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Contribuição para o Estudo da Questão Agrária Álvaro Cunhal Transcrição autorizada Introdução 1. Exploração capitalista que se agrava Ao estudar a questão agrária em Portugal, numa época em que o fundamental dos dados estatísticos então existentes eram os do Inquérito Agrícola de 1952-1954, do Censo da População de 1950 e de outros censos e estatísticas anteriores, Álvaro Cunhal procedeu a uma muito vasta e aprofundada caracterização e demonstração das leis do desenvolvimento capitalista na sociedade rural portuguesa. Demonstrou também com abundância de números e de fundamentos teóricos os níveis de expansão capitalista já atingidos, diferenciando-os pelas várias regiões, tal como resulta aliás da lei do desenvolvimento desigual dos espaços económico- sociais. E enunciou ainda as linhas previsíveis da sua evolução futura, já então em fase de intensa progressão. Na revisão do texto a que pôde proceder em meados da década de 60, mas em termos só muito abreviados, Álvaro Cunhal acrescentou alguns elementos mais recentes, os quais certificavam que as direcções essenciais da evolução capitalista não só se mantinham como se estavam a acentuar.

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Contribuição para o Estudo da Questão Agrária

Álvaro CunhalTranscrição autorizada

Introdução

1. Exploração capitalista que se agrava

Ao estudar a questão agrária em Portugal, numa época em que o fundamental dos dados estatísticos então existentes eram os do Inquérito Agrícola de 1952-1954, do Censo da População de 1950 e de outros censos e estatísticas anteriores, Álvaro Cunhal procedeu a uma muito vasta e aprofundada caracterização e demonstração das leis do desenvolvimento capitalista na sociedade rural portuguesa. Demonstrou também com abundância de números e de fundamentos teóricos os níveis de expansão capitalista já atingidos, diferenciando-os pelas várias regiões, tal como resulta aliás da lei do desenvolvimento desigual dos espaços económico-sociais. E enunciou ainda as linhas previsíveis da sua evolução futura, já então em fase de intensa progressão.

Na revisão do texto a que pôde proceder em meados da década de 60, mas em termos só muito abreviados, Álvaro Cunhal acrescentou alguns elementos mais recentes, os quais certificavam que as direcções essenciais da evolução capitalista não só se mantinham como se estavam a acentuar.

Actualmente existe uma maior e mais recente massa de dados, se bem que por vezes um tanto defeituosos e ainda aguardando um mais profundo tratamento. Com eles poderá verificar-se o extraordinário acento e penetração que tiveram as formas capitalistas de exploração na sociedade rural portuguesa durante os últimos vinte anos da época fascista, ou seja, até ao movimento revolucionário de 25 de Abril de 1974 e, em certos aspectos, também nos anos posteriores.

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A análise do processo capitalista, segundo o método marxista, não se cinge a verificar se na sociedade capitalista em expansão o processo económico é retardado (e se inclusive retrocede) ou se, ao contrário, é impulsionado e em que medida.

Em qualquer caso, haja zonas de atraso económico ou existam áreas de progresso económico, as teses marxistas demonstram que esses atrasos e esses progressos beneficiam sempre e somente as classes burguesas exploradoras; e que prejudicam sempre e sempre mais as classes trabalhadoras. Assim sucede por força da acção das leis da exploração do homem pelo homem características da sociedade capitalista.

Por isso, no estudo da evolução do capitalismo na agricultura portuguesa não basta considerar apenas nem principalmente os indicadores do estado e da evolução das forças produtivas. É necessário considerar sobretudo os indicadores que põem a descoberto as relações de produção capitalistas, ou seja, as estruturas económicas e sociais pelas quais se exercem as múltiplas formas de opressão e exploração capitalista sobre as classes trabalhadoras da terra.

Não é possível, nem, é necessário, numa simples introdução a um já muito aprofundado texto de análise sobre a questão agrária em Portugal, retomar todas as suas sistemáticas linhas de observação e procurar dar-lhes as referências numéricas mais recentes. Essa poderá ser e urge que seja a tarefa de quem possa e saiba tomar o valioso testemunho adiantado por Álvaro Cunhal e apreender os métodos e as conclusões que permitirão seguramente projectar este livro numa série de outros, que proporcionem um bom uso, e em tempo mais oportuno, dos indicadores de situação à medida que vão sendo obtidos.

Nesta mera Introdução irá pôr-se em foco apenas alguns desses indicadores, que bastem à verificação de que as conclusões tiradas por Álvaro Cunhal neste livro, escrito quase todo na década de 50 e só agora editado em Portugal, vieram a ganhar mais importância e actualidade com o extraordinário agravamento das condições da exploração capitalista em Portugal nos últimos vinte anos.

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A partir do princípio de 1950 regista-se uma certa intensificação do ritmo de entrada em uso de tractores e outro equipamento mecânico na Agricultura.

Continuam a ser muito deficientes as estatísticas a este respeito, mas em termos de grandeza genérica haverá suficiente aproximação se se disser que, em 1950, se andava na ordem dos 2000 tractores apenas para todo o País, porém concentrados sobretudo nas grandes propriedades do Sul. De ano para ano, o número de tractores foi subindo gradualmente, admitindo-se que se estivesse na ordem dos 40.000 em 1975, o que não é muito e tem várias agravantes, entre as quais se contam, além do alto custo de materiais e serviços de assistência, avultadas taxas de modelos antigos, de material demasiado gasto e em muito má situação quanto a recolha, conservação, manutenção e reparações.

No que toca a ceifeiras-debulhadoras, estava-se na ordem das 20 em 1950, chegando-se progressivamente a cerca de 4.000 em 1975, com problemas idênticos aos da generalidade do equipamento mecânico.

O Inquérito às Explorações Agrícolas do Continente de 1968 veio realçar um tanto o atraso ainda existente na motorização dos trabalhos agrícolas. Para não alongar, colhem-se apenas duas breves imagens: 40 % das 313.775 explorações mais pequenas, as de menos de 1 ha., e 18,5 % das 313.855 que se situavam no escalão 1 ha. a 4 ha. não dispunham de outro recurso senão a força humana de trabalho: e isto representa cavar a terra a pulso; puxar o arado aos ombros, por falta de um mínimo de posses para comprar e sustentar não já um tractor ou um moto-cultivador, mas uma só vaca ou uma muar; puxar também a nora ou a picota a pulso ou a pé, por total carência de meios para adquirir um pequeno motor.

Enquanto recusavam ajuda aos pequenos agricultores para se equiparem, os senhores do Estado fascista concediam por ano aos grandes agrários centenas de milhares de contos em subsídios para compra de grandes máquinas e bónus no preço do gasóleo.

Pelos elementos do Inquérito Agrícola de 1968 vê-se que era nas maiores explorações que se concentrava mais e melhor equipamento, e é esta circunstância que favorece

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grandemente a redução dos custos de produção na grande empresa e o processo de ruína e expropriação das mais pequenas explorações pelos grandes agrários e financeiros.

Ainda no capítulo da energia, o Inquérito de 1968 revela atrasos enormes na utilização de electricidade, em especial como força motriz, mas até simplesmente para iluminação: das 811.656 explorações recenseadas, apenas 98.161, ou seja 12,2 %, declararam utilizar energia eléctrica!

Claro que a situação era ainda pior em 1950, mas ainda hoje os confrontos que se façam com os países europeus em matéria de equipamento mecânico e uso de electricidade, dois dos meios de produção de maior capacidade de impulso no processo económico, deixam-nos no fundo de todas as escalas do desenvolvimento.

O mesmo poderá ser observado, até certo ponto, pelo Inquérito de 1968, no que respeita a outro equipamento das explorações: pequenas e grandes obras de represamento ou captação de águas; aposentos para animais; oficinas mecânicas; adegas, lagares, moagens, queijarias e outras oficinas tecnológicas; armazéns para máquinas e produtos; silos, nitreiras, etc.

Nalguns casos, instalações destas foram abandonadas e estão em ruínas nas quintas e herdades pela concorrência mortal e concentração capitalista em complexos industriais de vinhos, moagens, lacticínios, salsicharia, etc.

Na generalidade dos casos é a persistente falta de iniciativa dos agrários que deixa as águas perderem-se quando chove e faltarem no resto do ano; que mantém ao relento, sem qualquer coberto, grande parte das máquinas e dos gados; que não aproveita os subprodutos da exploração para rações nem faz forragens cultivadas, nem usa o sistema dos silos; que abandona as poucas nitreiras e os sistemas de estrumação, criando desequilíbrios graves com adubação mineral estreme.

De todo o modo, eram ainda as explorações de maior escalão que concentravam a maior massa de instalações destas: nos perímetros de rega, realizados sobretudo com dinheiros do Estado, nas oficinas e armazéns vários, nas

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instalações pecuárias, nas instalações fabris e outras, também em grande parte subsidiadas com dinheiros públicos.

O progresso técnico capitalista é, aliás, especialmente notável no sector industrial adjacente ao sector agrário: ou seja, as riquíssimas fontes de lucro que são as indústrias de produtos originários da Agricultura ou que a ela se destinam. Nos últimos vinte anos do fascismo criaram-se algumas desenvolvidas fábricas de vinhos e derivados, cervejas e refrigerantes, de azeite, de moagem, descasque de arroz, conservas de tomate e carnes, lacticínios, cortiça, celulose, etc. Do mesmo modo progrediu mais a fabricação de adubos e rações, de certos tipos de máquinas agrícolas, de materiais de construção, etc.

A título de exemplo refere-se que a produção de alimentos preparados para animais cresceu na média continental, de modo progressivo, de 181.394 contos em 1960 para 2.328.600 contos em 1969, a preços correntes. Mas deve sublinhar-se que para essas fabricações há recurso sistemático a milho, soja e outros produtos americanos e de outros países estrangeiros, quando essas dispendiosas importações podem ser substituídas pelo acréscimo das produções nacionais e desde logo pelo cessar do criminoso desperdício de grandes massas de matérias-primas portuguesas: subprodutos do descaque de arroz e das indústrias de carnes, conservas, óleos, etc.

Menciona-se também o desenvolvimento da fabricação de adubos, que de 1960 para 1969 passou dos 790.949 contos para 2.647.859 contos, por avanços anuais sucessivos, em valores globais do Continente, a preços correntes.

O progresso principal consistiu em fabricar mais cá do que importar, com vantagens sobretudo para os fabricantes capitalistas, pois que os consumos de adubos em Portugal persistem em muito baixo nível na relação com as escalas dos países europeus: 30 kg/ha. de superfície agrícola útil, em 1963-1964, contra 255,6 kg/ha. na Bélgica, 242 kg/ha. na Holanda e assim por diante.

De assinalar que às adubações químicas se acrescentam, em países mais desenvolvidos, fortes incorporações de matéria orgânica, largo uso de rotações com culturas

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melhoradoras e outras técnicas modernas que ainda mais nos têm feito atrasar nos índices de produtividade.

Como se pode comprovar, esses progressos não nos fizeram recuperar os grandes atrasos em que estávamos e estamos na escala europeia e não se realizaram em benefício das classes populares: processaram-se com escandalosas protecções, ajudas e lucros somente em proveito de uma minoria cada vez mais reduzida, sobre a ruína de milhares de pequenos e médios agricultores, comerciantes e industriais e uma crescente exploração dos trabalhadores.

Continuando a pôr em foco mais directamente as condições de produção agrária, convirá ainda notar certas outras evoluções, pela sua importância.

Os planos de florestação do País persistem gravemente atrasados, deixando centenas de milhares de hectares de regiões serranas ano após ano sujeitos a intensa erosão e o clima geral do País afectado por novas degradações, além de que essas centenas de milhares de hectares de terras abandonadas, sem floresta, sem pastos, sem nada, continuam a nada ou pouco produzir, tendo impelido à própria fuga das populações.

De resto, a este respeito de abandono de terras, os últimos anos do fascismo trouxeram um notável retrocesso, com entrega até de boas terras de trigo a coutadas de caça e extensas terras de várzea a gado bravo, a floresta de choupos e eucaliptos, quando não a juncais ou canaviais espontâneos.

Não se irá efectuar aqui um circunstanciado confronto de números que dessem medidas de avanço ou recuo nas produções globais e por hectare no trigo, na cevada e noutros cereais, nas oleaginosas, frutas, legumes, assim como nos efectivos pecuários e respectivas produções e ainda nos diversos produtos florestais.

Aqui cabe melhor utilizar um indicador geral de situação quanto aos níveis da produção agrária no seu conjunto e das suas principais componentes: o denominado Produto Agrícola Bruto (PAB), em que se reúne ano a ano a estimativa do valor global das várias produções agrícolas, pecuárias e florestais.

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Há duas estimativas oficiais, do próprio INE: uma feita a preços correntes e outra efectuada a preços constantes de 1963. A primeira é muito influenciada pela forte desvalorização real da moeda. A estimativa a preços constantes possibilita uma impressão mais aproximada da evolução real das produções.

Diversas publicações do INE contêm as séries de apuramentos efectuados por aquele departamento oficial, quanto ao Produto Agrícola Bruto, séries essas que começam em 1953 e vêm até 1913, inclusive, estando também publicados nas Estatísticas Agrícolas de 1974 uns apuramentos provisórios para 1974. As séries retrospectivas de 1953 a 1969 estão publicadas no n.º 1 de Estatísticas Económicas — Agricultura, Pecuária e Silvicultura, 1971, do INE. As séries seguintes vêm nas Estatísticas Agrícolas dos últimos anos.

Os quadros que contêm essas séries de números são já muito grandes, pelo que não é adequado reproduzi-los aqui. Por outro lado, é útil partir dos valores absolutos da produção e calcular as variações em relação ao ano anterior e ao primeiro ano das séries: 1953.

Estes quadros mais desenvolvidos, que se não apresentam aqui, são todavia significativos pela eloquência com que revelam a grave instabilidade das nossas produções agrárias. E não é só nem principalmente pela decantada variabilidade do clima: outros países europeus têm-no em piores circunstâncias. E em piores condições naturais, de clima e de terras, produzem cada vez mais e mais regularmente. Mesmo as plantas que em Portugal têm o melhor ambiente natural para a produção, como são a oliveira, a vinha, o sobro, o pinheiro e muitas outras, apresentam produções sempre altamente oscilantes. O que principalmente faz variar tanto as produções da terra em Portugal é serem elas dominadas e reguladas pela lei da procura do lucro máximo e outras regras do comportamento quotidiano de grandes potentados capitalistas, com crescente domínio em vários sectores económicos (até às nacionalizações efectuadas em 1975), domínio que em numerosos casos ainda prossegue.

Para dar só uma abreviada idéia da excepcional insegurança da produção agrária nacional, citam-se uns breves exemplos colhidos nos quadros que se vêm referindo:

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— No agrupamento "Produtos Vegetais", que inclui Cereais, Tubérculos, Produtos Hortícolas, Frutas, Vinhos, Azeite e Outros, o valor global da produção em 1973 é inferior ao apresentado vinte anos antes, em 1953! Por outro lado, nesses vinte anos há 12 descidas de produção em relação ao ano anterior e 8 subidas, chegando estas oscilações a ir de - 24,5 % a +35,2 %. Os anos de grande quebra sucedem-se aos de alta, e vice-versa. Sendo a média assim tão variável, a situação agrava-se ainda em certas produções básicas, como é o caso dos Cereais e do Azeite, em que as alternâncias se tornaram fenómeno corrente e esperado, se bem que atribuído a causas fortuitas, do clima e outras, para tentar encobrir e proteger os verdadeiros responsáveis.

— No conjunto "Produtos Animais", que engloba Carnes, Leite, Ovos, Lã e Outros, há uma menos deficiente progressão, mas mesmo assim estava-se, em 1973, com apenas +11,6% de produto global relativamente à produção de vinte anos atrás. Neste já longo intervalo de tempo também o valor médio anual destas produções andou para baixo e para cima, em anos contíguos, chegando a subir num ano para +19% em relação ao ano anterior e descendo noutro para –25,8 %.

— No grupo da "Produção Florestal e Caça" há uma ainda mais acentuada tendência para o crescimento da produção, mas sem desaparecer o carácter anárquico, oscilante, registado nos outros sectores produtivos, carácter esse originado sempre e sobretudo, repete-se, pelas condições da exploração capitalista. Em vinte anos registam-se 9 descidas do produto global e 11 subidas, com amplitude variável, mas que chega a ir para +25,5% que no ano antecedente ou para -18,3%, como revela a estimativa para 1974. Neste último caso, algo que tem muito a ver com o 25 de Abril e o boicote capitalista interno e internacional à Revolução em Portugal.

— Em consequência destas flutuações nos três conjuntos que o constituem, o Produto Agrícola Bruto global do Continente não tem verdadeiramente área de produção em que assente um progresso continuado e firme. Até 1974 ainda era tudo área de acção capitalista.

Desde 1975 começa a haver uma área de controlo dos que trabalham e logo nos primeiros tempos são os trabalhadores a dar provas, tanto nos campos como nas

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fábricas sob a sua orientação, de que a produção pode progredir muito, mesmo enfrentando actos da mais grave sabotagem económica, como sejam: saque de grandes somas em dinheiro, de gados, máquinas e matérias-primas, recusas de crédito, incêndios, etc.

Os indicadores do INE dão o PAB total no continente com um acréscimo de 13,7% apenas em relação a 1953, registando-se no intervalo 9 descidas e 11 subidas intercaladas, chegando de um ano para outro (1966-1967) a passar de -10,6% para + 10,5%.

O facto de haver produções em 1973 que são pouco maiores ou até inferiores às de 20 anos atrás já revela as graves insuficiências e defeitos do processo produtivo agrário em Portugal. Mas o simples confronto ano a ano não é bastante e pode até induzir noções gerais defeituosas.

Por isso, organizou-se o Quadro I, no qual se procura trabalhar com números médios anuais por decénio, o que permite estabelecer mais seguras bases para aferir já não a instabilidade das produções mas o nível dos avanços ou recuos nos seus termos mais gerais.

As séries facultadas pelo INE tornam possível estabelecer já as médias decenais do PAB e das suas componentes para dois decénios: 1953-1962 e 1963-.1972.

QUADRO I - PRODUTO AGRÍCOLA BRUTO(A preços constantes de 1963)

Rubricas

Decênio1953-1962

Decênio1963-1972

Variação(em %)

Valor médioanual

Unidade:1000

contos

Valor médioanual

Unidade:1000

contosAgricultura e pecuária 13.499 14.746 + 9,21. Produtos Vegetais 8.417 8.717 + 3,6

Cereais 2.432 2.208 - 9,2Legumes e tubérculos 1.107 1.188 + 7,3Vinhos e aguardentes 1.781 1.854 + 4,1

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Azeite e azeitonas 1.019 785 - 23,0Frutas 994 1.346 + 35,4Produtos hortícolas 781 852 + 9,1Outros 303 484 + 59,7

2. Produtos animais 5.082 6.029 + 18,6Carne 3.318 3.965 + 19,5Leite 985 1.166 + 18,4Ovos 459 557 + 21,4Lã 287 305 +  6,3Outros 33 36 + 9,1Silvicultura e Caça 2.364 2.783 + 17,7Material lenhoso 1.358 1.627 + 19,8Cortiça 652 695 + 6,6Resina e cascas tanantes 209 306 + 46,4Outros 145 155 + 6,9

Total 15.863 17.529 + 10,5Fonte: I. N. E. — Estatísticas Económicas, N.º 1, 1971 

e Estatísticas Agrícolas de 1972 em diante. 

Ressaltam deste Quadro múltiplas questões importantes, entre as quais se anotam as seguintes:

— Graves tendências para a baixa de produção em 2 sectores nevrálgicos: Cereais, — 9,2% na média do decénio 1963-1972 relativamente a 1953-1962; e Azeite e Azeitonas, –23,0%,

— Nítida tendência para a estagnação, em termos de produção global e absoluta (e sem análise circunstanciada das especialidades, o que é importante) noutras áreas essenciais: Vinhos, Tubérculos e Produtos Hortícolas, do conjunto "Produtos Vegetais", Lã e Outros, em "Produtos Animais", Cortiça e Outros, em "Produtos Florestais". Taxas de avanço inferiores a 1% ao ano em termos de relação com os acréscimos de população, com as respectivas necessidades primárias e as necessidades gerais da economia nacional são, em última análise, retrocessos também.

— Índices de certa progressão em diversas produções. Mas mesmo quando se atingem os 35,4% (Frutas), 46,4%

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(Resinas), etc., há que não considerar esses acréscimos de mais elevada taxa como qualquer coisa excepcional, já que se parte de um tão profundo atraso, de um ponto tão baixo em níveis de produção e se está a considerar o espaço largo que é o decénio, e não o ano ou o quinquénio. Quanto mais baixo é o ponto de partida mais urgentes têm de ser os grandes saltos.

Vem a propósito disto referir que a média anual da Produção Agrícola Total em Portugal no triénio 1961-1963 subiu apenas 9% em relação à média anual do triénio 1952-1954, enquanto na Jugoslávia se alteou em 56,4% e na Grécia 54,8% (OCDE — "Projections Agricoles pour 1975 et 1985", 1968). Já então Portugal elevava a sua produção agrícola global a um ritmo seis vezes mais lento que o registado em países com ainda acentuados retardamentos.

O Quadro I, que fornece os valores médios anuais do Produto Agrícola Bruto do continente nos últimos dois decénios, a preços de 1963, segundo estimativas oficiais do INE, mostra um produto anual médio no decénio de 1963-1972, no sector agrário, ao nível dos 17.529 milhares de contos, traduzindo uma subida de apenas 10,5% em relação à média anual do decénio anterior.

Por outro lado, aqueles menos de 18 milhões de contos do PAB, a preços constantes de 1963, são uma real pobreza num País como o nosso, com fraco desenvolvimento industrial e cuja população no Continente anda pelos 8 milhões e meio de habitantes: portanto, se se repartisse esse produto igualitariamente, caberia a miséria de 2 contos por ano e por cabeça! Mas em sistema capitalista a partilha não é assim: há uma reduzida minoria de privilegiados que não chamam, a si nenhuma parte de miséria, ou de austeridade mínima que seja; os que trabalham e produzem toda a riqueza ficam com uma miséria mais reduzida que as médias estatísticas, e uns centos de ricas famílias, exactamente as que originam essas duras privações para os trabalhadores, juntam e levam do País aos milhões de contos, e passam, aqui e sobretudo no estrangeiro, uma vida de afrontoso folguedo e esbanjamento.

Tão diminuta é a produção nacional de alimentos e outros produtos da Agricultura que se vem, ano a ano, a aumentar inquietantemente a importação de produtos agrícolas,

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enquanto terras imensas ficam incultas e centenas de milhares de braços sem trabalho.

Importar também ê negócio, com que vêm engordando sempre mais os já muito ricos especuladores, que dominam os circuitos comerciais de importação e também os de exportação.

Aliás, foi prática muito corrente do sistema capitalista antes do 25 de Abril importar batata, carnes, milho e outros cereais, etc., precisamente quando os pequenos e médios agricultores de norte a sul do País estavam com aflitiva necessidade de vender. Foi esse mais um cruel processo largamente utilizado pelo grande capital e pelo Estado fascista ao seu serviço para arruinar e liquidar o campesinato pobre, arrebatando-lhe os produtos a baixo preço e finalmente as terras e outros bens, em especial por hipotecas e outros empréstimos a juros usurários.

A gravidade do peso crescente das importações sobre a economia nacional no seu conjunto pode ficar evidenciada por alguns confrontos que se façam.

Nas Estatísticas Agrícolas, do INE, encontram-se já volumosos dados, embora com deficiências várias, para estudos de certa profundidade nesta matéria, os quais estão em geral ainda por fazer.

Em linhas muito genéricas, podem verificar-se, entre outras, as seguintes relações;

— A importação de produtos da Agricultura para o Continente tem crescido, de modo quase regular e em ritmo acelerado, de tal maneira que entre 1955 e 197%, ou seja em dois decénios, aumentou em cerca de nove vezes no valor em contos, a preços correntes. O aumento em peso ou volume é também muito grande, embora na ordem das três a quatro vezes.

— Ora, nem o conjunto das exportações do Continente de produtos também originários da Agricultura já compensa essas crescentes importações. Na verdade, ainda até cerca de 1960, o valor global da exportação de tais produtos era em geral superior ao da importação; enquanto depois dessa época o valor exportado vem diminuindo em relação ao

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importado em ritmo tal que para 1974 já se situava apenas na ordem de pouco mais que metade. Esta é mais uma comprovação de que o processo produtivo agrícola perde ritmo de forma muito grave. E esta gravidade é tanto maior quanto o aumento de ritmo em Portugal exige equipamento mecânico e outro, que pelo menos numa primeira fase tem de ser em grande parte importado. Assim decorre outra muito séria consequência dessa quebra das exportações de produtos da Agricultura relativamente às importações originárias do correspondente sector: para se equipararem, nas primeiras fases do seu desenvolvimento, os países retardados necessitam comprar equipamentos agrícolas e industriais com o valor da venda de produtos da Agricultura. Enquanto preponderar em Portugal a exploração capitalista dificilmente se contém a grave deterioração da nossa economia agrária e geral também nestes aspectos.

Porém, a situação económica está ainda em curso de agravamento por outros aspectos.

— O Produto Agrícola Bruto, que para estes confrontos precisa agora ser considerado a preços correntes (e não a preços constantes, por não se dispor de estimativas de importação na mesma base), entre 1955 e 1974 cresceu apenas de cerca de três vezes e a exportação de produtos da Agricultura anda na mesma ordem de elevação, enquanto a importação de produtos desses aumentou em cerca de nove vezes, ou seja, o triplo do aumento do PAB, tudo no mesmo período. De modo que em 1955 essa importação representava pouco mais do que a quinta parte do PAB e em 1974 já foi bem mais que metade do valor do PAB.

Outras correlações importa fazer, por exemplo com a evolução do conjunto populacional do Continente, com as necessidades crescentes do consumo interno, etc. Obter-se-ão desfasamentos de montante agravado, sempre reveladores de um retardamento generalizado da nossa Agricultura, por força da intensificação dos processos exploradores do capitalismo.

A solução lógica para estes e outros problemas é intensificar a cultura das terras e a criação de animais, o que em Portugal está ainda por fazer em grande medida. E para isso é preciso também ampliar a produção fabril, expandir os serviços de ensino, de assistência técnica, de saúde, etc., etc.

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Tudo isto melhora as condições de emprego e de vida dos trabalhadores. Não convém aos capitalistas, mas interessa vitalmente aos trabalhadores. Por isso, assim fizeram os trabalhadores na generalidade dos países socialistas, e em pouco tempo se acabou ali, de vez, com o desemprego.

Em Portugal, os últimos decénios da época fascista, em especial desde 1950 e até às imediações do 25 de Abril de 1974, foram caracterizados por um extraordinário incremento do desemprego nos assalariados e no campesinato pobre submetido a intensa proletarização.

A "grande solução" encontrada por Salazar, Marcelo Caetano e outros ministros fascistas foi fazer dos trabalhadores portugueses a principal mercadoria de exportação: primeiro para as Américas e para África, depois para a Europa; enfim, para onde quer que houvesse capitalistas sedentos de esburgar até aos ossos a energia de trabalhadores da nossa Pátria, aqui tão necessários ao progresso do País. De tal modo foi a sangria, sobretudo nos últimos anos do fascismo, que Portugal ficou sem grande parte dos mais válidos trabalhadores (estimada em cerca de um terço), com uma população activa agrícola e não agrícola de enorme peso de velhos e crianças e de trabalhadores não especializados, o que se tornou novo e gravíssimo factor de atraso e de exploração económica.

Com o 25 de Abril, o fim das guerras colonialistas (que também faziam sair do País centenas de milhares de jovens, como desertores ou como soldados, muitos dos quais vieram estropiados e muitos outros foram mortos) e o crescer da crise capitalista na Europa ocidental foi estancada significativamente a torrente emigratória. E com a ampla luta dos trabalhadores melhoraram inicialmente as condições de trabalho.

Mas a aberta ou encapotada política de defesa do capitalismo praticada por sociais-democratas declarados ou de máscara "socialista", a par da sabotagem económica sistemática das forças mais reaccionárias, de novo fazem agravar os problemas do desemprego.

E, uma vez mais, esses ministros sociais-democratas pensam e já falam abertamente na "grande solução" que é o fomento da emigração: o grande negócio que é exportar força

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de trabalho para exploração de quaisquer capitalistas venezuelanos ou americanos na Venezuela, no Brasil ou na Argentina já que do capitalismo europeu, a braços com a crise, é sempre de recear a expulsão das centenas de milhares de trabalhadores portugueses que lá têm sido explorados em condições muitas vezes infernais, sob governos mais ou menos sociais-democratas.

A cruel exploração de emigrantes não é apenas rico negócio para capitalistas americanos, germânicos, franceses, ingleses e outros, onde quer que tenham montado o seu aparelho explorador. As respectivas remessas já eram salvação para apertos financeiros do fascismo e fundos apetecidos para o saque de milhões de contos ao ano, com que se aviaram conhecidos senhores da banca, da especulação turística e variados outros, incluindo grandes agrários, já antes do 25 de Abril, à medida que se precipitava a queda do fascismo e da exploração colonial.

Após o 25 de Abril, por processos os mais diversos, descarados ou encobertos, os grandes possuidores de acções e terras nacionalizadas continuam a indemnizar-se bem, levando para fora do País, e designadamente do sector agrário, capitais enormes. Esta autêntica rapina está a ser um dos mais graves aspectos do processo económico em Portugal nos últimos tempos. Quanto mais tempo e outras possibilidades tiverem os capitalistas para o saque mais difícil será aos trabalhadores portugueses, a todos os trabalhadores, qualquer que seja a sua profissão ou convicção política ou crença religiosa, recuperar o País em seu benefício, o que só poderá ocorrer com o fim do capitalismo e a implantação do socialismo.

Sublinhou-se já atrás — e isto mesmo é questão essencial debatida insistentemente ao longo deste livro de Álvaro Cunhal — que a análise marxista dos diferentes tipos de sociedade não se limita a considerar apenas o estado e a evolução das forças produtivas: ponto fundamental é observar também e sobretudo as relações que se estabelecem entre os homens no processo produtivo, ou seja, em suma, as relações de produção. E entre estas têm grande destaque as formas de exploração exercidas por certas classes sociais sobre as classes trabalhadoras, nos tipos de sociedade em que tem havido desdobramento social em

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classes antagónicas, as exploradoras e as exploradas, divisão e exploração estas assentes basicamente na apropriação privada da terra e dos meios de produção pelas classes que exploram a força de trabalho de grandes massas de outros seres humanos.

Na parte antecedente deste ponto 1 da Introdução procurou-se inserir alguns breves apontamentos de apreciável significado quanto aos atrasos e avanços do conjunto das forças produtivas na sociedade rural portuguesa, originados nos últimos decénios pelo crescente avanço das formas capitalistas de exploração no processo produtivo e social agrário em Portugal.

Esse progresso e refinamento das estruturas capitalistas de exploração e opressão foram muito acentuados nos últimos tempos do fascismo.

Apoiando-se na análise concreta da realidade portuguesa da primeira metade deste século, Álvaro Cunhal insiste na questão basilar de que aquela já então indubitável e muito nitida tendência para o predomínio das estruturas capitalistas não representa só progresso: mesmo quando se trata de analisar se há (ou não) avanço da economia; e já se viu que o capitalismo promove desenvolvimentos e também contenções ou até retrocessos, seja na massa de meios de produção existentes ou das produções conseguidas, seja nos efectivos de força humana de trabalho, seja ao nível do uso da ciência e da técnica da produção; em síntese, origina avanços, retardamentos e até passos atrás no conjunto das forças produtivas. Mas, além disso, ê de importância primordial verificar quem tira proveito desses avanços e atrasos, É a conclusão concreta e lógica é que são cada vez mais as classes exploradoras as únicas beneficiadas, em última análise, existam recuos ou haja progressos económicos, enquanto existir preponderância da exploração capitalista e esse domínio tenha acento. Esta exploração, diga-se de passagem, sofreu um forte abalo nos dois primeiros anos já decorridos após o 25 de Abril de 1974.

Postos já em foco alguns aspectos mais recentes dos progressos ou retardamentos do processo económico que decorreu no sector agrário nacional até à queda do fascismo, nesse ano de 1974, interessa agora adiantar um certo número

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de referências concretas à evolução das estruturas económico-sociais agrárias depois da década de 50.

Parte fundamental das transformações verificadas resulta da acção, cada vez mais aguda, na sociedade rural portuguesa, da conhecida lei da concentração capitalista.

As muito variadas formas de exploração capitalista conduziram até 1974 a intensa e crescente acumulação da terra e dos meios de produção na propriedade privada de um número cada vez mais diminuto de ricas famílias.

Existem múltiplas provas desse fenómeno, característico da expansão capitalista.

O Inquérito Agrícola realizado em 1968 pelo INE referenciou a seguinte situação ao nível geral do Continente:

Quadro IIClassificação das Explorações Agrícola Segundo os Escalões

de Área Total

Escalõesde área total

(ha.)

Número de explorações Área total (ha)

Porescalão

% Sobretotal

continente

Porescalão

%Sobretotal

continentemenos de 1

ha 316.627 39,0 124.887 2,5menos de 4

ha 631.482 77,8 742.516 14,9menos de 20

ha. 784.707 96,7 1.924.147 38,7entre 20 –200

ha 24.312 3,0 1.083.757 21,8mais de 200

ha. 2.637 0,3 1.966.253 39,5mais de 500

ha 1.140 0,14 1.508.566 30,3mais de 1.000 ha 488 0,06 1.065.800 21,4

Continente 811.656 - 4.974.157 -

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Fonte: I. N. E. – Inquérito às Explorações Agrícolas do Continente 1968 

Com estes números pode observar-se:

– Pouco mais de 2500 explorações, as de mais de 200 ha., detinham em 1968 quase 40 % da área total: mais do que as 784.701 explorações de área inferior a 20 ha., que todavia representavam 96,7 % do número total das explorações recenseadas.

– E as menos de 500 maiores explorações, mais precisamente as 488, de área superior a 1000 ha., acumulavam no conjunto continental 21,4 % da área total em exploração – quase a quarta parte – bem mais do que a área ao dispor das 631.482 explorações de dimensão abaixo dos 4 ha., que abrangiam 77,8 % do total das explorações.

Deve assinalar-se que a situação é muito diferenciada distrito a distrito (e até concelho a concelho), continuando a observar-se concentrações de propriedade da terra e de meios de produção de nível excepcional em distritos do Sul. Como exemplos, podem citar-se os seguintes, segundo o Inquérito de 1968: as 275 explorações de mais de 500 ha. do distrito de Évora (2,4 % do número total de explorações) detinham 71,5 % da área global, e as 138 de mais de 1000 ha. (1,2 % do número total) 54,9 % da área total.

Todavia, a concentração real da terra e dos meios de produção era já então ainda mais avultada, tanto a nível continental como ao nível dos distritos, pois que o mesmo grande patrão possuía em regra mais do que uma grande exploração e multas vezes tinha dezenas de explorações grandes, médias e até pequenas em vários concelhos e mesmo em distritos diversos.

O confronto com os números do Inquérito Agrícola de 1952-1954 tem de ser efectuado com várias precauções, pois que existem importantes diferenças de critério entre esse Inquérito e o de 1968. Duas das principais diferenças são: em 1952-1954 os escalões tomados pelo INE foram os de área arvense, e não os de área total, e a área arvense total não é obtida directamente pelo Inquérito, mas por estimativa de algum defeito.

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Com essas e outras ressalvas indispensáveis é, no entanto, possível colher algumas verificações importantes, entre as quais:

– Tendência nítida para a diminuição, entre 1952-1954 e 1968, do número de explorações de média dimensão e da respectiva área, o que é confirmado e comprova a drástica redução do número de patrões e de empresas patronais de pequena e até média dimensão, em muito intensa ruína pela acção demolidora do grande capitalismo agrário, comercial, industrial e financeiro. Os Censos de 1960 e 1970, como os anteriores, adiante referidos, revelam também essa rarefacção do pequeno e mesmo médio patronato.

– No mesmo período de 1952-1954 a 1968, tendência para uma polarização do número de explorações nos dois extremos: aumento generalizado em número nas explorações acima dos 200 ha., embora com irregularidade nos índices distritais e concelhos, por escalão, as quais não desmentem a regra genérica; elevação do número de explorações de pequena dimensão, seja por partilhas de herança em explorações já muito pequenas, seja por arrendamento de pequenas parcelas de por vezes grandes quintas como recurso de vida, ou ainda por outras razões.

– Regra muito nítida de aumento, no mesmo período, das áreas e percentagens de área concentrada pelas maiores explorações.

Os últimos decénios do fascismo foram eloquentes quanto à ampliação ou formação de enormes blocos de propriedade agrária, não só ao nível do Continente e das Ilhas, como quanto às vastas roças de S. Tomé e Príncipe, Angola e Moçambique; dezenas de milhares de hectares foram sendo acumulados pelos grandes grupos financeiros chefiados pelas famílias Mello (Grupo CJJF), Sommer-Champalimaud, Espírito Santo e Borges & Irmão; por grandes industriais da cortiça, das celuloses, da especulação turística e imobiliária. Só a Torralta juntou uns 30.000 ha. em 5 anos; os mares de eucaliptos da sueca Billerud e da britânica Caima Pulp & Co. liquidam os campos de milho, hortas e vinhedos de milhares de camponeses pobres desde Aveiro ao Tejo e Sado.

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A concentração capitalista não se realiza apenas ao nível da apropriação da terra e dos meios de produção agrária: máquinas, gados, plantações, edifícios, etc.

O sistema capitalista faz rodear esse fundamental sector produtivo por estruturas comerciais, industriais e financeiras, com as quais as grandes empresas procedem a volumosas acumulações de lucros e juros, à custa da exploração dos trabalhadores de todos esses sectores e da ruína dos pequenos agricultores, comerciantes e industriais.

São muitíssimo variadas as formas de exploração capitalista. Álvaro Cunhal analisa-as em extensão e profundidade neste livro. Algumas delas foram sendo também anotadas ao longo desta Introdução, mas ela não visa nem poderia visar em especial essa matéria.

O objectivo desta parte da Introdução é facultar alguns pontos de referência mais recentes para as linhas de progressão do capitalismo na Agricultura portuguesa.

Mas não se poderá deixar de anotar, embora abreviadamente, o considerável avanço que houve também nos decénios que antecederam o 25 de Abril de 1974, na apropriação do fundamental das estruturas de comercialização e de industrialização de produtos da Agricultura ou destinados a este sector básico, por parte dos grandes grupos económicos, domínio esse estendido às operações financeiras com o sector e ao aparelho do Estado.

Este domínio foi levado a tal ponto que assumiu as características de capitalismo monopolista de Estado, com o aparelho estatal colocado nos aspectos económicos e repressivos ao serviço dos grandes monopólios.

A acumulação de crescentes massas de terras e de meios de produção na posse de um exíguo número de ricas famílias portuguesas e grandes grupos estrangeiros, que exprime a lei da concentração capitalista, tem como consequência a lei da proletarização de grandes massas de pequenos e até médios agricultores: estes ficam sem terras nem meios de produção e apenas lhes resta a força de trabalho para venderem numa outra forma de exploração, como simples proletários, através do baixo salário.

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Nem sempre é abrupta a passagem de camponeses a proletários. Em numerosos casos é gradual a destruição da empresa familiar, ou da patronal de pequena dimensão: pode começar por perder a terra através de créditos de agiotagem ou venda de aflição e permanecer como rendeiro, e mais cedo ou mais tarde ser forçado ainda a ir vendendo sempre mais força de trabalho fora da exploração agrícola, a um qualquer patrão agrário ou industrial ou em serviços. Torna-se assim um semiproletário.

A determinação dos efectivos e taxas de proletários, semiproletários, trabalhadores familiares, pequenos patrões e grandes patrões na População Activa Agrícola é questão da maior Importância na análise da expansão capitalista na sociedade rural.

Álvaro Cunhal salienta que os índices de proletarização são precisamente os mais expressivos indicadores do desenvolvimento capitalista. E, já no século passado, Marx previu que essa criação do capitalismo, a classe proletária, é também a força que destrói o capitalismo e vai edificando, em sucessivos países, sociedades sem classes, o socialismo, pois que somente assim o proletariado poderá fazer cessar a exploração do homem pelo homem.

Os elementos estatísticos para o cálculo dos efectivos das diferentes classes sociais na Agricultura portuguesa sob o capitalismo encontram-se nos Censos gerais da população, mas apenas a partir do de 1930 e ainda assim com grandes deficiências e dificuldades. O estudo aprofundado dos Censos está ainda em geral por fazer, sobretudo os de 1930, 1940, 1960 e 1970, além do mais porque contêm maiores defeitos e obstáculos do que o realizado em 1950. Por outra parte, entre todos eles há grandes diferenças de critério. De forma que as comparações têm de ser efectuadas com especial cuidado e há que tomar certos números não como medida muito exacta mas como aproximações genéricas.

Em virtude destes problemas, mas também para não alongar mais esta Introdução, evita-se inserir aqui quadros já um pouco elaborados sobre as médias distritais e do Continente e Ilhas na base dos Censos de 1940, 1950, 1960 e 1970.

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Porém, desses quadros retiram-se alguns breves pontos de referência acerca das matérias em causa:

– A taxa de trabalhadores "Remunerados" (sobretudo Assalariados e Empregados), no conjunto da População Activa Agrícola, com Profissão, estaria na ordem de pouco mais de 50 % na média continental de 1940, subindo para o alto nível de uns 60 % em 1950 e 1960, entrando por volta de 1960 a descer, para estar em 1970 sensivelmente ao nível de 1940.

Mas há grandes diferenças nas médias distritais (e sabe-se que também dentro de cada distrito, entre os concelhos). Já em 1940, 3 distritos apresentavam índices acima dos 80 %: Évora, Portalegre e Setúbal, com Beja, Santarém, Lisboa e Castelo Branco nas proximidades ou acima dos 70%; em 1950 e 1960 as taxas destes distritos ainda tendem a crescer, apresentando-se um tanto em descida pelo Censo de 1970.

– Os números absolutos do mesmo conjunto dos "Remunerados" terão sofrido uma evolução próxima dessa.

No total do Continente: subida de cerca de 20 % entre 1940 e 1950; pequena descida em 1960; baixa da ordem dos 40 % entre 1960 e 1970.

O movimento é o mesmo em quase todos os totais distritais, embora com taxas algo mais diferenciadas.

– Os Trabalhadores "Não Remunerados" (sobretudo Pessoas de Família) representam uma parcela ainda muito variável da População Activa Agrícola: de certa importância em taxa e número absoluto ainda em 1970 em alguns distritos (casos de Braga, Viana do Castelo e Viseu, em especial), mas quase não contam nos distritos de Évora, Portalegre e outros do Sul e até começam a contar muito menos em distritos do Centro e do Norte, pois que a tendência generalizada, segundo os Censos, parece ser para forte redução neste grupo social, o que tem lógica: desaparição das formas de dependência pessoal.

– Os "Isolados", que fornecem em certa medida indicação dos que trabalham em termos familiares (mas nem sempre apenas na exploração familiar, como se refere mais adiante), mostram tendência para algumas subidas de uns Censos para

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os outros, desde 1940, por vezes com quebras decenais em alguns dos distritos.

– O conjunto dos "Patrões", que compreende grandes, médios e pequenos, sem distinção pelos Censos, apresenta tendência para drástica redução, tanto no número total do Continente (de 231.454 em 1940 para 17.100 em 1910), como em todos os totais distritais.

Estas variações assim tomadas exigem, todavia, alguns comentários mais:

– O conjunto da População Activa Agrícola, com Profissão, que subira anda um pouco em número absoluto entre 1940 e 1950, seja no do Continente seja nos totais de quase todos os distritos, entrou a baixar em 1960 e desceu muito em 1910.

Estes movimentos foram influenciados sobretudo por duas das respectivas componentes:

l.a Saída de trabalhadores do campo para trabalhos não agrícolas, sobretudo indústrias. Este importante movimento originou uma redução da taxa de Activos Agrícolas na População Activa Total do Continente de cerca de mais de 50 % em 1940 para uns 30 % em 1910, na média continental, havendo fortes diferenças entre os distritos, seja quanto à taxa de cada um, seja quanto ao acento da baixa.

2.a Saída de trabalhadores do País, pela fortíssima emigração, sobretudo a partir de cerca de 1960. Isto originou não apenas redução do número de Activos Agrícolas mas até do número global de Activos com Profissão no Continente. Nesse decénio terminado cora o Censo de 1910, este revelou reduções notáveis da própria população total em quase todos os distritos: exceptuaram-se os mais desenvolvidos do litoral.

Forneceram foragidos da dura exploração capitalista nos campos, sobretudo os conjuntos "Remunerados" e "Não Remunerados", mas sem dúvida também a dos "Isolados" e a dos Pequenos e Médios "Patrões", E isto já explica uma, parte das variações anotadas mais atrás. Mas não chega.

– Há Pequenos e Médios "Patrões" que, por empobrecimento ou falta de assalariados suficientes na região, foram constrangidos, com alguns dos seus familiares,

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a trabalhar eles próprios as terras, contribuindo assim para aumentos notados no número de "Isolados". Isso é confirmado pelo inquérito Agrícola de 1968, como se disse nas considerações ao Quadro II.

– Os Censos contabilizaram um conjunto que o INE designa por "Camponesas-" ou "Domésticas Agrícolas" fora desta População Activa Agrícola com Profissão, considerando-as como "com Ocupação", e esta imprecisão pode dar origem a que num Censos muitas trabalhadoras do campo sejam recenseadas como "Não Remunerados" ou até "Remunerados" e noutros Censos como "Domésticas Agrícolas" ou "Camponesas", portanto mais dentro ou mais fora da População Activa Agrícola com Profissão.

– Os Censos não recenseiam os semiproletários, que em grande massa se situam entre os "Isolados" e os "Remunerados". E daqui provém outra fonte de imprecisões, pois que serão recenseados num daqueles dois conjuntos consoante a sua opção ou outras circunstâncias.

E as taxas de semiproletarização do pequeno campesinato continuam a ser muito altas. Já o Inquérito Agrícola de 1952-1954 revelara esse facto muito importante pelos em geral muito altos índices de "Empresas Familiares Imperfeitas" no total das explorações familiares.

O Inquérito Agrícola de 1968 retoma esta questão'.essencial e em melhores termos: classificando estas explorações familiares que são constrangidas a vender força de trabalho umas como "Não Autónomas" e outras como "Complementares", consoante o grau de trabalho no exterior à exploração agrícola. Para permitir a comparação com os elementos de 1952-1954 fez-se a junção destes dois grupos, considerando-os como "explorações familiares imperfeitas" e assimilando as "autónomas" a "familiares perfeitas".

Daí resulta o seguinte Quadro III. Por ele se vê que os contingentes de explorações familiares sofreram fortes convulsões na década de 60, conforme se referiu atrás. É de prever uma mais intensa desaparição das explorações semiproletarizadas, ou seja, das "imperfeitas", passando sobretudo a proletários estremes (emigrantes ou não), do que das "perfeitas"; e isto pode explicar até certo ponto certa

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atenuação das taxas de "imperfeitas" no total das "familiares".

Todavia, ainda estaria semiproletarizada cerca de metade do conjunto continental das explorações familiares. Ora este total do Continente reduziu-se fortemente entre 1952-1954 e 1968: de 702.431 explorações familiares para somente 485.324, o que é outra nítida marca do processo de liquidação do pequeno campesinato pelo capitalismo. Mas há que tomar os números no seu valor absoluto, visto que se verifica neste caso também uma possibilidade de certo erro estatístico: uma margem de indefinição no espaço entre as explorações familiares e as pequenas empresas patronais, que só utilizem força de trabalho alheia ocasionalmente e em que o patrão e elementos de sua família também trabalham.

Quadro IIIExplorações Familiares Imperfeitas no Total das Explorações

Familiares

DistritosExplorações Familiares

Número total

Perfeitas ImperfeitasNúmero 

 Percentage

mNúmer

oPercentage

mViana do Castelo 25.122 18.733 74,6 6.389 25,4Braga 40.784 22.180 54,4 18.604 45,6Porto 43.071 22.673 52,6 20.398 47,4Aveiro 45.490 22.613 49,7 22.877 50,3Coimbra 37.623 18.426 49,0 19.197 51,0Vila Real 23.780 14.470 60,8 9.310 39,2Bragança 18.878 10.520 55,7 8.358 44,3Viseu 50.332 32.687 64,9 17.645 35,1Guarda 19.814 11.980 60,5 7.834 39,5Leiria 35.820 16.306 45,5 19.514 54,5Lisboa 21.786 6.633 30,4 15.153 69,6Santarém 30.899 11.468 37,1 19.431 62,9Castelo Branco 30.597 14.791 48,3 15.806 51,7Setúbal 10.873 2.624 24,1 8.249 75,9

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Évora 5.452 2.016 37,0 8.436 68,0Portalegre 9.811 3.116 31,8 6.695 68,2Beja 11.710 4.986 42,6 6.724 57,4Faro 23.482 13.362 56,9 10.120 43,1Continen

te485.324 249.584 51,4 235.74

0 48,6Fonte: I.N. E. - "Inquérito às Explorações Agrícolas do

Continente", 1968.

Mesmo que se considerassem tais explorações nas "familiares" e não nas "patronais", haveria baixa no total das "familiares", o que contribui também para a compreensão das variações nas taxas de "imperfeitas".

Em certos distritos, e sobretudo concelhos, os índices de semiproletarização não deixaram de subir, chegando-se inclusive a acréscimo nas médias distritais, como é o caso de Setúbal, que se eleva para a muito alta taxa de 75,9 %.

Mas a regra parece continuar a ser a mesma já observada no Inquérito de 1952-1954, apesar de excepções que não prejudicam a conclusão genérica: os mais altos índices de semiproletarização registam-se logicamente nos concelhos e distritos mais industrializados ou onde prepondera a grande exploração agrária capitalista.

E isto não é somente no Sul.

Continua a verificar-se na Região Demarcada do Douro: 88,5 % em Santa Marta de Penaguião, 82,2 % em Mesão Frio, 80,7 % na Régua etc.; na Região Demarcada do Dão: 93,2 % em Tábua, 72,6 % em Nelas, etc.; na Bairrada, do distrito de Aveiro, e em outras regiões vinhateiras, orizícolas e de outras culturas valiosas por todo o Norte.

Por outro lado, são os centros um tanto mais industrializados (têxtil, metalomecânica, madeiras, etc.): por exemplo, 90% em Manteigas, Guarda, e 99,4 % em Castanheira de Pêra, Leiria, em áreas têxteis de lanifícios; 67,3 % em Famalicão e 69,5 % em Santo Tirso, na área têxtil de algodões do Ave; e assim por diante.

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Os já extensos elementos incluídos nesta parte da Introdução permitem avaliar um tanto em que medida se agravaram as formas e as consequências da exploração capitalista em Portugal a partir do momento até onde Álvaro Cunhal pôde levar a análise neste seu livro.

Essa crescente exploração e opressão capitalista em Portugal motivou longa e árdua luta dos trabalhadores e das outras forças patrióticas portuguesas, luta essa que desembocou finalmente no derruba-mento da ditadura fascista do grande capital, no desencadear de um processo poderoso e original que produziu transformações económicas e políticas essenciais no nosso País, entre elas um vigoroso processo de Reforma Agrária.

2. A solução lógica e necessária: Reforma Agrária, rumo ao socialismo

Mercê da luta persistente e conjugada dos povos de Portugal e das antigas colónias portuguesas, durante muitos e duros anos, reuniram-se em 1974 condições favoráveis (embora continuando a exigir muita unidade e organização dos trabalhadores, luta tenaz e apurado senso político) para a realização concreta, imediata ou a prazo mais ou menos curto de parte importante dos objectivos essenciais da fase histórica em que se encontra o processo revolucionário em Portugal; ou seja, os objectivos centrais da Revolução Democrática e Nacional:

Liquidar o Estado fascista e implantar um regime democrático.Destruir o poder dos monopólios e impulsionar o desenvolvimento de toda a economia nacional.Realizar a Reforma Agrária, entregando a terra a quem a trabalha.Elevar o nível de vida das classes trabalhadoras e do povo em geral.Democratizar o ensino e a cultura.Libertar Portugal do imperialismo.Assegurar aos povos das colónias portuguesas o direito à imediata independência.Praticar efectivamente uma política de paz e amizade com todos os povos.

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Com o derrubamento da ditadura fascista, a cessação das guerras coloniais e a conquista de muitas das principais liberdades políticas, logo nos primeiros meses após as acções revolucionárias de Abril de 1974 estavam criadas outras condições objectivamente necessárias ao avanço para a realização os restantes objectivos principais da presente etapa revolucionária no nosso País.

Entretanto, ainda outras condições objectivas era indispensável desenvolver (e continua a ser em variados aspectos), a fim de criar força popular para bater as fortíssimas resistências e manobras reaccionárias, que tentam desesperadamente impedir a destruição do poder dos monopólios, a realização da Reforma Agrária, etc.

Entre essas condições imprescindíveis sobressaía o fortalecimento da organização partidária de vanguarda dos trabalhadores, o PCP, e também a criação ou desenvolvimento das organizações unitárias de classe dos trabalhadores.

Para iniciar e conduzir o processo de Reforma Agrária era e é essencial criar e fortalecer os Sindicatos dos Trabalhadores Agrícolas e as associações de classe e movimentos dos camponeses pobres.

Logo na Primavera-Verão de 1974, os primeiros Sindicatos dos Trabalhadores Agrícolas constituídos (Beja, Évora, Portalegre e outros do Sul) tiveram de se empenhar a fundo na luta contra os grandes agrários, que se recusavam a dar trabalho e sabotavam as colheitas de cereais, retardando-as ou destruindo-as. A força dos trabalhadores acabou por impor a assinatura das primeiras Convenções Colectivas de Trabalho, válidas apenas ainda somente para esse curto período de colheitas de Verão em terras do Sul. Também a viva luta contra as sistemáticas e muito graves infracções cometidas pelos grandes agrários ao estabelecido nessas Convenções temperou as organizações dos trabalhadores.

As segundas Convenções Colectivas de Trabalho, já para todo um ano agrícola, as quais acabaram por ser assinadas, mas também seriamente infringidas pelos agrários, exigiram um continuado e aceso combate dos trabalhadores e das forças progressistas contra essas infracções e contra a nova sucessão de actos de grave sabotagem dos grandes agrários:

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recusa às sementeiras de Outono (que os trabalhadores mesmo assim asseguraram, com a imposição de trabalhadores às herdades abandonadas, garantindo também com isso não só emprego como o abastecimento do País em cereais e até que se obtivesse no Verão de 1975 uma já importante colheita); acentuação da rapina das herdades, muitas das quais ficaram sem gados, sem máquinas e outros bens criados pelos trabalhadores e necessários à produção.

A multiplicação destes atentados às Convenções Colectivas de Trabalho e à economia nacional, assim como a derrota dos sucessivos golpes contra-revolucionários e em especial o de 11 de Março de 1975, e havendo já então desenvolvimentos apreciáveis da organização dos trabalhadores, a nível partidário e unitário, tornaram possível e imperioso, a partir desse nevrálgico mês de Março de 1975, empreender a concretização da Reforma Agrária, as nacionalizações de sectores básicos e outros importantes avanços do processo revolucionário.

Até ao fim do ano de 1975 uns centos de grandes senhores da terra no Sul estavam já efectivamente expulsos de mais de um milhão de hectares de vastos latifúndios, mercê da poderosa iniciativa de dezenas de milhares de trabalhadores. Ao mesmo tempo que expulsavam os agrários exploradores e sabotadores, operários agrícolas e muitos pequenos agricultores, em estreita unidade de acção, edificavam um novo tipo de estruturas produtivas: as Unidades Colectivas de Produção (UCP) de trabalhadores da terra.

E simultaneamente tiveram de enfrentar também os problemas da própria produção, que não deixaram ainda de fazer crescer, em termos globais, o que é facto singular na história dos povos que já realizaram Reformas Agrárias. Esse facto é tanto mais valoroso quanto esses trabalhadores não mais deixaram de ser atacados violentamente pelas forças reaccionárias de variados matizes, incluindo no próprio aparelho estatal: recusa de créditos para compra de gados e equipamentos e até salários iniciais; Passagem para a conta dos agrários de grandes valores das produções alcançadas a muito custo pelos trabalhadores e outras práticas muito graves em infracção até à legislação da Reforma Agrária entretanto promulgada, etc.

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Ainda em outros aspectos primordiais avançou o processo de Reforma Agrária, não já só na parte sul do Continente, mas por todo o País.

Para isso, tem sido igualmente factor essencial o impulso à organização unitária dos trabalhadores do campo: a criação e a actuação dos Sindicatos dos Trabalhadores Agrícolas em distritos do Norte e das Ilhas; assim como do Movimento dos Agricultores-Rendeiros do Norte (MARN) e da Associação de Rendeiros do Barlavento Algarvo (ABRA), do Movimento para a Extinção dos Foros (MEF), do Movimento para Uma Melhor Previdência Rural (MAPRU) e de múltiplas Ligas de Pequenos Agricultores, ao mesmo tempo que se fortalece o Movimento para a Recuperação dos Baldios, com um já longo passado de intensas lutas contra a usurpação desses vastos bens do povo: mais de 500.000 ha. por todo o Norte e Ilhas.

Os novos Sindicatos vão alastrando a todo o País a luta pelo exacto cumprimento dos diplomas de Regulamentação do Trabalho Rural, conquistados ao nível superior do Estado, mas sujeitos a constantes infracções pelos senhores da terra do Norte e Ilhas, que chegam a despedir e mandar espancar trabalhadores só pelo facto de se inscreverem no Sindicato.

Os Movimentos e Associações de Rendeiros e as Ligas intensificam e expandem a sua luta pelo cumprimento integral e imediato da diversa legislação progressista alcançada desde fins de 1974 e meados de 1975, mas que também vem senão infringida na sua aplicação pelos grandes senhores, com a conivência de elementos reaccionários e sociais--democratas instalados no aparelho estatal, inclusive ministros: ainda depois do 25 de Abril, como antes, agricultores-rendeiros vêem-se perante ordens de despejo e as suas culturas e construções arrasadas ou incendiadas, como sucedeu, por exemplo, na "Herdade de Almada", Benavente, distrito de Santarém, na "Quinta de 8. Lourenço", Cadaval, distrito de Lisboa, ou em diversos concelhos do Norte dos distritos de Braga, Porto, Aveiro, etc.

O MAPRU une massas crescentes de trabalhadores dos campos em torno da reclamação de prioridades urgentes na atribuição de um mínimo elementar de assistência na doença, na maternidade, na invalidez e na velhice, de que esses trabalhadores são anda os mais carecidos.

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O Movimento para a Recuperação dos Baldios luta pela aplicação imediata da respectiva legislação progressista, também já promulgada, mas que a reacção de todos os quadrantes, sempre com a colaboração da social-democracia, tudo tenta para evitar que seja levada à prática, dado o carácter revolucionário de grande alcance que desempenhará, em especial nas regiões serranas do Norte, com a criação de dezenas de novas Unidades Colectivas de Produção sob a forma de Associação de Utentes dos Baldios para a exploração em comum dessas muito vastas extensões de terra já em parte florestadas e outras ao abandono e em extrema necessidade de passarem a uma racional cultivação e protecção.

O cumprimento desta muito importante legislação de autêntica Reforma Agrária que restitui os baldios ao uso colectivo dos povos, representará o fim de um dos mais agudos conflitos que caracterizaram a época fascista: a usurpação violentíssima desses bens das populações rurais por ricos senhores da terra e do Estado fascista, com muito graves consequências para a economia das populações serranas e de outras áreas do País.

Por outro lado, surgem já pelo Norte as primeiras autênticas Cooperativas de Produção Agrícola, constituídas no essencial por pequenos agricultores, acrescentando-se a tipos desses também em formação no Sul. Essas Cooperativas distinguem-se, na generalidade das UCP existentes no Sul (e denominadas muitas vezes também por Cooperativas, outras vezes por Herdades Populares, etc.), por no fundamental as UCP serem constituídas por trabalhadores assalariados, e não por camponeses, já que aquela classe social é de longe a mais numerosa nos distritos do Sul.

Ponto essencial para a defesa e avanço da Reforma Agrária no nosso País tem sido a solidariedade muito activa dos trabalhadores da cidade e de todo o mundo proporcionada aos trabalhadores dos campos do Sul e do Norte: grandes manifestações e outras grandiosas jornadas de confraternização e apoio, entrega de máquinas e outros valores, luta ideológica contra a ofensiva reaccionária que pretende lançar a confusão sobre tão decisiva batalha para o conjunto do processo revolucionário em Portugal.

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Não se pode proporcionar aqui, numa Introdução que não deve ser por de mais extensa, um balanço senão muito abreviado e em linhas muito gerais do impetuoso processo de Reforma Agrária em curso no nosso País.

E também não poderá ser senão muito resumidamente enunciada a perspectiva de luta em que se está para o futuro mais imediato.

Está à vista, para os próximos meses, ainda um agravamento da ofensiva reaccionária contra a Reforma Agrária, de tal modo é um dos processos precursores do fim da exploração capitalista em Portugal e da caminhada vitoriosa para o socialismo.

Nessa ofensiva continuarão empenhadas não apenas as forças mais reaccionárias, mas também e cada vez mais a social-democracia, ainda quando alguns elementos seus andam sob a capa de "socialistas".

Em muitos casos, estes políticos sociais-democratas, tal como em países capitalistas europeus, aparecem como quadros avançados na luta contra as conquistas dos trabalhadores, atirando sobre eles as forças repressivas, favorecendo agrários e capitalistas, tratando ou forçando a entrega de terras e casas de residência no meio das Unidades Colectivas de Produção, para as destruir, forjando cooperativas falsas com patrões, procurando por todos os meios indemnizar grandes agrários e capitalistas, exploradores e sabotadores, visando estrangular as UCP e Cooperativas através da recusa de créditos ou dos circuitos comerciais (novamente pelo uso dos métodos do fascismo, com importações de trigo, carne e outros, na ocasião em que os trabalhadores do campo precisam escoar os seus produtos e o País até já nem precisa de algumas dessas importações), etc.

Levar a Reforma Agrária até ao fim é hoje tarefa essencial dos que verdadeiramente trabalham a terra em Portugal.

E isso exige muita unidade, organização e energia na luta de operários agrícolas e camponeses pobres, entre outras, nas seguintes direcções, que vêm sendo precisadas em reuniões, assembleias e encontros sucessivos;

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– Ampliar e fortalecer a unidade e organização dos trabalhadores dos campos para bater as investidas de todas as forças hostis, qualquer que seja a máscara daqueles que tentam derrotá-los dividindo--os: reaccionários declarados, sociais-democratas, pseudo-revolucionários "esquerdistas". Desenvolver o papel dos Sindicatos e dos movimentos de unidade dos camponeses como motores essenciais da Reforma Agrária;

– Aperfeiçoamento da vida colectiva interna das Unidades Colectivas de Produção;

– Cumprimento integral da legislação que regula o Trabalho Rural.

;–Legalização imediata das expropriações de latifúndios já efectuadas pelos trabalhadores e das UCP constituídas;

– Ultimação das expropriações de todos os latifúndios ainda em poder de ricas famílias, para fazer cessar o saque económico ali em curso e instalar trabalhadores desempregados, pequenos rendeiros e seareiros e outros pequenos agricultores, com vista à criação imediata ou futura, consoante desejo desses trabalhadores, de novas UCP;

– Cumprimento imediato da Lei dos Baldios, entregando essas vastas terras à exploração colectiva dos povos;

– Exacto cumprimento das leis de arrendamento rural e da abolição dos foros;

– Atribuição de créditos apropriados para fundos de maneio e para investimento em máquinas, gados e obras essenciais. Anulação das dívidas usurárias;

– Alargamento das isenções de impostos para trabalhadores da terra, fazendo pagar mais a quem mais pode;

– Garantia estatal de fornecimento e escoamento de produtos em devido tempo e a preços garantidos. Combate aos grandes intermediários parasitas;

– Desenvolvimento de Cooperativas e Uniões Cooperativas, como estruturas próprias dos trabalhadores,

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para resolver certos problemas de comercialização e industrialização de produtos, instalação de oficinas de reparação de máquinas, de parques especiais de maquinaria e de quadros técnicos;

– Reclamação de planos estatais para a expansão e barateamento da produção nacional de máquinas para a Agricultura e de adubos, realização de grandes obras de regra e electrificação rural, florestação, defesa da Natureza, melhoramento de vias de comunicação, de abastecimento de águas e do apetrechamento em instalações e quadros de escolas profissionais e serviços de saúde para as populações rurais, com vistas ao progresso das condições de produção e de vida nos campos;

– Participação efectiva dos trabalhadores, através das suas organizações, em todos os órgãos e medidas que lhes digam respeito;

- Em suma; cumprimento exacto do disposto na Constituição da República Portuguesa, promulgada em 1976.

Os avanços do processo económico e social na agricultura são um factor muito importante para a reanimação dos mais diversos sectores de actividade industrial e dos serviços, assim como para todo o processo de transformações económico-sociais no nosso País num sentido favorável a todos Os trabalhadores, ou seja, rumo à sociedade sem classes exploradoras, o socialismo.

A Reforma Agrária arrancou em grande força em Portugal nos princípios de 1975 e alcançou fases de alto nível em curtos meses.

Presentemente, há muito quem fale da Reforma Agrária em curso no nosso País.

Há os que se lhe opõem frontalmente, por óbvias razões: por privilégios de classes exploradoras em vias de serem liquidados pela acção revolucionária dos trabalhadores.

Mas existem também os que se dizem favoráveis à Reforma Agrária e muitas vezes têm actuado contra esse extraordinário processo libertador dos trabalhadores do campo, tantos os entraves, confusões e divisões que têm

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originado, em época especialmente aguda de luta de classes, na qual a unidade de todos os explorados é condição vital para o seu triunfo ou a sua quebra causa de derrotas sucessivas, embora não definitivas.

Ora, alguns destes pretensos defensores da Reforma Agrária vão ainda ao ponto de se considerarem e apresentarem como os autores desse processo revolucionário essencial.

E todavia desconhecem ou pretendem esconder não haveria, nem há, Reforma Agrária em Portugal sem o PCP e também sem a criação, o fortalecimento e a aguerrida luta dos Sindicatos dos Trabalhadores Agrícolas do Sul durante todo o ano de 1974, logo após o 25 de Abril.

E fazem por esconder ou ignoram mesmo que existem outros antecedentes, que vêm de muito antes do 25 de Abril, também objectivamente necessários ao desencadeamento, à defesa e ao avanço vitorioso do processo da Reforma Agrária: os constantes movimentos de massas proletárias rurais e camponesas, as formas orgânicas de diversos níveis utilizadas nessas lutas, o trabalho persistente de uma clandestinidade responsável.

Este livro de Álvaro Cunhal está vivamente inserido nesses processos de mobilização e organização de massas de trabalhadores da terra, pelos esclarecimentos que trouxe a inúmeros militantes que o puderam usar como material de estudo e consulta para o trabalho quotidiano nas lutas dos trabalhadores.

Saindo à luz do dia na sua primeira edição em Portugal, já com a Reforma Agrária em fase muito avançada, mas com complexos problemas, este texto de Álvaro Cunhal vai dotar os autênticos revolucionários de Portugal com um poderoso instrumento ideológico para bater vitoriosamente a ofensiva desesperada da reacção contra a Reforma Agrária e fazer triunfar o processo revolucionário de libertação de todos os trabalhadores, a caminho do socialismo.

Este livro fortalecerá ainda mais o proletariado do Sul na sua elevada consciência de classe, designadamente quanto ao direito de expulsar os exploradores e opressores e de tomar conta da riqueza que só ele criou, e ainda quanto â

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necessidade de se não deixar dividir, de manter firme coesão no trabalho de produzir e na repartição dos frutos produzidos, repelindo as formas de aburguesamento e outras artimanhas com que a reacção, ainda quando disfarçada de "revolucionarismo", intenta destroçar a sua enorme força quando em decidida unidade na acção.

O texto agora em publicação será também um precioso auxiliar de luta do proletariado agrícola do Norte e das ilhas, que está a avançar em crescente força com a criação e a actividade persistente dos seus Sindicatos.

Será igualmente um documento fundamental para o conhecimento dos problemas dos pequenos e médios agricultores de todo o País, dos destinos que lhes reserva a exploração capitalista mesmo após o 25 de Abril: sob uma política de direita, ainda que com a capa de social-democracia declarada ou encoberta num pretenso "socialismo", os seus bens irão passando aos ricos capitalistas, industriais, comerciantes, agiotas e outros exploradores do seu trabalho e restar-lhes-á não já a emigração, mas sobretudo a passagem à condição de proletários. Toda a organização e movimentação de massas do campesinato pobre do nosso País e em especial onde é mais numeroso, ou seja, no Norte e nas Ilhas, irá beneficiar grandemente com a difusão em maior escala deste estudo de Álvaro Cunhal.

Aos trabalhadores da cidade, este livro de Álvaro Cunhal permitirá abrir uma mais clara compreensão de que os processos económicos, sociais e políticos que se passam no campo estão intimamente relacionados com os das pessoas que trabalham e vivem nas vilas e cidades, e daí que o fortalecimento da mútua solidariedade e da unidade de acção entre trabalhadores do campo e da cidade, a aliança operário-camponesa, seja condição indispensável para a libertação geral dos trabalhadores.

Esta obra de Álvaro Cunhal foi instrumento de grande valor no lançamento dos processos de luta de massas que forjaram em Portugal condições favoráveis à destruição do Estado fascista e ao desencadeamento da Reforma Agrária libertadora de centenas de milhares de trabalhadores da terra do nosso Pais.

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A partir de agora esse livro irá ser um vigoroso instrumento de acção na defesa e avanço da Reforma Agrária em Portugal, assim como de todo o processo revolucionário conduzido pelos trabalhadores, pélas suas organizações, pelas suas mulheres e homens de vanguarda, autenticamente devotados à causa da liberdade de todos os que trabalham, rumo ao socialismo.

Setembro de 1976.Júlio Silva Martins

Prefácio à Edição Brasileira(1*)

Este trabalho foi preparado e escrito em circunstâncias particularmente adversas. Circunstâncias que limitaram os elementos de estudo e que obrigaram a fugir de considerar problemas, a calar idéias, a deformar a expressão delas, a riscar, a mutilar, a escrever menos do que pensávamos e pior do que sabíamos. Foi forçoso dar relevo a factos e números e apagar considerações teóricas; substituir, por vezes, a precisão e incisão da análise e as considerações próprias por uma forma descritiva e a abundância de citações; não ligar de uma forma viva os problemas económicos com os problemas políticos da actualidade.

Foi escrito com tais limitações. E também com a ideia de poder um dia ser publicado legalmente, mesmo com o visto da censura fascista. Tratava-se de aproveitar tristes e míseras possibilidades de trabalho e de "legalidade". Mas não se poderá dizer que só espíritos ensoberbecidos pelo receio de se mostrarem mais pobres do que cuidam ser podem recusar-se a aproveitar tais migalhas quando só delas dispõem?

As novas condições de nossa vida e as tarefas presentes se, por um lado, eliminam certas limitações, não concedem, por outro, o tempo necessário para refundir este estudo e actualizar os elementos estatísticos. Daí termos resolvido manter toda a sua estrutura e, além da introdução de alguns dados novos mais significativos numa nota final, fazer apenas uma rápida revisão para dar maior clareza à linguagem e tornar explícitas citações de escritores clássicos.

Talvez que, mesmo assim, o objectivo deste trabalho seja alcançado. Como se estudam nele leis e tendências gerais, a

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desactualização estatística de alguns anos não parece prejudicar a sua efectiva actualidade. Aliás, todos os elementos posteriores que conhecemos confirmam no essencial as teses defendidas. Lacunas graves são evidentes: ao corporativismo apenas se alude, apesar da sua extrema importância; não é dado relevo à natureza e papel das cooperativas; não são definidos objectivos, nem os termos da aliança do proletariado com os camponeses no momento presente. Se as condições o permitirem, pode ser que venhamos a tratar desses problemas num outro ensaio. Neste já o não podem ser.

Ao estudarmos o desenvolvimento do capitalismo na agricultura portuguesa (tema central deste ensaio), encontramos uma precisa confirmação das leis da evolução do capitalismo. Entretanto, esse mesmo estudo nos mostrou a cada passo os erros desconformes a que podem conduzir o esquematismo e o espírito dogmático. Guiamo-nos pela ideia de que nenhum defeito é mais grave num estudioso do que o apego teimoso a ideias feitas, contra a verdade dos factos, e nenhum cuidado mais necessário do que corrigir francamente pontos de vista, quando estes se mostram menos correctos. O estudo da realidade revela um sem-número de factos novos e imprevistos, às vezes desconcertantes. É necessário interpretá-los e explicá-los. Assim o fizemos na medida das nossas possibilidades, certos de não termos evitado faltas em assunto quase virgem para estudiosos portugueses, mas esperançados também em termos dado uma contribuição para o estudo da questão agrária em Portugal.

Fevereiro de 1966.

Álvaro Cunhal

1 - Jardim da Europa à Beira-Mar

Com 9 milhões de hectares e 9 milhões de habitantes, Portugal é um pequeno país. Mas, na Europa ocidental, a Áustria, a Irlanda, a Dinamarca, a Suíça, a Holanda, a Bélgica e o Luxemburgo têm superfície inferior, não chegando sequer a metade da portuguesa a dos cinco últimos. E, quanto à população, se a Bélgica e a Holanda têm mais, os outros países indicados e ainda a Grécia, a Suécia e a Noruega têm menos. Entretanto, quase todos esses países possuem uma

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indústria evoluída e uma economia relativamente desafogada, enquanto Portugal é arrumado entre os países pobres, atrasados, de indústria incipiente. A diferença é tanto mais notável quanto é certo que a burguesia portuguesa, ao contrário da burguesia da maior parte destes países, conta, como fonte permanente de riquezas, a exploração dos povos de vastas colónias e núcleos de emigrantes, cujas economias enviadas cada ano correspondem a mais do dobro das receitas com o turismo.

O mais chocante é o atraso da agricultura portuguesa em relação à dos outros países da Europa, muitos deles sofrendo extremos rigores de clima e ocupando vastos territórios incultiváveis. Dir-se-ia que muitas e piores adversidades pesam sobre os Portugueses. Dir-se-ia que os Portugueses vivem no mais desfavorecido canto da Europa e que a pobreza de sua vida e o atraso de sua economia, particularmente da agricultura, são produto directo e inelutável da natural pobreza da sua pátria.

Portugal não seria o cantado "Jardim da Europa à beira-mar", mas terra adversa e de maldição.

A "pobreza natural do País"

Segundo opinião teimosamente defendida, se é grande o atraso económico de Portugal e baixo o nível de vida do povo, se temos uma indústria incipiente e uma agricultura que não basta às necessidades, dever-se-iam tais factos apenas à pobreza dos recursos naturais: pobreza de energia, pobreza de minérios, pobreza do solo agrícola, além da traição de um clima de que se exaltam as delícias para os turistas, mas de que se acusam os desfavores para a agricultura.

Por muito cómoda que seja, tal justificação não é aceitável.

Em primeiro lugar: não se pode falar de "pobreza natural" quando se conhece mal o País, quando estão por fazer prospecções abrangendo todo o subsolo, quando só agora se começa a saber qual o potencial hidroeléctrico dos rios portugueses e quais as áreas susceptíveis de rega, quando uma grande parte da indústria vegeta em oficinas de técnica e equipamento envelhecido e a generalidade da lavoura usa processos rotineiros incapazes de arrancar do solo o que ele

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pode dar. Se "Portugal, quanto à possibilidade de riqueza é um país desconhecido"(1), como atribuir o atraso económico à "pobreza natural do País"?

Em segundo lugar: o que se conhece chega para dizer que as riquezas potenciais só em mínima parte estão aproveitadas. Qual, por exemplo, a situação em relação à energia e ao ferro, bases fundamentais do desenvolvimento económico geral? Portugal ocupa o último lugar na escala europeia de produção de energia eléctrica, com uma produção anual, em 1950, de 942 milhões de kWh, dos quais 437 milhões de energia hidroeléctrica, correspondendo a uma capitação de 119 kWh por habitante; mesmo que triplicasse a produção até 1960, o que não prevêem os planos mais optimistas, não ganharia um único lugar nessa escala; e, entretanto, corre para o mar, inaproveitada, a água que podia fornecer 10 biliões de kWh(2)– mais de 10 vezes toda a produção nacional (térmica e hidráulica) e 23 vezes a produção hidráulica em 1950. Portugal não produz ferro e aço, mas em Moncorvo e Vila Cova permanecem adormecidos cerca de 500 milhões de toneladas de minério de alto teor e de económica extracção, com que, à média do consumo actual, se poderiam produzir, durante séculos, o ferro e o aço que custam anualmente ao país mais de 500.000 contos. Justificar o atraso econónimo pela pobreza de recursos naturais, quando as riquezas estão assim à vista e inaproveitadas, é fraco modo de justificar a incapacidade do capitalismo e dos seus governos. Em terceiro lugar: contra quantos, segundo o presidente do Conselho, pretendem que não existem incultos e que salvo dunas e serras está aproveitado o que podia sê-lo, uma grande parte do solo nacional, embora de aptidões agrícolas e florestais, está totalmente ao abandono.

"Os incultos do país – escreveu Salazar – sobretudo do Alentejo, já nem sequer existem como imagem literária ou bandeira política. De um modo geral pode-se dizer que está aproveitado o que podia sê-lo, salvo a valorização proveniente de se converter em regadio parte do que é de sequeiro e o aproveitamento a fazer pelos serviços florestais das dunas e das serras."(3).

Será isto assim? Não existirão incultos? Estará aproveitado tudo quanto poderia?

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Segundo cálculos dos especialistas, reproduzidos pelas estatísticas oficiais, a superfície "inculta, mas cultivável" subia a 1.191.000 hectares em 1939(4), abrangendo as magras terras dos baldios apenas com aptidão florestal – as tais dunas e serras que se dizia ser tudo quanto resta por aproveitar. Mas, além ainda daquilo a que técnicos e estatísticas chamam superfície "inculta, mas cultivável", há aquilo a que chamam superfície "inculta, mas produtiva", que em 1939 subia a 1.484.000 hectares(5). Este quase milhão e meio de hectares era ocupado por terras incultas, pastagens naturais, terras áridas, etc., que não são de certo aproveitamento ideal, nem produto irremediável da pobreza do solo e de outras condições naturais desfavoráveis, conforme o mostra o facto de a superfície "inculta, mas produtiva" ter passado de 2 milhões de hectares, no princípio do século, para o milhão e meio em 1939. Tais terras são, na generalidade, de aptidão agrícola e até, em muitos casos, susceptíveis de elevadas produções. Mesmo considerando como ganhos para a cultura os 650.000 hectares que as estatísticas indicam como diferença, de 1939 para 1949, da área semeada dos principais produtos, vê-se que ao contrário da opinião de quantos afirmam não existirem incultos e estar aproveitado "o que podia sê-lo", cerca de 2 milhões de hectares de terra, pouco menos de um quarto da superfície total continental, encontra-se por cultivar, embora podendo sê-lo vantajosamente. E, depois, se, ano após ano, se repete que tudo está aproveitado e, ano após ano, aumenta a superfície semeada, não é este o melhor desmentido daquela afirmação?

Em quarto lugar: contra os que acusam a terra de pobre, pedregosa e adversa a culturas essenciais, que acusam os rios, as chuvas e as irregularidades do tempo, e daí concluem serem desfavoráveis à agricultura as condições do solo e do clima –Portugal oferece ricas e variadas aptidões agrícolas, em parte tão inaproveitadas como os jazigos de ferro que dormem nas montanhas ou a energia que se perde na água dos rios. Os cantores da "pobreza natural do País" repisam o que não temos ou o que temos mau, esquecendo o que temos bom, e ainda aquilo que temos mau e podíamos ter bom e aquilo que não temos, mas podíamos ter.

Com 4% de superfície territorial ocupada por vinhas, Portugal é o país do mundo onde estas ocupam

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proporcionalmente maior área(6),mostrando, assim, merecer bem o título de "país das uvas". Também o merece pela qualidade. Em parte alguma se encontram vinhos melhores do que os portugueses. Não já só esse maravilhoso produto que é o vinho do Porto, arrancado das penedias do Douro, mas os vinhos de pasto, os vinhos comuns. Se se produzem alguns vinhos abastardados e inferiores ninguém se atreverá certamente a atribuir isso à má qualidade do solo nacional e às irregularidades do clima, quando é sabido que tais vinhos saem, sobretudo, dos vinhedos instalados em várzeas férteis, que dão muito, mas vinho fraco, podendo dar óptimos cereais, frutas e diversos produtos hortícolas.

Se as frutas portuguesas são de qualidade e aparência incertas e demasiado variadas e irregulares, não se deve atribuir esse facto à qualidade do solo e à irregularidade do clima, mas antes ao desprezo e barbarismo como são tratadas as árvores frutíferas, ao excesso e dispersão de variedades, à falta de selecção e apuramento, às contiguidades nocivas dentro de cada pomar, tudo isto estimulado pela falta de mercados, que obriga, em muitos casos, rica fruta a apodrecer no chão ou a ser utilizada na alimentação do gado. As condições para a fruticultura são de tal forma favoráveis que, apesar do seu primitivismo e desorientação, é difícil encontrarem-se noutros países frutas mais perfumadas e saborosas. Portugal pode transformar-se num dos mais maravilhosos pomares do Mundo.

Se não temos florestas com madeiras caras para obras de arte, os carvalhais ocupam, entretanto, mais de 100.000 hectares(7), e mais podiam ocupar; os soutos de castanheiros para talhadia são tão viáveis como raros; o pinheiro marítimo, com a sua rica, embora mal cuidada, produção resinosa, que dá anualmente desde o fim da guerra 250.000 contos de produtos exportados, ocupa em Portugal área superior à ocupada em qualquer outro país europeu. Ainda dentro da cultura arbustiva e arbórea do tipo mediterrânico, além dos vinhos, das frutas, dos sobreiros, cite-se a alfarrobeira e anote-se a riqueza dos olivais, ocupando 370.000 hectares e produzindo a média anual de cerca de 650.000 hectolitros de azeite (1940-1949) e a bela azeitona curtida, alimento magnífico e apreciado produto da exportação; e, em parte alguma, medra mais espontaneamente o sobreiro que, com uma produção anual média de cortiça superior a 150.000

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toneladas(8), e exportações de cortiça em bruto de valor anual superior a 400.000 contos (1946-1950), tem em Portugal o seu solar.

Se os produtos hortícolas não são apurados na apresentação, isso não se deve a dificuldades naturais, mas aos métodos rudimentares e desconexos da nossa horticultura. Mesmo assim, exportam-se produtos hortícolas, tanto em verde como em conserva e podiam produzir-se e exportar-se quantidades incomparavelmente superiores. A própria batata, em que se mantém o vício da importação (atingindo desde o fim da guerra –1946-1950 – a média anual de 69.000 toneladas no valor de 73.000 contos) tem entre nós condições particularmente favoráveis de cultura. Não são quaisquer insuficiências do solo e do clima que explicam essas importações, como bem sabem os pequenos agricultores, quando em alguns anos vêem as suas colheitas apodrecerem sem mercado ou vendidas de tal forma ao desbarato que aconselham ou obrigam a restringir a sementeira do ano seguinte. Pode produzir-se, imediata e anualmente, sem qualquer dificuldade, o bastante para o consumo nacional, em qualidade e preço, nada invejando a batata estrangeira.

Se o efectivo de gado é reduzidíssimo, se a fome dizima em alguns anos o gado vacum, se se come pouca carne e de má qualidade, se se bebe pouco leite e os lacticínios são produtos de luxo, não se deve isso a condições naturais adversas, mas ao alimentar-se o gado quase exclusivamente nos campos áridos e pastagens naturais, ao se deixar, em muitos casos, apodrecerem-se as palhas, quando com um sistema apropriado de rotações, com erva semeada, com forragens fenadas e ensiladas, se poderia garantir alimento a um efectivo pecuário incomparavelmente superior.

E quantas belas possibilidades não estão completamente desprezadas? O açúcar de beterraba e o algodão só não se produzem porque não se tem querido nem sabido. E se não se produz tabaco, cuja importação tem custado anualmente, desde o o fim da guerra, cerca de 100.000 contos, não é porque o solo e o clima não permitam boas e remuneradoras culturas, conforme já está mostrado pela prática e que só a violenta proibição pôs termo, mas porque por um lado se defende o monopólio de fabrico e por outro a alfândega cobra

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anualmente mais de 200.000 contos de direitos sobre tabaco importado(9): a preferida riqueza do Estado aumenta neste caso em razão inversa da riqueza do País.

Mesmo em relação aos cereais é difícil concordar com os pregoeiros da "pobreza natural". Na Europa ocidental, Portugal é o país que mais milho produz Por habitante e nenhum o ultrapassa na quota da superfície territorial que lhe é dedicada. E quem se atreve hoje a negar as favoráveis condições para a cultura do arroz, quando em vinte anos quadruplicou a área cultivada e a produção passou de 25.000 toneladas em 1930 para 135.000 em 1950, de forma a poder dizer-se que se "caminha a passos agigantados para a crise por excesso"?(10)

Resta o trigo, além de outros cereais de pragana, sempre apontado como a sombra negra da nossa agricultura. As "oscilações climáticas" dominariam as "variações da produção" e estas "imporiam o suprimento da produção própria" com importações(11). O défice do trigo seria fatalidade imposta pelo clima. Apesar de que, em Portugal, nenhuma outra cultura abrange área superior à semeada de trigo (684.000 hectares em 1950 correspondendo a 11 % da superfície agrícola e a 8 % da superfície total), os especialistas são unânimes em afirmar a existência de condições naturais desfavoráveis. Ao definirem, porém, em que consistem tais condições desfavoráveis, já não há a mesma unanimidade. Segundo uns, o maior prejuízo para a cultura vem da secura em Maio, "período crítico na vida do trigo"(12). Segundo outros, "o que prejudica principalmente a cultura do trigo é o excesso de água, o excesso de chuvas", confirmando o velho provérbio de que "a fome entra em Portugal a nado"(13), e confirmando também o velho adágio popular: "Em Janeiro se subires ao outeiro e vires verdejar, põe-te a chorar, mas se vires terrejar, põe-te a cantar". Isto seria tão verdade que alguns técnicos vão ao ponto de sugerir que a abundância de trigo está em razão inversa da abundância da chuva, argumentando que, de 1915 a 1945 o ano de menor pluviosidade anual – 1935 com 426 milímetros – foi um dos anos de maior colheita de trigo; e o ano de maiores chuvas – 1915 com 898 milímetros – um dos anos de menor colheita(14). Chuva a mais segundo uns, chuva a menos segundo outros – tais são contraditoriamente no parecer dos

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mais categorizados especialistas as condições desfavoráveis à cultura do trigo em Portugal.

Se não há, porém, acordo quanto aos desfavores da natureza, todos os especialistas estão de acordo em que a fraca produção global do trigo e a sua fraca produção unitária se podem atribuir em grande parte à má selecção e variedades; à falta de gado, ao pouco estrume e poucos adubos; à não existência de rotações convenientes; à débil luta contra as ervas daninhas – ou seja, em suma, ao deficiente esforço do homem na sua luta contra a natureza. É aqui, e não no clima, nas chuvas, no solo, que reside a verdadeira explicação da insuficiência da cultura do trigo.

Vendo a floresta descuidada, quase espontânea, dar ao país algumas das suas maiores riquezas, há naturalmente quem lamente não se passar o mesmo com as culturas agrícolas. Subindo a 400.000 contos o valor anual médio das exportações de cortiça em bruto desde o fim da guerra, a que há a juntar mais 350.000 contos anuais médios de cortiça em obra, seria do gosto de muitos agrários que os grãos de trigo brotassem com a facilidade e a escassez de encargos da casca de sobreiro. Comodamente encostados ao rendimento da cortiça e do gado de manadio e senhores de milhares de hectares de terra, muitos agrários desprezam a cultura dos cereais e, porque esta exige cuidados e emprego de capital que eles não têm ou não querem empregar dessa forma, exploram-nos "extensivamente" ou entregam-nos a pequenos agricultores sem recursos forçados a fazer o mesmo. Em tais condições, como levar a sério que se acuse dramaticamente a natureza de todas as culpas, quando falta habilidade para se dizer de forma airosa que o atraso da agricultura portuguesa é "culpa de todos e de ninguém"?(15)

Ao contrário do pretendido pelas acusações à natureza feitas pelos economistas e técnicos burgueses, vivemos num canto do mundo onde há necessariamente dificuldades para uma ou outra cultura, onde há o óptimo para umas e apenas o regular para outras, mas que, no seu conjunto, apresenta ricas e variadas aptidões agrícolas. E, se não se deve considerar, como fazem almas inocentes, que a natureza "tão pródiga nos é que causamos inveja a todo o mundo"(16), pode bem considerar-se não haver razões para invejarmos os

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outros, quando temos no nosso país condições naturais que permitem uma agricultura próspera e rica.

As lamentações acerca da "pobreza natural do País" equivalem à ideia de poder o homem estar à espera de que a natureza faça aquilo que só o trabalho pode fazer. Se, por exemplo, há água num lado, terrenos secos noutro e possibilidade de conduzir aquela até estes, mal se compreende a acusação feita à natureza. A seca está suspensa sobre as culturas como a célebre machadinha sobre a cabeça do menino. Ela ameaça de facto. Cabe à diligência do homem que deixe de ameaçar. Aqueles que cruzam os braços, gritando a altos brados que a seca pode matar as culturas, não excedem em valor os que cruzaram os braços diante da machadinha, sem se lembrarem de a tirar de onde estava.

Predominam em todo o sul do Tejo fracas culturas de sequeiro, com longas terras incultas e baixos rendimentos; e, entretanto, só o Tejo, à sua conta, pode fornecer mais de dois biliões de metros cúbicos de água para rega, há possibilidade de produzir energia barata para a sua bombagem, há locais apropriados para o seu armazenamento e, além de 130.000 hectares de terras ricas do Ribatejo susceptíveis de rega fácil e económica e de cerca de 100.000 hectares de terras ricas já apuradas nos distritos de Évora e de Beja, só as áreas do pliocénico, ao sul do Tejo, oferecem, dominados pela cota de 125 metros, 400.000 hectares de terrenos sedentos de água(17).

Além disso, embora o esforço do povo trabalhador para a captação das águas seja uma grande epopeia, há, no conjunto nacional, extensas áreas de sequeiro, para a rega das quais existem abundantes águas subterrâneas. Nas serranias minhotas, as pequenas e rudimentares culturas têm pouca água "por mal aproveitada"(18). Nas serranias transmontanas, citam-se casos em que metade da área em cultura de sequeiro pode "facilmente ser regada" e em que mais de 30% e de 40% da vasta superfície inculta é também aproveitável em cultura de regadio(19). No pliocénico ao sul do Tejo há, "um pouco por toda a parte, uma camada aquífera de pequena profundidade", podem indicar-se, "quase de quilómetro a quilómetro, pontos em que um poço de 6 a 10 metros de profundidade forneceria um caudal apreciável", e pode

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afirmar-se que "não é por falta de água que o pliocénico tem sido tão abandonado até aqui"(20). Como "abundam brejos não rompidos, pauis, charcos e juncais não enxutos", pode confirmar-se que "a água não falta, o que falta é saber e poder aproveitá-la"(21). Também no Sul, mas fora do pliocénico, numa freguesia em pleno Alentejo, estudada com cuidado, observam-se "lençóis de água subterrânea a pequenas profundidades", mas, dado o pequeno número de poços e o processo de elevar a água a corda e caldeira, a água fica, muitas vezes, "inteiramente desaproveitada"(22). Não é este um caso anormal. Por todo o Alentejo "a constituição geológica permite prever a existência de lençóis subterrâneos em condições favoráveis de utilização"(23) e, se o escoamento de águas é grande, elevada a evaporação e baixa a capacidade de absorção dos solos, isso não se deve à inelutabilidade de condições naturais desfavoráveis, mas à deficiente arborização, ao predomínio de montados de fraca densidade e à pouca matéria orgânica incorporada no solo.

Em 1936, arvorando a "pobreza do País" em mal irremediável, Salazar garantia não irem além de 150.000 hectares "as possibilidades de rega do continente"(24). Todos reconhecem, hoje, ser a área Susceptível de rega incomparavelmente superior. Quatrocentos mil hectares? Quinhentos mil? Cerca de 1 milhão? De qualquer forma, sendo pouco profundos em vastas áreas de sequeiros os lençóis subterrâneos; existindo, como existe, água superficial para rega, sendo muito extensas as terras dominadas por cotas que tornam viável a construção de canais; abundando em potencial na água dos rios a energia para a bombagem; não faltando locais próprios para albufeiras – é evidente não ser pela "pobreza natural do País" que em centenas de milhares de hectares as culturas morrem de sede.

Tanto o problema da rega como o problema mais vasto da luta contra a seca – em que aquele está compreendido – são problemas que, embora resolúveis, a natureza por si jamais resolverá. Enquanto, em vez de construírem o futuro com os braços, os homens esperarem as decisões da natureza, a machadinha continuará permanentemente suspensa e ameaçadora e a seca continuará sendo um "flagelo" resultante da "pobreza natural do País".

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Numa vila portuguesa, a alguns quilómetros, existe uma capela. Quando chove de mais, uma procissão leva a santa da capela para a igreja, no meio das preces do povo encharcado; quando a seca é o mal, a procissão faz-se em sentido inverso e os penitentes suam.

Há quatrocentos anos, num auto de Gil Vicente, contava o Brás pastor:

Alia en nuestro lugar,Si no viene lluvia ni vella,Toman una como aquella,Nuestros amos á clamar:Ora pro nubes, ora pro nubes;Y las mujeres ansiLa que mas gritillo tiene,Mas, apesar das réplicas e dos gritos,la lluvia ni va ni viene(25).

Na história da humanidade, os homens oscilaram sempre entre a timidez diante da natureza poderosa e desconhecida e a audácia na luta contra ela. Do mar, dos ventos, das forças naturais, fizeram deuses omnipotentes. Mas não faltou quem arremessasse setas aos céus de trovoada ou se lançasse às águas tempestuosas a feri-las com as suas armas. O que tornou o homem senhor do mundo não foi a timidez, mas a audácia, não foi o sentimento da sua pequenez, antes a confiança em si próprio.

Só os sistemas decadentes aceitam as dificuldades naturais como fatalidade inelutável, declarando o homem à mercê da natureza e concluindo dever esperar-se que a natureza ofereça, em bandeja, a prosperidade e a abundância. A verdade é recusar sistematicamente a natureza aquilo que está disposta a dar através do trabalho do homem. Como dizia o filósofo, ela é, ao mesmo tempo, "sua mãe comum e sua infatigável inimiga"(26).Receber as dádivas da natureza é arrancá-las pelo trabalho, pela luta contra ela. Aquilo que, em muitos casos, hoje se considera favor da natureza – ricos solos agrícolas, florestas, águas, espécies vegetais e animais úteis ao homem – não é senão o produto do trabalho de gerações atrás de gerações.

Há diferenças, sem dúvida, entre as várias regiões do globo, sendo umas regiões mais acolhedoras e fáceis do que

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outras. Nesse sentido Portugal não é um país pobre: se, em Portugal, nem tudo são favores da natureza, muitos são esses favores. Estamos tão longe de ter esgotado os recursos naturais que bem pode dizer-se mal termos nós ainda começado a aproveitá-los.

A riqueza de uma nação não está, nem apenas no fundamental, nas "dádivas da natureza", na capacidade e no esforço do homem para arrancar da natureza o que ela por si pode dar, e para forçar a natureza a dar o que espontaneamente jamais daria.

Um País "Essencialmente Agrícola"

Apesar das condições naturais favoráveis para a agricultura, esta não basta às necessidades do País. Diz-se que Portugal "quer pela sua população, quer pelo seu trabalho, quer pelas suas possibilidades, é, e não poderá deixar de ser, um país predominantemente agrícola"(27): repete-se, em todos os tons, esta opinião; confirmando-a, as estimativas do rendimento nacional, para os anos de 1949 e 1950, atribuem à produção agrícola e silvícola um valor ultrapassando os 10 milhões de contos, ao passo que a produção industrial e mineira não alcançaria o mesmo(28); a quota dos produtos agrícolas ultrapassa metade do valor das exportações; e, entretanto, a agricultura portuguesa não chega para abastecer o País, nem em alimentos nem em matérias-primas. Sendo a agricultura a sua maior riqueza, Portugal depende da importação de produtos agrícolas.

Decerto, nenhum país se pode abastecer totalmente a si próprio, e só o facto de estar o Mundo dividido por antagonismos e por ameaças de conflitos armados induz alguns Estados a procurarem, na medida das suas possibilidades, uma autarquia artificial, depauperante, antieconómica e anti-histórica. O mal não estaria, pois, em se importar do que se carece e não se pode produzir economicamente, em se ser mesmo deficitário em produtos agrícolas, desde que a isso correspondesse o desenvolvimento das culturas mais favoráveis e dos outros ramos de economia nacional, permitindo exportações compensadoras.

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Decerto, também, nenhum dos pequenos países que cuide da sua independência pode, hoje, converter-se às ideias (defendidas pelos imperialistas) da "especialização internacional no desenvolvimento industrial", que, quando aceites, os reduzem a simples fornecedores de matérias-primas e alimentos de cultura menos remuneradora, ou seja, a "países agrícolas atrasados" de economia subsidiária dos "países industriais adiantados". O mal não estaria, pois, em não se ser um país exportador de matérias-primas produzidas pela agricultura e mesmo de alimentos, desde que a isso correspondesse um desenvolvimento da indústria e da riqueza em geral. O mal está em que, sendo Portugal um país "essencialmente agrícola", aceitando-se na prática a tal "especialização internacional" e o papel de "país agrário atrasado" subsidiário dos "países industriais adiantados", se seja, afinal, dependente em produtos agrícolas, abrindo regularmente, a estes últimos países, os mercados portugueses para artigos que a agricultura portuguesa produz ou pode produzir: de tal forma que o valor dos produtos agrícolas importados excede o valor dos produtos agrícolas exportados, sem qualquer compensação nos outros ramos da economia.

A tabela 1 compara a importação e a exportação de produtos agrícolas em 1947. E que se vê? Nos produtos alimentícios um défice em cereais e legumes secos ultrapassando 1 milhão de contos. Um défice de batatas de quase 100.000 contos. Um défice em carnes de 150.000 contos. Um défice de mais de 300.000 contos em açúcar. E ainda défice em gorduras e em lacticínios. Os saldos favoráveis em bebidas, produtos hortícolas (com excepção da batata), frutas e conservas vegetais estão longe de cobrir o défice de produtos alimentícios, subindo a diferença a mais de 1 milhão de contos. Nos outros produtos da agricultura, silvicultura e pecuária, embora as exportações de produtos florestais (cortiça, madeira e resinosos) tenham subido a mais de 700.000 contos, não chegaram para cobrir os défices em lã, peles e couros, algodão e outras fibras, tintórios e tanantes, óleos e tabaco. No conjunto, as importações de produtos agrícolas (abrangendo com esta expressão os silvícolas e pecuários) Ultrapassaram as exportações em 1.500.000 contos, ou seja, o equivalente a mais de um terço das receitas ordinárias do Estado.

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Este desequilíbrio não se pode, é certo, atribuir apenas às deficiências da agricultura nacional, mas também às dificuldades e deficiências de orientação no comércio externo – no "nosso decadente comércio externo" –, como disse pessoa abalizada para o dizer(29), dificuldades e deficiências de orientação que tornaram possível, no curto espaço de 5 anos (1945-1949) um excesso de cerca de 20 milhões de contos das importações sobre as exportações – mais do que o total das despesas extraordinárias do Estado desde 1928 até à actualidade! Embora Salazar aponte, melancolicamente, pedras e calhaus, lamentando que os estrangeiros não queiram comprar tal mercadoria(30), e insinue, assim, que Portugal só não vende mais porque a nossa "pobreza natural" nada mais dá para vender – muitos ricos e abundantes produtos da agricultura portuguesa só não são exportados em maiores quantidades porque os grandes países abastecedores do mercado português, embora não se acanhem em mandar artigos de luxo e de bazar e concorram mesmo com os produtos da agricultura portuguesa no nosso mercado interno, se têm recusado a comprar produtos portugueses que não consideram essenciais. Tal o caso dos vinhos do Porto, cuja média anual de exportações depois da guerra (1945-1949) tem sido de 210.000 hectolitros, quando nos últimos cinco anos antes da guerra (1934-1938) fora de 410.000 e nos anos de 1925-1927 havia sido de 510.000 hectolitros. O mesmo se podia dizer das frutas (particularmente figos) e de outros produtos. Antes de nos levarem os calhaus, já não seria mau que nos comprassem produtos tão preciosos como os vinhos, as frutas, as cortiças.

TABELA 1Importação e exportação de produtos da agricultura,

silvicultura e pecuária(31)

 Milhares de toneladas Milhares de contosImportaç

ãoExportaç

ão + - Importação

Exportação + -

I.Animais vivos 1 - -1 8 7 -1

II. Produtos alimentíci

os597 97

-500

1.875 786-

1.089

1. 2 88 86 19 634 615

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Bebidas e derivados2. Farináceos

388 --

388

1.113 --

1.113

3 Batata 80 2 -78 97 5 -924. Produtos hortícolas

- 4 4 - 10 10

5. Conservas vegetais

- 1 1 - 14 14

6. Frutas - - - 6 92 867. Carnes 10 - -10 148 3 -1458. Gorduras 2 1 -1 29 12 -179. Lacticínios

2 - -2 78 5 -73

10. Açúcar 101 -

-101

307 - -307

11. Cacau, chá,

9 - -9 70 - -70

12. Vários 2 1 -1 7 11 4

III. Outros

produtos173 356 18

3 1.298 890 -408

1. Lã 7 - -7 298 11 -2872. Peles e couros 8 - -8 195 10 -1853. Algodão 26 - -26 300 - -3004. Outras fibras 11 - -11 88 1 -875. Óleos vegetais 67 - -67 184 4 -180

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6. Tabaco em folha 4 - -4 100 - -1007. Madeira cortiça e derivados

43 268 225 98 522 424

8. Resinosos

- 59 59 - 281 281

9. Tintórios e tanantes

6 - -6 22 - -22

10. Vários - 27 27 13 61 48

IV. Alimento

para gado

15 5 -10 30 9 -21

Total 786 458-

328

3.211 1.692-

1.519

Entretanto, se é verdade que mais produtos da agricultura se podiam exportar, não é menos verdade que, apesar das belas aptidões agrícolas do País, a agricultura não produz, nas condições presentes, o bastante para satisfazer o consumo nacional dos artigos que podia produzir e para cobrir com exportações o que o consumo nacional exige se importe.

Poupado Portugal aos estragos da Segunda Guerra Mundial pelas conveniências hitlerianas, a grande burguesia pôde negociar e traficar com os beligerantes vendendo os produtos nacionais. Pela ausência de destruições, pelo esforço para se auto-abastecer de alimentos num mundo em guerra, era de esperar que, terminado o conflito, Portugal aparecesse com uma situação relativamente melhorada, particularmente no referente à agricultura e, nesta, aos produtos alimentares. Ao contrário, porém, desta expectativa, a situação após a guerra apareceu ainda mais grave.

Antes da guerra (1935-1939), o valor das bebidas exportadas cobria o valor das importações de cereais e outros

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farináceos; depois da guerra, o valor destas últimas excede largamente o das bebidas exportadas, subindo tal excesso a mais de 2 milhões de contos nos anos de 1945-1949. Antes da guerra (1931-1939), importaram-se anualmente em média 279.000 toneladas de substâncias alimentícias, das quais 155.000 de cereais e outros farináceos; depois da guerra, tais importações mais do que duplicaram, subindo a média anual em 1945-1949 para respectivamente 581.000 e 412.000 toneladas. Desde o princípio do século, estas médias apenas em 1927, 1928 e 1930 tinham sido excedidas, tornando-se, assim, norma o que era excepcional. É clara, não só a gravidade da situação, como a sua piora.

Não é, contudo, este desequilíbrio no comércio externo o único aspecto grave de dependência do estrangeiro de um "país essencialmente agrícola" como o nosso.

Um país não pode considerar-se independente no ponto de vista agrícola apenas pelo facto de não ser deficitário no referente aos produtos agrícolas (o que infelizmente não é o caso português), mas sim quando o não é também nos artigos essenciais à exploração do solo, no referente a adubos, a insecticidas e fungicidas, a máquinas e utensílios, etc. Também nesse domínio Portugal é altamente deficitário.

Em 1947, semelhante neste particular a qualquer dos anos posteriores à guerra, as importações e exportações de artigos subsidiários da agricultura apresentavam-se nos seguintes termos(32):

 Milhares de toneladas Milhares de contosImportaç

ãoExportaç

ão +- Importação

Exportação +-

Adubos 248 2-

246

193 1 192

Fungicidas e insectisidas

2 - -2 13 - -13

Máquinas e alfaias - 1 1 13 12 -1

Total 250 3 - 219 13 -

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247

206

Embora fosse quase nula a importação de máquinas agrícolas (de valor ligeiramente superior ao dos brinquedos importados...) apresenta-se um défice de mais de 200.000 contos. Ao reparar-se que de "enxadas cafreais" Portugal exportou um valor sensivelmente igual ao das máquinas e aparelhos agrícolas importados, tem-se uma ideia de como qualquer progresso técnico importante na agricultura portuguesa exigirá grandes fornecimentos estrangeiros e um aumento substancial do défice em produtos subsidiários da agricultura, hoje devido quase exclusivamente à importação de adubos.

Não é por falta de condições para a produção em Portugal de artigos subsidiários da agricultura que esta situação se mantém. Importam-se, por exemplo, aduelas para o fabrico da embalagem dos vinhos e, todavia, tal importação – di-lo, com estranha gramática, um especialista – "pode ser eliminada completamente pelo cravo rubra que até dão (sic) bolota no Porto, se deles (sic) se fizer devesas"(33). Os adubos químicos pareciam inacessíveis à produção portuguesa; e as novas fábricas mostram a completa viabilidade de o País se auto-abastecer. Quanto à maquinaria agrícola, de que se gasta tanto com as "enxadas cafreais" exportadas, mas de que se virá, por certo, a gastar incomparavelmente mais, também se virá a mostrar não ser sonho nem utopia afirmar-se a viabilidade da sua produção.

No mundo de hoje, uma agricultura independente implica a existência de uma indústria. E não só isso. Implica que essa indústria seja uma indústria independente. Se um país se liberta das importações de produtos subsidiários da agricultura, se deixa assim de pagar aos produtores estrangeiros esses produtos como importações, mas para continuar a pagá-las aos mesmos ou outros produtores estrangeiros, com a única diferença de que estes produzem agora, não nos seus países, mas no antigo país importador, não se pode ter por entusiasmante para este uma tal mudança. A diferença essencial entre a exportação de mercadorias e de capitais reside no facto de que, enquanto no primeiro caso a mais-valia é produzida no país exportador, embora realizada no importador, no segundo caso é

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produzida no país importador: se os capitalistas de um país preferem a exportação de capitais à de mercadorias, é porque conseguem maiores lucros. Assim, se se deixa de importar determinado artigo para que se produza no País em empresas dominadas por capital estrangeiro, o que deixa de sair "visivelmente" em pagamento das importações sai "invisivelmente" e reforçado na forma de lucro. Além disso, substituindo-se as importações pela instalação de uma indústria movida por capital estrangeiro, quebra-se uma cadeia para se soldar outra mais forte, pois atrás e à frente do capital estrangeiro corre sempre um cortejo de exigências, pressões, intervenções, poderes efectivos na política interna, agravando a situação de dependência. É isso, infelizmente, o que se verifica em Portugal nos dias de hoje.

Um dos passos mais significativos que está sendo dado no sentido de uma importante diminuição das importações de produtos subsidiários da agricultura é a fabricação de sulfato de amónio. Pelas posições das sociedades concessionárias tal fabricação fica em grande parte nas mãos de capitalistas estrangeiros. Além disso, o amoníaco é hoje fabricado (em Alferrarede e Estarreja) por via electrolítica, e os capitais estrangeiros têm forte posição na indústria eléctrica (de que a rega em grande escala está também dependente). Finalmente, depois de se ter pensado que, pela falta de carvões e óleos nacionais e pela abundância de possibilidades hidroeléctricas, e mais particularmente de energia temporária, a produção electrolítica de hidrogénio era aconselhável – e foi nessa base que se entrou pelo caminho da produção de sulfato de amónio e se construíram as fábricas à espera da energia –, o atraso das realizações hidroeléctricas e o preço da energia levam a fazer-se agora uma revisão apressada mas radical do problema, no sentido do fabrico do hidrogénio "a partir da gaseificação de combustíveis sólidos e líquidos"(34). "Parece que a solução do problema – diz-se – tem de se orientar no sentido do fabrico com base no hidrogénio químico."(35) E como a nova fábrica de Rio Maior, ou outra eventual, à boca da mina, da Batalha, pouco poderão produzir, isto significa que a produção do sulfato de amónio virá a estar dependente de novas e importantes importações de carvões e mais particularmente de óleos. Assim, em todas as hipóteses presentemente prováveis, embora fabricando-se em Portugal adubos químicos que dantes eram importados, a agricultura

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portuguesa continuará em matéria de adubos em larga medida dependente do estrangeiro.

Vê-se que, sendo as condições naturais favoráveis a uma agricultura próspera e rica, sendo Portugal um "país essencialmente agrícola", a agricultura não satisfaz as necessidades nacionais de artigos que muito bem podia produzir, não cobre com as exportações as importações de produtos agrícolas e depende da indústria estrangeira em matéria de produtos subsidiários.

E a verdade é que, enquanto, no mundo de hoje, Portugal for deficitário em produtos agrícolas, sua grande riqueza presente, enquanto não for independente sob o ponto de vista agrícola, não poderá haver desafogo na economia nacional.

Produção e Consumo

Mesmo que ao aumento das importações de géneros alimentícios correspondesse um aumento de consumo da população portuguesa, essas importações continuariam sendo, economicamente, desvantajosas, a não ser que se operasse uma viragem radical em toda a economia portuguesa de forma a deixar Portugal de ser o "país essencialmente agrícola" que hoje é. Entretanto, sempre se encontraria uma compensação no momentâneo aumento de consumo. Mas as coisas não se passam assim. As importações de géneros alimentícios aumentam ao mesmo tempo que os consumos por habitante diminuem.

Segundo os próprios cálculos das estatísticas oficiais, a capitação de consumo da grande maioria dos produtos agrícolas foi, no quinquénio 1945-1949, inferior à do decénio 1926-1935. O consumo anual de trigo por habitante, no continente, passou de 77 para 70 quilos; o consumo de centeio de 16 para 15 quilos; o de milho de 59 para 48; o consumo dos três cereais em conjunto de 152 para 132 quilos. O consumo de arroz desceu de 12 para 9 quilos e o de azeite de 9 para 8 litros. O consumo de feijão e grão-de-bico manteve-se sensivelmente igual. Só a capitação de batata e do vinho teria subido, respectivamente, de 70 para 105 quilos e de 87 para 94 litros(36).

Quanto ao consumo de carne de vaca, o peso de adultos e adolescentes abatidos é sensivelmente igual ao que era há 50

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anos. Considerando apenas o último quarto de século, as capitações anuais teriam descido de 3,8 quilos em 1926-1935 para 3,6 em 1936-1945, para 3,5 quilos em 1945-1949. Regista-se, é certo, um aumento de 7 para 8 quilos da capitação do consumo geral de carne (de vaca, de carneiro, de porco e de cavalo), mas este aumento corresponde mais ao alargamento da inspecção a suínos e ovinos abatidos do que a um real aumento de consumo. Em Lisboa e Porto (onde não há divergência entre o número de reses abatidas e inspeccionadas), verifica-se não só uma diminuição progressiva nos últimos 25 anos dos bovinos aprovados para consumo (e, consequentemente, forte redução das capitações dado o grande aumento populacional), como uma diminuição geral da capitação de consumo de carne de todas as espécies pecuárias em conjunto. A capitação do consumo anual de carne bovina desceu em Lisboa de 11 quilos em 1926-1935, para 7 quilos em 1945-1949, e no Porto de 20 para 12 quilos; e a capitação do consumo total de carne desceu em Lisboa de 23 para 14 quilos e no Porto de 23 para 16 quilos(37). Para melhor se julgar a situação grave que estes consumos reflectem, basta dizer que, contra a capitação portuguesa de 132 quilos de cereais panificáveis em 1945-1949, a capitação média nos países do Plano Marshallfoi de 159 quilos em 1946-1948; contra a capitação portuguesa de 105 quilos de batatas em 1945-1949, a capitação média nos mesmos Países foi de 228 quilos em 1947-1948; e, nos mesmos anos, contra a capitação portuguesa de 8 quilos de carne, a capitação média dos países do Plano Marshall foi de 30 quilos, excedendo os 40 na Suécia e os 50 na Dinamarca e Inglaterra(38). Não há dúvida de que, em Portugal, come-se mal e pouco. E como suceder de outra forma? Se em 1940 – ano em que se fez censo das pessoas e dos bichos – se tivessem consumido 40 quilos de carne por habitante na base das nossas existências pecuárias, teriam sido devorados todos os bovinos de trabalho e ceva, velhos e novos; todos os suínos grandes e pequenos; todos os ovinos e caprinos, machos e fêmeas de todas as idades; e, depois dessa hecatombe, teria ainda de ser devorada a totalidade dos bovinos leiteiros e a totalidade de cavalos e éguas de todas as raças e idades. Só à custa do completo extermínio de todas as espécies apontadas se conseguiria uma capitação de consumo de 40 quilos, coisa vulgar antes da guerra em países do Ocidente europeu.

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Entretanto, em relação aos artigos alimentares de luxo (importados ou de produção nacional) a evolução dá-se no sentido contrário. É o que sucede com as indústrias de confeitaria e também com o chocolate e cacau, em que vemos a produção de bombons subir de 80 toneladas em 1940 para 279 em 1949, a produção de cacau em pó de 154 para 270 toneladas, a de chocolate em pó e moldado de 438 para 655 toneladas(39). É o que sucede também com bebidas "finas" (gins, brandes, uísques, conhaques), podendo bem dizer-se que tendem a diminuir as bebedeiras de vinho tinto, deselegantes, populares e de rua, para aumentarem as grossuras de vinhos espirituosos, odorantes, aristocráticas e de salão. É ainda o que sucede com os produtos de salsicharia, em cujos estabelecimentos de fabrico foram em 1944 consumidos 136.000 porcos equivalentes a 13.000 toneladas e em 1949, 225.000 porcos equivalentes a 22.000 toneladas(40). Em relação ao número de porcos abatidos para consumo a percentagem dos consumidores na indústria de salsicharia passou de 45% para 53%; em relação à tonelagem dos porcos aprovados para consumo, de 52% para 61%. Mas não só isso. Dentro da própria produção, nota-se, nos mesmos anos, o aumento absoluto e em percentagem de fiambres e "outros produtos preparados", isto é, artigos de maior luxo, e a diminuição da percentagem de ensacados, outros fumados e salgados. Mostra-se haver um desvio de consumo das classes populares e médias para consumo das classes abastadas.

O aumento das importações de géneros alimentícios, acompanhado pela diminuição da capitação dos consumos da grande maioria dos produtos agrícolas da alimentação popular e do crescente consumo de artigos alimentares de luxo, indica não só que, apesar do recurso crescente à produção agrícola de outros países, o nível alimentar do povo não tem melhorado como também que a agricultura portuguesa se mostra cada vez menos apta para satisfazer as necessidades do país.

Isto não significa que se esteja a assistir a uma progressiva diminuição global da produção agrícola e pecuária. Há diminuição nuns casos e aumento noutros.

TABELA 2 Produções anuais médias(41)

Page 60: Contribuição Para o Estudo Da Questão Agrária

  Unidade 1926-1935 1936-1945 1945-1949Trigo

1.000 t

420 381 386Milho 333 337 314

Centeio 115 104 139Arroz 33 72 72

Batata 471 692 903Azeite 1.000 hl 546 620 667Vinho 6.930 9.000 8.614

Conforme mostra a tabela 2, nota-se um aumento no último quinquénio na produção de centeio; uma baixa na produção de milho depois da guerra em relação aos vinte anos anteriores; e uma baixa na produção de trigo em relação a 1926-1935, embora aumento em relação a 1935-1945. No conjunto dos três cereais panificáveis indicados, a produção média anual nos três períodos foi de 868.000, 822.000 e 839.000 toneladas, notando-se um retrocesso em relação a 1926-1935. Ao mesmo tempo, verifica-se, no último quarto de século, um aumento progressivo na produção da batata, azeite, vinho e arroz (sendo de acrescentar que, em 1950, a produção de arroz atingiu a cifra recorde de 135.000 toneladas).

O efectivo pecuário nacional das espécies comestíveis – de que talvez por temor das tristes verdades não se faz arrolamento desde 1940 – não tem tido, no conjunto, oscilações de vulto. O número de bovinos no continente era de 768.000, em 1925; 778.000, em 1934; 832.000, em 1940. O de cavalos (cuja carne aliás pouco se come) respectivamente 80.000, 86.000 e 81.000. O de ovinos, 3.684, 3.224 e 3.890 milhares. O de caprinos, 1.558, 1.257 e 1.196 milhares. O de suínos 1.117, 1.139 e 1.177 milhares(42). No conjunto, reduzidos os efectivos destas espécies a "cabeças normais", temos, para os três arrolamentos, 1.604, 1.557 e 1.670 milhares, o que mostra também uma prática estagnação.

As estimativas do rendimento nacional confirmam esta estagnação da produção agrícola portuguesa. Reduzido a preços de 1938, o valor do rendimento nacional da agricultura e silvicultura teria sido de 3.347.000 contos em 1938 e 3.585.000 em 1949. Dando ao rendimento nacional de 1938 o

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valor de 100, os índices de 1947, 1948 e 1949 teriam sido, respectivamente, 95, 110 e 107(43).

Fácil é de ver que, dado o importante aumento da população – mais de 2 milhões de 1920 a 1950 – estes ligeiros aumentos da produção agrícola (mesmo se os tomarmos como reais) representam efectivo retrocesso da agricultura portuguesa na sua aptidão para satisfazer as necessidades de consumo. As graves baixas das capitações da produção agrícola, particularmente no que respeita aos cereais, mostram-no claramente.

A produção média anual de trigo por habitante foi em 1926-1935 de 66 quilos, em 1936-1945 de 53 quilos e em 1945-1949 de 50 quilos. A produção média anual de milho por habitante, respectivamente, 52, 47 e 40 quilos. A produção de trigo, milho e centeio em conjunto 136, 114 e 107 quilos(44).

Na pecuária, o número de cabeças por 1.000 habitantes vinha decrescendo de forma notável até 1940, e é de presumir que essa tendência se tenha continuado a acentuar: bovinos 136 em 1925; 122 em 1934, 117 em 1940. Cavalares, respectivamente, 14, 14 e 11. Ovinos, 655, 507 e 543. Caprinos, 277, 198 e 167. Suínos, 198, 179 e 164. "Cabeças normais", 322, 284 e 266(45). Esta diminuição relativa do efectivo pecuário está na base da grande baixa do consumo de carne, fazendo admitir que outro tanto se esteja passando com a produção e consumo de leite. Em 1940, a produção de leite, por habitante, era de 15 litros(46), quando na Inglaterra subia a 120 litros; na Noruega, a 235; na Holanda, a 388; na Suíça, a 430; na Suécia, a 467; na Dinamarca, a 1.392(47). Nada permite supor que a situação tenha melhorado depois da guerra.

Assim se explica porque, embora recorrendo-se cada vez mais à agricultura estrangeira, embora aumentando as importações, diminuem os consumos. A causa aparente está em que, sem dúvida, em Portugal a população tem crescido mais depressa do que a produção das subsistências. Melhor: a população tem aumentado ante uma produção agrícola estacionária. Conforme será mostrado, tal disparidade não é uma "lei" do desenvolvimento das sociedades – nem sequer da sociedade capitalista –, ao contrário do que os mais variados discípulos de Malthus hoje proclamam nos mais variados tons. E, se desde já se notar que a agricultura

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portuguesa, dado o seu atraso geral, podia e pode produzir mais – incomparavelmente mais – do que produz, compreende-se que tal disparidade entre a população e as subsistências não é a causa real da diminuição dos consumos.

Portugal Agrícola na Europa Ocidental

O atraso técnico da agricultura portuguesa deve ser considerado em relação ao atraso técnico geral do País, com a indústria em muitos aspectos rudimentar, com a baixíssima produção e consumo de energia, com caminhos-de-ferro como não há piores na Europa, tudo indicando que Portugal leva um bom meio século de atraso técnico em relação aos pequenos países capitalistas avançados(48).

Um confronto da agricultura portuguesa com a de outros países – na base do uso de tractores e adubos químicos, do efectivo pecuário e das produções por hectare dos principais produtos agrícolas – mostra que Portugal ocupa o último lugar na Europa ocidental.

Não há em Portugal estatísticas de tractores agrícolas. A FAO, no Anuário de Estatísticas Agrícolas e Alimentares, avaliou em 3.100 o seu número em 1948. A mesma FAO, em inquérito ao maquinismo agrícola na Europa, afirma a existência de 2.200 tractores agrícolas em Portugal em 1950, ou seja, menos 900 tractores do que os indicados para 1948. Mas, se tivermos em conta que o número total de seguros de locomoveis, tractores, motores e acessórios não foi além de 529 em 1949(49), não podem deixar de considerar-se desconformes tais avaliações.

Entretanto, mesmo na base dos 3.100 hipotéticos tractores, Portugal encontrar-se-ia (embora acima da Grécia e Espanha) a tremenda distância da grande maioria dos países da Europa ocidental. Contra 5 por 10.000 hectares de terra agrícola que haveria em Portugal, havia mais de 20 em 11 países, mais de 30 em 8, mais de 50 em 5.

TABELA 3Tractores agrícolas na Europa ocidental(50) 

(1948)Países Superfície

agrícolaNúmero

deTractores

porÍndices

Page 63: Contribuição Para o Estudo Da Questão Agrária

(1.000 ha)  Tractores 10.000 ha1 – Inglaterra 19.532 233.060 119,3 1002 – Suécia 4.691 41.600 88,7 743 – Suíça 2.186 15.200 69,5 584 – Noruega 1.045 6.800 65,1 555 – Alemanha Ocidental 14.157 72.800 51,4 436 – Luxemburgo 142 512 36,1 307 – França 33.368 108.556 32,5 278 – Holanda 2.403 7.750 32,3 279 – Dinamarca 3.169 7.057 22,2 1910-– Itália 21.784 47.786 21,9 1811 –Áustria 4.154 8.613 20,7 1712 – Bélgica 1.755 3.000 17,1 1413 – Irlanda 4.687 6.000 12,8 1114 –Grécia 5.833 2.869 4,9 415 – Portugal 6.055 2.200 3,6 316 – Espanha 42.714 15.000 3,5 3

Tomando, em vez dos 3.100, os ainda certamente exagerados 2.200 tractores, a média por 10.000 hectares desce para 3,6, como indica a tabela 3, e a posição de Portugal é inferior à da Grécia. E, se dispensando as estimativas da FAO, tomássemos como número de tractores existentes o dobro do número dos seguros de locomóveis, tractores, motores e acessórios (o que talvez fosse margem de segurança bastante), a média desceria para 1,7 – e Portugal passaria para o fim da escala. Como, porém, o número relativo à Espanha é também estimativa da FAO, a única coisa que se pode concluir é que cabem à Península Ibérica os dois últimos lugares.

O inquérito do INE, sobre as explorações agrícolas, dá, para 1952-1954, o total de 1.906 tractores para todo o continente. A Estatística Agrícola, que passou a apresentar alguns elementos a este respeito, indica, para 1954, a existência de 3.963 tractores e refere a aquisição pelos lavradores de 2.135 em 1951-1954 (o que confirma as importações relativamente elevadas que a Estatística do Comércio Externo acusa). Isto dá 1.828 tractores para 1951,

Page 64: Contribuição Para o Estudo Da Questão Agrária

não tendo em conta aqueles que tenham sido postos fora de uso em 1951-1954, e que não devem ter sido muitos. De qualquer forma, considerando o "Inquérito" sobre as explorações agrícolas ou fazendo as contas pela Estatística Agrícola, vemos que a estimativa da FAO de 2.200 para 1948 era exagerada. Se há erro na tabela 3 é, pois, a favor de Portugal.

Coisa semelhante se passa no referente ao consumo de adubos químicos. Mesmo considerando como consumidos apenas no continente os adubos consumidos em Portugal e colónias, a média por hectare, mostra a tabela 4, não chega a 12 quilos, quando passa de 20 quilos em 10 dos 17 países considerados; de 40 quilos em 8; de 60 em 6; de 100 quilos em 3. O consumo de adubos químicos, por hectare de terra agrícola, em Portugal, corresponde a menos de 7 % do consumo holandês.

Também quanto ao efectivo pecuário não é mais brilhante a situação. Reduzido o efectivo pecuário a "cabeças normais", a média por 1.000 hectares como se vê na tabela 5, é, em Portugal, 226 cabeças, quando ultrapassa 400 em 11 dos 17 países considerados; 500 em 9; 700 em 6; 1000 cabeças em 3. A média por 1.000 habitantes é, em Portugal, de 268 "cabeças normais", quando ultrapassa 400 em 11 dos países considerados, 500 em 8, 1.000 em 2. Calculados números-índices, Portugal ocupa o último lugar na tabela.

Ao escasso uso de adubos, ao fraco efectivo pecuário, ao reduzido emprego de maquinaria agrícola, correspondem os baixos rendimentos unitários.

Tabela 4Consumo de adubos na Europa Ocidental(51)

(1949-1950)

Países

Superfície

agrícola

(1.000 ha)

Adubos

azotados

Ácidofosfór

ico(1.000 t)

Adubos

potássicos

Soma

Quilogramas

por haÍndic

es

1 - Holanda 2.403 140,0 125,0 145,0 410,

0 170,6 1002 - 1.765 75,0 90,0 125,0 250, 162,5 97

Page 65: Contribuição Para o Estudo Da Questão Agrária

Bélgica 03 - Noruega 1.045 39,0 39,0 50,0 128,

0 122,4 724 - Alemanha Ocidental

14.157 310,0 356,0 625,0 1.285,0 90,7 53

5 - Luxemburgo

142 3,1 6,0 2,6 11,7 82,4 48

6 - Dinamarca

3.169 59,0 77,4 80,0 216,4 68,3 40

7 - Suécia 4.691 55,0 94,8 53,8 203,

6 43,4 258 - Inglaterra

19.532 198,1 410,7 208,3 816,6 41,8 24

9 - França 33.368 225,0 370,0 350,0 945,

0 28,3 1710 - Suíça 2.186 7,5 27,0 12,3 46,8 21,4 1311 - Áustria 4.154 20,5 34,4 27,4 82,3 19,8 1212 - Itália 21.784 125,0 240,0 22,0 387,

0 17,7 1013 - Irlanda 4.687 6,1 50,8 11,2 68,1 12,3 714 - Portugal 6.055 23,0 45,0 4,0 72,0 11,8 715 - Grécia 5.833 25,0 25,0 5,0 55,0 9,4 616 - Espanha 42.714 58,5 136,0 35,0 229,

5 5,3 3

 

Tabela 5Efectivo pecuário na Europa Ocidental(52)

(1936-1940)

Page 66: Contribuição Para o Estudo Da Questão Agrária

Países

Superfície

agrícola

(1000 ha)

População

(1.000)

Número  decabeç

as(1.000

)

Normais por1.000

habitantes

Por 1.000

habitantes

Índices

1 - Irlanda 4.805 2.934 5.107 1.063 1.741 1002 - Dinamarca

3.317 3.805 4.730 1.345 1.243 96

3 - Holanda 2.645 8.781 3.513 400 684 - Luxemburgo

214 300 165 771 550 50

5 - Alemanha Ocidental

21.158 39.510 17.144 810 434 47

6 - Bélgica 2.296 8.391 2.122 924 253 467 - Suíça 3.197 4.180 2.110 660 505 448 - Áustria 7.204 6.658 3.618 502 543 389 - França 44.498 41.100 21.323 479 519 3710 - Inglaterra

21.046 47.762 13.060 621 273 35

11 - Noruega 8.545 2.954 1.931 226 654 3112 - Suécia 28.226 6.276 4.011 142 639 2713 - Itália 26.757 43.112 11.075 414 280 2614 - Grécia 17.753 7.061 3.039 171 430 2115 - Espanha 47.714 25.517 9.896 207 388 2016 - Portugal 8.522 7.185 1.924 226 268 18

Page 67: Contribuição Para o Estudo Da Questão Agrária

Na cultura do trigo, com rendimentos anuais baixando por vezes a menos de 6 quintais por hectare, e, nos 30 anos decorridos de 1920 a 1949, só em 4 (1932, 1934, 1935 e 1939) ultrapassando os 10 quintais(53), Portugal é o país da Europa e um dos do mundo de mais baixos rendimentos unitários. Mesmo nesses quatro anos invulgares, a produção unitária portuguesa ficou abaixo da média européia, que foi, em 1934-1938 de 14,2 quintais por hectare. A média (em 1934-1938) na Itália, Luxemburgo, França, Áustria, Noruega, Suíça, Alemanha, Suécia, Inglaterra, Irlanda, Bélgica, Dinamarca e Holanda foi superior à produção unitária recorde em Portugal: 13 quintais em 1934 – quase um "milagre" na história da cultura do trigo em Portugal. Nos últimos nove países citados, a produção ultrapassou os 20 quintais por hectare, e os 30 quintais na Holanda e Dinamarca(54).

Notando-se que, nos anos 1946-1950, o rendimento unitário de trigo em Portugal foi inferior a 700 quilos e que o aumento de 300 quilos por hectare (que nos deixaria ainda na retaguarda de todos os países da Europa, com excepção da Espanha), permitiria, com a mesma área semeada, cobrir no fundamental o défice de trigo, fere a modéstia da solução necessária e o transparente e trágico atraso da nossa agricultura.

Em relação ao milho, apesar de que Portugal se distingue na Europa ocidental pela vasta superfície dedicada à sua cultura, distingue-se também por ser o país de mais baixos rendimentos unitários, a grande distância de todos os outros. Quanto ao centeio, com rendimentos sempre inferiores a 9 quintais por hectare e com frequência inferior a 6 e 5 quintais, conserva também o último lugar, esmagado pelos rendimentos superiores a 15 e a 20 quintais em vários países da Europa ocidental. No arroz, em 1934-1938, os rendimentos unitários foram pouco superiores à metade dos da Itália e não chegaram a metade dos de Espanha e, embora depois da guerra as produções unitárias tenham subido em Portugal e descido nestes dois países, o atraso mantém-se. Na cevada, conserva-se o mesmo lugar, com rendimentos inferiores a metade, a um terço e até a um quarto dos de outros países. Na batata, apenas a Espanha e a Itália têm rendimentos inferiores.

Page 68: Contribuição Para o Estudo Da Questão Agrária

Tabela 6Produção unitária na Europa Ocidental(55)

(1949)(Quintais por hectare)

  Trigo

Centeio

Cevada

Aveia

Milho

Arroz

Batata

Fava

Vinho

Índice

1 - Holanda

45,4 27,3 38,4 31,4 26,1 - 249 25,

3 - 1002 - Bélgica

38,9 27,1 34,1 33,8 32,7 - 230 22,

5 - 993 - Dinamarca

36,0 24,1 34,6 31,9 - - 169 - - 88

4 - Suíça 30,5 25,4 27,0 28,2 31,9 - 144 - 42,3 86

5 - Inglaterra

28,2 21,1 25,9 23,1 - - 173 24,

5 - 77

6 - Irlanda

25,0 19,2 25,5 20,5 - - 193 - - 77

7 - Alemanha Ocidental

26,8 23,4 24,5 22,9 17,5 - 186 17,

7 21,3 69

8 - Noruega

21,7 20,8 21,6 21,5 - - 189 - - 68

9 - Suécia

22,7 20,5 20,7 16,7 - - 128 - - 59

10 - Luxemburgo

19,8 19,8 17,9 17,6 - - 137 - - 57

11 - Áustria

16,9 15,2 16,8 13,9 20,4 - 113 17,

2 27,7 5512 - França

19,1 12,4 16,0 13,2 6,4 29,5 98 9,1 27,5 46

13 - Itália

14,9 12,6 9,1 8,9 17,8 44,8 67 5,0 21,0 44

14 - Grécia

11,0 9,5 9,6 8,4 9,9 28,3 110 7,7 19,1 37

15 - 6,5 5,9 9,9 7,5 15,0 49,0 77 5,0 9,2 36

Page 69: Contribuição Para o Estudo Da Questão Agrária

Espanha16 - Portugal 5,9 4,8 6,9 3,0 4,4 37,0 87 4,2 21,6 29

A situação aparece com toda a sua gravidade na tabela 6, que indica, para 1949, os rendimentos unitários dos principais produtos agrícolas dos 16 países da Europa ocidental. Portugal aparece no fundo da escala, a grande distância da maioria dos países.

Um breve confronto das quatro últimas tabelas revela que aqueles países, que aparecem no fundo da escala em consumo de adubos, no uso de tractores, no efectivo pecuário, são aqueles onde se verificam mais baixos rendimentos por hectare. Vê-se, claramente, não ser uma diferença de condições naturais, não ser a "pobreza natural do país" ou o clima irregular a explicação das baixíssimas produções unitárias da agricultura portuguesa. No dia em que o consumo de adubos, por exemplo, passasse dos actuais 12 quilos por hectare de terra agrícola para os 171 quilos que consome a Holanda, a posição de Portugal no referente a produções unitárias (e a efectivo pecuário) seria necessariamente melhor.

Mas os justifícadores do atraso da agricultura portuguesa comparam a cada passo "a pobreza natural" de Portugal com uma pretensa "riqueza natural" da Holanda, sem se prenderem com estas e outras diferenças, sem repararem, por exemplo, que os holandeses roubaram ao fundo do mar uma parte considerável do seu território e os portugueses não foram ainda capazes (entre muitas coisas) de ganhar para a agricultura as escassas dezenas de hectares de fertilíssimos fundos da Poça do Vau ou dos Juncais do Arelho.

Resumindo este confronto da agricultura dos Países da Europa ocidental numa classificação (tabela 7), Portugal aparece, sem qualquer apelo, no ultimo lugar.

TABELA 7Classificação da agricultura dos países da Europa, ocidental

(Índices)

  Tractores Adubos Gado

Prod.unitári

aSoma Índice

Geral

Page 70: Contribuição Para o Estudo Da Questão Agrária

1 - Holanda 27 100 68 100 295 1002 - Bélgica 14 97 46 99 256 873 - Dinamarca 19 40 96 88 243 824 - Inglaterra 100 24 35 77 236 805 - Noruega 55 72 31 68 226 776 - Alemanha Ocidental

43 53 47 69 212 72

7 - Suíça 58 13 44 86 201 688 - Irlanda 11 7 100 70 188 649 - Luxemburgo

30 48 50 57 185 63

10 - Suécia 74 25 27 59 185 6311 - França 27 17 37 46 127 4312 - Áustria 17 12 38 55 122 4113 - Itália 18 10 26 44 98 3314 - Grécia 4 6 21 37 68 2315 - Espanha 3 3 20 36 62 2116 - Portugal 3 7 18 29 57 19

O estado lamentável da agricultura portuguesa, como a da Espanha ou de uma Grécia, não se deve aos desfavores da natureza, mas ao grande atraso económico geral. Como suceder de outra forma se a situação em grande parte da indústria portuguesa se chama justamente "economia de vão de escada"(56), e se em relação à agricultura se pode falar em muitos casos de instituições de outras eras e dos métodos "pré-históricos" adoptados?

A meio do século XX e num país ocupando apenas 9 milhões de hectares, existem ainda regiões com vida económica isolada e quase totalmente estranha ao mercado nacional. Nas regiões de pastores das serranias nortenhas mantém-se, em cada aldeia ou freguesia, o ancestral regime de comunidades e de troca directa – "uma economia fechada,

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onde não gira moeda e o trabalho se paga com trabalho e os géneros com géneros"(57).

Na cultura agrícola continuam a predominar, numas regiões mais do que noutras, processos velhos de séculos e condenados há muito. Em vez de melhorados, muitos solos são esgotados ou enfraquecidos. Muitas operações culturais não são completamente realizadas. Os adubos são mal preparados, mal conservados e mal utilizados; as forragens desperdiçadas; as culturas mal escolhidas; as rotações inconvenientes; as sementeiras, as sachas, as regras, as ceifas, realizadas de forma deficiente. Predominam os hábitos rotineiros e muitos preconceitos e superstições.

Ainda em 1952-1954, para um total de 853.568 explorações agrícolas existentes no continente havia apenas 9.379 silos para forragens e 10.771 para cereais e 18.149 nitreiras cobertas(58). Estes números, na sua simplicidade, são demasiado eloquentes.

No tratamento de gado, a fome, o excesso de trabalho, a falta de resguardo, sem falar já da ausência ou do primitivismo na selecção, é o panorama mais comum. Que acontece, por exemplo com o gado ovino?

Em 1952-1954 para 853.568 explorações agrícolas existiam apenas 76.376 ovis(59), sendo estes particularmente escassos onde maiores são os efectivos.

Exposto ao sol, à chuva, ao frio, à fome, é "perfeitamente lastimável" a forma como a exploração é feita(60). "É o primitivo, miserável e exclusivo regime pastoril que impera, com todas as suas variadas e funestas consequências para a economia nacional"(61). Porque se admirar da fraca produção de carne e de leite? Porque se admirar de que se exporte lã de má qualidade a baixo preço, para se importarem lãs finas a preços de especulação? Não falta, entretanto, quem cite o progresso na assistência veterinária. Sem dúvida que o há. Mas enquanto virmos nos postos médicos-veterinários irem anualmente à consulta 3 bois em comparação com 4.000 gatos e 11.000 cães, não nos podemos considerar totalmente satisfeitos.

Nos matadouros e nas chamadas "indústrias agrícolas", a situação não é mais sorridente. Nos matadouros, "na maioria

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dos casos, tudo se perde ou se deita fora, excepto a carne"(62). "Quem entrar em alguns dos nossos lagares (de azeite) regionais tem a impressão de que recua quatro ou cinco séculos"(63). Os processos de fabrico do vinho em zonas do Alentejo datam... da ocupação romana(64). E, vencendo esta competição de antiguidades, na região de Alcoutim, a farinha de milho é obtida em "característicos moinhos, cuja mó é movida à mão, certamente iguais aos do período paleolítico"(65).

Como admirar que, na classificação da agricultura dos países da Europa ocidental, Portugal ocupe o último lugar?

A "Industrialização" da Agricultura

O primitivismo é grande, a rotina muita, o atraso em relação à maioria dos outros países da Europa ocidental esmagador. Esta situação não é, porém, desejada nem pelos capitalistas nem pelo seu Estado. Eles anseiam o desenvolvimento da técnica, de forma a baixar os preços de custo e a aumentar os lucros. Eles anseiam o desenvolvimento geral da agricultura, uma maior eficiência de processos e produções mais abundantes e rendosas. Por isso, reagindo contra a rotina, os capitalistas, por um lado, «industrializam» as explorações agrícolas para alcançarem maior produtividade do trabalho; e o Estado burguês, por outro lado, lança-se nas iniciativas de «fomento». Por isso, apesar do grande atraso relativo aos países capitalistas mais avançados, não deixam de verificar-se importantes progressos técnicos na agricultura portuguesa, não deixa de tornar-se cada vez mais estreita a interdependência da agricultura e da indústria, com o uso de máquinas e adubos químicos e a autonomia crescente das indústrias subsidiárias. Não deixa, assim, de acentuar-se a divisão social do trabalho e o carácter social da produção, atestando o desenvolvimento do capitalismo.

Lénine sublinhou que, «por um lado, o capitalismo é o factor que provoca e difunde o emprego das máquinas na agricultura» e que, «por outro lado, o emprego de máquinas na agricultura tem um carácter capitalista, isto é, conduz à formação de relações capitalistas e a um maior desenvolvimento das mesmas»(66). O aumento do uso de maquinaria agrícola atesta e acusa a tomada de novas

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posições pelo capitalismo. A evolução do uso de máquinas nos campos portugueses indica claramente este processo.

Raras são as estatísticas de máquinas agrícolas que conhecemos em Portugal para os últimos quinze anos. As menos escassas dizem respeito a seguros. O número de máquinas seguradas é, sem dúvida, inferior ao das máquinas existentes. Entretanto, a evolução do número de máquinas seguradas reflecte a evolução do número das existentes. Daí o seu interesse.

Em 1921, realizaram-se 424 seguros de máquinas e utensílios agrícolas. Em 1926, o número de seguros subiu para 702. Desconhece-se a situação de 1928 a 1939, mas, em 1940, com 2.465 seguros realizados, acusa-se um salto importante no decurso destes doze anos. Posteriormente, aumenta quase de ano para ano o número de seguros de máquinas e utensílios agrícolas: 2.542 em 1945; 3.130 em 1948; 3.214 em 1950; 3.396 em 1952; 3.804 em 1954(67).

Seria de grande interesse acompanhar-se a evolução de cada tipo de máquinas, mas, salvo no que respeita a material de debulha, as estatísticas só permitem que isso se faça e incompletamente em relação aos últimos anos. De 1941 para 1949, o número de seguros de locomóveis, tractores, motores e acessórios passou de 428 para 529, o de fagulheiros de 543 para 621 e o de enfardadeiras de 262 para 369. Quanto às debulhadoras, o número de seguros passou de 1091 em 1940 para 1232 em 1949 e 1591 em 1954. O aumento é, porém, mais importante do que estes números indicam, conforme mostram outras estatísticas que existem excepcionalmente no que respeita às debulhadoras, tanto para anos recentes como para os primeiros anos do segundo quartel do século. Assim, havia 561 debulhadoras em 1926; 796 em 1928; 854 em 1931 (num importante salto no espaço de vinte anos); 3128 em 1952 e 3573 em 1954(68).

As percentagens de cereais debulhados mecanicamente oferecem, mais do que o número de máquinas, uma indicação precisa da utilização crescente da debulha mecânica. A debulha mecânica do trigo, que abringia em 1926 apenas 28% da colheita, subiu em 1929 a 41%; em 1938 a 48%; em 1949 a 56% e em 1954 a 70%. A debulha mecânica do centeio representou respectivamente 4%, 8%, 21% e 29% da

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colheita. A de aveia, 13%, 22%, 20%, 49% e 66%. A de cevada, 10%, 19%, 39% e 50%(69).

No que respeita a tractores, os dados publicados nos últimos anos são bastante significativos. Em 1952 existiam 2.962 tractores. Desses, 577 tinham sido adquiridos pela lavoura, antes de 1940 e 243 nos anos da guerra de 1941-1945(70). Mesmo tendo em conta que alguns devem ter sido postos de lado, é de presumir que no início da Segunda Guerra Mundial pouco mais haveria de 800 tractores e, ao findar a guerra, pouco mais de 1.000. Posteriormente, o aumento foi rápido. Em 1946-1950, a lavoura adquiriu 1.146 tractores, isto é, uma média anual de 229, e, nos anos seguintes, as aquisições fizeram-se em ritmo crescente: 433 em 1951; 516 em 1952; 543 em 1953; 643 em 1954. Desta forma, em 1954, é indicada a existência, no continente, de 3.963 tractores(71) o que representa um aumento de 34% no espaço de dois anos.

Apesar de que o emprego de maquinaria é, como se vê, muito reduzido na agricultura portuguesa - tão reduzido que, mesmo entre especialistas, há quem considere a «mecanização» da agricultura não como a aplicação da máquina à cultura agrícola, de forma a elevar os rendimentos e a produtividade do trabalho, mas como «compensação dos fracos rendimentos», através da «transformação industrial dos seus produtos»(72) - mostra-se, entretanto, o aumento progressivo do uso de maquinaria agrícola e é isto que aqui interessa particularmente sublinhar (tabela 8).

TABELA 8Máquinas agrícolas e debulha mecânica(73)

Anos

Seguros de

máquinas

(número)

Debulhadoras

(número)

Tractores

(número)

Cereais debulhados mecanicamente(percentagem)

Trigo

Centeio

Aveia

Cevada

1926 702 561 - 28 4 13 10

1938 2.465 - 800 48 18 20 10

1949 3.214 - - 56 21 49 39

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1954 3.804 3.573 3.963 69 29 66 50

As importações, nos últimos anos, parecem confirmar a tendência para o uso de máquinas. Merecem referência especial as ceifeiras e gadanheiras de que, desde o fim da guerra, têm sido importadas, em alguns anos, número superior ao total de seguradas. Em 1941 realizaram-se apenas 25 seguros de ceifeiras e em 1949 apenas 20. Mas, em 1947, importaram-se 115 e, em 1949, 37. Gadanheiras, as estatísticas de seguros agrícolas não acusam nenhuma. Mas, em 1947, importaram-se 123 e, em 1949, 86.

Quanto aos adubos químicos, a sua aplicação tem vindo a ser cada vez maior. De sulfato de amónio importaram-se 12.000 toneladas em 1928; 63.000 em 1938 e 86.000 em 1950, prevendo-se que as fábricas inauguradas em Março e Maio de 1952 venham a produzir mais de 100.000 toneladas anuais. De nitratos, importaram-se, nos três anos referidos, 5.000, 10.000 e 26.000 toneladas. De cianamida cálcica, 2.000 toneladas em 1930; 3.000 em 1938 e 7.000 em 1950, sendo de 8.000 toneladas a capacidade anual mínima da fábrica de cianamida em construção em Canas de Senhorim. A produção de superfosfatos, que foi de 215.000 toneladas em 1939, subiu a uma média anual superior a 300.000 toneladas em 1948-1949(74).

Apesar de ter havido uma importante diminuição no fabrico de adubos orgânicos (25.000 toneladas em 1939 e 14.000 em 1948-1949), ela parece ser compensada pelos adubos químicos. Segundo o ministro da Economia, entre «1937 e 1951, o consumo de azoto, por hectare, elevou-se de 4,6 a 8 quilos e o índice geral da utilização de fertilizantes de 100 a 188»(75). E, segundo as indicações mais precisas do subsecretário da Agricultura, de 1937 para 1950-1951, o aumento do consumo, por hectare, dos «elementos nobres» foi de 74% de azoto, 59,5% de anidrido fosfórico e 150% de potassa(76). Estas afirmações não têm evidentemente em conta o consumo de estrumes que, mantendo-se potencialmente estacionário de 1925 a 1940(77), é de admitir tenha diminuído posteriormente, dado que muitos sintomas indicam uma quebra no efectivo pecuário. O aumento verificado também não é para entusiasmos, pois, conforme atrás se mostrou e conforme se reconhece oficialmente,

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«apesar deste aumento, Portugal constitui ainda um dos países europeus de mais reduzido consumo de adubos sintéticos»(78). Mas aquilo que aqui mais interessa salientar é o indiscutível e importante aumento de consumo de adubos químicos, indicando a crescente divisão social do trabalho e a acentuação do carácter social da produção.

Muitos outros aspectos da agricultura portuguesa, além das máquinas e adubos, atestam a evolução neste sentido. Ele é a produção de sementes seleccionadas, que passou de 513 toneladas em 1940 para 7.700 em 1951(79). Ele é o consumo de electricidade na elevação de águas, que passou de 10,6 milhões de kWh em 1939 para 21,5 em 1944 e 34,6 em 1949, e nas «indústrias agrícolas», que foi nos mesmos anos de 1,2 e 4 milhões de kWh(80). Ele é o número de seguros de produtos agrícolas (fundamentalmente cereais) que, sendo de 26.000 em 1926 subiu para 84.000 em 1939 e 90.000 em 1949. Ele é o divórcio crescente entre a agricultura e as indústrias ainda consideradas suas subsidiárias, como acontece na moagem, no descasque, na debulha, no fabrico de lacticínios, de azeite, de vinagre e de vinho. Ele é o aumento da frequência das Escolas Superiores de Agronomia e Veterinária, cujo número de alunos matriculados passou respectivamente de 108 e 104 em 1927-1928 para 597 e 305 em 1948-1949(81). Ele é, ainda, a realização de «planos de fomento».

Em 1935, foi aprovada uma lei que determina o estabelecimento de «planos e projectos fundamentais a executar no período de 15 anos, na importância de 6.500.000 contos»(82). Os objectivos da lei eram prometedores, prevendo-se, entre outras realizações, «a conclusão (?) das redes de caminhos-de-ferro e das estradas», «portos comerciais e de pesca», «rede eléctrica nacional», «hidráulica agrícola, irrigação e povoamento interior», etc. Os relatórios do Banco de Portugal atribuíram, então, a esta lei «o estabelecimento de um plano a executar dentro de 15 anos»(83), o que ninguém desmentiu na altura. Fazendo o balanço da execução da lei até 1948, um especialista categorizado dizia que «não se realizaram trabalhos de fomento que trouxessem acréscimo notável da produção agrícola e florestal e uma organização da indústria bem ajustada à vida agrícola e florestal e uma organização da indústria bem ajustada à vida nacional»(84) e insistia, meses

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depois, no facto de ainda não estarem «bem definidas e em realização bastante as tarefas basilares da economia portuguesa»(85). Ao fim de 15 anos, Salazar, fazendo o balanço da execução desta lei, embora explique que a lei «não pode considerar-se como tendo aprovado um plano de quinze anos»(86), diz não ter «possivelmente paralelo na nossa história a não ser talvez (?) com o esforço realizado há mais de 500 anos, que floresceu nessa admirável epopeia das descobertas e conquistas». Perante esta afirmação - diz alta individualidade - «olho para os senões e não os enxergo»(87). O que se ouve, mãe do céu!

Em obediência a esta lei, foram estabelecidos e entraram em execução dois planos: o florestal e o da hidráulica agrícola.

«O plano de povoamento florestal», visando o melhoramento das florestas nacionais e a arborização dos baldios, foi aprovado em 1938(88),prevendo a arborização de 420.000 hectares até 1968, numa série de programas quinquenais, de âmbito cada vez mais largo. A realização do plano segue com considerável atraso. No que diz respeito às dunas, previa-se a sua arborização (9.860 hectares) nos primeiros cinco anos (até 1943); no fim de dez anos, estavam arborizados 9.036 hectares(89). No que diz respeito às serras, previa-se para os dez primeiros anos (1939-1948) a arborização de 56.000 hectares, foram arborizados 34.862(90). Entretanto, como «parece não terem sido replantadas as árvores que secam e que normalmente, em conjunção com sementeiras mal nascidas, se pode elevar até 20%»(91), a área efectivamente arborizada é muito inferior àquela que os números citados indicam, não devendo errar-se muito ao dizer-se que andará por metade do previsto. No mesmo plano, previa-se a construção de 1.400 quilómetros de caminhos florestais nos primeiros dez anos - foram construídos 190. Previa-se, para o mesmo período, a construção de 400 casas de guarda - foram construídas 122. Previa-se a construção de 21 sedes de administração - construíram-se 4. Previa-se a construção de 10 postos de vigia - não foi construído nenhum(92). A razão fundamental do atraso na execução do plano seria a «insistente resistência das populações rurais», pois «o povo tem a impressão de que o roubam ao lhe tirarem o que supõe indispensável à sua economia»(93).

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O plano da hidráulica agrícola, que «devia ter sido executado até 1950»(94), previa o regadio de 106.000 hectares, com uma despesa de mais de 1 milhão de contos. Foram estudados 95.041 hectares. E, em fins de 1949, um ano antes do marcado para o termo do plano, a área beneficiada pelas obras concluídas não ia além de 13.000 hectares e, pelas obras em curso, 10.000 hectares(95). Ter-se-iam despendido 630.000 contos(96). As áreas efectivamente irrigadas são, porém, muito inferiores àquelas cuja irrigação as obras efectuadas permitem. No Sado (a maior obra de hidráulica) «há 9.000 hectares que pelas obras realizadas estão em condições de ser irrigados»; mas estão a ser irrigados apenas 3.100»(97). E na Idanha - segunda obra da hidráulica em importância - os lavradores beneficiados não têm cessado de reclamar contra o pagamento de taxas, uma vez que não aproveitam nem querem aproveitar a obra de rega(98), pelas exigências de capitais de que não dispõem ou não querem aplicar.

Além destes dois planos, deve ainda salientar-se, entre os empreendimentos fomentadores do Estado, a «lei dos melhoramentos agrícolas», aprovada em 1946(99). Segundo o relatório da proposta de lei, o seu fim era «estimular a realização de pequenas obras de interesse privado». O Estado interviria com sugestões, assistência técnica e auxílios financeiros «para execução de melhoramentos fundiários que tenham por fim manter ou aumentar a capacidade produtiva da terra ou facilitar a sua exploração». Entre os melhoramentos previstos, contam-se a captação, elevação e distribuição das águas de rega; enxugo, dessalgamento e despedrega de terrenos; construção e melhoramentos de silos, nitreiras e abrigos para gado; oficinas tecnológicas; arroteamento; aquisição de máquinas, alfaias e utensílios agrícolas, etc. Com estes fins, o Estado concederia empréstimos hipotecários a 2%. Nos três primeiros anos de execução desta lei, o Estado concedeu créditos para 3.718 obras de rega (no montante de 25.518 contos) que beneficiaram 2.844 hectares(100).

Todos estes planos de «fomento» agrícola não têm realmente marchado com velocidade animadora, apesar de a tal velocidade se chamar «um ritmo que deve satisfazer os mais exigentes»(101), mas alguma coisa tem marchado. Há grandes atrasos em relação às previsões; mas a própria

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existência dos atrasos significa que alguma coisa se faz. E este facto de alguma coisa se ter feito, tanto como o atraso, ou não realização dos planos, interessa aqui sublinhar. As debilidades da acção do Estado estão, sem dúvida, na base das deficiências da produção agrícola, da rotina, da situação deficitária, da baixa das capitações da produção e capitações de consumo. Entretanto, o repovoamento florestal, as obras da hidráulica, os «melhoramentos fundiários», por muito insignificantes que sejam, indicam uma reacção do Estado burguês contra o atraso da agricultura, contra a rotina - e um esforço para o aumento da produção e da produtividads. O verdadeiramente trágico para o capitalismo é ser a rotina sua responsabilidade, quando o fomento é o seu desejo e o seu interesse.

2 - Abaixo da Linha de Miséria

Sendo tão grande o atraso da agricultura portuguesa, como se acaba de ver, existindo um tão grande défice de produtos agrícolas e subsidiários da agricultura, sendo tão baixos os rendimentos unitários, diminuindo as capitações da produção e do consumo, o nível de vida dos trabalhadores do campo não pode deixar de ser extremamente baixo e tender a baixar mais.

Entretanto, manifestando-se, claramente, um aperfeiçoamento da técnica agrícola, onde sobressai a utilização de máquinas e processos mais eficientes e rendosos de cultivo e de tratamento industrial dos produtos agrícolas, não contribuirá esta evolução para melhorar a situação dos trabalhadores do campo?

Não, isso não acontece. As dificuldades da vida dos trabalhadores do campo devem-se tanto ao atraso como ao progresso da agricultura. Elas estão ligadas de modo geral ao atraso da agricultura, mas estão ligadas de modo particular e directo ao seu progresso.

"Somos atormentados - escreveu Marx - não só pelo desenvolvimento da produção capitalista, como também pela falta desse desenvolvimento; ao lado dos males modernos, oprimem-nos muitos males herdados, provenientes da

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sobrevivência de métodos de produção antigos e antiquados, com o seu cortejo de condições políticas e sociais anacrónicas. Sofremos não só o que vive, mas também o que morreu."(1)

Só compreendendo assim a evolução do capitalismo podemos compreender as causas da miséria nos campos, o seu significado e as suas reais soluções. E só assim também compreendemos porque se acusa o capitalismo quando não desenvolve as forças produtivas e se acusa igualmente quando as desenvolve. Não se trata da história do velho, do rapaz e do burro. As contradições existem no próprio capitalismo, e não nesta apreciação que dele fazemos.

A Leí da Pauperização

O processo de desenvolvimento capitalista, com "a apropriação por particulares do produto de trabalho social", com a correspondente polarização dos estratos sociais (detendo uns os meios de produção, dispondo outros da força de trabalho), com a decomposição da classe camponesa e a liquidação da produção individual, na qual o produtor é o proprietário dos meios de produção - provoca um agravamento da situação dos trabalhadores da terra. Esse agravamento é um produto do desenvolvimento do capitalismo, um produto do progresso das forças produtivas materiais na agricultura, na sociedade burguesa.

As relações pré-capitalistas, nos campos, defendem tenazmente as suas posições. Sucede, assim, que, em países já dominados pelo capital, ainda nos campos os trabalhadores sofrem mais a insuficiência que os progressos do desenvolvimento do capitalismo. Mas numa fase mais adiantada do desenvolvimento do capitalismo, o contrário sucede. Hoje em dia, em Portugal, se o povo laborioso dos campos ainda sofre largamente as sobrevivencias do passado ("os males herdados"), sofre principalmente o desenvolvimento do capitalismo ("os males modernos").

A acumulação e o aumento da composição orgânica do capital determinam, por um lado, a maior produtividade do trabalho nas grandes empresas, o seu consequente sucesso na concorrência com os pequenos produtores e as dificuldades acrescidas e apressamento da ruína e da

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expropriação destes últimos; determinam, por outro lado, a criação de uma população assalariada excessiva em relação às necessidades da produção, uma superpopulação relativa, tomando na agricultura uma forma latente dada a crescente produtividade, a limitação e o monopólio da terra e o constante afluxo ao assalariado dos camponeses arruinados. A superpopulação relativa, além das misérias vividas pelos desempregados, provoca a piora da situação dos que trabalham, pois permite se pague a mão-de-obra a mais baixo preço e se exerçam pressões com a ameaça do desemprego. As dificuldades dos trabalhadores da terra (assalariados e pequenos produtores) aumentam, assim, na medida em que é vencido o atraso na agricultura, na medida em que se acentuam os progressos do capitalismo, na medida em que é maior a produtividade do trabalho e se produz mais riqueza.

É, pois, completamente falso que o progresso técnico e o aumento da produtividade e da produção provoquem, na economia capitalista, um melhoramento da situação dos trabalhadores rurais. A história de que cada qual recebe uma mais grossa fatia quanto maior é o "bolo comum" a partilhar, apesar de toda a sua lógica superficial, não tem o mínimo fundamento de verdade. Quando os reaccionários afirmam que, "aumentando a riqueza geral, prosseguimos simultaneamente uma obra de melhoria e elevação individual e colectiva"(2), e quando insistem na necessidade de aumentar a riqueza "para que a todos caiba maior quinhão"(3), e quando dizem deverem as energias ser "consagradas acima de tudo a aumentar as dimensões do bolo que há-de ser dividido em vez de serem dissipadas em questiúnculas sobre que porção do presente bolo cada qual há-de receber"(4), oculta-se o aspecto fundamental do problema: que a repartição está dependente das relações de produção. Porque, nesta história da repartição do bolo, quando o bolo aumenta a espessura das grossas fatias, mais se agrava a estreiteza das finas.

Contra a opinião reformista, segundo a qual o progresso do capitalismo conduz à progressiva atenuação das desigualdades, à "crescente aproximação das condições dos homens" com a distribuição "mais por igual" da riqueza(5), é precisamente o invés que, com toda a evidência, as realidades dos nossos dias nos revelam. A pauperização relativa (assim como a absoluta) é lei do capitalismo, conforme esclareceu Lénine (6) . O mesmo nos ensina a

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História. O aumento da produção pelo capitalismo foi possível através da concentração dos "dispersos e mesquinhos meios de produção", que tais eram os produtores individuais da economia feudal. A história dessa concentração é, porém, uma longa e terrível história. Em Portugal, encontramos as suas primeiras fases nos séculos XII a XIV, em plena sociedade feudal, quando os proprietários vilãos, ao mesmo tempo que acolhem e libertam os servos, reduzem camponeses livres ao trabalho assalariado. E, ainda hoje, um século passado sobre a instauração do Estado burguês, essa história vive a sua última fase com a derrota dos pequenos produtores pela grande produção capitalista. A dissociação do produtor e dos meios de produção é um processo específico do capitalismo e a ele se deve a instituição da grande empresa moderna, equipada com alta técnica e possuidora de maior produtividade. Essa dissociação foi historicamente necessária como via para o novo e gigantesco impulso às forças produtivas. Mas, desde o alvorecer do processo até aos dias de hoje, cada novo passo no desenvolvimento da produção - acumulação primitiva, cooperação simples, manufactura, maquinismo, etc. - exigiu novos sacrifícios dos trabalhadores: cada impulso para o aumento da riqueza foi acompanhado pelo aumento da pobreza. Conforme ensinaram Marx e Engels, tanto no capitalismo como era qualquer dos sistemas que o antecederam, "cada progresso na produção significou ao mesmo tempo um retrocesso [...] para a maioria da população".

Não é tanto ao atraso como aos progressos técnicos da agricultura que se deve atribuir o cada, vez mais baixo nível de vida dos assalariados rurais e pequenos agricultores. As máquinas, os mais rendosos processos de cultura, a industrialização de actividades que eram especificamente agrícolas antes do capitalismo, aumentam a produtividade do trabalho e a produção. Mas, na economia capitalista, provocando directamente a superpopulação relativa e a ruína dos pequenos produtores, empobrecem necessariamente os trabalhadores da terra.

Marx ensinou que a:

"transformação capitalista da produção parece ser apenas o martirológio do produtor, o meio de trabalho apenas o

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meio de dominar, de explorar e de empobrecer o trabalhador", e insistiu em que "na agricultura moderna tal como na indústria, o aumento da produtividade e o superior rendimento do trabalho compram-se ao preço da destruição e do esgotamento da força de trabalho"(7).

Especialmente no que se refere à introdução das máquinas, Marx sublinhou como, em consequência dela, "o operário, como uma nota fora de circulação, deixa de ter curso". Que a introdução das máquinas seja lenta ou súbita não evita tal consequência.

"Onde a marcha conquistadora da máquina progride lentamente - escreveu Marx - aflige com a miséria crónica as filas operárias forçadas a fazer-lhe concorrência; onde é rápida, a miséria torna-se aguda e faz terríveis estragos"(8).

Do progresso técnico na agricultura e do aumento da produtividade não resulta a melhoria da situação das classes laboriosas dos campos, mas, sim, o aumento das dificuldades e miséria.

Era relação aos assalariados, que vemos como resultado do desenvolvimento técnico e do aumento da produtividade? Um "maior quinhão" para cada qual? A "melhoria e elevação" dos trabalhadores? Não, isso não se verifica. O que se verifica é a progressiva baixa de preço da força de trabalho.

Sendo o valor da força de trabalho, como o de qualquer outra mercadoria, o tempo de trabalho socialmente necessário à sua produção, ele é afinal o tempo de trabalho socialmente necessário à produção dos meios de subsistência do trabalhador. Se a força de trabalho fosse comprada pelo valor, então o seu preço, o salário, deveria permitir a restauração e reprodução da força de trabalho, deveria bastar para "produzir, desenvolver, conservar e perpetuar a força de trabalho"(9), ou seja: assegurar o alimento necessário ao trabalhador e sua família e as demais condições de vida essenciais para a manutenção da capacidade de trabalho durante o tempo de vida média normal e sua reprodução. Mas

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isso não se dá. A evolução do capitalismo determina a tendência para que a força de trabalho seja paga abaixo, cada vez mais abaixo, do seu valor, isto é, a tendência para a descida dos salários reais.

De 1914 para 1927, os salários reais baixaram 12%, pois que sendo em 1927 os salários médios nominais 21,8 vezes superiores aos de 1914, os preços de retalho eram 24,5 vezes superiores(10). A baixa continuou e atingiu mais 13% de 1927 a 1934, pois, sendo os salários médios dos operários agrícolas 9$43 em 1927, baixaram para 7$70 em 1934(11), ou seja, uma quebra de 18% nos salários nominais, ao mesmo tempo que o índice dos preços dos produtos alimentares tinha, no mesmo período, apenas uma baixa de 6%(12). De 1939 para 1946, nova e importante baixa de 8% se verificou, pois que o custo de vida aumentou 99%, enquanto os salários nominais médios aumentaram apenas 86%(13). Vê-se que, de 1914 a 1946, não têm cessado de diminuir os salários reais, podendo estimar-se a diminuição total em cerca de 30%. Em 1946, os assalariados ganhavam em média apenas um pouco mais de dois terços do que ganhavam em 1914. A criação de riqueza e o aumento da produtividade do trabalho, nestes trinta e dois anos, têm sido acompanhados por constante agravamento da situação dos trabalhadores.

A força de trabalho é uma mercadoria com a característica particular de criar valor ao ser consumida no processo de produção. O valor da força de trabalho é, porém, inferior ao valor por ela criado. Numa parte da jornada de trabalho, ela cria o seu próprio valor; noutra parte, a mais-valia.

Em resultado do aumento da produtividade, diminui cada vez mais, na jornada de trabalho, o tempo de trabalho necessário para produzir o que assegure a reprodução da força de trabalho e aumenta cada vez mais o tempo de trabalho suplementar, isto é, aquele que, na jornada de trabalho, excede o tempo necessário. Como o tempo necessário corresponde às fatias finas e o suplementar às fatias grossas, novamente se mostra o infundado da historieta da partilha do bolo e novamente se mostra como se estreitam cada vez mais as fatias finas, enquanto engrossam as grossas fatias.

Os números que se acabam de indicar, como todos os números usualmente apresentados acerca de salários e custo

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de vida, estão, todavia, muito longe de traduzir a real evolução dos salários reais dada a forma viciada do cálculo. Além da mais que discutível base estatística em que se apoiam e da forma defeituosa na estimativa do custo de vida, os economistas burgueses não consideram o tempo de desemprego no cálculo dos salários médios. Se tal fosse considerado, verificar-se-ia que a diminuição registada dos salários reais nos trinta e dois anos referidos teria sido incomparavelmente mais importante.

O desemprego não é fenómeno ocasional. O desemprego latente nos campos é produto directo e inevitável do desenvolvimento do capitalismo e atinge tanto os pequenos produtores arruinados, os semiproletários, como os assalariados rurais.

O aumento da produtividade, em geral, e o emprego de máquinas, em particular, determinam necessariamente a dispensa de mão-de-obra assalariada. "A tendência para deslocar o trabalhador - escreveu Marx - mostra-se na agricultura com muito mais intensidade do que na indústria." Só nas regiões de pequena propriedade e temporariamente o emprego de máquinas pode provocar a procura de assalariados. No prosseguimento da evolução do capitalismo, tanto nas regiões de grande, como nas de pequena propriedade, as máquinas e o progresso técnico provocam o desemprego. Como, por outro lado, ano a ano e dia a dia, os pequenos agricultores arruinados engrossam as fileiras do proletariado rural, a superpopulação relativa aumenta incessantemente nos campos.

Quando se atribui a superpopulação nos campos a razões técnicas, removíveis no plano técnico, como a monocultura, por exemplo; ou a circunstâncias acidentais ou temporárias, como "a crise e a diminuição da emigração", além da ... "falta de utilização de toda a mão-de-obra disponível"(14) - pasmai desta inteligentíssima descoberta! - nada de fundamental se explica. E quando, com declarados fins humanitários, se reclama a fixação do máximo de dias de trabalho dos assalariados rurais, que prefeririam lhes fosse assegurado um mínimo; ou quando, na sociedade burguesa, se introduz, na Constituição, "o direito ao trabalho", em vez da assistência ao desemprego; esconde-se a realidade por detrás de reclamações e garantias irrisórias, espectaculares e

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demagógicas. Esta é a verdade: existe uma superpopulação latente nos campos e a sua causa reside no próprio capitalismo e no seu desenvolvimento.

A importância e o carácter latente da superpopulação nos campos são, apesar de todos os preconceitos de classe, comummente reconhecidos pelos observadores: reconhecem eles "as crises periódicas de desemprego" ou falando de "três ou quatro meses de desemprego rural que nenhuma estatística revelou ainda"(15); ou referindo que "a maior parte dos trabalhadores não tem garantidos mais do que seis meses de trabalho e são numerosos os que nem este tempo conseguem"(16); ou citando casos em que é normal haver 10 meses de desemprego(17); ou monografando famílias de assalariados com apenas 70, 80 e 90 dias de trabalho num ano inteiro(18). Razão tinha um especialista para sintetizar inquéritos, estudos directos e monografias, dizendo que o assalariado rural, "na maioria dos casos, é um desempregado temporário"(19).

Calcular os salários reais sem ter em conta a superpopulação relativa conduz, pois, necessariamente a resultados incorrectos. Se, por exemplo, em fins de 1933, havia 35.000 desempregados registados e, em fins de 1938, 108.000(20), embora os salários nominais e os preços se tenham mantido sem sensível afectação, é evidente ter havido uma quebra nos salários reais.

Mas outros aspectos têm de ser levados em conta para se formar uma ideia exacta da efectiva evolução dos salários reais e da efectiva pauperização dos trabalhadores do campo. Se a jornada de trabalho sobe a uma média superior a 9 horas, atingindo em metade do ano mais de 10 horas e sendo vulgares os casos em que atinge 12 e mais horas; se não se cumprem horas de ferra e desferra; se se força a intensidade do trabalho; se, nas empreitadas, particularmente nas ceifas e surribas, os trabalhadores cansam o organismo em esforços brutais e abreviam, assim, o tempo de vida; se a mulher, mãe de família e assalariada, é obrigada, além da estafante jornada de trabalho, a cuidar das refeições, da roupa, da casa, dos filhos; se grassam as doenças por insuficiência alimentar e más condições sanitárias; se dada a escassa e má alimentação, a falta de agasalho e calçado, a falta de conforto e higiene, a mortalidade infantil em Portugal é a mais alta da

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Europa, não alcançando os 5 anos numa criança em cada seis que nascem; se, pela falta de protecção, sobe a dezenas de milhares o número de trabalhadores atacados de malária observados nos postos anti-sezonáticos; se os trabalhadores rurais, ao chegar à velhice, têm de recorrer à mendicidade - é forçoso reconhecer-se que todos estes aspectos devem ser atendidos ao calcular-se o preço da força de trabalho e a real pauperização.

E, apesar de haver quem insinue que a diferença de instrução e de cultura, entre as várias classes sociais, provém de diferenças natas, uma vez que a capacidade craniana de homens cultos sobe a 1.600 e mais centímetros cúbicos, enquanto a dos camponeses fica apenas ern 1.570 (?!)(21),deve ver-se nos 70%, 80% e 90% de analfabetos, que é frequente encontrarem-se nas populações rurais, não um resultado do acanhamento da caixa craniana que inventam os "teóricos" burgueses, mas um aspecto mais e um índice mais do baixíssimo nível da sua vida.

Ninguém, que tenha olhado com um mínimo de atenção e seriedade a situação dos trabalhadores do campo, pode negar a miséria, o desemprego, as doenças, a alta mortalidade infantil, o analfabetismo. "O trabalhador rural e o pequeno proprietário - escreve pessoa insuspeita de má vontade contra o capitalismo - passam vida abaixo de má."(22) Os assalariados - escreve outro - "só têm para atenuar um pouco a grandeza da sua miséria os melhores salários que auferem em épocas de aperto de trabalho, como a das ceifas, à custa de um esforço extenuante"(23). Famílias de assalariados - escreve outro - "com facilidade degeneram em casos de extrema miséria", "tendo como efeito a desagregação familiar, a transformação de trabalhadores em mendigos válidos"(24).

Sendo tão profundamente trágica a situação dos trabalhadores do campo, como se acaba de ver e melhor se verá nas páginas seguintes, pode, com segurança, desmentir-se que o aumento da riqueza e da produtividade do trabalho, levado a cabo pelo capitalismo, tenha provocado ou possa provocar o aumento do bem-estar dos trabalhadores rurais. Mais de um século de desenvolvimento das forças produtivas no Estado burguês, oferece-nos, na própria situação dos trabalhadores do campo, a clara prova de que o

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empobrecimento absoluto dos trabalhadores é lei do capitalismo, de que, na sociedade burguesa, o aumento da riqueza e da produtividade do trabalho é acompanhado pelo aumento da miséria.

O Pão para a Boca

Quando levada a um grau extremo, a pauperização, diminuindo a capacidade de trabalho e pondo em perigo a reprodução da força de trabalho, compromete a continuidade da produção. Daí preocupações e investigações da burguesia e dos seus estadistas, economistas, higienistas e técnicos. Daí estudarem a situação alimentar, fixarem as despesas mínimas que podem permitir às famílias de trabalhadores "manterem as suas condições de saúde e de capacidade de trabalho", organizarem "dietas satisfatórias" - ou seja, em resumo, estabelecerem as rações adequadas à conservação e reprodução de uma mercadoria indispensável no processo de produção. Apesar de ser claro o fim dessas investigações e estudos, isto não impede que se forneçam elementos de valioso interesse. Além do mais, entre os investigadores e estudiosos não faltam homens honrados, desejando para as classes laboriosas uma situação mais desafogada.

Quando os recursos são escassos, a alimentação absorve a maior parte. A correspondência entre o baixo nível de vida e as altas percentagens dos recursos absorvidos pela alimentação, embora não se possa reduzir a uma "lei" de rigor matemático (como já se tem pretendido), é de toda a evidência, seja em que país for. Por isso se fazem comparações entre as percentagens respeitantes à alimentação nos orçamentos familiares dos trabalhadores de vários países e se considera existir um mais baixo nível de vida onde essas percentagens são mais elevadas.

No confronto com outros países, Portugal ocupa posição ao fundo da escala. O Prof. Lima Basto verificou que a percentagem das despesas anuais de uma família operária, feitas com a alimentação, subia, em Portugal, a 70%, enquanto em 9 de 16 países estudados não chegava a 50%, em 4 ficava compreendida entre 50% e 60% e em 2 entre 60% e 70%. Apenas na antiga China subia a 72%, percentagem esta que o Bureau Internacional do Trabalho considerava "extraordinária"(25). A percentagem das despesas

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com a alimentação dos operários portugueses era então a mais alta da Europa(26).

Além disso, o regime alimentar, com o baixo consumo de carne, peixe e lacticínios, é um regime caracteristicamente pobre. "Em Portugal - escrevia ainda o mesmo autor -, a maior parte dos rendimentos é absorvida pela alimentação e esta é constituída por um número reduzido de produtos e baseada essencialmente nos cereais."(27) "O equilíbrio orçamental do nosso trabalhador - escreveu dez anos mais tarde outro autor, que confessa, aliás, fa-zê-lo para "se pôr à vontade" no "cometimento de fazer quase o elogio dos ricos" - só pode conseguir--se à custa de uma alimentação deficiente (escassa e pouco variada) e da supressão quase completa das restantes despesas."(28)

Segundo os mais categorizados higienistas, sempre que a cota das despesas com a alimentação passa de 52%, está-se abaixo da "linha de miséria", linha esta "abaixo da qual nenhuma classe de trabalhadores deveria ser forçada a viver"(29). Vê-se a que enorme distância do mínimo essencial à vida estão os operários portugueses.

Se a situação dos operários assim se caracteriza, a situação dos trabalhadores do campo é particularmente angustiosa. Socorrendo-nos das monografias de 45 famílias de assalariados rurais e pequenos agricultores dispersas em vários trabalhos(30) e respeitantes a várias regiões do País, encontramos as seguintes percentagens de despesas com a alimentação: num total de 12 famílias de assalariados, em 6 as percentagens ficam compreendidas entre 60% e 70%; em 5, entre 70% e 80% e, em 1, ultrapassam 80%; num total de 16 famílias de semiproletários (pequenos agricultores vendendo a força de trabalho), em 3 ficam compreendidas entre 60% e 70%; em 5, entre 70% e 80% e, em 8, entre 80% e 90%; e num total de 17 famílias de pequenos produtores (proprietários e rendeiros) em 4 ficam compreendidas entre 60% e 70% ; em 10, entre 70% e 80% (das quais 7 com mais de 75%) e, em 3, entre 80% e 90%.

É de notar que, com frequência, o cálculo das percentagens é feito de forma incorrecta, aparecendo a situação extremamente favorecida. No "Inquérito à Habitação Rural" incluem-se (em alguns casos pelo menos), nas despesas de família... as despesas da exploração agrícola.

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Assim, por exemplo, as despesas com a alimentação de um pequeno proprietário monografado, que subiam realmente a 78%, são apresentadas no "Inquérito" como sendo apenas de 57%(31). Não utilizámos cálculos desta natureza sempre que os pudemos conferir. Mas, como nem para todas as monografias dispusemos de dados igualmente minuciosos, é de supor que muitas das percentagens careciam de rectificação.

Apesar das possíveis inexactidões no cálculo, as apontadas elevadíssimas percentagens das despesas com a alimentação mostram já por si a situação aflitiva dos trabalhadores do campo. Na verdade, quando um chefe de família luta "para manter todos os seus sem os deixar morrer de fome", "esta preocupação não o deixa gastar a menor quantia em produtos não alimentares, a não ser em casos de absoluta necessidade"(32). Estas palavras são ditas em referência a um assalariado com o raro privilégio de ter trabalho assegurado durante todo o ano. Com mais forte razão, elas são válidas em relação ao comum dos assalariados e pequenos agricultores.

Está-se abaixo, muito abaixo, da "linha de miséria", "abaixo da qual nenhuma classe de trabalhadores deveria ser forçada a viver".

Se, em vez das percentagens de despesas com alimentação, se considerar o mínimo alimentar necessário (o chamado "cabaz de compras") e o número de "cabazes" que as famílias de trabalhadores conseguiriam comprar, se a isso aplicassem todos os seus recursos, a conclusão é idêntica. Calculado em 8$19 para 1946 o preço da alimentação diária (segundo o "cabaz das compras" internacional), em 112 famílias de assalariados rurais e pequenos agricultores monografadas pelos finalistas do curso superior de Agronomia nenhuma atingia tal despesa. A média dos pequenos proprietários nortenhos era de 4$92; a dos assalariados, 3$00; muitos havia que não chegaram aos 2$00(33). Segundo tais cálculos, os mais favorecidos comiam pouco mais de metade do considerado mínimo indispensável; e os últimos citados, nem sequer um quarto desse mínimo. Se se considerar o número de calorias tido como mínimo indispensável à vida e o número obtido nas refeições usuais dos trabalhadores do campo, ainda a mesma conclusão se impõe. Sendo 3.200 calorias o bastante para um homem

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normal com um trabalho muscular moderado, a média num país tem de ser muito superior para significar que os trabalhadores alcançam tal número de calorias. Entretanto, a média em Portugal, por "unidade de consumo", foi, segundo opiniões optimistas, de 3.300 no decénio 1927-1936 e 3.127 no decénio 1937-1946(34). Se repararmos que, não só a média geral é inferior ao mínimo no último decénio citado, como há muito quem se guie pela ideia de que um almoço com filetes de pescada e arroz de marisco, mais bife com batatas fritas, mais fruta, pudim e café "não exerce qualquer atracção sobre o apetite",(35) fácil é de supor a insuficiência das calorias contidas nas refeições dos trabalhadores.

De facto, na sua generalidade, os trabalhadores rurais não têm as 3.200 calorias, nem nada que disso se aproxime. Estudos regionais têm mostrado ser comum a alimentação não alcançar metade do mínimo bastante. No Douro, por exemplo, reconhecesse que os trabalhadores vivem com 1.300 e 1.500 calorias(36). E, quando sobretudo à base de pão de milho, é obtido o número de calorias considerado mínimo indispensável, a alimentação é tão desequilibrada que as perturbações na saúde atingem excepcional gravidade. Com tal regime alimentar, não só o trabalho se torna mais penoso como se abrevia o tempo de vida.

A situação é má e tende a piorar. Acabamos de ver como, segundo voz autorizada, a média de calorias em Portugal por "unidade de consumo", teria baixado das já insuficientes 3.300 em 1927-1936 para 3.127 em 1937-1946, apesar de, nestes números, estar incluído o vinho e a este terem cabido respectivamente 201 e 254 calorias. Tudo confirma este agravamento da situação alimentar. O pão "é o principal alimento com que é enganada a fome da família"(37), as famílias de trabalhadores rurais gastam geralmente mais em pão do que em todos os outros alimentos; casos se registam em que as despesas com o pão são cinco vezes superiores às despesas com toda a restante alimentação somadas às de combustível(38), e entretanto o consumo de cereais panificáveis (trigo, centeio e milho) passou (conforme já foi indicado) da capitação de 152 quilos anuais em 1926-1935 para 132 quilos em 1945-1949. E, embora altos funcionários expliquem, sem prova alguma, que tal decréscimo não significa, "por qualquer forma, diminuição do nível alimentar", mas, pelo contrário, "revela... mais equilibrada a alimentação

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da população"(39), é impossível acreditar que assim seja, quando diminuíram as capitações do consumo de peixe fresco, de bacalhau, de carne de vaca.

A capitação de consumo de carne bovina, conforme também já se mostrou, passou de 3,8 quilos em 1.926-1935 para 3,5 em 1946-1949, sendo muito discutível o aumento de capitação de outras carnes. A diminuição da capitação de consumo de peixe fresco é acusada pela diminuição da capitação da pesca desembarcada no País, que passou de 23,4 quilos em 1940 para 21,7 em 1950(40). Quanto ao bacalhau, cujo consumo atingiu a média de 48.732 toneladas nos últimos cinco anos antes da guerra(41), desceu para 33.000 toneladas no quinquénio 1940-1944 e "não parece ter aumentado depois da guerra", sendo legítimo atribuir esta diminuição do consumo à "elevação gradual do preço, que o torna cada vez menos acessível às classes mais pobres"(42).

O único produto alimentar de consumo popular em que subiu o consumo foi a batata, com a capitação de 70 quilos em 1926-1935, 83 quilos em 1936-1945 e 105 quilos em 1945-1949. É, porém, sabido como a batata é fraco alimento, sendo ousadia falar numa "mais equilibrada alimentação", quando se come menos pão, menos carne, menos peixe, menos lacticínios, quando se come menos no total, mas se comem mais batatas.

Os economistas e higienistas, que respeitam a verdade, apresentam um quadro bem sombrio da situação alimentar do povo. Têm, então, de reconhecer que os trabalhadores "mal ganham para a ilusão de que comem"(43). Têm de alargar as vistas a outros aspectos da situação e reconhecer nessa miséria a causa de outros e profundos males.

"Ao passo que as classes abastadas - escreveu o Prof. Loureiro - fazem um consumo de carne, peixe, ovos e gorduras, que não só excede as exigências fisiológicas, mas atinge um nível certamente prejudicial ao equilíbrio orgânico, nas classes pobres de certas regiões do País o consumo desses alimentos atinge níveis inverosimilmente baixos." "A grande maioria dos portugueses nunca prova desses alimentos." "A grandíssima maioria das crianças portuguesas nunca bebe leite. Nem o próprio leite desnatado se lhes destina, pois é quase todo gasto em alimentar porcos."

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"O higienista não pode dar o seu assentimento a um regime alimentar em grande parte responsável pela elevada mortalidade por certas doenças, em particular a diarreia infantil e as disenterias, que, no ano passado, ceifaram 20.000 portugueses e pela difusão e gravidade da tuberculose, de que morrem, por ano, 15.000 portugueses e de que estão a cada momento sofrendo de formas activas, mais ou menos graves, cerca de 100.000 dentre eles"(44).

Percentagens, calorias, "cabazes de compras", dizeres de especialistas, tudo aqui se cita para não se apresentar apenas o nosso próprio testemunho, directo, parcial e apaixonado (o que poderia provocar incredulidade nos supostos imparciais), antes o testemunho daqueles que estudam a situação portuguesa com parcialidade bem oposta à nossa, mas com um mínimo de respeito pela verdade. Percentagens, calorias, "cabazes de compras", tudo se traduz numa palavra única, que não é metáfora, nem símbolo, mas a realidade diária sofrida pelos trabalhadores do campo: a fome - "a chamada verdadeira fome" conforme dizia o relatório duma Câmara Municipal, falando do seu concelho.

Expoentes da Ciência Apologética

A par do grande número de especialistas que, tendo estudado com atenção a situação alimentar do povo português, concluem pela sua extrema gravidade, outros "especialistas" abordam o problema sem qualquer ideia de investigar e conhecer o que se passa, mas com o propósito antecipado de "provar" que os trabalhadores portugueses comem o suficiente e que tudo corre, portanto, às mil maravilhas.

É hábito destes publicistas começarem a "investigação" pelas conclusões e buscarem depois "fundamentos" para elas. Tal processo leva directamente à eliminação imediata dos factos contrários às ideias feitas e à aceitação daqueles que lhes são favoráveis. Repelem-se, então, como inexactos, os mais exactos testemunhos e reproduzem-se, como realidades, puras invenções e fantasias.

Quando quaisquer factos ou opiniões se ajustam às ideias feitas, estes "especialistas" proclamam a sua indiscutível veracidade; quando as desmentem, estes especialistas põem-

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nas de lado, declarando, por vezes, sem qualquer cerimónia, que o fazem por não se ajustarem às ideias feitas. Não faltam nesses "estudos" aparato técnico, números, quadros, citações, calão científico. Toda esta roupagem engalanada não tapa, porém, o débil esqueleto, os ocos, os ridículos, de uma argumentação feita a martelo.

Um dos mais significativos exemplos deste tipo de "investigação" e apreciação "científica" é-nos dado por um ilustre professor universitário.(45)

Antes de apresentar os resultados da sua investigação pessoal, S. Ex.a começa por manifestar muitas dúvidas quanto aos resultados dos inquéritos, monografias e estudos, que concluem pela existência da subalimentação. Não discute o critério seguido, não demonstra a inexactidão das conclusões; limita-se a falar nos "resultados inaceitáveis ou que suscitam ao menos reservas", a sublinhar que "é imensamente mais fácil criticar, apontar erros ou insuficiências do que construir", e a referir, muito catedraticamente, as "extremas complexidades e dificuldades desses assuntos"(46), que só capacidades como a de S. Ex.a podem citar com possibilidades de êxito. Começa então, com a sua refinadíssima cultura, o estudo da situação alimentar do povo português na actualidade... fazendo a "história das condições alimentares da população, desde os tempos mais remotos"(47). Tira eruditas conclusões acerca da alimentação dos homens que viveram no solo português muito antes de existir Portugal. Vem depois por aí fora, século atrás de século, vencendo facilmente, à sua moda, as "extremas complexidades e dificuldades desses assuntos".

Afirma um escritor do século XVIII que, em 1787, a cidade do Porto, com 63.505 habitantes, consumia cerca de 12.000 bois e 4.000 vitelas anualmente? S. Ex.a põe imediatamente de lado o testemunho, "ou teríamos de supor que o portuense no fim do século XVIII comia cinco ou seis vezes mais carne de vaca e de vitela do que o do meado do século XX"(48) - forma esta de argumentar que, com razão reforçada, poria fora do ringue o facto verdadeiro, indiscutível e atestado pelas estatísticas oficiais, de que, em 1906-1915 cada portuense comeu em média anual 28 quilos de carne bovina e, em 1945, apenas 12 quilos.

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Depois da sua digressão, com razões sempre igualmente brilhantes, acerca da alimentação do povo português, desde antes de ter começado a existir até aos dias de hoje, S. Ex.a entra, afoitamente, na actualidade. Há ensaístas que dizem ser suficiente a alimentação do povo português? S. Ex.a considera isso "opiniões fundadas"(49) (sem, aliás, dizer porquê). Refere um autor défices calóricos "sem gravidade"? S. Ex.a sublinha estas duas palavras. Há outros que se referem a níveis insuficientes de alimentação? Chama-lhes muito justiceiramente "improváveis"(50) depois de os ter tachado de "trabalhos de nulo ou discutível valor"(51). E arruma desse modo o debate. Afirma, em conclusão, que "o valor energético da alimentação portuguesa por unidade de consumo é, sem dúvida, em média satisfatório"(52). E, como, nestes assuntos extremamente complexos, é necessário provar o que se diz, S. Ex.a assim o faz com novos argumentos irrespondíveis. Porque garante S. Ex.a que não há subalimentação? Pela formidabilíssima razão de que, se assim não fosse, "é de surpreender que a nossa população tenha podido sobreviver a esse regime, realizar tarefas enormes e até experimentar acréscimos consideráveis dos seus quantitativos demográficos". "A subalimentação - explica S. Ex.a - traduzir-se-ia, logicamente, em enfraquecimento de vitalidade germinal, em sinais vários de depauperamento orgânico, de decadência"(53).

De onde se conclui que o povo português come o suficiente desde antes de Afonso Henriques e muito especialmente na actualidade, pelas seguintes fundamentais e deliciosas razões: lª. - porque existe ainda; 2ª. - porque a população tem aumentado e conserva a "vitalidade germinal"; 3ª. - porque não se notam quaisquer sinais de depauperamento orgânico, como, por exemplo, a tuberculose ou o raquitismo.

E dessa maneira se vencem as "extremas complexidades e dificuldades destes assuntos", e assim se "prova" que os trabalhadores portugueses se alimentam satisfatoriamente.

Que não pode certo haver suspeitaNuma mostra tão clara e tão perfeita.

Outro exemplo deste género de "investigação científica" é-nos dado por outra autoridade(54). Para este impagável autor, o problema da carência alimentar reside na má administração

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e esbanjamento pelas donas de casa. Segundo ele, "a arte de gastar está atrasada" e "a de ganhar aperfeiçoou-se ao máximo"(55). A grande questão é que a dona de casa, o "anjo do lar", faz gastos imoderados, quando "poderia gastar mais progressiva e racionalmente"(56). De onde se conclui estar a solução das dificuldades alimentares na "educação" dos consumidores(57) e, em particular, dos tais "anjos do lar" que (o autor não diz, mas adivinha-se) despendem elevadíssimas quantias nas modistas de vestidos e de chapéus, nas perfumarias e confeitarias, em táxis e na canasta.

Entrando propriamente na análise do problema e na acção educativa, o autor fala em calorias, capitações e outras coisas. Quando os números não chegam ou são particularmente indiscretos, o autor mete-os na ordem com inultrapassável brilhantismo. Se, por exemplo, os números lhe acusam uma capitação de 9,49 quilos de carne (o que já é, aliás, superior à capitação indicada nas estatísticas oficiais) o autor, distribuindo, gratuita e generosamente, 6 quilos de carne por cabeça, acrescenta, por sua conta, que a capitação deve ser antes de 15,6 quilos, além de que se come mais fruta que na Inglaterra e Alemanha e que o consumo de hortaliças "deve atingir cifras descompassadas na província"(58). E assim o autor

Festeja a companhia lusitanacom banquetes, manjares desusados,com frutas, aves, carnes e pescados.

E, desse modo, "prova" que, em Portugal, há "uma capitação alimentar anual que ultrapassa notavelmente as da China e da Inglaterra na sua classe inferior e que tende à capitação alemã e inglesa, na superior"(59).

Depois de tão categóricas demonstrações de tão categorizados autores, deve reconhecer-se que, se nem sempre os trabalhadores do campo comem fritadas de ovos com presunto, como nas Pupilas do Sr. Reitor, se comem mal, se passam fome, isso não sucede por não terem recursos para mais, por receberem salários baixos e serem vítimas do desemprego os assalariados; por viverem esmagados pela concorrência, pela usura, pelos impostos, pelas rendas, os pequenos agricultores; mas apenas por não saberem comprar, por não saberem escolher os alimentos mais convenientes e por as mães de família esbanjarem dinheiro

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em luxarias. Pensando-se assim, o melhoramento da alimentação do povo não é uma questão de aumento da produção agrícola, de aumento de salários, de desafogo do pequeno agricultor, mas uma questão de "educação" do povo. O que se impõe, no entender destes notáveis especialistas, é que o povo aprenda "a arte de gastar", porque quanto à de ganhar, como se sabe, já não tem para ele segredos. O que se impõe, no seu entender, é que o povo se guie nas suas refeições por umas tabelazinhas indicando o valor em calorias dos vários alimentos, procurando mais calorias com menos dinheiro, tal como muitos senhores e senhoras obesos e hipertensos procuram menos calorias mesmo à custa de mais dinhero.

É pena não serem os "estudos" destes "especialistas" divulgados amplamente entre os próprios interessados. Só por essa forma eles poderiam ser tidos como merecem. Leitores haveria que os lançariam ao fogo em gesto indignado e impiedoso. Mas também não faltariam outros de heróico humor, divertindo--se às gargalhadas dos lamentáveis e vãos esforços destes teorizadores.

A Sepultura da Vida

Há já bons anos, sob a direcção dos professores Lima Basto, já falecido, e Henrique de Barros, realizou-se um inquérito à habitação rural nas províncias ao norte do Douro. No dizer de Lima Basto, "todos os trabalhos apresentados procuram ser fotografias exactas do que é a habitação rural predominante"(60). Na verdade, este inquérito (que é pena não se tenha realizado no resto do País) fornece apesar das suas deficiências, fotografias bastante exactas do que são os lares dos trabalhadores do campo: assalariados e pequenos agricultores.

E não só isso. Muitos e muitos exemplos típicos são aí apresentados. Descrevem-se as casas, o seu "recheio", incluindo utensílios e roupas. Faz-se uma descrição sumária das famílias que nessas casas habitam, dos seus recursos e despesas. O "inquérito" fornece, portanto, não apenas uma informação acerca das habitações, mas uma informação acerca do pungente drama de miséria dos trabalhadores do Norte de Portugal.

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De uma maneira geral, em nenhum dos casos referidos no "inquérito" se encontra uma só das condições fundamentais de uma habitação conveniente. Nem defesa do frio no Inverno, nem temperatura ambiente adequada, nem pureza e cubagem de ar, nem luz solar durante o dia, nem iluminação artificial nocturna bastante, nem espaço para se moverem as pessoas e em especial as crianças, nem divisões suficientes e quartos separados, nem latrinas, nem esgotos, nem água canalizada, nem limpeza, nem o mínimo, o verdadeiramente mínimo, indispensável de mobiliário, de roupas, de utensílios, E entre tantas e tão graves faltas não se deve também deixar de referir (apesar de estar implícito) a de um sítio onde as pessoas se possam banhar, apesar de altas individualidades que afirmam serem supérfluos e pecaminosos tais sítios nos lares dos trabalhadores(61).

Temos conhecimento directo de muitos e muitos outros lares semelhantes aos descritos no "inquérito" e de muitos e muitos outros que conseguem ultrapassar os aí descritos pela quase inconcebível miséria. Não há qualquer exagero em dizer-se que, na sua grande maioria, os trabalhadores rurais habitam pardieiros impróprios para habitação e os seus lares são verdadeiros lares de mendigos. Razão tinha um dos inquiridores para dizer, falando das povoações do Alto Minho, mas podendo, também, falar de muitas outras regiões, que "estes aglomerados populacionais oferecem o espectáculo de quase todas as condições de que os homens se rodeavam em tempos remotos"(62). E razão tinha um crítico do "inquérito" ao dizer que "casais ou pequenos aglomerados existem que preferível seria destruir completamente e procurar novo assento para reedificar"(63). E por estas habitações que roubam saúde e alegria, os trabalhadores têm ainda por cima, quando arrendadas, de pagar elevados preços.

Sejam, porém, alugadas, ou sejam elas propriedade dos moradores, as habitações rurais são, em geral, construções impróprias para nelas se viver.

"A construção que serve de abrigo à família - diz-se da casa de um assalariado do concelho de Mirandela com o raro privilégio de ter "trabalho assegurado durante todo o ano" - é uma antiga loja para porcos, conforme ainda atesta uma grande pia de pedra existente no meio do pavimento. À mudança do género dos habitantes não correspondeu

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qualquer outra que tendesse a torná-la mais confortável e higiénica; o pavimento continuou a ser a terra batida, as paredes não foram caiadas e, além da porta de entrada, baixa de mais para pessoas, nenhuma outra abertura se praticou; apenas houve o cuidado de, durante algumas semanas, não fechar a porta para conseguir a extinção dos maus cheiros." "Como única abertura para acesso, ventilação e iluminação existe a porta com 1,80 m de altura [...]. É de madeira e não tem postigo. O compartimento está toscamente dividido em dois por meio de uma divisória de tábuas não aparelhadas com cerca de 1,80 m de altura [...] Na primeira (das divisões resultantes) dormem os pais e a filha mais nova (de 2 meses); na segunda, destinada a cozinha e quarto de cama, dormem, num só leito, os quatro filhos restantes: a filha mais velha, de 16 anos, e três rapazes de 14, de 10 anos e de 20 meses. A casa não tem chaminé. O fumo escoa-se pelos intervalos das telhas da cobertura, que não tem forro [... ] As dejecções fazem-se e despejam-se no quintal em frente à casa ou na própria rua [...]. As galinhas do locatário dormem dentro da própria casa, num pau que serve de poleiro, aos pés da cama dos filhos [...]. O valor da casa deve orçar por 1400$00 [...]; o arrendatário paga 14$ mensais, o que se pode considerar uma exorbitância (12%). Pela descrição que sumariamente fica feita, se depreende que nunca houve o propósito de na casa abrigar seres humanos e só a muita necessidade poderia obrigar alguém a viver nas condições em que vive a família objecto deste inquérito."(64)

Não se julgue tratar-se de um caso isolado. Mostra-o outro inquérito feito por organismos governamentais, pelo qual se vê que numa zona do litoral do Minho, 584 casas num total de 1506 inventariadas, são habitações miseráveis, "verdadeiros antros que nem parecem habitações humanas", "casas cuja demolição se impõe"(65). Com umas características ou com outras, o comum das habitações, mesmo quando, ao contrário da atrás descrita, houve ao construí-las o propósito de nelas abrigar seres humanos, pouco excedem em conforto este cor-telho de porcos, lar de um assalariado, com a rara felicidade de ter "trabalho assegurado todo o ano".

No Minho interior, zona serrana, a defesa contra o frio, "a maior preocupação", procura-se assegurá-la "construindo a lareira no compartimento, em geral único, onde dormem todos os membros da família na maior promiscuidade e

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diminuindo o número de dimensões das aberturas. Tal processo cria, no interior das habitações, atmosfera imprópria, viciada e saturada de fumo. Se a regra nestas casas não fosse a telha vã, as condições de arejamento seriam nulas. Quanto à falta de iluminação, nada "a que a compense"(66).

Apesar do rigor do clima, o vento entra pelas rinchas, pelos espaços entre as pedras, pelas portas de madeira mal calafetadas. Num caso: "Em noites tempestuosas a família prefere dormir no compartimento que serve de cozinha a ir para o quarto de cama, onde o vento é tal que não possibilita manter acesa a candeia de azeite."(67) Noutro: com três carros de lenha anuais "cozinha-se, aquece-se a família e ilumina-se durante o Inverno, por economia e por impossibilidade de manter a candeia acesa por causa do vento que se infiltra pelas fendas da janela, das paredes e pelos intervalos das telhas"(68).

O chão é geralmente térreo. No Baixo Minho há muitas casas com chão de tábua, embora sejam frequentes os pavimentos de terra batida. Nas outras zonas estudadas, predomina o chão térreo. Quando as casas têm primeiro andar, naturalmente que aí o piso é de madeira, mas com frequência o estado das tábuas é de completa ruína. Na habitação de um rendeiro do concelho de Baião, o primeiro andar é, como geralmente sucede, sobre o pátio. Mas "o estado do sobrado, com fendas por onde "cabiam cães" (como observou o inquirido) de forma alguma isola o piso superior e cria circunstâncias semelhantes a uma coabitação do homem e animais"(69).

Os tectos são, geralmente, a própria cobertura de telha vã ou de colmo, sem qualquer chaminé. Isto agravado pelo frequente mau estado da cobertura, casos havendo em que esta "deixa passar livremente em alguns pontos a chuva torrencial que por vezes cai"(70). Isto sucede no Minho que, com 1.500 mm, 2.000 mm e mais de chuva anual, é das regiões da Europa onde mais chove. A situação noutras regiões abrangidas peio "inquérito" é sensivelmente igual.

As habitações têm número reduzido de janelas e, muitas vezes, estas são substituídas por postigos, ou pequenas aberturas... ou nada. Assim, como exemplo entre muitos, na casa de um pequeno proprietário do concelho de Melgaço,

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num compartimento de 9 metros quadrados "sem qualquer abertura para o exterior" dormem 4 pessoas(71). Mesmo nas frias zonas serranas, as janelas, quando existem, são geralmente desprovidas de vidraças e protegidas apenas por uma porta de madeira e as portas desprovidas de postigos. No Minho litoral, onde "as janelas apresentam usualmente vidraças", estas estão "na maioria dos casos completamente partidas"(72). Isto significa que de "Inverno, ou se passa frio, ou se vive às escuras"(73).

Triste situação esta em que os buracos do telhado, deixando entrar a água, o vento e a luz e deixando sair o fumo, depois de este enegrecer as casas e sufocar as pessoas, tapam as faltas de arejamento, de iluminação e de chaminés e parecem insinuar, com ironia, a falta de canalizações e de higiene. Quantos hinos não se cantam à amenidade do nosso clima! E em quantos lares não se treme de frio, de humidade, de desconforto ao longo dos Invernos rigorosos! Quantos hinos não se cantam ao belo sol do nosso país! E quantas casas rodeadas pela atmosfera soalhenta nunca vêem no interior um raio solar!

Raríssimas habitações têm um arremedo de latrina. As dejecções são feitas em pleno campo ou em estrumeiras situadas, ora diante da porta, ora no pátio ou estábulo por debaixo do primeiro andar habitado. Sucede mesmo as estrumeiras estarem dentro da habitação. O "inquérito" cita a casa de um trabalhador assoldado ao ano, em cuja cozinha existe, a um canto, uma coelheira, por baixo da qual existe uma estrumeira onde se despejam todas as dejecções(74).

Dentro das casas, as famílias amontoam-se, dormindo pais e filhos de qualquer idade num mesmo compartimento e, frequentemente, rapazes e moças numa mesma cama. Dizendo-se isto e acrescentan-do-se ser o contrário a excepção, o essencial está dito. Pode, contudo, ilustrar-se a afirmação com alguns exemplos. No Barroso, onde predominam as habitações com dois compartimentos (o "sobrado" e a "cozinha") "o sobrado é o dormitório colectivo da família. Aí estão as camas, as mais das vezes tarimbas de madeira onde dormem pai e mãe, filhos, genros, noras e avós. Não se vá supor que quaisquer tabiques existem a separar as camas ou tarimbas. Estas tarimbas, com um enxergão ou dois, são dormida de filhos sem distinção de sexos nem de

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idades"(75). Na habitação de um pequeno proprietário do concelho de Melgaço, dormem os pais e duas filhas "crescidas", em "duas camas encostadas"(76). Na habitação de um rendeiro do concelho de Arcos de Valdevez, dormem num só quarto, o chefe de família e três filhos numa cama (1,70 m X 1,10 m), e a mulher e duas filhas num tabuleiro de madeira (1,60 m X lm)(77). Na habitação de um rendeiro do concelho de Viana do Castelo "dormem em duas camas as sete pessoas que constituem a família", ou seja, o casal, um rapaz de 11 anos e 4 moças de 19, 16, 13 e 7 anos(78). Na habitação de um assalariado contratado ao ano do mesmo concelho, dormem num mesmo quarto, o casal e uma filha numa cama e três filhos noutra(79). Na habitação de um "parceiro cultivador" do concelho da Régua, dormem, num quarto "sem qualquer abertura para o exterior", numa cama três rapazes de 10, 8 e 6 anos e, noutra, três moças de 16, 13 e 4 anos(80). Nos casos em que há divisões interiores predominam os tabiques de madeira (em regra tábuas de caixote) ou simples trapos à laia de cortina, que não garantem senão um muito relativo isolamento. Por vezes, a situação é agravada pelo facto de viverem numa mesma casa "famílias diferentes". É demagogia oficial "favorecer a formação de lares independentes", porque "o nosso feitio individualista e independente não se compadece com o falanstério e a caserna colectivista que ferem o pudor e o recato da nossa vida familiar"(81). Vê-se que nos campos portugueses bem tristes são ainda esses "lares independentes" e bem pouco é o "pudor" e "recato" que em tais condições pode haver.

Na verdade, além das nocivas consequências para a saúde de uma tal situação, compreendem-se as constantes dificuldades e preocupações na vida sexual do casal ou casais e os complicados problemas, iniciações perigosas, precocidades doentias e tragédias que traz para as crianças.

Toda uma grande aldeia o pode testemunhar. Irmão e irmã, eram duas crianças ainda, com menos de 15 anos. Quando passavam pelas ruas com o seu filho ao colo, deixavam um resto de ditos, de lamentações e de protestos. Cabeças baixas, pareciam esmagados pela reprovação geral, pela dor e pelo espanto. Esta foi uma tragédia que veio a lume originada nas condições de "pudor" e "recato" dos "lares independentes" dos trabalhadores portugueses. Mas quantas e quantas desta natureza não são sufocadas com anos de

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lágrimas, com um compromisso irremediável da vida inteira, com dramas familiares e até com o suicídio ou com o crime?

Além das condições gerais de habitações acabadas de referir, o "inquérito" mostra como famílias que dão ao País vidas inteiras de trabalho, gerações atrás de gerações, carecem das coisas mais elementares.

Quanto à "mobília", uma ou duas camas ou tarimbas, uma mesa, uns bancos, mais raramente cadeiras, uns caixotes ou arcas - e é tudo. Ainda por cima "o estado de conservação destes móveis e sempre péssimo"(82). Não é raro nem sequer existir um tabuleiro para as crianças dormirem, como num caso citado em que "dois garotos de 14 e 6 anos e duas meninas de 12 e 9 anos dormem sobre uma porção de palha estendida no chão"(83). Quanto a utensílios e roupas de cama, a situação não é melhor. Na família de um assalariado, constituída por casal e 9 filhos, há ao todo, para as 11 pessoas, 4 colheres, 3 garfos, 1 faca, 3 malgas, 4 pratos de barro, 1 copo, 3 lençóis, 3 mantas e 2 fronhas(84). A família de um rendeiro constituída por casal e 5 filhos tem apenas 2 pratos, 3 malgas, nenhum copo, 2 colheres, 5 garfos, 4 lençóis (85). A família de um assalariado, casal e 5 filhos, tem 1 prato, 2 malgas, "4 lençóis em farrapos" e "4 retalhos de manta em farrapos"; e conta o inquiridor: "0 inquirido fez notar, com certo bom-humor [...] que para comer era necessário que uns esperassem pelos outros, mas, em geral, não era preciso esperar muito"(86). Noutra família, falando-se das 5 mantas que são toda a roupa de cama para um casal e 2 filhos adultos, diz-se: "E que mantas! Trapos remendados todos os dias para que não se desfaçam"(87).

Tal é a tremenda situação revelada pelo "inquérito à habitação rural" nas províncias do Norte. Compreende-se que os referidos ases da "ciência" apologética desmintam estes factos esmagadores, tachando-os de "inaceitáveis", de "improváveis", mesmo que não tenham para opor-lhes senão o caricato argumento da "vitalidade germinal" do povo.

Não há inquéritos tão completos como este em relação ao resto do País. Não deixa, porém, de haver estudos que mostram como, infelizmente, a situação não é melhor nas demais regiões.

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Um "inquérito" sobre higiene rural, realizado em 1931, sob a direcção do director-geral de saúde, Dr. José Alberto de Faria(88), mostra que tal como no Minho e Trás-os-Montes, a telha vã, o chão térreo, as cortes de gado e pocilgas ou por baixo das habitações ou separadas por tabiques dentro da própria casa, a falta de divisões e a "promiscuidade", as casas sem janelas, as janelas sem vidros, a falta de ar e de luz são as características gerais das habitações dos trabalhadores do campo na Beira Alta como na Beira Baixa, na Beira Litoral como na Estremadura, no Alentejo como no Algarve. Este inquérito tem já dezenas de anos, mas conserva-se actual. Se nos últimos trinta anos a situação mudou, foi para pior.

Vários outros estudos, antigos ou recentes, apresentam o mesmo quadro, sempre o mesmo quadro, dos lares dos trabalhadores do campo. Diz-se num que, na Beira Baixa, a habitação é em geral miserável, exígua e suja, vivendo nela, numa promiscuidade que confrange, todos os membros de uma família e quantos animais domésticos possui(89).

A respeito da situação no Vale do Sado, escreve-se o seguinte: "O alojamento, construído pelo próprio rural, é qualquer coisa que o possa ilibar de pagar a renda. Dizemos qualquer coisa, porque não chega, muitas vezes, a ser casa, nem sequer simples cabana; é um abrigo tosco, que constrói com as suas próprias mãos, com material que não precise de comprar, e é a terra, ou o junco, ou latas e tábuas velhas, tudo enfim que se preste a armar uma pequena toca, que passará a servir para nela dormir toda a família"(90). Do "recheio" desses "lares independentes" fala o caso de uma família de 7 pessoas em que "todos os utensílios de esmalte são encontrados pelos garotos, que com esse fim revolvem a lama (lixo da cidade de Lisboa, bastante empregado como fertilizante na região) nas propriedades onde os pais trabalham"(91).

Noutro estudo sobre o pliocénico ao sul do Tejo, confirma-se que "nesta imensa planície surgem cabanas provisórias, onde seareiros ou trabalhadores miseravelmente se abrigam. Constituem um provisório que se vai tornando definitivo, pois aos proprietários não convém a construção de casas de telha, que influem, sem grande proveito (!), no montante das contribuições". E fala-se de seareiros habitando "verdadeiras palhotas de pretos" e diz-se que "é de ruína e de abandono,

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senão de desespero, o quadro oferecido pelas choupanas de mato, palha e lata"(92).

Noutro estudo respeitante ao Alentejo, o inquiridor concluiu que "cerca de 95% dos compartimen-tos (das famílias inquiridas) não têm nem ar nem luz suficientes" e que "não é frequente encontrar janelas na casa do trabalhador rural alentejano e, muito menos, janelas com vidros"(93). O soalho praticamente não existe; predomina o chão de terra batida e, mais raramente, o ladrilhado. Os tectos são de péssima telha. O aspecto das habitações é, porém, em regra muito limpo, devido em grande parte à existência de chaminés e ao hábito das caiações.

Até nas zonas de turismo, onde para sossego da alma e das digestões dos turistas é comum toma-rem-se medidas de melhoramento do aspecto das habitações rurais ou do seu afastamento, para onde não comovam as pessoas sensíveis - os miseráveis lares dos trabalhadores marcam a sua presença. Em plena estação balnear, um jornalista referia, de um e de outro lado da estrada de acesso, à entrada da Costa da Caparica, a existência de "tendas abarracadas onde vive gente que trabalha no campo"(94). E o jornalista falava na "condenação" dessas "inestéticas construções" pelo plano urbanístico... sem naturalmente dizer o destino das famílias que as habitavam. E para que dizê-lo? Pois não é sabido como na cidade ou no campo as habitações miseráveis abatidas por razões urbanísticas e "estéticas" ressurgem inevitavelmente noutro lado? Pois não é sabido que, tendo, por exemplo, sido apeadas ao longo da Avenida de Ceuta dezenas de casas velhas, elas ressurgiram sob a forma de centenas de barracas na encosta da Rua Maria Pia? E que, depois de bairros de lata destruídos, furnas tapadas, barracões desalojados, se em 1937 havia 10.000 barracas em Lisboa, outras 10 000 existem em 1952?(95)

Todas estas transcrições, propositadamente longas, porque assim ganham em poder demonstrativo, põem em realce os tristes lares dos trabalhadores da terra, sejam assalariados, sejam pequenos agricultores, todos confundidos no mesmo nível de inexce-dível miséria.

E se assim sucede, quando o governo tem a ousadia de afirmar que "o problema da habitação em Portugal tem sempre figurado entre as principais preocupações do

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governo"(96), que sucederia se tal preocupação não fosse principal...

Na inauguração de um bairro de "casas económicas", citando o dito beirão de que "a casa é a sepultura da vida", um orador terminou o seu discurso com um sentido e comovente voto: "seja-o por muitos e dilatados anos para os habitantes deste bairro acabado de inaugurar."(97). Se as raras casinhas novas não ousam prometer mais que uma "sepultura da vida", que triste sepultura não são os casebres, as choças, as tocas, dos nossos trabalhadores rurais?

3 - A Natureza, o Homem e a Sociedade

No conjunto nacional, existe um considerável atraso da agricultura em relação à indústria. Basta notar-se que, correspondendo à população agrícola activa mais de 50% da população activa total, a parte do rendimento nacional que cabe à agricultura não vai além de 26%; ao passo que, correspondendo à população activa na indústria apenas 21% do total da população activa, cabem à indústria 28% do rendimento nacional(1). É bem visível ser o desenvolvimento económico na agricultura mais lento que na indústria.

Quais as razões deste facto? Será essa diferença consequência das condições naturais específicas em Que se exerce a actividade agrícola? Ou provirá de instituições transitórias?

Da resposta que se dê a estas perguntas resultam conclusões de extrema importância. Se existem causas naturais determinando o atraso da agricultura, então a rotina, a produção agrícola insuficiente, falta de alimentos, a diferença e oposição entre a cidade e o campo, são males contra os quais nada pode o homem e dos quais a ninguém cabe responsabilidade. Se o atraso agrícola provém de instituições transitórias, então há responsabilidade directa de tais instituições e está nas mãos dos homens superar o atraso, conquistar a abundância e eliminar a diferença entre a cidade e o campo.

As Pretensas Razões Naturais

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Segundo alguns técnicos, existem características específicas da agricultura impedindo que acompanhe o ritmo de desenvolvimento da indústria. Tais características seriam eternas e imodificáveis. As "forças naturais" constituiriam obstáculo invencível ao progresso técnico. Leis biológicas se oporiam aos esforços humanos e os tornariam inúteis.

"O nível das actividades agrárias" seria condicionado fundamentalmente pelo "binário clima-solo"(2). Na agricultura, as suas "características fundamentalmente biológicas", a sua "estreita dependência perante as condições ambientes", a "incerteza dos seus resultados", a "dispersão inorgânica em que é exercida e a que está decerto obrigada para utilizar a energia solar" tornariam os avanços técnicos "menos eficazes, mais contingentes, mais lentos, menos facilmente generalizáveis"(3). Essa seria a razão do seu atraso.

Sem dúvida que, na generalidade dos países capitalistas, a produção agrícola está em alto grau dependente das forças naturais do solo e do clima, tal como se oferecem ao homem, e os avanços técnicos na agricultura são "menos eficazes, mais contingentes, mais lentos, menos facilmente generalizáveis". Isso não sucede porém pela acção irresistível de leis naturais, mas, como se mostrará, pela intervenção de obstáculos de ordem social. Afastados estes, podem ser eliminadas as "razões naturais" do atraso agrícola. Contra a natureza irremediável do mal que se teria de concluir destes pareceres dos técnicos, pode confiar-se na possibilidade de o remover.

Com frequência, os defensores das razões naturais irremediáveis do atraso agrícola referem os "limites máximos possíveis" da produtividade das espécies cultivadas. Há pouco mais de meio século, o visconde de Coruche garantia: "A agricultura tem limites naturais, restritos e particularíssimos a cada país, a cada região e a cada produto, limites além dos quais é impossível produzir." "Por muito dinheiro, muito trabalho, ciência, inteligência, que se empregue em bem amanhar e adubar, a produção não pode nunca exceder os limites de um certo termo natural invencível."(4) Mais de meio século passado, economistas e técnicos afirmam precisamente o mesmo, embora nem sempre com tanta clareza. Apenas não reparam que o próprio desenvolvimento da agricultura capitalista, apesar da sua lentidão em relação à

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indústria, se vai cada dia encarregando de vencer os obstáculos naturais e biológicos, tidos ontem como invencíveis. Não reparam que a própria técnica se encarregou de demonstrar na prática serem errados os cálculos dos nossos avós acerca dos "máximos possíveis". É mais que certo virem a dar os nossos filhos desmentido igual a alguns técnicos de hoje.

Embora fosse determinável (que não é) um máximo possível de produtividade, citar em Portugal a existência desse máximo como razão das dificuldades do avanço técnico na agricultura, como causa do atraso agrícola, é caso para fazer sorrir. Técnicos categorizados admitem, por exemplo, como produção teórica máxima de trigo por hectare cerca de uma dúzia de toneladas. Se atendermos que a Produção de trigo em Portugal só em raros anos ultrapassa a média de 1 tonelada por hectare e que, de 1940 a 1949, na maioria dos anos, pouco passou dos 500 quilos; se atentarmos nas diferenças gritantes entre as produções unitárias na lavoura corrente e as alcançadas em campos experimentais ou mesmo em explorações mais evoluídas; se compararmos as produções unitárias em Portugal com as dos outros países do Ocidente europeu; se nos lembrarmos dos imensos recursos naturais ainda por aproveitar; se notarmos a desoladora distância entre os processos e os resultados da agricultura portuguesa e aquilo que os próprios técnicos portugueses aconselham e consideram viável - temos de reconhecer que citar as máximas produções possíveis, entre as razões naturais do atraso agrícola, é jogo de palavras que não pode convencer ninguém.

Estamos longe, terrivelmente longe, não só dos "máximos teóricos" como de médias práticas razoáveis. Já há mais de meio século se obtinham em experiências 30 a 40 quintais de trigo por hectare(5). Já há mais de trinta anos, lavradores do Alentejo e Ribatejo alcançavam 18 a 20 hectolitros por hectare(6). Já há mais de vinte anos se obtinham nos campos experimentais do Instituto Superior de Agronomia mais de trinta quintais por hectare(7). Casos são citados em que uma simples adubação conveniente permitiu em herdades de Estremoz e Campo Maior rendimentos de mais de 20 quintais(8). No mesmo ano em que, numa freguesia do concelho de Eivas, a produção média de trigo andou por 8 quintais por hectare, alcançaram-se em campos na mesma

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freguesia produções de 20 a 28 quintais(9). Estes exemplos ilustram não serem causas biológicas nem climáticas, não serem quaisquer "máximos não ultrapassáveis, a determinar os baixíssimos rendimentos unitários em Portugal.

A ideia basilar de razões naturais, explicando o atraso da agricultura, é cercada, às vezes, de argumentos técnicos cuidadosamente elaborados, entre os quais avulta a tentativa de demonstração de que a composição orgânica do capital depende apenas, em última análise, do tipo de cultura. Os técnicos estudam vários tipos de cultura e determinam as "despesas de trabalho" em cada tipo. Verificam, por exemplo, que, nos casos mais usuais, tais despesas absorvem 40% do total das despesas nas explorações policulturais, menos de 20% nas predominantes pecuárias e 60% em casos de grande intensidade cultural ou em solos pobres e com fracas colheitas. Daqui concluem serem causas técnicas, e não económico-sociais, a determinarem a composição orgânica do capital, e não lhes é difícil concluir pela magra cota do capital constante como lei invariável na agricultura. "A intensificação das explorações agrícolas - diz-se - continua a depender, em larga escala e mais ou menos por toda a parte, das possibilidades de aumentar o número de trabalhadores."(10) Não se repara, assim, que o simples facto de aumentar com os tempos a composição orgânica do capital na agricultura é um desmentido à existência de quaisquer "causas naturais basilares", de quaisquer razões específicas inelutáveis. Não se repara, também, que, em muitas empresas agrícolas contemporâneas, a composição orgânica é mais elevada do que há um século ainda não era em algumas indústrias manufactureiras.

Os mesmos autores, que afirmam ser a baixa composição orgânica do capital uma lei da produção agrícola, não deixam, entretanto, de afirmar que o atraso da agricultura existe também porque o progresso cultural exige a introdução de máquinas, isso provoca o desemprego rural e os capitalistas e o Estado querem evitá-lo... "Além das conhecidas causas técnicas", haveria uma outra causa que "tem obstado à difusão de muitas utilíssimas máquinas agrícolas em Portugal".

Essa causa nada teria a ver com o sistema económico, mas apenas com o bom coração dos grandes lavradores. Essa

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causa seria "o conhecimento da desfavorável repercussão que teria no desemprego rural"(11). Também neste ponto os técnicos modernos não se afastam muito do visconde de Coruche. "O movimento normal da agricultura - dizia o visconde - não me parece que possa ser muito ultrapassado, sem comprometer a felicidade real dos povos."(12) O atraso da agricultura seria assim também, além de questão natural e técnica, uma questão de piedade e de coração.

Dizendo, por um lado, que a intensificação cultural depende do aumento do número de trabalhadores, dizendo, por outro lado, que implica a sua diminuição (pois a introdução de máquinas e de uma técnica mais rendosa provoca o desemprego rural), os justificadores do atraso agrícola não reparam sequer na contradição em que incorrem. Não reparam que estão a afirmar a um tempo que o progresso agrícola depende do aumento do capital variável (e consequente diminuição da composição orgânica do capital) e da diminuição do capital variável (e consequente aumento da composição orgânica do capital)...

Uma das bases fundamentais de todas as teorias e explicações recentes e antigas do atraso da agricultura por razões naturais é a velha "lei dos rendimentos decrescentes", segundo a qual as inversões de capital (constante ou variável) na exploração agrícola provocam, a partir de certo ponto, uma produção proporcionalmente cada vez menor. De há muito se procurou atribuir a esta "lei" uma "significação universal", um carácter imutável e eterno, contrapondo-se à "significação temporária", ao carácter transitório, do progresso agrícola, A realidade é, porém, a inversa: o progresso da agricultura é a lei geral, "os rendimentos decrescentes" uma paragem temporária. Afirmar o contrário, como o fez Bulgakov, seguidor de Bernstein(notou Lénine), "é o mesmo que dizer que a paragem dos comboios nas estações representa a lei universal do transporte a vapor, enquanto o movimento dos mesmos entre as estações é uma tendência temporária que paralisa a operação da lei universal da paragem". Mesmo quando a técnica permanece sem alteração, tal "lei" possui "uma aplicação muito relativa e condicional"; "quando a técnica progride, não se aplica em nenhum caso".(13)

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Nos nossos dias, servindo-se da validade "extremamente relativa" de tal "lei" numa agricultura de técnica atrasada, economistas e técnicos explicam aos capitalistas por que razão, comprando atabalhoadamente meios de produção e força de trabalho, deixam de ter o esperado lucro de tantos por cento. Assim, por exemplo, na grande empresa agrícola (dizem os técnicos), por acção desta "lei", "a partir de certo momento, a mão-de-obra exigida pela maior intensificação não é compensada pelo aumento do lucro da exploração"(14). Partindo desta "lei", ensina-se aos capitalistas como hão-de empregar o seu capital de forma a obterem maiores lucros. Isto, porém, num dado momento, não numa perspectiva histórica. A evolução geral do capitalismo na agricultura, com o aumento da produção e a diminuição do número de trabalhadores, acusa que a tendência "temporária" é a produtividade decrescente e a "universal" o progresso da técnica.

Porque esse recurso à velhíssima e já tão batida "lei dos rendimentos decrescentes", que já Marx reduzia às suas proporções? A razão é sempre a mesma: um esforço apologético visando mostrar que o atraso da agricultura não é resultante de condições económico-sociais. É esse na verdade o caracter essencial do esforço ideológico feito para provar a existência de razões naturais inelutáveis do atraso agrícola. Não se encontrando tais razões naturais, ter-se-ia de reconhecer a existência de causas sociais e pôr-se-ia, desse modo, em discussão o próprio capitalismo. Mas constituem as "causas naturais inelutáveis" uma trincheira ideológica ao abrigo da qual o capitalismo se possa colocar com segurança? Não, não constituem. Afirmando-se a existência de causas naturais inelutáveis do atraso agrícola, afirma-se a incapacidade do capitalismo para vencer esse atraso e erigem-se as suas dificuldades próprias em leis eternas. Confessando-se impotente para vencer as próprias dificuldades e contradições, o capitalismo, julgando ficar absolvido, lavra a sua própria condenação.

A determinação de um hipotético máximo teórico de produção por hectare e a "lei" dos rendimentos decrescentes são preceitos técnicos para a obtenção de maiores lucros e são dois dos pilares de todas as antigas e modernas "teorias" justificativas do atraso da agricultura por causas naturais inelutáveis. É preciso possuir a imaginação de António Sérgio

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para conseguir ver aí os melhores instrumentos da luta contra a "superstição do lucro" e para conseguir transformar esta ideologia da escassez em ideologia da abundância.

A "lei" dos rendimentos decrescentes e "o limite para o aumento da colheita de um dado agrotipo [...] por unidade de superfície"(15), são de facto dois dos "princípios fundamentais" da "agrobiología" de António Sérgio. Sobretudo a "lei" dos rendimentos decrescentes é elevada por Sérgio (que nisto vai mais longe que o citado e infeliz Bulgakov) à categoria de lei universal de validade eterna - tão universal e eterna como as leis da gravidade, os princípios da hidrostática e a fórmula do binómio de Newton(16). Reduzida a uma fórmula, torna-se a "equação geral da agrobiología" e "um verdadeiro instrumento de emancipação dos homens"(17).

Com a divulgação desta "agrobiología", António Sérgio, partindo da correcta ideia de que "em relação às necessidades produz-se muito menos do que se poderia e do que se deveria produzir"(18), julgava "revelar aos leitores as bases científicas de uma reforma possível nos nossos processos de cultivar a terra" e por esse meio "divulgar que existe a demonstração científica de ser coisa possível o alimentar o povo com muito mais fartura que actualmente, uma vez que aos requisitos técnicos se venham adicionar os sociais"(19) .  Como mais tarde precisou, visava, através da demonstração da "ideia da possibilidade técnica de abundância", mostrar que "só por motivos que não são técnicos - e sim sociais - é que a mesma abundância não se alcança e concluir, por aí, a necessidade urgente de uma remodelação social"(20).

Este objectivo era justo e de aplaudir. O grande mal dos artigos sobre a "agrobiologia" era conduzirem precisamente a um resultado contrário ao pretendido.

Em primeiro lugar: António Sérgio afirmava contra a experiência de século e meio de capitalismo com as suas crises cíclicas, que a abundância só se tornara tecnicamente possível muito recentemente, com novos processos de cultivo que teriam uns 15 anos(21) e muitos dos quais em fase experimental - a "moderníssima ciência da agrobiologia", que "verificamos ser entre nós inteiramente incógnita"(22). Isto insinuava que, sem esses "moderníssimos" e incógnitos processos científicos de cultivo, a abundância não seria

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possível. Daqui poder concluir o leitor que o capitalismo ficava definitivamente absolvido pela escassez até à descoberta da "agrobiologia" quinze anos atrás e que a abundância poderia ser alcançada no quadro do capitalismo pela adopção de tais moderníssimos processos de cultivo, ou seja: que a questão da abundância é questão a ser resolvida no plano técnico, e não no plano social.

Em segundo lugar: a "técnica" proposta e divulgada sacrifica o rendimento agrícola ao rendimento capitalista, e este é o seu real fim prático. Ela não demonstra a possibilidade técnica da abundância, mas, pelo contrário, introduzida no campo da teoria económica, induz a crer nas limitações invencíveis da produtividade do trabalho na agricultura e é uma base essencial das modernas correntes malthusianistas. Não provando tal "agrobiologia" a possibilidade técnica da abundância, é bem de ver que com ela não se poderia demonstrar a existência de razões "não técnicas" da escassez.

Em terceiro lugar: António Sérgio pretendia que a "agrobiologia", provando a possibilidade técnica da abundância, poria o problema das condições não técnicas - A. S. chama-lhes primeiro "condições humanas - psicológicas, políticas, sociais, educativas"(23); mas resume-as, mais tarde, com o termo "sociais"(24), que permitiriam aos povos porem por obra o processo técnico da abundância(25). Uma vez, no entanto, que tal "agrobiologia", ao contrário do pretendido, foi criada nas "condições humanas", incluindo as sociais do capitalismo, o leitor era levado à ideia de que, para "pôr por obra" a técnica de "abundância" de A. S., não era necessário criar "condições humanas" novas, não capitalistas. Bastava importar para Portugal essa moderníssima ciência entre nós inteiramente incógnita.

Em quarto lugar: António Sérgio pretendia que o objectivo do lucro, a "superstição (!?) do lucro", impede a realização da técnica "agrobiológica" e que, portanto, divulgar esta é afirmar a necessidade de pôr termo ao objectivo do lucro. A verdade é que tal "agrobiologia", ao contrário do pretendido, é uma técnica criada para obtenção de maiores lucros. Além disso, não é correcto dizer-se que o objectivo do lucro, em regime capitalista, impeça a criação e aplicação de uma técnica da abundância. Pelo contrário. O objectivo do lucro

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num regime de concorrência obrigou e obriga a constantes progressos técnicos e a eles se deve a criação de uma técnica da abundância. É certo que, como diz A. S., "a busca do lucro [...] contraria a produção abundante, como o provam as restrições e as destruições a que hoje se recorre em tão larga escala precisamente para manter o lucro"(26). Mas não impede, antes implica, a adopção de uma técnica da abundância. Este um dos aspectos essenciais do papel histórico progressivo do capitalismo, embora, também, um dos aspectos das suas contradições fundamentais, pois o capital provoca a um tempo a tendência para a expansão ilimitada da produção e o seu limite. Sendo assim, ao afirmar-se existir uma técnica nova, ainda não utilizada, capaz de assegurar a abundância, não se sugeria, ao leitor a quem A. S. se dirigia - o supersticioso, o venerador de Mamom(27) - a necessidade da abolição da "superstição do lucro", mas, pelo contrário, sugeria-se que a moderníssima e incógnita ciência carecia de entrar nos domínios práticos, pois aí a miragem do lucro lhe daria acolhimento. Ou seja: que a questão da abundância é questão a ser resolvida no plano técnico, e não no plano social.

Em quinto lugar: António Sérgio fala em "modificação do regime social"(28). Que "modificação" é essa que pretendia sugerir? Os artigos sobre a "agrobiologia" não davam resposta a esta questão, mas dá-a, com inexcedível clareza, outra obra do autor (29) . Essa modificação é o plano cooperativista "sem o poder político", "que torna desnecessário o poder"(30); um cooperativismo "objectivo para todos, um ideal para todos, que a todos se dirige(31); um cooperativismo que é, também, um cooperativismo meio pacato, calmo, inofensivo; um cooperativismo cuja maior utilidade é defender o regime de lucro e entravar qualquer real movimento para uma "modificação do regime social".

A "agrobiologia" de António Sérgio, nem era uma "técnica da abundância", nem sugeria qualquer abolição do lucro ou qualquer modificação do regime social. Era apenas, por um lado, uma interpretação fantasiada de uma moderna técnica criada, desenvolvida e aplicada com o fim de aumentar os lucros; arrumava-se, por outro lado, contra a vontade do autor entre as tentativas de ressurreição e superva-lorização da "lei dos rendimentos decrescentes", sempre utilizada como "prova" das limitações naturais inelutáveis do aumento da

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produção agrícola e base teórica essencial das doutrinas malthusianistas.

A População e as Subsistências

As ideias acerca das causas naturais impedindo o progresso da agricultura, ligadas a um tecnicismo de linguagem e a supostas comprovações experimentais, são, frequentemente, apresentadas como as mais remotas novidades. São, entretanto, ideias velhas e revelhas e a sua ressurreição por obra dos pregadores do atraso e miséria irremediáveis indica apenas a pobreza do seu arsenal ideológico.

Numa passagem, que se poderia tomar por escrita em nossos dias, Malthus - esse plagiador, como lhe chamava Marx(32), mas que tanta influência teve e tem - dizia: Num certo grau, ninguém pode duvidar da capacidade de desenvolvimento nas plantas e animais. Um nítido e decidido progresso já foi feito; e, apesar disso, penso que seria completamente absurdo dizer que este progresso não tem limites."(33) No que esta frase tem de verdade é um oco lugar-comum; no seu real significado não é verdadeira. É partindo, porém, deste lugar-comum (que alguns hoje enroupam em complicada técnica) que Malthus declara ao mundo que o aumento das subsistências não acompanha nem pode acompanhar o aumento da população, assim como a tartaruga não pode apanhar a lebre.

Não é, pois, de admirar que, no mundo de hoje, as ideias do carácter inelutável do atraso agrícola caminhem a par com a ideia malthusiana do excesso da população em relação às subsistências. Pelo seu carácter absolutório do capitalismo e pelo seu significado de declaração de luta impiedosa contra os trabalhadores, a teoria de Malthus, incluindo as suas progressões, foi desenterrada e reposta em circulação.

O que distingue verdadeiramente Malthus dos seus actuais seguidores é ter, ao contrário destes, tirado francamente da "lei" muitas das consequências teóricas e práticas fundamentais. Estas estão implícitas naquela, mas são as consequências e não a "lei" que têm real importância. E como a quase todos os actuais seguidores de Malthus falta a franqueza do seu mestre, é útil conhecer Malthus para

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saber o que pensam e calam os malthusianistas contemporâneos.

Partindo da sua "lei", afirmando que a população cresce segundo uma progressão geométrica, enquanto os meios de subsistência não podem aumentar mais depressa do que segundo uma progressão aritmética(34), Malthus concluiu ser "uma inevitável lei da natureza"(35) a eliminação da população "excedente". "A grande lei da necessidade - escreveu ele - impede que a população cresça em qualquer país para além do alimento que este pode produzir ou adquirir"(36). Quando a mesa está cheia (escreveu numa passagem da 2.a edição cortada nas edições posteriores), quem vem a mais não tem lugar vago, a natureza ordena-lhe que se vá e executa rapidamente as próprias ordens. A miséria, a fome, o trabalho excessivo, a mortalidade infantil, as habitações insalubres, as pestes, as guerras - tais os meios de que a natureza se serve para "corrigir" a desproporção. São males irremediáveis, eternos e necessários. Mais ainda: "Parecem ser instrumentos utilizados pela Divindade"(37), para advertir o homem dos resultados da procriação excessiva e exortá-lo à restrição. Os grandes males sociais sobem assim pela mão de Malthus à categoria de agentes naturais e de exortações divinas a que nos "devemos submeter". Remover esses males é, nas palavras de Malthus, "uma tarefa absolutamente sem esperança"(38). Mas não só ficam assim absolvidos o capitalismo e a burguesia. A "lei" da população dá base bastante para lançar as responsabilidades para cima dos trabalhadores. Se os trabalhadores vivem na miséria e se sujeitam a esses meios correctivos da natureza e da divindade, é porque não se abstêm de procriar. A grande culpa dos males que sofrem reside, pois, neles próprios(39).

Não se podia ter imaginado um leito mais macio (Engels chamava-lhe um "colchão de penas") para repousarem as almas intranquilas. Malthusnão se limita, porém, a fornecer um tal colchão de penas. A sua "lei" da população fornece, também, base ideológica para uma verdadeira declaração de guerra contra as classes trabalhadoras.

À face da "lei" da população, todas as medidas tendentes a melhorar a sorte dos trabalhadores, animando ao casamento e à procriação, contrariam as leis naturais e os

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avisos da providência e, por isso, devem ser combatidas. Segundo Malthus, "se cada homem tivesse assegurada a manutenção confortável de uma família, quase todos os homens teriam uma; e se a geração nascente fosse libertada do medo da pobreza, a população cresceria com desusada rapidez"(40). Para evitá-lo, Malthus combateu abertamente o auxílio aos desempregados e aos pobres que, "embora podendo ter aliviado um pouco a intensidade do infortúnio individual, espalhou o mal sobre uma superfície mais vasta"(41), combateu os aumentos de salários, pois "quando os salários não mantêm uma família é um sinal incontestável de que o seu rei e o seu país não necessitam de mais súbditos, ou pelo menos de que não podem sustentá--los"(42); combateu a redução dos preços com fundamento de que, se os preços descessem, também os salários desceriam(43); combateu quaisquer reclamações dos trabalhadores, negando-lhes, à face das "leis naturais", o direito de reclamar(44); combateu a assistência pública e a caridade privada, porque "a pobreza e a miséria têm sempre aumentado em proporção com a quantidade de caridade indiscriminada"(45); combateu o auxílio às famílias numerosas(46); e até em relação às crianças miseráveis ou abandonadas, defendeu que "os filhos devem sofrer os erros dos pais"(47), que "não se pode exigir da sociedade" que se coloque no lugar destes, que o "recém-nascido é de pouco valor para a sociedade e outros ocuparão o seu lugar"(48) e, em consequência, lançou a sentença aos filhos dos pobres: "they must starve"(49) - que morram de fome!

Como se vê, toda a doutrina de Malthus é um plano de ofensiva violenta e desapiedada, não apenas no domínio da especulação teórica, mas também visando à aplicação no terreno da prática.

Como notou Marx, "era muito mais cómodo e muito mais conforme com os interesses das classes dominantes, que Malthus bajula como bom padre que é, explicar a "superpopulação" pelas leis eternas da natureza, do que explicá-las pelas leis históricas da produção capitalista"(50). As teorias que se opõem à realidade, a própria realidade as desmente. A história desmente de facto rotundamente a "lei" da população. As famosas progressões revelaram-se puro ilusionismo. O desenvolvimento técnico obrigou as subsistências a aumentar num ritmo superior ao da

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população. Na sua fase progressiva, o capitalismo deu enorme impulso às forças produtivas. Ao mesmo tempo, a acumulação do capital, com o uso da maquinaria em grande escala e a exploração acrescida dos trabalhadores, determinou a superpopulação relativa, que se revelou, não como excedendo as subsistências, mas como excedendo as necessidades do capital. Contra todas as previsões de Malthus, o volume da superpopulação relativa é tanto maior quanto maiores são o progresso técnico, a acumulação e o ritmo do aumento da composição orgânica do capital. "Os novos capitais formados no transcurso da acumulação chamam a si um número cada vez menor de operários em proporção à sua grandeza. Por outro lado, os antigos capitais, periodicamente reproduzidos com a composição renovada, vão repelindo um número cada vez maior de operários a que dantes davam trabalho."(51)

Na agricultura, ainda este fenómeno se apresenta com mais evidência: aí os progressos da produção são acompanhados por uma forma latente de superpopulação relativa.

Mas, além das sociedades socialistas, onde não vigoram as leis do capitalismo, dentro do próprio capitalismo, o grande e definitivo desmentido à "lei" de Malthus foi dado pelas crises de superprodução. Surgindo periodicamente, através de século e meio, elas tornaram indiscutível que, no sistema capitalista, a miséria não é tanto produto da escassez, como da fartura. Quando nas crises, pela redução forçada das forças produtivas, pela destruição em massa de meios de subsistência, a apropriação procura domar a rebelião da produção social e restabelecer o equilíbrio, afirma-se, implicitamente, que o homem está apto a produzir o bastante para uma vida farta e confortável e que só essa apropriação o impede. Condenando milhões de seres ao desemprego e à fome ao mesmo tempo que destroem meios de subsistência, as crises (como sublinhava Engels no Anti-Dühring) põem a claro que esses seres não sofrem o desemprego e a fome por terem produzido de menos (conforme pretendia Malthus), mas por terem produzido de mais.

A "lei" de Malthus aparece assim completamente vazia de qualquer valor teórico, e reduzida ao que nela é a real substância: o "colchão de penas" e a "declaração de guerra".

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É sintomático que esta "teoria" da inevitabilidade da escassez e da impossibilidade do aumento da produção de alimentos num ritmo acompanhando o do aumento da população, tenha nascido em fins do século XVIII na Inglaterra, o país que então estava em plena revolução industrial, que era o primeiro país industrial do mundo e onde, então, era mais elevada a produtividade do trabalho.

O grande progresso das forças produtivas fora acompanhado pela expropriação dos pequenos produtores e pela criação de um numeroso proletariado vivendo em condições piores do que nunca. Foi missão do malthusianismo dar à burguesia uma justificação e uma defesa dessa piora trágica da situação dos trabalhadores.

E é igualmente sintomático que a nova voga da "lei" de Malthus se dê hoje a partir do país capitalista industrial e agricolamente mais evoluído; um país onde a produção das subsistências tem aumentado de forma visível mais rapidamente que a população; um país onde a produção industrial em 1943 tinha mais do que duplicado em relação a 1937(52), e onde a produção agrícola em 1944 e nos anos seguintes foi 36% superior à média de 1935-1939(53) e onde a população, de 1937 para 1943, aumentou menos de 6%(54); um país onde o grande problema económico não é a carência de produtos alimentares, mas a existência de gigantescos "excedentes".

É de facto nos EUA que sopra a nova onda de ideologia e linguagem malthusianista. Não se trata de especulações de teóricos isolados da vida prática, mas de opiniões de técnicos responsáveis da administração e, mais especialmente, de organismos de cooperação internacional. O Sr. Vogt, por exemplo, chefe de um serviço de cooperação pan-americana, considera um erro da medicina moderna "julgar que tem o dever de manter na vida o maior número de pessoas possível", vê na redução da mortalidade uma causa das dificuldades de muitos países, apresenta o espectro do aumento da população e defende com mais ou menos clareza como meios de evitar o "desastre", as fomes, as pestes e - claro está - as guerras(55). Dentro da mesma orientação, os documentos de carácter económico aparecem crivados de conceitos malthusianos, de comparações pessimistas entre a população e as subsistências, utilizando-se as estatísticas

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modernas tal como Malthus utilizou através de centenas de páginas as rudimentares estatísticas da sua época.

E se falta a muitos dos malthusianistas actuais a franqueza de palavras do seu pai ideológico, não lhes falta a franqueza nos actos. Diz-se que a "lei" é particularmente evidente nos países atrasados, mas aí os capitais investidos obrigam à substituição da cultura de produtos alimentares pela de matérias-primas e à exportação do que se necessita, de maneira que a carência alimentar dos povos coloniais é o reverso da medalha de superlucros nas grandes potências. Grita-se que faltam as subsistências, mas organiza-se a concorrência nos mercados mundiais, batem-se com produtos agrícolas os países importadores no seu próprio mercado interno, e a cinco anos do fim da guerra não se hesita em recomegar destruições de produtos alimentícios. Em Novembro de 1950, por exemplo, anuncia-se que o Departamento da Agricultura dos EUA mandou destruir mais de 720.000 toneladas de batata (pouco menos que toda a produção portuguesa em 1949) com o único fim de manter os preços(56). Ao mesmo tempo que se impede o aumento da produção e se destroem géneros, arvora-se a escassez em lei eterna (tal como o fez Malthus) e defende-se, explícita ou implicitamente, a necessidade de reduzir a população. Os meios "correctivos" de Malthus voltam a estar na ordem do dia.

Não é difícil explicar esta nova voga de malthusianismo a partir dos países economicamente mais poderosos. Por um lado, agravam-se as contradições dentro deles próprios, sem que a grandeza da produção evite o desemprego e as dificuldades de vida. Por outro lado, tais países assentam em grande parte a sua "prosperidade" na dominação dos povos coloniais, no atraso desses povos, no seu baixíssimo nível de vida. Finalmente, para prosseguir o seu desenvolvimento económico, tais países necessitam de lançar-se em empresas para a conquista de novos mercados e fontes de matérias-primas. A ideologia malthusiana casa-se, pois, às maravilhas com as condições da vida económica dos países imperialistas. Ela justifica tanto as dificuldades domésticas como os horrores da situação dos povos coloniais e os empreendimentos militares.

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Também entre nós a "lei" de Malthus entra em moda. Há já quem afirme que "a população portuguesa aumenta de facto em progressão geométrica" e descubra mesmo a razão respectiva(57). Há quem fale em "superabundância de capital humano", em "supersaturação" populacional(58).Há quem, referindo-se a um universal "princípio de escassez", exija a fixação de um "nível de vida mínimo", sem se lembrar de exigir a fixação de um nível de vida máximo(59), a fim de não se dilapidarem os recursos proclamados escassos. Há quem, citando "o perturbante problema que está gerando o crescimento constante de pessoas numa terra cada vez mais erodida", fale nos "traços cada vez mais nítidos" do "espectro de Malthus"(60). Sorri-se, por um lado, à ideia do aumento de um milhão de portugueses cada década; chora-se, por outro lado, a natureza pedregosa e árida do solo nacional.

Do simples facto de ter Portugal um hectare de superfície por habitante, conclui-se que "este sombrio panorama agro-social, correspondendo a uma proporção de menos de um hectare de terra agricultável, mas pobre, por indivíduo, bem pode explicar o motivo por que muitos continuam a clamar [...]"(61) Insiste-se na "gravidade da situação económica que em todo o mundo se observa com o crescente aumento da população e a diminuição dos recursos alimentares"(62). Até pessoas com pretensões a esclarecidas bebem e dão a beber o narcótico malthusiano, tal como certos editores portugueses, apresentando (como "ferramenta de trabalho" destinada aos leitores que "como cidadãos pretendem dominar e auxiliar a resolver os problemas da colectividade em que vivem e da época em que vivem") um "Curso de Economia Política", onde, entre outras muitas enormidades, é proclamado: "Não se poderá afirmar que, na época actual, o problema da população se apresente em termos totalmente diferentes dos que formulou Malthus."(63) E há, também, quem entre mais afoitamente pela matéria, afirmando que "nem as guerras, as fomes e as epidemias alcançam, apesar da grandeza apocalíptica que frequentemente assumem, reduzir, no conjunto, o acréscimo demográfico que se verifica no globo e que se traduz, no ponto de vista económico e alimentar, num aumento incessante do número de bocas a prover o sustento, sem paralelismo na intensificação da produção"(64). É todo um amplo reviver das ideias de Malthus, ou expressas com clareza ou timidamente insinuadas, postas nos seus termos clássicos ou implícito em formas de

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exposição, em considerações demográficas e agronómicas, em justificações da miséria, da emigração, do atraso geral.

Existem de facto países onde a produção tem diminuído relativamente à população, e mesmo alguns onde há uma diminuição absoluta. Em Espanha, posterior a 1939, "enquanto a população continuou crescendo firmemente à razão de 1% ao ano, a produção agrícola total caiu 20% e a produção de cereais cerca de 30%"(65). Segundo técnicos espanhóis, a produção agrícola teria baixado ainda mais acentuadamente, não indo, em 1948, além de 63,7% da de 1929(66). Em Portugal, se em muitos casos a produção agrícola tem aumentado, a sua capitação, em especial nos cereais, tem diminuído, conforme já mostrámos. Ao contrário, porém, dos novos arautos do malthusianismo que erguem a incapacidade e as contradições do capitalismo à categoria de factos inelutáveis, negamo-nos a aceitar que a diminuição das capitações da produção sejam consequência de leis da natureza que, no caso de Espanha, estariam (para assombro dos teorizadores) a vigorar numa parte em sentido inverso ao anunciado. Ao contrário dos defensores das razões biológicas, naturais e técnicas do atraso da agricultura, nós acreditamos nas possibilidades do seu rápido e substancial progresso. Ao contrário daqueles que, seguindo Malthus, vêem como solução única a diminuição da população, por meios preventivos, ou pelos meios "correctivos", ao contrário dos que, como o Sr. Vogt, condenam a melhoria de vida dos trabalhadores porque reduz a mortalidade, nós defendemos que o caminho que se abre perante a humanidade não é o trágico aniquilamento de vidas com pretexto de as reduzir ao nível das subsistências, mas o desenvolvimento das forças produtivas materiais a cujo progresso apenas as relações de produção capitalistas se opõem.

Malthus dizia que as subsistências (a tartaruga) não podem apanhar a população (a lebre), se esta não descansa. Os teorizadores de hoje continuam a afirmar ser a agricultura uma tartaruga imodificável. Nós acreditamos que não só em parte do mundo (como já sucede), mas em todo ele a tartaruga pode apanhar e virá um dia a apanhar a lebre, sem que esta seja forçada a retardar a marcha pelos meios "correctivos" do padreMalthus.

O Poder do Homem

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Foi em grande parte por se ter inspirado em Malthus que Darwin não pôde compreender o problema humano. É certo que as ideias da concorrência e da luta aplicadas à natureza viva facilitaram a descoberta da selecção natural e do processo fundamental da evolução das espécies. Mas, embora Darwin, contra o que pretendem alguns dos seus detractores, considerasse a "luta pela vida" não apenas a luta de um indivíduo com indivíduos da mesma espécie, mas também e, fundamentalmente, "com indivíduos de espécies diferentes ou com condições físicas de vida" (67),embora considerasse justamente em muitos casos a "concorrência" dentro de uma espécie não como uma guerra, mas como a simples "sobrevivência do mais apto", ou seja, a sobrevivência do mais capaz de resistir ao meio e à luta que lhe movem as outras espécies, ele não pôde sonhar a existência da ajuda mútua entre indivíduos da mesma espécie.

Darwin viveu numa sociedade onde predominava a concorrência e a luta sem tréguas entre classes sociais. Dada a acção da base material das sociedades sobre as respectivas ideologias, compreende-se que, pela sua mão, a "lei" de Malthus, reflectindo essa concorrência e essa luta, tenha estendido a sua aplicação à natureza viva e que a organização social da Inglaterra do século XIX, com as suas ideologias e sentimentos dominantes, se apresente ingenuamente atribuída a animais e plantas. Foi preciso que homens se educassem numa sociedade sem classes para tornar possível a descoberta da ajuda mútua entre os indivíduos de uma mesma espécie, ponto concordante do mundo biológico com essa nova sociedade. E, se algum espanto ou reparo há a fazer, acerca desta descoberta, não é que ela se tenha feito sem factos bastantes em que se apoiar, mas que tenha tardado tanto a fazer-se quando agora se vê que os factos há muito a justificam. Se mesmo no domínio da biologia, a influência malthusiana limitou e prejudicou o seu trabalho, o grande erro de Darwin foi reintroduzir os princípios malthusianos no estudo das sociedades humanas, fortalecidos agora por uma pretensa comprovação na natureza e aparecendo assim como leis, universais e inelutáveis cientificamente aferidas. A concorrência, a luta de classes, o esmagamento violento de algumas camadas da população (fenómenos temporários correspondendo a uma fase do

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desenvolvimento da sociedade) seriam leis válidas e eternas para todas as espécies, incluindo a humana.

Darwin, a quem se deve a descoberta e provas definitivas da transformação das espécies e da origem animal do homem, não pôde compreender a evolução e transformação das sociedades humanas, das ideologias e dos sentimentos, e do próprio homem depois que emergiu da animalidade. Não pôde compreender que as sociedades, evoluindo por acção do homem, transformam o próprio homem que as faz evoluir.

Com frequência, Darwin insistiu em que "as espécies evoluem em passos muito pequenos"(68), em que a evolução é "um processo extremamente lento"(69), em que a "selecção natural não pode produzir grandes ou repentinas modificações"(70). Não pôde assim compreender como as transformações quantitativas se convertem em qualitativas, e a consequente importância dos saltos bruscos, tanto na evolução no mundo biológico como na evolução das sociedades humanas.

Darwin definiu a selecção natural como a "preservação de diferenças e variações individuais favoráveis e a destruição das que são nocivas"(71),de onde resulta que "todos os dotes corporais e mentais tenderão a progredir para a perfeição"(72). Não pôde, assim, compreender como os progressos em um sentido são retrocessos em outros sentidos e como nas sociedades humanas a selecção, muitas vezes, determina a preservação dos piores e menos aptos.

Darwin defendeu que "as faculdades mentais do homem e dos animais inferiores não diferem em qualidade, embora difiram imensamente em grau"(73), viu nos animais inferiores sensibilidade, ideias, conceitos estéticos e morais semelhantes aos do homem e tomou geralmente como padrão de beleza, de moralidade e até de civismo (padrão para a humanidade e as outras espécies animais) o seu próprio padrão de beleza, moralidade e civismo(74). Não pôde assim compreender que as ideologias são especificamente humanas e determinadas por uma base social material, que numa mesma sociedade não há ideologia uniforme e geral, mas conceitos e sentimentos divergentes, e que a evolução da vida material dos homens determina a evolução da sua vida mental.

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Considerando o homem sob o ponto de vista puramente animal, Darwin atribuiu a causas biológicas o atraso de povos de algumas raças, aproximou-os constantemente (tanto nos seus caracteres físicos como intelectuais) dos animais inferiores e foi ao ponto de considerar alguns macacos moralmente superiores aos "selvagens"...(75) Não compreendeu, assim, a existência de razões sociais determinando o atraso desses povos nem as possibilidades actuais de superar esse atraso.

Darwin fez aceitar pela ciência a origem do homem. A sua contribuição foi, a este respeito, decisiva. Mas foi incapaz de vislumbrar que, a partir de certo momento da sua evolução, os caracteres do homem se diferenciaram qualitativamente dos das outras espécies.

A partir do momento em que o homem fabricou instrumentos de trabalho, a sua evolução passou a reger-se por leis diversas das que regem a evolução das outras espécies. O homem deixou de ser apenas uma espécie animal, adaptando-se ao meio e a novas circunstâncias por acção incontrolável da selecção natural. Na sua evolução, o homem não se limita a adaptar-se ao meio; ele adapta o meio a si próprio. "[...] o homem -escreve Marx- age em face da matéria natural como uma força natural. [...] age sobre a natureza exterior, modifica-a e modifica ao mesmo tempo a sua própria natureza."(76) Modificando o meio com um propósito consciente, o homem, na sua luta com a natureza, não se limita a combater e eliminar outras espécies. O homem povoa o mundo com espécies por ele próprio escolhidas e ajuda e orienta a sua selecção. A "luta pela existência" do homem não toma assim apenas o carácter da destruidora e implacável "luta pela vida" de Darwin e Malthus; ela toma, também, o carácter de uma luta construtiva e criadora.

Darwin, que partia da selecção pela domesticação para a selecção natural, que conhecia (como ninguém) as transformações pela selecção, que em alguns casos verificou terem sobrevivido espécies graças apenas à acção do homem, sem a qual soçobrariam na natureza, não soube aí descobrir a afirmação das características específicas da espécie humana. E, embora acreditando no poder seleccionador e transformador do homem sobre outras

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espécies, apenas considerava a capacidade humana "pelo grande efeito produzido pela acumulação de uma mesma direcção, durante gerações sucessivas, de diferenças absolutamente inapreciáveis para olhos inexperientes"(77). Esta ideia foi ultrapassada pela história. O campo da intervenção modificadora do homem na evolução das espécies animais e vegetais alarga-se dia a dia. Quando nos lembramos de que o visconde de Coruche, justificando o atraso da agricultura, julgou ter encontrado argumento irrespondível e definitivo ao referir que "não é possível produzir hoje cereais, linho, lã, uvas, batatas ou laranjas em menos tempo do que em outras eras"(78), não podemos deixar de sorrir, porque a vida deu já um desmentido literal à fraca ironia do visconde.

O poder do homem permite-lhe construir o seu próprio futuro. Não há qualquer lei natural, quaisquer razões biológicas ou técnicas que limitem o ritmo da produção das subsistências. Esse ritmo depende apenas da acção do homem. De há muito o homem dispõe de meios técnicos capazes de inverter as progressões nos dois termos da "lei" de Malthus.

Com métodos rudimentares, apenas à custa de trabalho e da sua imaginação criadora, pôde o povo português transformar, em vastas regiões, a fisionomia agrícola de Portugal. Nas encostas nuas do Douro ergueu essa monumental escadaria onde hoje se exibem os vinhedos que dão do melhor vinho do inundo. Nas íngremes vertentes e nos vales apertados do Minho, de Trás-os-Montes, da Beira, da Estremadura, foi também dispondo e segurando em socalcos terra trazida à força de braços e foi buscar às entranhas da terra água para fazer verdejar jardins. Desde o canteiro minúsculo ao retalho rendoso, solo fértil surgiu onde ontem existiam apenas penedias. Terras minhotas, naturalmente pobres, tornaram-se terras ricas pela rega e estrumagens. Nas areias safaras da Gafanha ou da Póvoa ou nas dunas das Caldas, com adubações intensas de caranguejo, de sargaços, de moliço, nasceram belas hortas. Nas serras mais pedregosas - na Estrela, na de Aire, em tantas outras - das fendas da pedra brotaram olivais ou, nos ásperos declives, manchas lavradas. Nas charnecas alentejanas e na borda do Tejo, os seareiros romperam os matagais e obrigaram a terra a dar pão. Nos "foros" de Almeirim, Mugem, Salvaterra,

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culturas viçosas surgiram como oásis em campos de areia. Na generalidade dos casos, todo esse esforço gigantesco, realizado com a miragem de uma vida desafogada, revelou-se uma ilusão para os seus autores. Uns semearam, outros colheram. Mas esse esforço evidencia o poder do homem, evidencia como o homem pode impor e impõe à natureza uma direcção, como pode arrancar e arranca da terra as subsistências que ela por si só recusa, como pode modificar e modifica a terra, as espécies vivas, a paisagem. E se isto pôde fazer o nosso povo à força de braço e de imaginação, mas apegado a recursos velhos de séculos, o que não poderá ele fazer ganhando para o seu serviço a ciência e a técnica modernas?

Quando nos dizem e repetem ser Portugal país pobre, de solo fraco, de terreno acidentado e pedregoso, de clima irregular, e quando assim pretendem amarrar o povo português a um irremediável destino de miséria - nós respondemos que não só o nosso país tem raras e favoráveis aptidões agrícolas, como pode o nosso povo transformá-lo num verdadeiro jardim da Europa à beira-mar, que só o é no entender dos poetas.

Centenas de milhares de hectares no Alentejo, nos incultos e nas terras áridas sem fim podem encher-se de campos vicejantes com águas levadas das bacias do Tejo e do Guadiana ou arrancadas aos lençóis subterrâneos. Os rios podem ser dominados e disciplinados, dando rega e energia, em vez de enxurradas e cheias devastadoras, alternando com secas. Grandes manchas de floresta podem levantar--se em montes descarnados, em areias nuas, em terrenos pantanosos, também junto às linhas de água, dando novos meios de vida, formando cortinas de protecção contra os ventos prejudiciais e contra as areias e torrentes, aumentando a capacidade de absorção de humidade pelos solos, diminuindo o escoamento e a evaporação, facilitando a condensação do vapor de água da atmosfera, defendendo o solo da erosão, dando até melhor ar para o homem respirar e paisagem mais bela para alegria dos olhos.

A oliveira e a nogueira, os freixos e ulmos, o eucalipto e a acácia tornarão ricas e acolhedoras zonas hoje desérticas. A arborização de cumes rochosos de onde as torrentes trazem marés de areia salvará magníficos terrenos de aluvião da

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ameaça agora iminente da ruína e da esterilidade. A regulamentação do regime das águas abundantes das Beiras oferecerá prados onde se multiplicará o gado. A defesa das cheias, o enxugo, a drenagem, darão produtividade insuspeitada aos aluviões do Mondego e dos seus afluentes, às margens do Lis, às baixas dos afluentes do Tejo, particularmente do Sorraia, assim como aos "focos miasmáticos e palustres" do sul do Tejo. Os ricos fundos dos pauis e brejos numerosos podem ser roubados às águas estagnadas. Pela defesa das marés, o dessalgamento, a drenagem e a irrigação podem tornar-se fertilíssimos os aluviões marítimos e fluviais do Algarve e os vastos sapais do Ribatejo, ilhotas e esteiros no delta do Vouga e podem ser libertados da esterilidade.

Podem fabricar-se solos ricos das terras pobres. Podem escolher-se, seleccionar-se e criar-se os tipos de plantas mais apropriados ao meio português, ou, mais exactamente, aos diversos meios portugueses. Podem obter-se plantas mais rendosas e também animais mais rendosos: podem apressar-se os prazos de maturação das plantas e de desenvolvimento dos animais. Uma planificação da agricultura permitirá um melhor aproveitamento do solo nacional. Com as máquinas e a técnica ao seu serviço, o trabalho será menos penoso e renderá incomparavelmente mais.

Haverá mais fartura nos lares e sairá do que se produz para a compra do que se necessita.

Temos no nosso próprio país todo um novo país a conquistar, um país mais fértil e até mais belo. Temos todas as condições naturais para uma vida desafogada para todos os portugueses. Que se chame a isto um sonho: são legítimos os sonhos de quem dá a vida para realizá-los. Mas não, não é apenas um sonho. Acrescentando-se à simples consideração dos factos nacionais, o triunfo do socialismo em grande parte do mundo dá a certeza de que tal sonho será realizado.

Se já no século XIX alguém pôde dizer ter o homem modificado de tal forma a natureza que "os efeitos da sua actividade não podem desaparecer senão com a morte geral do planeta"(79), seguindo o mesmo pensamento os mitchurianos, seguros do carácter material da vida, puderam demonstrar no século XX ser possível "obrigar cada variedade de animais ou vegetais a desenvolver-se e a modificar--se

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mais rapidamente e no sentido favorável ao homem". Sendo o homem guiado pela máxima de que não podemos esperar as dádivas da natureza, antes é necessário arrancar-lhas, não é possível prever quaisquer limites a essa criadora intervenção humana.

Não há qualquer lei natural, quaisquer razões biológicas ou técnicas, qualquer fraqueza de espécie humana, que forcem a agricultura ao atraso. Apenas factores sociais a isso a obrigam.

A Propriedade Privada da Terra

Se se importam artigos que a agricultura portuguesa produz e concorrem desastrosamente com os de produção nacional; se não se colocam nos mercados internacionais os produtos agrícolas que o mercado interno não pode absorver; se se elevam os preços dos adubos químicos restringindo-se ou impossibilitando-se o seu uso pelos pequenos agricultores; se se obriga ao transporte de adubos por via férrea criando dificuldades ao seu consumo; se, taxando-se preços não compensadores para a pequena produção, forçando-se a uma distribuição centralizada, obrigando-se à venda ao desbarato e à perda de colheitas por falta de mercados, se provoca a restrição das culturas; se, por uma política fiscal regressiva, se sufoca o pequeno agricultor com impostos, levando-o a cortar despesas essenciais ao amanho das terras - é evidente que a acção quotidiana do governo tem efeitos directos e imediatos no nível da produção e da produtividade, nas dificuldades e no atraso da agricultura.

Entretanto, o atraso geral da agricultura, a lentidão do seu desenvolvimento, em relação à indústria, resulta, fundamentalmente, da propriedade privada do solo e da exploração dos camponeses, e tais causas não se podem remover dentro do capitalismo.

Originando a renda absoluta, impedindo, por isso, que mais-valia criada na agricultura participe na formação da quota média de lucro, provocando a elevação dos preços das matérias-primas necessárias à indústria e dos meios de subsistência - a propriedade privada da terra retarda a acumulação do capital. Obrigando a gastos de capital na compra da terra, desanimando os arrendatários a inverterem capitais na exploração - retarda o progresso agrícola. A

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propriedade privada da terra é, assim, um entrave ao desenvolvimento das forças produtivas levado a cabo pelo próprio capitalismo.

Podem ver-se com um pouco mais de atenção alguns aspectos desta questão primordial.

Primeiro aspecto: o obstáculo ao desenvolvimento económico geral pela criação da renda absoluta.

O lucro não é senão uma forma da mais-valia e a quota do lucro a relação entre a mais-valia social e o capital social. Uma vez que, dadas as diferenças de produtividade do trabalho, o valor é tanto menor quanto mais elevada for a composição orgânica do capital "se em todos os ramos da produção as mercadorias fossem vendidas pelo seu valor, a quota de lucro seria desigual nos diversos ramos". Os capitalistas teriam quotas de lucros tanto mais elevadas quanto mais baixa fosse a composição orgânica do capital (e mais alta a taxa de mais-valia). Isto não acontece porque, por efeito das transacções de capital e da concorrência, as mercadorias são vendidas nuns casos acima e noutros abaixo do valor, ou seja, são vendidas a preços que correspondem aos preços de produção (despesas de produção mais lucro médio). Desta forma, embora o preço social das mercadorias seja igual ao seu valor social e embora o lucro social seja igual à mais-valia social, existe em cada caso um desnivelamento entre o preço e o valor e entre o lucro e a mais-valia. Forma-se uma quota média de lucro, comum aos sectores onde é elevada e àqueles onde é baixa a composição orgânica do capital.

Sendo o preço social das mercadorias igual ao seu valor social, ao venderem os produtos acima do valor, obtendo assim um lucro superior à mais-valia criada nos seus sectores, os capitalistas dos sectores onde é mais elevada a composição orgânica do capital partilham do valor criado não nos seus sectores, mas nos sectores onde a composição orgânica do capital é mais baixa. Isto significa que as indústrias menos evoluídas como que pagam uma "taxa invisível" às mais evoluídas. Esta "taxa invisível" é um factor da acumulação do capital e do desenvolvimento geral do capitalismo. (No capitalismo monopolista, sérias alterações são introduzidas neste processo, sem entretanto o desmentirem.)

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Como a agricultura é um dos ramos da produção onde a composição orgânica do capital é mais baixa, a mais-valia nela criada devia também ser partilhada pelos capitalistas dos ramos onde a composição orgânica do capital é mais elevada. Se isso sucedesse, a agricultura, pagando a sua "taxa invisível" à indústria, faria elevar a relação entre a mais-valia social e o capital social, isto é, faria elevar a quota média do lucro. Ora, tal não sucede de facto. Na agricultura, dada a baixa composição orgânica do capital (e a elevada taxa de mais-valia), há um excedente da mais-valia nela criada sobre o lucro médio, mas tal excedente não passa para os outros ramos da produção. A propriedade privada da terra, impondo um preço de monopólio (Marx), impede o "nivelamento dos lucros" e mantém no sector agrícola a mais-valia nele criada. O excedente sobre o lucro médio é retido peio proprietário da terra (seja ou não lavrador) sob a forma de renda.

A propriedade privada da terra concebe desta forma a renda absoluta, impede que a mais-valia criada na agricultura participe na formação da quota média de lucro social, faz da agricultura um compartimento vedado da economia nacional e deixa a determinação da quota média de lucro apenas à indústria, onde a composição orgânica do capital é mais elevada (e cada vez mais elevada) e onde, por isso, a quota de lucro tende a ser mais baixa (e cada vez mais baixa). A propriedade privada do solo entrava assim o aumento da quota de lucro e dificulta a acumulação do capital e o desenvolvimento geral do capitalismo.

Segundo aspecto: obstáculo ao desenvolvimento da própria agricultura pela renda diferencial. A renda absoluta é, como se acaba de ver, um excedente do preço de produção, ou seja, um excedente do lucro médio. Há, porém, outro excedente do lucro médio provocado pela diferença da produtividade do trabalho derivada da diferença da fertilidade das terras. A sua causa não é especificamente a propriedade privada da terra, mas coexiste com ela e só com ela pode desaparecer.

O valor dos produtos agrícolas, tal como o de quaisquer outros produtos, é o tempo de trabalho necessário para a sua produção. Os capitalistas não estão, porém, dispostos a investir os seus capitais em empreendimentos que não lhes assegurem o lucro médio. Dada a desigualdade da fertilidade

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das terras, as terras menos férteis cultivadas são aquelas onde o valor dos produtos é igual ao preço de produção, ou seja, aquelas em que os capitalistas, vendendo os produtos aos preços gerais do mercado, obtêm a quota média de lucro. Se o valor fosse inferior ao preço de produção, tais terras seriam abandonadas; se fosse superior, entrariam em cultura terras ainda menos férteis. Além disso, a oferta e a procura determinam variações na correspondência entre o preço e o valor, e consequente entrada em cultura ou abandono de terras agrícolas. (Também provocadas pelas alterações na quota média de lucros.) Tais desvios tendem, porém, a compensar-se num ponto de equilíbrio: serem os terrenos menos férteis cultivados aqueles onde o valor dos produtos agrícolas (o tempo necessário para a sua produção) iguala o preço de produção. Isto tem sido esquecido por alguns vulgarizadores de Marx, conduzidos por tal esquecimento a negar a aplicação da lei do valor na agricultura.

De outra forma pode exprimir-se a mesma realidade e essa forma permite compreender a renda diferencial. Se só entram em cultura os terrenos que asseguram o lucro médio, isto é o mesmo que dizer que o preço social dos produtos agrícolas é determinado pela produtividade do terreno de mais escassa fertilidade. Nos terrenos mais férteis, o preço individual de produção é inferior ao preço de produção nos terrenos menos férteis. Ao venderem-se os produtos das terras mais férteis, apura-se um excedente sobre o preço individual de produção. Esse excedente, essa diferença entre o preço individual e o preço social da produção, é a renda diferencial, recebida igualmente pelo proprietário da terra.

As tabelas 9 e 10 ilustram o que afirmamos.

Querendo determinar as diferenças de produtividade resultantes apenas da diferença da fertilidade dos terrenos, temos de admitir que, em terrenos de igual dimensão, a um igual número de horas de trabalho, correspondem produções diferentes. Na hipótese da tabela 9: 180 horas de trabalho estão contidas nos 200 kg produzidos no terreno A; nos 300 kg produzidos no terreno B e nos 400 kg produzidos no terreno C. O valor é determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessário, isto é, 0,6 (540 : 900).

TABELA 9Valor dos produtos agrícolas

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Terrenos

Horas de trabalho

Produção

(kg.)

Horas por Kg.

Valor da Colheita

A 180 200 0,9 120

B 180 300 0,6 180

C 180 400 0,45 240

  540 900 0,6 540

A tabela 10 - ilustração clássica do processo - mostra como o preço social dos produtos agrícolas é determinado pela produtividade no terreno de mais escassa fertilidade. O preço individual de produção no pior terreno é que determina o preço social (como se vê pelo confronto das duas tabelas, esse preço individual é igual ao valor - trabalho socialmente necessário). Para os terrenos B e C o excedente do preço individual é a renda diferencial. Pode fazer-se uma objecção: se o preço social da produção é determinado pela produtividade do trabalho no pior terreno, neste o preço social é igual ao preço individual e, portanto, não existe aí esse excedente, isto é, a renda diferencial. Como sucede então que também pelos piores terrenos se cobre renda? Como pode o rendeiro pagar essa renda? Em primeiro lugar: em todos os terrenos, mesmo nos piores, se produz a renda absoluta. Em segundo lugar: o pior terreno pode produzir renda diferencial, se em inversão suplementar de capital num terreno mais fértil o trabalho for menos produtivo do que no pior terreno; a produtividade nessa inversão suplementar substitui a do pior terreno na determinação do preço social dos produtos e, assim, tanto no pior terreno, como na primeira inversão de capital no melhor, se produz renda diferencial. Em terceiro lugar: em muitas pequenas explorações agrícolas (aquelas a que, em geral, cabem os piores terrenos) o rendeiro, não só entrega ao proprietário a renda absoluta e a diferencial quando ela existe, como partilha com ele, ou lhe entrega totalmente, o próprio lucro

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médio. Tal como sucedia na economia feudal, é entregue ao senhor tudo quanto excede os meios de subsistência do produtor e, às vezes, até parte do trabalho necessário.

TABELA 10Renda diferencial

Terrenos

Capital

Lucromédio

Preço de Produção

Colheita

Preço indiv. da produção

Prço social da produção

Preço da colheita

Renda

A100

20

120

200

0,6

0,6

120

-

B100

20

120

300

0,4

0,6

180

60

C100

20

120

400

0,3

0,6

240

120

 300

-360

900

- 0,6

540

180

Compreendida a renda diferencial, compreendem-se novos obstáculos ao desenvolvimento da agricultura. É evidente que um rendeiro pode conseguir obter um considerável aumento da renda diferencial ("segunda renda diferencial") com inversões suplementares do capital; mas é também evidente que, nesse caso, não a entrega ao proprietário. Daqui a grande diferença de desejos entre proprietário e rendeiro: o proprietário deseja prazos curtos,

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para se aproveitar das inversões suplementares de capital na terra e do aumento da sua fertilidade e poder assim aumentar a renda; o rendeiro deseja prazos prolongados que lhe permitem reter a segunda renda diferencial obtida com a inversão de novos capitais; o proprietário deseja beneficiar-se dos melhoramen-tos que o rendeiro faz; este evita fazê-lo por não estar disposto a "fazer filhos em mulher alheia". Assim se criam dificuldades ao investimento de capitais e, particularmente, ao aumento da composição orgânica do capital na agricultura.

Estas dificuldades criadas ao progresso agrícola são reconhecidas mesmo pelos mais apaixonados defensores da propriedade privada da terra e representantes dos proprietários rurais. "O rendeiro empreendedor - diz um técnico - arrisca-se, quando se retirar ou for despedido, a ficar com todo o seu trabalho inutilizado [...] indo todas as benfeitorias, realizadas em prédios que não são seus, favorecer outro ou outros [...]. Por isso, na maioria dos casos, não faz melhoramentos ou executa apenas os que considera estritamente indispensáveis, com prejuízo para o proprietário (!) e para a nação."(80) E outro técnico, embora atribuindo ao arrendamento a virtude de "acudir" à falta de terra da parte do rendeiro e à falta de capital da parte do proprietário, reconhece que, "trabalhando em terra alheia, sujeito a renda pesada, o rendeiro não tem interesse em fazer trabalhos e despesas que, aumentando a produção total, diminuam o custo de produção unitária, e não tem interesse porque não tem garantia de não perder os adiantamentos feitos à terra ou de não ver ainda uma parte ou quase tudo do que a mais conseguiu ir ter às mãos do proprietário num ulterior aumento de renda"(81).

Ao mesmo tempo que se coíbe de empregar capitais, o rendeiro procura extrair da terra o mais possível, mesmo ao preço do seu esgotamento. Nisto estão também de acordo todos os especialistas. O sistema de arrendamento a 3 anos - lê-se num estudo - "ao mesmo tempo que esgota a fertilidade das terras (pois, em virtude do seu prazo, não se efectuam adubações orgânicas convenientes), não permite a realização de quaisquer melhoramentos fundiários como estábulos, montureiras, silos, etc."(82) O rendeiro - lê-se noutro estudo - "tira da terra o mais que pode, sem atender à conservação da fertilidade, e nada melhora na incerteza de poder colher o que

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semeou"(83). Os rendeiros - lê-se noutro estudo - "pouco ou nenhum amor podem dedicar a uma terra que só ocasionalmente cultivam e da qual pretendem tirar o máximo rendimento, sem cuidar das consequências futuras". "O solo enfraquece gradualmente."(84) E, sintetizando os efeitos prejudiciais do arrendamento, escreve outro especialista: "Geralmente, uma propriedade rústica arrendada mantém-se indefinidamente no mesmo estado, sem sofrer transformações ou benfeitorias que a melhorem."(85)

Tentando vencer esta resistência dos rendeiros ao emprego de capital, os proprietários têm procurado, por vezes, a via da coacção. Uma lei de 1946(86), ao estabelecer na sua Base XI que "os melhoramentos fundiários realizados pelo senhorio ao abrigo desta lei em prédios arrendados obrigam o arrendatário a compensá-lo do encargo que assumiu, pelo tempo correspondente à duração do arrendamento, acrescido de equitativo aumento de renda", tentou introduzir tal sistema. A falta de aplicação (pelo menos em escala apreciável) deste preceito mostra bem que a causa das magras inversões de capital nas terras arrendadas não é questão de boa ou má vontade do arrendatário, nem de carência de recursos, mas a própria instituição da propriedade privada da terra.

Terceiro aspecto: obstáculo ao desenvolvimento económico geral pela existência de capitais improdutivos.

A terra, não sendo produto do trabalho, não tem valor. Mas tem prego. Esse preço, além de aumentar com os capitais investidos na terra, tem como origem fundamental o querer o proprietário, vendendo a terra, continuar recebendo o equivalente à renda. A renda é assim transformada em juro e o preço da terra não é mais que "renda capitalizada". O preço da terra, que aumenta com a diminuição da taxa de juro (tendência da economia capitalista), obriga à paralisação de importantes e crescentes capitais e retarda a renovação da composição orgânica do capital resultante da acumulação.

Através de tudo quanto fica dito, vê-se bem ser a propriedade privada da terra não só um entrave ao desenvolvimento geral do capitalismo como um entrave particular ao desenvolvimento das forças produtivas na agricultura. A ruína e a expropriação da população rural pelo curso da evolução do capitalismo, a feroz exploração dos

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camponeses pela burguesia e pelos proprietários rurais e a exploração da aldeia pela cidade impedem que a agricultura acompanhe o desenvolvimento económico geral. Revela-se que, por detrás do atraso agrícola, não estão condições naturais inelutáveis, nem leis biológicas, nem a impotência da espécie humana, mas condições sociais geradas pelo capitalismo.

4 - O Proprietário e o Lavrador

A conhecida afirmação segundo a qual a propriedade privada é instituição baseada na violência ou no roubo não é mais que "uma frase declamatória". Afirmá-la produto do direito natural, outra declamatória frase.

Note-se que, para roubar, é necessário existir a propriedade privada e, por isso, a "violência poderá mudar o possuidor, mas não poderá criar a propriedade privada como tal"(1); e note-se que o "direito natural" serve tanto os teorizadores radicais pe-queno-burgueses como os ultra-reaccionários. Com a censura ao roubo e à violência e com a apologia do direito natural, tanto se pode condenar como defender a propriedade privada. Tão vazia é a condenação baseada na primeira como a defesa baseada na segunda. Como Marx e Engels enunciaram, a propriedade privada resultou da necessidade do desenvolvimento da produção e do comércio, isto é, de causas económicas(2).

Também a propriedade da terra não foi gerada pela violência, embora a transferência do estado possessório o tenha sido inúmeras vezes. Também ela está ligada (como sublinharam Marx e Engels) a determinadas condições de produção e de troca. Harmonizou-se com as condições das sociedades escravistas e a sociedade feudal, e tornou-se, então, instituição necessária. Não se harmoniza com as próprias do capitalismo e, como este, torna-se dispensável.

Que assim o é, mostra-se claramente não só pelos obstáculos que levanta ao desenvolvimento do capitalismo (conforme se acaba de ver) como ainda pela diferenciação, provocada pelo desenvolvimento do capitalismo, entre a propriedade do solo e a exploração agrícola. Por um lado, como "o direito de propriedade da terra é o direito à renda", aquele que empresta dinheiro ao proprietário, recebendo a

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renda sob a forma de juro, torna-se o efectivo proprietário e a instituição revela-se inútil no processo de produção. Por outro lado, o proprietário rural, que arrenda as suas terras, não as explorando directamente, revela como "está a mais" no processo de produção capitalista - como salientou Marx e, depois, Lénine (3) . O progresso do crédito hipotecário e do arrendamento, evidenciando a dissociação da propriedade territorial e da exploração agrícola, a dissociação das entidades proprietário e lavrador, evidencia também o carácter supérfluo da propriedade privada da terra na economia capitalista.

As Hipotecas

Não existem publicados elementos para se poder calcular, no conjunto nacional, a parte das terras hipotecadas. Muito provavelmente, aproxima-se da verdade a afirmação vulgar de que a agricultura portuguesa se encontra na sua maior parte hipotecada. Mas faltam elementos numéricos para comprová-la, não só pelas deficiências das estatísticas, como ainda porque (na frase de um agrário) "a banca particular é quase muda e quando fala é nos tribunais em execuções"(4). Apenas em estudos magros e dispersos, referidos a esta ou àquela freguesia, são dadas indicações concretas, embora apenas aproximadas, da parte das terras hipotecadas. Algumas, no total das 3.705 freguesias do País, que indicações sérias podem fornecer? Nenhuma conclusão geral daí se pode tirar.

Se não se pode, porém, determinar a parte das terras que se encontram hipotecadas, pode-se, em compensação, determinar se existe uma tendência para aumentar ou para diminuir essa parte, se há cada vez mais ou cada vez menos terras hipotecadas.

Marx escreveu que "os capitalistas tomados isoladamente exploram os camponeses tomados isoladamente pelas hipotecas e a usura, e a classe capitalista explora a classe camponesa pelo imposto"(5). Estas formas de exploração da aldeia pela cidade acentuam-se com a evolução do capitalismo. Não atingem apenas os camponeses pobres e médios; atingem também os grandes proprietários.

No que diz respeito às hipotecas, é geralmente reconhecido o endividamento progressivo dos proprietários

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rurais. Os grandes são os primeiros a reconhecê-lo, ao falarem na situação difícil da lavoura "recorrendo ao crédito por forma crescente"(6). Não se trata aqui apenas de opiniões genéricas ou de palpites. Apesar das suas enormes deficiências, as estatísticas autorizam afirmar que a percentagem das terras hipotecadas é cada vez mais elevada, que a transferência efectiva da propriedade do solo através das hipotecas é uma tendência irreprimível dentro da economia contemporânea.

Se o número médio de prédios rústicos hipotecados anualmente tem sido depois da última guerra mundial inferior ao que era antes - 14.636, no quinquénio 1934-1938 e 10.930 no triénio 1948-1950 - o valor anual médio das dívidas garantidas subiu de forma apreciável: 97.335 contos em 1934-1938 e 337.792 em 1948-1950(7). Esta diferença nominal só em parte é anulada pela desvalorização da moeda e pelo aumento do preço da terra. O mesmo se nota em relação aos prédios mistos: média anual de 2.658 prédios e 58.591 contos em 1936-1938, e de 2.202 prédios e 296.708 contos em 1948-1950. O recurso ao crédito hipotecário é ainda indicado pelo aumento dos contratos de hipoteca geral (hipotecas sem designação dos prédios), principalmente depois da guerra. No triénio 1936-1938 a média anual foi de 1.021 contratos respeitantes a dívidas no valor de 10.564 contos; no triénio 1947-1949 a média foi de 3.363 contratos e 96.398 contos; e, em 1950, realizaram-se 4.615 contratos respeitantes a dívidas no valor de 116.000 contos.

Para se formar uma idéia mais aproximada da evolução do montante das dívidas hipotecárias contraídas anualmente pelos proprietários rurais antes e depois da guerra, podem considerar-se era conjunto estas formas diversas de hipotecas (valor das dívidas em contos):

  1938 1948 1949Sobre prédio

s rústico

s

88.308

298.861

278.714

Sobre prédio

s

73.633

353.345

390.701

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mistosHipote

cas gerais

12.579

83,991

117.821

  174.520

736.197

787.236

O aumento nominal de cerca de 350% e o nível de cerca de 800.000 contos de dívidas hipotecárias contraídas tanto em 1948 como em 1949 mostram o crescente recurso ao crédito por parte dos proprietários rurais.

Estes números não dão uma ideia suficientemente exacta da situação, pois, embora indicando um maior recurso ao crédito hipotecário, não indicam se diminui ou se cresce o endividamento dos proprietários rurais no seu conjunto, se diminui ou se cresce a parte das terras portuguesas que se encontram hipotecadas. Podia, na verdade, aumentar o recurso ao crédito hipotecário, mas aumentar em mais elevado grau o cancelamento de hipotecas. Haveria uma maior mobilidade do crédito, mas não um maior endividamento. Para se formar tal ideia exacta, é, pois, necessário confrontar as dívidas contraídas com as dívidas pagas, as hipotecas realizadas com as hipotecas canceladas, e ver em que medida se verifica um apressamento ou um agravamento da situação.

E aqui nos voltamos a queixar das estatísticas como, muitas vezes, o faremos ainda ao longo deste ensaio. Não é só da sua insuficiência. É também da instabilidade de critério que levanta embaraços sem fim aos estudiosos. A partir de 1941, tanto o Anuário Estatístico como a Estatística Agrícola designam à parte as hipotecas sobre prédios "cie natureza diversa, garantindo a mesma dívida" (número e valor das dívidas), ao mesmo tempo que, para os desonerados "de natureza diversa", mantêm a parte o valor, mas incluem o número dos prédios nas colunas de "rústicos", "urbanos" e "mistos". Quem ler apressadamente as estatísticas nota na coluna dos prédios rústicos hipotecados forte diminuição a partir de 1941 e nota que os prédios rústicos "que deixaram de estar hipotecados" são em número muito superior. Isto, entretanto, não corresponde à realidade, conforme uma leitura atenta das estatís-ticas o mostra, sem, entretanto, mostrar essa rea-lidade. Nenhuma ideia exacta se pode

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formar em relação a alguns anos. Se, a partir de 1948, embora mantendo a mesma classificação em quadros retrospectivos, as estatísticas indicam, em relação ao seu ano, o número de prédios rústicos hipotecados e desonerados e valores das dívidas respectivas, de 1942 a 1947 fica-se sem saber o que se passou. O movimento nos primeiros anos de guerra (1939-1941) e a evolução do número de contratos realizados e cancelados parecem indicar uma anormal desoneração durante a guerra. Mas só conjecturas podem ser feitas. Ao estudar-se a evolução das hipotecas sobre prédios rústicos, tem de interromper-se o estudo em 1941 para continuar só em 1948. Daí a ausência na tabela 11 destes anos, entre os quais se devem salientar os de 1945-1947, cuja consideração teria grande interesse.

TABELA 11Prédios rústicos hipotecadas e desonerados(8) 

(Número e dívidas que garantiam)Triéni

osNúmero Contos

Hipotecados

Desonerados

Diferença

Hipotecados

Desonerados

Diferença

1930-32 71.614 32.431 39.183 477.782 338.794 138.98

81933-

35 50.557 33.170 17.387 298.930 270.826 28.1041936-

38 41.768 32.838 8.930 287.792 219.303 68.4891939-

41 37.405 33.571 3.834 243.683 216.894 26.7891948-

50 32.789 28.881 3.908 1.013.375 313.036 700.33

91951-

53 30.601 27.508 3.093 723.033 358.027 365.006

Tomando os últimos nove anos anteriores à guerra, 1930 a 1938, vê-se pela tabela 11 que foram hipotecados 163.939 prédios rústicos e desonerados 98.439. Isto indica que em fins de 1938 estavam hipotecados (sem contar os prédios mistos e as hipotecas gerais) mais 65.500 prédios rústicos do que em princípios de 1930.

Quanto ao valor das dívidas garantidas pelos prédios hipotecados e desonerados, elas somaram respectivamente

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1.064.504 e 828.923 contos. E isto indica que em fins de 1938, os proprietários rurais estavam devendo (só através das hipotecas de prédios rústicos) mais 235.581 contos do que deviam em princípios de 1930.

Saltando para depois da guerra, no triénio 1948-1950 foram hipotecados 32.789 prédios rústicos e desonerados 28.881, garantindo respectivamente 1.013.375 e 313.036 contos. Isto significa que, nestes três anos, mais 3.908 prédios rústicos ficaram hipotecados e os proprietários rurais ficaram devendo (só através das hipotecas de prédios rústicos) mais 700.000 contos. O endividamento continuou, posteriormente.

Em qualquer dos triénios considerados, aumentou o número dos prédios rústicos hipotecados e o volume das dívidas por eles garantidas, o que mostra aumentarem cada vez mais as terras hipotecadas. Este aumento não é um facto ocasional, mas uma consequência do desenvolvimento do capitalismo.

Desta forma, o direito de propriedade do solo - o direito à renda - vai-se transferindo dos proprietários rurais para os capitalistas. Os primeiros continuam nominalmente tendo o direito de propriedade; mas os verdadeiros proprietários são os segundos, porque recebem a renda, embora dissimulada em juros. O carácter supérfluo da propriedade do solo na economia capitalista fica completamente em evidência.

Os Arrendamentos

O arrendamento desempenha, na agricultura portuguesa, um importante papel. No total de 853.568 explorações agrícolas, recenseadas em 1952--1954, 165.249, ou seja, 19,4%, eram por arrendamento. Em nove distritos, as explorações por arrendamento representavam mais de um quinto do total e apenas no distrito de Bragança a sua percentagem descia abaixo de 10%. A mais alta percentagem registava-se no distrito do Porto com 41%, seguindo-se os de Braga e Setúbal, com 32%; o de Portalegre, com 30%; o de Lisboa, com 28%; o de Beja, com 26%; o de Évora, com 24%; os da Guarda e Viseu, com 20%(9).

Estes números e percentagens não dão, porém, uma ideia exacta da situação, pois não estão incluídas as explorações

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em que o agricultor é, ao mesmo tempo, proprietário e rendeiro. O número de tais explorações mistas subia, na mesma data, a 162.984, e, em quase metade delas, o arrendamento era a forma mais importante. No conjunto do território continental, isso sucedia em 41% de tais explorações mistas, destacando-se, pelas elevadas percentagens, o distrito do Porto, com 50%; Braga, Setúbal e Portalegre, com 48%; Viseu, com 47%, e Paro e Guarda com 44%. E, pelas mais baixas percentagens, os distritos de Bragança e Leiria, com 33%, e Santarém, com 32%. Tanto por estas elevadas percentagens de explorações mistas onde o arrendamento predomina, como pela insuficiência da propriedade própria por elas revelada, é legítimo somar às explorações por arrendamento as mistas onde o rendeiro é também proprietário, a fim de se obter uma mais exacta ideia da situação.

No total continental, o número de explorações por arrendamento e mistas subia a 328.233 no total de 850.568 explorações(10), representando assim 39% do total. Embora a situação nos vários distritos se apresente desigual, em nenhum elas representam menos de 24% do número total de explorações (Santarém) e, em compensação, em nada menos de dez distritos, representam 40% ou mais: 54%, no de Lisboa; 51%, no do Porto; 46%, nos da Guarda, Viseu e Beja; 45%, no de Évora; 43%, nos de Braga, Portalegre e Setúbal; 40%, no de Viana do Castelo. Tanto estas percentagens distritais, como a do total nacional de 39%, devem ser consideradas elevadíssimas.

Embora não se possa calcular, na base destes elementos, a parte das terras arrendadas, visto não se conhecerem as áreas correspondentes ao número de explorações, eles indicam, entretanto, por si só, que uma elevada quota da terra portuguesa está arrendada. Se tivermos em conta que o arrendamento se realiza tanto ou mais nas grandes explorações do que nas pequenas, não será ousado presumir que a percentagem das terras arrendadas não se afastará muito da percentagem das explorações por arrendamento e mistas, ou seja, pouco menos de metade no conjunto do continente.

Uma parte considerável dos pequenos agricultores não são proprietários da terra em que trabalham. Não pode, é

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certo, determinar-se, com precisão, o seu número, nem a extensão das pequenas propriedades arrendadas. Mas variados elementos - contribuição predial, censos, monografias - assim o indicam.

A grande desproporção entre a área média dos prédios rústicos e a área média por proprietário - aquela muito inferior a esta - acusa, além da existência de grandes proprietários de pequenos prédios, a existência de grande número de rendeiros de pequenos lotes. Tal o que acontece no distrito de Braga, onde a área média dos prédios rústicos é de 0,4 ha, e a área média por proprietário 3,4 ha; no distrito do Porto, com, respectivamente, 0,5 e 3,4 ha; no distrito de Viana do Castelo, com, respectivamente, 0,3 e 2,3 ha; no distrito de Viseu, com 0,3 e 2,9 ha(11).

Isto é confirmado pelo censo da população. Apesar de que muitos dos pequenos e médios rendeiros, talvez a maioria, são ao mesmo tempo proprietários, aparecendo como tal no censo - as percentagens de rendeiros acusadas no censo (ou seja, afinal: de rendeiros sem um pedaço de terra) são muito elevadas em alguns distritos. Em relação aos pequenos e médios agricultores (os "isolados" e os "patrões" do censo) mais de um quinto (23,5%) está nessas condições, sendo as percentagens particularmente elevadas no Minho, Douro Litoral e Alentejo: 30% no distrito de Viana do Castelo; 41% no de Braga; 53% no do Porto; 35% no de Portalegre; 34% no de Évora e 31% no de Beja. Em alguns outros distritos, os rendeiros representam também mais de um quinto dos "patrões" e "isolados": Guarda, Viseu e Setúbal, com cerca de 25%, e Castelo Branco, com 21%. Tirando os grandes lavradores e atendendo-se apenas aos "activos na agricultura" é entre os menores cultivadores que mais abundam os não proprietários. Na categoria "isolados" as percentagens dos rendeiros são mais elevadas que entre os "patrões", alcançando 25% no total nacional, passando de 20% em 11 dos 18 distritos do continente e subindo a 61% no distrito do Porto, que se destaca neste particular(12). É evidente que, se se juntassem a estes rendeiros não proprietários aqueles que também o são, as percentagens seriam incomparavelmente mais elevadas.

Monografias relativas a algumas regiões onde predominam as pequenas explorações agrícolas verificam a

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grande importância do arrendamento. Na "Beira Transmontana" "é o arrendamento a forma de exploração dominante"(13). Em Santo Tirso, calcula-se que "mais de 75% das propriedades da freguesia estão arrendadas a caseiros"(14).

Não oferece, pois, qualquer dúvida de que uma grande parte das pequenas explorações - em vastas regiões a maioria das pequenas explorações - assentam em terra arrendada, ficando patente, nesta dissociação entre o proprietário e o lavrador, a nula função do primeiro em importante parcela da produção agrícola portuguesa.

Tal dissociação não se dá, porém, apenas na pequena produção, mas muito especialmente na grande. Nesta o arrendamento indica ainda com maior clareza a participação do capitalismo na produção agrícola, substituindo-se à classe dos proprietários territoriais proveniente do feudalismo.

É de muito interesse notar, a este respeito, a existência de numerosos rendeiros que não trabalham, sequer, na agricultura. Se notarmos que, em 1952-1954, havia em Portugal 165.249 explorações por arrendamento(15) e um número muitíssimo inferior de rendeiros activos na agricultura (95.171 em 1950)(16), número esse que, em oito distritos, nem sequer alcança metade do das explorações por arrendamento, tem-se uma comprovação da intervenção nos campos de uma classe não proprietária e não activa na agricultura, que aí intervém apenas com o seu capital.

Em todo o território continental, uma grande parte das grandes explorações agrícolas exerce-se em regime de arrendamento. Nas grandes propriedades do Alentejo é elevadíssima a quota das terras arrendadas. No distrito de Évora, as grandes propriedades arrendadas ocupavam uns anos atrás 109.069 ha, correspondendo a 45% do total da área ocupada por grandes propriedades; e as médias propriedades arrendadas ocupavam 34.626 ha, correspondendo a 52% da área ocupada por médias propriedades. No distrito de Portalegre, as grandes propriedades arrendadas ocupavam 87.815 ha, correspondendo a 48% da área ocupada por grandes propriedades; e as médias propriedades arrendadas ocupavam 27.365 ha, correspondendo a 56% da área ocupada pelas médias propriedades(17).

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Nas muito grandes propriedades, o arrendamento não ocupa tão importante lugar, porque geralmente ao arrendatário capitalista interessa, mais do que o gigantesco latifúndio - insaciável sorvedouro de capital -, a grande propriedade mais proporcionada as suas possibilidades de investimentos. Apesar, porem, destas restrições, mesmo nas maiores propriedades é considerável a parte arrendada. No distrito de Évora, as terras arrendadas, em muito grandes propriedades, ocupavam 95.525 ha, correspondendo a 29% da área de tais propriedades, e, no distrito de Portalegre, ocupavam 66.136 ha, correspondendo a 33%(18). No conjunto das muito grandes, grandes e médias propriedades (de mais de 60 hectares) a área arrendada subia no distrito de Évora a 237.220 ha no total de 631.208 ha, ou seja, 38%, e no distrito de Portalegre a 181.316 ha no total de 429.844 ha, ou seja, 42%.

Ainda sobre o distrito de Portalegre, elementos do INE, infelizmente não publicados oficialmente, mas fornecidos particularmente a um economista, confirmam a elevada quota do arrendamento nas grandes explorações. "A diminuição das explorações agrícolas por conta própria - escreve - nota-se sobretudo nas largas áreas. No distrito de Portalegre: em 382 explorações de cultura arvense, tendo de 50 a 100 ha, apenas 152 se faziam por conta própria; em 115, tendo de 500 a 1.000 ha, apenas 40 eram por conta própria; em 11, tendo de 2.500 a 5.000 ha, apenas 2 eram por conta própria; e, finalmente, em 3, tendo mais de 5.000 ha, nenhuma era explorada por conta própria."(19) E, servindo-se dos mesmos elementos não publicados, calcula que no distrito de Portalegre, de 417.070 ha de cultura arvense apenas 153.935 ha são de exploração por conta própria, mostra que "é em geral a grande exploração que contém áreas arrendadas"(20), afirma que "pode dizer-se afoitamente que, tanto em área como em número, prevalece no distrito de Portalegre a forma de exploração agrícola não exercida directamente pelo proprietário" e conclui que "apenas um terço da área é inteiramente de conta própria"(21).

Não dispomos de dados tão completos em relação a outros distritos. Mas, no que respeita ao de Beja, não só se afirma, em minucioso estudo de uma freguesia que "na grande propriedade são mais importantes as formas indirectas de exploração, principalmente o

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arrendamento"(22), como, no estudo de todo um concelho, o de Moura, se vê ser também na grande propriedade muito elevada a percentagem de terras arrendadas. Uns anos atrás neste concelho, no total de 70.311 ha ocupados pela grande propriedade, 27.979, ou seja, 40%, eram explorados em regime de arrendamento (ignorando nós se estão incluídas as parcerias), freguesias havendo em que as percentagens subiam a mais de 50%: 54%, na Póvoa; 61%, em Santo Aleixo; 79%, na Amareleja(23).

Da situação no distrito de Setúbal pode fazer-se uma ideia através dos estudos da zona pliocénica ao sul do Tejo. Apesar de ser a região do País onde existem os mais extensos latifúndios e estes não serem propícios ao arrendamento, as explorações agrícolas em regime de arrendamento (excluídas as parcerias) ocupam 106.700 ha, no total de 451.000 ha, ocupados pelas médias e grandes explorações, o que corresponde a 24%(24).

Esta percentagem está, porém, muitíssimo abaixo da realidade uma vez que "não foi considerada" a forma predominante da dissociação da propriedade e da lavoura na região - os seareiros. Admitindo--se, como se admite, que nesses 451.000 ha "mais de metade da superfície ocupada pela cultura arvense é dada a seareiros"(25), é de admitir, tendo em conta os apontados 24% das terras arrendadas, que mais de metade das grandes e médias propriedades se encontram arrendadas.

O arrendamento da grande propriedade não é exclusivo do Alentejo. No Minho, pode dizer-se da freguesia de Santo Tirso que "o caso mais normal é o da grande e média propriedade estar arrendada no todo ou em parte"(26). E na Cova da Beira, nas ricag várzeas do Zêzere, onde 23.000 no total de 75.000 ha são ocupados por grandes propriedades, "encontramos uma forma de exploração nitidamente dominante - a exploração por arrendamento"(27).

Embora seja vulgar o arrendamento de pequenas parcelas em grandes propriedades, sucedendo isso tanto no Alentejo, como no Minho ou nas Beiras, e embora haja grandes rendeiros que subarrendam pequenos lotes, sucedendo isto também tanto com os seareiros do Alentejo como com os caseiros do Minho ou os rendeiros das Beiras - o arrendamento de grandes propriedades está, muitas vezes,

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ligado a novas e importantes inversões de capital na exploração agrícola. É o que sucede com a cultura do arroz, particularmente na bacia do Tejo, em que o arrendamento "resulta da iniciativa de poderosos lavradores que se arriscam em empreendimentos de vulto"(28).

Em todas as regiões onde se cultiva o arroz é muito importante a parte de terras agricultadas por rendeiros e parceiros. Calculada a quota das várias formas de exploração segundo a quantidade de arroz manifestada, essa parte subiria a 53% no total nacional. Quer dizer: em mais da metade das explorações arrozeiras do País o agricultor não é o proprietário. A situação não é, porém, idêntica nas três grandes zonas do arroz. Na zona norte (vales do Vouga e Mondego) a percentagem seria de 44%; na zona sul (Sado e Alto e Baixo Alentejo) 39%; na zona central (bacia do Tejo) 65%(29). É precisamente nesta última zona, onde cabem a rendeiros (e parceiros), cerca de dois terços da produção, que o arrendamento corresponde a "empreendimentos de vulto" de "poderosos lavradores", ou seja, afinal, à intervenção dominante na produção agrícola de grandes capitalistas, dos tais "autênticos empresários capitalistas" de que falava Engels (30) . Não é estranho a essa intervenção o acentuado progresso desta cultura.

Mostra-se, por todos os números citados, que uma parte considerável da agricultura portuguesa é explorada em regime de arrendamento. E, se essa parte considerável se não pode determinar com precisão à escala nacional (embora muitos elementos indiquem orçar por metade ou ser pouco inferior à metade), fica-se, entretanto, com a ideia clara e suficientemente demonstrada de que em vastíssimas áreas e em importantes culturas o arrendamento é a forma de exploração dominante. Se na produção agrícola feudal produtor e proprietário se identificam, a dissociação entre a propriedade e a exploração através do arrendamento representa a decomposição dos vestígios feudais na economia capitalista, é um produto do desenvolvimento do capitalismo e tende por isso a aumentar.

A comparação dos censos de 1940 e 1950 fornece um dos raros elementos estatísticos existentes comprovativos desta tese. Há, é certo, entre os dois censos, diferenças de nomenclatura e de arrumação, destacando-se no censo de

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1950 a fusão de "parceiros" e "rendeiros" numa só rubrica ("rendeiros") e a transferência de quase 100.000 pessoas activas na agricultura da rubrica "patrões" para a rubrica "isolados". Mas o número e percentagem de rendeiros e parceiros no conjunto de "patrões" e "isolados" (isto é: de pequenos e médios agricultores) é perfeitamente comparável. O censo de 1940 indicava, no total de 418.671 "patrões" e "isolados", 80.387 rendeiros e parceiros, ou seja, 19%; o censo de 1950, no total de 405.283, indica 95.171 rendeiros, ou seja, 24 %. Estes números indicam apreciável progresso do arrendamento.

Também em estudos regionais, embora deficientemente fundamentados, "nota-se de um modo geral tendência para o arrendamento progredir"(31). E nas sínteses mais autorizadas da situação económica nacional, a mesma opinião aparece como respeitando ao conjunto da agricultura portuguesa: "O lavrador proprietário de terras - diz-se num relatório do Banco de Portugal - está a renunciar cada vez mais a explorá-las directamente, entregando-as a rendeiros."(32) Esta tendência da economia capitalista é universalmente reconhecida.

É de notar, entretanto, que, cabendo já a rendeiros talvez metade ou não muito menos das terras agrícolas portuguesas, o ritmo do progresso do arrendamento pode afrouxar na actualidade sem que isso traduza qualquer afrouxamento no ritmo do desenvolvimento do capitalismo na agricultura. O aumento do arrendamento deu-se em ritmo acelerado quando a classe dos proprietários territoriais era ainda uma classe hostil ao próprio capitalismo e por este hostilizada. Então o arrendamento era forma essencial através da qual o capitalismo apressava o ritmo da dissociação da propriedade da terra e da exploração agrícola. Pelo arrendamento, os capitalistas tornavam-se os exploradores do solo, apesar de que a propriedade deste continuava a pertencer a uma classe hostil e pré-capitalista: os proprietários rurais. Então o capitalismo tinha, às vezes, consciência de que a propriedade particular da terra era entrave ao seu próprio desenvolvimento e mais de um dos seus teóricos pôs em causa a legitimidade dessa propriedade.

Posteriormente, o próprio desenvolvimento do capitalismo aproximou os interesses de proprietários rurais e capitalistas. Entra-se, assim, como numa nova fase do desenvolvimento

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do capitalismo no referente à dissociação da propriedade da terra e da exploração agrícola. Ainda que os arrendamentos conservem toda a sua importância e todo o seu significado, pode afrouxar o ritmo do seu progresso, pode mesmo haver retrocessos, resultantes da pro-letarização de pequenos rendeiros, podem notar-se importantes movimentos no sentido da exploração "por conta própria" de grandes empresas agrícolas capitalistas (sociedades ou capitalistas individuais), sem que afrouxe o ritmo do desenvolvimento capitalista.

De qualquer fornia, a posição do arrendamento na agricultura portuguesa, e particularmente nas grandes explorações, mostra o adiantamento do processo de desenvolvimento do capitalismo em Portugal, evidencia a dissociação entre a entidade proprietário e a entidade lavrador e junta, ao que já se disse sobre hipotecas de prédios rústicos, nova prova da superfluidade da instituição da propriedade privada da terra na economia capitalista.

Um Obstáculo Que Não se Remove

O carácter supérfluo da propriedade privada da terra revela-se com nitidez através das duas importantes formas de dissociação entre a propriedade e exploração agrícola, que se acabam de referir. Mas os próprios proprietários rurais, os grandes proprietários rurais, vivendo completamente e ostensivamente à margem da exploração agrícola e apropriando-se, sob a forma de renda, de parte considerável do valor criado na agricultura, se encarregam de mostrar, aos olhos dos que não estudam economia, a sua completa inutilidade no processo de produção e, consequentemente, a inutilidade da instituição que os caracteriza como classe social. Quando vivem afastados das suas propriedades, quando vivem em cidades distantes ou mesmo no estrangeiro, revelam aos olhos de todos que a sua "participação" na produção e na troca se resume a receber a renda.

Não são estes casos excepcionais ou sequer invulgares. Eles constituem a situação normal predominante dos grandes proprietários. Regra geral, o grande proprietário não se ocupa da exploração: ou a arrenda, ou a entrega a administradores assalariados.

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Na freguesia de Santo Ildefonso do concelho de Eivas, 10 grandes propriedades, no total de 26, estavam arrendadas em 1934, e nas outras grandes que não o estavam o mais frequente era encontrarem--se feitores à frente da exploração agrícola(33). No total de 118 proprietários existentes na freguesia, 33 não eram lavradores e, destes 33, 20 viviam fora do concelho, a maior parte em Lisboa(34). Que este é o panorama habitual por todo o Alentejo mostram-no os números seguintes relativos a dois distritos estudados uns anos atrás no seu todo.

No distrito de Évora, 471 sobre 1095 grandes proprietários, ou seja, 43%, arrendavam tudo quanto possuíam. No distrito de Portalegre o mesmo sucedia com 372 no total de 809 grandes proprietários, ou seja, 46%(35). Contando apenas estes proprietários, que arrendavam todas as terras, e que, portanto, nem sequer nominalmente eram lavradores, vemos que os absentistas subiam a quase metade de todos os grandes proprietários de dois distritos caracterizados precisamente pelo predomínio de grandes propriedades. E, quando se repara que estes 843 grandes proprietários absentistas tinham arrendados 327.000 ha, só em propriedades de mais de 60 ha (pois muitas outras possuíam de menos de 60 ha que aqui não são contadas), quando se repara que menos de tal extensão têm os distritos de Aveiro, de Braga, de Lisboa, do Porto ou de Viana do Castelo, bem se compreende a reprovação quase geral do absentismo e como os absentistas comprometem as justificações ideológicas da sua própria classe. Além dos que arrendam as terras, muitos outros há que, embora designados como proprietários explorando a terra "por conta própria", são igualmente absentistas. Isso sucede em especial com os maiores proprietários, pois as muito grandes propriedades lhes permitem, pela sua riqueza, pagarem a administradores e outro pessoal de direcção, de forma a manterem-se permanentemente afastados das suas propriedades, fazendo-lhes ou não, de longe em longe, rápidas visitas de turista.

O absentismo não é fenómeno específico do Alentejo: ele é comum a todo o território nacional em relação à grande propriedade. "O proprietário da terra — diz-se falando de regiões beiroas — tem no geral ocupações que desta o afastam em absoluto, não podendo, não sabendo e não querendo, na maioria das vezes, preocupar-se

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demasiadamente com ela. Ele tem principalmente em vista e prefere sempre receber anualmente sem mais incómodos o juro desse capital (sic) representado neste caso pela renda da terra."(36)

O absentismo torna acessível aos espíritos mais simples o significado profundo da dissociação da propriedade e da exploração, bem patente nas hipotecas e no arrendamento. Aquele não poder, não saber e não querer, o afastamento completo do proprietário, a sua vida alheia à exploração e tendo como único laço ligando-o a ela o direito à renda (o direito de propriedade) põem imediatamente a questão do seu inútil papel no processo de produção capitalista.

Deve, porém, sublinhar-se que o absentismo não faz senão tornar mais chocante, mais visível, a superfluidade da propriedade particular do solo no processo de produção capitalista, mas nada acrescenta de novo à dissociação da propriedade e da exploração e nada acrescenta aos obstáculos levantados pela instituição ao desenvolvimento do capitalismo. Sob o ponto de vista económico é tão inútil no processo de produção o proprietário absentista como aquele que calça botas, veste samarra, põe chapéu mais ou menos rústico e se exibe assim pelos seus campos, dirigindo ou não de facto os trabalhos. Sob o ponto de vista económico o carácter supérfluo da propriedade privada da terra na economia capitalista existe da mesma forma, seja o proprietário um absentista ou não o seja, seja ou não lavrador o proprietário.

Contra o que julgam muitos economistas, o proprietário rural, que é ao mesmo tempo o lavrador das suas terras, o chamado proprietário-empresário, não deixa por esse facto de receber a renda, ou seja, o excedente do lucro médio. Se o proprietário rural explora directamente as suas terras, se é "lavrador", isso significa que ele é ao mesmo tempo proprietário e capitalista. Como capitalista explora as terras e recebe o lucro médio; como proprietário recebe o excedente desse lucro médio, ou seja, a renda.

É comum reconhecer-se que o absentismo compromete a instituição da propriedade privada do solo e pretender-se, em contrapartida, absolver esta, quando a produção é efectuada por "conta própria". Ao mesmo tempo que se reconhece que "o proprietário absentista abdica do desempenho de uma

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função social" afirma-se que "o proprietário de terras se eoloca inteiramente a coberto dos sólidos argumentos que justificam a apropriação privada do solo agrícola quando se constitui empresário de uma exploração agrícola"(37).

Esta diferença entre o proprietário absentista que arrenda todas as suas terras e o proprietário--lavrador não oferece, porém, qualquer base consistente. Quando o proprietário é absentista não abdica de qualquer função social, pois a sua única "função social" é receber a renda, e isso nunca deixa de o fazer. E quando o proprietário "se constitui empresário de uma exploração agrícola", não se mostra que o proprietário rural é necessário na economia capitalista, mas sim que o capitalista (seja ou não proprietário rural) é indispensável na economia capitalista, o que é uma tautologia que não consta ninguém tenha pretendido negar.

O arrendamento (assim como as hipotecas) evidencia como o capitalismo poderia (no terreno puramente económico) dispensar os proprietários rurais, o absentismo ilustra esta situação, mas, mesmo sem o absentismo, mesmo sem o arrendamento, mesmo quando o proprietário é também o lavrador, é também o capitalista — mesmo então a propriedade privada da terra (e o seu monopólio), engendrando a renda absoluta, impossibilitando por esse facto que a mais-valia criada na agricultura participe na formação da quota média de lucro, refreando a acumulação de capital, impedindo investimentos de capital na exploração agrícola, obrigando à paralisação importantes capitais correspondentes ao preço da terra, não deixa de ser o mesmo obstáculo ao desenvolvimento do capitalismo. Mesmo então o proprietário da terra (não nos referimos à pessoa, mas à categoria social, à instituição) é um peso morto no processo de produção.

O capitalismo não só podia dispensar essa instituição como teria necessidade de dispensá-la para acelerar o seu desenvolvimento. Se o Estado burguês se substituísse aos proprietários rurais, isto é, se nacionalizasse a terra, nenhuma dificuldade seria, por esse facto, criada à produção. Pelo contrário: com o termo do monopólio dos proprietários rurais, acentuar-se-ia a acumulação do capital, mobilizar-se-iam grandes capitais hoje paralisados em virtude do preço da terra, baixaria o preço das matérias-primas de origem

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agrícola e dos meios de subsistência, a produção receberia novo e vigoroso impulso e, para proveito e alegria dos burgueses, aumentaria consideravelmente a quota de lucro.

Sendo assim, porque não remove o Estado burguês esse obstáculo? Porque, ao contrário, defende com energia crescente, no terreno teórico e no terreno da prática, essa instituição contrária ao seu próprio desenvolvimento?

Por várias razões isso sucede.

A primeira é que a nacionalização da terra excederia largamente nos seus efeitos o objectivo em vista. Como Marx e Lénine sublinharam, a nacionalização da terra, além de pôr termo ao monopólio dos proprietários agrícolas, "tocaria noutro monopólio que, nos nossos dias, é particularmente importante e 'sensível': o monopólio dos meios de produção em geral"(38). Como Engels notou, "atacar qualquer forma de propriedade seria atacar todas". Por isso, o capitalismo, embora contrariado no seu desenvolvimento pela propriedade privada da terra, declara o carácter eterno desta forma de propriedade como o de qualquer outra e indica o dever de respeitá-la. "O direito de propriedade — diz-se falando-se da agricultura — é uma emanação do direito natural e fruto da experiência de séculos."(39) A Propriedade privada — diz-se, falando-se da propriedade da terra — é uma "verdadeira instituição "e direito natural, intangível na sua existência"(40). Na época do ascenso revolucionário do proletariado a defesa da propriedade privada, em geral, não consente se abra uma excepção à propriedade da terra.

A segunda razão é que, na evolução do capitalismo, o capital industrial e o bancário se ligam de forma crescente à propriedade agrícola. Há, ainda, é certo, contradições de interesses entre capitalistas e proprietários rurais que encontram eco, de quando em quando, em reclamações várias. Reclamam os proprietários contra o alto preço dos produtos industriais, contra as elevadas taxas de juro, contra os monopólios no tratamento industrial dos produtos agrícolas; reclamam os industriais contra os altos preços das matérias-primas agrícolas e das subsistências alimentícias, porque aumentam os preços de custo e encarecem a força de trabalho; pedem os capitalistas o agravamento da contribuição predial rústica que consideram proporcionalmente inferior à industrial; e reclamam medidas

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limitativas do direito de propriedade da terra para obrigar os proprietários rurais a acelerar "planos de fomento" (irrigação, colonização, etc.) que apressem o desenvolvimento do capitalismo. Tais reclamações contraditórias são, porém, cada vez mais tímidas, dada a ligação crescente de capitalistas e proprietários rurais. As hipotecas dão aos bancos e outros prestamistas o direito à renda, que é a substância do direito de propriedade da terra. Os capitalistas tornam-se também proprietários rurais e os proprietários rurais tornam-se capitalistas. Uns e outros acabam por aproximar-se e fundir no essencial os seus interesses. E, por isso, embora o desenvolvimento mais rápido do capitalismo exigisse a nacionalização de terras, os capitalistas passam a estar interessados na sua defesa. Tais são as duas razões fundamentais que se conjugam para que o capitalismo mantenha e defenda uma instituição que contraria o seu desenvolvimento.

Esta situação reflecte-se no campo da teoria económica com a substituição das três velhas "fontes de renda" ou "factores da produção" (terra, trabalho e capital), por uma nova arrumação em que a "terra" se funde com o "capital" e aparece um novo "factor" — o "empresário". O significado deste arranjo verbal, hoje tanto em moda, é o facto de traduzir o recebimento da renda, do juro e do lucro (todos formas da mais-valia), não já por duas entidades ou classes sociais separadas e divergentes — proprietário rural e capitalista — mas pela entidade "capitalista-proprietário" e "capítalista-empresário", por vezes duas pessoas diferentes numa só verdadeira. Estes economistas não se apercebem da diferença essencial existente entre a terra e o capital: que, enquanto a primeira não é produto do trabalho, não tendo por isso valor, o segundo é única e exclusivamente produto do trabalho, é "mais-valia acumulada". A evolução do capitalismo, com a aproximação de interesses de capitalistas e proprietários da terra, determinou, porém, essa incompreensão. E, por isso, quando estes economistas integram a forma "renda" na forma "juro", como remuneração do "capital", mal imaginam a fidelidade com que, no seu erro, reflectem a alteração das relações entre o capital e a propriedade da terra provocada pela evolução do capitalismo.

Mantendo as principais causas do atraso da agricultura, o capitalismo não pode superá-lo. Daí resulta o carácter

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hesitante do seu desenvolvimento na agricultura, a sua lentidão e até as suas aparentes pausas e os seus aparentes retrocessos. Entretanto, embora em ritmo mais lento do que na indústria, esse desenvolvimento prossegue incessantemente, generalizando-se nos campos as relações de produção capitalista em substituição das relações de produção vindas da sociedade feudal.

5 - A Divisão da Propriedade

Acerca da divisão da propriedade era Portugal, apenas existem publicados raros, dispersos e incompletos elementos de estudo. As estatísticas são totalmente silenciosas, os investigadores tímidos e ocasionais, e um espesso véu de mistério envolve este aspecto capital da sociedade portuguesa — um dos mais salientes traços da sua fisionomia económica e social. Dir-se-ia tratar-se de uma questão puramente particular dos proprietários rurais, ou de uma questão entre os proprietários rurais e o Estado, apenas interessando os primeiros individualmente e o segundo para efeito do fisco. Isso explicaria porque os elementos existentes nas matrizes prediais e no Instituto Geográfico e Cadastral se mantêm no mais rigoroso secretismo.

A verdade é, porém, que não se pode conhecer um país sem conhecer a divisão da propriedade e que o conhecimento de como se encontra fisicamente dividida a terra e dos benefícios ou malefícios para a cultura da divisão existente; de como se encontra dividida a propriedade da terra, se esta pertence a muitos, se a poucos, e do que pertence a cada qual; é questão de interesse para toda a nação, indispensável para se ter qualquer ideia da solução dos problemas agrários, tanto no aspecto social como no aspecto económico.

Tal conhecimento é, também, indispensável para a compreensão do grau de desenvolvimento do capitalismo. A divisão da propriedade esclarece acerca do peso da classe feudal dos grandes agrários e dá uma base para o estudo do peso da pequena burguesia e do proletariado dos campos. Sem o conhecimento da divisão da propriedade não se podem conhecer as posições da pequena e da grande produção na agricultura, a importância relativa dos restos da produção natural e da grande exploração capitalista.

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Daí a necessidade de se tentar traçar aqui um quadro geral, embora (pela penúria de elementos) não se possa fazer mais que um estudo elementar indirecto e fragmentado.

Panorama Geral

O panorama geral da divisão da propriedade em Portugal (continente) apresenta-se com extrema simplicidade. O Tejo separa o País em duas grandes zonas. Na do Norte predomina a pequena propriedade; na do Sul, a grande. Entre uma e outra, ao longo do Tejo, estende-se como que uma terceira zona com caracteres intermediários, onde nem sempre a pequena propriedade se confina ao norte do rio e a grande propriedade ao sul. Neste conjunto apenas se observa uma ampla mancha discordante (a de pequena propriedade no litoral do Algarve) e, mais timidamente e com características muito particulares, pequenas manchas de grande propriedade no Centro e no Nordeste.

A estas zonas correspondem os distritos da forma seguinte: na zona intermédia ao longo do Tejo, os distritos de Lisboa, Santarém e Castelo Branco; na zona sul, onde predomina a grande propriedade, os distritos de Portalegre, Évora, Beja e Setúbal; na zona Norte, onde predomina a pequena propriedade, os distritos de Viana do Castelo, Braga, Porto, Bragança, Vila Real, Viseu, Guarda, Aveiro, Coimbra e Leiria; cora características parcialmente discordantes, o distrito de Faro no Sul — e concelhos de vários distritos no Centro e Nordeste.

Esta nítida diferenciação das zonas de grande e pequena propriedade facilita, por um lado, o estudo da pequena e da grande exploração agrícola em Portugal; dá, por outro lado, lugar a numerosas confusões e a grosseiros esquematismos. Isso resulta de não se terem em conta três ordens de restrições ao significado da área dos prédios rústicos. A primeira é a variedade do solo agrícola e das condições de cultura em Portugal. A segunda é a variedade de tipos de pequenas e grandes explorações. A terceira é a não coincidência da propriedade e da exploração.

Quanto à variedade do solo agrícola e das culturas, não só se desenham regiões do trigo, do milho, do centeio, do arroz, dos vinhos, do azeite, da cortiça, de algumas frutas, da criação de gados, como há, de norte a sul, todo um entrelaçar

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de regiões diversas. No Minho, fere o contraste entre as serranias e as várzeas dos vales. Em Trás-os-Montes, a terra fria com o centeio, a batata e os gados e a terra quente com a vinha, a oliveira, a amendoeira, a laranjeira. No distrito de Aveiro, a cultura das areias do litoral contrastando com as vinhas da Bairrada, os arrozais do Vouga e a pecuária do interior. No distrito de Coimbra, os campos da ribeira de Soure e do Mondego e solos pobres e acidentados. No distrito de Viseu, a região duriense, a região "minhota" de La-fões, a região dos vinhos do Dão, as regiões montanhosas. No distrito da Guarda, a região duriense, as regiões serranas e a terra fria e seca do Coa e da raia. No de Leiria, as dunas pobres e as ricas do litoral, as serras pedregosas do interior e as vinhas e jardins. No de Faro, os vales e aluviões da beira-mar, a serra e a meia-serra. E até no Alentejo, onde é mais uniforme o tipo de lavoura, com predomínio dos cereais praganosos e dos montados, não faltam grandes regiões de olival, outras de ricos arrozais, outras de feição beiroa (Portalegre, Mar-vão), outras de belas hortas e pomares.

Todas estas sub-regiões se encontram, se cruzam e se abraçam, por vezes em áreas relativamente restritas. Concelhos há com grandes diferenciações, estendendo-se uns por vertentes desde as úberes baixas dos vales às cumeadas agrestes das montanhas, abarcando outros terrenos das mais variadas feições, aproximando e acasalando as mais díspares culturas. A floresta, a horta, as searas, os pastos serranos, a vinha, os pomares, os montados, tudo se entrecruza numa estranha variedade e complexidade nos nove milhões de hectares do nosso pequeno país. A cada passo se encostam várzeas fertilíssimas a terrenos magros e secos, zonas de regadio a zonas de sequeiro, terrenos naturalmente pobres que o trabalho do homem tornou ricos a terrenos naturalmente ricos que têm sido conservados na mediania.

Quanto à variedade de tipos de pequenas e grandes explorações, ela corresponde de certa forma à variedade das culturas, mas corresponde também (principalmente no que diz respeito ã grande exploração) à mais elevada ou mais baixa composição orgânica do capital. A pequena exploração do seareiro do Alentejo distingue-se em área, rendimentos, tipos de cultura, da pequena exploração das várzeas do Minho, e uma e outra da pequena exploração nas areias da Aguçadoura ou da Gafanha, do regadio beirão ou da pequena

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exploração dos povos serranos de pastores. A grande exploração alentejana, latifundiária e "extensiva", distingue-se em área, rendimentos, tipos de cultura, da grande exploração arrozeira do vale do Sado e uma e outra da grande exploração duriense ou das lavouras evoluídas dos aluviões do Tejo.

Quanto à não coincidência da grandeza da propriedade e da exploração, convém fixar alguns factos. Há pequenas propriedades com cultura intensíssima e pequenas propriedades com cultura pobre. Há grandes propriedades com cultura "extensiva" e grandes propriedades com elevadíssimos investimentos de capital. Há grandes propriedades subdivididas em pequenas explorações agrícolas e há grandes explorações agrícolas assentes em pequenas e médias propriedades.

Não se tendo em conta toda esta gama de variedades e diferenças na agricultura portuguesa, e tomando a área dos prédios rústicos como única medida de grandeza da exploração, é-se conduzido inevitavelmente aos erros mais grosseiros. Uma mesma área pode indicar uma grande, uma média ou uma pequena exploração. Assim, por exemplo, enquanto, no Alentejo, 10 ha da seara em terras pobres são uma pequena exploração, os mesmos 10 ha em regiões de regadio podem ser uma grande exploração.

Compreendidas, porém, estas restrições ao significado das diferenças da área dos prédios rústicos, é ainda essa área uma base indispensável para o estudo da divisão de propriedade.

A tabela 12 indicando por distritos a área média prédios rústicos, confirma o apontado esboço.

Ao sul do Tejo, áreas médias distritais de 8, 13, 18 e 20 ha. Ao norte do Tejo, áreas médias desde menos de 3.000 a pouco mais de 8.000 metros quadrados. Na zona intermédia, ao longo do Tejo, áreas médias um pouco superiores a 1 ha.

As manchas discordantes reflectindo-se na área média de 1,8 ha no distrito de Faro e, embora em menor grau, na área média relativamente elevada nos distritos transmontanos e da Guarda. A diferenciação entre as regiões da grande e da pequena propriedade aparece com nitidez.

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Dito isto mesmo de outra maneira: ao notar-se que nos distritos alentejanos e de Setúbal há, em média, um mínimo de 5 e um máximo de 12 prédios rústicos por quilómetro quadrado, enquanto no distrito do Porto a média sobe a quase 200 prédios por quilómetro quadrado, nos de Braga, Leiria e Coimbra fica entre 200 e 300 e nos de Viseu, Aveiro e Viana do Castelo excede os 300 prédios rústicos por quilómetro quadrado, tem-se uma visão clara da desproporção entre o norte e o sul do Tejo.

TABELA 12Área média dos prédios rústicos(1)

(1949)Distritos Superfície

(ha)Número

de prédiosÁrea média

(ha)Aveiro 270.820 910.086 0,2976Beja 1.027.611 78.864 13,03Braga 273.020 638.695 0,4275Bragança 654.563 1.117.879 0,5855Castelo Branco 670.365 572.060 1,17Coimbra 395.576 1.129.783 0,3501Évora 738.828 42.005 17,58Faro 507.160 281.205 1,80Guarda 549.616 660.407 0,8322Leiria 343.508 836.122 0,4108Lisboa 274.700 215.502 1,27Portalegre 613.288 73.465 8,34Porto 228.188 443.432 0,5145Santarém 668.924 463.403 1,44Setúbal 510.548 25.971 19,65Viana do Castelo 210.838 743.742 0,2835Vila Real 423.820 750.437 0,5645Viseu 500.580 1.587.769 0,3153Continente 8.861.956 10.570.827 0,8374

Essa desproporção é, porém, nitidamente mais acentuada do que as áreas médias dos prédios rústicos por distrito deixam prever. Isto resulta de que é muito elevado o número de pequenos prédios existentes nas zonas de grande propriedade e é importante a área ocupada pelos grandes nas

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zonas de pequena propriedade. E assim a área efectiva dos prédios que predominam nas zonas de pequena propriedade é incomparavelmente superior à área média geral dos prédios dessas zonas, e a área efectiva dos prédios que predominam nas zonas de pequena propriedade é muito inferior à área média geral dos prédios dessas zonas.

A área média dos prédios rústicos no distrito de Portalegre é apenas de 8 ha, mas (conforme veremos em pormenor) 56% da superfície do distrito são ocupados por prédios de mais de 250 ha e 17% por prédios de mais 1.000 ha, não sendo raros os prédios de mais de 4.000 e 5.000 ha. (Só a Herdade da Torre das Vargens do Marquês da Fronteira, com uma produção de cortiça de 300.000 arrobas no valor de 20.000 contos, tem cerca de 10.000 ha.)

A área média no distrito de Évora é de 18 ha, mas (conforme veremos em pormenor) 67% da superfície do distrito são ocupados por prédios de mais de 250 ha e 18% por prédios de mais de 1.000 ha, não sendo raros os prédios que ultrapassam os 5.000 ha.

A área média no distrito de Setúbal é de 20 ha; na parte do distrito de Santarém ao sul do Tejo é de 15 ha; mas, nas regiões do pliocénico, sobe a 70% da área total a superfície ocupada por prédios de mais de 200 ha(2), sendo aí numerosos os prédios gigantes com milhares e milhares de hectares. Os da Casa de Palmeia sobem a 5000 ha; os da Casa Agrícola da Barrosinha, da Soc. Abel Pereira da Fonseca, a 5.000; as Herdades dos Fidalgos e da Mata do Duque do Cadaval, a 7.000; os da antiga Casa Agrícola de Portugal, a 13.000; a Herdade da Com-porta atinge 15.000; as herdades do Rio Frio e da Palma, assim como os latifúndios da Companhia das Lezírias, atingem 16.000 a 17.000 ha.

Quanto aos distritos onde predomina a pequena propriedade, onde a área média dos prédios rústicos oscila entre 0,3 e 0,8 ha, abundam as courelas de 1 décimo, um vigésimo de hectare e ainda menos, não sendo raras as de 1 centésimo de hectare.

Uma indicação esclarecedora é fornecida pelo número de prédios com rendimentos colectáveis inferiores a 15$00. Eles sobem a mais de 50% nos distritos de Bragança, Coimbra e Viseu; passam de 40% no distrito de Leiria; passam de 30%

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nos de Aveiro, Viana do Castelo e Vila Real(3). Em contraste com este número elevadíssimo de courelas insignificantes não deixa de haver nas zonas de pequena propriedade prédios de grande extensão e valor. Aguardando elementos que adiante se verão, cite-se, desde já, que com rendimentos colectáveis superiores a 20 contos (valor oficial dos prédios superior a 400 contos, mas valor real superior a 2.000) encontramos 11 no distrito de Aveiro; 2 no distrito de Braga; 18 no de Bragança; 26 no de Coimbra; 15 no de Leiria; 1 no de Viana do Castelo; 13 no de Vila Real; 21 no de Viseu, etc. É fácil concluir que a grande maioria dos prédios destes distritos tem extensão muito inferior à área média indicada.

A área média dos prédios rústicos não é pois mais do que indicação geral que, mal compreendida, leva a uma ideia menos exacta do real panorama da divisão da propriedade. Como sublinhou Lénine, os números médios referentes à divisão da propriedade "são fictícios e produzem uma ilusão de bem-estar geral"(4). Nas regiões de grande propriedade, a média esconde a extensão desmedida das grandes propriedades; nas regiões de pequena propriedade, a média diminui a gravidade da situação dos pequenos agricultores.

Essa mesma diferenciação entre as zonas as aproxima entretanto. A existência de numerosos pequenos prédios nas regiões de grande propriedade e de grandes nas regiões de pequena, cria, dentro de umas e outras, um contraste entre a grande e a pequena produção ainda mais vivo que o existente entre as várias regiões. Como adiante se verá, apesar das notáveis diferenças do tamanho dos prédios entre o Norte e o Sul, por quase todo o País (incluindo regiões de pequena propriedade) verifica-se a concentração da maior parte da terra num reduzido número de mãos.

As Áreas Médias dos Prédios Rústicos

A tabela 13, classificando os concelhos do continente, segundo a área média dos prédios rústicos, apresenta um quadro geral da situação.

A tabela pormenoriza e comprova o panorama anteriormente esboçado. Vêem-se nos distritos do sul do Tejo (excepto Algarve) elevadas áreas médias em todos os concelhos, sendo apenas em 7, no total de 55 concelhos inferiores a 5 ha, em nada menos de 31 concelhos superiores

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a 10 ha e em 18, a 20 ha. Vê-se nos distritos intermédios (Lisboa, Santarém e Castelo Branco) e no de Faro, com a sua parte litoral discordante, a diversidade de áreas médias de concelho para concelho. Vêem-se, nos distritos transmontanos e no da Guarda, por influência dos solos pobres serranos, das manchas de grande propriedade e dos 25% de superfície baldia no caso de Vila Real, as áreas médias não desceram abaixo dos 3.000 metros quadrados e excederam na maioria dos casos (em 34 concelhos, no total de 40) o meio hectare. Nos restantes distritos do norte do Tejo (Aveiro, Braga, Coimbra, Leiria, Porto, Viana do Castelo e Viseu) predominam os concelhos com baixas áreas médias: no total de 116 concelhos, a área média dos prédios rústicos é inferior a 0,3 ha em 39 e apenas em 27 excede o meio hectare.

A importância do assunto justifica uma análise mais detalhada.

No distrito de Aveiro, onde em nenhum concelho a área média dos prédios rústicos alcança o meio hectare, destacam-se três concelhos com áreas médias inferiores a um quinto de hectare: Oliveira do Bairro com 1.842 metros quadrados, Vale de Cambra com 1.622 e Murtosa com 1.598.

No distrito de Beja, apenas no concelho de Cuba a área média é inferior a 5 ha (4,4), ficando compreendida entre 5 e 10 ha em 4 concelhos, entre 10 e 20 em 7, e ultrapassando os 20 ha em dois: Odemira com 28 e Castro Verde com 48 ha.

No distrito de Braga, a área média dos prédios rústicos é inferior a 0,3 ha em 2 concelhos (Esposende com 2.294 metros quadrados e Amares com 2.320), e superior a meio hectare em 4: Terras do Bouro, Vila Nova de Famalicão e os dois concelhos de Basto, estes últimos com quase 0,9 ha.

TABELA 13Concelhos classificados segundo as áreas médias dos prédios

rústicos(5)

(1949)

DistritosHectares

Até 0,3

0,3-0,5

0,5-1

1-2

2-5

5-10

10-20

Mais de 20 Total

Aveiro 9 10 — — — — — — 19

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Beja — — — 1 4 7 2 14Braga 2 7 4 — — — — — 13Bragança — 2 8 2 — — — — 12Castelo Branco 1 1 2 5 1 1 — — 11Coimbra 5 11 — 1 — — — — 17Évora — — — 1 4 3 5 13Faro — — 3 4 8 1 — — 16Guarda — — 9 4 1 — — — 14Leiria 5 3 5 3 — — — — 16Lisboa — — 5 6 1 1 — — 13Portalegre — — 1 3 3 4 4 15Porto — 7 9 — — — — — 16Santarém — 3 4 5 2 2 2 2 20Setúbal — — — — 1 6 1 5 13Viana do Castelo 7 3 — — — — — — 10Vila Real — 4 9 1 — — — — 14Viseu 11 9 3 1 — — — — 24Continente 40 60 61 33 19 22 17 18 270

No distrito de Bragança, têm áreas médias inferiores a meio hectare dois concelhos (Bragança e Vinhais) e superiores a um hectare outros dois (Torre de Moncorvo com 1,1 e Freixo com 1,9).

No distrito de Castelo Branco há quatro concelhos com áreas médias inferiores a 1 ha (Oleiros, Vila do Rei, Sertã e Proença-a-Nova, destacando-se este último com 2.767 metros quadrados) e dois concelhos com mais de 2 ha: Penamacor com 3,6 e Idanha-a-Nova com 7,2.

No distrito de Coimbra, onde apenas no concelho de Pampilhosa da Serra a área média excede meio hectare (1,0) destacam-se dois concelhos com menos de um quinto de hectare: Penela com 1.884 metros quadrados e Miranda do Corvo com 1.776.

No distrito de Évora, apenas no concelho de Borba a área média é inferior a 5 ha (3,8), ficando compreendida entre 9 e 10 ha em 4 concelhos, entre 10 e 20 em 3 e ultrapassando os

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20 ha em 5 concelhos: Portei, com 21; Mora, com 25; Arraiolos, com 26; Évora, com 39, e Montemor-o-Novo, com 48.

No distrito de Faro, apenas em 3 concelhos (Alportel, Loulé e Olhão) a área média não alcança 1 ha, embora lhe esteja muito próxima, e apenas num concelho excede os 5 ha: Aljezur, com 5,2.

No distrito da Guarda, apenas no concelho de Manteigas a área média ultrapassa os 2 ha (2,5), ficando em todos os outros concelhos compreendida entre o meio hectare e o hectare e meio. No distrito de Leiria, entre os 5 concelhos com áreas médias inferiores a 0,3 ha (Pombal, Ansião, Figueiró, Alvaiázere e Pedrógão) destaca-se este último com 1.131 metros quadrados. Outros não andam longe do hectare. Três apresentam áreas médias superiores a 1 ha.

No distrito de Lisboa, onde em nenhum concelho a área média dos prédios rústicos é inferior a meio hectare, destacam-se dois concelhos com mais de 2 ha: Azambuja, com 2,9, e Vila Franca, com 5,8. No distrito de Portalegre, a área média não chega a dois hectares no concelho de Gavião (1,7), está compreendida entre 2 e 5 ha em 3 concelhos (Nisa, Marvão e Campo Maior), entre 5 e 20 ha em 7 e passa de 20 ha em 4 concelhos: Arronches, com 23, Ponte de Sor, com 24, Monforte, com 30, e Avia, com 37.

No distrito do Porto, a área média não atinge 0,4 ha em 3 concelhos (Felgueiras, Paços de Ferreira e Paredes) e em nenhum passa de 1 ha.

No distrito de Santarém, é nítida a diferenciação entre os 7 concelhos com áreas médias inferiores a 1 ha, os 9 com áreas médias de 1 a 10 ha e os 4 com mais de 10 ha. Entre os primeiros destacam-se os de V. N. de Ourem, Sardoal e Ferreira do Zêzere (todos ao norte do Tejo) com menos de meio hectare. Os últimos 4 (todos ao sul do Tejo) são Saívaterra de Magos com 11 ha; Chamusca, com 16; Coruche, com 30, e Benavente, com 39.

No distrito de Setúbal, apenas no concelho de Almada a área média dos prédios rústicos é inferior a 5 ha, e ultrapassa os 20 ha em 5 concelhos: Montijo e Sines, com 21; Santiago

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do Cacem, com 29; Grân-dola, com 41, e Alcácer do Sal, com 67.

No distrito de Viana do Castelo, onde a área média dos prédios rústicos não atinge o meio hectare em qualquer concelho e é inferior a 0,3 em 7, destacam-se dois concelhos com áreas médias inferiores a um quinto de hectare: Valença do Minho com 1.813 metros quadrados e Monção com 1.856.

No distrito de Vila Real, 4 concelhos possuem áreas médias inferiores a meio hectare: Alijo, Chaves, Santa Marta de Penaguião e Vila Real. Só um concelho possui áreas superiores a 1 ha: Ribeira de Pena, com 1,2.

No distrito de Viseu, entre 11 concelhos com áreas médias inferiores a 0,3 ha, destacam-se dois com menos de um quinto de hectare: Castro Daire, com 1.973, e Santa Comba Dão, com 1.789 metros quadrados. Apenas no concelho de S. João da Pesqueira a área média sobe a 1 ha.

São de notar entre os 35 concelhos com mais de 10 ha de área média dos prédios rústicos os 18 concelhos citados com mais de 20 ha, dos quais três com mais de 30 e menos de 40 ha, 3 com mais de 40 ha e menos de 50 ha, e 1 com mais de 60 ha. São de notar, também, entre os 40 concelhos com área média inferior a 3000 metros quadrados, os 10 citados onde a área média não atinge os 2000 metros quadrados. Valorizadas estas diferenças pelo que atrás se disse acerca da real extensão dos prédios predominantes nas zonas de pequena e de grande propriedade — extensão incomparavelmente superior à média nas zonas de grande propriedade e muito inferior à média nas de pequena — tem-se uma ideia dos violentos contrastes regionais.

Considerando o número e superfície territorial dos concelhos das diversas categorias, temos o seguinte resumo:

  Número Hectares PercentagemCom menos de 0,5 ha 100 2.189.170 24,7Com 0,5 — 2 ha 94 2.843.143 32,1Com 2 — 5 ha 19 599.505 6,8Com mais de 5 ha 57 3.217.374 36,4

Total 270 8.849,192 100,0

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Se tivermos por concelhos onde predomina a grande propriedade aqueles onde a área média dos prédios rústicos é superior a 5 ha e concelhos onde predomina a pequena propriedade aqueles onde a área média é inferior a meio hectare, vemos que, enquanto os primeiros ocupam 36% do território, os últimos ocupam apenas 25%.

Quanto aos restantes concelhos, a área média de 0,5 a 5 ha não é por si suficientemente característica. Dos 19 concelhos com área média de 2 a 5 ha, na grande maioria (salvo talvez alguns dos algarvios) predomina em absoluto a grande propriedade; no concelho de Cuba, por exemplo, a área média dos prédios rústicos não chega aos 5 ha, mas, conforme veremos em detalhe, as grandes propriedades (de mais de 200 ha) ocupam mais de 50% da superfície do concelho. Dos 94 concelhos com áreas médias de 0,5 a 2 ha, tão-pouco se pode afirmar serem concelhos onde predomina a pequena propriedade — uns há que sim, outros há que não — e, em todo o caso (como adiante mostraremos), não se pode dizer predominar neles a pequena exploragão agrícola. Isto significa que os concelhos onde predomina a grande propriedade devem ocupar área superior àqueles onde predomina a pequena.

Todas as áreas médias dos prédios rústicos atrás referidas foram calculadas em relação à superfície territorial. Não se descontou a área baldia, porque esta constitui, de certa forma, para povoações de pastores, uma compensação para a reduzida área dos prédios rústicos. Mas, para que se fique com uma mais correcta ideia no que respeita às regiões onde são mais extensos os baldios, aqui se acrescenta alguma coisa.

Ainda hoje os baldios ocupam em Portugal 407.544 ha, correspondendo a 4,6% da superfície do País. Em alguns distritos, e mais particularmente em alguns concelhos, a área baldia é muito considerável. No distrito de Viana do Castelo a área baldia sobe a 27% da superfície territorial, passando de 10% em todos os 10 concelhos, de 20% em 7 e de 30% em 4 — Melgaço, Ponte de Lima, Caminha e Paredes de Coura — indo nos últimos dois além de 40%. No distrito de Vila Real a área baldia sobe a 25%, passando de 10% em 5 dos 14 concelhos e subindo a 40% no de Boticas; a 52% no de Vila Pouca de Aguiar; a 53% no de Montalegre; a 68% no de

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Ribeira de Pena! No distrito de Viseu, a área baldia sobe a 15%, passando de 10% em 11 dos 24 concelhos e de 20% em 5 —Castro Daire, Moimenta, Oliveira de Frades, Sátão e Vila Nova de Paiva — no último dos quais atinge 57%! No distrito de Coimbra, a área baldia sobe a 9%, passando de 10% em 8 dos 17 concelhos e indo além de 20% no de Arganil. Fora estes quatro distritos em que a área baldia atinge, no conjunto distrital, mais elevadas percentagens, em relação à superfície total há, dispersos por quase todo o País, concelhos onde os baldios têm grande extensão. Referindo apenas àqueles onde os baldios ocupam mais de 10% da superfície total, são de citar: entre 10% e 20%, Sever do Vouga e Arouca, no distrito de Aveiro, Gouveia, no da Guarda, V. N. de Ourem, no de Santarém; entre 20% e 25%, Covilhã, no distrito de Castelo Branco; Seia, no da Guarda, e Castanheira de Pêra, no de Leiria; mais de 30%, Alcanena, no distrito de Santarém, e Porto de Mós e Batalha, no de Leiria. Deve ainda referir-se que, no distrito de Bragança, embora não atingindo tão elevadas percentagens, a área baldia sobe a 25 000 hectares, 4% da superfície do distrito(6).

É evidente que, descontada a área baldia, a área média dos prédios rústicos é efectivamente muito inferior à que atrás foi indicada. No conjunto de cada distrito, as diferenças não são sensíveis, salvo no de Viana do Castelo, em que a área média referida à superfície total era de 2.835 metros quadrados e passa a ser de 2.074, no de Vila Real, em que passa de 5.645 para 4.222 metros quadrados, e no de Viseu, em que passa de 3.153 para 2.690 metros quadrados, Mas em alguns concelhos as diferenças são notáveis. É o que sucede com particular destaque no distrito de Viana do Castelo, o distrito do continente onde é mais baixa a área dos prédios rústicos calculada em relação à superfície total, e onde a situação apa-rece agravada pelos extensos baldios: no concelho de Ponte de Lima a área média desce de 0,3 para 0,2 ha; nos de Caminha e Melgaço, onde excedia os 0,2 ha, para respectivamente 1.533 e 1.434 metros quadrados; nos de Paredes de Coura, de quase 0,4 ha para menos de 0,2. No distrito de Viseu são de sublinhar os concelhos de Oliveira de Frades e de Vila Nova de Paiva, em que vemos a área média dos prédios rústicos descer respectivamente de 2.409 para 1.477 e de 2.892 para 1.234 metros quadrados! No distrito de Coimbra, nos concelhos de Miranda do Corvo e Penela, a área média, já inferior a 0,2 ha, desce para 0,15. E o concelho de

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Ribeira de Pena (Vila Real), que se apresentava com a ilusória área média de 1,2, revela-se afinal como tendo menos de 0,4 ha. Vê-se desta forma agravar-se mais ainda a situação dos pequenos agricultores nas regiões de minifúndio. Pensando-se que não faltam grandes prédios rústicos nas regiões de pequena propriedade, tem-se uma ideia do extraordinário retalhamento e das consequentes dificuldades de cultura e de vida.

O quadro não está, porém, ainda completo. Além dos baldios, haveria a descontar a área submetida ao regime florestal, na parte respeitante a propriedades do Estado e dos corpos e corporações administrativas. Por falta de elementos convenientes, desistimos de fazer esse cálculo, embora lhe atribuamos importância. Há casos em que só descontando a área baldia e tal área submetida ao regime florestal se pode formar uma ideia correcta da área média dos prédios rústicos. Tal o caso do distrito de Leiria, e em especial do concelho da Marinha Grande, dada a grande extensão das matas do Estado; tal o caso do Marão, etc. Em vários concelhos as diferenças são muito sensíveis. No concelho de Mondim de Basto, distrito de Vila Real, por exemplo, a área média dos prédios rústicos de cerca de 1 ha em relação à superfície total do concelho desce para menos de meio hectare, descontada a área submetida a regime florestal. Há um concelho, Mira, no distrito de Coimbra, em que a área média dos prédios rústicos em relação à superfície total orça pelo meio hectare e que, descontada a área submetida a regime florestal, desce para 1293 metros quadrados!

Nestes concelhos a terra é uma manta de retalhos, roubada ainda pelas extremas, pelos caminhos e carreiros, pelas serventias.

Os Prédios e os Proprietários

Sendo o número de proprietários muito inferior ao de prédios, a área média por proprietário é muito superior à área média por prédio. Completando a tabela 12, a tabela 14 mostra, a par da área média dos prédios rústicos, a área média por proprietário e o número de prédios por proprietário.

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TABELA 1 4Prédios e área média por proprietário rústico(7)

(1949)

DistritosNúmero 

de proprietário

s

Prédiospor

proprietário

Hectarespor

proprietário

Hectares 

por prédio rústico

Aveiro 122.112 7,5 2,2 0,3Beja 31.059 2,5 33,0 13,0Braga 79.246 8,1 3,4 0,4Bragança 78.727 14,2 8,3 0,6Castelo Branco 74.951 7,6 8,9 1,2Coimbra 147.422 7,7 2,6 0,4Évora 17.178 2,5 43,0 17,6Faro 73.378 3,8 6,9 1,8Guarda 108.414 6,1 5,0 0,8Leiria 116.363 7,2 3,0 0,4Lisboa 66.655 3,4 4,1 1,3Portalegre 22.402 3,3 27,3 8,3Porto 66.268 6,7 3,4 0,5Santarém 108.808 4,3 6,1 1,4Setúbal 15.763 1,6 32,3 19,7Viana do Castelo 88.654 8,4 2,3 0,3Vila Real 88.688 8,5 4,7 0,6Viseu 171.281 9,3 2,9 0,3Continente 1.477.369 7,2 5,9 0,81

Os números da tabela 14 divergem muito dos apresentados num estudo recente de grande responsabilidade(8), onde as médias por proprietário aparecem singularmente diminuídas. A área média por proprietário no distrito de Beja, por exemplo, não seria 33, mas 15 ha, no de Évora, não 43, mas 23 ha, e assim sucessivamente em todos os distritos. O motivo desta redução substancial é muito simples: no citado documento calculou-se a área média e o

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número de prédios por proprietário rústico incluindo nos proprietários rústicos... os proprietários de prédios urbanos! E, por se estar com a mão na massa, pode-se acrescentar que, nesse mesmo estudo, tomando-se a superfície do distrito de Coimbra como sendo de 295.576 ha em vez dos 395.576 que na realidade tem (até aqui simples gralha), se calculou na base dessa área sincopada a média de hectares por proprietário! Tal o rigor dos grandes especialistas governamentais.

Apesar de que, na tabela 14, se trata de cálculo feito em relação à superfície territorial, e não se devem, por isso, esquecer as observações anteriores, algumas indicações de valor aí aparecem. A desproporção entre a área média por proprietário e a área média por prédio, ou seja, o elevado número médio de prédios por proprietário - subindo a mais de 6 em 11 distritos e atingindo a cifra "astronómica" de 14 no distrito de Bragança - e o facto de ser esse número mais elevado nos distritos onde predomina a pequena propriedade, indicam, por um lado, a dispersão das pequenas explorações por vários retalhos minúsculos e, por outro lado, a existência de grandes proprietários de pequenas propriedades. O facto de, em nenhum distrito, ser inferior a 2 ha a área média por proprietário e ultrapassar os 4 ha em 11 distritos, confirma esta existência de grandes proprietários em todas as regiões do País, e não apenas onde predomina a grande propriedade.

Assim como os grandes prédios rústicos ocupam importante área nas zonas de pequena propriedade e há um elevado número de pequenos prédios nas zonas de grande propriedade, assim também há grandes proprietários nas primeiras e elevado número de pequenos proprietários nas segundas. Isto significa que o número médio de prédios e as áreas médias que cabem aos pequenos proprietários nas zonas de pequenas propriedades são muito inferiores às médias gerais dessas zonas, e o número médio de prédios e as áreas médias que cabem aos grandes proprietários nas zonas de grande propriedade são muitíssimo superiores às médias gerais dessas zonas. Assim como seria errado supor, por exemplo, que a diferença de extensão entre a grande propriedade alentejana e a pequena propriedade minhota se resume à diferença entre os 13 ha de área média dos prédios rústicos no distrito de Beja ou os 18 ha no de Évora e os 3.000 metros quadrados no distrito de Viana do Castelo ou os 4.000

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no de Braga, assim também errado seria supor que a diferença entre o grande proprietário alentejano e o pequeno proprietário minhoto se resume à diferença entre os 33 ou 43 ha que cabem em média aos proprietários dos distritos de Beja e Évora e os 2 ou 3 ha que cabem em média aos proprietários dos distritos de Viana do Castelo e de Braga. Os grandes proprietários alentejanos têm incomparavelmente mais; e os pequenos proprietários minhotos, consideravelmente menos.

Se for tomado como número de pequenos proprietários o número de colectas respeitantes a rendimentos colectáveis inferiores a 500 escudos e como o número de grandes proprietários o número de colectas respeitantes a rendimentos colectáveis superiores a 5 contos, pode ter-se uma ideia grosseira do número de pequenos proprietários nas zonas de grande propriedade e de grandes proprietários nas zonas de pequena propriedade.

No distrito de Beja, seriam pequenos proprietários 28.232, no total de 31.059 proprietários. No distrito de Évora, 14.724, no total de 17.178. No distrito de Portalegre, 19.992, no total de 22.402. No distrito de Setúbal, 14.236, no total de 15.763(9). Isto mostra que a esmagadora maioria dos proprietários nas zonas de grande propriedade - 89% no conjunto destes quatro distritos - é constituída por pequenos proprietários. E, como a área que em média lhes pertence é muitíssimo inferior à área média por proprietário - 72% dos proprietários na freguesia de Cuba, por exemplo, não chegam a ter em média 1 ha, quando a área média por proprietário é de 14 ha(10) -, isto confirma que as terras pertencentes em média aos grandes proprietários excedem, sem comparação possível, as médias distritais.

Quanto às zonas de pequena propriedade, também não escasseiam os grandes e mesmo os muito grandes proprietários. No distrito de Braga haveria nada menos de 140, dos quais 4 muito grandes proprietários (colectas de mais de 10 contos); no distrito do Porto, 32, dos quais 4 muito grandes; no distrito de Viseu, 58, dos quais 14 muito grandes; no distrito de Coimbra, 36, dos quais 13 muito grandes; no distrito de Leiria, 24, dos quais 6 muito grandes, etc. Tendo-se em conta que muitos dos grandes proprietários são colectados em mais de que um concelho (e que, portanto,

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haverá quem num só concelho não atinja estas elevadas colectas, mas as atinja na soma das várias colectas) é de concluir que estes números pecam apenas por modéstia. Mesmo assim, como a tais proprietários correspondem áreas muito vastas, as terras pertencentes em média aos pequenos proprietários nestas zonas são evidentemente muito inferiores às médias distritais.

São escassíssimos os elementos de estudo das grandes explorações nas regiões de pequena propriedade. Mas chegam e sobram para desmentir quantos afirmam ou julguem serem elas aí inexistentes, e tomem as áreas médias como padrão de que a realidade nunca se afasta - aproximando-se neste juízo da criança que supunha terem todos os italianos 1,62 m por tal ser a sua estatura média.

Num inquérito a uma freguesia de um concelho do Douro Litoral, onde a área média dos prédios rústicos em 1939 era de meio hectare, calcula-se em 10% a superfície ocupada por grandes propriedades e cita-se um proprietário, que não se diz ser dos maiores, possuindo mais de 60 ha, dos quais mais de 50 explorados por conta própria(11). Na Cova da Beira, ocupando parte dos concelhos da Covilhã, Belmonte, Penamacor e Fundão - concelhos estes em que a área média dos prédios rústicos é respectivamente de 1,1, 6,3, 6 e 1,5 ha - as propriedades com mais de 25 ha (grandes propriedades dada a riqueza dos terrenos) ocupam 30% de toda a área territorial(12). No concelho de Montemor-o-Velho, a área média dos prédios rústicos não chega a meio hectare; mas em 1949 houve um seguro de trigo para a produção provável de 726 hectolitros; supondo o peso específico de 79 quilogramas por 100 litros e um rendimento de 10 quintais por hectare essa produção corresponderia a uma seara de 57 ha. Quanto ao Douro, fala-se "na "extrema pulverização das propriedades", mas é geralmente sabido que só os Perreirinhas da Régua possuem 21 grandes quintas do Douro. Os elementos publicados sobre produção de semente de trigo seleccionada e certificada revelam também a existência de grandes proprietários, algumas propriedades dos quais excedem largamente em extensão as baixas áreas médias dos prédios rústicos nos concelhos respectivos: no concelho de Rio Maior, por exemplo, a área média é de 1,3 ha, mas acusa-se uma seara de 42 ha; no concelho de Alenquer a área média é de 1,6, mas duas searas são acusadas com 12 e com 20 ha(13). É

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de presumir não só que os proprietários destas searas-modelo terão muitas outras terras como tam-bém que não serão os únicos grandes nos seus concelhos...

E como último exemplo, repare-se no concelho de Sintra, onde existem mais de 40.000 prédios rústicos cuja área média é de 0,8 ha, e onde, entretanto, só a propriedade da Penha Longa, pertencente ao Dr. Francisco Sampaio Correia de Campos, teria, segundo os jornais que publicaram a notícia, cerca de 10.000 ha(14) - cerca de uma terça parte da superfície do concelho! Este exemplo, tornado público por mero acidente, mesmo reduzido por possível erro de estimativa ou por gralha tipográfica, mostra as grandes surpresas que se escondem no segredo das matrizes e prova, por si só, o que atrás se afirma acerca da situação real que as áreas médias deformam.

Porém, além destes elementos dispersos existem dados recentes relativos a todo Portugal continental, mostrando como são enganadoras as áreas médias dos prédios rústicos tomadas por padrão da divisão da propriedade e como abundam as grandes e mesmo muito grandes propriedades em concelhos por cujas reduzidas áreas médias dos prédios se diria serem de pequena propriedade. Como adiante se mostrará, explorações que, só de cultura arvense, têm mais de 50, 100, 500 e mais hectares, encontram-se com frequência em concelhos cujas áreas médias são inferiores a 2, a 1 ou mesmo a meio hectare. Citamos aqui apenas um exemplo. No concelho de Abrantes, onde a área média dos prédios rústicos é de 2 ha, acusa-se a existência de 60 explorações agrícolas com mais de 50 ha de cultura arvense, das quais 4 com 500 e 1.000 ha, 1 com 1.000 e 2.500 ha e outra com 2.500 e 5.000 ha de cultura arvense(15). Vê-se como enormíssimas propriedades se ocultam atrás de uma modesta área média dos prédios rústicos.

Mesmo sem ter em conta a existência de pequenos proprietários na zona de grande propriedade e de grandes na zona de pequena, o confronto da divisão da propriedade entre uma e outra apresenta, nas suas linhas gerais, um gritante contraste. Enquanto 645.832 proprietários dos distritos de Aveiro, Coimbra, Leiria, Viana do Castelo e Viseu ocupam 1.721.322 ha (reduzidos a menos de um milhão depois de descontada a área baldia e florestal do Estado), 48.237

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proprietários existentes nos distritos de Évora e Beja (ou seja, menos de um décimo do número de proprietários dos citados cinco distritos) ocupam área superior: 1.766.439 ha. Os contrastes regionais ficam ainda mais evidenciados numa outra singela comparação. As herdades da Palma e de Rio Frio ocupam cada qual cerca de 17.000 ha. Os 52.397 prédios existentes em 1949(16) no concelho da Mealhada ocupam, no total, 11.904 ha, isto é, muito menos do que qualquer dessas duas herdades. O mesmo sucede com os 53.690 prédios do concelho de Oliveira de Azeméis, ocupando 15.332 ha; e com os 52.390 prédios do concelho de Sever do Vouga, ocupando 13.152 ha, reduzidos ainda pela existência de vasta área baldia; e com os 91.442 prédios do concelho de Vale de Cambra, ocupando 14.828 ha; e com os 71.678 do concelho de Miranda do Corvo, ocupando 12.728 ha, reduzidos ainda pela existência de vasta área baldia; e com os 70.074 prédios do concelho de Penela, ocupando 13.200 ha, ainda diminuídos de mais de 2.000 ha de área baldia; e com os 62.627 prédios do concelho de Alvaiázere, ocupando 15.864 ha; e com os 63.282 prédios do concelho de Valença do Minho, ocupando 11.470 ha, reduzidos ainda pela elevada área baldia; e com os 52.519 prédios do concelho de Lamego, ocupando 15.108 ha, reduzidos ainda pela elevada área baldia; e com os 61.926 prédios do concelho de Oliveira de Frades, ocupando 14.820 ha, reduzidos a menos de 10.000 depois de descontada a área baldia; e com os 64.266 prédios do concelho de Santa Comba Dão, ocupando 11.496 ha; e com os 58.026 prédios do concelho de Vila Nova de Paiva, ocupando 16.780 ha, reduzidos a menos de metade depois de descontada a área baldia - isto para citar apenas aqueles concelhos que, tendo superfície inferior à da herdade de Palma ou de Rio Frio, têm mais de 50.000 prédios rústicos.

Este enorme contraste dá já uma esclarecedora ideia do real contraste entre a grande e pequena propriedade. Esclarecedora, mas ainda muito incompleta.

As Áreas Médias das Explorações Agrícolas

A ideia da divisão da propriedade, formada na base das áreas médias dos prédios rústicos, é radicalmente corrigida pela determinação, que só agora (pela publicação do número de explorações) as estatísticas permitem, das áreas médias das explorações agrícolas.

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Como mostra a tabela 15, no conjunto continental, enquanto a área média dos prédios rústicos não vai além de 0,8 ha, a área média das explorações agrícolas sobe a 10,4 ha. Em todos os distritos as diferenças são acentuadas. Nos alentejanos, as áreas médias dos prédios rústicos, já consideráveis, quase parecem mesquinhas comparadas com as áreas médias das explorações agrícolas. Assim, no de Portalegre, respectivamente, 8 e 39 ha; no de Évora, 18 e 68; no de Beja, 13 e 51; no de Setúbal, por influência dos seus quatro concelhos alentejanos, coisa semelhante se passa, apresentando 20 ha de área média dos prédios rústicos e 37 ha de área média das explorações agrícolas.

Nos distritos onde predomina a pequena propriedade, também a situação aparece singularmente rectificada. O de Aveiro, com 0,3 ha de área média dos prédios rústicos e 4 ha de área média das explorações; Braga e Leiria, com 0,4 e 5; Bragança, com 0,6 e 18; Coimbra e Viana do Castelo, com 0,3 e 5; Guarda, com 0,8 e 10; Porto, com 0,5 e 4; Vila Real, com 0,6 e 9; e Viseu com 0,3 ha de área média dos prédios rústicos e 6 ha de área média das explorações agrícolas.

Vista a situação em mais pormenor, as diferenças são ainda mais pronunciadas. No continente, 202 concelhos apresentam menos de 3 ha de área média dos prédios rústicos e apenas 68 apresentam mais(18); classificados, segundo a área média das explorações agrícolas, apenas 17 acusam menos de 3 ha e 253 ultrapassam esta média. A superfície dos concelhos com área média dos prédios rústicos inferior a 3 ha sobe a 5.349.013 ha, enquanto a dos concelhos com área média das explorações agrícolas inferior a 3 ha não vai além de 152.478 ha. Isto explica-se, naturalmente, pelo facto de as explorações agrícolas abrangerem, por via de regra, vários prédios rústicos, por vezes muito numerosos, pois, para 850.000 explorações, existem mais de 10 milhões de prédios.

TABELA 15Área. média dos prédios rústicos e das explorações

agrícolas(17)

Distritos Superfície

territorial

Númerode

prédiosrústicos

Númerode

explorações

Área MédiaPrédio

srústic

Expolorações

agrícolas

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(ha) agrícolas osAveiro 270.820 910.086 62.138 0,3 4,4Beja 1.027.61

1 78.864 19.984 13,0 51,4Braga 273.020 638.695 55.826 0,4 4,9Bragança 654.563 1.117.87

9 37.193 0,6 17,6Castelo Branco 670.368 572.060 46.581 1,2 14,4

Coimbra 395.576 1.129.783 75.665 0,4 5,2

Évora 738.828 42.005 10.802 17,6 68,4Faro 507.160 281.205 38.014 1,8 13,3Guarda 549.616 660.407 54.322 0,8 10,1Leiria 343.508 836.122 66.382 0,4 5,2Lisboa 265.956 214.125 49.140 1,2 5,6Portalegre 613.288 73.465 15.696 8,3 39,1Porto 224.168 439.784 57.438 0,5 3,9Santarém 668.924 463.403 66.662 1,4 10,0Setúbal 510.548 25.971 13.781 19,7 37,0Viana do Castelo 210.838 743.742 45.970 0,3 4,6Vila Real 423.820 750.437 47.281 0,6 9,0Viseu 500.580 1.597.76

9 89.312 0,3 5,6Continente

8.849.192

10.565.802 852.187 0,8 10,4

Se, em cada distrito, tomado no seu conjunto, são tão marcadas as diferenças entre as áreas médias dos prédios rústicos e as das explorações agrícolas, ainda mais marcadas elas são considerando a situação concelho por concelho, tanto nas regiões de grande propriedade como nas de pequena. A grandeza média das explorações agrícolas, que a área média dos prédios rústicos escondia, aparece agora numa medida mais exacta, revelando que Portugal, ao contrário do que muitos supunham, está longe de ser um país com vastas regiões onde predomina o minifúndio. A elevada grandeza

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média das explorações prova a existência, por todo o País, e com posição dominante, de explorações de área considerável.

A tabela 16, classificando os concelhos do continente segundo a área média das explorações agrícolas, dá uma ideia da situação.

TABELA 16Concelhos classificados segundo a área média das

explorações agrícolas(19)

Distritos Até 3 ha

3-5 ha

5-10 ha

10-20 ha

20-50 ha

50-100 ha

Mais de

100 ha

Total

Aveiro 4 9 6 - - - - 19Beja - - - - 6 7 1 14Braga 2 4 6 1 - - - 13Bragança - - 1 7 4 - - 12Castelo Branco - - 4 5 2 - - 11Coimbra -- 9 7 1 - - - 17Évora - - - - 4 7 2 13Faro - - 4 9 3 - - 16Guarda - - 6 8 - - - 14Leiria 3 4 8 - 1 - - 16Lisboa - 7 3 2 1 - - 13Portalegre - - - 2 5 7 1 15Porto 5 4 6 1 - - - 16Santarém - 4 9 4 1 2 - 20Setúbal - - 2 4 6 - 1 13Viana do Castelo - 6 4 - - - - 10Vila Real 2 1 4 7 - - - 14Viseu 1 9 11 3 - - - 24Continente 17 57 81 53 33 23 5 270

Apenas em 17 concelhos se registam áreas médias das explorações agrícolas inferiores a 3 ha. Precisamente metade do número dos concelhos estudados situa-se entre 5 e 20 ha.

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Sessenta e um concelhos apresentam mais de 20 ha e 28 deles mais de 50.

Considerados o número de concelhos e a superfície territorial respectiva segundo as diversas categorias teremos:

  Número Hectares PercentagemCom menos de 5 ha 74 1.273.868 14,4

Com 5- 20 ha 135 3.994.038 45,1Com mais de 20 ha 61 3.581.286 40,5

  270 8.849.192 100,0

Verifica-se a reduzida quota do território nacional que cabe aos concelhos onde a área média das explorações agrícolas é inferior a 5 ha e como cabem mais de dois quintos do território àqueles onde a área média ultrapassa os 20 ha. Como adiante se confirmará com novos elementos, isto mostra a elevada extensão das explorações agrícolas predominantes.

A importância do problema justifica uma observação mais detida. Começaremos pelos distritos de grande propriedade.

No distrito de Portalegre, o concelho que apresenta mais alta área média das explorações agrícolas é Monforte, com 128 ha. Seguem-se Alter do Chão, com 92; Avis, com 91; Campo Maior, com 67; Arronches, com 63, e Eivas, Fronteira e Castelo de Vide entre 50 e 55 ha. São estes os oito concelhos com mais de 50 ha de área média das explorações agrícolas. Crato, com 48 ha, aproxima-se deles. Ponte de Sor e Sousel rondam os 40 ha. Os restantes concelhos descem abaixo de 30 ha, notando-se as mais baixas áreas médias das explorações agrícolas nos concelhos de Portalegre e Marvão, com 18 e 12 ha, respectivamente.

No distrito de Évora, dois concelhos aparecem com mais de 100 ha de área média das explorações: Montemor-o-Novo com 118 e Arraiolos com 101 ha. Seguem-se Évora com 91; Viana, com 81; Mourão, com 72; Mora, com 67; Alandroal e Portei, com 60; Redondo, com 56. São estes os nove concelhos com mais de 50 ha de área média. Dos restantes quatro, Reguengos, Vila Viçosa e Estremoz, com 48,45 e 39 ha, não se afastam muito dos últimos. E mesmo o concelho

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que aparece com mais baixa área média, Borba, ainda passa dos 20 ha.

No distrito de Beja, destaca-se Barrancos com 115 ha. Seguem-se Alvito, com 84; Mértola, com 66; Aljustrel, Beja, Castro Verde, Ferreira e Serpa, apresentando áreas médias das explorações agrícolas compreendidas entre os 50 e os 57 ha. Com áreas médias de 40 a 50 ha aparecem cinco concelhos (Almodôvar, Moura, Odemira, Ourique e Vidigueira) e apenas Cuba, com 29 ha, figura abaixo dos 30 ha.

Do distrito de Setúbal, Alcácer do Sal, atrás citado como apresentando a mais elevada área média dos prédios rústicos no continente (67 ha) aparece como o concelho onde, de longe, é mais elevada a área média das explorações agrícolas: 313 ha. Os três outros concelhos alentejanos do distrito, Santiago do Cacém, Sines e Grândola, com, respectivamente, 47, 45, 43 ha, aproximam-se dos demais concelhos da sua província. Segue-se Palmeia, com 26; Setúbal e Sesimbra, com 32; Montijo e Seixal, com 19 ha. Almada e Moita, com 9 e 8 ha, são os únicos onde a área média das explorações agrícolas é inferior a 10 ha.

Estudados os quatro distritos onde predomina em absoluto a grande propriedade, veremos em seguida o de Faro e os três intermediários entre a zona sul e a norte, situados ao longo do Tejo.

No distrito de Faro, três concelhos apresentam áreas médias superiores a 20 ha (Alcoutim, 40; Aljezur, 29, e Castro Marim, 23), outros três entre 15 e 20 (Vila do Bispo, Vila Real e Tavira) e seis entre 10 e 15 ha (Portimão, Silves, Lagos, Monchique, Loulé e Albufeira). Só nos quatro restantes a área média das explorações agrícolas desce abaixo dos 10 ha.

No distrito de Lisboa, três concelhos se destacam com áreas médias relativamente elevadas: Oeiras com 37 ha, Cascais e Vila Franca de Xira, com 13. Nos restantes concelhos do distrito, as áreas médias estão compreendidas entre o mínimo de 3,4 ha em Torres Vedras e 8 ha em Azambuja.

No distrito de Santarém há um nítido contraste entre três grupos de concelhos. Uns com muito elevadas áreas médias das explorações agrícolas: Co-ruche, com 53 ha; Benavente,

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com 51; Chamusca, com 48. Outros (Constância, Salvaterra, Almeirim e Abrantes) com áreas médias entre 10 e 14 ha. Os restantes treze concelhos com menos de 10 ha, ficando no fundo da escala Alcanena, Ferreira do Zêzere, Sardoal e Tomar com menos de 5 ha.

No distrito de Castelo Branco, observam-se semelhantes contrastes. À frente, Idanha-a-Nova, com 48 ha e Vila Velha de Ródão, com 26. Depois Oleiros, Castelo Branco e Penamacor com, respectivamente, 19, 18 e 17 ha, e Proença-a-Nova e Vila do Rei, com pouco mais de 10 ha. Finalmente os restantes quatro concelhos com menos de 10 ha, embora todos acima de 5.

Passando às chamadas regiões de pequena propriedade, alguns elementos merecem atenção.

No distrito de Bragança, tão retalhado em prédios rústicos, a área das explorações é singularmente elevada. Já se viu, na tabela 16, ser de 18 ha para o conjunto do distrito. Vista a situação concelho por concelho, verifica-se que apenas no de Car-razeda desce abaixo dos 10 ha. Nos de Freixo, Mo-gadouro, Bragança e Vimioso, sobe, respectivamente, a 27, 25, 22 e 20 ha. Nos de Miranda do Douro, Vinhais, Alfândega da Fé, Torre de Moncorvo, Mi-randela, Macedo de Cavaleiros e Vila Flor, situa-se entre os 14 e os 20 ha.

No distrito de Vila Real, descem bastante as áreas médias das explorações agrícolas comparadas com as do distrito de Bragança. Entretanto, no concelho de Montalegre, alcança ainda 16 ha e no de Boticas, Mondim de Basto, Murça, Ribeira de Pena, Valpaços e Vila Pouca (em alguns por influência de vasta área baldia não descontada no cálculo), passam dos 10 ha. Nos restantes sete concelhos não chegam a 10 ha, destacando-se, pelas baixas áreas médias, Me-são Frio, Santa Marta de Penaguião e Régua, todos com cerca de 3 ha.

Passando ao Noroeste, os concelhos do distrito de Viana do Castelo oferecem situação muito semelhante entre si, todos entre os 3,5 ha de Valença do Minho e os 7 ha de Ponte da Barca.

Já o mesmo não se pode dizer inteiramente do distrito de Braga. É certo que em dez dos treze concelhos as áreas médias das explorações agrícolas estão compreendidas entre

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3 e 8 ha. Mas destacam-se, por um lado, Terras do Bouro, com 16 ha e, por outro, Esposende e Famalicão, com menos de 3.

No distrito do Porto, um concelho passa dos 10 ha (Gondomar) e cinco ficam abaixo de 3 ha (Felgueiras, Matosinhos, Paços de Ferreira, V. N. de Gaia e Maia), sendo o concelho de Maia o único do continente que apresenta área média das explorações agrícolas inferior a 2 ha.

O distrito de Aveiro não apresenta grandes diferenças entre os seus concelhos. As áreas médias das explorações agrícolas, em quinze dos dezanove concelhos, situam-se entre os 3 e os 8 ha. Em quatro (Espinho, Ílhavo, Murtosa e Azeméis) descem abaixo dos 3 ha.

No distrito de Viseu destacam-se os concelhos de Penedono, S. João da Pesqueira e Sernancelhe, com 10 ha, e os de Mortágua e V. N. de Paiva, que lhes estão muito próximos. Em dezoito de vinte e quatro concelhos as áreas situam-se entre 3 e 8 ha, e apenas no de Lamego é ligeiramente inferior a 3 ha.

No distrito da Guarda notam-se diferenças sensíveis entre os vários concelhos. Meda, com 20 ha; F. de Castelo Rodrigo, com 18; Almeida, com 16 - são aqueles onde é mais elevada a área média das explorações agrícolas. Seguem-se Aguiar da Beira, Manteigas, V. N. de Foz Côa, Pinhel e Sabugal, com áreas médias de 11 a 13 ha. Os restantes seis concelhos situam-se abaixo de 10 ha, mas nenhum abaixo de 5.

No distrito de Coimbra, um concelho se destaca: Pampilhosa da Serra, com 14 ha. Todos os demais se situam entre os 3 e os 9 ha.

Finalmente, no distrito de Leiria, um concelho aparece destacado, Marinha Grande com 20 ha, mas este número é pouco significativo, dada a grande extensão das matas nacionais. Todos os restantes se situam abaixo de 10 ha, devendo citar-se Bombarral, Pedrógão e Peniche, por terem menos de 3 ha.

Feita esta resenha de todos os distritos do continente, torna-se mais clara a diferença entre as diversas regiões e a existência, em chamadas regiões de pequena propriedade, de

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concelhos onde a área média das explorações agrícolas é assaz elevada - o que pressupõe a existência aí de grandes explorações.

Mais Perto do Real Tamanho

Se o número de explorações agrícolas revelado pelo "inquérito" citado e as suas áreas médias por nós calculadas permitem um conhecimento mais exacto da divisão da propriedade, mais o permite ainda a classificação das explorações agrícolas feita pelo mesmo "inquérito", segundo as áreas da cultura arvense respectiva. O número e extensão das grandes explorações em todo o País, tanto nas regiões de grande como nas de pequena propriedade, ficam agora mais esclarecidos. A tabela 17 mostra a situação nas suas linhas mais gerais.

TABELA 17Explorações agrícolas segundo a área de cultura arvense

Distritos Até 0,5 ha

0,5-1 ha 1,5 ha 5-50

ha50-100 ha

Mais de100 ha

Total

Aveiro 18.320 13.330 26.127 3.000 3 - 60.780Beja 917 1.237 5.407 9.201 1.09

51.32

5 19.182Braga 15.201 8.128 20.697 4.027 14 1 48.068Bragança 3.874 2.631 15.855 12.60

2 82 10 35.054Castelo Branco 18.385 8.185 12.287 4.458 221 179 43.715Coimbra 22.375 18.077 29.570 3.779 11 9 73.821Évora 969 776 2.927 3.993 468 796 9.929Faro 6.902 5.018 14.565 9.443 143 41 36.112Guarda 13.534 7.852 20.959 9.939 65 7 52.336Leiria 23.417 16.957 22.912 1.178 9 2 64.475Lisboa 13.518 9.382 16.977 2.546 70 76 42.569Portalegre 3.255 1.819 4.782 3.631 382 607 14.476Porto 22.779 7.143 19.158 5.485 7 - 54.570Santarém 20.946 13.773 21.198 4.162 220 195 60.494

Page 184: Contribuição Para o Estudo Da Questão Agrária

Setúbal 1.762 1.865 5.232 2.871 242 291 12.263Viana do Castelo 15.912 12.958 14.758 253 1 1 43.883Vila Real 15.477 7.945 16.477 3.512 9 5 43.425Viseu 25.049 20.801 37.547 2.587 5 1 85.990Continente

242.592

157.877

307.433

86.667

3.047

3.546

801.162

Vê-se que, apesar de caber às duas primeiras categorias, no seu conjunto, metade (quase rigorosa) das explorações com cultura arvense, a mais numerosa categoria é a das explorações com 1 a 5 ha. Isso verifica-se não só no total continental como em todos os distritos, com excepção dos de Castelo Branco, Leiria, Porto e Viana do Castelo. O que, porém, mais salta à vista é a existência de nada menos de 86.667 explorações, tendo de 5 a 50 ha de cultura arvense; de 3.047, tendo de 50 a 100 ha, e de 3.546, com mais de 100 ha. Em alguns distritos (Aveiro, Porto, Viana, Viseu) o número de explorações com mais de 50 ha de cultura arvense é na verdade reduzido. Mas não deixará de surpreender aqueles que têm menosprezado a existência e importância de grandes propriedades nas regiões de pequena, o aparecimento, no distrito de Braga, de 15 explorações com mais de 50 ha de cultura arvense, 92 no de Bragança, 20 no de Coimbra, 72 no da Guarda. Quanto às explorações com mais de 100 ha de cultura arvense, interessa considerar em pormenor as suas extensões. Isso indica a tabela 18.

Vê-se que as explorações de mais de 100 ha de cultura arvense atingem enormíssimas extensões. 848 ultrapassam os 500 ha de cultura arvense, 348 os 1.000 ha, 72 os 2.500 ha, 11 os 5.000 ha e 3 os 10.000 ha. Notando-se que existem no continente 40 concelhos cuja superfície territorial não alcança os 10.000 ha e onde existem, entretanto, dezenas de milhares de prédios rústicos e muitos milhares de proprietários, tem-se uma mais exacta medida do gigantismo das maiores explorações. Só qualquer dessas 3 explorações com mais de 10.000 ha abrange, em cultura arvense (fora outras culturas), uma extensão superior, por exemplo, a todo o concelho de Oliveira do Bairro, que, nos seus 8.640 ha, comporta cerca de 50.000 prédios rústicos e 3.000 explorações!

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A importância do problema e a distribuição desigual tornam de interesse apontar, dentro de cada distrito, os concelhos onde se encontram as maiores explorações.

TABELA 18Explorações agrícolas com mais de 100 ha de cultura arvense

Distritos100-200ha

200-500ha

500-1.00

0ha

1.000-

2.500ha

2.500-

5.000ha

5.000-

10.000

ha

10.000-

20.000ha

Total

Aveiro - - - - - - - -Beja 616 440 157 95 15 1 1 1.32

5Braga 1 - - - - - - 1Bragança 9 1 - - - - -- 10Castelo Branco 79 77 17 5 1 - - 179Coimbra 7 1 1 - - - - 9Évora 261 284 134 85 26 5 1 796Faro 32 6 2 1 - - - 41Guarda 5 2 - - - - - 7Leiria 1 1 - - - - 2Lisboa 36 30 6 3 1 - - 76Portalegre 245 182 115 51 11 2 1 607Porto - - - - - - - -Santarém 94 67 22 11 1 - - 195Setúbal 125 89 46 25 6 - - 291Viana do Castelo 1 - - - - - - 1Vila Real 4 1 - - - - - 5Viseu - 1 - - - - - 1Continente

1.516

1.182 500 276 61 8 3 3.54

6

Começando pelo Alentejo, é de notar que, no distrito de Beja, é o concelho de Moura que apresenta maiores explorações: 3 com 2500-5000 ha de cultura arvense, 1 com

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5.000-10.000 ha e 1 com mais de 10.000 ha. Seguem-se os concelhos de Beja, Castro Verde, Ferreira, Ourique e Serpa, todos também com explorações com mais de 2.500 ha, sendo de salientar o de Beja, não só pelo elevado número de explorações dessa categoria (4), como pelo mais elevado número de explorações de 1.000 a 2.500 ha (32). No distrito, apenas o concelho de Almodôvar não tem explorações com mais de 1.000 ha.

No distrito de Évora, a maior exploração, com mais de 10.000 ha de cultura arvense, situa-se no concelho de Arraiolos. O concelho de Évora destaca-se com 10 explorações com 2.500-5.000 ha e 3 com 5.000-10.000 ha. Há também uma exploração com 5.000-10.000 ha no concelho de Estremoz, e outra no de Reguengos. Apenas Borba não apresenta explorações com mais de 1.000 ha e Alandroal com mais de 2.500.

No distrito de Portalegre, a única exploração com mais de 10.000 ha de cultura arvense encontra-se no concelho de Monforte, onde aparece outra com 5.000-10.000 ha e outras 7 com 1.000-5.000 ha. Em Alter do Chão há uma com 5.000-10.000 ha e duas com 2.500-5.000. Avis, Campo Maior, Sousel e Eivas (este com 4) apresentam também explorações com niais de 2.500 ha. Gavião e Marvão são os únicos concelhos que não apresentam explorações com mais de 1.000 ha. Marvão destoa fortemente no distrito, pois não se indica ali nenhuma exploração com mais de 200 ha de cultura arvense.

No distrito de Setúbal, as 6 explorações com 2.500-5.000 ha de cultura arvense situam-se nos concelhos de Alcácer do Sal (3), Grândola, Montijo e Santiago do Cacem. Estes mesmos concelhos, assim como o de Palmeia, apresentam também explorações com 1.000-2.500 ha, sendo de anotar que cabem a Alcácer 14 das 25 explorações dessa categoria do distrito; em Palmeia, abaixo de uma muito grande exploração com essas dimensões, só se encontram outras com menos de 100 ha de cultura arvense. Em contraste com estes concelhos, são raras nos concelhos ribeirinhos (Alcochete, Almada, Barreiro, Moita. Seixal) as explorações com mais de 50 ha.

No distrito de Lisboa, Vila Franca de Xira destaca-se pelas suas grandes explorações: 1 com 2.500-5.000 ha de cultura arvense, 3 com 1.000-2.500 e outros 3 com 500-1.000 ha.

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Com mais de 500 ha aparecem mais três explorações no distrito: uma em Alenquer, duas em Oeiras. Lourinhã e Sobral não apresentam explorações com mais de 50 ha, Arruda, Cadaval e Torres Vedras com mais de 100.

No distrito de Santarém, uma exploração com mais de 2.500 ha de cultura arvense situa-se no concelho de Abrantes e 11 de 1.000-2.500 ha nos de Abrantes, Benavente, Chamusca, Coruche (com 4), Salvaterra, Santarém e Tomar. Estes concelhos, salvo o de Tomar, bem como os de Almeirim, Cartaxo, Golegã, Rio Maior, apresentam explorações com mais de 500 ha. Em contraste com estes, os concelhos de Mação, V. N. de Ourem e Entroncamento não têm explorações com mais de 50 ha de cultura arvense e o de Alcanena tem uma só.

No distrito de Castelo Branco, destaca-se Idanha-a-Nova com uma exploração de 2.500-5.000 ha (a única do distrito), 4 de 1.000-2.500 e 15 de 500-1.000 ha. Segue-se Castelo Branco, com uma de 1.000-2.500 e duas de 500-1.000 ha. Embora não apresentando explorações com mais de 500 ha de cultura arvense, Covilhã, Fundão e Penamacor apresentam, no conjunto, cerca de 40 explorações com mais de 100 ha. Só Oleiros, Proença e Sertã não têm nenhuma com mais de 50 ha e Vila do Rei nenhuma com mais de 5 ha.

No distrito de Faro, a maior exploração com cultura arvense (1.000-2.500 ha) fica no concelho de Faro, e duas de 500-1.000 ha nos de Lagos e Vila do Bispo. Explorações de 100 a 500 ha distribuem-se irregularmente por vários concelhos, só não apresentando nenhuma com mais de 100 ha Lagos e Monchique e com mais de 50 ha Alportel e Olhão.

Fora destes distritos, tornam-se mais raras as explorações com mais de 100 ha e mesmo com mais de 50 ha de cultura arvense, mas não deitam de aparecer em regiões onde predomina a pequena propriedade.

No distrito de Aveiro, nos concelhos de Albergaria e Mealhada, aparecem 3 explorações com mais de 50 ha (nos de Sever e V. de Cambra só aparecem 2 — uma em cada — com mais de 5 ha). No distrito de Braga, destaca-se Vila Verde com as maiores explorações: 1 com 100-200 ha de cultura arvense e 8 com 50-100 ha. Este concelho e os de Famalicão, Barcelos, Braga e Guimarães são aqueles que no

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distrito apresentam maior número de explorações de 10-100 ha (510 no total de 572). Só Vieira do Minho não apresenta nenhuma com mais de 10 ha. No distrito de Bragança aparece uma exploração com mais de 200 ha de cultura arvense no concelho de Alfândega da Fé e com 100-200 ha neste mesmo concelho e nos de Mirandela (4), Bragança, Miranda do Douro, Vila Flor e Vinhais, nos quais (particularmente nos três primeiros) aparece também a maior parte das explorações com 50-100 ha de cultura arvense (55 no total de 82). Só no concelho de Freixo de Espada à Cinta não aparece nenhuma exploração com mais de 50 ha de cultura arvense. No distrito de Coimbra destaca-se Figueira da Foz com 3 explorações com mais de 100 ha (das quais uma com mais de 500) e Montemor-o-Velho com 5 com 50-100 ha e uma de 100-200 ha. Explorações de 100-200 e 50-100 ha aparecem ainda nos concelhos de Arganil, Cantanhede, Coimbra, Condeixa, Miranda do Corvo, Soure e Tábua. Pampilhosa da Serra é o único concelho do distrito que não tem nenhuma com mais de 10 ha. No distrito da Guarda destaca-se o concelho da Guarda com 4 das 7 explorações com mais de 100 ha de cultura arvense existentes no distrito. Só Aguiar da Beira, Fornos de Algodres, Gouveia, Manteigas e Seia não apresentam explorações de mais de 50 ha. No distrito de Leiria, apresentam-se 11 explorações com mais de 50 ha, situando-se a maior (200-500 ha de cultura arvense) em Óbidos e a segunda (100-200 ha) em Alcobaça. Só Castanheira de Pêra e Figueiró dos Vinhos não apresentam nenhuma exploração de mais de 10 ha. No distrito do Porto aparecem 7 explorações com mais de 50 ha, das quais duas em Vila do Conde e uma em Ama-rante, Marco, Póvoa de Varzim, Santo Tirso e V. N. de Gaia; nenhum concelho deixa de ter explorações com 10 a 50 ha de cultura arvense e alguns têm-nas muito numerosas: cerca de 250 em Lousada e Vila do Conde, cerca de 150 em Amarante e Santo Tirso, onde apenas aparece uma exploração com 100-200 ha (Paredes de Coura) e outra com 50-100 ha (Valença do Minho), apenas dois concelhos (Melgaço e Ponte da Barca) não têm explorações com mais de 10 ha. No distrito de Vila Real destaca-se Valpagos com uma exploração com 200-500 ha, 2 com 100-200 ha e 3 com 50-100 ha, além de quase meio milhar com 10-50 ha. Nos concelhos de Boticas, Chaves, Montalegre e Murça, aparecem também explorações com mais de 50 ha. Só no de Mesão Frio não aparecem com mais de 10 ha de cultura arvense. Finalmente, no distrito de Viseu, onde a maior exploração

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(com 200-500 ha) aparece em Moimenta da Beira, apenas são indicadas 5 outras explorações com mais de 50 ha, mas nenhum concelho as deixa de ter com 10-50 ha.

Confirma-se desta forma a divisão do País em duas grandes zonas distintas, fluindo numa zona intermediária com características das duas: uma, ao sul do Tejo, abrangendo todo o Alentejo e parte do Algarve, onde imperam as grandes e muito grandes explorações; outra, ao norte do Tejo, onde a extensão das explorações agrícolas é consideravel-mente mais reduzida. Mas confirma-se, também, a existência de grandes explorações por quase todo o País.

Não se deve esquecer: primeiro, de que os números apontados relacionam-se apenas com a cultura arvense (que não abrange sequer metade do território), e que ficam assim de fora a vinha e a floresta, mais importantes na parte norte — de onde resulta que a real extensão das explorações, sobretudo a norte, é muito superior à extensão da sua cultura arvense. Segundo, que a extensão da exploração agrícola não é a única medida da sua grandeza, pois (além de outras razões) variam muito no País a fertilidade e produtividade das terras. Por uma e outra coisa, a distinção entre as zonas de grande e de pequena propriedade, embora nítida, não significa que seja apagado o papel das grandes explorações nas regiões de pequena propriedade.

Tanto os números que se acabam de indicar como a estimativa que a seguir faremos mostram-no de forma clara.

A Grandeza dos Contrastes

Multiplicando pelo número médio de hectares de cada categoria o número de explorações classificadas pelo "Inquérito às explorações agrícolas do continente" segundo a área de cultura arvense, obtém-se uma estimativa da área de cultura arvense de cada categoria. Trata-se, é certo, apenas de uma estimativa, mas que fornece resultados suficientemente aproximados para sobre eles se poderem assentar importantes conclusões acerca da divisão da propriedade.

A área de cultura arvense assim calculada, soma, para o conjunto do continente, 4.111.507 ha, isto é, 46% da,

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superfície territorial. A relação entre a área de cultura arvense calculada e a superfície territorial é muito variável de distrito para distrito. A percentagem da área de cultura arvense é nitidamente mais elevada nos distritos de Beja, Évora e Portalegre, onde atinge respectivamente 86 %, 89 % e 73%, baixa para menos de 30% nos distritos de Castelo Branco, Leiria, Viana do Castelo, Vila Real e Viseu, e está compreendida entre os 30% e os 50% nos demais distritos. Estas grandes diferenças, mais notáveis ainda quando comparados os concelhos, são em grande parte (embora não completamente) explicadas pelas diferenças reais, de região para região do País, da quota da área de cultura arvense na superfície territorial. (Enquanto no Alentejo predomina, em absoluto, a cultura arvense, em outras regiões predominam a floresta e a vinha.) O mesmo se pode dizer do facto de se verificarem baixas percentagens em concelhos onde é extensa a área baldia.

No conjunto, a área assim calculada é superior à área calculada noutras bases. Para 1939, três especialistas(20) calcularam em 2.500.000 ha a área ocupada por cultura arvense e hortícola, e tal cálculo (última estimativa publicada) continua a ser reproduzido nas estatísticas oficiais. É certo que, de 1939 para 1954, só no que respeita aos cereais, a área cultivada aumentou 600.000 ha. Fica-se, entretanto, ainda longe dos 4.111.507 ha de cultura arvense apurados na estimativa por nós feita na base do "inquérito".

Qual a razão desta disparidade? Mostrará ela serem errados os números de exploração apresentados pelo "Inquérito" e a sua classificação? Não, não o mostram. Mostram apenas que, dentro de cada categoria de exploração classificada segundo a área de cultura arvense, o número médio de hectares (tomado como factor para a estimativa) é ligeiramente superior à média efectiva da extensão das explorações. Isto explica não só que a área de cultura arvense calculada excede visivelmente a área real de cultura arvense, como ainda que esse excesso, de uma forma geral, seja mais evidente onde a área média das explorações é maior e onde predominam as grandes explorações. Por isso se dizia há pouco que as mais altas percentagens (da área de cultura arvense calculada, em relação à superfície territorial) observadas nos distritos alentejanos não eram

Page 191: Contribuição Para o Estudo Da Questão Agrária

completamente explicadas pela maior extensão real da cultura arvense nesses distritos. Daí não ser surpreendente o facto de, em 14 concelhos alentejanos, a área de cultura arvense calculada exceder... a área territorial.

Estas observações não invalidam, porém, a estimativa. Ela não pretende dar números absolutos, mas apenas uma ideia da relação entre a área ocupada pelas grandes e pelas pequenas explorações agrícolas. A este respeito, podemos apresentar, pela primeira vez no nosso País, um panorama suficientemente aproximado para todo o continente.

A situação geral é indicada na tabela 19.

TABELA 19Divisão da propriedade no continente (Cultura arvense)

Área das exploraçõe

s

Explorações SuprefícieNúmero Percentage

m Hectares Percentagem

Menos de 1 ha 400.469 50,0 176.850 4,31-5 ha 307.433 38,4 752.713 18,35-50 ha 86.667 10,8 1.120.569 27,350-100 ha 3.047 0,4 228.525 5,5Mais de 100 ha 3.546 0,4 1.832.850 44,6

Total 801.162 100,0 4.111.507 100,0

A terra sujeita à cultura arvense encontra-se dividida, em duas quase rigorosas metades, entre as explorações com mais e com menos de 50 ha. Sucede assim que cerca de 6000 médias e grandes explorações dispõem de uma área de cultura arvense sensivelmente igual àquela de que dispõem quase 800 000 pequenas. É isso que mostram os números seguintes que resumem a tabela 19 (as áreas referem-se sempre a cultura arvense).

Explorações Número Percentage

m Hectares Percentagem

Com menos de 50 ha 794.569 99,2 2.050.132 49,9Com mais 6.593 0,8 2.061.375 50,1

Page 192: Contribuição Para o Estudo Da Questão Agrária

de 50 haTotal 801.162 100,0 4.111.507 100,0

Estes números evidenciam, de maneira irrefutável, o regime da propriedade nos campos portugueses. Em média, em cada 100, 1 tem tanto como os restantes 99. Tome-se em conta a modestíssima posigão das explorações de 50 a 100 ha de cultura arvense, e tem-se ainda mais acentuado o contraste. O resultado mais imediato e chocante da estimativa expressa na tabela 19 é a diferença da situação, tomada em globo, das maiores e das menores explorações agrícolas. Eis como a situação se apresenta :

Explorações Número Percentage

m Hectares Percentagem

Com menos de 1 ha

4010.469 50,0 176.850 4,3

Com mais de 100 ha 3.546 0,4 1.832.850 44,6

Vê-se que, enquanto mais de 400 000 pequenas explorações, correspondendo à metade do número das explorações, abrangem apenas 177 000 ha de cultura arvense, o reduzido número de 3546 grandes explorações, correspondendo a menos de meio por cento do número total de explorações, atinge 1.832.850 ha de cultura arvense, correspondendo a 45% do total da cultura arvense. As 3.546 maiores explorações dispõem de dez vezes mais terra que as 400.000 mais pequenas!

O estudo mais pormenorizado dessas 3546 grandes explorações, sobretudo das 848 com mais de 500 ha de cultura arvense, oferece um panorama ainda mais vivo da situação, conforme mostram os números seguintes:

Explorações Número Hectares PercentagemCom 500-1.000 ha 500 375.000 9Com 1.000-2.500 ha 276 483.000 12Com 2.500-5.000 ha 61 228.750 5Com mais de 5.000 ha 11 105.000 3

  848 29

Page 193: Contribuição Para o Estudo Da Questão Agrária

A 848 explorações, no total de 801162, pertence quase um terço da área total de cultura arvense — mais de 1 milhão de hectares. A 348, um quinto. Às 72 maiores explorações cabem mais de 300 000 ha (mais do que a superfície total do distrito de Aveiro, Braga, Lisboa, Porto ou Viana), ou seja, quase o dobro da terra de cultura arvense que cabe às 400 000 explorações mais pequenas. As 11 gigantes cabem 105 000 ha, isto é, tanto, por exemplo, como a superfície territorial conjunta dos concelhos do extremo noroeste português (Caminha, V. N. da Cerveira Valença, Monção, Melgaço, Paredes de Coura e Ponte da Barca), onde existem 440 000 prédios rústicos e mais de 20 000 explorações agrícolas.

O contraste entre o acanhamento das pequenas explorações e a desmedida grandeza das grandes aparece bem evidenciado.

A situação não é igual, nem os contrastes igualmente salientes, em todas as regiões do País. A diferença atrás mostrada, entre os vários distritos, no que respeita à extensão das grandes explorações (com a concentração das explorações com mais de 100 ha nos distritos de Beja, Évora, Portalegre, Castelo Branco, Santarém, Lisboa e Faro e a sua ausência ou reduzido número nos restantes, com o relativamente baixo número de explorações com menos de 1 ha nos distritos de Beja, Évora, Portalegre e Setúbal e o seu predominante número nos distritos de Aveiro, Braga, Coimbra e Leiria, Porto, V. do Castelo, V. Real e Viseu) implica necessariamente a existência de contrastes mais nítidos nas regiões onde impera a grande e muito grande propriedade.

A área média de cultura arvense por explorações confirma a explicação dessas diferenças regionais. À frente, aparecem, a distância, os distritos de Évora, Beja e Portalegre, com a área média de cultura arvense por exploração de, respectivamente, 66, 46 e 31 ha. Depois Setúbal, com 19 ha. Muito abaixo (entre 3 a 6 ha) C. Branco, Faro, Santarém, Lisboa, Guarda e Bragança. Os restantes oito distritos, com 2 ha, ou menos ainda.

Distritos

Número de

Área de cult

Menos de 1 ha

% 1 - 5 ha   5 -50 ha %

Nú % Hec Nú % Hec % Nú % Hec

Page 194: Contribuição Para o Estudo Da Questão Agrária

exploraçõe

s com

ura arvense

mero

tares

mero

tares

mero

tares

Aveiro

60.780

104.059

31.650

52,1

14.642

4,1

26.127

43,0

63.512

61,0

3.000

4,9

25.680

24,7

Beja 19.182

880.694

2.154

11,2

1.206

0,1

5.407

28,2

15.088

1,7

9.201

48,0

173.125

19,7

Braga

48.068

98.058

23.329

48,5

9.526

9,7

20.697

43,1

51.672

52,7

4.027

8,4

35.660

36,4

Bragança

35.054

204.149

6.505

18,6

2.801

1,4

15.855

45,2

44.618

21,8

12.602

35,9

148.880

73,0

Castelo Branco

43.715

187.016

26.570

60,8

10.256

5,5

12.287

28,1

29.548

15,8

4.458

10,2

66.537

35,6

Coimbra

73.821

127.324

40.452

54,8

19.547

15,3

29.570

40,1

71.034

55,8

3.779

5,1

33.768

26,6

Évora 9.929 659.

1211.745

17,6

803 0,1

2.927

29,5

7.840

1,2

3.993

40,2

77.578

11,8

Faro 36.112

191.106

11.920

33,0

5.486

2,9

14.565

40,3

38.442

20,1

9.443

26,2

126.303

66,1

Guarda

52.536

189.264

21.386

40,8

9.014

4,8

20.959

40,0

53.870

28,4

9.939

19,0

120.055

63,5

Leiria

64.475

82.844

40.374

62,6

18.786

22,7

22.912

35,5

52.258

63,1

1.178

1,8

10.625

12,8

Lisboa

42.569

114.034

22.900

53,8

10.341

9,1

1.977

39,9

40.450

35,4

2.546

6,0

28.593

25,1

Page 195: Contribuição Para o Estudo Da Questão Agrária

Portalegre

14.476

448.822

5.074

35,1

2.089

0,5

4.782

33,0

12.338

2,7

3.631

25,1

58.545

13,1

Porto

54.570

111.922

29.922

54,8

9.770

8,7

19.156

35,1

49.594

44,3

5.485

10,1

52.033

46,5

Santarém

60.494

214.730

34.719

57,4

15.576

7,2

21.198

35,0

50.174

23,4

4.162

6,9

55.430

25,8

Setúbal

12.263

228.759

3.627

29,6

1.849

0,8

5.232

42,6

13.323

5,8

2.871

23,5

44.787

19,6

Viana do Castelo

43.883

47.698

28.870

65,8

13.775

28,9

14.758

33,6

31.540

66,1

253 0,6

2.158

4,4

Vila Real

43.425

88.314

23.422

53,9

9.420

10,7

16.477

37,9

40.464

45,8

3.512

8,1

36.805

41,7

Viseu

85.990

133.593

45.850

53,3

21.963

16,4

37.547

43,7

86.948

65,1

2.587

3,0

23.957

18,0

Continente

801.162

4.111.50

7

400.469

50,0

176.850

4,3

307.433

38,4

752.713

18,3

86.667

10,8

1.120.56

9

27,3

 

continuação tabela 20

Distritos50 - 100 ha

%Mais de 100 ha  

Número % Hectare

sNúmer

o % Hectares %

Aveiro 3 0,0 225 0,2 - - - -Beja 1.095 5,7 82.125 9,3 1.325 6,9 609.150 69.2Braga 14 0,0 1.050 1,0 1 0,0 150 0,2Bragança 82 0,3 6.150 3,0 10 0,0 1.700 0,8Castelo Branco 221 0,5 16.575 8,6 179 0,4 64.050 34,5Coimbra 11 0,0 825 0,6 9 0,0 2.150 1,7Évora 468 4,7 35.100 5,3 796 8,0 537.800 81,6Faro 143 0,4 10.725 5,6 41 0,1 10.150 5,3

Page 196: Contribuição Para o Estudo Da Questão Agrária

Guarda 65 0,1 4.875 2,5 7 0,0 1.450 0,8Leiria 9 0,0 675 0,8 2 0,0 500 0,6Lisboa 70 0,1 5.250 4,6 76 0,2 29.400 25,8Portalegre 382 2,6 28.650 6,3 607 4,2 347.200 77,4Porto 7 0,0 525 0,5 - - - -Santarém 220 0,4 16.500 7,7 195 0,3 77.050 35,9Setúbal 242 1,9 18.150 7,9 291 2,4 150.650 65,9Viana do Castelo 1 0,0 75 0,3 1 0,0 150 0,3Vila Real 9 0,0 675 0,7 5 0,0 950 1,1Viseu 5 0,0 375 0,8 1 0,0 350 0,2Continente 3.047 0,4 228.525 5,5 3.546 0,4 1.832.85

0 44,6

Dadas estas diversidades entre as várias regiões, não se pode, para ter uma ideia do regime de propriedade em cada região, tomar para todas elas uma mesma classificação das explorações agrícolas, segundo a área da cultura arvense. A tabela 20, que resume a nossa estimativa, com resultados por distritos, mostra-o claramente. Daí a necessidade de adoptar, nas diferentes regiões do País, medidas diferentes para o estudo da divisão da propriedade.

Comecemos pelas regiões de grande propriedade.

1. Distrito de Portalegre — A situação revela-se nos números seguintes:

Explorações Número Percentagem

Hectares

Percentagem

Com menos de 100 ha 13.869 95,8 101.622 22,6Com mais de 100 ha 607 4,2 347.200 77,4

Total 14.476 100,0 448.822 100,0

Vê-se que 607 explorações no total de 14.476, isto é, apenas 4 % das explorações, abrangem 347.200 ha, no total de 448.822 ha de cultura arvense, ou seja, 77 % da área total. Essas 607 explorações têm mais de três vezes mais terra do que as restantes 13.869! Têm tanta terra de cultura arvense

Page 197: Contribuição Para o Estudo Da Questão Agrária

como a superfície total do distrito de Leiria, onde existem mais de 800.000 prédios rústicos e mais de 60.000 explorações agrícolas.

O estudo mais pormenorizado das maiores explorações salienta ainda mais o contraste.

Explorações Número Hectares PercentagemCom 500-1000 ha 115 86.250 19,2Com 1000-2500 ha 51 89.250 19,9Com 2500-5000 ha 11 41.250 9,2Com mais de 5000 ha 3 30.000 6,7

Total 180 246.750 55,0

As 180 explorações com mais de 500 ha, correspondendo a 1 % do número total de explorações, ocupam mais de metade da terra de cultura arvense. Às 65 maiores cabe mais de um terço, área, portanto, muito superior àquela que cabe às 13.869 explorações com menos de 100 ha. Quanto às explorações com mais de 2.500 ha, o seu gigantismo resulta da sua comparação com as mais pequenas:

Explorações Número HectaresCom menos de 5 ha 9.856 14.422Com 2500-5000 ha 11 41.250Com mais de 5000 ha 3 30.000

Vê-se que as 14 explorações com mais de 2.500 ha tem cinco vezes mais terra de cultura arvense que as 10.000 explorações mais pequenas, e as três maiores mais do dobro.

Na sua generalidade, os concelhos do distrito apresentam situação correspondente à situação do distrito no seu conjunto. Nos concelhos de Alter do Chão, Arronches, Campo Maior, Crato, Eivas e Mon-forte, um reduzido número de explorações de mais de 500 ha, representando de 2 % a 8 % do número total das explorações, detém mais de metade da terra (em Alter do Chão, Campo Maior e Monforte, mais de três quartos). Nos concelhos de Avis, Castelo de Vide, Fronteira, Nisa, Ponte de Sor, Portalegre e Sousel, o mesmo se dá com as explorações de mais de 110 ha. Nos seis primeiros, 123 explorações, no total de 3.118, detêm 174.000 n0 total de 245.931 ha de cultura arvense. Isto é: 3,9 % das

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explorações detêm 71 % da terra. Nos sete últimos, 299 explorações, no total de 8.918, detêm 127.050 no total de 186.464 ha. Isto é: 3,4% das explorações detêm 68 % da terra. A quota das maiores explorações é assim semelhante nuns e noutros, apesar de que as maiores explorações, nos primeiros seis, foram contadas para cima de 500 ha e, nos últimos, para cima de 100 ha.

No concelho de Gavião, a situação é igualmente nítida, pois 12 explorações de mais de 100 ha, representando 1 % das explorações, detêm 42 % da terra.

Quanto ao predomínio das explorações gigantes, destacam-se os concelhos de Alter do Chão e Monforte. No primeiro, 10 explorações de mais de 1000 ha, no total de 409, ou seja, 2 % das explorações, detêm 70 % da terra; no segundo, 9 explorações de mais de 1.000 ha, no total de 336, ou seja, 3 % das explorações, detêm 63 % da terra.

Desse conjunto bastante uniforme destoa o concelho de Marvão, sem qualquer exploração de mais de 500 ha e apenas com duas de mais de 100 ha. Entretanto, embora noutras proporções, a situação relativa das grandes e pequenas explorações aparece com clareza, desde que tomemos, como medida de grandeza não os 500 ou 100 ha, mas os 10 ha. Na verdade, as explorações de mais de 10 ha, represen-tanto 13 % do número, detêm 60 % das terras.

2. Distrito de Évora — A situação revela-se nos números seguintes:

Explorações Número Percentagem

Hectares

Percentagem

Com menos de 100 ha 9.133 92,0 121.321 18,4Com mais de 100 ha 796 8,0 537.800 81,6

Total 9.929 100,0 659.121 100,0

Vê-se que 796 explorações, no total de 9.929, isto é, apenas 8 % das explorações, abarcam 537.800 ha no total de 659.121 ha de cultura arvense, ou seja, 82 % da área total. Essas 796 explorações têm mais de quatro vezes mais terra do que as restantes 9.133! Têm tanta terra de cultura arvense

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como o total da superfície do distrito de Viseu, onde existe mais de 1.500.000 de prédios rústicos e 86.000 explorações agrícolas.

O estudo mais pormenorizado das maiores explorações salienta mais ainda o contraste.

Explorações Número Hectares PercentagemCom 500-1000 ha 134 100.500 15,3Com 1000-2500 ha 85 148.750 22,5Com 2500-5000 ha 26 97.500 14,8Com mais de 5000 ha 6 52.500 8,0

Total 251 399.250 60,6

As 251 explorações com mais de 500 ha, correspondendo a menos de 3 % do número total de explorações, ocupam quase dois terços da terra de cultura arvense. Às 117 maiores cabe ainda quase metade. As 32 com mais de 2500 ha detêm 150.000 ha, mais, portanto, do que a área que cabe às 9.133 explorações com menos de 100 ha. A comparação das maiores com as menores dá uma ideia ainda mais viva da situação:

Explorações Número HectaresCom menos de 5 ha 4.672 8.642Com 2.500-5.000 ha 26 97.500Com mais de 5.000 ha 6 52.500

Vê-se que as 32 explorações com mais de 2.500 ha têm 17 vezes mais terra de cultura arvense que as 4.672 mais pequenas e as 6 de mais de 5.000 ha seis vezes mais.

Os concelhos do distrito apresentam maior uniformidade que os do distrito de Portalegre. Nos concelhos de Arraiolos, Estremoz, Évora, Montemor, Mora, Portei, Reguengos, Viana e Vila Viçosa, um reduzido número de explorações de mais de 500 ha, representando de 2% a 4% do total das explorações, detém mais de metade da terra (no concelho de Évora mais de três quartos, nos de Arraiolos, Mora e Viana mais de dois terços). Coisa semelhante se dá com as explorações de mais de 100 ha nos restantes concelhos (Alandroal, Borba, Mourão e Redondo), onde, aliás, as explorações de mais de 500 ha detêm, no conjunto, 40 % da terra.

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Sabida, pois, a fisionomia geral do distrito, tem-se o retrato aproximado de cada um dos seus concelhos.

É, entretanto, de notar o predomínio das explorações com mais de 1.000 ha em alguns concelhos. No de Arraiolos, 9 explorações, representando 1 % do total, detêm 55 % da terra de cultura arvense; no de Viana, 9 explorações, representando 2 %, detêm 53 % da terra; no de Évora, 32 explorações, representando 2 %, detêm 66 % da terra; e ainda nos de Reguengos, Portei e Estremoz, menos de 1 % das explorações detém à volta de 40 % da terra.

3. Distrito de Beja— A situação revela-se nos números seguintes:

Explorações Número Percentagem

Hectares

Percentagem

Com menos de 100 ha 17.857 93,1 271.544 30,8Com mais de 100 h 1.325 6,9 609.150 69,2

Total 19.182 100,0 880.694 100,0

Vê-se que 1.325 explorações, no total de 19.182, isto é, apenas 7 % das explorações, abarcam 609.150 ha do total de 880.694, ou seja, 69 % da área total de cultura arvense. Essas 1.325 explorações têm mais do dobro da terra do que as restantes 17.857. Têm tanta terra de cultura arvense como o total da superfície dos distritos de Coimbra e Viana do Castelo, onde existem quase 2 milhões de prédios rústicos e 115.000 explorações agrícolas.

O estudo mais pormenorizado das maiores explorações salienta o contraste:

Explorações Número Hectares PercentagemCom 500 - 1.000 ha 157 117.750 13,4Com 1.000 - 2.500 ha 95 166.250 18,9Com 2.500 - 5.000 ha 15 56.250 6,3Com mais de 5.000 ha 2 22.500 2,6

Total 269 362.750 41,2

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As 269 explorações com mais de 500 ha, correspondendo a menos de 2 % do número de explorações, detêm quase metade da área de cultura arvense, e 112 com mais de 1.000 ha detêm quase tanta terra como 17.857 explorações com menos de 100 ha. Esta desproporção torna-se ainda mais viva, comparando as maiores com as mais pequenas:

Explorações Número HectaresCom menos de 5 ha 7.561 16.294Com 2.500 - 5.000 ha 15 56.250Com mais de 5.000 ha 2 22.500

Vê-se que as 17 explorações com mais de 2500 ha têm cinco vezes mais terra que as 7561 com menos de 5 ha; as 2 de mais de 5000 ha, 50 % mais.

Com ligeiras diferenças, os concelhos do distrito apresentam panorama semelhante ao observado nos distritos de Portalegre e Évora. Nos concelhos de Alvito, Barrancos, Beja, Castro Verde, Cuba e Ferreira, um pequeno número de explorações com mais de 500 ha, representando de 2 % a 6 % do número de explorações, detém mais de metade da terra (no de Barrancos mais de quatro quintos). Nos de Aljustrel, Almodôvar, Mértola, Moura, Ourique, Serpa e Vidi-gueira coisa semelhante se verifica com as explorações com mais de 100 ha. No concelho de Ode-mira, único em que nem uma coisa nem outra sucede, aparecem, entretanto, 158 explorações de mais de 100 ha, representando 4 % das explorações, que abarcam 43 % da terra de cultura arvense.

Quanto à quota das maiores explorações, alguns concelhos destacam-se. Com explorações de mais de 1000 ha, o de Beja, onde 36 explorações, representando 2 % do total, detêm 47 % da terra. Com explorações de mais de 500 ha, os de Castro Verde, Ferreira e Moura, onde um número reduzido, representando 1 % a 2 %, detém 40 % da terra de cultura arvense.

Em mais nenhum distrito se observa tão notável concentração em todos os concelhos. Mas nalguns outros, como a seguir se verá, há concelhos onde os contrastes são tanto ou mais fortes que os apontados.

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4. Distrito de Setúbal — A situação revela-se nos seguintes números:

Explorações Número Percentagem

Hectares

Percentagem

Com menos de 100 ha 11.972 97,6 78.109 34,1Com mais de 100 ha 291 2,4 150.650 65,9

Total 12.263 100,0 228.759 100,0

Estes números revelam, no conjunto do distrito de Setúbal, uma situação semelhante à dos três distritos alentejanos. Vê-se que 291 explorações, no total de 12 263, isto é, menos de 3 % das explorações, atingem 150 650 no total de 228 759 ha, ou seja, 66 % da área total de cultura arvense. Essas 291 explorações têm cerca do dobro da terra das restantes 11 972.

O contraste aparece ainda mais vivo ao ver-se o número e extensão das maiores explorações e ao confrontá-los com os das mais pequenas:

Explorações Número Hectares PercentagemCom menos de 5 ha 8.859 15.172 6,6Com 500 - 1.000 ha 46 34.500 15,1Com 1.000 - 2.500 ha 25 43.750 19,1Com mais de 2.500 ha 6 22.500 9,8

As 77 explorações de mais de 500 ha ocupam mais terra do que as 11.972 de menos de 100 ha e sete vezes mais do que as 8.859 de menos de 5 ha. As 31 de mais de 1.000 ha ocupam quatro vezes mais terra do que essas 8859 e mesmo as 6 explorações de mais de 2500 ha ainda as ultrapassam! Cada uma das 6 maiores tem mais que cada 2000 das mais pequenas.

Como atrás se sublinhou, existem, no distrito de Setúbal, grandes diferenças entre os vários concelhos. Aproximando-se a sua situação global da dos três distritos alentejanos, isso pressupõe uma elevadíssima concentração em alguns concelhos. Assim é de facto. No de Alcácer do Sal, 17 explorações com mais de 1.000 ha, representando apenas 5

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% das explorações, detêm 51 % da área total de cultura arvense. No de Montijo, 4 explorações de mais de 1.000 ha, no total de 1991 explorações, representando, portanto, apenas 0,2 %, detêm 52 % da área, ou seja, mais terra de cultura arvense do que as restantes 1.987! Seguem-se Grândola e Santiago do Cacem, onde, no conjunto, 28 explorações de mais de 500 ha, representando menos de 1 % do número, detêm 30 % da área e 171 de mais de 100 ha, representando 4 % do número, detêm 59 % da área. No concelho de Sines, 15 explorações com mais de 100 ha (4 %) abarcam 36 % da área de cultura arvense.

Além destes concelhos — todos, com excepção do Montijo, pertencentes ao Alentejo —, em nenhum outro as explorações com mais de 100 ha têm qualquer lugar importante. Mais precisamente: existem ao todo, nos restantes oito concelhos, apenas 5 explorações com mais de 100 ha de cultura arvense. Entretanto, tomando outras medidas para as maiores explorações, os contrastes (gritantes nuns casos, mais atenuados noutros) não deixam de evidenciar-se. Tomando as explorações de mais de 50 ha, nos concelhos de Palmeia e Setúbal, menos de 1 % das explorações detêm, respectivamente, 47 % e 56 % da área. Tomando as de mais de 10 ha, nos concelhos de Alcochete, Almada, Barreiro, Seixal e Sesimbra, 3 % a 11 % das explorações têm de 28 % a 47 % da área. E até no concelho de Moita, onde aparecem apenas 3 explorações com mais de 50 ha de cultura arvense e apenas 17 com mais de 10 ha, o mesmo fenómeno transparece, embora noutra escala: 42 explorações de mais de 5 ha, representando 8 % das explorações, detêm mais de metade da área de cultura arvense.

5. Distrito de Lisboa — No distrito de Lisboa, tomado no seu conjunto, não são tão significativos, como nos distritos que acabámos de estudar, os números referentes às explorações com mais de 100 ha de cultura arvense. Alguma coisa dizem, entretanto: 76 explorações, no total de 42.569, isto é, 0,2%, detêm 29.400 ha no total de 114.034 ha, ou seja, 26 % da área. Os contrastes evidenciam-se comparando as maiores explorações com as mais pequenas:

Explorações Número HectaresCom menos de 1 ha 22,900 10.341Com 100-500 ha 66 15.900

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Com mais de 500 ha 10 13.500

As 76 explorações de mais de 100 ha possuem cerca de três vezes mais terra do que as 22.900 de menos de 1 ha e estas têm ainda menos do que as 10 maiores explorações.

Além do que esta comparação indica, pode-se ter uma ideia global da situação no distrito tomando, como limite entre as maiores e as menores explorações, não os 100 ha, nem mesmo os 50 ou os 10, os 5 ha. A situação apresenta-se, então, assim:

 

Explorações Número Percentagem

Hectares

Percentagem

Com menos de 5 ha 39.877 93,7 50.793 44,5Com mais de 5 ha 2.692 6,3 63.243 55,5

Total 42.569 100,0 114.036 100,0

Vê-se que 6 % das explorações abrangem mais de metade da, terra, o que mostra o mesmo contraste, embora sem o predomínio de muito grandes explorações.

A diferença entre Os vários concelhos do distrito são, como atrás se notou, muito acentuadas, aparecendo apenas em dois concelhos o predomínio das explorações com mais de 100 e 500 ha. No de Vila Franca (próximo, pelos contrastes, dos alentejanos), 7 explorações com mais de 500 ha, representando menos de 0,5 % das explorações, detêm 52 % da terra de cultura arvense e 28 com mais de 100 ha, representando menos de 2 % do número, detêm 75 % da área. No de Oeiras, 2 explorações com mais de 500 ha, 2 % do número, detêm 25 % da terra e 12 com mais de 100 ha, 10 % do número, detêm 70 % da terra.

Noutros concelhos, tomando-se como medida das maiores explorações não os 500 ou 100 ha, mas os 50 ou os 10 ha, a situação não é menos nítida. Assim, tomando as explorações com mais de 50 ha nos concelhos de Azambuja e Cascais menos de 1 % do número abarcam respectivamente 53 % e 44 % da área. Tomando as com mais de 10 ha, no de

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Azambuja, 2 % do número abarcam 63 % da área, no de Cascais, respectivamente 5 % e 63 %; no de Alenquer, 3 % e 43 %; no de Loures, 4 % e 54 %; no de Sintra, 3 % e 39 %. No concelho de Azambuja, as 16 maiores explorações têm quatro vezes mais terra do que as 1737 mais pequenas (com menos de 1 ha de cultura arvense).

Apesar de que, em todos os concelhos do distrito, o grande número de explorações médias (de 1 a 5 ha de cultura arvense) reduz os contrastes, estes são suficientemente nítidos, como se acaba de ver, na maior parte dos concelhos. E mesmo nos restantes (Arruda dos Vinhos, Cadaval, Lourinhã, Mafra, Sobral e T. Vedras), embora haja maior equilíbrio do tamanho das explorações no que respeita a cultura arvense (para um panorama mais preciso seria necessário incluir a vinha), importantes diferenças se podem notar. Assim, por exemplo, na Arruda, as explorações com menos de 1 ha, sendo 52 % do número, têm apenas 14 % da área.

6. Distrito de Santarém — Tal como no distrito de Lisboa, também no de Santarém, tomado globalmente, não são dominantes as posições das explorações com mais de 500 ou de 100 ha. No entanto, 195 explorações com mais de 100 ha, no total de 60.494 explorações, ou seja, 0,3 %, detêm 77.050 no total de 214.730 ha de cultura arvense, isto é, 36 %. O contraste torna-se mais nítido comparando as maiores explorações com as mais pequenas:

Explorações Número HectaresCom menos de 1 ha 34.719 15.576Com 100-500 ha 161 37.550Com mais de 500 ha 34 39.500

As 195 explorações com mais de 100 ha têm cinco vezes mais terra do que as 34.719 com menos de 1 ha e estas têm ainda menos de metade do que que as 34 maiores.

Pode ter-se uma ideia global da situação no distrito, tomando os 10 ha como limite entre as maiores e as mais pequenas. A situação apresenta-se então assim:

Explorações Número Percentagem

Hectares

Percentagem

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Com menos de 10 ha 58.405 96,5 84.410 39,3Com mais de 10 ha 2.089 3,5 130.320 60,7

Total 60.494 100,0 214.730 100,0

Vê-se que menos de 4 % das explorações abarcam pouco menos de dois terços da terra de cultura arvense, o que, embora noutra escala, oferece um contraste não menos nítido do que no distrito de Beja, por exemplo.

Quanto às diferenças entre os concelhos do distrito, em alguns predominam nitidamente as grandes explorações. É o caso de Abrantes, Benavente, Chamusca, Coruche e Golegã, onde as explorações com mais de 100 ha, representando de 0,5 % a 3% do número total de explorações, detêm mais de metade da área de cultura arvense. No conjunto destes cinco concelhos, 108 explorações no total de 10.569, ou seja, 1% das explorações, detêm 48.400 no total de 86.585 ha, isto é, 56% da área de cultura arvense. No concelho de Abrantes, 34 explorações possuem quase dez vezes mais terra do que as 4.531 explorações mais pequenas! Nestes concelhos, as explorações com mais de 500 ha, embora não abarcando metade da terra, não deixam de ocupar importante lugar: no conjunto dos cinco concelhos, 23 explorações detêm nada menos de um terço da área de cultura arvense.

Seguem-se os concelhos de Almeirim, Alpiarça, Cartaxo, Constância, Salvaterra e Santarém, em qualquer dos quais um reduzido número de explorações com mais de 50 ha, representando cerca de 1% do número, abarca pouco menos de metade da área. Tomando as explorações de mais de 10 ha (nestes concelhos como no do Entroncamento, T. Novas e V. N. da Barquinha), 2% a 8% do número abrangem 51% a 71% da terra.

Quanto aos restantes concelhos (Alcanena, Rio Maior, Sardoal, Tomar, F. do Zêzere, Mação e V. N. de Ourém), apenas nos quatro primeiros pesam alguma coisa as explorações de mais de 10 ha, com 1% a 2% das explorações detendo de 20% a 40% da área de cultura arvense. Nos outros três a sua importância é quase nula, sobretudo nos de Mação e V. N. de Ourem, onde não ocupam mais que, respectivamente, 3 % e 1 % da área. Entretanto, embora

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predominando a pequena propriedade (no que respeita à cultura arvense) não se deixam de notar visíveis contrastes. No conjunto dos sete concelhos, enquanto 883 explorações com mais de 5 ha detêm 30 % da terra, 18.480 explorações com menos de 1 ha detêm apenas 18%.

7. Distrito de Castelo Branco — Dadas as grandes diferenças entre os vários concelhos do distrito, os números globais referentes às maiores explorações apresentam-se muito semelhantes aos do distrito de Santarém: 179 explorações, com mais de 100 ha, no total de 43.715 explorações, ou seja, 0,4%, detêm 64.050 no total de 187.016 ha, ou seja, 35%. O contraste torna-se mais nítido comparando as maiores explorações com as mais pequenas:

Explorações Número HectaresCom menos de 1 ha 26.570 10.256Com 100-500 ha 156 34.800Com mais de 500 ha 23 25.250

As 179 explorações de mais de 100 ha possuem seis vezes mais terra de cultura arvense do que as 26.570 de menos de 1 ha e estas não alcançam sequer metade daquilo que possuem as 23 maiores.

Para se ter uma ideia global da situação do distrito podem tomar-se os 10 ha (tal como se fez para Santarém) como limite entre as maiores e as mais pequenas. Teremos então:

Explorações Número Percentagem

Hectares

Percentagem

Com menos de 10 ha 41.052 93,9 56.266 30,1Com mais de 10 ha 2.663 6,1 130.750 69,9

Total 43.715 100,0 187.016 100,0

Vê-se que 6% das explorações abarcam mais de dois terços da terra. Estudada a situação nos concelhos, um se destaca pelo predomínio das grandes explorações: o de Idanha-a-Nova, onde 114 com mais de 100 ha, representando apenas 4 % das explorações, possuem 60 % da terra de cultura arvense, e onde 20 com mais de 500 ha

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representando menos de 1 % do número abarcam 28 % da área. Segue-se o de Castelo Branco, onde 23 explorações com mais de 100 ha, menos de 0,5 % do número, detêm cerca de um terço da área e onde as com mais de 10 ha, representando 6 % do número, detêm 69 % da área. No concelho de Penamacor, os contrastes são esbatidos pela elevada percentagem de explorações com mais de 10 ha; mostra-se, porém, que as de mais de 50 ha, sendo 1 % do número, detêm 21 % da área. Nos concelhos de Belmonte, Covilhã, Fundão, Vila Velha de Ródão, as explorações de mais de 10 ha, representando de 2 % a 6 % do número, detêm de 39 % a 51 % da área.

Nos restantes concelhos (Oleiros, Proença, Sertã e Vila do Rei) rareiam as explorações com mais de 10 ha de cultura arvense (em Vila do Rei não aparece nenhuma com mais de 5 ha) e esbatem-se ainda mais os contrastes, que se revelariam, sem dúvida, se pudéssemos estudar a divisão da propriedade dos pinhais que predominam nestes concelhos. Não se mostra, todavia, um nivelamento. No conjunto dos quatro concelhos, as explorações com menos de 1 ha de cultura arvense, representando 79 % do número, ocupam apenas 37 % da área.

8. Distrito de Faro — Considerando o distrito no seu conjunto, os números são menos significativos que nos distritos que acabamos de estudar. O confronto das maiores explorações com as mais pequenas não deixa, porém, de oferecer um nítido contraste:

Explorações Número HectaresCom menos de 1 ha 11.920 5.486Com 50-100 ha 143 10.725Com mais de 100 ha 41 10.150

11.920 explorações no total de 36.112, ou seja, 33 % das explorações, possuem 5.486 no total de 191.106 ha, ou seja, apenas 3 % da terra de cultura arvense. As 184 explorações com mais de 50 ha possuem cerca de quatro vezes mais terra que as citadas 11.920. E as 41 com mais de 100 ha possuem, também, quase o dobro destas.

Apesar da área de cultura arvense relativamente pouco extensa que cabe às explorações de mais de 50 ha no

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conjunto do distrito (11 % do total), nalguns concelhos um número reduzido de explorações com tal dimensão abarca parte considerável da terra. Nos concelhos de Alcoutim, Algezur, Faro, Lagoa, Portimão, Vila do Bispo e V. R. de Santo António, 97 explorações, representando apenas 1 % do número, detêm um quinto da área. Essas 97 explorações possuem mais do dobro da terra de cultura arvense que as 11.920 com menos de 1 ha existentes em todo o distrito.

Noutros concelhos, as explorações com mais de 10 ha, em número relativamente reduzido, detêm um terço, dois quintos e mais da terra de cultura arvense. É o caso de Loulé, Monchique, Albufeira e Lagos, onde elas representam de 5 % a 12 % do número e detêm de 36 % a 45 % da área.

Nos demais concelhos são mais apagados os contrastes, seja porque, como no caso de Castro Marim, Silves e Tavira, as explorações de mais de 10 ha, abarcando embora dois terços ou três quartos da terra, correspondem, também, a uma elevada quota do número total das explorações; seja porque, como no caso de Alportel e Olhão, não são indicadas explorações com essas dimensões. Nestes dois últimos concelhos verifica-se, entretanto, que as explorações com mais de 5 ha, representando 10 % do número, detêm 40 % da área.

Estudados os distritos que se situam total ou parcialmente em regiões de grande propriedade, restam aqueles onde predominam as explorações agrícolas de pequena ou moderada extensão. Nesses distritos é difícil fazer uma correcta ideia da divisão da propriedade, pois seria necessário considerar também, não só outras culturas, como o facto de haver quem tenha mesmo de "conta própria" mais de uma exploração ou, arrendadas, numerosas pequenas explorações. Mesmo, porém, sem se tomarem em conta esses factores, a simples estimativa, na mesma base da feita para os distritos já citados, mostra estar-se longe, nos chamados distritos de pequena propriedade, de uma equitativa distribuição da terra. Comecemos o seu estudo pelo extremo nordeste transmontano.

9. Distrito de Bragança — O predomínio das explorações com 1-5 ha de cultura arvense apaga, em larga medida, os contrastes. As explorações com mais de 5 ha ocupam, é certo, 77 % da área de cultura arvense, mas correspondem

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também a uma elevada quota (36%) do número total de explorações. Entretanto, o confronto das maiores com as mais pequenas não deixa de ser significativo:

Explorações Número Percentagem

Hectares

Percentagem

Com menos de 1 ha 6.505 18,6 2.801 1,4Com 10-50 ha 4.750 13,5 90.020 44,1Com mais de 50 ha 92 0,3 7.850 3,8

Salta à vista a desigualdade. As 4.842 de mais de 10 ha (com a média de 20 ha de cultura arvense) têm 35 vezes mais terra que as 6.505 de menos de 1 ha (média: 0,4 ha). As 92 maiores explorações têm quase três vezes mais terra que as 6.505 mais pequenas.

Os concelhos do distrito não oferecem grandes diferenças entre si, correspondento todos, nas suas linhas gerais, à situação do distrito no seu conjunto. É, todavia, de notar que onde os contrastes são mais visíveis é precisamente no concelho onde são menos numerosas as explorações com mais de 5 ha: Car-razeda de Ansiães. Em todos os outros concelhos, as áreas de cultura arvense que cabem a tais explorações sobem, é certo, a mais de metade da área total e, em cinco, a mais de 80 %; mas também o seu número vai de 20 % a 60 %. Em Carrazeda, embora representando apenas 5 % do número, elas detêm 33 % da área. Este exemplo mostra como a nitidez dos contrastes nem sequer coincide com o predomínio das explorações de grande extensão. A verificação tem importância para o estudo do problema nas regiões de pequena propriedade.

10. Distrito de Vila Real— Ao contrário do de Bragança, no distrito de Vila Real os números globais do distrito são bastante significativos: 3526 explorações com mais de 5 ha, representando 8 % das explorações, detêm 38 430 no total de 88 314 ha, ou seja, 44 % da área de cultura arvense. O contraste torna-se mais nítido comparando as maiores explorações com as mais pequenas:

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Explorações Número HectaresCom menos de 1 ha 23.422 9.420Com mais de 10 ha 932 18.975

As 932 maiores explorações, apesar da sua moderada extensão, possuem o dobro da terra de cultura arvense do que as 23.422 mais pequenas.

As diferenças entre os concelhos do distrito são muito acentuadas. Nos de Boticas, Montalegre, Murça e Valpaços, um número restrito de explorações com mais de 10 ha, representando de 2 % a 10 % do número total, detêm parte importante da terra (de 18 % a 43%). Nos de Alijó, Chaves e Vila Pouca de Aguiar, o mesmo sucede com as explorações de mais de 5 ha, pois cerca de 3 % do número detêm de 18 % a 33 % da área. Nos restantes concelhos (Ribeira de Pena, Mondim de Basto, Régua, Mesão Frio, Sabrosa, Santa Marta de Penaguião) cabe uma quota reduzida da área de cultura arvense às explorações com mais de 5 ha. Isto deve-se, em grande parte, a ser a cultura arvense nesses concelhos muito reduzida, especialmente nos quatro últimos, em pleno Alto Douro, onde impera a vinha. Segundo a nossa estimativa, em nenhum destes seis concelhos a cultura arvense chega a ocupar 10 % da superfície territorial. Os contrastes haveria que estudá-los em relação à vinha, mas isso não pode fazê-lo a presente estimativa.

11. Distrito de Viária do Castelo — Dado o predomínio das explorações de 1 a 3 ha e o reduzido numero daquelas que têm mais de 5 ha de cultura arvense (apenas 225 no total de 43 883, não abrangendo mais de 5% da terra), os contrastes são muito atenuados. Da medida da desigualdade pode, entretanto, fazer-se uma ideia pelo confronto das maiores com as mais pequenas explorações: enquanto 15 912 explorações com menos de 0,5 ha, representando 36 % do total, têm apenas 4056 ha, 1267 explorações com mais de 3 ha têm 6431 ha.

Visto assim o panorama do distrito, tem-se uma ideia daquele que cada concelho oferece, pois nenhum apresenta a este respeito particularidade merecedora de atenção.

12. Distrito de Braga — Embora, no distrito de Braga, escasseiem as explorações com mais de 50 ha de cultura

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arvense (apenas 15) os contrastes são mais nítidos que no de Viana do Castelo. De facto, 4.042 explorações com mais de 5 ha, no total de 48.068 explorações, ou seja, 8 % do número, detêm 36.860 no total de 98.058 ha, ou seja, 38 % da área. A comparação das maiores explorações com as mais pequenas dá uma ideia mais precisa da situação:

Explorações Número HectaresCom menos de 1 ha 23.329 9.526Com 5 - 10 ha 3.470 26.025Com mais de 10 ha 572 10.835

Vê-se que 4.042 explorações têm cerca de quatro vezes mais terra que as 23.329 mais pequenas e que estas têm menos ainda que as 572 com mais de 10 ha.

Os concelhos oferecem diferenças a notar. Nos de Braga, Guimarães, Vila Verde e Famalicão, às explorações com mais de 10 ha de cultura arvense, representando de 1 % a 4 % do número, cabem de 15 % a 27 % da área — o que representa parcela de certa importância. Noutros (Amares, Barcelos, Bs-posende, Fafe, Póvoa de Lanhoso) sucede coisa semelhante com as explorações cora mais de 5 ha: 5 % a 8 % das explorações abarcam de 20 % a 32 % da terra. Nos restantes (Cabeceiras e Celorico de Basto, Terras do Bouro e Vieira), as explorações com mais de 5 ha de cultura arvense são em pequeníssimo número, menos de 2 % do total, e não lhes cabe mais de 1 % a 8 % da área.

13. Distrito do Porto — No distrito do Porto são ainda mais raras que no de Braga as explorações com mais de 50 ha (apenas 7). No entanto, aquelas com mais de 10 ha, representando apenas 2 % das explorações, detêm um quinto da terra de cultura arvense e 5492 com mais de 5 ha no total de 54 570, representando pois 10 % do número, detêm 52 558 no total de 11 922 ha, ou seja, 47 % da área. A comparação das maiores explorações com as mais pequenas dá uma ideia mais precisa da situação:

Explorações Número HectaresCom menos de 1 ha 29.922 9.770Com 5 - 10 ha 4.331 32.483Com mais de 10 ha 1.161 20.075

Page 213: Contribuição Para o Estudo Da Questão Agrária

Vê-se que 5492 explorações têm mais de cinco vezes mais terra de cultura arvense que as 29 922 mais pequenas e que estas (representando 55 % do número total de explorações e detendo apenas 9 % da terra) têm ainda menos de metade que as 1161 com mais de 10 ha.

A situação nos concelhos é desigual quanto à extensão das explorações, mas semelhante quanto ao aspecto dos contrastes. Nalguns concelhos, as explorações com mais de 10 ha, representando uma mínima parte das explorações, possuem importante quota da terra: nos de Amarante, Maia, Matosinhos, Santo Tirso, Vila do Conde e Lousada representam 2 % a 15 % do número e detêm de 20 % a 49 % da área. Noutros sucede o mesmo com as explorações de mais de 5 ha: nos de Baião, Felgueiras, Gondomar, Marco, Paredes, Penafiel, Porto, Póvoa e V. N. de Gaia representam de 2 % a 12 % do número e detêm de 21 % a 44 % da área.

Nalguns concelhos o predomínio das explorações de 1 a 5 ha (particularmente de 1 a 3 ha) atenua muito os contrastes. O estudo das explorações mais pequenas permite contudo avivá-los. Assim, tomando explorações com menos de 1 ha: em Amarante elas representam 48 % do número e possuem 7 % da área; em Baião, respectivamente 54% e 14 %; no Marco, 51 % e 10 %; em Paços de Ferreira, 61 % e 18 %. Tomando explorações com menos de 0,5 ha: em Felgueiras, representam 57 % do número e possuem apenas 7 % da área; no Porto, respectivamente 48 % e 10 %; em V. N. de Gaia, 60 % e 12 %. Finalmente, tomando explorações com menos de um quarto de hectare: na Maia representam 64 % do número e possuem apenas 6 % da área; em Matosinhos, respectivamente 63 % e 6 %. Vê-se, com toda a clareza, a situação de nítido desfavor das mais pequenas explorações.

14. Distrito de Aveiro — Praticamente inexistentes as explorações com mais de 50 ha de cultura arvense (apenas 3), predominantes em alguns concelhos as explorações de 1 a 5 ha, os contrastes são pouco nítidos. Entretanto, as explorações com mais de 5 ha, representando 5 % das explorações, detêm 25 % da terra de cultura arvense. A sua comparação com as explorações mais pequenas esclarece melhor a situação:

Explorações Número Percentage Hectare Percentage

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m s mCom menos de 1 ha 31.650 52,1 14.642 14.1Com mais de 5 ha 3.003 4,9 25.905 24.9

Vê-se que 3.003 explorações com mais de 5 ha detêm quase o dobro da terra do que as 31.650 com menos de 1 ha, as quais, representando embora mais de metade do número, possuem apenas 14 % da área.

Observada a situação nos diversos concelhos, apenas no de Albergaria-a-Velha as explorações com mais de 10 ha de cultura arvense ocupam importante parte da área: 89, representando 3 % do número, possuem 21 % da área, enquanto 1433, com menos de 1 ha, representando 48 % do número, possuem apenas 9 % da área. Seguem-se os concelhos de Águeda, Aveiro, Estarreja, Feira, Ílhavo, Murtosa, Oliveira de Azeméis, Oliveira do Bairro, Ovar e Vagos, onde as explorações com mais de 5 ha, embora em número reduzido, ocupam uma quota da área relativamente importante. Nos de Aveiro e Murtosa representam 7 % do número e possuem 31 % da área, enquanto as com menos de 1 ha representam respectivamente 42 % e 56 % do número e possuem apenas 9 % e 14 % da área; no de Ovar, representam 6 % do número e possuem 28 % da área, enquanto as com menos de 1 ha representam 48 % do número e possuem apenas 12 % da área. Apesar de região das mais características de pequena propriedade, está-se longe de um nivelamento.

Nos restantes concelhos, as explorações com mais de 5 ha pouco representam, não chegando a ter 10 % da área de cultura arvense nos concelhos de Arouca, Espinho e Mealhada, e nem sequer 1 % nos de Sever do Vouga e Vale de Cambra.

15. Distrito de Viseu — Salvo Viana do Castelo e Leiria, em nenhum outro distrito as explorações com mais de 5 ha de cultura arvense ocupam tão modesto lugar como no de Viseu: 3 % do número, 19 % da terra. O confronto das maiores com as menores não deixa contudo de ser esclarecedor: enquanto 8520 com mais de 3 ha, representando 10 % do número, possuem 48.390 ha, correspondentes a 36 % da área, 45.850 com menos de 1 ha, representando 53 % do número,

Page 215: Contribuição Para o Estudo Da Questão Agrária

possuem apenas 21.963 ha, correspondentes a 16 % da área. Um décimo das explorações possui assim mais do dobro da terra que mais de metade das mesmas.

Se a situação, no conjunto do distrito, não oferece mais nítidos contrastes, outro tanto não sucede em alguns concelhos. No de Penalva do Castelo, as explorações de mais de 10 ha representam 3 % do número e detêm 32 % da área e as de mais de 5 ha, representando 8 % do número, detêm 45 % da área; em confronto com estas, as de menos de 1 ha representam 43 % do número e detêm apenas 9 % da terra. No de Penedono, as de mais de 10 ha representam 5 % do número e detêm 32 % da terra, enquanto as de menos de 1 ha representam 33 % do número e detêm apenas 6 % da terra.

Noutros concelhos (Moimenta, Mortágua, Resende, S. João da Pesqueira, S. Pedro do Sul, Sernan-celhe, Tabuaço e V. N. de Paiva) observa-se situação semelhante em relação às explorações de mais de 5 ha: 4 % a 14 % das explorações, possuindo de 20 % a 48 % da terra, enquanto as explorações de menos de 1 ha, representando de 33 % a 57 % do número, possuem apenas de 6 % a 15 % da área.

Nos restantes 14 concelhos, o peso das explorações de mais de 5 ha é muito reduzido, havendo 10 concelhos onde não chegam a possuir 10 % da área. Nesses, os contrastes são necessariamente mais atenuados.

16. Distrito da Guarda — Apesar do reduzido número das explorações com mais de 50 ha de cultura arvense (apenas 72 detendo 3 % da área), os contrastes são nítidos: 3.867 explorações de mais de 10 ha, no total de 52.356, abarcam 80.310 no total de 189.264 ha. É esclarecedora a comparação das maiores explorações com as mais pequenas:

Explorações Número Percentagem

Hectares

Percentagem

Com menos de 1 ha 21.386 40,8 9.014 4,8Com mais de 10 ha 3.867 7,4 80.310 42,4

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Vê-se que as 3.867 maiores explorações detêm quase nove vezes mais terra que as 21.386 mais pequenas. As primeiras, representando apenas 7 % das explorações, possuem 42 % da terra; as últimas, representando 41 % das explorações, possuem apenas 5 % da terra. O contraste é flagrante.

Guarda oferece o aspecto particular de serem mais nítidos os contrastes no distrito considerado em globo do que nos seus concelhos considerados separadamente. Entretanto, em alguns, a posição das maiores explorações é igualmente clara. Tomando as explorações com mais de 10 ha: em Celorico da Beira representam 4 % do número e detêm 30 % da área; na Guarda, respectivamente 11 % e 54 %; em Meda, 8 % e 34 %; em Pinhel, 11 % e 46 %; no Sabugal, 8 % e 37 %; em Trancoso e V. N. de Foz Côa, 4 % e 27 %. Tomando as com mais de 5 ha: em Fornos de Algodres, 6 % e 29 %; em Gouveia, 3 % e 27 %; em Manteigas, 3 % e 22 %; em Trancoso, 13 % e 53 %. Nos restantes concelhos, a situação aparece menos clara, dois havendo (Aguiar da Beira e Seia) onde as explorações de mais de 5 ha ocupam modesto lugar.

17. Distrito de Coimbra — Às explorações com mais de 10 ha de cultura arvense, representando menos de 1 % das explorações, cabem 10 % da área. Às com mais de 5 ha (3.799 no total de 73.821, ou seja 5 %) cabem 36.743 no total de 127.324 ha, ou seja, 29 %. O confronto com as mais pequenas dá uma ideia mais nítida da situação:

Explorações Número Percentagem

Hectares

Percentagem

Com menos de 1 ha 40.452 54,8 19.547 15,3Com mais de 5 ha 3.799 5,1 36.743 28,9

Vê-se que 3.799 explorações de mais de 5 ha detêm quase o dobro da terra das 40.452 menores, que, embora correspondendo a mais de metade das explorações, possuem apenas 15 % da terra de cultura arvense.

Os concelhos do distrito oferecem diferenças muito sensíveis. No da Figueira da Foz, as explorações com mais de 10 ha, representando 2 % do número, possuem 21 % da área,

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as com mais de 5 ha, representando 11 % do número, possuem 47% da área, e as com menos de 1 ha, embora representando 45% do número, possuem apenas 8 % da área. No concelho de Montemor-o-Velho, as com mais de 10 ha, representando 3 % do número, possuem 19 % da área, as com mais de 5 ha, representando 15 % do número, possuem 50 % da área e as com menos de 1 ha, embora representando 36 % do número, apenas possuem 6 % da área. São estes os dois concelhos onde se notam mais nítidos contrastes. Entretanto, também noutros são claros: no de Coimbra, enquanto as explorações com mais de 5 ha representam 2 % do número e 17 % da área, as com menos de 1 ha representam respectivamente 67 % e 24 %. Também no de Soure as de mais de 5 ha, representando 6 % do total das explorações, detêm 29 % da terra de cultura arvense.

Nos restantes concelhos, as explorações com mais de 5 ha, ou ocupam muito modesto lugar (menos de 5 % da área de cultura arvense nos concelhos de Góis, Pampilhosa da Serra, Penacova, Penela, Poia-res), ou, embora abrangendo parte importante da área, correspondem também a elevada quota do número de explorações (Mira: 14 % do número e 31 % da área). Nesses concelhos, os contrastes são necessariamente mais esbatidos.

18. Distrito de Leiria — Depois de Viana do Castelo, é Leiria o distrito onde as explorações com mais de 5 ha de cultura arvense ocupam mais modesto lugar: 2 % do número, 14 % da terra. O confronto das maiores com as mais pequenas não deixa, porém, de ser esclarecedor: enquanto 4.396 com mais de 3 ha (7 %) possuem 24.628 ha (30 %), 40.374 com menos de 1 ha (63 %) possuem apenas 18.786 ha (23 %). As maiores, apenas 7 %, possuem mais terra do que as mais pequenas, que constituem, entretanto, 63 % do total.

Os concelhos apresentam um panorama semelhante ao do distrito no seu conjunto. Deve, no entanto, salientar-se o concelho de Óbidos, onde 15 explorações de mais de 10 ha (menos de 1 % das explorações), detêm 16 % da terra, e 92 de mais de 5 ha (4 %) detêm 28 % da terra. Em mais nenhum concelho as explorações com mais de 5 ha de cultura arvense chegam a ocupar 20 % da área, e 6 há (Alvaiázere, Bombarral, Castanheira de Pêra, Figueiró dos Vinhos,

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Pedrógão Grande e Porto de Mós) onde não ocupam sequer 10 %. Daí a atenuação dos contrastes. Porém, em Alcobaça, Caldas da Rainha, Leiria e Nazaré a posição das maiores explorações apresenta-se destacada: representando 2 % e 3 % do número, possuem de 16 % a 19 % da área.

Assim terminamos o estudo de todos os distritos do continente. A estimativa feita ajuda a formar uma ideia mais exacta do regime da propriedade. Confirma a divisão do País em duas grandes zonas — onde predomina a grande e onde predomina a pequena propriedade—, confirma e acentua os monstruosos contrastes nas regiões de grande propriedade e (embora de forma insuficiente) revela — julgamos que pela primeira vez — a real importância dos contrastes nas regiões de pequena propriedade.

Alguns Exemplos Concretos

Os cálculos das áreas médias de prédios e de explorações e as estimativas atrás expostas dão uma ideia geral aproximada, mas não um quadro suficientemente preciso. Para isso, não existem, infelizmente, publicados elementos a respeito de todo o território continental, mas apenas alguns dados raros e dispersos: dois distritos, duas freguesias. Considerando, porém, o seu enorme interesse, a seguir os apresentamos como exemplos concretos, apesar de já não serem recentes e de já inúmeras vezes citados e reproduzidos. Trata-se de zonas onde predomina a grande propriedade, e todos esses casos reforçam a prova do que atrás se diz da real extensão e do elevadissimo grau de concentração das propriedades rústicas. Não possuímos nem conhecemos elementos semelhantes referentes a zonas onde predomina a pequena propriedade. Temos, todavia, por certo que, quando estudos directos forem feitos e publicados, eles revelarão que as terras possuídas por grandes proprietários em tais zonas ocupam considerável extensão. E, como outro tanto não sucede com os pequenos proprietários nas zonas de grande propriedade, onde, embora constituindo a esmagadora maioria, possuem escassa superfície, não é ousado prever que se mostrará, então, sem sombra de dúvida, que os grandes proprietários rurais e as grandes explorações agrícolas abrangem, em Portugal, a maior parte do território.

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Na zona de grande propriedade, a terra pertence praticamente a um número reduzidíssimo de proprietários. Na freguesia de Santo Indefonso (concelho de Eivas) 26 grandes propriedades (de mais de 80 ha) ocupavam uns anos atrás 4.480 ha, 8 médias (de 40 a 80 ha) ocupavam 504 ha e 254 pequenas ocupavam 674 ha(21), sendo as áreas médias dos grandes, médios e pequenos prédios respectivamente 172, 63 e 2,6 ha. As grandes propriedades (9 % do número total) ocupavam 81 % da área total da freguesia. A este predomínio absoluto dos grandes prédios corresponde, com redobrada razão, o predomínio absoluto dos grandes proprietários. Treze proprietários no total de 118, ou seja, 11 % dos proprietários, possuíam 4656 no total de 5658 ha, ou seja, 82 % da área total da freguesia, à média de 358 ha por proprietário. Mas 12 deles tinham outras propriedades fora da freguesia, no total de 15.332 ha, o que dá a média de 1.278 ha por cada um. Quer dizer: em média, cada um destes 12 grandes proprietários tinha mais terra que todos os outros 106 restantes proprietários da freguesia reunidos. Só estes 12 grandes proprietários possuíam uma área sensivelmente igual à do concelho de Marvão, no mesmo distrito de Portalegre, concelho onde em 1949 existiam 3.470 prédios rústicos. Mas os 15.000 ha não eram igualmente distribuídos pelos 12. Três tinham entre 1.000 e 1.500 ha; três entre 1.500 e 2.000 ha e um tinha 4000 ha(22).

Situação semelhante se apresentava na freguesia de Cuba, apesar de ser o concelho de Cuba aquele do distrito de Beja onde é mais baixa a área dos prédios rústicos: 4,4 ha em 1949. Afirma-se mesmo que nele existem "núcleos relativamente importantes de pequenas propriedades"(23) e que, em relação à região, "se distingue pela existência de um avultado número de pequenos prédios rústicos", sendo assim o que "mais se afasta da feição regional no que se refere à área e ao regime das explorações agrícolas"(24). Há quem vá mesmo ao ponto de dizer que no concelho existe "uma divisão excessiva de propriedade"(25). Mal-grado essas afirmações, predominam aí em absoluto as grandes propriedades e os grandes proprietários.

Segundo o inquérito sobre a freguesia, realizado em 1934, 69 % da área total era ocupada por 19 prédios (1 % do número total dos prédios) de mais de 150 ha, dos quais 11 prédios (0,6 % do total) de mais de 300 ha ocupavam 57 % da

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área da freguesia(26). A situação na freguesia era aliás semelhante à situação no conjunto do concelho, onde 21 prédios de mais de 200 ha (0,5 % dos prédios) ocupavam, em 1934, 9605 no total de 16 988 ha, ou seja, 56 % da área total do concelho(27).

Quanto à divisão das terras pelos proprietários da freguesia, a tabela 21 dá uma descrição muito precisa.

TABELA 21Divisão da propriedade na freguesia de Cuba(28)

Categoria de

propriedade

Proprietários Áreas correspondentes

Número Percentagem

Hectares

Percentagem

Até 10 ha 734 93,15 1.192 10,69De 10 a 30 ha 31 3,94 490 4,39De 30 a 150 ha 12 1,52 677 6,05De 150 a 1000 ha 8 1,01 3.023 27,09Mais de 1000 ha 3 0,38 5.784 51,78

Total 788 100,00 11.166 100,00

Vê-se que, enquanto 734 proprietários sobre o total de 788, ou seja, 93 % dos proprietários, possuíam apenas 1.192 do total de 11.166 ha, ou seja, menos de 11 % das terras, 11 proprietários, isto é, menos de 2 % dos proprietários, possuíam 8.807 ha, correspondendo a 79 % da área total, e 3 proprietários (menos de meio por cento) possuíam 5.784 ha, mais de metade da área da freguesia, à média de 1.928 ha por proprietário.

Vendo de mais perto os números relativos às propriedades de área inferior a 10 ha, nota-se que dos citados 734 proprietários 204 tinham menos de 0,5 ha, 185 de 0,5 a 1 ha e 175 de 1 a 2, possuindo todos estes em conjunto 454 ha. Isto é: 564 proprietários, correspondendo a 72 % dos proprietários da freguesia, possuíam apenas 454 ha, 4 % das terras. Só os três maiores proprietários da freguesia tinham (na freguesia) mais de 12 vezes mais terra do que o meio

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milhar de pequenos proprietários. Aqui temos o que são, o que valem e o que pesam os "núcleos relativamente importantes de pequenas propriedades". Aqui temos aquilo a que se chama "uma divisão excessiva de propriedade", verdade decerto, se com esta expressão se significasse que os pequenos proprietários possuem terra de menos, mas falsidade completa se com ela se insinua (e é o caso) que ninguém aí possui terra de mais.

O estudo destas duas freguesias revela a verdadeira situação que se esconde por detrás das áreas médias dos prédios rústicos. Esta elevadíssima concentração de propriedade é o caso não apenas destas duas freguesias, mas de todo o Alentejo. O estudo de dois distritos que se segue, não só comprova os contrastes assinalados nestas duas freguesias como os expõe a uma luz ainda mais crua.

Os números são de um estudo inédito da Junta de Colonização Interna e revelados num livro de 1947. A tabela 22 mostra a situação no distrito de Portalegre.

TABELA 22Divisão da propriedade no distrito de Portalegre(29)

Categoria de 

propriedade

Áreas Número de

proprietários

Áreas Hectares por

proprietário

Hectares

Percentagem

Hectares

Percentagem

Menos de 60 ha

175.736 29,0 20.191 175.7

36 29,0 ?

De 60 a 250 ha

91.255 15,1 344 48.96

7 8,0 142,3De 250 a 1000 ha

237.540 39,0 369 183.0

52 30,3 491,1

Mais de 1000 ha

101.049 16,9 96 197.8

25 32,7 2.060,7

Total 605.580 100,0 21.000 605.5

80 100,0 28,8

Esta tabela dá indicações de inapreciável valor acerca da divisão da propriedade no distrito de Portalegre.

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Quanto à extensão das propriedades, vê-se que 71 % das terras do distrito são ocupadas por prédios de mais de 60 ha, 56 % por prédios de mais de 250 ha e 17 % por prédios de mais de 1.000 ha. O mesmo estudo indica serem 1.210 os prédios com mais de 60 ha, mas não indica (nos números divulgados), o número dos prédios de menos de 60 ha. Se tomarmos como número total de prédios do distrito o indicado nas estatísticas oficiais - mais de 69.000 em qualquer dos onze anos que antecedem o ano da edição do citado livro(30) - conclui-se que o número de prédios de área inferior a 60 ha subiria a mais de 67.000. Isto é: enquanto mais de 67.000 prédios, correspondendo a mais de 98 % do total dos prédios, ocupariam menos de 30 % da área do distrito, 1.210 prédios, correspondendo a menos de 2 % do total de prédios, ocupariam mais de 70 % da área do distrito.

Quanto ao número de proprietários, aparece na tabela original (conforme se diz em nota à tabela 22) uma interrogação com respeito aos proprietários de prédios de menos de 60 ha. Mas, se tomarmos o número de colectas como sendo igual ao número de proprietários vê-se que, no total de 21.000 proprietários, enquanto mais de 20.000, correspondendo a mais de 96 % do total dos proprietários do distrito, possuem menos de 30 % da área total à média de 9 por ha por proprietário, 809 proprietários, correspondendo a menos de 4 % dos proprietários, possuem mais de 70 % da área do distrito à média de 531 ha por proprietário. Isto não tendo em conta que muitos dos prédios de menos de 60 ha pertencem sem dúvida alguma a proprietários que têm mais de 60 ha - indiscutível e importante realidade esta que a tabela oculta. Na verdade, os 20.000 mais pequenos proprietários não têm em média nada que se pareça com os 9 ha; e os 809 grandes têm nitidamente mais que os 531 ha. Aliás, o próprio autor do livro que trouxe à luz os elementos de que nos servimos sublinha: "É opinião dos técnicos da Junta que se ocuparam da elaboração deste cadastro expedito (e também nossa em relação a algumas zonas em que nele cooperamos) que as manchas da pequena propriedade (inferiores a 60 ha) significam muitas vezes apenas divisão predial, e não repartição da terra por numerosos proprietários."(31) Mas outras conclusões comporta a tabela 22. Tomando apenas os proprietários que possuem mais de 250 ha, 465, pouco mais de 2 % dos proprietários do distrito, possuem 390.877 ha, correspondendo a 63 % da área total

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(além dos prédios de menos de 60 ha que esses mesmos proprietários possuem). E, reparando apenas nos maiores, vê-se que 96 proprietários no total de 21.000 (menos de 0,5 %) possuem 197.825 ha, 33 % da área total, à média de 2.061 ha por proprietário (além também dos prédios de menos de 60 ha aqui não incluídos).

Esses números singelos confirmam e excedem os resultados dos cálculos grosseiros e rudimentares com que fomos abrindo caminho. Na sua simplicidade tais cálculos pareciam talvez exagerados e até certo ponto grotescos aos olhos dos falsos amadores do rigorismo. Revela-se porém que pecam pela timidez.

A situação no distrito de Évora, mostrada na tabela 23, acrescenta novos e esmagadores elementos. Quanto à extensão das propriedades, vê-se que 85,5 % da área total é ocupada por prédios de mais de 60 ha, 67 % por prédios de mais de 250 ha e 18 % por prédios de mais de 1000 ha. O mesmo estudo indica serem 1719 os prédios com mais de 60 ha. Se tomarmos como número total dos prédios do distrito o indicado nas estatísticas oficiais - mais de 42.000 nos seis anos que antecederam a edição do citado livro- conclui-se que o número de prédios de área inferior a 60 ha subiria a mais de 40.000. Isto é: enquanto mais de 40.000 prédios, correspondendo a mais de 95 % do total dos prédios, ocupariam menos de 15 % da área do distrito, 1.719 prédios, correspondendo a menos de 5 % do total dos prédios, ocupariam mais de 85 % da área do distrito.

TABELA 23Divisão da propriedade no distrito de Évora(32)

Categoria de

propriedade

Áreas Número de

proprietários

Áreas Hectares por 

proprietário

Hectares

Percentagem

Hectares

Percentagem

Menos de 60 ha

107.046 14,5 14.905 107.0

46 14,5 ?

De 60 a 250 ha

133.863 18,1 459 67.00

2 9,1 146,0De 250 a 1.000

363.795

49,3 485 243.939

33,0 503,0

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haMais de 1.000 ha

133.550 18,1 151 320.2

67 43,4 2.121,0

Total 738.254 100,0 16.000 738.2

54 100,0 46,1

A tabela 23, no livro de onde a extraímos, não indica também o número de proprietários de prédios de menos de 60 ha. Mas se, tal como fizemos para o distrito de Portalegre, tomarmos o número de colectas como sendo igual ao número de proprietários, vê-se que, no total de 16.000 proprietários, enquanto mais de 14.000, correspondendo a mais de 93 %, possuíam menos de 15 % da área total, à média de 8 ha por proprietário, 1.095 proprietários, correspondendo a menos de 7 % dos proprietários, possuíam mais de 85 % da área total, à média de 576 ha por proprietário. Isto sem ter em conta os prédios de menos de 60 ha pertencentes a estes últimos proprietários, pois que, se pudessem ser considerados esses prédios, a área que caberia em média aos 1.095 maiores proprietários excederia em muito os 576 ha, assim como a área que caberia em média aos 14.000 pequenos proprietários ficaria muito longe dos 8 ha.

Mas outras conclusões comporta a tabela 23. Tomando apenas aqueles que possuem mais de 250 ha, 636 proprietários, menos de 4 % dos proprietários, possuíam 564.206 ha (fora os prédios de menos de 60 ha), ou seja, mais de 76 % da superfície total.

E, reparando apenas nos maiores, vê-se que 151 proprietários, no total de 16.000 (0,9 %) possuíam 320.267 ha, correspondendo a 43 % da superfície distrital à média de 2.121 ha por proprietário (além dos prédios de menos de 60 ha).

Estes 151 proprietários do distrito de Évora possuem mais terra do que os 66.000 proprietários do distrito do Porto, cuja área total é de 228.000 ha; possuem mais terra do que os 67.000 proprietários do distrito de Lisboa, cuja área total é de 275.000 ha; mais do que os 79.000 proprietários do distrito de Braga, cuja área total é de 273.000 ha; mais do que os 89.000 proprietários do distrito de Viana do Castelo, cuja área total é

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de 211.000 ha; mais do que os 122.000 proprietários do distrito de Aveiro, cuja área total é de 271.000 ha.

Somando as terras possuídas (sem contar com os prédios de menos de 60 ha, nem com o facto de haver quem tenha propriedade em mais de um distrito) pelos 247 maiores proprietários dos distritos de Évora e Portalegre, vemos que elas sobem a 518.092 ha, isto é, mais de um vigésimo da superfície do continente português: só estes 247 proprietários alentejanos possuem mais terras do que os distritos de Aveiro e Viana do Castelo reunidos, que ocupam 481.678 ha pertencentes a 211.000 proprietários.

Repare-se que nestes 211.000 proprietários dos distritos de Aveiro e Viana estão incluídos os grandes e os médios proprietários e pode bem ver-se que, se se fizesse uma selecção dos 500 maiores proprietários portugueses e se procurassem os mais pequenos proprietários até obter uma área territorial idêntica à dos primeiros de certeza não chegariam 500.000. Pode afirmar-se sem qualquer receio de exagero que os 500 maiores proprietários têm mais terras do que o meio milhão de mais pequenos proprietários portugueses.

Não existem publicados elementos tão minuciosos em relagão às restantes regiões de grande propriedade. Mas, tendo em conta que as áreas médias dos prédios rústicos nos distritos de Beja e Setúbal são mais elevadas do que respectivamente nos distritos de Portalegre e Évora; tendo em conta que os maiores latifúndios estão situados no distrito de Setúbal; tendo em conta que nos distritos de Castelo Branco, Santarém, Lisboa e Faro e ainda junto do Douro e raia beiroa existem vastas áreas onde domina a grande propriedade - ao reparar-se que os 1904 maiores proprietários dos distritos de Évora e Portalegre possuem (sem contar com os prédios de menos de 60 ha nem com as propriedades em mais de um distrito) mais de 1 milhão de hectares (quase uma oitava parte do território continental), não pode deixar de se pensar que menos de 10.000 grandes proprietários (no total de 1 milhão e meio de proprietários) possuem mais de metade das terras de Portugal continental.

Tal é, em linhas gerais, a grandeza dos contrastes que o regime de propriedade em Portugal nos oferece. Portugal é, a um tempo, um país de muito grandes e muito pequenos

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proprietários, com predomínio dos muito grandes proprietários. Só à conta de humorismo se podem considerar as afirmações de grandes proprietários alentejanos negando a existência de latifúndio no Alentejo e garantindo não haver "propriedade excessiva"(33).

Um ligeiro confronto entre os distritos de Évora e Portalegre e as tão faladas grandes regiões do latifúndio do Sul da Itália mostra que, no Alentejo, é incomparavelmente mais acentuado o predomínio da grande e da muito grande propriedade, considerada segundo a sua extensão.

Os prédios de mais de 1.000 ha ocupam, conforme vimos, no distrito de Évora 18 % da superfície total e no distrito de Portalegre 17 %. No Sul da Itália, a parte que lhes cabe é muito inferior: 7 % na Lucânia, 6 % na Calábria, 4 % na Sicília e na Apúlia, 0,6% na Campânia(34). Nos distritos de Évora e de Portalegre em conjunto os prédios de mais de 1.000 ha ocupam 234.599 no total de 1.343.834 ha, ou seja, 18 %. No Sul da Itália, as províncias citadas ocupam 281.271 no total de 6.887.214 ha, ou seja, 4 %.

Os prédios de 250 a 1.000 ha ocupam no distrito de Évora 49 % da superfície total e 39 % no de Portalegre. Os prédios de 200 a 1.000 ha ocupam 20 % na Apúlia, 19 % na Lucânia e Calábria, 18 % na Sicília, 6 % na Campânia. Note-se que os prédios de 200 a 250 ha estão incluídos no cálculo referente à Itália e excluídos no referente a Portugal, e que portanto a diferença real é muito mais sensível do que a indicada por estas percentagens.

Em conjunto, os prédios de 250 a 1.000 e de mais de 1.000 ha ocupam no distrito de Évora 67 % e no de Portalegre 56 % da superfície total. Na província do Sul da Itália onde é relativamente mais vasta a área ocupada pelos grandes e muito grandes prédios (a Lucânia) os prédios de mais de 200 ha ocupam 26 % da superfície total.

Os prédios de menos de 60 ha ocupam no distrito de Évora 15 % e no de Portalegre 29 % da superfície total. Os prédios de menos de 50 ha ocupam 83 % da superfície total na Campânia, 61 % na Sicília, 58 % na Calábria, 56 % na Apúlia e 54 % na Lucânia. A diferença é ainda mais sensível, pois os prédios de 50 e 60 ha estão incluídos nos números referentes a Portugal e excluídos nos referentes à Itália.

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Vê-se, por este breve confronto, a enormidade das grandes propriedades do Alentejo, deixando pela sua extensão e pelo seu predomínio a perder de vista as grandes propriedades do Sul da Itália.

Portugal aparece nitidamente como um país de grandes proprietários e latifundiários.

6 - A Pequena e a Grande Propriedade

A desproporção entre as pequenas e as grandes propriedades, entre a extensão da terra possuída pelos grandes e pelos pequenos proprietários, indica uma nítida desigualdade de condições. À diferença entre a extensão da terra correspondem necessariamente outras diferenças: nos recursos de capital, na forma e técnica de cultivo, na produtividade do trabalho. Mas em vantagem de quem são tais diferenças? Da grande? Da pequena produção?

Poucos problemas da economia capitalista terão provocado tão ampla, apaixonada e demorada controvérsia como o problema da grande e da pequena exploração agrícola, das vantagens e eficiência de uma e outra, da sua viabilidade e do seu futuro.

Há já um século, Marx escrevia que

«pela sua natureza, a pequena propriedade exclui o desenvolvimento da produtividade social do trabalho, as formas sociais do trabalho, a concentração social dos capitais, a pecuária em grande escala, a utilização progressiva da ciência».(1)

A evolução do capitalismo não fez senão comprovar a ideia de Marx. Com tanta clareza o fez que, hoje em dia, qualquer pessoa simples, procurando a verdade, é tocada por alguns factos salientes: a pequena produção vive sufocada pela estreiteza de terra, que paga mais cara, embora sendo muitas vezes de menor fertilidade; não pode utilizar máquinas, nem uma técnica progressiva e dispõe de menos e pior gado, quando não acontece não dispor de nenhum; tropeça com inúmeras dificuldades para colocar os seus produtos no mercado, sujeitando-se às desvantajosas

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condições impostas pelos intermediários de que depende; não tem dinheiro e, por isso, foge a despesas essenciais para as culturas, vende na pior altura e aos piores preços e entrega-se de mãos atadas aos usurários. Estas são verdades elementares sofridas dia a dia pelos pequenos agricultores e do conhecimento das pessoas simples e honradas que alguma vez olharam a situação nos campos com interesse e isenção.

Entretanto, economistas e técnicos burgueses transformam todas estas patentes desvantagens em «vantagens» preciosas, alardeando os “altos rendimentos” das menores courelas, a eficiência da técnica da pequena produção e até os seus maiores recursos de capital, de crédito, de gado. Quando não chega a «ciência» fazem literatura.

A idealização da exploração familiar

Na defesa das excelências da pequena exploração familiar, técnicos e economistas burgueses não se limitam a argumentos técnicos, económicos, ou mesmo políticos. Eles não buscam a realidade, antes idealizam, fantasiam, romanceiam e inventam as condições da «exploração familiar». Convertem-se, então, em literatos da economia e literatos desatualizados cerca de cem anos. Pois não é verdade que a imagem cor-de-rosa que nos dão dos campos portugueses de hoje corresponde àquela que um século atrás nos dava Júlio Dinis? A mesma idealização, a mesma falsidade.

Em As Pupilas do Sr. Reitor, a causa da miséria nos campos reside nos vícios e, em especial, na «beberronia» dos camponeses. O bom reitor bem o explica ao responder aos viciosos: «Que importa lá a miséria que vai por casa, se não falta dinheiro para o vinho e para o jogo?» Tal qual, o «Inquérito à Freguesia de Santo Tirso» atribui tal miséria «apenas» (sic) ao facto de que «a grande diversão dos dias de descanso e recreio se tornou incomparavelmente mais cara — a borracheira»(2).

Em Os Fidalgos da Casa Mourisca, o desafogo do pequeno agricultor e a sua ascensão à riqueza dependem unicamente das suas qualidades de trabalho. Tomé é um símbolo:

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«Fora pobre, servira como criado na casa dos fidalgos, passara depois a rendeiro de um pequeno casal, mais tarde arrendara uma fazenda maior; chegando, enfim, a ser proprietário, tornara-se em pouco tempo possuidor de extensos bens e era já [...] talvez o primeiro agricultor daquele círculo.»

Semelhantemente, no «Inquérito à habitação rural», é-nos descrita assim a família de um Tomé contemporâneo:

«Toda a família respira um ambiente saudável de bem-estar. A terra os criou, a terra os mantém confiantes e trabalhadores, vivendo suavemente, entre milheirais, ramadas e pinheiros, a vida sossegada e fecunda que a Natureza concede a quem sabe prestar-lhe culto de inquebrantável fidelidade.»(3).

Nos romances de Júlio Dinis, o pequeno agricultor trabalha bastante, mas com alegria, no meio de cantos, despiques, felicidade. O mesmo nos dizem acerca da exploração familiar certos economistas:

«Não há patrão que vigie nas lavradas, nas desfolhadas e nas vindimas; quem vigia é o pai, e raros são os pais que não gostam de ouvir cantar os filhos.»(4)

Por vezes, estes técnicos e economistas, querendo apresentar a exploração familiar como tipo e ideal de felicidade, são tão exaltados que chegam a ser grotescos.

«A forma da terra em pequena propriedade — escrevia um professor universitário fazendo uma «síntese» que, segundo a sua modesta opinião, «seria impossível sem o vasto material acumulado de ciência» de que se serviu — é a forma mais adequada de ligação do homem com a natureza. Dentro dela a terra explorada diretamente e abarcável a uma simples vista (?) é bem prolongamento da personalidade (?), é como ser vivo (!?). A água, que borbota, é sangue (?) saltando (!), as árvores falam saudades dos que se foram; os

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frutos são mimos em troca de sacrifícios. Até a ideia da morte parece de vida (?) na terra que se sulca.» «Mas a pequena propriedade individualizada (?) não é só a que mais prende o homem num círculo de bem-estar próprio (?); é também a que mais o liga com os outros, valorizando a todos para um mesmo destino progressivo (?). E deste modo a ordem social torna-se mais estável. Um país vale pelo número dos seus pequenos proprietários rurais.»(5)

Depois deste trecho primoroso, ninguém terá mais por exagerado colocar-se o valor da defesa da pequena produção feita por economistas e técnicos distintos ao par e ao nível da visão cor-de-rosa de Júlio Dinis (salvaguardadas, claro está, as diferenças da época e... do estilo). Júlio Dinis falava das esperanças da burguesia ainda ascendente, e os técnicos de hoje de uma economia moribunda. O crime do primeiro, cantando a beleza da vida dos pequenos produtores num momento em que o feudalismo nos campos recebia sérios golpes e antes do triunfo da grande exploração capitalista, é incomparavelmente menor que o dos últimos, mostrando a pequena produção como viável e florescente, quando se está em pleno processo da sua desintegração pelo capitalismo.

No entender destes técnicos e economistas, a pequena produção não constitui na economia capitalista uma forma de exploração do solo anterior a essa economia e contrariando o seu desenvolvimento, mas, pelo contrário, vive e desenvolve-se em meio propício e a sua prosperidade é impulsionada pelo próprio capitalismo.

«A exploração agrícola familiar — ousa escrever-se em meados do século XX — é a mais perfeita organização, a mais natural, a mais lógica, de entre todas as formas de aplicação do trabalho humano.»(6)

As grandes explorações agrícolas não suportam o confronto com as pequenas. Quando muito, em alguns casos, a grande exploração, não mercê das suas vantagens como grande exploração, mas dos méritos raros daqueles que as dirigem, conseguiria resultados aproximáveis do comum das «empresas familiares». No domínio da técnica, dos

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rendimentos, da eficiência, do bem-estar dos trabalhadores, da felicidade social, a pequena produção apareceria vitoriosa.

Esta defesa das excelências da pequena produção é tão insistente, tão vibrante, tão aparentemente fundamentada, que consegue criar raízes mesmo no espírito de pessoas completamente alheias a intenções apologéticas. Assiste-se, então, a um debate singular que, embora acalorado pelas intenções divergentes, coloca os contraditores numa atitude bastante aproximada. Os defensores do capitalismo gritam contra os críticos do capitalismo, acusam-nos de pretender ferir a pequena produção e opõem-lhes — teoricamente, claro está — a defesa e o estímulo desta e a condenação da grande empresa e da sua eficiência. Certos inimigos do capitalismo gritam contra os defensores do capitalismo, e opõem-lhes também a defesa e o estímulo da pequena produção, a condenação da grande empresa e da sua eficiência. Discute-se, afinal, não o «ideal» (que para uns e outros é a «exploração familiar»), mas os serviços a ele prestados e a forma de o atingir. E aqui está como alguns espíritos pouco precavidos, julgando ser a condenação da eficiência da grande exploração agrícola e a defesa da viabilidade da pequena produção um estandarte ameaçador para o capitalismo, enfileiram, contra os próprios propósitos, entre os ideólogos burgueses seus contraditores.

A questão a resolver

Em nenhum sector da economia portuguesa é mais complexa a contradição de interesses do que na agricultura. Intervém aqui uma classe específica deste sector (o proprietário de terras), cujos interesses se opõem, a um tempo, aos dos assalariados, aos dos rendeiros em geral, aos dos capitalistas. Aqui intervém, com peso há muito desalojado da indústria, a pequena produção, cujos interesses se opõem aos do grande proprietário, aos do capitalista, aos do comerciante e, em certa medida, aos do assalariado. Estas múltiplas contradições estão na base da «questão agrária», e quem as não compreenda não poderá jamais compreender os grandes problemas económico-sociais na agricultura capitalista.

Entretanto, é precisamente na agricultura que economistas e políticos se esforçam por encontrar uma

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ausência de contradições de interesses, como se grandes e pequenos proprietários, assalariados e capitalistas, comerciantes e industriais, os que vivem da atividade agrícola ou ligados a ela, constituíssem uma grande e unida família rural que afirmam aquecer-se em familiar intimidade na «lareira comum da freguesia».

«As pessoas diretamente interessadas na exploração do solo agrícola - dizem - (proprietários rurais, rendeiros e parceiros, criados permanentes e pessoal temporário, comerciantes e industriais de produtos agrícolas ou à agricultura destinados) constituem um grupo social com afinidades próprias, interesses comuns e atuações interdependentes.»(7)

Sendo comuns os interesses de todas estas classes sociais, a agricultura ofereceria, num mundo agitado, um oásis de fraternidade e de paz. A própria concorrência, lei do capitalismo, cederia lugar à colaboração e ao entendimento. A questão da pequena e da grande produção agrícola não seria uma questão de competição e de luta, mas uma questão de interesse comum de grandes e pequenos produtores e resolúvel por acordo comum e esforço comum.

Sendo assim, a situação relativa da pequena e grande produção e as suas relações constituiriam uma afirmação da estabilidade do capitalismo e da possibilidade da solução fácil e harmoniosa das suas contradições (afinal mais aparentes que reais...). Desmentiriam de forma definitiva todos quantos proclamam ser a concentração tendência de toda a economia capitalista realizada através de uma luta constante e implacável e haver entre muitos e variados antagonismos de interesses aqueles que opõem pequenos produtores e assalariados por um lado e grandes proprietários e capitalistas por outro. E aí está uma das razões por que os publicistas burgueses, em vez de procurarem através dos factos o esclarecimento do problema, se encerram deliberadamente nas trincheiras das conveniências, não recuando ante as deturpações, as fantasias e as literatices do género das atrás expostas.

Pelas ilações teóricas e práticas de quaisquer conclusões a que se chegue, o debate sai do campo restrito da economia e

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da técnica, e estende-se ao da moral, da história, da política. No da história, afirma-se que a pequena produção não só conserva intacta na agricultura toda a sua importância como ganha posições e tem diante de si «apreciáveis possibilidades de futura expansão»(8). No da moral seria, além de outras coisas, uma «escola de trabalho» alimentando um «superior sentido espiritual»(9). No da política, os grandes lavradores colocam-se entre os melhores cantores da pequena produção e vêm na pequena produção um anteparo à insatisfação e revolta proletária...

Neste grande esforço ideológico descobrem-se, multiplicam-se e classificam-se vantagens e desvantagens. Fazem-se investigações, inquéritos, cálculos, experiências. Na busca ardorosa de argumentos para ideias de há muito petrificadas, salta-se por cima dos factos mais evidentes, usa-se de retórica contra a realidade, deforma-se, sofisma-se, diz-se num lado e desdiz-se no outro. Com mais ou menos consciência, tomam-se como instrumentos de trabalho, como verdades indiscutíveis e inapeláveis, os mais estafados conceitos e processos da «ciência» económica burguesa e, porque os resultados obtidos com tais instrumentos condizem necessariamente com os propósitos, apregoa-se o resultado favorável da «investigação imparcial»! E, no entusiasmo do debate, no enredo das mistificadoras técnicas de estudo, foge-se a ver com verdade, apenas com verdade, os problemas fundamentais: qual das duas é mais eficiente, a grande ou a pequena produção agrícola? Em qual das duas se investem mais capitais? Em qual das duas há mais gado, mais máquinas, melhor técnica? Em qual mais facilidades de crédito? Qual tem melhores condições para colocar os seus produtos no mercado e qual os coloca de facto mais favoravelmente? Em qual das duas — e é esta uma questão capital, sistematicamente esquecida pelos economistas e técnicos burgueses — a produtividade do trabalho é maior e qual pode em consequência vender a sua produção a mais baixo preço? Ou, tudo resumido: na concorrência que se trava, qual das duas tem melhores condições para triunfar, a grande ou a pequena exploração agrícola?

É evidente que, no mercado, a grande exploração concorre também com a grande e a pequena com a pequena. Mas, como as maiores diferenças de condições e em especial a diferença de produtividade do trabalho arrumam de um lado

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as pequenas e do outro as grandes explorações — a competição trava-se fundamentalmente entre a grande produção de um lado e a pequena do outro.

A questão a resolver não é, porém, apenas a questão das vantagens e desvantagens, das melhores ou piores condições para triunfar, mas a questão da decisão histórica desta luta. Qual das duas triunfa, a grande ou a pequena produção agrícola? Em que sentido se resolve esta luta?

Trata-se de um problema central da questão agrária. A resposta que a ele se dê não responde apenas à pergunta um tanto abstrata «qual é a melhor?», mas a essas outras mais diretamente voltadas para a vida: o que se passa realmente nos campos? Em que sentido evolui a economia rural? Que solução futura nos deixa antever o sentido dessa evolução? O problema da pequena e da grande produção agrícola é assim o eixo em roda do qual gira necessariamente o estudo do desenvolvimento do capitalismo na agricultura.

A fome de terra

A todo o passo, os cantores das «vantagens» da pequena exploração agrícola referem entre estas a exiguidade do solo, chegando (conforme já foi visto) a proclamar como «lei» que o rendimento cresce na medida em que a área decresce. Interessa, pois, ver, com mais detalhe, a questão da extensão da terra ao dispor do pequeno agricultor.

Os estudos da JCI para a instalação nos baldios de algumas centenas de «casais agrícolas» determinam com bastante precisão e minúcia o mínimo necessário para assegurar a manutenção de uma família.

Na Serra do Soajo (distrito de Viana do Castelo), no núcleo de baldios de Mezio, «de boas chãs e brandas graníticas, abrigadas e regadas»(10), a JCI julgou necessário para cada casal 2 ha de terra de regadio num total médio de 5,6 ha. Na serra da Boalhosa (distrito de Viana do Castelo), no entender da Junta, «uma família necessita, para se manter, de 3 ha de cultura agrícola, dos quais 2 produzindo milho de regadio e 1 cultivado em parte de lameiro e em parte de renovos e centeio» (11), além de 3 ha de área florestal. No núcleo de Montalegre e Boticas (distrito de Vila Real), a Junta atribuía a cada «casal» 1 ha de terra de «cultura intensiva de sequeiro»,

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com base na batata e em forragens, mais 1 ha de terra de «cultura intensiva de regadio» destinado a prados permanentes enlameirados, mais 4 a 7 ha de terra de cultura extensiva para centeio(12). No núcleo do Alvão (distrito de Vila Real) «concluiu-se que cada casal deverá ser constituído por 3 ha de cultura agrícola mais 3 ha para mato e matas»(13). No núcleo da serra da Ordem (distrito de Vila Real), seria atribuído a cada casal 1,5 ha de regadio e 4 de sequeiro(14). No núcleo das Lombardas (distrito de Bragança), 4,7 ha em semeadura anual, correspondendo em três folhas a 14,1 ha, área que se arredonda para 15, «considerava-se, com meio hectare de lameiro, bastante para o sustento de uma família»(15). No baldio da Várzea da Serra (distrito de Viseu) considerava-se «suficiente» 1,5 ha de terra de regadio e 12 ha de sequeiro(16).

Adiante será considerado o objetivo e a viabilidade desta e de outras projetadas «empresas familiares». Por enquanto, interessa-nos ver, não tanto a terra de que algumas famílias de pequenos cultivadores podem vir a dispor, num futuro mais ou menos distante, como aquela de que efetivamente dispõem e se esta é ou não suficiente. As indicações da JCI são a este respeito preciosas. Ao afirmar-se necessários para o sustento de uma família, 5, 6, mesmo 15 ha de terra, dos quais em vários casos 1 e 2 de regadio, afirma-se implicitamente que as «empresas familiares» não têm na atualidade terra bastante para o seu sustento.

Alguns dos cálculos da JCI são altamente esclarecedores. Tal, por exemplo, o caso do núcleo das Lombadas. Como foram calculados os 15 ha considerados necessários para sustento de uma família? Foram calculados na base de um inquérito às populações segundo o qual uma família «consegue manter-se colhendo o correspondente a 200 alqueires de centeio»(17). Mas, estudando os resultados desse inquérito, nós verificamos que, num total de 462 famílias (fogos) apenas 137 têm uma produção computada em mais de 200 alqueires de centeio, e que das 325 famílias que têm menos de 200 alqueires, 75 têm menos de 10! Daqui se conclui, sem sombra de dúvida, que a maioria dos pequenos agricultores das Lombadas não possui terra bastante para o seu sustento ao nível considerado «suficiente» pela JCI, ou seja, de forma a «conseguir manter-se».

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Outro exemplo, ainda mais ilustrativo, é o da Serra do Soajo. Como foram calculados os 2 ha de terra de regadio considerados necessários para o sustento de tuna família? Foram calculados tendo em conta que, obtendo subsidiariamente receitas com rebanhos e «com salários do trabalho na floresta», uma família pode manter-se com o rendimento bruto de 3400 litros de milho, de 1800 quilos de batata, para a produção dos quais se julgam bastantes os 2 ha de regadio(18). Computando nós este rendimento bruto em alqueires de milho, vemos que, no entender da Junta, são necessários para o sustento de uma família mais de 200 alqueires. Mas, estudando os resultados do inquérito à região do Soajo, verificamos que, num total de 5033 famílias abrangidas, apenas 334 (menos 7 em cada 100) tinham uma produção computada em mais de 200 alqueires de milho (o que, aliás, não bastaria para o sustento sem os rebanhos e salários citados). 3594 famílias tinham menos de 100 alqueires e, dentre estas, 1455, de 11 a 50 alqueires, e 685 menos de 11 alqueires! Daqui se conclui, sem sombra de dúvidas, que o pequeno agricultor do Soajo (pelo menos 93 em cada 100) não possui nada que se pareça com a terra bastante para «poder manter-se».

Tem sido estudada em variadas regiões do País a extensão necessária para sustento de uma família de agricultores. Essa extensão varia segundo a região, o solo, a cultura, etc.. Para cada «casal agrícola» a estabelecer em Idanha-a-Nova previa-se 20 a 25 ha, dos quais 5 de regadio; em Coruche, 10 ha, dos quais 2 de regadio e 8 de terra de semeadura e montado de sobro; na península de Setúbal, de 11 a 12 ha com vários «tipos» de cultura; na Amareleja (Moura), de 5 a 14 ha, sem regadio, mas com olival(19). Em todos os casos, as extensões atribuídas nestes projetos excedem largamente as médias de que dispõem as «explorações familiares» existentes. E isto é mais uma confirmação da insuficiência da terra dos pequenos cultivadores.

«Nas regiões alentejanas — afirma-se — desde que falte a vinha e o regadio e a técnica de cultivo seja a usual, a empresa familiar só é possível (e de resto sempre afastada do tipo ideal) em superfície de pelo menos 30 hectares»(20). Perguntamos então: dispõem os pequenos cultivadores alentejanos de 30 ha de terra? Apesar de que a própria

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pergunta parece uma ironia, podemos tentar determinar, com a aproximação que os elementos publicados permitam, a extensão de que dispõem os pequenos cultivadores proprietários.

Segundo já se expôs neste trabalho, ao falar-se do regime da propriedade, 1095 proprietários do distrito de Évora possuem 631 208 ha correspondentes a prédios de mais de 60 ha, e 809 proprietários do distrito de Portalegre possuem 429 844 ha, também correspondentes a prédios de mais de 60 ha. Os prédios de menos de 60 ha ocupam 107 046 ha no distrito de Évora, de 175 736 ha no de Portalegre, não se conhecendo o número dos seus proprietários. Aceitando, porém, o número de coletas como sendo o número de proprietários, temos (em números redondos) 16 000 proprietários no distrito de Évora e 21 000 no de Portalegre. Deduzindo do número de coletas o número de proprietários possuindo os prédios de mais de 60 ha, podemos estabelecer provisoriamente que os 107 046 ha do distrito de Évora e os 175 736 do de Portalegre, ocupados por prédios com menos de 60 ha, pertenciam, respetivamente, a 15 000 e 20 000 proprietários, o que coincide, singularmente, com o número de coletas a respeito dos rendimentos coletáveis inferiores a 500 escudos. A área média por cada um destes proprietários seria assim de 7 ha no distrito de Évora e de 9 no de Portalegre. Mesmo que isto fosse verdadeiro, estaríamos muitíssimo longe dos 30 ha que tornam «possível» a «empresa familiar». Mas não é. A situação dos pequenos proprietários cultivadores é incomparavelmente mais grave do que estes números deixam supor: em primeiro lugar, porque muitos dos prédios de menos de 60 ha (certamente não menos de metade...) pertencem a proprietários que também possuem prédios de mais de 60 ha; em segundo lugar, porque muitos proprietários (médios e até grandes) que não possuem prédios de mais de 60 ha, possuem, certamente, mais do que os 7 ou 9 ha apurados, como média, quanto mais não seja porque haverá prédios com áreas compreendidas entre os 7 ou 9 e os 60... Em conclusão: nos distritos de Évora e Portalegre, enquanto menos de 2 milhares de grandes proprietários possuem em média mais de 557 ha, a grande massa de pequenos proprietários está muito longe de possuir em média 7 a 9 ha. Se tivermos como certa a opinião atrás referida, segundo a qual 30 ha seriam o mínimo necessário para a manutenção de uma família, não podemos

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deixar de concluir pela escassez de terra dos pequenos proprietários alentejanos. O mesmo é confirmado pelo inquérito sobre a freguesia de Cuba, onde se considera como mínimo para uma vida ao nível das privações de um camponês 10 ha de terra, mas onde 734 proprietários no total de 788, ou seja, 93%, não chegam a ter 10 ha e, desses 734, 204 têm menos de 0,5 ha, 185, de 0,5 a 1 ha e 175, de 1 a 2 ha.

Se, em vez de considerarmos os proprietários, considerarmos todos os lavradores, sejam eles proprietários ou não da terra que cultivam, dispomos de elementos ainda precisos. Segundo outro inquérito(21), no total de 43 587 explorações agrícolas existentes nos distritos de Beja, Évora e Portalegre, 22 089, isto é, mais de metade, possui menos de 5 ha de cultura arvense e 8973 menos de 1 ha. A apontada escassez apresenta-se ainda com maior gravidade.

Estes exemplos bastam para mostrar como o pequeno cultivador não possui terra suficiente. O que se passa nas Lombadas, no Soajo, no Alentejo, é, a este respeito, o mesmo que se passa no Oeste, nas Beiras, no Algarve. O que se passa com os pequenos proprietários passa-se com maior gravidade com os rendeiros, os «caseiros», os «seareiros» e tantos outros pequenos produtores não proprietários. Quando meio hectare chega a ser toda a terra de que dispõem três e mais rendeiros(22), por muitas privações a que se submetam, não conseguem sequer manter a sua «independência»: a venda da força de trabalho torna-se indispensável para conseguir subsistir. Repare-se que, no total de 801 162 explorações agrícolas com cultura arvense recenseadas no continente(23), 400 469 (ou seja, metade) possuem menos de 1 ha de cultura arvense e 242 592 menos de meio hectare, e conclui-se pela angustiosa sufocação à míngua de terra dos pequenos produtores agrícolas.

Mas não só a terra é insuficiente. A pulverização das pequenas explorações em retalhos dispersos, muitas vezes distantes, agrava extraordinariamente a situação do pequeno agricultor. A abundância de retalhos minúsculos revela-se nas próprias áreas médias dos prédios rústicos em algumas regiões. Em 6 distritos do continente não chega a meio hectare em relação à área total, nos de Viseu e Coimbra não chega a 4000 metros quadrados, nos de Aveiro e Viana do

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Castelo não chega a 3000 metros quadrados, conforme se mostrou, em 100 concelhos não chega a meio hectare e em 40 não chega a 3000 metros quadrados. A abundância de retalhos minúsculos revela-se também na elevada percentagem de prédios rústicos com rendimentos coletáveis inferiores a 15 escudos. São no continente mais de 40% do total de prédios rústicos. Passam de 50% nos distritos de Viseu, Coimbra, Bragança e Castelo Branco. Alcançam 45% no distrito de Leiria. Rodam pelos 40% nos distritos de Aveiro, Viana do Castelo e Vila Real e pelos 30% nos distritos do Porto, Guarda, Faro e Santarém. Estes números frios retratam aspetos importantes da vida da pequena lavoura e retratam até a própria paisagem. Por toda a parte os muros, as sebes, os caminhos e as mais variadas formas de marcar as extremas roubam e acusam o antieconómico retalhamento das terras.

No total de 853 568 explorações, 276 245, ou seja, 32%, são constituídas por mais de 5 parcelas e 116 497, ou seja, 14%, por mais de 10. Dentre estas, 22 807 são constituídas por 21-35 parcelas, 7566 por 36-55 parcelas e 3362 por mais de 55 parcelas(24). Neste aspeto, proprietários e rendeiros encontram-se em situação semelhante. No total continental, 20% das explorações de conta própria e 17% das restantes são constituídas por 6-10 parcelas; 16% das primeiras e 9% das últimas por mais de 10 parcelas. Este extraordinário parcelamento verifica-se sobretudo nos distritos de pequena propriedade: no de Bragança, 39% das explorações são constituídas por mais de 10 parcelas; no de Vila Real 25%; no de Viana do Castelo 19%; nos de Aveiro e Viseu 18%; nos de Coimbra e Leiria 17%. Não se pense que, nas regiões de pequenas propriedades, o elevado número de parcelas por exploração seja exclusivo das maiores explorações. Muito longe disso. Basta dizer que, nos seis últimos distritos citados, existem apenas 14 465 explorações com mais de 5 ha de cultura arvense e nada menos de 71 541 com mais de 10 parcelas. Além disso, se os elementos estatísticos de conjunto não permitem a verificação da gravidade do parcelamento nas pequenas explorações, permitem-no numerosos estudos e monografias.

Em relação a uma região nortenha, o estudo da JCI, atrás citado, diz num lado que as numerosas parcelas de uma pequena exploração, «algumas com área inferior a 500

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metros quadrados e raras atingindo 3000», são «muito dispersas»(25), e em outras passagens descreve a situação nos seguintes termos:

«Não são raras as parcelas com menos de 1000 metros quadrados e pode afirmar-se que nenhuma chega ao meio hectare. É assim geral cada exploração agrícola ser constituída por 10, 15, 20 e mais pequenos retalhos, com manifestos prejuízos do bom aproveitamento do trabalho do homem e do gado e da produtividade da terra e até da área agricultável, perdida em serventias.»(26)

«O inquérito sobre a situação económica dos utentes dos baldios estudados obrigou a percorrer muitas explorações agrícolas, designadamente nas regiões do Norte. Em quase todos se verificou extrema pulverização, com os consequentes prejuízos resultantes da dificuldade em realizar melhoramentos fundiários de conjunto, da impossibilidade de intensificação cultural nas glebas afastadas do local de residência, da inutilização de terrenos em serventias e lindas, da perda de tempo em deslocações e consequente aumento de gastos gerais.»(27)

E comenta um destacado economista:

«A extrema divisão da propriedade restringe consideravelmente o seu rendimento. É na verdade angustiosa a vida de milhares de proprietários, pequenos e grandes, com courelas ou glebas quase microscópicas, espalhadas por extensas áreas.»(28)

Esta passagem refere-se a «grandes» e «pequenos», mas é manifesto caber aos últimos o maior prejuízo e a maior «angústia». A pulverização exige do pequeno agricultor esforços desproporcionados, que acabam por tornar inviável a exploração. Explorações com um total de 2 ha, 1 ha e ainda menos, divididas em numerosas parcelas distantes, multiplicam o trabalho necessário para o seu amanho, fazem

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despender tempo e energias em transportes e acabam por atirar o pequeno produtor para o salariato.

Num estudo de uma finalista do I. S. Agronomia, pode ler-se a monografia de uma família de pequenos cultivadores do distrito de Leiria, cuja exploração compreende 8 prédios rústicos a distâncias de 1 a 2,5 quilómetros da habitação, somando no total 1 hectare e meio. O maior dos prédios tem 7950 metros quadrados; outro tem 2000 metros quadrados, dois têm 1500, outros dois 1000, e os dois restantes cerca de 500 metros quadrados. A família tem ainda de renda um prédio de 1100 metros quadrados. Não só a área á manifestamente reduzida, como o seu retalhamento e a sua dispersão agravam as dificuldades. Dois dos quatro membros da família vêem-se obrigados a emigrar meses inteiros como assalariados(29). Noutra monografia, lê-se que uma família de pequenos cultivadores possui, além de 500 m2 arrendados, 6550 metros quadrados divididos em 14 courelas a distâncias de 1 a 9 quilómetros da habitação! Tal como no caso antecedente, dois dos membros da família emigram como assalariados(30).

No Minho interior, dada a grande fragmentação e dispersão, dizem os agricultores que «mais tempo se perde pelos caminhos do que a amanhar as terras»(31). E bem se compreende que assim seja quando a exploração já de si pequena está dividida em número elevadíssimo de retalhos minúsculos, como num caso, entre muitos casos, de um pequeno proprietário do Lindoso que possuía 9600 metros quadrados em mais de 100 pedaços!(32) Na Beira Litoral, formam-se, em socalcos, glebas que chegam a 50 metros quadrados(33). Em S. Brás de Alportel (Algarve), a divisão chegou a ponto de o mesmo herdeiro ficar com dois e três quinhões separados, não tendo algumas vezes certos quinhões mais que 2 a 3 metros de largura por 7 a 8 metros de comprimento(34). Em zonas de hortas na freguesia de Alvite (concelho de Viseu) havia em certo ano 52 prédios em 711 metros quadrados, ou seja, uma área média de 14 metros quadrados(35). Esta é a tal forma ideal de exploração, a tal «terra abarcável a uma simples vista» de que falava o professor universitário. Chega a atingir as raias do absurdo pretender que as pequenas explorações familiares — não como as idealizam alguns, mas tal como são na realidade portuguesa — em terra insuficiente, retalhada, dispersa,

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distante, podem concorrer em eficiência, rendimento, produtividade, com as grandes explorações de tipo capitalista.

Há quem diga poder esta situação ser facilmente solucionada através dos «emparceiramentos» ou «emparcelamentos». Por um sistema de trocas e de compensações, far-se-ia a junção das courelas dispersas. Dadas as enormíssimas vantagens que uma tal junção teria para o pequeno cultivador, como explicar então que as leis e projetos de emparcelamento não tenham tido qualquer eficiência? A razão está em que, além do sonho utópico de alguns, tais leis e projetos têm sistematicamente visado, a coberto da proteção dos interesses dos pequenos cultivadores, à efetiva proteção dos interesses dos grandes. Os emparcelamentos, contra os apregoados propósitos, seriam apenas um processo para os grandes lavradores expropriarem as melhores terras dos pequenos seus vizinhos, centralizando e melhorando as suas grandes explorações agrícolas. É pois apenas a desesperada resistência dos pequenos agricultores, de facto ou previsível, que tem obstado à efetivação de tais leis e projetos.

É a este respeito muito significativo um projeto de lei apresentado à Assembleia Nacional em 1951(36). Segundo o artigo 1 desse projeto, o proprietário «pode ser obrigado por aquele que tenha terreno (confinante) com maior superfície (tripla) a trocá-lo por terreno da mesma natureza». Segundo o artigo 3, «na hipótese de o prédio do requerido ser encravado ou quando a área do prédio do requerente seja dez vezes superior à daquele, o maior confinante pode obrigar o requerido à venda do prédio». Este emparcelamento compulsivo seria evidentemente uma arma violenta na mão dos grandes proprietários e, a ser aprovado o projeto de lei, daria pretexto para uma brutal cruzada de expropriações de pequenos cultivadores que nos dias de hoje não se faria sem guerra aberta. Daí ter a Câmara Corporativa, no seu parecer sobre esse projeto de lei, entendido necessário sublinhar que «o emparcelamento não se destina à constituição da grande propriedade nem visa à reunião desta na mão de poucos, contra o que se poderia supor»; que «ninguém ganha e ninguém perde»; e que, por isso, é de condenar no projeto «a troca coativa individual»(37) — Entretanto, segundo a Câmara Corporativa, é demasiada a dupla exigência feita por decreto

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anterior(38) do voto de 2/3 dos proprietários a que pertencerem pelo menos 2/3 das terras a emparcelar e «há que minorar a tal exigência»(39). O projeto será discutido e uma lei será aprovada. Uma coisa, porém, é certa. Poderão em alguns casos grandes proprietários expropriar pequenos agricultores ao abrigo de uma lei de «emparcelamento». Poderão em outros casos muito raros fazer-se localmente ajustamentos entre pequenos proprietários. Mas, na economia contemporânea, a dispersão e a pulverização das pequenas explorações em várias courelas manter-se-ão como grande desvantagem da pequena produção e como fator da sua completa ruína.

Não ficam ainda por aqui as desvantagens do pequeno produtor no referente à terra. Além de pouca e de muitas vezes fragmentada, ela custa-lhe extraordinariamente mais cara que ao grande lavrador. Ao contrário do grande, o pequeno cultivador está amarrado à sua habitação. Não pode comprar ou alugar terra muito distante. Disto se vale quem vende ou aluga pequenos tratos de terra, para exigir preços ou rendas que todos quantos têm abordado este assunto reconhecem ser «exageradíssimos» (este mesmo superlativo é utilizado a este respeito por vários publicistas). E, muitas vezes, ao mais elevado preço junta-se a mais fraca fertilidade. Do Alentejo, por exemplo, diz-se que, enquanto um grande rendeiro paga em média 71$00 por hectare, “o proprietário que dá terras a seareiros, que é por certo o pior das herdades, recebe por hectare 159$84, isto é, 2,74 vezes mais que pela terra que arrenda nas herdades, sem que pela sua parte despenda mais um centavo”(40). A grande exploração exerce-se nas terras de boa qualidade, que lhe custam mais baratas. E a terra pior é retalhada e vendida ou alugada a altos preços ao pequeno produtor.

Abafados nas suas pequenas courelas, tendo nelas o único recurso para o seu sustento, não é de admirar o titânico esforço dos pequenos cultivadores para extrair da escassa terra uma produção maior. Daí por vezes os relativamente altos rendimentos unitários – obtidos porque preço veremos mais tarde – que deslumbram olhos pouco precavidos. Também não é de admirar, quando as terras são fracas, ou as culturas esgotantes, ou curtos os prazos de arrendamento, que tal esforço conduza a terra ao esgotamento. Há, todavia, quem, em vez de procurar compreender a tão simples razão

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das exageradas exigências feitas à terra pelos pequenos produtores e particularmente pelos pequenos rendeiros e parceiros, prefira atacá-los em termos violentos e (ao mesmo tempo que chama aos grandes lavradores “os melhores patriotas” e “os melhores amigos da terra”) acuse a “ ação nefasta daqueles, considere-os os “melhores obreiros da liquidação da secular matéria orgânica”, indigne-se contra a chamada “exploração mineira do solo agrícola” e acabe por proclamar que, por esse crime, serão julgados “no tribunal dos verdadeiros interesses da nação”(41).

Quando nos lembramos, porém, que se citam casos em que o seareiro de meio hectare de terra pobre apura 10$55 e o proprietário 110$55 (36,8% do preço da terra!) temos de concordar com quem dizia que o proprietário

“pode bem não se preocupar com o esgotamento do solo em detrimento do interesse nacional, pois que em três anos tem a terra paga com acréscimos”(42),

e não podemos deixar de concluir que “no tribunal dos verdadeiros interesses da nação” foi há muito proferida a sentença.

Maquinaria e nível técnico

Não existem em Portugal estatísticas de máquinas agrícolas. A lacuna estatística reflete o baixíssimo emprego de maquinaria na agricultura portuguesa, mas alguma coisa mais se poderia fazer, tornando-se informações regulares aquelas que, episodicamente, já têm sido publicadas. O pouco que se conhece na atualidade, é por intermédio dos seguros e tanto o Anuário Estatístico como a Estatística Agrícola (que despendem dezenas de páginas com informações de interesse secundário) não dão sequer um simples quadrozinho indicando os seguros de máquinas agrícolas por distritos. Esta a razão porque nos socorremos de elementos sem grande atualidade, embora igualmente válidos para o fim agora em vista.

Segundo o Anuário Estatístico de 1928, realizaram-se no ano agrícola de 1926-1927, 567 seguros de máquinas agrícolas. Destes seguros, 421 diziam respeito aos três distritos alentejanos; 67, ao de santarém; 28, ao de Setúbal;

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31, ao de Lisboa e 10, ao de Castelo Branco, ou seja, 567 seguros, representando 98% do total, nos sete distritos onde predominam as grandes explorações. Nos distritos de Braga, Porto, Vila Real e Viseu, não se registaram grandes seguros de máquinas agrícolas e nos restantes sete distritos registaram-se, no conjunto, 10 seguros. Segundo dados publicados pelo antigo Ministério da Agricultura (única estatística de máquinas agrícolas por concelho de que dispomos) havia em 1931 em Portugal 854 debulhadoras, das quais 510 nos três distritos alentejanos; 120 no de Santarém; 64 no de Lisboa, 57 no de Setúbal e 36 no de Castelo Branco. Isto é: 787 debulhadoras, representando 92% do total, nos sete distritos onde predominam as grandes explorações. Nos distritos de Viana do Castelo, Aveiro e Vila Real, não havia debulhadoras. Nos oito distritos restantes, em conjunto, havia 67 debulhadoras, das quais 28 no do Porto e 13 no da Guarda(43).

Quanto a tratores, estatísticas mais recentes mostram semelhante distribuição. Em 1952-1954, havia no continente 1906 tratores, dos quais 778 nos distritos alentejanos: 281 no de Santarém; 535 no de Lisboa; 147 no de Setúbal; 90 no de Castelo Branco(44), ou seja: 1531 tratores, representando 80% do número total, nos sete distritos onde predominam as grandes explorações.

Destes números, pode concluir-se ser o uso das máquinas agrícolas quase exclusivo dos distritos onde predomina a grande propriedade e a grande empresa, e ser ou muito escasso ou completamente inexistente nas regiões onde predominam as pequenas explorações.

Já se tem pretendido ser esta distribuição geográfica determinada não pelo regime de propriedade e grandeza das explorações, mas por diferenças da configuração dos terrenos e mais particularmente das culturas. Tal opinião não tem qualquer fundamento. Nesse mesmo ano de 1931, havia 27 debulhadoras no concelho de Vila do Conde, 8 no de Mirandela, 7 no de Barcelos, 2 nos de Braga, Figueira da Foz e Viseu e 1 em cada um dos seguintes concelhos: Vila Nova de Gaia, Coimbra, Celorico da Beira, Meda e Vila Nova de Foz Côa(45). Isto mostra que as debulhadoras são tecnicamente viáveis em todo o País e que, dispersas em regiões onde predominam as pequenas explorações, existem grandes

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empresas que as utilizam. O concelho de Vila do Conde, que se destaca no distrito do Porto pelo número relativamente elevado de máquinas utilizadas, destaca-se também pelo predomínio da empresa capitalista, sendo o concelho onde é mais elevada a percentagem de assalariados rurais (72% em relação à população agrícola ativa) e mais baixa a percentagem de pequenos agricultores em «explorações familiares» (5%)(46). Onde existem grandes explorações capitalistas evoluídas, seja no Sul, seja no Norte, aí aparece o uso de máquinas.

Além disso, a diferença de culturas entre as várias regiões poderia explicar a diferença do número absoluto de máquinas, mas não a diferença do seu número em relação às necessidades. A diferença da cultura dos cereais praganosos, por exemplo, explicaria a diferença do número absoluto de debulhadoras, mas não a diferença da percentagem dos cereais debulhados mecanicamente. Ora, em 1949, enquanto nos distritos de Portalegre, Beja Setúbal, Évora, Lisboa, Santarém e Castelo Branco as percentagens de trigo debulhado mecanicamente, em relação ao total da colheita, foram, respetivamente, 74%, 68%, 68%, 67%, 56%, 42% e 40%, nos distritos de Braga, Guarda, Aveiro, Viana do Castelo e Coimbra foram, respetivamente, 10%, 10%, 8%, 8% e 5%, oscilando nos restantes distritos entre 20% e 36%(47). A debulha mecânica da aveia nos primeiros distritos citados subiu, respetivamente, a 54%, 50%, 49%, 70%, 24%, 37% e 19% da colheita e em nenhum dos cinco últimos alcançou 10%. A debulha mecânica de cevada nos primeiros sete distritos foi de 56%, 42%, 39%, 58%, 26%, 26% e 11%; e em nenhum dos cinco últimos alcançou 10%. Na debulha mecânica do centeio, apesar das percentagens um pouco mais elevadas em alguns distritos de pequena propriedade (15% no de Viana do Castelo, 24% no de Viseu), os de grande mantêm-se na dianteira a grande distância (43% no de Beja; 46% no de Portalegre; 58% no de Évora)(48). Estes números significam que, enquanto os grandes lavradores utilizam a económica e rápida debulha mecânica, muitos pequenos cultivadores continuam por todo o País a fazer a debulha morosa e cara a pé de gado ou a trabalho braçal. É bem claro que a desproporção no referente ao uso de máquinas entre umas e outras regiões resulta do mero facto de numas predominarem as pequenas explorações e os prédios rústicos

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de área reduzida e noutras predominarem as grandes empresas agrícolas de tipo capitalista.

Elementos mais recentes mostram a rápida generalização das debulhadoras a todo o País(49). Os grandes lavradores de cereais por toda a parte (nas regiões de grande como de pequena propriedade) compram debulhadoras que utilizam para si ou na debulha do cereal dos pequenos a troco de elevadas maquias. Tal evolução tornou-se relativamente simples com uma máquina deste tipo, porque não é a debulhadora que, adquirida pelo pequeno produtor, vai para a pequena exploração, mas o pequeno produtor que leva o cereal à debulhadora do grande. A debulha de cereais, como a moagem, a vinificação, etc., tende, com a crescente divisão social do trabalho, a separar-se da agricultura, sobretudo da pequena lavoura, e a tornar-se atividade industrial (muitas vezes exercida pelos grandes lavradores) de que o pequeno agricultor fica dependente. Estes novos aspetos reforçam as teses defendidas quanto à superioridade da grande lavoura.

No Alentejo, Ribatejo e arredores de Lisboa, grandes proprietários ou grandes empresas alugam debulhadoras e enfardadeiras. Aí também a maior vantagem é para o dono das máquinas, que não só se serve delas para a própria produção como cobra ainda elevadíssimo aluguer. O negócio é tão vantajoso que, no Alentejo, os grandes proprietários vão ao ponto de obrigar os seareiros nas suas terras «a utilizar as suas máquinas, cortando-lhes a liberdade de recorrer àqueles que mais lhes convenham, quantas vezes só lho permitindo em Outubro, quando chegam as primeiras chuvas»(50)!

Nalgumas regiões, ferreiros engenhosos fabricam rudimentares semeadores, sachadores e descaroladores mecânicos(51) para uso dos pequenos agricultores. O engenho não é, entretanto, o bastante para introduzir o uso das máquinas na pequena produção na mesma escala da grande. Só pessoas cegas para as realidades podem pensar ser a razão do nulo emprego das máquinas na pequena produção o facto de que «os inventores [...] se têm preocupado com as grandes máquinas para as grandes culturas» e poder assim introduzir-se em larga escala o emprego de máquinas na pequena produção no dia em que os inventores «deem mais atenção às pequenas máquinas e alfaias»(52).

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O uso ou não de máquinas está diretamente relacionado com a grandeza e a força económica das explorações agrícolas. As grandes explorações usam-nas de forma crescente. As pequenas explorações, pela carência de recursos e por estreiteza da exploração, são inibidas de as usarem. E isto não apenas em relação às debulhadoras, máquinas particularmente caras, mas mesmo em relação ao simples motor, à simples bomba, à ceifeira, à charrua, até às alfaias. O mero facto de não poder utilizar máquinas, condena a pequena exploração a uma constante pioria em relação à grande, a ficar cada vez mais para trás, perdendo dia a dia terreno na eficiência e economia de cultivo.

O uso das máquinas é apenas um dos aspetos da superioridade técnica das grandes explorações capitalistas em relação às pequenas. Essa superioridade manifesta-se em toda a situação geral e nos métodos de cultivo adotados numas e noutras. Se acompanhamos os trabalhos da pequena lavoura, em vez da sua tão gabada perfeição encontramos as mais das vezes deficiências técnicas de toda a natureza. Nas pequenas explorações do Noroeste, por exemplo, a lavoura do milho é precipitada. São comuns práticas prejudiciais como a «decrua» que, «em vez de amontoar, retira a terra dos pés das plantas»; faz-se o desbandeiramento prematuro; realiza-se a fenação no campo onde se corta a erva ou nos caminhos, sendo assim prejudicada pela chuva; não há nitreiras, o estrume é «geralmente mal curtido» e «as estrumações são deficientes, tanto sob o ponto de vista de quantidade como de qualidade»; o material agrícola é mau e as lavouras «superficiais e imperfeitas», semeia-se o milho a lanço, gastando quantidades desnecessárias de semente, e usa-se, na cultura de batata, semente excessivamente pequena e má; «rega-se mal», desperdiçando-se água, «utilizando-se águas a temperaturas baixas e pouco batidas» e regando-se às horas do calor; as ceifas são sempre à foucinha, mesmo quando «haveria vantagem em utilizar a gadanheira»; a sementeira mecânica, a sacha mecânica, o trabalho mecânico em geral, estão totalmente ausentes(53). Tal é o panorama da pequena exploração «intensiva» em região que não é das mais atrasadas.

Enquanto as pequenas explorações se mantêm ligadas a métodos tradicionais e rotineiros, as grandes explorações utilizam cada vez mais os recursos e ensinamentos da ciência

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e da técnica. O pequeno produtor detém, é certo, o conhecimento empírico acumulado por gerações, e esse conhecimento não deve ser desprezado pela técnica moderna. Mas a prática de gerações, só por si, não pode competir vantajosamente com os resultados de investigações, de ensaios, de estudos, de prática de grandes empresas, levados a cabo com recursos poderosos, resultados que abarcam a síntese do conhecimento não só de gerações como de países distantes.

Bem elucidativo das diferenças da evolução técnica na pequena e na grande lavoura é o movimento de frequência das escolas. Em 1927-1928, matricularam-se no Instituto Superior de Agronomia e na Escola Superior de Medicina Veterinária 212 alunos e nas escolas médias e práticas de agricultura 447(54). Os primeiros representam 32% e os últimos, 68% do total. Em 1948-1949, matricularam-se no ISA e na ESMV 902 alunos e nas escolas médias e práticas 663 (55). Os primeiros representam 58% e os últimos, 42% do total. Estes números mostram claramente, primeiro: a insignificante frequência das escolas médias e práticas de agricultura; depois: o aumento da frequência nas escolas superiores de agronomia e veterinária; finalmente: a subida da percentagem dos alunos matriculados nestas últimas e a descida da percentagem dos alunos matriculados nas primeiras.

Se tivermos em conta a natureza e diversidade de composição social do corpo discente destas escolas, fácil é de concluir pelos progressos beneficiando a grande lavoura em contraste com as dificuldades da pequena. Só das escolas práticas podia beneficiar diretamente o pequeno lavrador. Mas não só vemos diminuir o número dos alunos que as frequentam (297 em 1927-1928 e 225 em 1948-1949), como os poucos «diplomados» aproveitam em geral a preparação adquirida para conseguirem qualquer emprego mais remunerador e menos esgotante que o trabalho na terra. As escolas médias (regentes agrícolas), onde nos últimos anos tem descido o número de alunos, são frequentadas por indivíduos das «classes médias» de várias origens, a maioria dos quais com vistas a alcançarem empregos públicos. Quanto às escolas superiores, elas são fundamentalmente escolas de preparação técnica da grande lavoura, seja diretamente, seja por via do Estado. A função destas escolas

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foi definida em 1929 por um professor do ISA com magnífica clareza. Falando na necessidade de «educar o estado-maior rural dos grandes lavradores, pois não serão decerto os pequenos fazendeiros que hão-de fazer progredir a nossa agricultura», esse professor fez um apelo aos grandes lavradores:

«É de absoluta necessidade que os grandes lavradores mandem os seus filhos ao Instituto. Esta escola não foi criada para fazer lavradores, mas para fornecer aos que o são ou vão ser a instrução científica que lhes é indispensável.»(56)

Pelos números atrás citados vê-se terem os grandes lavradores ouvido o apelo do professor de Agronomia.

Nada de admirar que o Estado gaste mais com as escolas superiores do que com as médias e práticas e que as despesas com as primeiras aumentem em ritmo mais veloz do que as despesas com as últimas. De ano para ano, este sentido da evolução torna-se mais nítido. Quando se repara que as escolas práticas de agricultura tinham em 1946-1947 o total de 17 professores, ao passo que o ensino liceal tinha 1154, o elementar e complementar comercial e industrial, 1436, o artístico, 88; quando se repara que a sua frequência total no mesmo ano foi de 226 alunos, ao passo que a dos liceus passou de 40 000 e a das escolas de ensino eclesiástico foi de 6727; quando se repara que em 1947 terminaram nelas o curso 35 alunos, ao passo que nos liceus terminaram o curso 1869 alunos, no elementar comercial, 1464, e centenas nas Faculdades(57) —não pode deixar de concluir-se que o número de «práticos» na agricultura, bem como as despesas do Estado com esse escalão do ensino, são manifestamente irrisórios. Em 1949 gastaram-se com o ISA e a ESMV 6498 contos, com as escolas de regentes agrícolas 5367 contos e com as escolas práticas de agricultura 1080 contos(58). As percentagens respetivas sobre o total são 50%, 42% e 8%. A situação é tão desproporcionada que o comentador das contas públicas declara:

«Parece que as coisas se deviam passar de modo exatamente oposto.»(59)

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Mas não. Dada a natureza de classe do Estado, as coisas passam-se tal como é natural que se passem.

O grande significado que agora nos interessa de todos estes factos e números é o refletirem a estagnação técnica da pequena lavoura e os acentuados esforços e progressos dos grandes lavradores para se assenhorearem de uma técnica moderna e eficiente. Nas condições do capitalismo só eles o podem fazer. Só a grande lavoura pode aplicar com sucesso em larga escala as conquistas da ciência e da técnica moderna, e, por não o poder fazer, o pequeno produtor é explorado e esmagado. Tal o caso de uma região de vinhos famosos onde «o pequeno lavrador, regra geral, não fabrica o vinho, vende as uvas ao industrial, impossibilitado como está, por falta de técnica, de tirar do fabrico o rendimento exigido pelo apuro da qualidade. Isto dá em resultado vender as uvas a preços que regulam pelos do vinho de qualidade vulgar, mas que o industrial transforma no precioso néctar que coloca no mercado a preços muitas vezes por cento (sic) superior ao que deu pelas uvas»(60). O pequeno agricultor tem uma prática inexcedível; mas quem sabe escolher o adubo apropriado à terra, quem descobre o inseto ou fungo daninho e receita o medicamento exterminador, quem conhece os métodos mais eficientes, apurados pela experiência nacional e internacional, e não pela de uma freguesia isolada, é o agrónomo. O pequeno agricultor sabe, como ninguém, guiar a charrua e cantar aos bois e conhece os animais em todos os seus defeitos como em todas as suas virtudes; mas quem diagnostica a doença, quem vacina, quem trata, quem cura, é o veterinário. O agrónomo e o veterinário são, porém, os filhos do grande lavrador, e não os filhos do camponês pobre. O pequeno agricultor atinge alto virtuosismo ao semear, e em seara bem semeada não se conhecem as belgas; mas são os grandes lavradores que utilizam sementes selecionadas e semeiam em linha. O pequeno lavrador trabalha o seu estrume; mas os elementos nobres somem-se levados pela água e pelo sol, e são os grandes lavradores que possuem nitreiras e empregam adubos apropriados à terra. O pequeno agricultor, porque, olhando o firmamento, adivinha as variações atmosféricas, sabendo quando as nuvens «são só vento» ou quando os «pés de silva» no céu azul anunciam chuva, escolhe muitas vezes com inexcedível acerto o melhor momento para cada trabalho; mas é o grande lavrador que, com a rapidez do trabalho mecânico, com a extensão das

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culturas, com a mais sólida base financeira, melhor resiste aos azares do tempo. E até na rega — virtude sempre e tão justamente apontada e louvada ao pequeno cultivador— este está em situação de inferioridade; enquanto os pequenos agricultores continuam a elevar a água à força de braços, com roldanas, sarilhos, cegonhas, picanços, cabaços e mesmo à corda e caldeira, só a grande lavoura pode utilizar motores; enquanto nas pequenas explorações debruçadas sobre o Vouga se vêm «arrozais morrendo de sede», as grandes lavouras de Alcácer (dos Núncios, dos Linces, dos Dourados, dos Amarais e de outros mais) beneficiam de dispendiosas barragens. O pequeno agricultor aferra-se à sua prática e não pode deixar de fazê-lo. O grande lavrador beneficia largamente das conquistas da ciência e da técnica.

A questão das máquinas e da superioridade técnica da grande exploração agrícola não é uma questão livresca ou uma discussão escolástica. É uma realidade vivida e sofrida por centenas de milhares de pequenos agricultores. É uma diferença real de situação com uma série de importantíssimas consequências de carácter económico. Enquanto o uso de máquinas e a adoção de uma técnica moderna permitem o aumento da produtividade do trabalho nas grandes explorações, a sua ausência impossibilita-os nas pequenas. Com o desenvolvimento do capitalismo, a grande exploração afasta-se cada vez mais da pequena. No que diz respeito à produtividade do trabalho, os seus preços de custo são cada vez mais baixos e o seu triunfo no mercado é cada vez mais esmagador.

O emprego de máquinas e o desenvolvimento da técnica agrícola em geral não representam um benefício para a pequena produção agrícola, antes agravam as suas dificuldades e apressam a sua derrota e a sua decomposição. Como disse Lénine, as pequenas explorações «declinam e arruínam-se sob o jugo da sua técnica atrasada»(61).

Das vendas, do dinheiro e do crédito

Muitas vezes, gabam-se os produtos da pequena exploração e os preços por que esta os consegue vender. O pequeno produtor seria o grande triunfador no mercado, pela qualidade dos produtos oferecidos e pelo baixo preço dos mesmos. Entretanto, quem quer que tenha estudado ou

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simplesmente observado de perto a situação, vê coisas bem diversas.

Em primeiro lugar: os «preços de custo» são em geral mais baixos na grande produção e, por isso, esta consegue oferecer mais barato os seus produtos. Muitas vezes, preços vantajosos para a grande são preços de ruína para a pequena.

Num estudo feito sobre a «exploração» e «produtividade» em 18165 hectares de arroz nas bacias do Vouga, Mondego, Tejo e Sado, verificou-se que os «preços de custo efetivo» nas pequenas explorações ou excedem os preços do mercado ou lhes são ligeiramente inferiores, ao passo que nas explorações capitalistas são sempre muito inferiores aos preços do mercado(62). Pelo mesmo estudo se pode concluir ser dificultosa a situação dos produtores de arroz no Vouga e no Mondego (predomínio dos pequenos produtores) e desafogada no Tejo e no Sado (predomínio dos grandes). O que se passa na produção de arroz passa-se, de uma forma geral, em relação a todos os produtos agrícolas. Este exemplo põe a claro as enormes dificuldades e mesmo a impossibilidade de o pequeno produtor aguentar a concorrência.

Em segundo lugar: a própria organização da troca cria dificuldades insuperáveis ao pequeno produtor. Do mercado externo é afastado pelo monopólio efetivo dos grandes lavradores. No mercado interno, impossibilitado, as mais das vezes, de o alcançar diretamente, sujeito aos maiores preços dos transportes para as menores quantidades, não podendo ele mesmo resolver o problema da concentração de produtos, fica na completa dependência de intermediários e tem de submeter-se aos preços e condições que lhe oferecem.

«Na atividade comercial —reconhece um especialista categorizado— a empresa familiar está em piores condições que a capitalista porque, trabalhando com quantidades menores, obtém preços menos favoráveis, quer na compra quer na venda.»(63) «No regime da pequena propriedade — escreveu outra pessoa altamente cotada no meio agrícola— a produção individual é sempre tão pequena que não paga as despesas da escolha e da conveniente apresentação dos produtos.

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Desconhece, o pequeno agricultor, as necessidades dos grandes mercados, não possui conhecimentos para efetuar a venda vantajosa, para se defender, eficazmente, da concorrência; não pode fiscalizar a venda, nem pôr em prática a propaganda indispensável; não pode utilizar maquinismos que façam diminuir as despesas da produção, nem valorizar industrialmente os subprodutos; não pode, enfim, utilizar, com êxito, os transportes rápidos, nem, em muitos casos, os processos modernos de conservação.»(64)

Em terceiro lugar: a própria natureza da pequena produção origina a permanente carência de recursos financeiros. O pequeno produtor só excecionalmente tem «dinheiro em caixa». Para comprar necessita de vender, e quando não vende não pode comprar. Por isso, o pequeno agricultor não é livre de escolher a melhor ocasião para vender. A sua escassez de recursos obriga-o a vender a preços vis logo após a colheita e até, nalguns casos, antes da colheita. Precisa de o fazer para comprar o indispensável à continuação dos trabalhos, para pagar juros ou dívidas em atraso e por razão ainda mais imperiosa: o inadiável e violento pagamento dos impostos.

Até neste último aspeto, a situação da grande lavoura é incomparavelmente mais vantajosa. Não já só pelos seus maiores recursos financeiros, como também pelo facto de pagar (conforme é comum nos países atrasados) menos de imposto que a pequena. Em 1949, a contribuição predial rústica paga nos distritos de Braga, Aveiro, Viana do Castelo e Viseu, foi, respetivamente, de 41, 33, 31 e 24 escudos por hectare. Nos distritos de Portalegre, Évora, Setúbal e Beja, respetivamente 15, 14, 10 e 9 escudos por hectare. Esta desproporção, longe de se atenuar, tem-se agravado. De 1939 para 1949, enquanto nos primeiros quatro distritos citados a contribuição predial rústica liquidada aumentou de 4 a 9 escudos por hectare, o aumento nos últimos quatro distritos foi de 2 a 3 escudos por hectare(65). Note-se que, em Beja, houve atualização pelo cadastro geométrico, o que torna ainda menor o aumento aí verificado em relação aos distritos de pequena propriedade.

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Não se pense que estas diferenças de imposto, entre regiões onde predomina a grande propriedade e regiões onde predomina a pequena, derivam apenas de diferenças de qualidade do solo. Estas últimas existem sem dúvida. Mas a razão fundamental das primeiras é o facto incontrovertível de que, em Portugal, as explorações agrícolas pagam tanto mais quanto menores são. Isto harmoniza-se aliás com a ciência corrente que, conforme vimos, considera ser «o rendimento líquido por hectare tanto maior quanto menor for a área explorada». Mas, para que não fiquem dúvidas, podemos confrontar não já o que paga por hectare cada região, mas o que paga numa mesma região a pequena e grande exploração agrícola. Na freguesia de Santo Ildefonso, no concelho de Elvas, as propriedades de mais de 80 ha, abrangendo uma área de 4480 ha, pagaram, em determinado ano, 56 700$00; as propriedades de 40 a 80 ha, abrangendo 504 ha, pagaram 10 400$00; e as de menos de 40 ha, abrangendo uma área de 674 ha, Pagaram 28 100$00(66). Fazendo as contas, vemos que a grande pagou 12$70 por hectare, a média 20$60 e a pequena 41$70. Também na freguesia de Cuba, enquanto pequenos prédios pagavam até 80$00 por hectare, grandes prédios pagavam apenas 5$00 e 8$00(67). Estes exemplos, confirmando o que já se tem chamado o carácter «regressivo» da contribuição predial rústica, confirmam também a mais gravosa situação do pequeno lavrador em relação aos impostos.

Compreende-se a dificuldade do pequeno agricultor em pagar os impostos dada a sua míngua de recursos; e compreende-se também como, para os pagar, tenha de vender as colheitas em altura menos conveniente e aos mais fracos preços.

«As laranjas de Amares — diz pessoa conhecedora da região— em Janeiro, são vendidas pelo lavrador ao desbarato para pagar as contribuições, com o encargo de as defender dos ladrões até aos meses da Primavera ou do Verão, para que, nesses meses, o comprador as venda por preços dez vezes superiores àquilo por que as comprou.»(68)

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Do facto de o pequeno produtor estar assim estrangulado pela falta de dinheiro resulta que muitas vezes a concorrência entre a pequena e a grande produção se resolve não numa competição no mercado, mas numa simples transação entre os próprios competidores. Tal o caso dos grandes lavradores que, à semelhança do que se passa com estas laranjas, compram as colheitas aos pequenos a baixo preço na altura da abundância, para mais tarde as venderem a altos preços na altura da escassez. Tal o caso do pequeno vinhateiro que, por não ter vasilhame para o próprio vinho, o vende no lagar ou o dá a guardar ao grande vinhateiro, que fica com as borras e descontos frequentemente superiores a 10%. Tal o caso da troca imediata da azeitona por azeite no lagar do grande lavrador, onde além do eventual prejuízo de qualidade são gerais os cálculos e descontos escandalosos. Tal ainda o caso da «contagem» das rendas pagas em géneros, em que o excedente das rendas é comprado pelo grande lavrador por uma indigna bagatela. Em todos estes e outros casos, a concorrência resolve-se em vantagem da grande produção muito antes de os produtos chegarem ao mercado. Assim, em determinadas épocas do ano, o grande produtor é o único a dispor de produtos para venda, subindo então os preços à sua feição e vendendo não só os das suas explorações como também os das pequenas. Em contrapartida, não é raro que o pequeno produtor, com o correr do ano, venha a comprar a preços exorbitantes aquilo mesmo que vendeu a preços não compensadores.

A falta de dinheiro, consequência da natureza e das dificuldades da pequena produção, é importante fator de novas dificuldades, além das más condições da venda dos produtos. O pequeno produtor vê-se numa situação eternamente embaraçada, em que produz menos, pior e mais caro, porque não tem dinheiro para gastar com o que é preciso, e não tem dinheiro para gastar porque produz menos, pior e mais caro. A escassez de recursos financeiros obriga o pequeno agricultor a comprar piores sementes, a utilizar menos e piores adubos, a abster-se de empregar inseticidas e fungicidas muitas vezes ao preço da ruína das culturas, a servir-se de piores alfaias, a ter pior gado e não o alimentar convenientemente, a atrasar ou dispensar culturas e a abster-se de segurar os bens produzidos, do que resultam frequentes e irremediáveis desastres. E, apesar de todas as limitações, o pequeno agricultor não se desembaraça com os próprios

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recursos e tem de recorrer ao crédito. Em geral, fá-lo em condições ruinosas.

Pensam, entretanto, alguns que, bem vistas as coisas, o pequeno agricultor dispõe de mais capital e de mais crédito do que o grande. O Prof. Henrique de Barros, seguindo o Prof. Lima Basto, entende que «as pequenas explorações empregam mais capital por hectare do que as grandes e que, por exemplo, 10 empresários de explorações de 10 ha conseguem obter créditos mais elevados que um só empresário de uma exploração de 100 ha»(69). Que 10 empresários de explorações de 10 ha consigam obter créditos mais elevados que um só empresário de uma exploração de 100 ha é em muitos casos possível. Mas não prova o que visa provar, pois, na maior parte do País, uma exploração de 10 ha está longe de ser uma pequena exploração. A afirmação para demonstrar alguma coisa (e não seria ainda o dispor o pequeno agricultor de mais créditos), devia por exemplo ser assim redigida: «20 ou 50 empresários de explorações de 1 ha dividido em múltiplas courelas obtêm créditos mais elevados do que um só empresário de uma exploração de 20 ou 50 ha». É, porém, duvidoso que, nesta redação, correspondesse à verdade.

É certo que, muitas vezes, o pequeno produtor deve mais por hectare que o grande. Mas isso não significa que tenha mais crédito. O que sucede, geralmente, é amontoar o pequeno produtor dívidas que cobrem quase todo o seu ativo e o põem permanentemente à beira da ruína, enquanto o grande está em situação mais folgada. Em terras de igual valor venal por hectare (e são estas que mais interessa considerar neste caso, pois quanto maior for o preço da terra maior é a garantia oferecida), o pequeno deve maior soma por hectare, mas o grande só não deve tanto ou mais porque não precisa ou não quer. Na pequena produção não é a aptidão para conseguir crédito que é grande: o que é grande é a precisão que obriga.

Contra a opinião destes técnicos distintos, a grande exploração tem incomparavelmente mais facilidades de capital e de crédito do que a pequena. Se ideias feitas não ofuscassem as realidades, bastaria atender à posição em relação ao mercado e à venda dos produtos, que há pouco esboçámos, para se desvanecerem, para sempre, quaisquer

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ilusões acerca das facilidades de crédito do pequeno produtor.

No domínio da obtenção do crédito, há algumas diferenças essenciais entre a pequena e a grande exploração agrícola, em manifesta vantagem desta última.

A primeira consiste em que o grande lavrador (proprietário ou rendeiro) dispõe, muitas das vezes, de recursos de origem variada que o dispensam do apelo ao crédito, ou lho facilitam em caso de necessidade, enquanto os pequenos rendeiros, por não poderem oferecer qualquer garantia, nem sequer podem valer-se do crédito, e os pequenos proprietários, dada a exiguidade das suas terras, num instante as comprometem na garantia de uma pequena dívida.

A segunda diferença consiste em que o grande lavrador paga normalmente menor juro que o pequeno. Enquanto o primeiro tem a facilidade de recorrer aos estabelecimentos bancários ou a capitalistas com os quais se encontra ligado por outros interesses, o segundo tem de dirigir-se a particulares entre os quais proliferam usurários cruéis e criminosos. Em 1948, a taxa média para o crédito agrícola individual na Caixa Nacional de Crédito (anexa à Caixa Geral dos Depósitos) era de 3,2% e para o crédito agrícola mútuo de 4%(70). Quanto aos juros em empréstimos particulares e sobretudo em pequenos empréstimos, eles excedem em muito os juros legais. Fale-se em 3% ou em 5% ao ano a um pequeno cultivador e ele julgará ser anedota.

Na distribuição geográfica do crédito agrícola concedido em 1940 pela Caixa Nacional de Crédito (além do que é incluído na rubrica «crédito hipotecário» da CGD) salta à vista que, num total de 376 855 contos emprestados no continente, 226127 contos (60%) disseram respeito a cinco distritos de grande propriedade (Portalegre, Évora, Beja, Setúbal e Santarém) e apenas 35 325 contos (9%) a cinco distritos de pequena propriedade (Aveiro, Braga, Coimbra, Guarda e Viana do Castelo)(71). Isto denota serem os grandes lavradores quem utiliza a massa do crédito agrícola a juro módico.

O mesmo se conclui dos números referentes ao número e valor dos empréstimos hipotecários de prédios urbanos e rústicos concedidos por estabelecimentos de crédito e por particulares. Em 1949, os primeiros realizaram 2520 contratos

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correspondentes a 604 492 contos e os segundos 11 629 contratos correspondentes a 738 606 contos, o que dá para os primeiros uma média de 240 contos por contrato e para os segundos 64 contos(72). Estas médias mostram que os empréstimos registados pelas estatísticas, na sua maioria a juros legais, beneficiam apenas os grandes lavradores e capitalistas. Quanto aos pequenos, qualquer pessoa que tenha vivido em regiões onde predominam pequenas explorações conhece como os pequenos empréstimos são feitos secretamente e como prosperam e enriquecem os usurários, muitos deles juntando courela atrás de courela, como produto de dívidas não pagas e de juros criminosos.

Naturalmente que os cantores das excelências da pequena produção não vêm o caso assim. Eles vêm o lavrador rico a amparar e a salvar dos embaraços o pequeno. Se os pequenos agricultores, estrangulados pela falta de dinheiro, recorrem ao crédito, quem iria imaginar que existem juros usurários? Quem iria supor que a situação da pequena exploração se compromete, quantas vezes sem remédio? Não, isso não sucede, no entender de certos economistas. O pequeno agricultor recorre aos ricos lavradores e estes emprestam sob hipoteca a tão módicos juros e em condições tão favoráveis que bem podem «ser considerados como verdadeiros beneméritos da sua terra e da sua região»(73). Aqui também, tal como Júlio Dinis na Morgadinha...

A terceira diferença consiste em que o pequeno agricultor se liberta muito mais dificilmente das dívidas do que o grande. Deixando aqui apontada esta diferença, reservamos a demonstração para quando tratarmos do problema, não já apenas da situação relativa da pequena e da grande lavoura, mas da decisão da luta que entre elas se trava.

Pelos mais elevados «preços de custo», por todas as variadas dificuldades em colocar os produtos, pela carência de recursos financeiros obrigando a vender na pior época e ao pior preço, pelas dificuldades na obtenção do crédito — o pequeno agricultor não pode competir vantajosamente com o grande e é irremediavelmente batido na concorrência. Isto sucede na economia capitalista ao longo de toda a sua evolução, e, com redobrada força, na sua fase monopolista.

Quando os próprios organismos do Estado fixam preços, pautam entregas de produtos, limitam quantidades a reter

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para consumo, centralizam, distribuem, exportam, etc., essa intervenção decide em absoluto e prontamente a sorte da concorrência a favor da grande produção. É que, então, à diferença basilar de possibilidades junta-se a diferença de organização, com o uso pela grande lavoura, na sua luta contra a pequena, do eficiente e poderoso aparelho do Estado e das suas peças corporativas. Então, os grandes agrários estão solidamente organizados e unidos em organismos técnicos, noutros de compra e distribuição, de fixação de preços, de orientação e direção da agricultura nacional (organismos que impõem as suas decisões com a autoridade do Estado), enquanto os pequenos agricultores se encontram dispersos, isolados, sem hábitos de cooperação, impossibilitados de criar organismos de classe e (mais ainda) muitas vezes separados e opostos pelo seu individualismo cuidadosamente fomentado. Os grandes agrários vão ao ponto de criarem e dirigirem coercivamente eles próprios o que chamam organismos pela defesa da pequena lavoura com o nome de «cooperativa» ou com outros, que mais não são do que monopólios, que submetem o pequeno produtor aos seus caprichos.

O «maior peso vivo do gado»

Entre as «vantagens técnicas» da pequena produção, cita-se, com frequência, o «maior peso vivo de gado por hectare», insinuando-se que, no referente a gado, quanto menor for a exploração em melhor situação se encontra.

A distribuição geográfica do gado mostra que, de facto, nos distritos onde predomina a pequena exploração, o peso vivo por hectare é superior ao dos distritos onde predomina a grande. Em 1940, enquanto nos distritos de Viana do Castelo, Braga, Aveiro, Leiria e Coimbra o peso vivo por hectare de superfície territorial era, respetivamente, de 160, 154, 129, 66 e 59 quilogramas, nos distritos de Portalegre, Évora, Setúbal e Beja era, respetivamente, de 54, 52, 40 e 39 quilogramas(74). Apesar de que, nem em todos os casos, existe tal correspondência (nos distritos de Évora e Portalegre o peso vivo por hectare é superior ao dos distritos de Bragança e Guarda), pode concluir-se, na base desses elementos, que, nas zonas de pequena propriedade, a terra sustenta em geral mais gado e recebe em geral mais matéria orgânica do que nas zonas de grande propriedade.

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Estatísticas posteriores não só confirmam esta distribuição regional como mostram que, dentro de cada região e em todas as regiões, cabe às pequenas explorações o maior peso vivo por hectare.

Indicando as cabeças de gado, nas explorações classificadas segundo a área de cultura arvense, o «Inquérito às Explorações Agrícolas do Continente» do INE (1952-1954), permite que se calcule, pela primeira vez à escala continental, o peso vivo nas grandes e nas pequenas explorações. Feita por nós a estimativa (atrás exposta) da área de cultura arvense nas várias classes de explorações, calculamos o peso vivo total do gado e os quilogramas por hectare. No total continental, a situação apresenta-se da seguinte forma:

Área da cultura arvense

das explorações

Quilograma

por hectare

Até 0,25 ha 9280,25 a 0,50 5800,50 a 1 ha 471

1 a 3 ha 3063 a 5 ha 228

5 a 10 ha 15510 a 20 ha 10220 a 50 ha 64

50 a 100 ha 62100 a 200 ha 61200 a 500 ha 63

500 a 1000 ha 561000 a 2500 ha 452500 a 5000 ha 38

5000 a 10 000 ha 3110 000 a 20 000 ha 3

Vê-se que, salvo o caso das explorações de 200 a 500 ha de cultura arvense, apresentando um peso vivo de gado por hectare ligeiramente superior ao apresentado pelas explorações de 50 a 200 ha, o peso vivo é tanto maior quanto menor é a exploração.

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A tabela 24, resumindo o nosso cálculo, mostra a situação nos dezoito distritos do continente. Em todos os distritos, verifica-se o mesmo fenómeno: o peso vivo de gado por hectare inversamente proporcional à grandeza da exploração.

TABELA 24Peso vivo de gado por hectare de cultura

arvense (quilogramas)(1952 – 1954)

Explorações segundo hectares de cultura arvense

DistritosMeno

sde 0,5

0,5 - 1

1 - 5

5 - 20

20 - 100

100 – 500

Mais de

500Total

Aveiro 956 665 356 185 64 -- -- 368Beja 464 249 97 56 43 47 39 45

Braga 774 695 470 238 73 5 -- 401Bragança 651 308 188 141 99 63 -- 146Castelo Branco 667 342 211 117 89 82 43 127

Coimbra 458 313 198 120 67 40 46 197Évora 662 221 105 55 38 60 41 47Faro 862 426 208 97 60 65 55 121

Guarda 545 286 193 118 78 61 -- 144Leiria 668 455 286 162 95 184 -- 321Lisboa 626 351 215 167 150 89 51 182

Portalegre 683 343 155 104 70 72 49 65Porto 638 570 398 227 101 -- -- 331

Santarém 635 346 188 102 97 105 62 125Setúbal 1028 387 220 104 65 72 57 81Viana do Castelo 1167 1043 553 219 75 28 -- 691

Vila Real 608 482 350 191 63 25 -- 288Viseu 441 345 271 158 60 25 -- 264

Continente 677 471 278 130 64 63 44 130

Mas significará isto, realmente, uma vantagem das pequenas explorações? Significará que, quanto a gado, elas se encontram em melhor situação do que as grandes? A nosso ver, não pode significar tal coisa.

De início, diga-se que a razão inversa apontada oferece importantes irregularidades, algumas das quais a tabela 24

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acusa, raras até aos 10 ha de cultura arvense, mas numerosas daí para cima. As explorações médias apresentam, frequentemente, menos peso vivo por hectare do que as grandes e mesmo muito grandes. Assim, as explorações de 10-20 ha de cultura arvense apresentam menos que as de 50-100 ha em Coimbra e Santarém, que as de 100-1000 ha em Évora, que as de 200-500 ha em Santarém e Leiria; as de 20-50 ha menos que as de 50-100 ha em Castelo Branco, Coimbra e Santarém, do que as de 50-200 ha em Portalegre, do que as de 50-1000 ha em Beja e Faro, do que as de 50-2500 ha em Évora, do que as de 100-500 ha em Setúbal, do que as de 200-500 ha em Bragança, Leiria, Santarém e Viseu, do que as de 2500-10 000 ha em Beja; as de 50-100 ha menos do que as de 100-200 ha em Portalegre, do que as de 100-1000 ha em Setúbal e Beja, do que as de 100-2500 ha em Évora, dc que as de 200-500 ha em Bragança, Leiria, Santarém e Viseu, do que as de 200-1000 ha em Faro; as de 100-200 ha menos do que as de 200-500 ha em Beja, Bragança, Coimbra, Évora, Faro, Guarda, Leiria, Santarém, Setúbal e Vila Real, e do que as de 500-1000 ha em Coimbra, Évora e Faro.O distrito de Leiria apresenta mesmo uma exploração de 200-500 ha (Gama de Óbidos?) com mais peso vivo de gado por hectare que todas as de 3 a 200 ha.

Que significam estas irregularidades? Porque não se verificam elas nas mais pequenas explorações? Quanto a nós, as menores apresentam, a distância, o maior peso vivo de gado por hectare, não por abundância ou sequer suficiência de gado, mas pela extrema exiguidade da terra. Quando o gado de trabalho apenas existe a título de exceção, a real determinante do alto peso vivo por unidade de superfície não é a maior ou menor riqueza de gado (a pobreza é geral nas pequenas explorações), mas a maior ou menor estreiteza da terra. Quando, nas médias e grandes explorações, intervém, em escala apreciável, gado de trabalho, já as posições com frequência se alteram, coincidindo muitas vezes a maior extensão com o maior peso vivo de gado por hectare.

No minifúndio, a mais insignificante existência pecuária representa logo elevado peso vivo por hectare. Em exploração de 1200 metros quadrados, por exemplo, a existência de um porco e uma cabra corresponde (em média) a 816 quilos por ha. Isto é: nitidamente mais do que numa

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exploração de Alpiarça, indicada no «Inquérito» atrás citado, que, tendo de 100 a 200 ha de cultura arvense, possui a superabundância de 139 bovinos, dos quais 135 de trabalho, além de 11 muares, 356 ovinos e 3 suínos — o que dá entre 270 e 540 quilos por ha. Ninguém negará a esmagadora superioridade desta última exploração, no que diz respeito a gado, em comparação com a pobreza, orçando pela miséria, daquela pequena que, com um porco e uma cabra, apresenta o número elevadíssimo de 816 quilos por ha. Não se está perante o bem da abundância de gado, mas do mal da escassez da terra.

É uma verdade facilmente verificável que a maioria esmagadora das pequenas explorações não possui gado de trabalho. Contando bovinos, de trabalho e de trabalho e leite, equinos de trabalho, muares e asininos, 400 000 explorações de menos de 1 ha de cultura arvense (metade do número total das explorações) possuem apenas 153 000 cabeças, o que significa (tendo em conta o uso de juntas e parelhas), que cerca de 300 000 explorações de menos de 1 ha de cultura arvense não possui qualquer gado de trabalho.

Em contrapartida, 5745 explorações de 50 a 500 ha de cultura arvense têm 46-137 cabeças das espécies referidas, o que dá uma média de 8 animais de trabalho por exploração; 776 explorações de 500 a 2500 ha têm 30 251 cabeças, o que dá a média de 40 animais de trabalho por exploração; 72 explorações de mais de 2500 ha de cultura arvense têm 8052 cabeças, o que dá a média de 112 animais de trabalho por exploração.

Estudando em pormenor pelo mesmo Inquérito as existências pecuárias das grandes explorações, defrontamos com algumas dispondo de enormíssimos recursos. Alguns exemplos de explorações com 5000 a 10 000 ha de cultura arvense: uma, em Moura, com 450 bovinos, dos quais 280 de trabalho, além de 70 equinos, dos quais 40 de trabalho, 50 muares e 2 asininos; outra, em Estremoz, com 320 bovinos, dos quais 140 de trabalho, além de 40 equinos (11 de trabalho), 70 muares e 10 asininos; outra, em Reguengos, com 273 bovinos, dos quais 210 de trabalho, além de 80 equinos, 28 muares e 6 asininos; outra, em Alter do Chão, com 505 bovinos, dos quais 340 de trabalho, além de 8 equinos, 20 muares e 4 asininos. Explorações com 2500 a

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5000 ha de cultura arvense: uma em Montemor-o-Novo, com 150 bovinos, dos quais 80 de trabalho, além de 2 equinos, 20 muares e 2 asininos; outra, em Grândola, com 239 bovinos, dos quais 80 de trabalho, além de 2 equinos, 20 muares e asininos; outra, em Grândola, com 239 bovinos, dos quais 58 de trabalho, além de 44 equinos (14 de trabalho), 26 muares e 4 asininos; três, em Alcácer do Sal, tendo em média 481 bovinos, dos quais 249 de trabalho, além de (em média também) 65 equinos, 25 muares e 2 asininos. Explorações com 1000 a 2500 ha de cultura arvense: uma, em Crato, com 204 bovinos, dos quais 114 de trabalho, além de 46 equinos, 26 muares e 14 asininos; outra, em Benavente, com 239 bovinos, dos quais 149 de trabalho, além de 81 equinos (49 de trabalho), 2 muares e 1 asinino; outra, em Palmela, com 600 bovinos, dos quais 40 de trabalho, além de 100 equinos, 54 muares e 6 asininos. Nota-se ainda que todas estas grandes explorações têm não somente meios de trabalho animais como meios de trabalho mecânico, e melhor se compreende a sua situação de incomparável superioridade, no que se refere a gado de trabalho, em relação às pequenas explorações.

Entretanto, nestas grandes explorações, o peso vivo de gado por hectare situa-se entre 40 e 200 quilogramas, enquanto, nas explorações de menos de 1 ha, as médias distritais de peso vivo por hectare sobem a centenas de quilogramas e, por vezes, a mais de uma tonelada.

A carência de gado nas pequenas explorações agrícolas fica também claramente evidenciada, reduzindo todas as suas existências pecuárias a «cabeças normais»(75). As 400469 explorações com menos de 1 ha de cultura arvense possuem apenas 300 968 «cabeças normais», ou seja, menos de uma «cabeça normal» por exploração. E entre as de menos de 1 ha, destacam-se as 130 038 de menos de 0,25 ha, que, embora acusando 928 quilos de peso vivo por hectare, possuem apenas 51236 «cabeças normais», ou seja, menos de meia «cabeça normal» por exploração. Em nenhum distrito as explorações de menos de 0,25 ha possuem em média 1 «cabeça normal» e apenas em três distritos as explorações de 0,25 a 0,5 ha atingem tal média. É evidente estarmos em presença de uma autêntica indigência pecuária, atingindo cerca de metade das explorações agrícolas do continente, e não perante qualquer situação florescente ou de vantagem,

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que os altos pesos vivos por hectare parecem indicar aos olhos apressados. Mostra-se que o peso vivo de gado por hectare é fraca dimensão de riqueza pecuária.

Confirma-se, assim, com dados recentes, a ideia acerca da miséria pecuária na pequena produção; mas esta podia encontrar base bastante nos elementos disponíveis. Em 1949, o número de manifestantes de gado foi de 673 000, o de manifestantes de bovinos de 258 000(76) e o de proprietários rústicos de 1 300 000(77). Quer dizer: mesmo que todos os manifestantes de gado fossem proprietários (o que não é exato), não teriam manifestado gado mais de 600 000 proprietários (cerca de metade do seu número total) e não teriam manifestado bovinos mais de 1 000 000 de proprietários (quatro quintos do seu número total). Mesmo tomando apenas os pequenos agricultores indicados no «Censo» como «patrões» e «isolados» ativos na agricultura, o seu número de 1949 (419 000) excedia em 160 000 o de manifestantes de bovinos. Já na base desses elementos se podia concluir e demonstrar que a esmagadora maioria dos pequenos agricultores não possui gado de trabalho e que uma elevadíssima percentagem não possui qualquer gado. Isto é, aliás, sabidíssima verdade para quem quer que tenha tido contacto direto com as aldeias portuguesas, ou mesmo apenas olhos atentos e honestos.

Mesmo quanto ao maior peso proporcional de matéria orgânica nas pequenas explorações (ponto em que insistem alguns técnicos) ele é mais que duvidoso. As pequenas explorações, quando dispõem de algum gado, não conseguem as mais das vezes incorporar na terra própria toda a matéria orgânica respetiva, porque os animais — seja no pasto, seja em transportes — passam grande parte do tempo em terra alheia.

Qualquer pessoa que tenha percorrido com insistência estradas e caminhos de Portugal, encontrou certamente, com frequência de espantar, mulheres e crianças apanhando cuidadosamente do chão os excrementos dos animais que passam. Pequenos acontecimentos esclarecem por vezes os grandes. Neste incidente trivial, revela-se, dolorosamente, a falta de matéria orgânica em muitas pequenas explorações.

Lima Basto falava de um lavrador que possuía 31 juntas de bois e que «do número de jeiras utilizáveis só aproveitava

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em média 42,38% e no máximo, e, só num mês, 70%»(78), demonstrando, com esse exemplo, a existência de «capacidade não utilizada» (idle overhead dos americanos). Na verdade, enquanto grandes agricultores têm gado a mais, os mais pequenos têm gado a menos; enquanto o problema económico de muitos grandes lavradores é o da «capacidade não utilizada», não só a maioria esmagadora dos pequenos produtores não tem gado de trabalho, não só uma elevadíssima percentagem não tem qualquer gado, como aqueles que o têm, têm-no em geral insuficiente e pior, sujeito a mais duro trabalho e mais mal alimentado.

Apresentar-se como «vantagem» da pequena exploração o maior peso vivo de gado por hectare, esquecendo-se a exiguidade da terra, a falta de gado de trabalho e a miserável escassez das outras espécies, é ocultar o fundamental da realidade económica atrás de um preciosismo tecnicista.

Dos bois e das vacas

Índice altamente significativo do que se acaba de afirmar é o predominante uso de vacas de trabalho pelos pequenos agricultores. Sejam as vacas turinas em Aveiro e Leria, as arouquesas no Vale do Vouga, as mirandesas e barrosãs mais a leste e a norte — por toda a zona onde predominam as pequenas explorações há grandes manchas onde os pequenos agricultores utilizam em todos ou em parte dos trabalhos vacas em vez de bois. Isso acontece também, é certo, nas grandes explorações; mas, como regra, acontece mais nas pequenas.

O uso de vacas de trabalho é bastante mais usual do que muitos supõem. Não há nenhum distrito em que as estatísticas não acusem o aluguel de juntas de vacas, sendo a diferença do preço médio por dia de trabalho, em relação às juntas de bois, por vezes muito apreciável. Em 1949, por exemplo, subiu a mais de 10 escudos nos distritos de Beja, C. Branco, Évora, Faro, Lisboa e Setúbal; a 9 escudos nos distritos de Braga e Viseu; a 6 e 7 nos distritos de Leiria, Viana do Castelo e Bragança(79). Estas quantias não são insignificância para o pequeno agricultor, que, não possuindo gado de trabalho, tem de o alugar e, por isso, aluga, muitas vezes, vacas em vez de bois, por economia. Coisa semelhante acontece em muitas regiões com o pequeno agricultor que

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possui bovinos de trabalho. A vaca é mais barata, consome menos e acrescenta ao trabalho as crias e o leite. É mais económica e remuneradora. Daí a preferência. Os trabalhos executados por vacas não ficam tão perfeitos - «quem vacas gabou, nunca com bois lavrou» -, as lavras são menos fundas, os transportes mais demorados. Mas o pequeno agricultor não se pode dar ao luxo de ter gado exclusivamente de trabalho. Os recursos são poucos e a necessidade manda.

A tabela 25 mostra que a percentagem de vacas é maior nos distritos onde predominam as pequenas explorações (salvo os do Porto e Coimbra). Nos distritos de Viseu, Faro, V. do Castelo e Guarda a percentagem de vacas de trabalho e ceva passa de 80% ; nos de Braga, Bragança, Leiria e Vila Real passa de 70%. Em nenhum dos distritos alentejanos (incluindo Setúbal) chega a 55%.

TABELA 25Bovinos de trabalho e ceva de mais de 18 meses(80)

(1940)Distritos Total Bois Vacas Vacas (%)Aveiro 42072 16676 25396 60,4Beja 13065 5926 7139 54,6

Braga 66198 19463 46735 70,6Bragança 22829 4934 17895 78,4

Castelo Branco 14482 4344 10138 70,0Coimbra 21346 9865 11481 53,8

Évora 16210 8147 8063 49,7Faro 14924 2627 12297 82,4

Guarda 14989 1580 13409 89,5Leiria 17720 4705 13015 73,4Lisboa 10953 6993 3960 36,2

Portalegre 18438 8329 10109 54,8Porto 48359 36155 12204 25,2

Santarém 21246 11133 10113 47,6Setúbal 14651 7792 6859 46,8

Viana do Castelo 53430 8837 44593 83,5Vila Real 31392 8247 23145 73,7

Viseu 33732 6139 27593 81,8Continente 476036 171892 304144 63,9

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Em muitos concelhos, as percentagens de vacas são elevadíssimas. E se, em alguns casos, isso se relaciona com o predomínio da pastorícia e da criação, em muitos outros é simples resultado das razões económicas apontadas. No distrito de Aveiro, a percentagem de vacas em relação ao total de bovinos de trabalho e ceva de mais de 18 meses está compreendida entre 70% e 90% em cinco concelhos e passa de 90% em dois. No distrito de Braga, apenas em dois concelhos é inferior a 50% e em sete concelhos passa de 70%. No distrito da Guarda, está compreendida entre 70% e 90% em cinco concelhos e passa de 90% em outros cinco. No distrito de Leiria, passa de 70% em oito concelhos. No de Viana do Castelo, no total de dez concelhos, só em dois é inferior a 70%, em quatro está compreendida entre 80% e 90% e em três passa de 90%. No distrito de Vila Real, em sete concelhos e no de Viseu em doze, passa de 70%(81).

Em 1952-1954(82), a situação apresenta-se sem quaisquer alterações de vulto. As percentagens de vacas de trabalho e de trabalho e leite em relação ao total de bovinos de trabalho e leite são, tanto no total como nos distritos, quase a repetição das apuradas para 1940. Igual a ordem de grandeza e igual a situação relativa dos distritos.

Nalgumas regiões de pequena propriedade, o uso de vacas de trabalho é de tal forma dominante que, no arrolamento de 1934, segundo informações dos intendentes da pecuária de Braga e Guarda, «muitos manifestantes inscreveram os bovinos de trabalho, que possuíam, como gado leiteiro»(83). Não se julgue tratar-se de diferenças de somenos. Graças ao erro de inscrição, o concelho de Vila Verde (distrito de Braga), por exemplo, aparece em 1934 com 155 não leiteiros e 10 487 leiteiros! E em 1940 com 10 309 não leiteiros e 57 leiteiros! Essa esclarecedora confusão não se deu apenas nas duas intendências de Braga e de Guarda, mas, como admite o relatório do arrolamento, «possivelmente em mais algumas»(84). E, de facto, coisa semelhante se deve ter passado em outros distritos, designadamente nos de Aveiro, Leiria e Viana do Castelo. Neste último, confrontando-se os arrolamentos de 1934 e 1940, nota-se que o número de bovinos em geral aumentou menos que os de trabalho e ceva e que o número de leiteiros diminuiu. A mesma confusão deve explicar o facto. Os erros de inscrição de bovinos nas categorias de «leiteiros», «não leiteiros» e de trabalho

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significam que, para os pequenos lavradores de algumas regiões, gado de trabalho e gado leiteiro é uma e a mesma coisa, ou seja, que utilizam principalmente vacas de trabalho.

O estudo do gado bovino de trabalho nas pequenas e grandes explorações dentro de cada distrito confirma que, em geral, as vacas são utilizadas mais vulgarmente nas pequenas explorações, enquanto nas grandes se dá preferência aos bois de trabalho. Assim, em 1952-1954, as percentagens de vacas de trabalho e de trabalho e leite em relação ao total dos bovinos de trabalho e de trabalho e leite eram as seguintes no total continental(85):

Explorações com menos de 1 ha 75,1%Explorações com 1-5 ha 66,0%

Explorações com 5-50 ha 62,8%Explorações com 50-500 ha 52,4%

Explorações com mais de 500 ha

46,2%

Aparece com toda a clareza o mais frequente uso de vacas de trabalho nas mais pequenas explorações e a sua substituição por bois de trabalho em tão maior escala quanto maiores são as explorações.

Isto não significa que tal se verifique sempre e em todos os casos (regionais e individuais), mas apenas que é o traço característico do conjunto da situação portuguesa. Divididas as explorações em dois grandes grupos, segundo a área de cultura arvense — as de menos e as de mais de 5 ha — verifica-se que, não só no total continental, como em treze dos dezoito distritos, a percentagem das vacas de trabalho é superior nas de menos de 5 ha e apenas em cinco (Beja, Bragança, C. Branco, Coimbra e Guarda) nas de mais de 5 ha. Divididas em três grupos (de menos de 5 ha, de 5-50 ha e de mais de 50 ha), verifica-se que, como mostra a tabela 26, a menor percentagem de vacas de trabalho se encontra nas explorações de mais de 50 ha não só no total continental como em oito distritos, nas de 5-50 ha em outros oito distritos e nas de menos de 5 ha apenas em dois distritos. Em contrapartida, a maior percentagem encontra-se nas explorações de menos de 5 ha, em doze dos dezoito distritos.

TABELA 26

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Vacas de trabalho (Percentagem em relação aos bovinos de trabalho)(86)

DistritosCom

menos de 5 ha

Com 5-50 ha

Com mais 

de 50 haAveiro 62,8 55,6 -Beja 50,8 48,0 55,4

Braga 74,1 61,5 68,1Bragança 73,7 75,9 55,6

Castelo Branco 29,0 82,8 84,0Coimbra 53,5 66,1 43,4

Évora 54,3 49,2 41,9Faro 86,0 82,5 65,0

Guarda 82,5 89,4 90,7Leiria 76,5 70,1 9,5Lisboa 41,2 22,7 35,1

Portalegre 64,7 73,8 51,5Porto 32,9 28,4 —

Santarém 60,1 37,6 37,1Setúbal 55,7 36,5 37,3

Viana do Castelo 84,6 64,1 —Vila Real 70,7 63,7 38,0

Viseu 75,8 70,2 —Continente 67,9 62,9 49,4

Nos distritos de Aveiro, Évora, Faro, Leiria, Porto, Santarém, Viana do Castelo, Vila Real e Viseu apresenta-se o mesmo panorama do total continental: uso de vacas tanto maior quanto menores as explorações. Sete outros distritos apresentam irregularidades que não desmentem, porém, esta mesma tendência. Apenas nos distritos de Castelo Branco e Guarda se mostra uma tendência inversa, pois neles o uso de vacas parece ser tanto maior quanto maiores as explorações. No conjunto, a tendência para o maior uso de vacas de trabalho nas pequenas explorações aparece com toda a clareza.Não deixa de haver quem considere benéfica a substituição de bois por vacas e veja no uso de vacas de trabalho uma «vantagem» mais da pequena produção. Vai-se mesmo ao ponto de preconizar, como «medida de fomento» (sic), «a isenção de taxas municipais aos lavradores que usassem vacas e não bois para o trabalho»(87). A verdade é ser o uso de

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vacas de trabalho não um índice de progresso e desafogo, mas um índice de dificuldades e inferioridade.

Já há um século e meio, falando da miséria dos domínios turcos, Malthus referia, como sinal do «deplorável estado» da agricultura, o facto de serem as terras lavradas por vacas e raramente por bois, em virtude de estes exigirem muito maior despesa(88). Também Lénine, ao estudar a decomposição do campesinato russo, mostrava ser o uso de vacas de trabalho um índice da pioria da situação do camponês médio(89). Serem as vacas de lavoura sintoma de atraso agrícola é verdade há muito conhecida. Mas até hoje não vimos que os especialistas portugueses tenham ao menos aflorado ao de leve este assunto, antes temos ouvido com frequência canto e louvores a tal índice de miséria.

Embora fechando os olhos ao fundo do problema económico, os mais competentes veterinários são unânimes em admitir a decadência das espécies como consequência da sua utilização simultânea (agravada por deficiente alimentação) no trabalho, na criação e na função galactófora.

«A raça turina escrevia o Prof. Miranda do Vale — é explorada em função mista (trabalho-leite), encontrando-se, devido a esta espoliação, em franca decadência.»(90)

Aqueles que aplaudiram a invasão da raça turina com a substituição de bois por vacas, aproveitadas simultaneamente na função leiteira e no trabalho, não têm razões para grandes entusiasmos.

Dado o seu intenso aproveitamento como leiteira, esforçando-se de mais, comendo de menos — é talvez a vaca turina a maior sacrificada. Mas não a única.

«A raça barrosã — dizia o mesmo autor — mercê das péssimas condições higiénicas, e principalmente pelo que diz respeito à alimentação, encontra-se também longe de ser considerada em estado florescente»(91).

E um professor universitário, embora mais optimista, reconhece a mesma situação ao gabar a vaca barrosã

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«a quem se dá fome, que trabalha, sustenta a cria e ainda pode dar uma romea (5 litros) de leite por dia, mungindo-se apenas duas tetas»(92).

As exigências demasiadas feitas ao gado bovino e em especial às vacas nas pequenas explorações, juntas à sua pior alimentação e fraca higiene, determinam o seu enfraquecimento, o seu menor rendimento e muitas vezes o encurtamento da vida. Não é por acaso, que, entre as reses reprovadas no Matadouro Municipal de Lisboa, as mais elevadas percentagens cabem à raça turina. Em 1944, por exemplo, enquanto as reprovações de bovinos adultos não passaram de 4% e 5% para as raças arouquesa e transtagana e de 7% para as raças africanas, barrosã, mirandesa e ribatejana, atingiram 11% para a raça turina. Também as mais altas percentagens de reprovações por tuberculose couberam à raça turina com 6%(93). E não é igualmente por acaso que as mais altas percentagens de rejeição de bovinos nos matadouros se verificaram nas regiões de pequena propriedade e particularmente naquelas onde a vaca é mais abusivamente utilizada no trabalho. Considerando em conjunto as rejeições totais e parciais, elas atingiram em 1946 e em relação aos bovinos abatidos (aprovados mas rejeitados totalmente) 78% no distrito da Guarda, 60% no de Leiria, 50% no de Vila Real, 41% no de Bragança, 38% no de Coimbra, 36% no de Braga, 31% no de Aveiro. No conjunto continental as rejeições representaram 27%, média muito inferior à de qualquer destes distritos(94). No distrito de Lisboa as rejeições rondaram os 30% e em todos os restantes foram inferiores a 20%.

Nalgumas regiões como o Noroeste e grande parte das Beiras, a importância vital dos bovinos e particularmente das vacas para o pequeno produtor resulta do facto de ser muitas vezes a criação quase a única fonte de receitas pecuniárias. O produto da exploração agrícola mal dá para o consumo familiar. O milho, produção essencial no Minho, é normalmente absorvido pela renda, nos casos de arrendamento. É o gado (comprado ou criado pelo pequeno produtor ou recebido em regime de parceria) que dá ao camponês pobre uma ligação com o mercado. Os benefícios não são grandes, nas parcerias o grosso do lucro é para o grande proprietário ou capitalista, formam-se assim, muitas

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vezes, grandes e prósperas explorações pecuárias assentes em pequenas e miseráveis explorações agrícolas, mas o pouco que o gado dá é tudo ou quase tudo de que dispõe o pequeno agricultor para fazer face a encargos monetários: um punhado de adubo, sementes, o conserto de uma alfaia, roupa, mercearia, tabaco e também, com peso que por vezes esmaga, a liquidação de impostos e dívidas «entre as quais figura, muitas vezes, a renda em atraso»(95).

Apesar da importância decisiva do gado para a pequena exploração, ele não tem aí tratamento equivalente (alimentação, higiene, regime de trabalho, divisão de funções, assistência veterinária) ao que lhe é dado na grande. Numa e noutra é frequente ter o gado melhor passadio que os homens. Mas o nível é diferente e diferentes as razões por que isso acontece. Quanto ao pequeno agricultor são as razões imperiosas apontadas que o levam a velar pelo bem-estar do seu gado mesmo à custa do próprio sacrifício. São tantos os cuidados, que alguns senhores distintos, ao estudarem a situação nos campos, colocam, sorrindo, num mesmo pé homens e bichos. Assim, por exemplo, D. Francisco de Almeida Manuel de Vilhena apresenta, em livro seu, várias fotografias. Depois de algumas retratando exemplares de gado de raça barrosã, surge a de um trabalhador com um subtítulo estabelecendo o paralelo: «Um belo exemplar da raça trabalhadora e enérgica de Entre Douro e Minho.»(96) Numa outra fotografia, onde se vêm exemplares das duas «raças», sublinha: «O barrosão é quase um membro da família do pequeno agricultor minhoto.»(97) Não se pretende aqui discutir o aristocratismo de D. Francisco, mas apenas salientar como, mesmo aos olhos de um especialista aristocrata, que vê superiormente o pitoresco e não vê as suas causas, não podem escapar os desvelados cuidados do pequeno agricultor pelo seu gado.

Esses cuidados, que parecem pitorescos e risonhos aos senhores distintos, traduzindo toda a amargurada situação do pequeno agricultor, têm um significado profundamente trágico. O camponês pobre sabe bem que exige demasiado dos animais, que os não alimenta como convém, que os não tem bem alojados, que não lhes cuida com prontidão das moléstias e achaques. E, entretanto, a vida ou a morte do bovino é quase a vida ou a morte da pequena exploração. Daí o facto de que, muitas vezes, «os pequenos agricultores põem

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a comodidade e o bem-estar dos seus animais acima dos seus próprios e dos de sua família»(98). Daí essa preocupação absorvente e dominante, bem retratada por Aquilino, no Brás de Terras do Demo, quando, depois de quinze dias de inconsciência por pancada recebida no caminho da feira onde ia vender a vaca, pergunta antes de mais nada ao voltar a si: «A Galante?» Daí esses sentimentos de ternura do camponês pelo bovino, quase o endeusando, como fizeram os antigos povos de agricultores, ornando-o espaventosamente, admirando-o modelado em barro nos bonecos das feiras. É a situação profundamente trágica do pequeno agricultor, a ligação da sua sorte à sorte do bovino, que lhe impõe sacrifícios pessoais para assegurar a vida, o trabalho e a criação dos bichos e lhe molda os sentimentos ao sabor desta imperiosa necessidade.

Quanto aos grandes lavradores, se muitos constroem estábulos e currais higiénicos e fornecem abundante alimento ao gado, enquanto os trabalhadores vivem em pocilgas e subalimentados, a razão é que a saúde, a vida e a morte do gado correm por sua conta, e no que respeita à saúde, vida e morte dos trabalhadores da terra, isso deixou de suceder desde a abolição da escravatura.

Em volta dos rendimentos unitários

Entre os grandes argumentos utilizados na defesa das excelências da pequena produção agrícola, talvez aquele que mais poder de sugestão oferece é o respeitante aos elevados rendimentos unitários na pequena produção. São, porém, abundantes as confusões a esse respeito. Uma das confusões mais vulgares é entre a grande propriedade e a grande empresa capitalista. Não se tem em conta que o direito de propriedade sobre extensas áreas é anterior ao capitalismo. Se, por um lado, esse direito favorece fisicamente o estabelecimento de grandes empresas em confronto com as regiões onde a terra está muito retalhada, por outro lado, não só não implica a existência de empresas evoluídas como dificulta a sua multiplicação e retarda o seu desenvolvimento dado o elevado preço da terra, dada a insuficiência de capitais ao dispor do grande proprietário.

A verdade é ser característica da grande empresa capitalista não apenas a extensão da terra, mas o volume do

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capital nela investido. O progresso do capitalismo na agricultura, no que respeita ao aspecto técnico, produtividade, divisão do trabalho, não se traduz num alargamento ilimitado da área de cultura de cada empresa, mas no aumento do capital e da sua composição orgânica. Já Lénine o mostrou. Uma empresa pode tornar-se maior reduzindo a área cultivada. A redução da área cultivada é mesmo, onde existe a exploração «extensiva», o único caminho para a formação de maiores empresas capitalistas.

Tomar, como é frequente, a grande exploração «extensiva» como grande empresa capitalista típica é pois claramente um erro. Uma e outra são, é certo, empresas capitalistas e grandes empresas, dado que se baseiam no trabalho assalariado e em grande massa de trabalho assalariado. Mas, ao passo que a primeira se caracteriza pelos fracos capitais investidos na terra (escassa mão-de-obra em relação à área, ausência de plantações, de obras de rega, de oficinas tecnológicas, de construções, de vias de comunicação, etc.), a segunda caracteriza-se pelo elevado investimento de capital (constante e variável).

Há, porém, quem não faça a destrinça, tome como padrão de grande empresa capitalista a grande propriedade latifundiária alentejana (coincidindo, aliás, muitas vezes, com a pequena exploração) e, sem reparar em antecedentes históricos, no desenvolvimento do capitalismo na agricultura portuguesa e nos obstáculos levantados a esse desenvolvimento pela propriedade particular da terra, compare a cultura «extensiva» nas grandes propriedades alentejanas (mesmo quando arrendadas em pequenos lotes) com cultura «intensiva» na pequena produção e conclua pela inegável superioridade da pequena em relação à grande. É evidente que tal conclusão assenta em base falsa.

Por outro lado, não se repara assim que nem a exploração «extensiva» é exclusiva da grande propriedade, nem a «intensiva» da pequena. No distrito de Bragança há mais de 1 milhão de prédios rústicos numa área de 655 000 hectares, o que dá a cada prédio uma área média de menos de 6000 metros quadrados. No distrito de Vila Real há cerca de 800 000 prédios rústicos numa área de 424 000 hectares, o que dá também a cada prédio uma área média inferior a 6000 metros quadrados, reduzida a 4000 depois de descontados os

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107 000 hectares de terras baldias. E, entretanto, em Trás-os-Montes, «a cultura permanece extensiva, os pousios são prolongados, os incultos vastos, o gado manadio frequente e as quotas de produção dos vários géneros em relação à superfície total quase sempre baixas»(99). Em contrapartida, nas grandes quintas do Douro investem-se importantes capitais. Vemos, neste caso, os pequenos agricultores transmontanos praticando a cultura «extensiva» e os grandes lavradores durienses a «intensiva». Exemplos semelhantes se poderiam apontar noutras regiões e muito particularmente no Alentejo, onde há pequenas explorações mais «extensivas» que muitas grandes.

Vê-se, pois, que a habitual comparação entre a grande exploração «extensiva» e a pequena produção «intensiva» não é a justa comparação que possa decidir da superioridade ou inferioridade da pequena e da grande produção.

Postas estas restrições, deve salientar-se ser sem dúvida nas regiões de grande propriedade que mais proliferam e se desenvolvem as grandes empresas. Podem e devem, por isso, fazer-se várias comparações entre essas regiões e aquelas onde predomina a pequena produção, de forma a esclarecer posições e vantagens. Mas de tudo o que menos se pode comparar com esse fim são as produções unitárias. Não se ter em conta que, no nosso país, há uma importante diferença climática entre o Sul, onde predomina a grande propriedade, e o Norte, onde predomina a pequena; não se terem em conta diferenças de solo, de chuvas, de cursos de água, de culturas; e comparar, por exemplo, à toa, como é hábito, produções unitárias provinciais, distritais ou concelhias do Norte minhoto ou beirão com as do Sul alentejano — conduz necessariamente, embora sem base bastante, à ideia da superioridade e maior eficiência da pequena produção em relação à grande empresa capitalista. A este erro não têm escapado destacados economistas.

É verdade serem os rendimentos unitários nas grandes zonas de pequena propriedade superiores aos das grandes zonas de grande propriedade. Em 1941, por exemplo, enquanto em 3 dos 55 concelhos do Alentejo (incluindo o distrito de Setúbal) a produção de trigo por hectare passou dos 10 quintais, no distrito de Aveiro apenas num concelho o rendimento unitário foi inferior a 10 quintais, ultrapassando os

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15 quintais em 7 concelhos e os 20 em dois. Nos distritos de Viana do Castelo, Braga e Porto, em 24 concelhos no total de 40, a produção média por hectare ultrapassou os 10 quintais(100). Estes números e outros semelhantes, que se podiam citar, relativos a outros produtos agrícolas, indicam uma maior produção por hectare nos distritos de pequena propriedade.

Não só, porém, se podem e devem fazer algumas reservas a estes números, como eles estão longe de ter o significado que lhes é atribuído.

Em primeiro lugar: se é certo indicarem, em geral, as estatísticas uma superior produção unitária de cereais e legumes nos distritos de pequena propriedade, nem sempre isso sucede. Nesse mesmo ano de 1941 e ainda em relação ao trigo, o resultado no distrito de Coimbra (pequena propriedade) não foi mais brilhante que no Alentejo. Quanto ao arroz, a produção por hectare nos distritos alentejanos de Setúbal e de Santarém, onde predominam os arrozais de dezenas e centenas de hectares, excede geralmente e com larga margem a dos distritos de Aveiro, Coimbra e Leiria. Mas mesmo em relação aos legumes, as estatísticas apresentam por vezes curiosos contrastes. Em 1940 a produção de feijão por hectare no distrito de Évora teria sido a mais alta do País, a produção unitária de grão de bico no distrito de Beja teria sido superior à dos distritos de Aveiro, Braga, Bragança, Coimbra, Leiria, Porto e Viana do Castelo (todos de pequena propriedade) e a produção unitária de batata no distrito de Setúbal só teria sido ultrapassada pela do distrito do Porto(101).

Em segundo lugar: a variação dos rendimentos por hectare indicada pelas estatísticas de uns anos para outros é de tal monta que aconselha prudência na sua utilização. Estudando-se em detalhe as oscilações em cada concelho, observam-se altas e baixas impressionantes e díspares, sobretudo nas regiões de pequena propriedade ou onde a cultura em que isso se verifica tem reduzida importância. Assim, por exemplo, em relação à produção de trigo em 1941 e 1949(102), a produção por hectare teria passado de 6 para 11 quintais em Guimarães e de 14 para 5 em Ponte da Barca; de 19 para 9 em Santo Tirso e de 4 para 16 em Paços de Ferreira; de 7 para 15 em Penedono e de 17 para 6 em Resende; de 8 para 30 em Carregai de Sal e de 13 para 3 em

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S. Pedro do Sul, etc. Deve notar-se que na maioria dos concelhos onde se verificam tão grandes variações cultivam-se de trigo pequenas superfícies: Guimarães 10 ha em 1949; Ponte da Barca 11; Paços de Ferreira 4, etc. Em relação ao milho, verificam-se igualmente oscilações díspares. De 1941 para 1949, em Arronches, a produção teria passado de 8 para 19 hectolitros por hectare e em Alter do Chão de 6 para 1; em Almada, teria subido de 6 para 15 hectolitros e no Barreiro descido de 12 para 2; em Loures, teria subido de 10 para 44 hectolitros e em Mafra descido de 21 para 6; em 4 concelhos algarvios a produção unitária teria subido mais de 50% e de 100% e em outros 5 descido mais de 50%. Nuns casos haverá causas locais particularmente favoráveis ou desfavoráveis explicando estas diferenças. Noutros casos, erros de estimativa.

Estas reservas indicam a necessidade de não tomar, esquematicamente, números referentes às produções unitárias regionais como base de apreciação da eficiência da pequena e da grande produção e, sobretudo, não tomar (como já têm feito publicistas de mérito) concelhos isolados e anos isolados. Estas reservas indicam, também, a necessidade de não considerar em abstracto a produção deste ou daquele produto agrícola, sem ter em conta a importância real da sua produção nesta ou naquela região, bem como o processo de cultivo. Comparar produções unitárias em regime de sequeiro com as de regadio e até de horta, ou comparar a produção unitária de um cereal ou legume num concelho onde se semeia área insignificante com a de outro onde esse cereal ou legume é cultura destacada, a poucos resultados pode conduzir para o fim em vista.

Consideradas, no entanto, estas reservas, deve ter-se por verdadeiro — sosseguem os intranquilos espíritos dos técnicos cantores da pequena produção — que, de forma geral, a produção por hectare das grandes regiões onde predomina a pequena propriedade é superior à das grandes regiões onde predomina a grande. Isso se deve não só a razões climáticas e diferenças do solo como à herança da exploração «extensiva» recebida do feudalismo e ao sobre-humano esforço dos pequenos agricultores nas suas pequenas courelas.

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Mas o grande interesse para o fim de avaliar da superioridade ou produtividade da pequena ou da grande exploração não está em comparar as produções unitárias da pequena produção minhota ou beiroa com as do latifúndio alentejano (como fazem defensores das excelências da pequena produção); o que verdadeiramente interessa para esse fim é comparar a pequena produção da Beira com a grande exploração da Beira, a pequena produção do Minho com a grande exploração do Minho, a pequena produção alentejana com a grande empresa alentejana e assim sucessivamente; e comparar também — e isto é um ponto capital — a produtividade do trabalho numas e noutras, ou seja, as horas de trabalho necessárias numas e noutras para a produção de cada unidade de determinado produto. Só desta forma as diferenças de produções unitárias terão, para o fim em vista, qualquer valia.

Infelizmente, se abundam os elementos gerais acerca das produções e rendimentos unitários por distritos e concelhos, escasseiam os estudos relativos à pequena e à grande produção neste ou naquele distrito, neste ou naquele concelho, tanto no referente às suas produções unitárias como no referente à produtividade do trabalho.

Alguns poucos estudos conhecidos, comparativos da grande e da pequena produção, parece não darem razão aos defensores da superioridade da segunda. A Federação Nacional dos Produtores de Trigo fez um «Inquérito ao custo da produção do trigo», abrangendo 200 concelhos do País onde a cultura do trigo tem alguma importância. Henrique de Barros publica, em primeira mão, alguns resultados desse inquérito(103). Repare-se nos seguintes exemplos respeitantes a um único concelho. Em terra limpa (diorito e mioceno): enquanto uma grande exploração (conta própria) obtinha 1050 quilos por hectare, uma pequena exploração (conta própria e arrendamento) apenas 850 quilos. Em cultura sob montado de azinho e olival (pórfiros): enquanto duas grandes explorações (conta própria e arrendamento) obtinham 600 quilos por hectare, uma pequena exploração (parceiro-cultivador) não ia além de 413 quilos e outra pequena exploração (parceiro-proprietário) de 137 quilos. Em terra limpa (xistos e granitos): enquanto quatro grandes explorações (duas por arrendamento e duas em conta própria) obtinham 725 e 650 quilos por hectare, uma pequena

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exploração (conta própria) não ia além dos 600 quilos. Ficam aqui em contraste os rendimentos unitários obtidos pela grande e pela pequena exploração em idênticas condições climáticas e de fertilidade natural do terreno. Nos casos apontados, o rendimento unitário é inferior nas pequenas explorações.

Não se pretende tirar deste caso isolado uma conclusão geral. Mas pode daqui concluir-se que o debate acerca dos rendimentos unitários na pequena e na grande exploração agrícola em Portugal está ainda muitíssimo longe de poder considerar-se encerrado. Neste domínio, os agrónomos têm diante de si um vastíssimo terreno para explorar.

Entretanto, seguindo especialistas estrangeiros, agrónomos portugueses arvoram o pretenso superior rendimento unitário da pequena exploração agrícola numa «lei» económica de completa precisão. Verdade, verdade, a «lei» tem sofrido algumas variações. Antes era assim formulada: «o rendimento bruto por hectare é tanto maior quanto menor for a exploração». Assim concebida, a «lei» revelou-se inexacta dados os frequentes desmentidos. E então, vendo-se embora como vantagens da pequena produção a «maior produção bruta por hectare» e o «aumento do rendimento líquido», retifica-se a «lei» para os seguintes termos: «Nas condições mesológicas onde é possível a pequena produção agrícola (sic) e em regime normal de cultura (re-sic), o rendimento líquido por hectare é tanto maior quanto menor for a área explorada.»(104) Esta nova formulação foi recebida de braços abertos por outros defensores da superioridade da pequena produção(105). E, na realidade, bem o merece, pois dá margem de segurança notável. Sempre que o rendimento por hectare da pequena exploração se apresente inferior ao da grande, sempre que o desenvolvimento do capitalismo dê à grande empresa maiores rendimentos unitários e «líquidos», pode atribuir-se às «condições mesológicas» desfavoráveis ou a um «regime anormal de cultura». Mas tal recurso só raramente será preciso. Como teremos ocasião de ver, a forma viciada do cálculo dos «rendimentos líquidos» em que se baseiam estas opiniões garante no papel a superioridade à pequena produção, estando esta em manifesta inferioridade na vida.

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Para concluir estas reservas, deve ainda notar-se que as produções unitárias por si só (mesmo sem de momento se considerar a questão basilar da produtividade do trabalho) são insuficiente indicação da eficiência do método de cultivo. No Alentejo e Algarve há exemplos do aumento da produção bruta por hectare quando do estabelecimento de pequenas explorações em grandes propriedades. Mas também, com frequência, tal aumento tem como contrapartida o esgotamento do solo e as posteriores diminuições dos rendimentos unitários. Assim sucedeu, por exemplo, quando do parcelamento da Herdade da Torre. «Houve aumento da produção bruta por hectare, nomeadamente de trigo; mas o desaparecimento dos pousios e consequentemente do gado ovino e bovino reduziu a exploração agrícola à cultura cerealífera, diminuindo as possibilidades de reconstituição da fertilidade da terra pelo descanso ou pelas adubações orgânicas. Deste facto resulta diminuição progressiva da fertilidade do solo, obrigando a maiores despesas com adubações e mondas, sem, aliás, impedir a diminuição das produções unitárias e sobretudo a do rendimento líquido.»(106) É evidente que em tais casos, muito frequentes, o maior rendimento unitário da pequena exploração agrícola não pode ser levado à conta de uma vantagem desta.

Todas estas reservas não excluem, porém, que, numa série de produtos agrícolas, com frequência se alcancem na pequena produção altos rendimentos unitários. Mas, conforme a seguir se verá, tão-pouco isso pode significar uma «vantagem» da pequena exploração. Porque a questão não é tanto o produto que se obtém, como o que é necessário para o produzir.

Capítulo 7 — O Segredo da Questão

Apesar de todas as desvantagens que se acabam de expor e se conjugam para tornar inviável uma concorrência bem sucedida da pequena contra a grande exploração capitalista, a pequena produção vai sobrevivendo. Ela alcança, em alguns casos, elevados rendimentos unitários e aparece no mercado aguentando os preços da grande exploração, e apresentando mesmo por vezes preços mais baixos.

Como pode isto acontecer? «Com a maior produtividade do trabalho», respondem alguns. É, porém, bem de ver que,

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estando a pequena produção em inferioridade manifesta no referente a terra, a máquinas, a gado, a técnica, a dinheiro, a crédito, a impostos, a produtividade do trabalho é necessariamente inferior na pequena produção.

Mas não nos afastamos assim irremediavelmente de qualquer solução? Como explicar o mistério? Qual o «segredo» da questão?

O «segredo» é extremamente simples. A razão dessa possibilidade de competir, desses rendimentos, dessa resistência da pequena produção, vamos encontrá-la apenas no trabalho excessivo do pequeno produtor e da sua família e nas privações a que se submetem para poderem continuar com a sua economia «independente».

Ah! O campo não é um passatempoCom bucolismo, rouxinóis, luar(1)

O sobretrabalho gratuito

Lénine considerava como «principais meios de luta» do pequeno agricultor «o trabalho estafante e a economia»(2). Os próprios economistas burgueses não ignoram esse facto, antes reconhecem geralmente o trabalho intenso na pequena produção como elemento fundamental do seu «êxito». Entretanto, ao sublinhar um especialista que a «agricultura intensiva chega a ser perdulária» no «emprego do trabalho»(3); ao dizer outro que na pequena exploração «o esforço humano multiplica-se sem correlativo apoio de factores materiais» e que aí tudo se consegue à custa de grande dispêndio em trabalho(4) — este reconhecimento não significa que tenham compreendido o significado económico profundo do facto que apontam. Nem têm uma ideia correcta da importância económica desse esforço dos pequenos produtores, nem vêm nele um índice da sua situação desvantajosa. Pelo contrário. Estes e outros economistas vêm

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nesse mesmo «esforço humano» nova «superioridade» da pequena produção. Considerando uns as «vantagens técnicas» do que chamam «rendimento mais elevado da mão-de-obra»(5), poetizando outros as qualidades dos pequenos lavradores que «à terra rendem culto de invulgar fidelidade e lhe prestam a grande força criadora que é o trabalho inteligente e produtivo»(6); todos em coro insistem na maior produtividade do trabalho na pequena produção.

Estas opiniões não são coisa nova. São, pelo contrário, opiniões típicas dos economistas burgueses, repetidas, glosadas, copiadas, num século inteiro de teimosia ideológica. Já no princípio do século, falando daqueles que «consideram a economia, a frugalidade, etc., como virtudes do camponês», Lénine desvendava

«a hipocrisia dos discursos que convertem em virtude a opressão social, tentando, por essa forma, perpetuá-la». Tais «virtudes», sublinhava Lénine, são o «sobretrabalho» e o «subconsumo», de que o capitalismo é responsável(7).

O grande erro destes economistas nesta matéria é confundir um dia de vida com um dia de trabalho e, consequentemente, intensidade e produtividade do trabalho. Como, num dia de vida, um pequeno produtor realiza mais do que um assalariado numa jornada de trabalho em iguais condições técnicas concluem ser o trabalho do primeiro mais produtivo. Não reparam no número de horas de trabalho socialmente necessárias para a reprodução da força de trabalho e como as horas suplementares no dia de trabalho do pequeno produtor são em muito maior número do que no dia de trabalho do assalariado. Não reparam na intensidade média do trabalho de um e de outro e como aquilo a que chamam «o maior gosto pelo trabalho», o «maior cuidado e oportunidade nos granjeios» (H. Barros) ou o trabalho «mais interessado, vigilante e diligente» (L. Basto) não é senão um desproporcionado desgaste de energias, um «desperdício de trabalho e das forças do agricultor», nas palavras de Lénine (8) . Não reparam em como as tarefas muito superiores às próprias forças realizadas por mulheres e crianças transcendem a noção comezinha da jornada de trabalho. Ao reconhecerem haver na grande exploração capitalista uma superior

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«economia geral de exploração»(9), não reparam não ser isso outra coisa senão a maior produtividade do trabalho. Se reparassem nestes aspetos elementares do problema, quando fazem considerações teóricas, teriam de concluir que na pequena produção não existe «rendimento mais elevado de mão-de-obra», antes trabalho mais intenso e menos produtivo.

Nas «contas de cultura» das pequenas e grandes explorações, citadas em estudos e monografias, vemos ser geralmente superior o rendimento líquido por hectare e não ser raramente inferior o preço de custo na pequena exploração. Mas como é calculado o trabalho despendido? Apenas pelas jornadas de trabalho. Um dia de trabalho é sempre contado como um dia de trabalho, sem se atender a que há dias de trabalho mais longos e dias de trabalho mais curtos, a que uma maior intensidade do trabalho corresponde a um prolongamento da jornada de trabalho, a que se deveriam contar, também, as horas soltas de esforço realizado fora dos horários e a que as horas de trabalho roubadas ao descanso provocam um desgaste muito superior no organismo. Confundir um dia de vida com um dia de trabalho, dar igual valor a um dia de trabalho de um assalariado e ao trabalho realizado num dia pelo pequeno produtor conduz necessariamente a resultados fantasiosos.

A determinação da produtividade do trabalho e dos «rendimentos líquidos» não pode ser feita tendo apenas em conta o número de «jornadas de trabalho» na grande e na pequena exploração, atribuindo igual «preço» a umas e a outras. Seria essencial considerar a duração dessas jornadas de trabalho, a sua intensidade, as horas soltas, de dia e de noite, despendidas pelos pequenos agricultores no amanho da terra, no trato do gado e nos mais variados cuidados pela sua lavoura. Seria ainda essencial considerar as deslocações, o tempo gasto em ir ao mercado comprar ou vender, e as mil e uma formas de trabalho e ajuda das mulheres e das crianças. Nesta base, calcular-se-ão quantas horas de trabalho — não de trabalho individual, mas de trabalho social, isto é, de trabalho executado com «um grau médio de destreza e intensidade» — encerra, por exemplo, um quilo de trigo produzido na pequena exploração, e um quilo de trigo produzido na grande exploração capitalista. Não estamos certamente em erro ao dizer que na pequena exploração o

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número de horas de trabalho social (e até, em muitos casos, individual) encerrado num quilo de trigo é incomparavelmente superior. E se uma unidade do produto encerra na pequena exploração um maior número de horas de trabalho social, isso é o mesmo que dizer que nela é menor a produtividade do trabalho.

Assim se vê que o facto de um hectare de terra numa pequena exploração produzir, por exemplo, 10 quintais de trigo, e um hectare numa grande exploração apenas 6 quintais, não indica, conforme já se tem pretendido, uma maior produtividade de trabalho na pequena produção. Na pequena produção agrícola dá-se vulgarmente o caso (incompreensível para os economistas burgueses) de uma mais elevada produção unitária com mais escassos meios técnicos traduzir menor produtividade do trabalho.

O cálculo do valor da produção agrícola por pessoa ativa na agricultura e por hectare cultivado dá uma indicação significativa. O valor da produção agrícola por hectare cultivado é maior nos distritos de pequena propriedade do que nos de grande: nos de Aveiro, Porto, Vila Real e Viseu, orça pelos 2500 escudos por hectare cultivado; nos de Beja, Évora e Portalegre pelos 1500 escudos. Inversamente, o valor da produção agrícola por pessoa ativa na agricultura é maior nos distritos de grande propriedade: nos de Beja, Évora, Portalegre, orça por 10, 11 contos; nos de Aveiro, Porto, V. Castelo, V. Real e Viseu oscila entre 4 e 7 contos. Isto parece mostrar que, embora a cultura seja mais intensiva nas regiões de pequena propriedade, essa intensidade se deve em grande parte a mais horas de trabalho, que, entretanto, é aí menos produtivo. Sabido como é serem os terrenos e condições agro-climáticas nas citadas regiões de pequena propriedade mais favoráveis que nas citadas de grande, e sabido que os assalariados têm um horário de trabalho, ao contrário do que sucede com os pequenos produtores, é de concluir que nas regiões de grande propriedade o trabalho é mais produtivo, que os métodos de cultivo são mais rendosos.

Se a confusão entre intensidade e produtividade de trabalho não estivesse na base de todos os cálculos e confrontos dos economistas burgueses, seria surpreendente ver como os defensores da «teoria» dos acréscimos decrescentes e dos rendimentos lucrativos ousam defender a

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viabilidade e até as excelências da pequena produção agrícola. Ao fazê-lo, ignoram que a aplicação das suas teorias à pequena exploração familiar (calculando o trabalho realizado segundo a sua duração e intensidade efetivas) poria em toda a evidência que a pequena produção vive em «prejuízos» constantes. Isto é: que o excesso de força de trabalho familiar absorvido numa exploração (que eles nunca contam ao fazerem as contas) não seria economicamente viável se houvesse de ser «pago» ao preço corrente do mercado. Isto é apenas uma forma de dizer, pois o que tem preço não é o tempo de trabalho suplementar, mas o tempo de trabalho necessário à reprodução da força de trabalho. Mas com esta forma de dizer visa-se apenas tornar ainda mais clara a existência de um número de horas de trabalho que na pequena produção excedem o número de horas socialmente necessárias para a produção de uma unidade de qualquer produto.

E se a produtividade do trabalho é menor na pequena exploração e por consequência uma unidade do produto nela produzida encerra mais horas de trabalho e se, no entanto, os preços são nivelados no mercado, isto significa que o pequeno produtor não recebe, no preço, o correspondente tempo de trabalho individual gasto na exploração e que o grande produtor recebe no preço uma parte do tempo de trabalho gasto na pequena; isto significa que na pequena produção existe permanentemente um excedente de trabalho não pago. Como sublinhou Marx, o baixo preço dos produtos agrícolas das pequenas explorações resulta, não da produtividade do trabalho, mas da pobreza dos produtores, do facto de eles entregarem gratuitamente à sociedade o sobreproduto e até por vezes parte do correspondente ao trabalho necessário. Esse excedente, esse sobretrabalho, é assim «um presente gratuito» que os pequenos agricultores fazem à sociedade quando vendem os seus produtos aos preços gerais do mercado.

É aqui que reside toda a possibilidade de resistência da pequena produção, todo o mistério dos seus rendimentos unitários, toda a sua possibilidade de aguentar os preços do mercado. Por isso mesmo, defender as vantagens e a superioridade da pequena produção é erigir à categoria de única real «vantagem» essa prestação gratuita de trabalho pelo pequeno cultivador. Defender um «progresso» agrícola e

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um aumento da produção na base da pequena exploração familiar é defender o agravamento da trágica situação dos trabalhadores dos campos. Por muito que tais opiniões se cubram de tiradas sentimentais ou poéticas, este é o seu real carácter, que o pensem, ou não, os seus defensores.

Num caso de divisão de grandes propriedades para estabelecimento de pequenas explorações em regime de «parceria», um técnico sublinha «o aumento das receitas (do proprietário) em relação à exploração de conta própria»(10). Como foi isso possível? Em passagens dispersas o autor o diz. Numa:

«menos salários por unidade de superfície, embora empregue mais mão-de-obra familiar»(11). Noutra: «é incorporada na terra muita mão-de-obra (embora com menos salários por unidade de superfície) e na melhor oportunidade, visto o trabalho ser feito com gosto (sic), proveito próprio (re-sic) e sem limitações de horários»(12).

Não está aqui claramente implícito ser a mão-de-obra familiar na pequena produção paga a um preço inferior do da mão-de-obra assalariada? E ser o número de horas suplementares por trabalhador na pequenaprodução superior ao número de horas suplementares na grande? Não está aqui claramente implícito haver sobreproduto gratuito na pequena produção? Estar implícito, está. Mas o autor não o pensa assim. Para ele, trata-se apenas de «melhor rendimento de trabalho»(13). Como é possível uma tal afirmação? As próprias palavras do autor esclarecem os seus motivos. É que o objetivo não é o bem-estar ou a felicidade do pequeno produtor, mas «um gigantesco passo em frente»... dos rendimentos do grande proprietário. Pois não é verdade que este «deixa de pagar grande massa de salários nem sempre bem ganhos»(14)? E não é verdade, como já foi notado, haver «um aumento de receitas em relação à exploração de conta própria»(15)? Aí estão as excelências da produção familiar. Aí estão as razões por que os grandes proprietários, os seus porta-vozes e os seus técnicos se apresentam como defensores da pequena produção. Mas como podem eles enganar os mais cegos se se descuidam na declaração das suas simpatias? Eis como este autor começa o seu trabalho:

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«Saúdo, nas minhas primeiras palavras, os bons lavradores de Portugal; são os melhores patriotas, os maiores amigos da sua terra e o mais seguro amparo da gente rural, nos bons como nos maus anos. A sua curiosidade e espírito progressivo fornecem frequentemente proveitosas lições ao próprio Estado, quer no campo de experimentação e investigação científica, quer no das reformas sociais, quer no da previdência e assistência aos necessitados.»(16)

Diz-me quem gabas, dir-te-ei quem serves.

Tal é a natureza, o significado e a direção dos ideais destes apóstolos do progresso agrícola assente na multiplicação das pequenas explorações. Eles defendem, afinal, a persistência e alargamento do trabalho gratuito prestado pelos pequenos produtores. Se dizem, por exemplo, que

«a capacidade de trabalho da família, calculada em função das unidades de trabalho dos diferentes membros, deve ser aproveitada o mais regularmente possível ao longo do ano, evitando ao máximo os períodos de inatividade, pois lembramos que todos estes salários (sic) gastos na exploração têm contrapartida na receita do empresário»(17);

ou se exaltam as virtudes da

«pequena exploração familiar» porque é «capaz, como nenhuma outra, de levar o trabalhador abnegadamente, mercê de um trabalho constante, a produzir e criar»(18);

ou se apontam como «vantagens sociais da empresa familiar» a «menor necessidade de vigiar os trabalhadores» e o não se pagar o trabalho não efetivado por más condições meteorológicas(19) — que estão fazendo senão defender abertamente o sobretrabalho que, ao contrário do que dizem, beneficia não o pequeno, mas o grande agricultor capitalista?

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A questão torna-se perfeitamente clara para quem a queira compreender. Nas pequenas explorações não existe uma maior produtividade do trabalho, mas, pelo contrário, um trabalho muito menos produtivo e muito mais intenso e abundante do que na grande exploração capitalista. Nas pequenas explorações não há horários de trabalho, não se respeita sequer o sol a sol nem as magras horas de sono, nem, muitas vezes, os dias de descanso, não há horas de ferra e de desferra, não há sestas nem fumaças. Só ao preço do «esbanjamento excessivo das forças humanas» (como lhe chamou Marx)(20), só ao preço do trabalho brutal do agricultor e de toda a sua família, só ao preço do envelhecimento precoce das mulheres e do trabalho infantil, só ao preço de inenarráveis privações, o pequeno agricultor consegue competir com o grande e consegue ir sobrevivendo. Esta é a chave do problema, este o segredo da questão.

O trabalho da mulher

Já por várias vezes foram sublinhadas no decurso deste estudo as dificuldades em trabalhar com as estatísticas portuguesas. Umas vezes as classificações e categorias estatísticas são recolhidas com duvidoso critério. Outras vezes as mudanças de critério roubam a possibilidade de estudos comparativos de anos diversos. Uma e outra coisa sucedem em relação às «mulheres ativas» nos trabalhos agrícolas. Pelo censo de 1930, apuraram-se para o continente 702 600 mulheres no total de 1 699 383 indivíduos da «população agrícola ativa». Pelo censo de 1940, apuraram-se apenas 215 825 mulheres no total de 1 318 739 indivíduos. Vemos assim, no espaço de 10 anos, sumir-se nos sorvedouros estatísticos a brincadeira de meio milhão de mulheres. Qual a razão deste facto? A razão em si é muito simples: enquanto o censo de 1930 incluiu nas mulheres ativas na agricultura «as fêmeas casadas ocupando-se do seu lar, consideradas como auxiliares dos respetivos chefes», o censo de 1940 englobou-as na categoria geral de «domésticas». Quer dizer: o censo de 1930 incluiu entre a população trabalhando na agricultura mulheres que deviam ser excluídas; o censo de 1940 excluiu mulheres que deviam ser incluídas. Um e outro seguiram critérios de grande imprecisão.

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Julgam alguns serem as inovações sinónimo de melhoria. Lénine citava o caso de um editor que, tendo comprado os direitos de publicação de um almanaque em cuja capa se exibia uma galinha chocando os seus ovos, achou por bem tornar a capa mais vistosa e o desenho mais sugestivo. A galinha foi substituída por um galo espaventoso — mas os ovos ficaram. O editor chamava-se Baldhorn. E Lénine, para definir a ação de corrigir, de inovar, de emendar para pior, criou uma palavra — baldhornizar. O censo de 1940 entendeu por bem modificar o critério das «mulheres activas na agricultura». À face deste novo critério, como se nos apresenta a situação nas pequenas explorações agrícolas? O censo indica para o continente o total de 187 215 «isolados», dos quais 161 991 homens. Isto indicaria que, para cada 7 homens ativos nas pequenas explorações familiares, apenas uma mulher trabalharia, o que é um completo absurdo. Poderia ter o censo incluído as mulheres ativas na agricultura na rubrica «pessoas de família», mas aí vemos um total de 157 871 indivíduos dos quais apenas 44 436 mulheres. Os orientadores do censo de 1940 preferiram subtrair todas essa mulheres à «população agrícola ativa» e englobá-las numa categoria geral de «domésticas» a que é atribuído o número de 2 103 859 mulheres! O censo de 1940, neste aspeto, inovou, emendou, corrigiu... mas para pior — báldhornizou.

O censo de 1950, insistindo nestes processos da baldhornização, veio juntar novas confusões e incongruências, invalidando quaisquer comparações. Na rubrica «mulheres ativas na agricultura», o total continental mantém-se sensivelmente idêntico ao de 1940, mas verifica-se uma autêntica sarabanda nos números distritais, diminuindo notavelmente em relação ao censo de 1940 nos distritos de pequena propriedade e aumentando nos de grande. Assim, nos distritos de Aveiro, Braga, Coimbra, Porto, Viana do Castelo e Viseu, considerados em conjunto, desaparecem 37 000 mulheres ativas na agricultura, e nos de Beja, Évora, Portalegre e Setúbal aparecem mais 32 000. Desta falta grave procura redimir-se o censo criando a nova categoria «camponesas», que define como «os recenseados do sexo feminino que se ocupavam das lidas domésticas e também trabalhavam na agricultura e na pecuária», mas que surpreendentemente não estão compreendidas nas «mulheres ativas na agricultura». Nesta nova categoria,

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sobem outra vez os números das mulheres nos distritos de pequena propriedade e descem nos de grande.

Estas diferenças, provocadas pela fragilidade e inconstância das classificações estatísticas, tornam bem frágil o estudo sobre elas assente e obrigam a rejeitar qualquer comparação entre os vários censos.

A tabela 27 mostra, por distritos, o número de mulheres ativas na agricultura segundo os censos de 1930, 1940 e 1950 (incluídas neste último as «camponesas») e as suas percentagens em relação ao total da população agrícola ativa.

TABELA 27Mulheres activas na agricultura

  1930 1940 1950  Núm

eroPercenta

gemNúmero

Percentagem

Número

Percentagem

Aveiro 48 112 46,8 20

797 25,6 35 566 36,6

Beja 31 796 37,6 7 917 11,7 27

353 28,9

Braga 60 149 48,6 29

267 28,8 42 598 36,0

Bragança

26 941 39,8 5 385 10,4 14

506 23,3Castelo Branco

32 967 41,5 6 117 9,7 17

298 23,3Coimbra

49 827 42,7 13

481 15,5 35 066 32,1

Évora 25 144 38,1 3 315 7,3 17

014 26,3

Faro 33 027 39,4 2 696 4,6 18

542 22,8

Guarda 33 175 41,0 6 921 10,5 19

523 24,0

Leiria 36 327 38,5 7 443 9,6 22

561 23,6

Lisboa 31 501 33,4 3 974 5,2 15

942 16,3Portale 22 37,7 3 870 8,7 15 25,6

Page 293: Contribuição Para o Estudo Da Questão Agrária

gre 526 475Porto 50

582 40,9 16 227 18,6 33

042 30,7Santarém

54 363 41,0 12

203 12,7 33 144 26,4

Setúbal 21159 36,8 4 496 11,4 14 608 25,8

V. do Castelo

43 248 49,8 33

207 42,8 45 574 49,9

Vila Real

37 435 40,6 13

732 17,9 25 011 27,2

Viseu 64 321 42,2 24

777 20,8 44 395 30,8

Continente

702 600 41,3 215

825 16,4 477 218 28,9

Como aí se vê, a disparidade entre os três censos é notável, constituindo esclarecedor retrato dos métodos estatísticos portugueses. Um facto, porém, salta à vista ao olharem-se as percentagens: segundo qualquer dos censos, é nos distritos de pequena propriedade que encontramos as mais elevadas percentagens; segundo qualquer deles, os três distritos em que as percentagens são mais elevadas são Viana do Castelo, Braga e Aveiro, destacando-se a distância o de Viana do Castelo, o mais característico distrito da pequena exploração agrícola, o distrito onde a área média dos prédios rústicos é menor, menor a percentagem de assalariados, maior a percentagem de explorações familiares.

A tabela 28 estabelece o confronto entre sete distritos da pequena propriedade e quatro da grande, indicando as percentagens de mulheres ativas na agricultura, de assalariados e de isolados (segundo o censo de 1950) e as áreas médias dos prédios rústicos.

TABELA 28Mulheres ativas na agricultura nas regiões de grande e

de pequena propriedade  De 

mulheres 

activas (%)

Área dos 

prédios 

(ha)

Área média 

das explor

Assalariados 

(%)

Isolados 

(%)

Page 294: Contribuição Para o Estudo Da Questão Agrária

ções (ha)

1. V. Castelo 49,9 0,3 4,6 36,1 51,52. Aveiro 36,6 0,3 4,4 47,1 35,83. Braga 36,0 0,4 4,9 53,4 26,44. Coimbra 32,1 0,3 5,2 59,1 30,15. Viseu 30,8 0,3 5,6 51,7 30,76. Porto 30,7 0,5 3,9 56,8 25,97. Beja 28,9 13 51 87,1 7,88. Évora 26,3 17 68 91,2 4,79. Setúbal 25,8 20 37 86,4 7,510. Portalegre

25,6 8 39 89,0 5,9

Vê-se que são mais elevadas as percentagens de mulheres ativas na agricultura nos distritos onde são mais baixas as percentagens de assalariados, mais elevadas as de isolados e menores as áreas médias dos prédios rústicos e das explorações agrícolas. E são mais baixas as percentagens de mulheres ativas na agricultura em distritos onde são mais elevadas as percentagens de assalariados, mais baixas as de isolados e maiores as áreas médias dos prédios rústicos e das explorações agrícolas.

Não se deve, entretanto, tomar esta afirmação como uma «lei» de aplicação geral, como significando que os números comprovam sempre a sua veracidade. Há variados fatores que, em muitos casos, determinam o contrário. Se em relação às grandes regiões agrícolas não oferece dúvida a sua justeza, desiludido ficaria quem procurasse semelhantes e infalíveis correspondências num estudo pormenorizado dentro de cada região. As divergências no pormenor não destroem, porém, a conclusão geral fundamental que as estatísticas autorizam: as pequenas explorações agrícolas exigem e absorvem mais trabalho das mulheres do que as grandes, ou seja, as mulheres e filhas dos pequenos produtores participam mais regular e intensamente nos trabalhos agrícolas que as mulheres e filhas dos assalariados rurais.

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Ao trabalho feminino, assim como ao trabalho infantil, assim como ao seu próprio, vai o pequeno produtor buscar não «um mais elevado rendimento da mão-de-obra», mas um violento e até cruel gasto de energias sem o qual não poderia subsistir. Reconhece um técnico que «a proporção em que as mulheres se empregam na agricultura é um índice na relação inversa da posição económica da coletividade»(21). Reconhece outro que no Minho são reservados para as mulheres trabalhos «que, muitas vezes, exigem um esforço superior às suas possibilidades»(22). Reconhece outro que a «cooperação» das mulheres no trabalho agrícola «é mais vulgar no trabalho familiar que no assalariado»(23). Mas estes técnicos insistem, apesar disso, em ver o mal como virtude e em cantar os supostos encantos e vantagens do trabalho feminino na pequena produção. Falam nas «operações ligeiras e minuciosas em que a habilidade manual e a dedicação feminina servem melhor que as qualidades masculinas» e referem as «lavradoras que a tudo deitam mão, e pela sua robustez incansável e tenacidade sem par, deixam, muitas vezes, a perder de vista os mais vigorosos e diligentes varões»(24). As lavradoras estão, porém, infelizmente muito longe de ter a «robustez incansável» que lhes é atribuída. As condições de sofrimento físico em que muitos trabalhos são realizados, a falta de tratamento nas doenças, a falta de repouso na fadiga, a falta de cuidados na gravidez e depois do parto, os corpos arruinados e envelhecidos em plena juventude, os bebés doentes ceifados pela doença ou vítimas de desastres, a vida inteira passada num constante, violento e brutal labutar — nesses aspetos não fixam a atenção como deviam os cantores das virtudes do trabalho feminino na pequena exploração agrícola. O mal não é mostrar a eficiência, a possibilidade e a necessidade do trabalho da mulher nos campos. Este tem aberto diante de si largos horizontes. O mal é apresentar como ideal o trabalho da mulher tal como hoje é realizado na pequena produção, um trabalho excessivo, desumano e embrutecedor.

As exigências do trabalho feminino nas pequenas explorações agrícolas determinam que, nas regiões de pequena propriedade, a situação da mulher, não só no que respeita a excesso de trabalho como até no que respeita à instrução, seja pior do que nas regiões onde predominam as grandes explorações e o salariato. Em 1930, nos distritos de Braga e Viana do Castelo, em conjunto, 40% dos homens

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sabiam ler e nos de Portalegre, Évora e Beja apenas 29%; mas, enquanto nos primeiros dois distritos a percentagem das mulheres sabendo ler era de 19%, nos três últimos era de 20%. Nos primeiros dois distritos 36% das pessoas que sabiam ler eram mulheres; nos três últimos, 40%(25). Desde crianças, as jovens parece terem, em relação aos rapazes, uma situação pior nas regiões de pequena propriedade. Neste particular, o censo de 1950 apresenta dados esclarecedores; nos distritos de pequena propriedade é incomparavelmente superior o número de garotas dos 10 aos 19 anos trabalhando no campo e na lida da casa. Dos 12 aos 14 anos, representam 32 por mil da população agrícola ativa no distrito de Viana do Castelo; mais de 20 por mil nos distritos de Aveiro, Braga, Coimbra e Porto e de 15 a 20 por mil nos da Guarda, Leiria e Viseu, todos «de pequena propriedade». Não alcançam 10 por mil nos distritos alentejanos e de Setúbal, todos de grande propriedade. Dos 15 aos 19 anos, nos primeiros distritos apontados representam de 30 a 65 por mil, ao passo que em nenhum dos últimos alcançam 20 por mil. Isto reflete-se, necessariamente, na instrução das jovens. Em 1946-1947, de 55 concelhos estudados, em que predomina a grande propriedade, em 31 (ou seja, 56%) mais de 45% dos alunos matriculados nas escolas primárias eram moças e apenas em 3 elas representam menos de 40%. De 110 concelhos estudados, em que predominam as pequenas explorações, apenas em 12 (ou seja, 11%) o número de moças matriculadas nas escolas primárias excedia 45% e em nada menos de 25 (ou seja, 23%) não alcançava os 40%. Tomando em conjunto os distritos de Viana do Castelo, Braga e Coimbra, no total de 40 concelhos, só num a percentagem de jovens matriculadas excedia 45% e em 16 era inferior a 40%. Tomando em conjunto os distritos de Beja, Évora e Portalegre, no total de 42 concelhos, só num a percentagem era inferior a 40% e em 20 excedia 45%(26). Estes números explicam a frequência com que em famílias de trabalhadores nortenhos a mulher é analfabeta e o homem sabe ler e em famílias de trabalhadores alentejanos o homem é analfabeto e a mulher não.

Seria de interesse confrontar a situação das mulheres dos pequenos agricultores e dos assalariados no referente à conceção e aos partos. Mas os elementos conhecidos não autorizam um juízo seguro. No que respeita à assistência nos partos (de médico ou parteira), os números indicam uma pior

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situação nos distritos de pequena propriedade. Em 1947, enquanto nos distritos de Viana do Castelo e Braga a percentagem de partos sem assistência passou de 90%; no de Vila Real, de 80%; nos de Aveiro, Bragança, Coimbra, Guarda, Leiria e Viseu, de 70%; no Alentejo as percentagens foram muito inferiores: 61% no distrito de Évora, menos de 60% nos de Portalegre e Setúbal, menos de 50% no de Beja(27). Entretanto, estes números devem ser considerados com muita reserva: por um lado as desproporções entre os vários concelhos são as maiores possíveis, encontrando-se, dentro de um mesmo distrito, concelhos com menos de 1% e outros concelhos com mais de 95% de partos sem assistência; por outro lado encontramos contraditoriamente as mais elevadas percentagens de óbitos por doenças da gravidez e do parto nos distritos onde são mais baixas as percentagens de partos sem assistência. A questão necessita de estudo mais rigoroso.

As maiores exigências de trabalho feminino nas pequenas explorações refletem-se, necessariamente, nos cuidados da mulher na própria casa. Apesar das terríveis dificuldades que, com o desemprego periódico, batem à porta dos assalariados alentejanos, o arranjo nos seus lares é em geral muito superior ao dos lares de pequenos agricultores na generalidade das regiões de pequena propriedade. Isso indica que aí é mais demorada e atenta a presença da mulher em casa, enquanto nas pequenas explorações a mulher é mais absorventemente ocupada pelos trabalhos agrícolas.

As mulheres dos pequenos agricultores fazem o possível e o impossível para cumprir as múltiplas tarefas que lhes estão confiadas: labutar no campo, tratar dos filhos, fazer a comida, lavar e coser roupa, etc. Mas a pequena exploração agrícola é imperiosa na exigência de trabalho. Somando-se aos afazeres domésticos, os trabalhos agrícolas, violentos, excessivos, constantes, não permitindo um momento de repouso, tornam a vida das mulheres dos pequenos agricultores um longo e heroico martírio. Este martírio não poderá jamais ser dispensado pela pequena produção agrícola na economia capitalista. Ele é condição indispensável para que a pequena produção possa viver.

O trabalho infantil

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Um homem, que na vida e ante a morte soube ser homem, dedicou um romance que escreveu — uma pérola da literatura portuguesa contemporânea — «aos filhos dos homens que nunca foram meninos»(28). Assim dedicou o seu livro a grande parte, talvez à maioria, das crianças portuguesas. Na verdade, desde muito tenra idade, começam as crianças a ajudar os seus na luta contra a miséria. Fazer recados, tomar conta dos irmãos mais novos, apascentar gado, executar os chamados «serviços leves» tantas vezes estafantes — são trabalhos atribuídos às crianças, mal começam a balbuciar.

Não se trata, evidentemente, de um problema de orientação errada ou de incompreensão dos pais acerca do que é bom e do que é mau para seus filhos. Trata-se, tão-somente, da instigação da necessidade. Se os pais obrigam os filhos a trabalhar desde tenra idade, se lhes batem por fugirem para a brincadeira, é porque o trabalho infantil é indispensável à manutenção da família. E, se pensam ser boa orientação assim os educar, se pensam ser de tenra idade que as crianças assim se fazem homens, isso não é mais que um exemplo de como a moral e as ideologias refletem a base material onde assentam.

O trabalho infantil é geral nos campos portugueses. Numa altura em que a escola, o exercício são, o divertimento, o brinquedo, deviam ser as ocupações dominantes, as crianças sofrem a violência de trabalhos muito superiores às suas forças, uns pelo próprio vigor muscular que exigem, outros pelas horas prolongadas que ocupam. Em muitos casos, as crianças não são enviadas à escola porque falta a roupa, o calçado, o dinheiro para material escolar, os recursos para levarem uma merenda. Mas, a estas fortes razões, ajunta-se uma outra e ainda mais imperiosa particularmente na pequena exploração agrícola: a necessidade do seu trabalho. Por isso, com frequência, «quando os filhos alcançam a idade escolar, são logo utilizados nos trabalhos leves da exploração»(29), não chegando a pôr um pé na escola. Por isso, também as crianças são retiradas da escola antes de terem completado a sua instrução elementar e esquecem dentro em breve o pouco que aprenderam. Nas pequenas explorações agrícolas, logo que as crianças têm o mínimo de tino para fazerem o que lhes mandam, o seu trabalho é indispensável, seja nas explorações próprias, seja, no caso das famílias

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semiproletarizadas, ganhando uns tostões nas alheias. As crianças acompanham, ombro a ombro, os seus familiares nos mais variados trabalhos, ou vendendo a sua força de trabalho, ou mourejando nas pequenas courelas, ou até emigrando nos ranchos. Em quatro ranchos trabalhando na região do Sado, estudados num inquérito direto já citado(30), num total de 483 trabalhadores, na sua maioria de famílias de pequenos agricultores, havia 70 crianças de menos de 15 anos, além de 177 jovens dos 16 aos 20 anos. Não é este um caso acidental, mas apenas um exemplo entre tantos outros. Seja como jornaleiros, seja na exploração dos próprios pais, as crianças, e especialmente os filhos dos pequenos agricultores, representam uma importante fração das classes trabalhadoras dos campos portugueses.

A tabela 29, mostrando, segundo o censo de 1940, o número de crianças dos 10 aos 14 anos «ativas» na agricultura nos vários distritos, e a sua percentagem em relação ao total da população agrícola ativa, revela como a quota do trabalho infantil, sendo importante em todo o País, é mais elevada nas regiões onde predominam as pequenas explorações agrícolas.

TABELA 29Crianças trabalhando na agricultura(31)

DistritosPopulação 

agrícola activa

Crianças

Percentagem

Aveiro 81 289 5143 6,3Beja 69 005 2 982 4,3Braga 101 699 9 562 9,4Bragança 51 548 2 244 4,4Castelo Branco 63 339 2 676 4,2Coimbra 86 837 4 192 4,8Évora 45 595 2 406 5,3Faro 59 201 1970 3,3Guarda 66 220 2 729 4,1Leiria 77 277 3 988 5,2Lisboa 76 577 2 862 3,7Portalegre 44 551 2 220 5,0Porto 87 086 6 664 7,7Santarém 95 764 5 285 5,5

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Setúbal 39 500 2 451 6,2Viana do Castelo 77 557 5 385 6,9Vila Real 76 662 4 745 6,1Viseu 119 032 7 866 6,6Continente 1 318 739 75 370 5,7

As percentagens indicadas na tabela 29, embora muito elevadas, estão ainda longe de corresponder à realidade. Não só as estatísticas não registam muitas crianças que trabalham na agricultura ou serviços subsidiários, como não se pode considerar, para efeito de muitos trabalhos agrícolas, a infância terminada aos 14 anos. Além dessas 75 000 crianças, de menos de 14 anos, que as estatísticas apresentam como «ativos na agricultura» no continente, há um número elevadíssimo de crianças trabalhadoras com menos de 10 anos a que as estatísticas não fazem referência e cerca de 170 000 jovens trabalhadores dos 15 aos 19 anos. Vê-se que não só de certeza mais de um quinto dos que trabalham nos campos têm menos de 20 anos de idade como também o terrível peso do trabalho infantil na nossa agricultura. A quota efetiva das crianças trabalhando na agricultura excede em muito, em muitíssimo, os 6% indicados na tabela 29.

Quanto à distribuição geográfica de crianças ativas na agricultura, as percentagens estão diminuídas nas regiões de pequena propriedade em relação àquelas onde predominam as grandes explorações. Dos 10 aos 14 anos é idade em que as crianças começam trabalhando a jornal. Antes dos 10 anos, só nuns ou noutros casos isso acontece. Quer dizer: se as estatísticas acusassem, também, o número de crianças de menos de 10 anos ativas na agricultura, as percentagens subiriam mais nas regiões de «pequena propriedade» do que nas regiões de grande. Apesar, porém, desta deficiência e apesar, também, de alguns casos discordantes, vê-se que são, em geral, mais elevadas as percentagens de crianças trabalhadoras nos distritos onde predominam as pequenas explorações (tabela 30).

Os números mais significativos da tabela 30 são as elevadíssimas percentagens no Noroeste (Braga, Porto e Viana do Castelo), pois sendo a mais típica grande região do predomínio da pequena exploração agrícola, essas

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percentagens comprovam o abuso do trabalho infantil nas pequenas explorações.

Tal como sucede em relação às mulheres, desiludido ficaria, também, quem aqui procurasse esquematicamente, concelho por concelho, correspondências absolutas entre as mais elevadas percentagens de crianças trabalhando na agricultura, as mais elevadas de isolados e as mais baixas de assalariados. Mas sem quaisquer esquematismos, deve admitir-se que os números indicam um mais intenso trabalho infantil onde predominam as pequenas explorações e especialmente as «explorações familiares».

TABELA 30Crianças trabalhadoras agrícolas nas regiões de

grande e de pequena propriedade

 Criança

s activas 

(%)

Area dos 

prédios 

(ha)

Área média 

das exploraçõ

es (ha)

Assalariados (%)

Isolados 

(%)

1. Braga 9,4 0,4 4,9 53,4 26,42. Porto 7,7 0,5 3,9 56,8 25,93. V. do Castelo 6,9 0,3 4,6 36,1 51,54. Viseu 6,6 0,3 5,6 51,7 30,75. Aveiro 6,3 0,3 4,4 47,1 35,86. Setúbal 6,2 20 37 86,4 7,57. Setúbal 5,3 17 68 91,2 4,78. Portalegre

5,0 8 39 89,0 5,9

9. Beja 4,3 13 51 87,1 7,8

Sendo geral o trabalho infantil, a criança, nas pequenas explorações, torna-se mais cedo economicamente vantajosa do que nas famílias dos assalariados. A infância dos filhos dos pequenos agricultores é incomparavelmente mais sobrecarregada de trabalho do que a dos filhos dos assalariados. Estes últimos, enquanto não chegam à idade de

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poder ganhar salário, limitam-se a fazer recados ou cuidar do lume e dos irmãos mais novos, tarefas estas tantas vezes ilustradas por trágicos desastres. Os primeiros têm desde pitorrinhos a solicitá-los «aquilo que é seu». A pequena exploração sorve energias sem conta, porque só energias sem conta podem suprir o atraso técnico e a baixa produtividade do trabalho. Dado que os pequenos agricultores só à força de trabalho podem sobreviver, não se podem permitir dispensar o trabalho dos seus filhos. Para a pequena exploração agrícola, crianças significam mão-de-obra.

Talvez que neste facto resida a verdadeira explicação da existência de famílias mais numerosas e de mais elevada natalidade nas regiões onde predominam as pequenas explorações. Em 1946-1948, enquanto a taxa de natalidade foi superior a 32 no distrito de Braga e ficou compreendida entre 25 a 29 nos de Viana do Castelo, Porto, Vila Real, Bragança, Aveiro, Viseu e Guarda, não passou de 22 nos distritos alentejanos(32). Para o autor de cujo artigo tiramos estes números «o ambiente psicológico ditando a conduta dos costumes (sic), sobrepuja em importância todas as outras causas» destas diferenças(33). É porém evidente que esta frase nada diz. Há, também, quem julgue ser fator da «limitação voluntária dos nascimentos» a intenção de «não dividir demasiado o património, especialmente a terra, entre os pequenos proprietários rurais», ou seja, «não aumentar demasiadamente o número de partilhantes». Estas afirmações estão, porém, em manifesta contradição com a realidade portuguesa, pois não só a natalidade portuguesa é mais alta nas regiões de pequena propriedade como, na baixa geral da natalidade, a baixa é menos acentuada nessas regiões. Tendo havido importante redução da natalidade de 1925-1927 para 1946-1948, a percentagem de redução foi muito menor nos distritos alentejanos (onde ultrapassou 30%) do que nos distritos de Aveiro, Braga, Porto, Viana do Castelo, Vila Real e Viseu (onde não alcançou 20%)(34). O pequeno proprietário verá com apreensões a partilha das suas courelas por um grande número de filhos. Mas a pequena lavoura, para conseguir manter-se, exige braços, dos homens, das mulheres, dos velhos (que só completamente inválidos alcançam ter um repouso há muito merecido), das crianças. Talvez que aqui, e não na indefinida e indefinível «conduta dos costumes» ou na desmentida explicação pelo receio de

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muitos partilhantes, se encontre uma das chaves destas diferenças e destes movimentos da natalidade.

Raros economistas portugueses se têm preocupado com o problema do trabalho infantil nos campos. Entre esses raros, é justo salientar o Prof. Henrique de Barros, por ser ele, talvez, o primeiro a estudar o problema de forma mais sistemática, servindo-se de alguns dos escassos números que as estatísticas fornecem.

Henrique de Barros salienta justamente que «as máximas percentagens (de pessoas de 10 a 14 anos) em relação ao total da população agrícola ativa aparecem no Noroeste (Minho e Douro Litoral), seguindo-se-lhe a Beira Alta e Beira Litoral, tudo regiões de pequena exploração». Salienta, também, justamente que «as pequenas empresas não podem dispensar o trabalho infantil»(35). Mas que conclui daqui? A condenação da pequena «empresa familiar» na economia capitalista? A sua inferioridade manifesta em relação à grande empresa? A necessidade de superar essa forma de organização de exploração agrícola que só à custa de sobretrabalho, no qual se conta muito trabalho infantil, pode sobreviver? Não, Henrique de Barros não pode chegar a tais conclusões.

Muitas vezes neste estudo tem sido citado este autor, as mais delas para se manifestar a discordância dos seus pareceres. A razão por que isto sucede é o reconhecimento implícito do maior dos seus méritos. Num ambiente de incultura geral, de desinteresse pelos problemas económicos, de dificuldades da mais variada natureza, este técnico tem estudado e incitado outros a estudar, tem escrito e incitado outros a escrever, e tem ousado defender opiniões. E assim sucede que, ao estudarem-se muitos problemas económicos relativos à agricultura, no vazio geral da bibliografia portuguesa, se encontrem os estudos ou simples apreciações de Henrique de Barros. Entretanto, este mérito não oculta os deméritos.

Henrique de Barros diz adotar «um critério superior» e «independente». Numa sociedade dividida em classes não pode, porém, existir «superioridade» e «independência» de critério. A imparcialidade é sempre uma parcialidade de classe. Quem procurar, na Economia Agrária de Henrique de Barros, os princípios gerais de economia política (aliás,

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expostos sem poupar espaço), verifica como o «imparcial» professor adota, em relação a todos os problemas fundamentais sem exceção (o valor, o capital, a mais-valia, a própria questão agrária, sua especialidade)(36) os conceitos típicos da burguesia exploradora, conceitos que visam a justificar e a perpetuar uma situação económica que H. de Barros afirma, aliás, desejar modificada. Diz o nosso povo que «de boas intenções o inferno cheio está». Atribuindo imaginariamente um juízo a Deus, a sabedoria popular indica qual deve ser o juízo dos homens.

Nada, pois, de estranhar que H. de Barros, depois de reconhecer que «as empresas não podem dispensar o trabalho infantil», depois de reconhecer serem as percentagens de crianças que trabalham na agricultura mais elevadas nas regiões onde predominam as pequenas explorações, insiste em defender a «empresa familiar» como forma ideal de exploração agrícola. Quanto ao trabalho infantil, o ilustre professor espraia-se em considerações acerca das suas vantagens — uma para a preparação profissional, outras para o robustecimento físico e moral — e, opondo-se à sua proibição «de modo absoluto, indiscriminado», entende que a solução consiste em «definir com precisão os trabalhos rurais próprios para as crianças e aqueles que se devem considerar impróprios» e «regulamentar estas atividades consentidas»...(37)

É evidente que, não podendo as pequenas explorações dispensar o trabalho infantil, conforme reconhece Henrique de Barros, quaisquer «regulamentações» seriam papéis com o único valor de adormecer ou afagar os corações sensíveis. O trabalho infantil nas pequenas explorações não é questão que possa ser resolvida por «regulamentações» ou «decretos» da sociedade burguesa. Defender as excelências da «pequena exploração familiar» é defender as excelências do trabalho infantil, com todas as suas consequências nocivas e dolorosas. No capitalismo, a pequena exploração familiar é sinónimo de sobretrabalho gratuito, dos homens, das mulheres, das crianças. Só assim consegue viver e nunca conseguirá viver de outra forma. Na economia capitalista, a pequena «exploração familiar» (sejam quais forem as «regulamentações») implicará sempre, enquanto existir, essa amarga tragédia dos «filhos dos homens que nunca foram meninos».

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Estou-me lembrando de um moço que conheci. Tinha ele 11 anos e era o filho mais velho, num rancho de seis, de um pequeno proprietário. Trabalhava desde madrugada escura ao lado do pai, acompanhando-o muitas vezes a cavar, embora com enxada mais leve. Quando o tempo o exigia, entravam noite dentro com o trabalho. Ao ouvir na escuridão e no silêncio geral os brados do metal ferindo as pedras e o baque surdo das enxadas rasgando a terra, quem iria imaginar que ali estava uma criança desde madrugada alta? O moço era inteligente, resoluto e tinha um tremendo desejo de progredir. Alguém se ofereceu para lhe ensinar a ler, e ele nunca faltou a uma lição, nem mesmo quando ia trabalhar a uma courela distante. Quando isso acontecia, deixava de jantar e reduzia o sono a meia dúzia de horas. O pai, às vezes, sorria, dizendo, com leve ar de censura, que tratavam seu filho como se fosse um homem. A verdade é que não o tratavam como se ele o fosse: criança embora, ele o era de facto. Quantas e quantas crianças tão heroicas e capazes como esta não são aniquiladas e embrutecidas pela pequena «empresa familiar»? Quantos pequenos portugueses e portuguesas, sangue do sangue do nosso povo, não são sacrificados às exigências de sobretrabalho da pequena exploração, forma única de manter as famílias, de competir com a grande e arrastar a agonia uns anos mais?

De um outro petiz me estou lembrando. Eu morava na margem de uma aldeia e estava lavando os dentes ao ar livre. Um garoto que apascentava ovelhas, chegou-se de olhos bem abertos e, vencendo a própria timidez, acabou por perguntar se aquilo «era um livro». Depois de uns dedos de conversa, não tive dúvidas de que se referia à escova de dentes e não estava troçando. Na sua vida nunca tinha visto nem livro nem escova. E, por falarem dos livros como de coisas maravilhosas, julgara reconhecer um nesse outro objeto estranho. Era português, tinha 7 anos e não era nada tolo.

O cansaço, o sofrimento, a ausência de meninice, o embrutecimento das crianças, eis mais um preço pago pelas famílias de pequenos agricultores para conseguirem subsistir.

Privações familiares

Comparações de miséria com miséria com facilidade induzem em erro. Aos olhos daquele que não come, o que

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come uma magra sopa é homem bem alimentado. Aos olhos do descalço, quem tem sapatos rotos faz figura de bem calçado. Aos olhos de quem habita toca de terra e lata, o cortelho arruinado parece confortável habitação. Mas quem não tenha a visão deformada pela miséria, não pode considerar animadora a situação do que come a magra sopa, tem os sapatos rotos e habita o cortelho arruinado. Entretanto, em face dos grandes contrastes dentro da miséria, é isso que fazem com frequência técnicos inquiridores da vida do nosso povo. Fazendo-o, põem afinal em relevo a pavorosa situação geral. Falar-se em desafogo quando se come sopa de pão três vezes ao dia, quando não se tem mobília nem utensílios domésticos, se é analfabeto, nada se gasta com instrução e divertimentos, as pessoas calçam e vestem mal; falar-se em «boa» ou «regular» aparência de casebres impróprios para habitação humana; falar-se em «bom recheio» em relação a alguns tarecos insuficientes; falar-se em «pé-de-meia» quando, roubando-se ao estômago o indispensável, se «economizam» uns tostões sorvidos adiante por despesas de há muito adiadas — que é isto, senão o índice da extrema miséria geral?

Vê-se como os confrontos levam facilmente a deformadas e deformadoras visões otimistas e como se torna difícil tratar à parte os menos e os mais miseráveis. Já neste estudo falámos a respeito da situação geral dos trabalhadores dos campos, tratando, em conjunto, a dos pequenos produtores e a dos assalariados. Mostrámos, então, como é próxima a situação de uns e de outros, no referente a privações da mais variada espécie. Mas, ao abordarmos agora o problema da pequena produção, ao ajuntarmos ao sobretrabalho já referido as privações familiares como fator da sua possibilidade de persistir dentro da economia capitalista, não podemos deixar de fazer um confronto.

Se a situação dos trabalhadores do campo no seu conjunto é geralmente miserável, pode, sem receio, afirmar-se que se distinguem nesse conjunto os pequenos produtores pelas suas maiores privações. «Eles pensam mais no bolso do que no estômago» — observou Lénine (38) . Para conseguirem vender os produtos aos preços do mercado, para conseguirem, com a baixa produtividade do seu trabalho, aguentar a concorrência da grande exploração, para conseguirem subsistir, as famílias de pequenos agricultores,

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além do excesso de esforço dos homens, mulheres e crianças, têm de reduzir o seu consumo a um nível inferior ao dos assalariados.

Já em 1899, numa obra apreciada por Lénine, Kautsky (que então era ainda marxista) afirmava que

«o assalariado agrícola se encontra em melhor situação do que o pequeno camponês».

E Lénine insistia em que

«o pequeno camponês reduz o consumo relativamente ao grande e ao médio em proporção considerável e não se alimenta nem se veste melhor do que aquele que vive de jornada»(39).

Com o aumento das dificuldades da pequena produção geradas pelo desenvolvimento do capitalismo, tal diferença não deixa de acentuar-se.

Existe, é certo, uma categoria de assalariados rurais cuja situação consegue ser pior que a dos pequenos agricultores. É a do «peão auxiliar», ou do «criado» daqueles pequenos agricultores que alcançam subir um degrau para a classe capitalista. A sua situação atinge, geralmente, um nível de miséria próximo da dos mendigos ou vagabundos. Dispersos, esmagados pelas dificuldades, não integrados ainda na classe social a que pertencem, são vítimas da mais cruel exploração. Deitam mão a todos os trabalhos, os mais penosos e mal pagos. Quando «permanentes» dormem em palheiros ou junto com os animais, comem umas sopas, vestem uns trapos, são sobrecarregados de trabalho, para que não há horários nem limites. Se se considerassem estes trabalhadores como representantes típicos do salariato das empresas capitalistas, ter-se-ia de concluir pela superior situação dos pequenos agricultores e até por vezes pela sua mais ampla visão das coisas. A este erro não fogem infelizmente alguns autores progressistas, mostrando não compreender que o «peão auxiliar» é apenas o primeiro passo do parto capitalista pela pequena produção. A pequena produção com o «peão auxiliar» mantém ainda muitas características de economia mercantil simples, e o «peão

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auxiliar» não ganha num salto as características do proletariado rural, trabalhando nas empresas capitalistas evoluídas.

Excluída esta categoria muito especial de proletários, pode afirmar-se serem as privações dos pequenos agricultores superiores em regra às dos assalariados. Tal verdade é reconhecida por quantos têm estudado o problema.

«É raro — diz-se num estudo relativo ao Noroeste — que uma família de caseiro de terras ou mesmo de pequeno proprietário [...] retire produtos em valor correspondente aos dos salários que ganhariam se trabalhassem por conta de outrem, recebendo salário.»(40)

Os pequenos rendeiros de grandes propriedades arrendadas em pequenas parcelas — diz-se noutro estudo —

«muitas vezes, nem sequer conseguem a remuneração do seu trabalho à base do salário normal da região»(41). «Por vezes — diz-se noutro estudo — o pequeno proprietário-empresário, que acode a todo o trabalho com os seus braços e os da família, feitas bem as contas, não chega a tirar a jornada de um trabalhador.»(42) «São muitos os casos — insiste-se na mesma obra — em que o rendeiro, ao pagar a renda, não consegue tirar salários razoáveis do seu trabalho como operário e do da família.»(43)

Em casos «infelizmente muito vulgares no nosso país» - reconhece-se noutra obra - a receita média do pequeno agricultor «é inferior ao salário corrente» e «casos há em que, depois de paga a renda, as receitas líquidas restantes, divididas pelo número anual de dias de trabalho, equivalem a salário muito inferior ao usual na região»(44). Um pequeno agricultor, trabalhando «por sua conta» — insiste-se — «aceita para si e para os seus um nível de vida e presta e faz prestar aos seus trabalhos que patrão algum conseguiria impor-lhes»(45).

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«Ainda há pouco — declarou-se num alto organismo do Estado — no inquérito que se fez para o fomento agrícola, se verificou que em terras do Minho há famílias de pretensos proprietários cujos membros vivem com um escudo por dia.»(46).

Apesar de predominar no Alentejo a grande propriedade — diz-se ainda noutro estudo —

«e de, portanto, ser muito reduzido o número de proprietários e enorme o de assalariados», «o nível de vida dos rurais é melhor que o verificado nas regiões continentais nortenhas»(47).

Se repararmos em que isto é unanimemente afirmado por economistas e não economistas que não têm em conta para os seus cálculos a maior intensidade e o mais elevado número de horas de trabalho na pequena exploração, mais claro é de ver como, neste confronto entre misérias, se revela pior a situação dos pequenos agricultores. Apesar das terríveis dificuldades dos trabalhadores assalariados nas regiões onde predominam as grandes explorações agrícolas, a situação da generalidade dos pequenos agricultores, salvo os períodos de desemprego dos primeiros, consegue ser mais dificultosa: tanto no referente à alimentação, como à habitação, como a vestuário e calçado.

Ilustração esclarecedora é dada por um caso citado num estudo sobre o Norte do País. Um assalariado, tendo arrendado 3 ha e trabalhado neles um ano com toda a família (mulher, duas jovens de 14 e 17 anos e um rapazinho de 11)

«desistiu de explorar a terra e resolveu ganhar com a mulher e filhos os salários com que toda a vida viveu e espera continuar a viver menos sobrecarregado de trabalho do que durante o ano em que, pela exploração da terra por sua conta, pretendeu melhorar a situação económica»(48).

Mas porque os outros não fazem o mesmo? — pergunta-se. Este pôde fazê-lo, porque era um proletário, acidentalmente e à experiência pequeno cultivador. Não o

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podem fazer, não o desejam, não o querem, os pequenos cultivadores. Preferem uma vida pior, desde que conservem a sua «independência».

Não vamos descer à minúcia deste confronto triste entre o nível de vida dos pequenos agricultores e dos assalariados. Atrás ficou o panorama geral. Apenas se junta ligeiro comentário a afirmação muito frequente e enganadora.

Diz-se que o pequeno agricultor das regiões de pequena propriedade tem ao menos assegurados a sua broa e o seu caldo. E essa é aí, na verdade, a alimentação quase exclusiva de grande número de pequenos agricultores, pois coincidem em Portugal grandes regiões de pequena propriedade com grandes regiões de milho. Tem interesse deter um pouco a atenção nesse caldo e nessa broa.

Quanto ao caldo: por iniciativa do Prof. Lima Basto, o engenheiro agrónomo Valente de Almeida, sob a direcção do Prof. Boaventura de Azevedo, fez a análise do célebre caldo verde. Não se trata é certo de um caldo verde familiar, mas comprado a dez tostões antes de 1935. A diferença não deve, porém, ser grande. Eis como Lima Basto concretizou os resultados:

«Nesse pseudo-caldo há 97,23% de água e apenas 0,51% de proteína e 0,23% de gordura»; «cada litro fornece apenas 82,1 calorias»(49).

Seriam necessários mais de 40 litros de caldo diários para obter o mínimo de calorias essenciais à manutenção da vida de um trabalhador do campo.

Quanto à broa: a força do hábito é tal que muita gente considera a broa mais grosseira um saboroso pão. Muitos economistas que comem trigo lamentam mesmo a substituição do pão de milho pelo de trigo. A broa é na verdade um belo pão. Mas há broa e broa. Há broa feita com farinha de milho e, melhor ainda, lotada com trigo, e há uma espécie de argamassa bafienta (onde, com frequência, aparece palha) fabricada e vendida em muitas regiões do País, imprópria para a alimentação humana. Há, ainda, a broa como um entre múltiplos alimentos - e nesse caso, se é bem fabricada, nada a dizer - e a broa como alimento fundamental,

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por vezes quase exclusivo, acompanhada apenas pelo tal caldo verde com os seus 97% de água. Então tal alimentação torna-se fator de perturbações e de doenças, particularmente nas crianças. Disso fala a mortalidade infantil e em especial o facto de se encontrarem no Minho, Douro Litoral e nas regiões montanhosas do interior as mais elevadas percentagens de óbitos por diarreia e enterites. E disso falam, também, os números de doentes hospitalizados por pelagra, já que não falam os daqueles muitos que não são hospitalizados. No quinquénio 1945-1949, num total de 2500 doentes entrados nos hospitais do continente atacados de pelagra, nada menos de 2122, ou seja, 85%, eram dos distritos de Braga, Porto e Viana do Castelo. Se a estes três distritos acrescentarmos os de Aveiro, Bragança, Coimbra e Vila Real, os 7 distritos abrangem 93% dos doentes atacados de pelagra hospitalizados(50).

Num «estudo» já citado, afirmava um professor universitário:

«Constata-se na história de todos os tempos que os períodos de prosperidade coincidem sempre com a existência de um maior número de pequenos proprietários rurais.»(51)

Sem olharmos aos trabalhos em que se meteria quem se desse ao encargo de provar esta afirmação, sem olharmos também a que nela se considera a História sem considerar a evolução das sociedades, e atendo-nos apenas à economia capitalista, pode bem dizer-se que só a prosperidade das grandes empresas coincide com a existência das pequenas. Na economia capitalista, a pequena produção facilita a prosperidade da grande sem que conheça ela própria o cheiro da prosperidade. Trabalho e mais trabalho, privações e mais privações, tal é a vida das famílias de pequenos cultivadores, inevitável e imodificável na economia capitalista.

A insistência nas desvantagens da pequena produção e na superioridade da grande, a conclusão de que a pequena produção só pode subsistir através dos grandes trabalhos e sofrimentos do pequeno agricultor, a afirmação de que o nível de vida dos pequenos agricultores é inferior ao dos assalariados rurais, não significa, conforme Lénine sublinhou(52), que «defendamos» a expropriação dos pequenos agricultores. Significa, sim, que

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acusamos o capitalismo da miséria dos pequenos agricultores, que afirmamos a inevitabilidade da completa ruína destes como consequência do desenvolvimento do capitalismo, e que chamamos os pequenos agricultores aos ideais do comunismo, único a poder resolver as suas dificuldades.