amar.
Queria um amor denso, que durasse míseros 5 minutos, mas
que enquanto durasse fosse realmente amor. Alguém para se importar,
brigar, concordar e discordar, elogiar e criticar. Quero um amor
simples como um algodão doce, porque viver já é muito complicado.
Que meu amor não se importe se eu usar aquela camiseta amarelinha a
semana toda. Que meu amor goste de planta, arte, bicho, de cinema e
de conversar sobre tudo, mas que, sobretudo, me perceba quando eu falar
sobre nada. Que esse amor me dê carinho e respeito e que faça sexo num ato
de amor. Que meu amor seja amigo e que fale de política e me explique
quem é Deus, mesmo se não O conhecer. Quero um amor capaz de tornar
semântica a palavra família. Para ser meu amor não precisa ter dinheiro,
nem fama ou corpo de modelo. A idade não importa, basta me dar amor.
Que me faça sentir o coração como se sente um calo ou um espinho na
carne. Que me faça também ter certeza de que está ali, não precisa me
entender, mas que eu saiba que me ouve, pois sei que sou mesmo
complicado. Que meu amor me ligue num domingo de manhã sem razão.
Que nesse telefonema não se importe se eu não disser nada, mas que me
sinta. Quero um amor sem vergonha, sem timidez. Não precisa ter soluções
desde que me ajude a sobreviver aos problemas. Quero um amor pra andar
de mãos dadas pela rua, pela Bahia, que me faça descer pra floresta com
desejo. Que meu amor seja suave e selvagem, paradoxal, mas nunca prolixo.
Que não me sufoque nem me entristeça, mas que me faça sentir homem,
antes do fim do meu ciclo. Quero um amor romântico, shakespereano, um
amor Ágape, Eros. Quero um amor Amor.
Quero um amor, mas que meu amor não seja efêmero, afinal,
não se pode amar com pressa.
Instinto cibernético
“Porque, cientificamente não existem sentimentos”
Aquilo não nascera, passara a existir Era fruto de tecnologia de
ponta e fora criado por um grupo de estudantes e profissionais
fissurados por ficção científica e robótica.A princípio, era apenas uma
série de implantes corporais instalados no corpo de um gato em coma.
Depois, circuitos eletrônicos foram gerados para serem integrados a
sistemas inteligentes que formavam órgãos artificiais, funcionais. O
gato sofrera cirurgias plásticas, e através da infusão de drogas e de
mudança genética, a turma do GENEthicat pôde criar uma interface
cerebral e por conseqüência, uma inteligência artificial que era que um
complexo sistema neural fecundado por um chip de computador. Com
os recursos da robótica deram movimento ao ser híbrido e com ajuda
de computação gráfica simularam mundos virtuais que foram
mecanicamente instalados no cérebro-processador do animal. A
nanotecnologia ajudou na fusão das ligações eletrônicas com as
terminações nervosas graças à células-tronco modificadas. Neurônios
foram substituídos por microchips e glândulas por circuitos integrados.
Após três anos de noites mal dormidas, experimentos diversos e muita
dedicação, o embrião do projeto estava finalmente pronto. O gato já
podia andar e emitir sons. Tudo ainda muito mecânico e artificial. Mas
ainda havia um problema, a pele e a carne do animal apodreciam com
muita facilidade. Decidiram então trocar a pele por tecido e a carne
por estopa, mas ambos entravam em combustão após alguns minutos
de testes. Cádmio testou e sugeriu o uso de kevlar para substituir a
pele e de silicone pastoso em lugar da estopa. A partir daí, os
movimentos do bicho tornaram-se mais objetivos e suaves, menos
mecânicos. Aos poucos os cientistas iam aperfeiçoando o projeto de
tal forma que em pouco tempo teriam um robô tão perfeito quanto um
gato real.
Enquanto amantes da tecnologia, aqueles amigos buscavam
nos estudos meios para aperfeiçoar o robô. Cádmio, Nickel, Mercon,
Plânquio, Cúrio e Berílio se encontravam ás sextas-feiras e durante a
semana se dedicavam aos experimentos. Encontraram-se pela primeira
vez há três anos após contatos por e-mail através de um site que citava
Asimov e Hawking. Influenciados pelas idéias cyberpunks, os amigos
achavam mesmo que seria possível aproveitar o conhecimento
tecnológico existente para criar um andróide bem próximo de um gato
natural. Nos encontros decidiram criar o grupo de pesquisa chamado
GENEthicat. Dividiram as áreas de pesquisa por área e assim cada um
poderia se dedicar a uma parte do projeto sem se responsabilizar por
tudo. A partir daí, Plânquio, estudante de medicina, ficou responsável
pela estética e parte biológica; Nickel, letras, responsável pela parte
neurolinguística e de seleção de conteúdo a ser implantado; Cádmio,
químico e professor, responsável pela definição e análise dos materiais
a serem usados; Mercon, engenheiro mecânico e professor de
matemática, cuidava da anatomia e da cinética do robô e Cúrio e
Berílio, que eram estudantes da computação, ajudavam com o
conhecimento em eletrônica, lógica e processamento de dados.
Cádmio era o mais velho. Formara-se há 15 anos e o projeto era seu
grande sonho. Casara-se e tinha em sua única filha, Olga, a inspiração
para trabalhar. Olga era pequenina, cinco anos se tanto. Seus cabelos
vermelhos contrastavam com a pele alva e sardenta. Adorava brincar
com Mícron, um gatinho preto, vira-latas que ganhara de um vizinho.
Cádmio anotava todos os detalhes da relação afetiva que Olga,
desenvolvia com o gatinho. Olga era muito calada, parecia guardar
segredos infantis. Cádmio ficava várias horas observando o
comportamento da menina.. Um dia, Olga brincando no laboratório da
GENEthicat, achou o gato do projeto e o fez beber leite. Colocando
um copo na boca do animal-robô, deixou leite derramar na boca do
bicho e no corpo do animal. Como o robô estava desligado e não
respondia aos estímulos e indagações da menina, ela o apertava contra
o peito e chorava diante da imobilidade mórbida do bicho. Desistiu de
brincar com o robô após alguns minutos. Dias mais tarde, ao entrar no
laboratório, Cádmio e os amigos descobriram o módulo jogado a um
canto totalmente molhado em leite e quebrado. Após alguns minutos
constataram que quase todos os chips estavam avariados e os circuitos
e articulações começavam a oxidar em função do contato com o
líquido. Esse episódio fez com que o grupo pensasse na própria
segurança e sigilo do projeto GENEthicat. Decidiram não trabalhar no
projeto pelos próximos meses, período este que dedicaram à pesquisas
e à experimentação de materiais. Mercon desenvolveu um sistema
mecânico de segurança que impedia a entrada de pessoas estranhas no
laboratório. Cúrio e Berílio configuraram a rede de computadores do
grupo de modo a evitar invasões de hackers. Agora tinham uma
Ethernet, ou seja, uma rede que não poderia ser acessada por pessoas
de fora da própria rede. Isso aumentou o grau de sigilo e segurança do
projeto. Decidiram também por não mais permitir a alunos e curiosos
visitar o laboratório.
Após reestruturar a criação do robô e longos meses de
pesquisa, finalmente chegaram a uma nova proposta para o projeto.
Novos materiais foram incorporados e novas idéias haviam surgido.
Reconstruiriam o gato, mas dessa vez ele teria inteligência autônoma e
seria tão real quanto possível. Mercon havia recriado a estrutura óssea
com cromo molibdênio, um metal ultra-resistente e muitas vezes mais
leve que o aço. A pele seria mesmo kevlar, porém um pouco mais fino
e o silicone pastoso foram substituídas por fibras de silicone estriado.
Para o cérebro, Cúrio e Berílio haviam redesenhado o
microprocessador e apenas esperavam de Nickel o tipo de conteúdo
que seria implantado. Plânquio havia descoberto um meio de clonar o
cérebro animal e com auxílio da eletrônica reproduzí-lo. Havia
também uma nova unidade de processamento que cuidava
essencialmente da parte cinética e que ocupava o lugar de coração. Na
parte final de montagem do animal-robô, puseram garras de titânio,
resistente à oxidação. Duas webcams substituíam os olhos e enviavam
imagens para o cérebro-processador que as interpretava em até 256
cores e calculava tudo em 3D, assim o robô teria noção de espaço.
Uma tinta impermeável fora usada para pintar a pele de kevlar em
preto e o gato ficou parecido com uma pantera. Nickel apresentou o
conteúdo a ser inserido na memória do animal. Havia informações
sobre movimentos, hábitos felinos e um banco de dados com
informações lingüísticas. Foi incluído um sistema áudio-sensorial, que
permitia ao robô emitir sons e obedecer a comandos de voz. Havia
ainda uma seção que agrupava todas as anotações que Cádmio havia
feito baseado nas ações e reações do gatinho preto e de Olga. Tudo foi
inserido num micro-disco rígido acoplado ao cérebro-processador.
Agora tinham um robô ágil, com inteligência autônoma e rápida, mas
faltava a fonte de energia. No projeto anterior haviam usado pilhas
recarregáveis, mas a capacidade de sustentar a carga elétrica era
reduzida. Duas pequenas células fotoelétricas foram então instaladas
na parte superior da cabeça, atrás das orelhas. Este equipamento
absorvia energia solar e assim abastecia o bichano por até 3 dias. Este
sistema contava também com um dispositivo de economia de energia
que utilizava um capacitor e baterias que armazenava a carga
excedente produzida nas células fotoelétricas. Todo o corpo do robô
era revestido de material impermeável.
A primeira experiência foi com uma bola de borracha, que o
híbrido abraçava, corria atrás e fazia rolar. Depois colocaram o gato-
robô numa cama elástica. Um computador emitia ordens sonoras em
várias línguas e o robô obedecia e respondia com movimentos e sons.
O gato era capaz de identificar sons, imagens, pessoas e sua
inteligência artificial lhe permitia calcular movimentos e ter vontade
própria. Podia, por exemplo, andar em duas ou quatro patas, arrastar-
se ou deitar, de acordo com a necessidade. Era também capaz de
assimilar formas e tinha capacidade de análise do ambiente graças às
simulações geradas no cérebro-processador. O GENEthicat estava
quase aprovado, o projeto funcionava perfeitamente. Tudo estava
pronto e o teste final deveria ser com pessoas, afinal o gato é um
animal doméstico. Resolveram testar a docilidade do animal deixando-
o com Olga por uma semana, já que Mícron, o gatinho dela, havia
sumido. Queriam desenvolver as habilidades lúdicas e ativar uma
possibilidade de tornar o bicho menos máquina e mais animal.
Durante este período, Berílio e os outros pesquisadores observavam o
animal durante muitas horas e lançavam as notas num computador que
gerava gráficos e calculava resultados. Isso tudo formava um arquivo
que o grupo consultava para melhorar a performance do robô. A cada
dia o gato, chamado de Genésio, tinha suas habilidades apuradas e
surpreendia as pessoas com suas capacidades e suas ações. Genésio
possuía agilidade e rapidez incomuns e a memória do bicho era
impressionante. Olga adorava brincar de jogos de memória com
figuras coloridas com o gato, que sempre acertava onde estavam os
pares. Já Cádmio o fazia descobrir uma bola de meia escondida dentro
de um copo, que virado era embaralhado com outros quatro. O animal
era capaz de reconhecer textos de autores clássicos pela simples leitura
que Nickel fazia em voz alta. O gato confirmava o autor assentando-se
no nome correspondente escrito no chão. Além disso o gato parecia ter
gosto por autores específicos e, por exemplo, miava alto ao ouvir
textos de Poe e Baudelaire.
De acordo com autores cyberpunks, movimento cultural que
apresentou ao mundo a possibilidade dos andróides, os replicantes são
robôs feitos à semelhança do homem, graças à evolução das
descobertas na área da genética. Têm inteligência artificial
independente e são mais fortes e resistentes que os próprios criadores,
porém são frios e pragmáticos, incapazes de se deixar levar pelas
emoções. O problema é que alguns replicantes atingiam tal grau de
autonomia que se tornavam incontroláveis. Genésio era assim. Um
gato que não era gato. Um robô que era mais que um robô. Um
replicante. Por apenas alguns minutos Cádmio o deixou brincando
com Olga enquanto comemorava o sucesso do projeto inovador com
os amigos. A criatura híbrida era fria. Muito fria. A menina era
inocente. Pegou o pescoço do animal-robô com as mãozinhas e tentou
fazê-lo de boneca. Pôs um vestidinho no bichano e com uma tesoura
tentava cortar o rabo do bicho. O bichano não gostou. Pulou na mesa
de ferramentas e de lá se arremessou contra Olga com as unhas em
riste. Eram unhas fortes, afiadas como navalha. Matou a filha de
Cádmio sufocando a menina e cravando as garras no pescoço dela.
Ficou brincando com os cabelos de Olga como se fosse um novelo de
lã. A tecnologia havia criado tudo, mas Genésio, o gato que era
perfeito, não tinha alma.
Investigação sobre nomes próprios no português brasileiro
Nos longínquos anos de antigamente, vovó e suas comadres
costumavam batizar os filhos, com os nomes de santos contidos na
Folhinha Mariana. A criança era nomeada de acordo com o nome do
santo do dia. Daí vieram Cosme e Damião, Mateus e Marcos, Pedro e
Tiago (muito antes dos sertanejos) e surgiram verdadeiras pérolas
como as Ana Lúcias, os Antonio Sebastiões e a interminável série de
combinações possíveis e impossíveis para Maria, os infinitos Josés
(Disso e Daquilo), Joões e outros mais.
Apenas considerando os nomes dos santos e a maluca
criatividade matri-paterna, podemos apresentar vários nomes
engraçados, feios, bonitos, ridículos, insignificantes, curtos, longos,
malucos, comuns. Mas podemos também selecionar alguns dados que
podem ajudar a compreender um pouco mais dos nomes de pessoas
que conhecemos. Aposto que você conhece alguma Maria do
Rosário, Maria do Perpétuo Socorro, Maria da Anunciação, Maria da
Glória, Maria das Graças, Maria da Penha ou alguma maria assim
bem comum. Como era de se esperar, há também uma linha de nomes
próprios que combinam com determinados sobrenomes e destes não se
separam jamais. Por exemplo, eu garanto que nem todo Geraldo que
você conhece é Magela, mas quase todo Magela é Geraldo. Carlos
Alberto, Roberto Carlos, Pedro Paulo, Lúcio Mauro e assim vai
indefinidamente.
Existem ainda os nomes mistos: Mariângela, Analu, Luciana,
Anamaria, Claudianderson, Neivan. Mas o que o brasileiro gosta
mesmo é de misturar nomes importados com nomes mais comuns.
Alguns anos atrás, um jornal de grande circulação publicou uma nota
na seção policial onde se lia: “João Michael foi morto a facadas na
Rocinha”. Mas ainda há os casos de Marylin de Souza, Antonio Roger,
Juan Florisvaldo, John Rodrigues, Lorraine Michele, Uochinton
Almeida. Nota-se ainda que brasileiro tem também a mania de nomear
filhos homenageando personagens famosos: Romário de Oliveira,
Frank Benevides Sinatra, Tomas Jéferson Santos. Este ano constatei a
incrível aparição de um jogador do Guarani de Campinas por nome de
Creedence Clearwater e de outro no Vitória da Bahia chamado Alan
Delon, tudo isso além de um Cannigia, sendo este meu vizinho.
Certa vez, num programa de rádio aqui mesmo da capital, foi
aberto um espaço para que os ouvintes falassem a respeito dos nomes
próprios, e apareceram uns mais esdrúxulos e engraçados que já soube.
Os ouvintes disseram conhecer gente por nomes estranhos como, por
exemplo, Agesípolis, Vasco, Rudinan, Manfredso, Correlato,
Abrilina, Cheropita e até uma possível, mas inacreditável Urinícula.
Recentemente, um deputado apresentou um projeto de lei que
proíbe nome de pessoas em animais. Pobres crianças, que agora só
poderão chamar seus animais de Totó, Bilu ou Xerife, mesmo
adorando nomes como Sacha, Xuxa e Ronaldinho.
Conhecemos algumas pessoas com nomes diferentes, mas que
têm origem histórica assim como Athaíde, Austregésilo, Sócrates,
Dídimo. Conhecemos também pessoas que têm sobrenomes extensos
como Dom Pedro II, que tendo vários nomes, penso, nem ele próprio
era capaz de se lembrar. Para terminar vou falar a respeito da teoria
formulada por um amigo meu chamado Charly Darvin Oliveira :
“Toda a criança ao nascer deveria receber um apelido, ou na
pior das hipóteses um número e assim que ela chegasse a uma idade
em que pudesse responder por ela mesma, ela escolheria um nome de
acordo com sua própria vontade, afinal somos nós todos
desconhecidos como pessoas e conhecidos como números, vide CPF,
RG, cartão de crédito etc...”.
Para finalizar pergunto-me: por que será que meu amigo
Charly desenvolveu esta teoria? Ah, e se você estiver curioso para
saber meu nome, também tenho um nome importante. Eu sou Uéris
John, que vem do inglês.
James Choice
“Amanhã morrerei e quero aliviar minha alma(...)” Edgar Allan Poe1
James caminha até a barca que atravessa o Mississipi e vai até
o outro lado. Desce da barca, caminha uns quinze metros, pensativo, e
entra à esquerda numa ruazinha estreita. Pela sétima vez naquela
semana, vai ao pub inglês. Entra, vai ao balcão e pede uma dose de
Everclear. Bebe vagarosamente, enquanto observa um inglês com
camisa do Red Devils e um americano magrela jogando dardos. Fica
no balcão por uns minutos ainda, depois entra no banheiro. Assenta-se
no vaso, vê fotos de Diana e da Rainha coladas no teto e um poema de
Baudelaire colado atrás da porta. Jean ama Jane, Mary esteve aqui,
Yankees campeões, fora Bush, são alguns dos muitos rabiscos bêbados
nas paredes. Decide ir embora e volta para a balsa. Passa por outro
caminho, pela praça e entrando na Bourbon indo para a rua da casa de
Faukner, seu favorito. Olha para a casa do escritor em silêncio por
algum tempo. Tem a ligeira impressão de que está sendo seguido. Um
1 In O gato preto
dos escritos na parede do banheiro do bar permanece em sua mente.
Amanhã morrerei e quero aliviar minha alma. Poe era mesmo
instigante e obscuro.
Volta para a praça e segue em direção a um táxi parado. Decide
ir pra casa andando, mas o táxi parece atraí-lo. Caminha em direção ao
carro sentindo como se fosse induzido a fazê-lo. Entra, cumprimenta o
motorista e pede que o leve ao mercado francês. Por instantes tem a
impressão de que o taxista é seu conhecido. Após alguns minutos,
avista o French Quarter, desce do carro e caminha direto passando em
frente a Funeral Vodoo onde uma bandinha toca Jazz. Trôpego,
James vai até a estátua de mulher no fim do corredor e a beija, sem
saber porque faz isso. Sente o gosto frio de metal na boca, mas não se
importa. Volta ao táxi. O motorista no lado esquerdo do carro tenta
conversar. James se deixa levar pelo bate papo enquanto se esvai em
pensamentos.
Tudo estava acontecendo muito rápido. Casara-se no mês
anterior em Salém e em seguida foi com a mulher passar o Mardi Gras
em New Orleans. Ficara bêbado, abandonara a mulher num quarto do
Marriot´s e fora se divertir com mulheres numa boate. Separam-se
depois de apenas sete dias de casados, fora passar a vida a limpo no
maior cassino da cidade e, não se sabe se num lance de sorte, ou acaso,
ganhara um milhão de dólares. Desde então, aquela era sua rotina nos
últimos dois meses, beber e vagar pela cidade remoendo suas dores
pelos cabarés e shows baratos de jazz que sempre aconteciam pelas
ruas.
Solteiro repentinamente, James sofria de um mal terrível que
com a separação só piorou, não conseguia se decidir por nada e, agora
rico, corroia-se em dúvidas e não sabia o que fazer de seu próprio
futuro. Poderia sugerir uma reconciliação à mulher, ou ainda mudar-se
para outro estado. Sempre fora assim, sem capacidade de decisão, e se
casara devido à pressão das famílias e da noiva. Na separação brigara
com todos. Portanto, agora estava rico e sozinho.
- É mesmo difícil essa decisão. Caminhos tortuosos se
apresentam e as decisões, essas, nunca saberemos se foram acertadas.
Agora que é rico, não deve voltar para sua mulher.
- Ei, como você sabe sobre mim? Pergunta James ao soturno
taxista que parecia saber ler pensamentos.
-Prazer te conhecer também, sou Lucianno. Nessa profissão
sempre se sabe mais que as pessoas pensam. Já carreguei pessoas de
todos os graus de conhecimento, de toda sorte de pensamento, com
toda espécie de problemas. Nunca estudei, mas conheço como poucos
a mente humana e suas fraquezas.
-Mas, você me parece familiar. Por acaso, é de Salém2,
Massachussets?
- Minha casa é casa de muitos moradores. Moro no centro de
tudo e posso dizer que sou como um rei louco de um reino perdido.
Sem entender bem o que o taxista dizia e semibêbado, James ignora as
respostas e diz:
-Fiquei rico, mas sou um atolado em dúvidas. Minha vida é uma
incerteza só. Quando criança, eu gostava de ler, porque sempre encontrava
as respostas que precisava. Depois, na faculdade conheci Eve, e ela sempre
tomava as decisões por mim. Mas brigamos. Numa das minhas primeiras
decisões, fui ao cassino. Ganhei no jogo e perdi a mulher. Briguei com a
família e estou perdido numa cidade que conheço. Queria dar um fim a tudo
isso, mas não posso. Sou fraco e indeciso.
-As decisões dependem de você unicamente e para isso você recebeu
uma dádiva, o livre arbítrio.
-O que é o livre arbítrio quando não se sabe o que quer? Como posso
2 Salém, nos arredores de Boston, é conhecida como a cidade das bruxas.
viver se a cada momento tenho que fazer escolhas e tenho medo? Eve era
quem decidia por mim, além disso, deixo a vida ir acontecendo porque
acredito convictamente em destino.
-Destino, palavra doce como o mel, no entanto, dura como uma
pedra. Nem mesmo quem controla os desejos e sabe tomar decisões pode ter
certezas a respeito do destino. Veja meu caso. Eu era o filho preferido de
meu pai, o mais brilhante dos meus irmãos. Meu pai muito rico e rígido, não
aceitou minha desobediência. Foi errar uma vez e fui jogado no abismo.
Conto aos passageiros minha história e ouço seus problemas. Transporto
desejos que já foram meus. Levo pessoas e trago lembranças do passado que
decidiu meu destino. Mulheres são um perigo quando tomam decisões.
Através de uma o Mal entrou no mundo. Eve, nome oportuno.
Vagarosamente, pararam num semáforo na Jackson Square e havia
um grupo de pessoas num restaurante a comer Gambo3. James sentiu fome e
sem esperar respostas disparou perguntas ao estranho Lucianno:
-Então, já foi rico também? Fez a escolha errada? Por isso sofro,
sempre existe a possibilidade de estar cometendo um erro. Entre duas
opções, sempre pescoço cheio de beads. Uma mulher bêbada também cheia
3 Comida típica de New Orleans, cozido feito à base de camarão, vegetais, ervas e
pimenta.
de beads4 se arrasta pelo corredor a dizer impropérios. Em New
Orleans às 4 da manhã é assim, quem não está bêbado está indeciso.
4 Colar de contas plásticas usado por turistas no carnaval (Mardi Gras) de New
Orleans, na Louisiana, Estados Unidos.
Namoro virtual5
“Se um cara chamado portões ficou rico vendendo janelas que vivem
quebrando, acho que posso abrir minhas portas”6
Tudo aconteceu num cybercafé. Ela era teen e amava um chat.
Ele era hacker e estudava sistemas. Marcaram um encontro na Café
com Bytes, uma mistura de café, boate e ponto de encontro dos
usuários de computador. Ela foi de micro-saia, laptop vermelho e
sapatos salto alto. Ele foi de walk-machine, óculos escuros, aro de
tartaruga. Entrou, escaneou a área do bar e a localizou perto da
máquina de refrigerante. Se reconheceram pelas fotos que exibiam na
Internet. Cumprimentaram-se e ele viu que não precisava perguntar
como ela era. Instalaram-se numa giratória e pediram um suco natural.
Tudo cooperava para o encontro e o ambiente era compatível. Falaram
5 Conto escolhido para a prova de redação da Universidade Estadual de Maringá, PR
em 2005.6 Brincadeira com o nome de Bill Gates e Windows; Gates = portões e Windows =
janelas.
das imagens que criaram um do outro, do tempo e da nova
configuração política mundial depois da guerra, mas tudo soava muito
superficial. A verdade é que a conversa estava uma chatice. Nada a ver
com o Chat onde sempre tinham assunto.Olhavam-se envergonhados e
ficaram horas compartilhando o suco invisível que acabara há muito
tempo. Até que ele sugeriu um programa diferente e ela aceitou.
Foram para o reservado, no nível de cima do bar. Haviam pcs
conectados em cabines individuais e o som ambiente tocava “Nunca te
vi sempre te amei” da Broadband, o novo mp3 que era um record nos
sites de download.
Ele se assentou de frente pra um pc compaqto, enquanto ela
alisava os cabelos com um pentium de lítio. Ela ligou o laptop, ele já
estava on-line e conectaram-se. Virtualmente iniciaram o namoro
teclando elogios, depois ele a convidou para visitá-lo em casa. Ela
tinha duas opções; não e ficar no bar e sim, continuar. Preferiu a
segunda opção e foram para o endereço dele.
Era uma casa muito grande mobiliada com muitos arquivos e
algumas janelas sobrepostas, parecendo um office moderno. Na casa
havia um cômodo especial. Era uma área de trabalho pequena, mas
pintada em branco e azul tinha-se a impressão que era maior. Na sala
ele ligou o DVD e colocou um disco no dispositivo. Era o filme “ICQ
– Episodio I seek you”. Assentaram-se num banco de dados que ali
havia e assistiam ao filme trocando carícias. Minutos depois ele disse
que iria à despensa buscar algo para comer. Não achou o milho de
pipoca, embora soubesse que havia armazenado mais que o suficiente.
Optou por um chocolate em placas. Ela ainda estava sentada, mas não
parecia interessada no filme. Ele como que por efeito mágico tira do
bolso um anel de cristal liquido, que ela recebe estupefata enquanto
come o chocolate. Beijaram-se contidamente, mas ele sabia que as
mulheres têm os mesmos códigos, apenas a combinação poderia ser
diferente. Ela apertou a orelha dele e sussurrou algo sobre um local
mais à vontade. Ele como em automático a arrastou para outro
compartimento com um wallpaper amarelinho claro. Era seu gabinete.
Ele abriu uma pasta, tirou uma proteção antivírus e assoviou.
Carregando-a, deitou-a na rede acoplada no cômodo e retirou o
pesado boot que estava calçado. Amam-se virtualmente. No ápice da
conexão amorosa eles fazem leituras dos próprios pensamentos
através de um prolongado movimento de olho no olho. Amam-se
novamente e toda a interação é reiniciada. Todos os sentidos são
ativados pelo tato através das relações neurais. Isso traz às suas
memórias uma sensação nada virtual. A ação sexual é realizada pela
terceira vez, esta porém, numa webcama, que estava atrás de uma
pesada porta serial. Dormem.
Ele acorda preguiçosamente e num impulso analisa a cama à
procura dela. Não encontra e rastreia o quarto. Ela se foi. Tomou
algum caminho que ele não sabia qual. Escapou de sua rede enquanto
ele hibernava. Tudo que compartilharam estava no passado, mas não
seria esquecido como um papel na lixeira e nem ele queria deletar isso
da memória.Tinha perdido-a e teria que recuperá-la, mesmo sem saber
qual foi seu erro. Ainda sonolento ele maquina uma forma de
reconquistá-la. Talvez enviasse flores. Talvez a convidasse a ir ao
sitio, lá ele tinha uma torre onde poderiam simular Rapunzel. Talvez
se acendesse uma tela Jesus poderia salvar a relação. Adormeceu
novamente processando informações sobre como atraí-la.
No mundo virtual é assim, após cada encontro é preciso
reiniciar.
Nostalgia pueril ou fluxo e refluxo
“Because I am a dreamer, and I dream my life again, again, again
(...)”
Ozzy Osborne
Quando eu era criança eu sonhava. E sonhava muito e meus
sonhos tinham personagens lendários e mágicos. Cenas tão reais que
pareciam cenas vividas. Eu sonhava transcendental, mesmo sem saber
o que era isso. Sonhava natural, sonhava ficção e romance. Nos meus
sonhos havia sempre uma ponte que caía e uma situação de perigo.
Havia também uma vontade louca de chegar a algum lugar
desconhecido. Nos meus devaneios pueris eu voava sem ter asas e
quando alguém me perseguia, eu corria sem sair do lugar e escapava.
Às vezes, eu ficava confuso com um rio ou uma torneira que aparecia
e eu fazia xixi na cama. Sonhava que estava num balanço muito alto,
sem medo de cair, e o balançar era eterno, seguro. Sonhava com o
papai me levando pra tomar sorvetes e amanhecia com sede. Sonhava
com a professora de matemática e amanhecia molhado.
Nos meus sonhos eu tinha medo, no entanto era um medo
estimulante. Meus inimigos eram fortes, porém imaginários. Meus
medos eram ventos num milharal, sempre rápidos e passageiros. Eu
me assustava e corria e corria e vencia. Meus inimigos eram
continuamente derrotados. Sempre aparecia uma escada ou um
precipício e eu caia e não me machucava. Nos meus sonhos havia
abismos e cavalos. Sempre sonhei com cavalos. Quantas vezes
sonhava, acordava, e o sonho continuava como um filme com
intervalo comercial! Meus sonhos eram como labirintos e davam
voltas. Eram cíclicos, se na época eu soubesse o significado dessa
palavra. Meus sonhos eram tão imagéticos como a aquarela de
Toquinho e Vinícius.
Quando criança, assim que aprendi a escrever, costumava
anotar meus sonhos num caderninho que se perdeu no tempo. Hoje,
ainda escrevo, mas não anoto o que sonhei, escrevo ilusão, crio
fantasias. As que sonho, essas me fazem sofrer. Não tenho pretensão
alguma de ser reconhecido pelo que escrevo ou sei, todavia sou
assolado pelo que não sei. Sou um especialista em nada. Sei muito de
algo que é apenas um detalhe. O que escrevo nada tem de novo,
escrevo sobre a angústia humana sobre o futuro, sobre o devir, sobre o
há de ser. Muitas vezes eu tenho vontade de fazer coisas, mas, ou me
falta coragem, ou a profissão e a condição social me proíbem. Então
escrevo e quando escrevo, sou um super herói. Enfrento o mundo. Sou
invencível e, se este mundo não me basta, eu crio, sonho um outro.
Mas a verdade é que quando sou real, tenho um medo que não é mais
estimulante, desafiador como noutros tempos. É um medo real. É
Medo. Meu medo hoje é para além do aspecto onírico. É um dragão
que consome meus dias a partir de cada manhã. Meu lado imaginário é
hoje tomado por um Bucefálo negro e ameaçador que pisoteia minhas
esperanças e meus desejos. Não acredito que sonho, entretanto, sinto
que sofro. Sofro de um mal chamado fluxo de consciência. Sonhar é
sofrer dormindo, sofrer é sonhar acordado um sonho com um abismo
real e amedrontador. Não há mais o Gato que elucida o caminho no
labirinto que é meu pesadelo. Quem dá as cartas agora é um palhaço
com cara de ditador e que me assusta. Meus personagens da infância
são hoje meus vilões, cresceram comigo.
Quando era criança eu pensava que sonhar era viver uma outra
vida enquanto dormia. Hoje acredito que sonhar é como uma lei da
Física. Com ação e reação, fluxo e refluxo. O mundo real é o lado real.
O sonho é o lado avesso, upside down, e a loucura é um sonho vivido.
Sonhar é como viver em capítulos, uma estória que não tem fim e que
é contada por um narrador onipresente, onipotente. Nos meus sonhos,
vivo representando um papel que não é meu. Sou dirigido por um
diretor maluco que me faz interpretar uma estória dentro da estória,
dentro da estória, dentro da estória. Sou um ator-fantoche e o enredo
da minha vida é um fractal. Para mim, sonhar é sofrer aos
pedacinhos, fragmentando. Meu balançar ainda é eterno como nos
sonhos de criança, mas agora tenho medo de cair. Tenho saudades dos
meus sonhos infantis. Tenho lembranças das estórias ouvidas ao pé da
cama que embalavam meu sono e desenhavam na minha memória
desejos em forma de sonho. Meus sonhos hoje são pesadelos terríveis
como rabiscos malcriados e por isso, pelo menos mais uma vez,
gostaria de ouvir a mamãe dizendo:
-Passe a mão na cabeça, menino, que assim você esquece o
sonho.
Sobrevôo
A princípio pensou que estava perdido e se desesperou ao
imaginar a possibilidade de não se encontrar em meio ao
desconhecido, mas na situação em que estava não se importava nem
um pouco com convenções geográficas ou mesmo com o futuro. De
fato ele começou a notar que o lugar era estranho, porém muito bonito
e agradável. Então ele ia se movimentando como se voasse e notou
que embora não soubesse onde estava, passava por vários lugares
conhecidos. A paisagem era de uma beleza tão intensa e de uma
riqueza tão táctil que sua mente lhe permitia sensações prazerosas
como se ele fosse ter orgasmos visuais. O lugar era muito arejado,
soleado e verdejante com morros muito altos Todas as portas eram
azuis veludo e tinham uma maçaneta dourada. As casas eram
pequeninas e estavam á beira-rio e nas pequenas pontes que podia ver,
reconheceu imagens de animais tropicais esculpidos nos beirais. Uma
cobra, um tamanduá ou mesmo um passarinho verde naturais. Um rio
muito colorido sibilava entre as casinhas e fazia voltas molhadas pela
pequena cidade. O rio era furta-cor e era um riacho caudaloso, embora
pequeno e silencioso. Ás margens do riacho havia árvores de várias
formas e feitios e figueiras por toda parte. Havia também crianças que
jogavam futebol e amarelinha. Elas também eram pequenas, mas
pareciam tristes. Muitas crianças corriam e não havia nenhum carro
nas ruas que eram muito limpas. Ele olhou mais uma vez para as
casas e as crianças e reconheceu casas e amigos de infância. Amigos
inocentes, casas todas novinhas e limpas.
Foi chegando a um lugar que dentre todos os outros ele
desconhecia. Era um atalho cheio de mato a beira da estrada ladeada
ainda pelo rio. Era uma favela. Toda pintada em azul e amarelo e que
tinha nos gatos* sombras de passarinho, pura ironia da natureza. Mas
ele nunca tinha visto uma favela. Aquela visão o perturbou porque viu
casebres miseráveis habitados e viu pobreza e simplicidade conviver
com harmonia. Os primeiros habitantes eram magros, pequenos e
alegres. Caminhavam e falavam numa língua que ele não conhecia,
mas que, no entanto, compreendia. Á entrada do morro havia um
portal e um grande monumento provavelmente feito de entulho no
qual se destacava uma cobra com um nó próximo ao meio do corpo. O
corpo era furado por objeto por ele desconhecido.
De um lado um muro cheio de pichações artisticamente
coloridas e do outro uma escola amarela e com uma placa onde se lia:
“Escola da vila”. Nesse ponto ele pode descer ao solo e começou a se
ater ás coisas que os moradores falavam, mas eles pareciam não vê-lo.
Descobriu que aquelas pessoas eram favelados quanto à moradia,mas
não quanto à atitude.Eram muito inteligentes e havia na escola um
grupo de senhoras que eram encarregadas de guardar as memórias e
estórias populares em livros. Descobriu ainda que o conhecimento do
povo era muito evoluído. As pessoas velhas eram jovens e os jovens
eram conscientes. Falavam de política e de evolução das espécies entre
as refeições e ele que nem mesmo sabia o que era fidelidade
partidária...
Caminhou por uma rua larga ao lado da escola e viu barracas e
vendas que vendiam doces, manguezada e dondó. As vendedoras
mascavam fumo e cuspiam no chão. Aquilo era para branquear os
dentes. Notou que os pobres favelados não eram tristes e sempre
estavam sorridentes e contando estórias.
Do alto da favela viu a parte da cidade que já tinha passado e
percebeu que era um lugar muito diferente se visto do morro. As casas
não eram tão pequenas e as árvores não eram tão bonitas mais. As
belezas que antes eram tão fascinantes agora eram encobertas pela
distância, as crianças que corriam não mais sorriam, não se podia vê-
las. As portas azuis eram de longe negras e estavam todas fechadas. O
que era verde parecia cinza e o rio corria em direção oposta.
O morro, a favela, a encosta, a vila era outro mundo, outra realidade.
Era artisticamente construída por arquitetos e engenheiros sem
diploma e analfabetos. Os carros, ah eles não tinham carros, tinham
bicicletas, tinham rádio comunitária que levava e trazia noticias do
outro mundo. As crianças corriam peladas, porém vestidas de
felicidade. Subiu então aos ares e lá de cima viu o mundo, viu a cidade
e a favela, viu o rio e o morro. Só então entendeu o que era até aquele
momento obscuro. O morro era um país diferente, uma outra
dimensão de felicidade.
*Gato: nome dado ao emaranhado de fios que roubam
eletricidade dos postes nas favelas.
Tecnostalgia ou notícias do mundo de lá
Belo Horizonte, 12 de abril de 2006
À alguém, à algum, ao século passado
“Caríssimos amigos os, fatos que vou narrar compreendem minha
rotina diária e a saudade que sinto dos anos dourados, da infância
alegre e do mundo menos tecnológico . “
“Assento-me numa cadeira de frente a um laptop e não há mais
escrivaninha, caneta ou bloquinho de anotações. Esqueçam os cadernos de
caligrafia, agora tenho um editor de textos que tem sempre a mesma letra,
porque a moda agora é ser virtual. Um mundo evoluído em que a
inteligência biológica se confunde com a artificial, o proibido com o
permitido, a ética com a estética. O mundo se rendeu à cibernética. O
processo de criação se distanciou do Criador. Qualquer um pode ser
dadaísta. É tudo um jogo de dados. A inspiração já não vem dos Céus, vem
do Acaso. As musas do Olimpo foram globalizadas e agora tem
sobrenome ponto com. Temos sites, programas, plágio e dicionário
eletrônico. As bibliotecas agora são virtuais, mas seus livros não têm
cheiro. O bit é inodoro, insalubre. O Joyce e o Pessoa, as tragédias e as
comédias que outro dia impressionavam nas estantes, hoje cabem
todos num disquinho de plástico. Plástico também não tem gosto. A
evolução é pertinente, o que incomoda é a impessoalidade. Não há
mais tantos saraus literários, criaram os blogs. Para que ler se a Rede
me dá tudo resumido? Enciclopédia para que? Como no sexo, só
preciso de uma conexão. E a conexão também oferece prazer. Porque
o apelo sexual agora é mais visual, voyer. Uma imagem vale mais que
mil carinhos. O telegrama agora pesa mais de uma tonelada, é mais
leve mandar um e-mail. Precisamos nos atualizar porque as janelas
foram lançadas em nova versão e esta não é mais compatível com
serenatas! A reciclagem agora é também de conhecimento e o bit matou a
letra cursiva. As teclas tomaram o lugar que sempre foi das canetas, do lápis.
Tudo é digital, inclusive as digitais, livro, foto, diário, música e saudade.
Todo mundo tem um fotolog e posso fazer e selecionar os membros da
minha própria comunidade. Até Da Vinci virou código. Entretanto, o
conhecimento é nulo se não há inspiração. Rendi-me e transformei a letra
em bit e à luz da literatura crio um hipertexto, não uso mais caneta e
papel. Não saberia dizer se as relações pessoais evoluíram ou
involuíram. O que sei é escrevi meu último texto num plano curvo de
modelo variável dentro de um livro de luz! Encontro a solução táctil
quando digito uma palavra que já não é mais palavra, é comando.
Aperto teclas e mordo o lábio porque a caneta é inútil. Minha opinião nem
é tão importante porque minha pátria é minha Rede, e essa Rede é minha
Língua. Meu cérebro agora é um periférico (hardware) ! Minha memória é
fruto de uma compilação de dados extraídos de vários sites. Antes eu sabia
falar, hoje minha voz são meus dedos e minhas palavras são Words. Tenho
convulsões e minha mente medula pelo lóbulo da minha orelha. Sou uma
antena móvel acessível ao mundo digital. Download, upload. Envio, recebo.
Se fujo disso, fico marginal. Minha letra é um signo, um símbolo
matemático. Lançaram mais um jogo, eletrônico, porque pôquer é
coisa do passado, futebol com os amigos só se for online! Não moro
mais. Agora me hospedo em um provedor. Na minha antiga casa havia
uma sala que se cansou de estar, queria ser, e hoje é sala de bate papo.
Talvez esteja me tornando um homem-máquina alienado por um
Sistema que não aceita aquele menino do interior. Mas apesar disso
ainda sou capaz de chorar porque lágrima é água em estado
sentimental (dígito não pode molhar). Se escrever ainda é arte, a
minha escrita é uma oração pela volta ao paraíso.”
Flávio Martins da Silva, também conhecido como Nickel nasceu em
João Monlevade e desde muito cedo escreve contos e poemas. Desde
2003 é licenciado em Letras/ Inglês pela UFMG e publica seus contos
e poemas em sites literários do Brasil e Portugal. Desde 2000 é
professor de Língua Inglesa, trabalhando em várias escolas, dentre as
quais o Centro de Extensão da Faculdade de Letras da UFMG, o
Centro Acadêmico de Ciências Sociais da FAFICH - UFMG e a
Prefeitura de Contagem.
Impresso por conta própria. Se você quiser contactar o autor, não
hesite:
2007