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Economia e Sociedade, Campinas, v. 15, n. 3 (28), p. 545-576, dez. 2006. Controle de capitais e reformas liberais: uma comparação internacional 1 Pedro Paulo Zahluth Bastos 2 André Martins Biancareli 3 Simone Silva de Deos 4 Resumo O artigo tem por objetivo discutir vantagens e desvantagens de formas diversas de controle de capitais à luz da experiência de cinco países que realizaram programas diferentes de liberalização financeira externa: Chile, China, Índia, Malásia e Tailândia. Essas experiências são avaliadas comparando: 1) as formas de inserção desses países na economia mundial; 2) o momento de implementação dos controles; 3) os objetivos visados e sua relação com outros instrumentos de política econômica. Inicialmente, apresentam-se as linhas gerais da discussão contemporânea sobre o tema, tomando como eixo as posturas do FMI e o posicionamento recente de economistas brasileiros, com o intuito de ressaltar vantagens e desvantagens de possíveis instrumentos de controle, dada a configuração atual das finanças internacionais. A seguir, avaliam-se os casos nacionais. A conclusão principal é que se saíram melhor os Estados que preservaram controles sobre o volume, a composição e o prazo dos fluxos líquidos de financiamento externo, evitando programas extremos de liberalização da conta financeira e complementando os controles externos com controles sobre o volume, a composição e o prazo dos fluxos de financiamento internos. Palavras-chave: Controle de capital; Estratégias – Desenvolvimento; Reforma liberal; Análise comparada. Abstract Capital controls and neo Capital controls and neo Capital controls and neo Capital controls and neo-liberal structural re liberal structural re liberal structural re liberal structural reforms: an international comparison forms: an international comparison forms: an international comparison forms: an international comparison The purpose of this article is to discuss the advantages and disadvantages of different forms of capital controls in light of the experiences of five developing countries which implemented different programs of international financial liberalization: Chile, Malaysia, Thailand, China and India. We analyze these experiences comparing: 1) the types of links of these countries to the global economy; 2) the timing of the implementation of such controls; 3) the expected goals and their relation with other economic policy instruments. To achieve that, we first present a brief analysis of the historical context in which the multilateral agenda about liberalization/capital controls developed during the 1990’s, emphasizing IMF’s postures; subsequently we present a survey of recent Brazilian debates, regarding advantages and disadvantages of capital controls; and then we move to the international comparative analysis. The main conclusion is that have done better those States which preserved (1) Versões anteriores deste artigo foram apresentadas no X Encontro Nacional de Economia Política em 2005 e no III Congresso Latino-Americano de Ciência Política em 2006. Agradecemos os comentários feitos nessas ocasiões por Alexandre Queiroz Guimarães, Daniela Prates, Franklin Serrano, Lúcio Flávio de Almeida, Luiz Fernando de Paula, Paul Cooney, Paulo Gala, Reinaldo Gonçalves e Sebastião Velasco e Cruz; agradecemos também a dois pareceristas anônimos da revista, eximindo-os dos erros remanescentes. (2) Professor-Doutor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). (3) Professor e doutorando do Instituto de Economia da Unicamp. (4) Professora-Doutora do Instituto de Economia da Unicamp.

Controle de Capitais

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Artigo destaca a importancia do controle de capitais na estabilidade econômica de um país.

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  • Economia e Sociedade, Campinas, v. 15, n. 3 (28), p. 545-576, dez. 2006.

    Controle de capitais e reformas liberais: uma comparao internacional1

    Pedro Paulo Zahluth Bastos2 Andr Martins Biancareli3

    Simone Silva de Deos4

    Resumo

    O artigo tem por objetivo discutir vantagens e desvantagens de formas diversas de controle de capitais luz da experincia de cinco pases que realizaram programas diferentes de liberalizao financeira externa: Chile, China, ndia, Malsia e Tailndia. Essas experincias so avaliadas comparando: 1) as formas de insero desses pases na economia mundial; 2) o momento de implementao dos controles; 3) os objetivos visados e sua relao com outros instrumentos de poltica econmica. Inicialmente, apresentam-se as linhas gerais da discusso contempornea sobre o tema, tomando como eixo as posturas do FMI e o posicionamento recente de economistas brasileiros, com o intuito de ressaltar vantagens e desvantagens de possveis instrumentos de controle, dada a configurao atual das finanas internacionais. A seguir, avaliam-se os casos nacionais. A concluso principal que se saram melhor os Estados que preservaram controles sobre o volume, a composio e o prazo dos fluxos lquidos de financiamento externo, evitando programas extremos de liberalizao da conta financeira e complementando os controles externos com controles sobre o volume, a composio e o prazo dos fluxos de financiamento internos.

    Palavras-chave: Controle de capital; Estratgias Desenvolvimento; Reforma liberal; Anlise comparada. Abstract

    Capital controls and neoCapital controls and neoCapital controls and neoCapital controls and neo----liberal structural reliberal structural reliberal structural reliberal structural reforms: an international comparisonforms: an international comparisonforms: an international comparisonforms: an international comparison

    The purpose of this article is to discuss the advantages and disadvantages of different forms of capital controls in light of the experiences of five developing countries which implemented different programs of international financial liberalization: Chile, Malaysia, Thailand, China and India. We analyze these experiences comparing: 1) the types of links of these countries to the global economy; 2) the timing of the implementation of such controls; 3) the expected goals and their relation with other economic policy instruments. To achieve that, we first present a brief analysis of the historical context in which the multilateral agenda about liberalization/capital controls developed during the 1990s, emphasizing IMFs postures; subsequently we present a survey of recent Brazilian debates, regarding advantages and disadvantages of capital controls; and then we move to the international comparative analysis. The main conclusion is that have done better those States which preserved

    (1) Verses anteriores deste artigo foram apresentadas no X Encontro Nacional de Economia Poltica em

    2005 e no III Congresso Latino-Americano de Cincia Poltica em 2006. Agradecemos os comentrios feitos nessas ocasies por Alexandre Queiroz Guimares, Daniela Prates, Franklin Serrano, Lcio Flvio de Almeida, Luiz Fernando de Paula, Paul Cooney, Paulo Gala, Reinaldo Gonalves e Sebastio Velasco e Cruz; agradecemos tambm a dois pareceristas annimos da revista, eximindo-os dos erros remanescentes.

    (2) Professor-Doutor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). (3) Professor e doutorando do Instituto de Economia da Unicamp. (4) Professora-Doutora do Instituto de Economia da Unicamp.

  • Pedro Paulo Zahluth Bastos / Andr Martins Biancareli / Simone Silva de Deos

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    controls over the volume, composition and maturity of net international financial flows, rejecting radical liberalization programs of the financial account, and complementing cross-border controls with controls over the volume, composition and maturity of local financial flows.

    Key words: Capital controls; Development strategies; Liberalization reforms; Comparative analysis. JEL F32, F36, O57.

    O artigo discute as vantagens e desvantagens de formas diversas de

    controles de capitais com base na anlise da experincia de um conjunto de pases que realizaram, com ritmo, amplitude e profundidade diferentes, polticas de liberalizao de suas transaes financeiras internacionais na dcada de 1990. A escolha dos pases (Chile, China, ndia, Malsia e Tailndia) teve por objetivo comparar pases com estratgias diferenciadas de desenvolvimento econmico e insero internacional, que implementaram ou mantiveram controles de capitais em momentos diversos de sua estratgia de liberalizao, com objetivos e resultados tambm marcados pela diversidade.

    A anlise comparativa das experincias de controle de capitais e reformas liberais indica que, embora a liberalizao financeira possa abrir oportunidades de negcios capazes, em certas circunstncias e por algum tempo, de produzir crculos virtuosos de ampliao da renda e do emprego, ela tambm pode provocar desequilbrios econmicos graves se no for implementada de maneira seletiva e gradual, e complementada por polticas que visem a reduzir riscos associados ao endividamento externo, particularmente de curto prazo.

    Em momentos de abundncia de liquidez internacional, o uso de controles entrada de capitais pode alongar o prazo de passivos externos, evitar apreciao cambial e seus efeitos sobre a conta comercial, e preservar maior autonomia de poltica macroeconmica. Ademais, o recurso a controles seletivos voltados ao movimento de capitais de curto prazo no inibe necessariamente a entrada de capitais de maior prazo, quando desejados. Pelo contrrio, pode estimular sua atrao, desde que permita que o horizonte do investidor seja balizado por polticas de crdito e cmbio atraentes, e por mecanismos de controle da dvida pblica que no deprimam o gasto pblico, nem prejudiquem o planejamento de investimentos em infra-estrutura. Ou seja, controles de capitais podem ser usados para aumentar benefcios e reduzir os riscos de estratgias de liberalizao financeira externa, particularmente quando complementem um conjunto de polticas orientadas para o investimento em capital fixo e, sobretudo, articulem-se a estratgias de desenvolvimento que combinem integrao do mercado interno e incentivo s exportaes.

    Em momentos de crise de liquidez internacional, por sua vez, o recurso a controles de sada de capitais pode limitar ataques especulativos, e a emergncia de crises gmeas (financeira e cambial) associadas acumulao de riscos de crdito e/ou de descasamento de moedas e prazos durante o ciclo de endividamento (propiciado e induzido pela liberalizao). Em suma, a comparao internacional indica que se saram melhor os Estados que evitaram programas

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    extremos de liberalizao da conta financeira, e preservaram controles sobre o volume, a composio e o prazo dos fluxos lquidos de financiamento.

    O artigo est organizado do seguinte modo: de incio, apresenta as linhas gerais da discusso contempornea tomando como eixo as posturas do FMI (seo 1) e o posicionamento de economistas brasileiros (seo 2), com o intuito de ressaltar as vantagens dos possveis instrumentos de controle, dada a configurao atual das finanas internacionais. A seguir, apresenta um resumo dos cinco casos nacionais de uso de controles de capital (seo 3), procurando diferenci-los quanto s formas de insero desses pases na economia mundial, ao momento de implementao das medidas, aos objetivos visados e sua relao com outros instrumentos de poltica econmica. Consideraes finais encerram o trabalho.

    1 Os controles na agenda internacional

    Nos anos 1990, a agenda financeira internacional pode ser dividida em

    dois perodos, tendo como marco as crises de 1997. Na primeira fase, a agenda de liberalizao financeira defendida pelo Fundo Monetrio Internacional e pelo Departamento do Tesouro estadunidense difundiu-se rapidamente, visando a integrar os chamados mercados emergentes globalizao financeira. Governos de pases que abrigam centros de servios financeiros e mercados de capitais internacionais tambm se mostraram favorveis liberalizao, concluda na OCDE at o final dos anos 1980 e transferida, a seguir, tambm para a agenda do GATS na OMC. Formou-se, assim, ao longo da dcada, uma ampla coalizo internacional interessada no estabelecimento de regras que limitassem a possibilidade de imposio soberana de controle de capitais, defendendo liberar tanto autorizaes de estabelecimento para venda de servios, quanto fluxos financeiros transfronteirios. O objetivo era disciplinar pases com histrico de moratrias e controles cambiais e que faziam a volta ao mercado depois das crises da dvida externa nos anos 1980; e abrir seu mercado de servios financeiros a investimentos externos oriundos dos pases centrais.5

    As reformas liberalizantes j eram recomendadas pelo Departamento do Tesouro (e mais tarde pelo FMI) na segunda metade dos anos 1980, mas tiveram pouca eficcia antes que aplicadores voltassem a buscar rendimentos superiores em mercados emergentes, fugindo da recesso conjunta das economias desenvolvidas no incio dos anos 1990. Nesse contexto, os pases receptores liberaram contas financeiras,6 reagindo de modo quase simultneo, mas

    (5) Sobre a economia poltica dessas presses liberalizantes, cf. Helleiner (1994), Louriaux et al. (1997),

    Gowan (1999) e Abdelal (2006). (6) Sabe-se que, para fins de organizao das contas externas, o Brasil utiliza, desde janeiro de 2001, as

    recomendaes da quinta edio do manual de balano de pagamentos do FMI, que introduz a conta financeira e a ela incorpora praticamente todas as transaes da antiga conta de capital que passou a registrar apenas as transaes relativas a transferncias unilaterais de patrimnio de migrantes e a aquisio/alienao de bens no financeiros no produzidos (a cesso de marcas e patentes o grande exemplo).

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    descentralizado, a presses de mercado pela desregulamentao competitiva, visando a atrair capitais oriundos de pases desenvolvidos. Os aplicadores, por sua vez, buscavam rendimentos e riscos maiores, mas se mostravam incomodados com a ausncia de regimes multilaterais que garantissem ou, pelo menos, regulamentassem as condies de retirada dessas aplicaes e seus rendimentos lquidos.

    A presso diplomtica a favor de acordos de liberalizao financeira iniciou-se com o boom dos mercados emergentes nos anos 1990, aumentou depois da crise mexicana em 1994-1995, e chegou ao auge na Assemblia Conjunta do FMI e do Banco Mundial em setembro de 1997. Coincidentemente, essa assemblia havia sido agendada para Hong Kong antes da crise financeira e cambial asitica. O documento preparatrio do Comit Interino era ambicioso, propondo emendas dos Artigos do Acordo do Fundo que inverteriam o esprito do texto negociado por Keynes e White durante a guerra, alegando, de fato, ser tempo de acrescentar um novo captulo ao Acordo de Bretton Woods. Os fluxos de capital privado adquiriram muito mais importncia para o sistema financeiro internacional, e um sistema cada vez mais aberto e liberal provou ser altamente benfico economia mundial.7

    O terremoto sobre os mercados mundiais inviabilizou a emenda que tornava a liberalizao financeira um dos objetivos explcitos do FMI. Depois das crises ocorridas a partir de 1997, ela foi substituda por uma agenda tpica da crise financeira. O escopo de propostas da nova agenda ia desde a eliminao completa ou o enfraquecimento severo do FMI (sob inspirao de figuras de prestgio do Partido Republicano, como George Schultz e Allan Meltzer) a seu reforo financeiro e poltico (indesejvel para importantes pases membros). Ao mesmo tempo, vozes bem posicionadas e crticas liberalizao por exemplo Rodrik (1998) e Stiglitz (2000) se faziam ouvir nos crculos acadmicos e, com menor influncia, nos organismos financeiros multilaterais. Na prtica, os debates no Fundo centraram-se em torno proposta formalizada no final de 2001 pela vice-diretora-gerente, Anne Krueger, regulamentando a suspenso temporria de pagamentos, a moratria preventiva e a reestruturao ordenada da dvida externa durante crises financeiras, evitando que a solvncia de um pas sofra contgio de crises de liquidez.8

    (7) Apud Blustein (2002). Ver tambm o discurso de abertura da Reunio Conjunta, feito por S. Fischer,

    publicado em Essays in International Finance, n. 207, May 1998, que traz outros artigos sobre o tema. (8) Significativamente, Krueger (2002) admitia que a globalizao financeira tinha avanado

    excessivamente desregulamentada: Processos de grande extenso nos mercados de capitais, nas ltimas duas ou trs dcadas, no foram acompanhados pelo desenvolvimento de um arcabouo regulatrio confivel para a coordenao do crdito, no qual os papis dos devedores, credores e da comunidade internacional sejam claramente definidos. Sobre essa e outras propostas discutidas no perodo, ver, por exemplo, Ghosal e Miller (2003). Cabe lembrar que alguns papers da equipe tcnica do FMI passaram a enfatizar as imperfeies da liberalizao e mesmo a admitir, em certas circunstncias, o efeito positivo do controle de capitais. Ver, em especial, Prasad et al. (2003).

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    Essa proposta tambm no vingou, em razo da resistncia do Departamento do Tesouro dos EUA a conferir poder agncia multilateral para coordenar reestruturaes de dvidas. Foi retirada de pauta nas vsperas da Assemblia Conjunta do FMI e do Banco Mundial de abril de 2003, em Washington. Em seu lugar, foi alada ao centro da agenda a Clusula de Ao Coletiva (CAC), mecanismo defendido pelo Tesouro e mediante o qual eventuais reestruturaes seriam realizadas diretamente entre governos devedores e, pelo menos, a maioria dos credores.9

    Enquanto os impasses em torno a um regime de regulamentao multilateral da suspenso temporria de pagamentos e de reestruturao da dvida se confundem com controvrsias sobre as funes do FMI, questionando seu papel na preveno/gerenciamento de crises financeiras, reaes nacionais se desenvolvem, seja por pases exportadores, seja por importadores de capitais. Alguns pases credores vm seguindo o exemplo de proteo de aplicadores dos Estados Unidos, que negociaram regras contra imposio de novos controles sada, ou preferncias para liberao de recursos caso uma imposio geral de controles se imponha, em acordos recentes celebrados com Cingapura e Chile. Enquanto isso, alguns pases em desenvolvimento recorrem a controles de capitais para diminuir sua vulnerabilidade a certos efeitos indesejveis da liberalizao financeira.

    Nesse contexto, opinies de representantes do mainstream acadmico, favorveis a outros aspectos da liberalizao econmica, contestam idias estabelecidas sobre vantagens da abertura financeira e enxergam com olhos complacentes at elogiosos uma insero mais prudente.10

    2 Os controles e suas vantagens, na voz dos economistas brasileiros

    Se a agenda internacional caminha na direo de maior abertura s

    vantagens dos controles de capitais, as posturas crticas liberalizao passariam, no debate brasileiro, por um aprimoramento de diagnsticos e propostas, uma vez identificados os principais contornos da globalizao financeira e os constrangimentos impostos s polticas econmicas nacionais (Coutinho; Belluzzo, 1996; Freitas; Prates, 2001).11

    Iniciativas visando ao endividamento externo sustentvel foram propostas por Batista Jr. (1997), se desdobrando recentemente em sugestes especficas em

    (9) O Brasil lanou ttulos com a CAC desde 2004. Em 2005, mais de 95% das emisses novas em

    termos de valor de ttulos soberanos de pases emergentes incluram CACs, de modo que, em fevereiro de 2006, o estoque desses ttulos j chegava a 60% do total: IMF (2006a, p. 46), e IMF (2006b, p. 63). O relativo xito da Argentina em sair da maior moratria j declarada promete acrescentar novos elementos e mais polmica discusso.

    (10) Ver Williamson (2004); Rojas-Suarez (2004); Gourinchas e Jeanne (2003) e Bhagwati (1998). (11) Para um aprofundamento da anlise das propostas especficas dos crticos liberalizao financeira

    no Brasil, ver Biancareli (2003).

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    vrios trabalhos dedicados ao tema: limites e maior fiscalizao do envio de divisas pela antiga conta CC-5; uso do IOF na calibragem da entrada de recursos; estabelecimento de depsitos compulsrios moda chilena.12

    Outras propostas devem ser realadas: (1) Batista Jr. (2002) sugeriu limitar ou proibir instrumentos de put e call

    option, que permitem ou exigem o pr-pagamento de dvidas no exterior e contribuem para exacerbar movimentos de manada em momentos de crise;

    (2) Carneiro (2003) sugeriu limites para posies compradas e vendidas dos bancos nos mercados de divisas, e a criao de um mercado de cmbio dual que separe transaes comerciais e de investimento direto, de um lado, e fluxos de curto prazo de portflio, de outro, durante um perodo de transio aps a imposio dos controles, como iniciativa emergencial para evitar a fuga de capitais;13

    (3) Paula et al. (2003) sugeriram restrio de emisses externas s empresas e bancos com classificaes de risco acima de um limite de segurana.

    Boa parte dessas iniciativas precisa continuamente adaptar-se evoluo das inovaes financeiras. Hoje, por exemplo, a defesa de uma postura ativa no uso do IOF no pode ignorar que os fluxos de entrada e sada fsica de capital no so determinantes principais do movimento do cmbio, mas sim as operaes alavancadas nos mercados futuros de juros e cmbio na BM&F, atreladas s negociaes nos mercados offshore da moeda brasileira, do tipo NDF (non-deliverable forward). Essa inovao requer maior sofisticao nas tentativas de controle, exigindo limites e proibies a determinadas operaes nos mercados de derivativos.14

    Independentemente da necessidade contnua de adaptao, as iniciativas de controle tm um objetivo invarivel: conferir autonomia na gesto das polticas macroeconmicas, em busca de maior independncia em relao aos mercados financeiros de curto prazo, seja perante movimentos de arbitragem de taxas de juros, seja perante movimentos de pnico e contgio de crises financeiras. A idia que, de um lado, controles de capitais de curto prazo permitiriam desvincular, em parte, a taxa de juros local das taxas externas, e reduziriam a volatilidade

    (12) Cf. Batista Jr. (2002); Carneiro (2003); Carvalho (2003); e Paula et al. (2003). A proposta de Batista

    Jr. (1997) inclua: controle do ritmo de absoro de capitais e de crescimento dos passivos externos; controle da estrutura temporal das obrigaes acumuladas; garantia de financiamento da formao de capital e no do consumo; ateno para a qualidade dos investimentos financiados; direcionamento prioritrio para setores exportadores ou substituidores de importaes; e cuidado para evitar que empresas e bancos descasassem passivos e ativos em moeda estrangeira.

    (13) Cabe lembrar que a iniciativa emergencial iria exatamente na contramo das medidas do BC de unificao formal dos segmentos (que j operavam na prtica sem fronteiras).

    (14) Cf. Farhi (2004; 2005). Evidentemente, j no faz sentido tambm advogar o controle de contas de no residentes no sistema financeiro domstico (CC-5), j que foram extintas pelo Banco Central, eliminando esse requisito (conta em nome de no residente) para a converso e envio de recursos em moeda nacional ao exterior.

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    cambial. De outro lado, os controles tenderiam a alongar o passivo externo e reduzir a exposio de governo, bancos e empresas ao risco cambial ou a credit crunch abrupto durante crises de liquidez.

    Tudo isso, de certa forma, fundamenta uma vantagem adicional, de natureza poltica: os controles de capital tendem a reduzir o poder de veto dos agentes do mercado financeiro internacional a polticas pr-crescimento, reforando a autonomia de poltica econmica para canalizar a riqueza financeira, a baixas taxas de juros, para investimento em ativos de capital fixo, geradores de renda e emprego, inibindo ganhos especulativos, a curto prazo, em mercados de ativos lquidos. Com isso, governos podem ser mais responsveis perante aspiraes democrticas (pleno emprego e gastos sociais) em vez de se responsabilizarem, a todo momento, por assegurar sua credibilidade perante gestores de portflio interessados em ganhos patrimoniais de curto prazo o assim chamado mercado.15

    Quanto s desvantagens, em geral so mencionadas as dificuldades de transitar para um regime de controles sem induzir crises financeiras; a ineficcia de controles diante da agilidade dos aplicadores para fugir das tentativas de regulamentao; e os efeitos negativos da interveno no livre jogo das foras de mercado, impedindo a alocao eficiente de recursos.16

    As duas primeiras objees so de inegvel importncia operacional, mas no parecem desaconselhar controles de capital em geral. Quanto dificuldade de transio, no verdade que qualquer imposio de controles induz, por efeito de perda de credibilidade, uma retrao duradoura do financiamento externo ao pas em questo vide o caso malaio. O que parece haver, de fato, so momentos mais oportunos que outros para faz-lo, de modo a evitar que controles ao movimento de capitais de curto prazo contaminem desembolsos de mdio e longo prazo. Quanto ineficcia, a anlise da experincia internacional sugere a necessidade de uma gesto ampla, atenta e flexvel dos controles para evitar vazamentos inesperados.

    Finalmente, a idia de que controles impedem a alocao eficiente de recursos no corroborada pela experincia histrica; pelo contrrio, fluxos de capitais de curto prazo tm efeitos sobre cmbio e juros que podem sinalizar e induzir decises de investimento que no se mostram rentveis ao longo do tempo. Por outro lado, restries a capitais de curto prazo no parecem inibir investimento direto externo (IDE), particularmente quando permitem evitar apreciao cambial (que pode inibir investimentos em ramos tradables), na fase de abundncia de liquidez de curto prazo, e evitar excessiva volatilidade/depreciao cambial (que deprime a rentabilidade em ramos non-tradables), na fase de retrao da liquidez internacional (flight to quality).

    (15) Para uma discusso ampla, cf. Carvalho e Sics (2004). (16) Para um exemplo da literatura internacional crtica dos controles, ver Edwards (1999). Anlises da

    experincia brasileira, com as mesmas concluses, se encontram em Garcia e Barcinsky (1996) e Cardoso e Goldfajn (1997).

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    O mnimo que se pode dizer, assim, que o tema dos controles ensejou amplos esforos de reflexo e proposio por parte de vrios economistas brasileiros. Instrumentos, objetivos e argumentos parecem estar muito claros, desde que se parta da concepo de que a integrao desregulada s finanas internacionais no o melhor caminho para o desenvolvimento de pases como o Brasil. O problema que a anlise das experincias nacionais ajuda a ilustrar que a questo no se resolve no plano estritamente tcnico ou acadmico.

    3 Experincias internacionais

    Em geral, podem ser apontados dois tipos bsicos de controle, entrada e

    sada de capitais, como veremos avaliando experincias nacionais emblemticas. Comparativamente, controles entrada apresentaram carter preventivo para evitar atrao excessiva de capitais em fases de abundncia de liquidez (como para Chile, ndia e China), enquanto controles sada foram adotados emergencialmente durante crises de liquidez (como na Malsia ou na Tailndia), embora uma estratgia cuidadosa de insero externa possa envolver controles de sada mesmo em perodos de liquidez internacional abundante, como fizeram China e ndia.

    Quanto aos instrumentos de controle, eles podem ser diretos ou administrativos, e indiretos ou precificados. Os primeiros envolvem proibies completas ou limites quantitativos explcitos que reduzem o escopo da liberdade de gesto privada de portflios. Esses limites administrativos podem restringir, em termos de valores e prazos, tanto a exposio cambial de bancos e empresas, quanto a alavancagem de recursos locais para transaes cambiais, para residentes e/ou no residentes, recorrendo s vezes a procedimentos de autorizao burocrtica de decises privadas.

    Os instrumentos indiretos ou precificados, por sua vez, buscam desencorajar fluxos de capital aumentando seus custos, atravs de desestmulos tributrios, depsitos compulsrios, taxas de cmbio mltiplas, requerimentos mnimos de colateral e outros mecanismos. claro que controles diretos e indiretos podem se complementar, e freqentemente o fazem, em experincias nacionais concretas. Nossa abordagem das experincias selecionadas no tem por objetivo, aqui, detalhar a anlise das tcnicas usadas em cada caso, mas diferenci-las quanto ao sentido das polticas de controle adotadas em cada pas.17

    Embora se faa referncia s tcnicas de controle usadas em cada caso, o intuito central aqui comparar as experincias nacionais mostrando que as vantagens (e desvantagens) dependem no apenas de competncia tcnica mas, sobretudo, de aspectos mais amplos que diferenciam cada experincia: 1) as

    (17) Para um apanhado geral de experincias nacionais, com anlises detalhadas de instrumentos

    tcnicos, ver os estudos do FMI: Ariyoshi et al. (2000); a coletnea da UNCTAD (2003); e Epstein; Grabel e Jomo (2003).

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    formas de insero desses pases na economia mundial; 2) o momento de implementao de controles; 3) sua relao com outros instrumentos de poltica econmica e, em particular, com as reformas estruturais liberalizantes propostas pelas instituies financeiras multilaterais (FMI/Banco Mundial).

    Desde logo, cabe alertar que os pases em questo no tm em comum qualquer rejeio apriorstica s reformas liberalizantes, nem estavam em estgios semelhantes na implementao da agenda de liberalizao financeira. De fato, alguns deles instituram controles de capitais depois de crises dos regimes liberais institudos ou aprofundados na dcada de 1990 (Malsia e Tailndia); o Chile, por sua vez, j havia institudo controles desde a crise financeira anterior, no incio da dcada de 1980, e buscou evitar os efeitos considerados negativos de entradas de capital excessivas e volteis no incio dos anos 1990, muito embora no rejeitasse outras reformas liberalizantes. Por outro lado, China e, em menor medida, ndia, combinaram controles de capitais com um movimento claro de liberalizao em outros campos, preservando um conjunto de instrumentos de coordenao disposio de Estados nacionais que, abertamente, rejeitavam recomendaes do chamado Consenso de Washington.

    Tampouco essas experincias tm, em comum, o xito: Chile e Tailndia, em particular, no instituram controles extensivos e profundos o suficiente, quando necessrio, para se protegerem de fugas de capital orientadas pelo temor de perdas patrimoniais e/ou pela expectativa de ganhos especulativos. Essas cinco experincias tm em comum, porm, a inteno de se protegerem contra movimentos de capitais orientados, a curto prazo, por clculos privados de gesto patrimonial, antes ou depois que esses movimentos privados provocassem, nos campos financeiro e cambial, crises representativas do fracasso da gesto pblica das economias capitalistas no contexto atual de globalizao financeira. Essas experincias nacionais tambm tm em comum o fato de terem se realizado a despeito das recomendaes e, em alguns casos, das condicionalidades de programas de superviso e financiamento de balanos de pagamento monitorados pelo Fundo Monetrio Internacional, isto , de se realizarem contra as tendncias da regulao financeira e cambial multilateral. Em outras palavras, a imposio unilateral de controles representativa do fracasso do regime multilateral liberalizante em prevenir e/ou controlar crises de balano de pagamentos, e a imposio unilateral de controles de capitais mostrou-se tanto mais bem-sucedida quanto mais tenha aprofundado a rejeio ao regime multilateral predominante.

    3.1 Chile

    A experincia do Chile com controle de capitais, nos anos 1990, ilustra o

    uso tpico de controles entrada, com objetivos preventivos, em momentos de abundncia de liquidez internacional. Por outro lado, digno de nota que, nesse caso, o uso de controles no implicou rejeio da estratgia de integrao

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    internacional ampla. Mas essa experincia mostra, tambm, a necessidade de controles sada em momentos de contgio de crises de liquidez internacionais.

    Para dar uma noo do avano da integrao internacional caracterstico da estratgia chilena, registre-se que a relao fluxo de comrcio/PIB, para bens e servios, mais do que dobrou entre os perodos 1970-1973, que j foi marcado por forte inflao de commodities, e 1989-1999, para o qual o fluxo de comrcio foi, em mdia, superior a 60% do PIB. Ou seja, os controles cambiais impostos nos anos 1990 no se articularam a uma rejeio da estratgia de integrao pautada em especializao comercial tradicional e abertura do setor industrial e de servios, seguida desde o incio do regime autoritrio. O caminho escolhido pela poltica externa chilena continuou sendo o alinhamento estratgico com seu principal parceiro econmico, os EUA. Nesse sentido, foram direcionados esforos, rejeitados pelo Congresso de maioria republicana ao longo do governo Clinton, para celebrar um Acordo de Livre Comrcio, profundo em regras e tmido em acesso a mercados sensveis. Enfim, a concluso desse acordo bilateral em 2002 reforou a estratgia de integrao liberal, ao limitar a possibilidade de imposio de controles de capital, ainda que as presses para a privatizao do setor de extrao mineral no tenham sido aceitas.

    Se os governos chilenos continuaram perseguindo uma estratgia de abertura/integrao, por que foram institudos controles entrada de capitais de curto prazo? Por um lado, porque a conta corrente chilena era robusta e gerava divisas suficientes; por outro, a prudncia resultou, inegavelmente, do aprendizado sobre os efeitos negativos do ciclo de endividamento anterior, nos anos 1970 e 1980.18

    Na dcada de 1990, a poltica cambial chilena combinou instrumentos diretos e indiretos de controle entrada. Os controles indiretos ou precificados, institudos em 1991, tomaram a forma de exigncia de depsito compulsrio no remunerado, estabelecido em 20% dos emprstimos externos em 1991. Esses controles evoluram, j em 1992, em termos de abrangncia (passaram a incidir sobre outras formas de aplicao financeira) e parcela retida (elevada a 30%), diante da maior presso de entrada, sendo complementados por controles diretos (exigncias de prazo de permanncia e, para tomadores de crdito, exigncia de rating elevado atribudo por agncias internacionais de classificao de risco). Essa evoluo muito significativa, pois o Chile seguia o caminho inverso de outros pases da regio que, induzidos pela desregulamentao competitiva e pela crena nas vantagens da globalizao financeira, reduziam controles cambiais. At 1998, atravessando o boom dos mercados emergentes, os controles chilenos continuaram a ser graduados de acordo com as oscilaes da oferta de liquidez internacional, sendo variavelmente endurecidos ou relaxados atravs de

    (18) A literatura sobre a experincia chilena de poltica cambial vasta e engloba pontos de vista contrrios: ver, por exemplo, Edwards (1999); Ffrench-Davis; Agosin e Uthoff (1995) e Agosin e Ffrench-Davis (2000). As caractersticas bsicas da estratgia de desenvolvimento chilena e sua insero externa so delineadas, com base em comparaes internacionais, por exemplo em Tavares (1993) e Cruz et al. (2003).

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    prazos de permanncia, impostos e percentuais de reservas no remuneradas. Assim, o pas parecia menos vulnervel ao contgio dos humores dos mercados internacionais de capital, relativamente a seus vizinhos menos cautelosos, conseguindo (1) alongar prazos de passivos externos; (2) controlar o ritmo de apreciao cambial, com revalorizaes pequenas e graduais; e (3) preservar maior autonomia de poltica macroeconmica.19

    A partir de 1998, porm, os controles passaram a ser relaxados, em parte devido escassez de recursos para emergentes que passou a verificar-se, at serem praticamente extintos em 2001. Em 2002, a possibilidade de imposio de controles de capital foi severamente restringida pela concluso do Acordo de Livre Comrcio com os Estados Unidos em relao aos capitais oriundos desse pas, ou pelo menos que tenham passado por ele antes de se redirecionar ao Chile, pois permanece a dificuldade de determinar regras de origem para fluxos triangulares.20

    A grande deficincia da poltica chilena, porm, no estava no arcabouo de controles entrada, mas na fraqueza dos controles sada. No houve, no perodo, qualquer tentativa de limitar a sada dos capitais, sendo inclusive liberalizadas as formas e condies de envio de recursos ao exterior. Por conta disso, o Chile no se mostrou uma ilha imune ao contgio da crise financeira de 1997-1998, experimentando fuga de capitais de residentes, e/ou de no residentes que tivessem internalizado recursos h mais de um ano.

    A lio a retirar no aponta nem para a ineficincia nem para a ineficcia de controles de capital, mas sim para a necessidade de que esses controles abranjam tambm a sada. De fato, a experincia chilena nos anos 1990, embora limitada no escopo e no tempo, ilustra as vantagens de controles entrada em um momento de abundncia de liquidez internacional e, por outro lado, os limites de uma estratgia que, ao contrrio de China, ndia e Malsia, no conte com controles sada em momentos de fuga para a qualidade.

    3.2 Malsia

    A vulnerabilidade chilena no se aplica Malsia, tendo o pas asitico

    institudo controles no para prevenir, mas para limitar os efeitos de uma crise financeira. O caso malaio , portanto, um exemplo tpico de uso bem-sucedido de controles sada, em momento de fuga de capitais. O pas foi, at meados dos anos 1990, uma das economias asiticas mais abertas para no residentes, tanto em termos comerciais quanto financeiros, possuindo inclusive mercados offshore de moedas e aes, apesar do uso pontual de controles de entrada para moderar influxos em 1994, implementados por um pouco mais de um ano. Essa liberalizao excessiva foi um motivo fundamental da crise financeira e cambial

    (19) Conferir Agosin e Ffrench-Davis (2000, item 3). (20) Conferir Cowan e Gregrio (2006).

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    malaia em meados de 1997, seguindo roteiro similar na regio, particularmente nos chamados gansos voadores Tailndia, Indonsia, Filipinas e, mutatis mutandis, nos tigres Coria do Sul, Formosa, Hong Kong e Cingapura.21

    Como outras economias perifricas, a Malsia executou reformas liberais desde meados da dcada de 1980, por meio de desregulamentao de investimentos privados, abertura comercial e liberalizao financeira (liberao de taxas de juros e do direcionamento do crdito, fomento concorrncia entre instituies financeiras e ao aprofundamento de mercados de capitais, relaxamento de controles cambiais e abertura da conta financeira). A abertura da conta financeira realizou-se, porm, em ritmo mais cuidadoso em relao a outros gansos voadores. Desde os anos 1970, a estratgia de insero externa relacionou-se ao IDE voltado para exportao de bens manufaturados, oriundo em particular de Japo, Coria do Sul, Formosa e Hong Kong, cuja atrao foi reforada pela apreciao do iene perante o dlar depois do Acordo do Plaza em 1985. Ao longo da dcada de 1980, porm, a Malsia estendeu a liberalizao e desregulamentao para atrair investimentos em redes de infra-estrutura, projetos imobilirios, servios financeiros e no mercado de capitais. A liberalizao financeira envolveu no apenas facilidades para criao e operao de bancos internacionais em Kuala Lumpur, mas a transformao de Labuan em um centro financeiro offshore em 1990. Os objetivos eram obter financiamento para investimentos locais e tomar parte dos negcios de centros de servios internacionais mais tradicionais como Hong Kong e Cingapura; ao mesmo tempo, atraam-se filiais, acordos de licenciamento, subcontratao e joint ventures com empresas manufatureiras do Japo e dos Tigres de primeira gerao. Para essa estratgia, foi funcional preservar a taxa de cmbio fixa perante o dlar para atrair investimentos externos, e expandir a competitividade das exportaes enquanto o dlar se depreciava perante o iene e o marco entre 1985 e 1995, embora o regime cambial rgido agravasse desequilbrios logo a seguir.

    Propiciadas pela abertura da conta financeira, as entradas de capital aumentaram quando, no incio da dcada de 1990, as conjunturas de baixas taxas de juros nos centros financeiros ocidentais e de crise financeira japonesa condicionaram um boom de investimentos e emprstimos externos nos mercados de bens, servios e, crescentemente, ativos financeiros e imobilirios. Ao longo do

    (21) Alm das referncias gerais j citadas sobretudo a parte 3 de UNCTAD (2003) , ver Kaplan e

    Rodrik (2001), Kawai e Takagi (2003) e, como contraponto ortodoxo, Forbes (2004), ou Johnson et al. (2006), sobre o impacto dos controles de capitais impostos em 1998 sobre a economia malaia. Sobre a estratgia de export-led growth desse e dos demais tigres de segunda gerao, ver World Bank (1993); para vises alternativas, que ressaltam a diversidade de experincias e apresentam vises menos elogiosas da abertura financeira, ver Islam e Chowdhury (1997) e Bustelo et al. (2004). Sobre as reformas financeiras realizadas no Sudeste Asitico, cf. Banco do Japo (1990), Haggard et al. (org. 1993) e Ariff e Khalid (2005). Para anlises especficas da estratgia de desenvolvimento malaia nas dcadas de 1970 a 1990, ver Jomo (1993) e Nesadurai (1998).

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    ciclo de endividamento externo que se seguiu, o investimento manufatureiro perdia participao para entradas de capital atradas para servios non-tradables e, a prazos mais curtos, para a bolha de ativos financeiros e imobilirios. At meados da dcada de 1990, a importncia relativa do IDE no total dos recursos destinados Malsia foi superior ao de outros gansos, mas a mesma importncia crescente de fluxos a curto prazo inegvel, concentrando-se (tambm diferentemente de outros gansos) mais em emprstimos bancrios do que em aplicaes em carteira. Sem inibies regulatrias significativas, posies em ativos denominados em moeda local eram financiadas pela acumulao de passivos em moeda externa, acentuando os riscos de descasamento de moedas e inibindo o uso de variaes da taxa de cmbio para acomodar choques internacionais e/ou para responder a depreciaes cambiais competitivas de rivais comerciais. Assim, taxas elevadas de crescimento do PIB e dos agregados monetrios, acompanhadas da acumulao de dbitos externos de curto prazo, preo excessivo de ativos financeiros e imobilirios denominados em moeda local, e capacidade ociosa crescente no setor manufatureiro ( medida que projetos de investimento concorrentes amadureciam em toda a regio) eram motivos de dficits de transaes correntes e fragilidade financeira crescente.22

    Essa fragilidade foi finalmente acentuada em meados da dcada de 1990 quando, s vsperas da reverso do ciclo de alta dos preos dos ativos financeiros e imobilirios, a elevao dos juros bsicos e a forte elevao dos rendimentos esperados no mercado de capitais estadunidense, em conjunto com expectativas de elevao de juros no Japo, queda de preo das manufaturas exportadas pelos NICs da regio, e uma srie de reajustes cambiais (desvalorizao do iuane chins e depreciao do peso mexicano e do iene, diante do dlar e das moedas asiticas

    (22) maneira de Minsky (1986, p. 202-207), entende-se por fragilidade financeira crescente o processo

    por meio do qual a situao patrimonial de agentes endividados transita entre (1) situao em que as receitas correntes sempre superam gastos correntes, inclusive servios financeiros com boa margem de segurana (hedge finance), (2) situaes em que experimentam necessidades de liquidez corrente (rolando o servio de dvidas) por no serem capazes de pagar compromissos momentaneamente, embora tanto financiadores quanto investidores especulem que os projetos financiados se mostrem solventes em algum prazo futuro de maturao dos emprstimos (speculative finance), e (3) situao em que os compromissos correntes (inclusive financeiros) quase sempre superam receitas e so sistematicamente financiados por novo endividamento, rolado e crescendo como bola de neve at a insolvncia (Ponzi finance): units that roll over debt are engaged in speculative finance and those that increase debt to pay debt are engaged in Ponzi finance (Minsky (1986, p. 203). A fragilidade crescente pode ocorrer graas a choques negativos em variveis macroeconmicas (por exemplo, elevao de taxa de juros bsica) e/ou subestimao de riscos de novas aplicaes de capital induzida endogenamente por um perodo longo de estabilidade. Embora Minsky tenha proposto o argumento para uma economia fechada, uma interpretao da crise das economias asiticas como resultado de fragilidade financeira crescente, relacionada liberalizao financeira tanto por choques inesperados em preos bsicos internacionais e locais (juros e cmbio) quanto pela subestimao de riscos, foi proposta por Kregel (1998). Garca (2005) apresenta dados sobre a mudana de composio e volume dos fluxos de financiamento externo para a regio na dcada de 1990, procurando diferenciar vulnerabilidade externa e fragilidade financeira.

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    fixadas nele)23 acentuaram desequilbrios de transaes correntes, reduziram o financiamento externo de posies em ativos denominados nas moedas locais (provocando queda de cotaes de bolsas desde 1996), e provocaram inadimplncias significativas (por exemplo, Bangkok Bank of Commerce, Somprasong e Finance One na Tailndia, entre julho de 1996 e junho de 1997; ou de chaebols na Coria do Sul, como Hanbo, Kia e Sammi). Na Malsia, o ndice KLCI (Kuala Lumpur Composite Index) caiu 44% entre 30/06/1996 e 31/12/1997; na Tailndia, a bolsa caiu cerca de 40% no ano posterior a fevereiro de 1997. Finalmente, uma srie de ataques especulativos produziu crises gmeas (nos mercados de cmbio, bancrio e de capitais), levando a depreciaes cambiais na Tailndia (2 de julho), Filipinas (11 de julho), Malsia (14 de julho), Cingapura (17 de julho), Indonsia (14 de agosto), Taiwan (18 de outubro) e Coria do Sul (16 de dezembro).

    claro que a responsabilidade pelas crises cambiais e financeiras na regio no apenas dos governos locais, uma vez que eles tambm experimentaram incentivos e presses externas para implementar reformas liberalizantes, acabando por integrar suas economias, de forma pouco prudente, a um sistema monetrio e financeiro marcado pelo crescimento de fluxos de capitais volteis (aplicados em posies lquidas e sujeitos a mudanas sbitas de expectativas); pela ausncia de coordenao institucionalizada de taxas de cmbio; e por mecanismos multilaterais de superviso, regulao e superao de desequilbrios internacionais pouco eficientes, como expresso no fato de que representantes do FMI ainda estimulavam a consolidao de centros financeiros offshore na sia em 1996, e que o Fundo foi incapaz de controlar a emergncia das crises gmeas (financeiras e cambiais) e de atenu-las a seguir. A responsabilidade dos mecanismos de contgio internacional das crises tambm no deve ser subestimada.24

    Ainda que a crise malaia tenha se acentuado depois das crises cambiais de Tailndia e Filipinas, sua propenso ao contgio internacional estava em que, com essas e outras economias da regio, partilhava de: 1) um histrico de desregulamentao interna que limitou a capacidade estatal de controlar o volume, a composio e o prazo dos fluxos de financiamento, permitindo a acumulao de posies curto-prazistas e o surgimento de bolhas nos mercados imobilirio e de ativos financeiros; 2) histrico de liberalizao financeira externa que reduziu a capacidade estatal de controlar o volume, a composio e o prazo do

    (23) Para estimativas da deteriorao dos termos de troca e da apreciao real das moedas asiticas

    perante seus rivais comerciais entre 1995 e 1997, ver World Bank (1998) e Eichengreen e Fishlow (1998). (24) Ao exigirem elevao de juros e cmbio, reduo de gastos, e liquidao de ativos, os programas de

    ajuste que condicionaram os pacotes de ajuda financeira no apenas fracassaram no controle da crise, mas a aprofundaram: ver, em especial, Kregel (1998) e Pettis (2003). Sobre os mecanismos de contgio, ver Eichengreen; Rose e Wyplosz (1998). Para o incentivo do FMI transformao de Bangkok em centro financeiro offshore, ver Byeon et al. (1991) e Dicks-Mireaux; Horvath e Kochhar (1996).

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    endividamento externo privado e, assim, de evitar o aprofundamento de riscos de crdito e de descasamento de prazos e moedas ao longo do ciclo financeiro; 3) regime de cmbio nominal fixo ou semifixo que estimulava o endividamento externo ao diminuir o risco ou a percepo de risco de descasamento de moedas, mas implicava apreciao cambial real e perda de flexibilidade para acomodar choques internacionais e/ou responder a depreciaes cambiais competitivas de rivais comerciais; 4) convivncia com dficits de transaes correntes por um perodo prolongado, em parte pela crena de que seriam financiados por um ciclo harmonioso e duradouro de influxos de capital, em parte pela dificuldade de reverter dficits em contexto de liberalizao comercial, apreciao cambial real e menor capacidade de regulao de investimentos privados (especialmente para orient-los formao bruta de capital fixo em certos ramos produtores de bens comercializveis).25

    Embora tenha se caracterizado pela liberalizao financeira no momento de abundncia de liquidez internacional, a Malsia rejeitou o receiturio do FMI no momento de reverso do ciclo financeiro externo, enfrentando de forma bastante heterodoxa a crise que atingiu o Pacfico Asitico em meados de 1997. O pacote foi anunciado em setembro de 1998: o mercado offshore foi fechado, a sada de recursos de residentes bloqueada, o investimento no exterior sujeito a autorizaes e limites, e aplicaes estrangeiras de porta-flio j internalizadas foram impedidas de ser repatriadas por um ano. As iniciativas, que tinham o objetivo de contar a crise bancria, reduzir juros e retomar o controle sobre a taxa de cmbio, rejeitaram o ajuste ortodoxo preconizado pelo FMI, sendo muito mal recebidas por agncias de rating, bancos e demais agentes do mercado, bem como pelo Fundo. Previa-se a excluso definitiva da Malsia dos destinos possveis de fluxos de capital.26

    (25) Sobre as causas das crises asiticas, conferir as resenhas crticas do debate realizadas por Cunha

    (2001) e, em especial, Garca (2005); ver, tambm, Bello (1998), Corbett e Viner (1999), Corsetti et al. (1999), Jomo (2001), Kregel (1998), Palma (2000) e Wade (2002).

    (26) O primeiro-ministro malaio, Mahathir Mohamed, justificou a ruptura com o FMI usando retrica nacionalista e crtica da globalizao: We had asked the international agencies to regulate currency trading but they did not care, so we ourselves have to regulate our own currency There are signs that people are now

    losing faith in this free market system, but some countries benefit from the abuses, their people make more

    money, so they dont see why the abuses should be curbedIf the international community agrees to regulate currency trading and limit the range of currency fluctuation and enables countries to grow again, then we can

    return to the floating exchange rate system. But now we can see the damage this system has done throughout the

    world. It has destroyed the hard work of countries to cater to the interests of speculators as if their interests are so important that millions of people must suffer. This is regressive(But now) we can reduce interest rates

    without speculators devaluing our currency. Our companies can revive Apud Khor (2000). Reagindo prtica e retrica, o Morgan Stanley chegou a excluir o pas do seu ndice internacional de mercados emergentes, e o World Economic Outlook do Fundo dizia, em outubro de 1998 (p. 4): The introduction by Malaysia in early September of exchange and capital controls may also turn out to be an important setback not only to that

    countrys recovery and potentially to its future development, but also to other emerging market economies that have suffered from heightened investor fears of similar actions elsewhere.

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    O fato que o bloqueio dos recursos estrangeiros de porta-flio foi progressivamente relaxado bem antes dos 12 meses inicialmente previstos (mas com taxao proporcional ao prazo de permanncia), embora as restries conversibilidade para os residentes permanecessem. A recuperao econmica malaia foi to ou mais rpida que a dos vizinhos que optaram pelo bom comportamento institucional e pelo ajuste macroeconmico recessivo, e os fluxos de entrada de capitais aos poucos se normalizaram, ao contrrio de algumas previses. Hoje, residentes e no residentes continuam impedidos de usar a moeda local para emprstimos ou swaps externos, embora no residentes tenham recuperado o direito de repatriar recursos aplicados em aes e financiar posies locais com emprstimos externos. No obstante o relaxamento limitado das restries, os controles remanescentes vm se mostrando suficientes para assegurar a autonomia de poltica econmica pela qual foram justificados em 1998.

    No caso malaio, ento, a crise foi tambm oportunidade. No entanto, a despeito da retrica antiglobalizao do primeiro ministro, a oportunidade de reverter a integrao financeira s foi aproveitada depois de sua crise ter provocado danos o bastante, segundo essa mesma retrica. A lio do caso malaio que a reverso da integrao financeira no precisa esperar sua crise, cabendo preveni-la antes que seja tarde. Uma vez que a crise tenha ocorrido, porm, importante que a introduo dos controles seja rpida, abrangente e profunda.

    3.3 Tailndia

    O caso da Tailndia outro exemplo de imposio de controles sada em

    momento de crise de liquidez. Mas, tendo em vista a reao malaia, o caso tailands mostra os riscos de uma forma de reao crise financeira que no seja suficientemente rpida, abrangente e profunda, embora as duas experincias guardem algumas semelhanas, sobretudo no que tange ao modelo de desenvolvimento perseguido e natureza de sua crise.27

    At 1997, as duas economias rivalizavam no apenas nos resultados positivos em termos de crescimento do produto, mas tambm como exemplos extremos de uma estratgia de desenvolvimento baseada na abertura econmica. A partir dos anos 1980 e principalmente na dcada de 1990, a Tailndia atraiu grandes fluxos de IDE, construindo uma impressionante plataforma de exportao de produtos manufaturados. No campo financeiro, tambm havia no caso tailands

    (27) As referncias experincia tailandesa na literatura so bem mais escassas, at pela curta durao

    do episdio de controles. Aqui, alm das sees dedicadas ao pas em Ariyoshi et al. (2000) e Garca (2005), utilizaram-se Alba; Hernndez e Klingebiel (1999) e Edison e Reinhart (2000). Para anlises especficas da estratgia de desenvolvimento tailandesa nas dcadas de 1970 a 1990, ver Islam e Chowdhury (1997) e Bustelo et al. (2004).

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    um mercado offshore de cmbio e ttulos, e uma ampla liberdade para transaes com moeda estrangeira. Tudo de acordo com o objetivo maior de transformar a capital, Bangkok, em um centro financeiro regional, com forte apoio do FMI nesse sentido.

    No perodo de abundncia na oferta de capitais, outra semelhana com a Malsia foi o uso pontual de controles (principalmente indiretos) para moderar o influxo excessivo, atrado por alto diferencial de juros. Entre 1995 e 1996 recorreu-se principalmente a requerimento obrigatrio de 7% das contas de no residentes e dos emprstimos externos de maturidade inferior a um ano. A abrangncia desse depsito foi, inclusive, ampliada em 1996, e de fato resultados positivos parecem ter sido alcanados em termos do fluxo lquido de capitais, da maturidade dos emprstimos e da participao relativa dos passivos externos de curto e longo prazo.

    Mas os problemas da abundncia se transformaram rapidamente no seu inverso nos primeiros meses de 1997, diante da deteriorao na conta corrente e do fim do ciclo de alta nos mercados de aes e de imveis. Em maio desse ano, o baht mantido, como a maioria das moedas da regio, num regime de cmbio fixo sofreu um severo ataque especulativo, na forma de uma tomada de posies futuras contra a moeda local, em grande parte sustentada por emprstimos no sistema financeiro domstico. Buscando fugir dos efeitos negativos de uma forte elevao das taxas de juros, e contando com a cooperao de alguns dos bancos centrais da regio, comearam a ser adotadas medidas emergenciais de controle.

    O objetivo principal era cortar o canal de especulao representado pelo livre fluxo entre os diferentes mercados de cmbio. Para isso, operaes bancrias que pudessem se traduzir em especulao no mercado futuro foram proibidas e a converso em dlar de receitas com vendas de aes (fuga das aplicaes no mercado de capitais) teria que se dar no segmento onshore. Alm disso, regras mais restritivas para repatriao de investimentos e de pagamento antecipado de dvidas externas foram implementadas: as duas operaes no poderiam mais ser feitas com a moeda local. As medidas significavam o estabelecimento de um mercado dual de cmbio, isolando as transaes com divisas de natureza especulativa (que seriam submetidas a custos punitivos e perderiam o acesso ao crdito local) das ligadas ao comrcio, investimento direto estrangeiro ou mesmo aplicaes mais estveis de portflio. A estas, as restries no se aplicariam.

    Mas o fato que, apesar de um sucesso inicial em conter a especulao contra o baht, as mudanas resultaram em um crescente diferencial de preos entre as transaes nos dois mercados, tornando operaes de arbitragem extremamente vantajosas por meio de brechas nas restries impostas. Com isso, as presses contra a moeda tailandesa voltaram a se intensificar e, no incio de julho de 1997, o cmbio fixo foi abandonado. Os controles, mesmo os de sada, foram burlados pelos capitais especulativos no episdio que marcou o incio da crise asitica.

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    Naquele ano e, principalmente, em 1998, o pas enfrentou uma forte retrao econmica, com problemas disseminados no setor bancrio endividado em moeda externa. O recurso ao ajuste tradicional e ajuda do FMI levou, com fortes custos, a uma recuperao mais tardia que a malaia, com retomada do crescimento a partir de 1999.

    A principal diferena em relao Malsia parece, portanto, se referir abrangncia das medidas de controle e ao fechamento ou no do mercado offshore. O desenrolar dos acontecimentos provou que a crise, no caso tailands, no foi oportunidade para reverter a liberalizao, e o pas seguiu seu rumo de praa financeira aberta. Se a experincia tailandesa tem algo a ensinar, parece ser o fato de que, em momentos de fuga acelerada, medidas emergenciais podem ser pouco teis se no do conta da totalidade dos canais de sada de capitais identificados.

    3.4 China

    Tendo isso em vista, a China um caso parte. O relatrio do FMI j

    citado (Ariyoshi et al., 2000) considera a experincia chinesa, em conjunto com a ndia, como marcada por controles duradouros e extensivos, permitindo aos dois subcontinentes passarem relativamente inclumes pelas crises de seus vizinhos, ao restringirem influxos de curto prazo e estimularem inverses de maior prazo. De fato, os controles chineses so diretos, envolvendo regras detalhadas, administradas por um complexo de rgos de autorizao e fiscalizao de decises privadas.28 De todo modo, a excepcionalidade chinesa vai muito alm da resistncia em aceitar conselhos do FMI, antes ou depois da crise asitica. A resistncia da China em liberalizar controles de capitais emblemtica por vincular-se a uma estratgia de insero internacional que, ao contrrio do Chile e da Malsia, no rompe apenas parcialmente com o receiturio ortodoxo, mas recorre tambm a crdito orientado por bancos pblicos, taxas de juros reprimidas em nveis baixos, cmbio depreciado, protecionismo seletivo, planejamento de investimentos estatais e negociao do direcionamento do investimento direto estrangeiro (green field).29

    No surpreende que, embora no tenha ficado plenamente imune crise de 1997-1998, a China tenha sido menos atingida. Ao contrrio de grande parte de seus vizinhos, seu crescimento econmico apresentou pequena retrao e seu sistema financeiro foi pouco abalado, preservando as bases de sua estratgia de desenvolvimento. O contgio limitado da crise pode ser creditado ao fato de sua

    (28) Por exemplo, a Comisso de Desenvolvimento e Planejamento Estatal, o Banco do Povo da China,

    o Ministrio do Comrcio Exterior e da Cooperao Econmica, e a Comisso Chinesa de Regulamentao de Ttulos Financeiros.

    (29) Alm das referncias gerais mencionadas antes, ver Prasad e Wei (2005), Hu (2004), Yongding e Phil (1999).

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    conta financeira ser relativamente mais fechada, ou protegida, sem que o pas tenha experimentado boom de ativos lquidos comparvel ao de seus vizinhos ainda que no se deva esquecer, sempre em termos comparativos, o tamanho de seu mercado, seu grau limitado de abertura comercial, o volume expressivo de reservas cambiais, e a capacidade administrativa para gerenciar, fiscalizar e impor controles. A livre conversibilidade de conta corrente, por exemplo, s foi inaugurada em dezembro de 1996. Tudo isso permitiu, mesmo durante a crise asitica, que a China mantivesse o peg da sua moeda ao dlar.

    O regime de controle de capitais, orientado para minimizar a dependncia de recursos de curto prazo, est desenhado para incentivar o influxo de longo prazo, particularmente IDE. E este foi, de fato, muito expressivo na dcada de 1990, tendo a China se tornado, em anos recentes, o pas que mais atraiu recursos dessa natureza. Uma lio do caso chins que a atrao do IDE no prejudicada, para dizer o mnimo, por limites entrada de capitais e proteo legal de investidores (como lei de patentes, por exemplo), dependendo principalmente de: 1) gasto pblico de grandes propores; 2) investimentos estatais que criam demanda e superam estrangulamentos bsicos, enquanto empurram e puxam investidores externos para fora de ramos dominados por estatais; 3) poltica industrial que orienta a destinao do IDE; 4) crdito barato; 5) taxa de cmbio competitiva; 6) expectativas de um ciclo longo de crescimento sustentado.30

    De todo modo, mesmo antes de sua entrada histrica na Organizao Mundial do Comrcio, em 2001, a China vinha encaminhando um processo de abertura limitada, com reduo de tarifas de importao e relaxamento de barreiras entrada no setor de servios, inclusive financeiros, procedendo tambm consolidao de um marco legal ligeiramente mais propcio aos investidores. No que diz respeito ao IDE, a China j aboliu a maior parte das restries cambiais, e os investidores estrangeiros podem repatriar lucros, juros, dividendos e mesmo o principal. No obstante, o IDE continua a ser orientado sobretudo para ramos de exportaes dinmicas os que crescem mais rpido que o comrcio global e que geram renda, emprego e divisas, e desestimulado em ramos non-tradables, que no geram divisas. Por outro lado, o governo continua a manter controle expressivo sobre a conta financeira, seja para aplicaes de portflio de no residentes, seja para transaes financeiras, demanda ou oferta, de residentes.

    No obstante esses controles, podem-se perceber movimentos lentos e cautelosos de relaxamento das restries. A iniciativa mais significativa deu-se em 2002, com a criao da certificao QFII (Qualified Foreign Institutional Investor), que permite a aplicadores externos, selecionados e certificados pela CSRC (China Securities and Regulatory Commission), adquirirem aes

    (30) Para causas e resultados da atrao de IDE na China, ver Acioly (2005) e Hay e Shi (2005).

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    denominadas em moeda local (A shares), bem como ttulos de dvida, privados e governamentais, tambm emitidos em moeda local. No entanto, a certificao QFII exige que os aplicadores mantenham posies superiores a um ano, alm de respeitarem vrias restries prudenciais fiscalizadas pelo governo.

    Nos ltimos anos, principalmente a partir de 2003 quando se explicitam no apenas a importncia comercial e produtiva da China mas tambm o seu papel de protagonista no campo financeiro, gerando inclusive interpretaes acerca de um acordo implcito com os Estados Unidos a financiar indefinidamente os enormes desequilbrios externos da economia central31 , o pas vem convivendo com problemas de administrao de influxos de capital de curto prazo. Presses crescentes de naes desenvolvidas e rgos multilaterais por mais flexibilidade cambial incentivaram um movimento de especulao a favor da moeda chinesa, que parece conseguir contornar controles de capital e explicar parcela do ritmo de elevao das reservas internacionais (o que, por sua vez, dificulta a administrao da liquidez interna da economia). Apesar disso, o pas vem administrando as mudanas no regime cambial (iniciadas em julho de 2005) de forma bastante gradual, prudente e subordinada aos seus objetivos estratgicos de prazo mais longo, resultando em apreciao modesta e reduzida volatilidade cambial.32

    Essa cautela indica que a China no parece disposta, ao contrrio do Chile, a aceitar as presses diplomticas estadunidenses para limitar o uso soberano de controles de capitais, em acordos bilaterais ou em arenas multilaterais. A lio a retirar que controles cambiais duradouros e extensivos, tanto entrada quanto sada de capitais de curto prazo, protegem economias de amplo mercado interno, isolando-as do contgio de crises internacionais. Mas para garantir o crescimento sustentado, o espao de autonomia liberado pelos controles precisa ser aproveitado por outras iniciativas estratgicas de poltica econmica, que integrem e expandam o mercado interno sem prejudicar exportaes, e vice-versa.

    3.5 ndia

    O caso indiano marcado por controles extensivos e duradouros, tanto

    entrada como sada, com uso de controles diretos e administrativos, mais que controles indiretos ou precificados. Ao contrrio da China, esses controles no estiveram a servio de um regime de cmbio fixo, mas sim de um regime flutuante

    (31) A referncia aqui , entre outros textos dos mesmos autores, Dooley; Folkers-Landau e Garber

    (2004). (32) Prasad e Wei (2005, p. 8 e seguintes) consideram que o saldo da conta de erros e omisses do

    balano de pagamentos pode representar, pelo menos em parte (alm de problemas contbeis no clculo de ganhos patrimoniais nas reservas cambiais), influxos de capital de curto prazo que conseguiriam contornar controles; admitem, porm, que o tamanho relativamente limitado do saldo (dada a conveno de que o iuane deve se apreciar) ainda aponta para a eficcia relativa dos controles. Para a administrao recente do regime cambial chins, ver Cunha; Biancareli e Prates (2006).

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    administrado que limitou volatilidade do cmbio nominal mas depreciou sistematicamente o cmbio real para melhorar competitividade a partir de 1995. Como na China, e ao contrrio do Chile, esses controles se articularam a uma forma de gesto da economia que tambm no aceitou inteiramente as propostas do chamado Consenso de Washington.33

    verdade, porm, que a economia indiana passou por uma mudana importante na dcada de 1990, no sentido de uma maior liberalizao. Entre 1990 e meados de 1991, a ndia enfrentou grande crise no seu balano de pagamentos e, para no entrar em default de suas obrigaes externas, recorreu ao FMI. Como parte do acordo com essa instituio, o pas foi chamado a executar programa de ajuste, implicando desvalorizao da moeda em 20%, compresso das importaes, arrocho fiscal e monetrio, e uma prescrio para executar reformas estruturais visando a uma maior liberalizao da economia: mudanas na poltica industrial, no regime de comrcio, no papel do setor pblico, e na arquitetura do sistema financeiro domstico.

    Essa abertura da economia, que tem incio em julho de 1991, pode ser lida como resposta mencionada crise externa. At ento, a rpia no era conversvel em conta corrente, as tarifas de importao estavam entre as maiores do mundo, e os influxos de capital eram, basicamente, emprstimos oficiais. Aplicaes de portflio no eram permitidas, e mesmo o IDE era visto com suspeita, sujeito a um regime de anlise e aprovao caso a caso.

    No que tange liberalizao do balano de pagamentos, a conversibilidade comercial foi o primeiro passo. Mas a conversibilidade da conta corrente, ocorrida em 1994, permaneceu limitada, com o Banco Central mantendo papel-chave no mercado de cmbio. A liberalizao da conta financeira foi ainda mais prudente. O gradualismo parece ter sido influenciado pela percepo de que a crise externa de 1991 foi acentuada pela dificuldade de rolar as dvidas de curto prazo, e pela fuga de capitais sob a forma de retirada de depsitos efetuada por indianos no residentes no pas. Tal cautela explica, em boa parte, o fato de ter a ndia atravessado bem o turbulento ano de 1997, reforando a percepo de que os controles deveriam ser removidos lentamente.34

    O processo de liberalizao financeira procurou distinguir investimento direto externo e investimento de portflio. A liberalizao do regime de IDE teve incio em julho de 1991, mas foram mantidos controles diversos. Fluxos de IDE

    (33) As referncias especficas sobre os controles de capital e poltica cambial na ndia so Shah e

    Patnaik (2005), Gupta e Sathye (2004), Acioly (2004), Rajaraman (2003), e Khanna (2002). Sobre a via indiana de reformas liberais, Ahluwalia (2005), Cruz (2005) e Boillot (2006).

    (34) O Tarapore Committee, estabelecido pelo Banco Central da ndia em 1997, recomendou uma liberalizao gradual da conta de capital da ndia, e determinou que quatro condies deveriam ser atingidas para que se pudesse chegar conversibilidade plena: volume de reservas cobrindo seis meses de importaes, inflao entre 3% e 6%, razo entre dficit fiscal e PNB menor que 3,5%; enfim, os Non Performing Assets do sistema bancrio no deveriam representar mais que 5% do total de ativos.

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    que respeitassem o limite mnimo de 51% de equity em 48 ramos (sobretudo manufatureiros) receberiam aprovao automtica, sendo realizado apenas um procedimento de registro no Banco Central. Outras propostas seriam avaliadas por um conselho para promoo de investimentos estrangeiros (Foreign Investment Promotion Board). Ao longo do tempo, os limites mnimos e mximos de participao estrangeira nos diversos ramos foram sendo alterados. Em 2004, os nicos ramos significativos onde se admitia total controle estrangeiro eram explorao de petrleo, portos e aeroportos, rodovias e alguns servios de Internet, mas se exigia um piso mnimo de inverso entre 51% e 74%. A participao estrangeira continua inteiramente vedada na agricultura, varejo e construo imobiliria. Se entendermos que o papel que o IDE exerce num pas reflete, em parte, sua estratgia de desenvolvimento, evidente que a ndia procurou, atravs de regulamentao rigorosa, inibir o componente patrimonial e especulativo do IDE, e orient-lo para ramos prioritrios, sobretudo servios (Acioly, 2004). Para tanto, como na China, montou-se regime de controle e induo de investimentos diretos, construindo uma estrutura legal e institucional sintonizada com os objetivos de promoo do crescimento e reduo da vulnerabilidade externa. Para dizer o mnimo, tais limites ao IDE no impediram que a formao bruta de capital fixo na ndia oscilasse entre 22,6% e 26,9% nos ltimos quinze anos, e que o saldo de transaes correntes passasse de dficit de 3% do PIB no incio da dcada de 1990 para supervit de 1,7% em 2003-2004, enquanto o PIB crescia a uma taxa mdia de 5,7%.35

    A liberalizao controlada da conta financeira, iniciada com o IDE em 1991, foi estendida para o investimento de portflio a partir de setembro de 1992. Investidores Institucionais Estrangeiros (IIEs) foram autorizados a investir no mercado de capitais domstico, mas sujeitos a controles diretos. Era permitido que investissem no mercado secundrio de aes, mas com restries quanto ao limite de participao nas empresas. Tambm foi permitido a tais investidores entrar no mercado primrio, mas novamente foram impostos controles administrativos, como aprovao prvia e limite de participao, relaxados lentamente.

    Por sua vez, mantiveram-se limites rgidos para emprstimos bancrios e ttulos de dvida privados. Na maioria dos ramos, dbitos privados so submetidos aprovao caso a caso pelo governo, em que a deciso depende de quantia, prazo e finalidade. No incio de cada ano, o governo decide o teto mximo para aprovaes. Dvidas de curto prazo so sujeitas a srias restries. Em 1996-1997, porm, permitiu-se aos IIEs a compra de ttulos pblicos, ajudando a financiar

    (35) Cabe notar que a liberalizao moderada da conta financeira foi acompanhada por liberalizao

    limitada do sistema bancrio: em 2002, sem privatizaes, o Estado controlava 80% dos ativos dos bancos, preservando o percentual de 40% do crdito compulsoriamente canalizado para ramos prioritrios: Cruz (2005), p. 35. Desde 2004, o IDE em bancos pode chegar a 74% do capital, mas com direito de voto limitado a 10% por bloco de acionistas (Boillot, 2006, p. 79).

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    dficit pblico que oscilou entre 6%-10% do PIB nos ltimos dez anos. Esse tipo de investidor tem permisso para repatriar o principal, ganhos de capital, dividendos, juros e qualquer outra receita oriunda da venda de tais ativos financeiros, sem nenhuma restrio, taxa de cmbio do mercado. O imposto sobre os dividendos de investimentos de portflio para IIEs de 20%, o que bem mais baixo do que o imposto cobrado sobre as empresas nacionais e filiais estrangeiras.

    Significativamente, essas iniciativas influenciaram a composio e o volume das entradas de capital de longo prazo. A ndia atraiu significativamente menos IDE do que a China, em parte pela existncia de fortes restries concorrncia com empresas nacionais em vrios ramos, em parte porque o IDE destinado ao pas concentra-se em ramos pouco intensivos em capital (como na indstria de softwares e eletrnicos, servios de telecomunicaes e outros servios).36 Por sua vez, os limites ao endividamento externo privado reduziram os fluxos brutos de dvida privada de 13,5% para 10,6% do PIB entre 1992 e 2004, enquanto os fluxos lquidos praticamente estagnaram em torno de 1% do PIB no perodo. O estoque de dvida externa/PIB caiu de 38,8% em 1991 para 20% em 2002. Por outro lado, influxos de portflio animaram o mercado acionrio, apoiando abertura de capital e/ou criao de novas empresas controladas nacionalmente, mas com acionistas minoritrios estrangeiros. Hoje, investidores estrangeiros respondem por cerca de 11% do giro do mercado acionrio. Desse modo, os influxos brutos de portflio alcanaram mais que o triplo do IDE recentemente, tendo partido de valores insignificantes em 1992 para representar 7% do PIB em 2003-2004 (Shah; Patnaik, 2005).

    A conversibilidade para todos os tipos de depsito para indianos no residentes foi introduzida em 2002. Em janeiro de 2004, o Banco Central permitiu a conversibilidade para residentes, mas imps um limite mximo anual para a sada de recursos: apenas US$ 25.000. Para alguns observadores, tal deciso talvez marque o incio do processo de liberalizao mais amplo, em direo plena conversibilidade (Gupta; Sathye, 2004).37

    Isso posto, podemos afirmar que ainda que os movimentos mais recentes sinalizem na direo de maior abertura da conta financeira, a estabilidade externa

    (36) No entanto, problemas contbeis subestimam o IDE na ndia e o superestimam na China. Estimativa

    dos dados corrigidos aponta diferena relativa pequena ao PIB para 2000-2001: 1,7% do PIB na ndia e 2% na China. A relevncia da diferena ainda menor se considerarmos que parte significativa do IDE na ndia pouco intensiva em capital e procura aproveitar a qualificao dos trabalhadores em servios especializados, em torno a clusters apoiados pelo Estado desde a dcada de 1980. A ndia liderou o crescimento internacional nas exportaes de servios na ltima dcada e, em 2004, exportou servios no valor de US$ 20 bilhes, ou um tero das exportaes de bens (Boillot, 2006, p. 84-87).

    (37) Em maro de 2006, de fato, o presidente da Comisso de Planejamento, Montek Singh Ahluwalia, afirmou que o montante das reservas cambiais permite que o pas planeje eliminar as restries conversibilidade (ndia..., 2006).

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    experimentada pela ndia desde 1990 at o presente, incluindo-se a o fato de a ndia no ter sido vtima de contgio na crise de 1997-1998, deve-se ao seu gradual processo de liberalizao, sujeito a reavaliaes freqentes.38

    Consideraes finais

    Levando em conta as dimenses (terica versus prtica, nacional versus

    internacional, estrutural versus conjuntural) presentes no debate sobre controle de capitais, apresentemos algumas consideraes ensejadas pelas circunstncias atuais da economia brasileira.

    A primeira a constatao de que a gesto da poltica econmica no governo Lula pareceu passar ao largo da reflexo atual sobre a abertura financeira, e sua relao com as condies macroeconmicas para crescimento sustentado em nveis elevados. Enquanto, no mainstream acadmico e financeiro internacional, vrias vozes influentes reconhecem os danos da liberalizao total e defendem o uso de instrumentos de controle, procurou-se aumentar a conversibilidade de curto prazo do real com um conjunto coerente de iniciativas: unificao dos mercados de cmbio livre e flutuante; extino das Contas de No Residentes (CC-5), ampliando as possibilidades de remessa de divisas ao exterior; a Medida Provisria 281, convertida na Lei n. 11.312 de 27 de junho de 2006, que isenta de IR e CPMF investidores estrangeiros que adquirem ttulos da dvida pblica interna; e, mais recentemente, a flexibilizao da cobertura cambial s exportaes, com a ampliao dos prazos de reteno de dlares no exterior pelos exportadores (Prates, 2006). Enquanto isso, a retrica liberal no Brasil ainda lana mo dos velhos argumentos de eficincia dos mercados e ineficcia das tentativas de regulao, embora alguns autores identificados com a ortodoxia admitam a pertinncia de controles.39

    Por outro lado, no falta, dentre os economistas crticos da poltica liberalizante, conscincia da necessidade da imposio de controles e, mais que isso, capacidade de traduzi-la em proposies concretas sujeitas s especificidades

    (38) Essa liberalizao, ainda que gradual, j manifesta problemas: aumentou o passivo de curto prazo

    no incio de 2004, por volta de um tero das reservas externas era composto de recursos de curto prazo e dificultou mais o processo de tornar a taxa de cmbio competitiva (Gupta; Sathye, 2004).

    (39) Eliana Cardoso apresenta de forma muito clara a opinio liberal em coluna no Valor Econmico de 17 de maro de 2005: Se no funcionam, no h por que traz-los de volta. Um contraponto de Afonso Celso Pastore, que defendeu o uso do Imposto sobre Operaes Financeiras (IOF) para desestimular o influxo de capitais de curto prazo: Acho que eu tenho uma tradio de luta contra a heterodoxia em mais de 40 anos de profisso que me autoriza perfeitamente a defender um IOF no ingresso de capital, num momento em que esse fluxo de curto prazo est gerando uma distoro e menos eficcia na poltica monetria, sem que ningum me acuse de ser um adesista viso burra da esquerda de que controle do movimento de capitais produz uma poltica monetria mais eficaz. (Pastore..., 2005). Sobre a insuficincia do IOF para afetar os movimentos atuais no cmbio brasileiro mais ligado s operaes nos mercados de derivativos, que prescindem de uma volumosa entrada fsica de divisas, operando atravs dos depsitos de margens e garantias bancrias , ver Farhi (2005).

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    do momento. Mas a experincia internacional ilustra que controles de capitais s so efetivos quando complementados por outras iniciativas de fomento ao desenvolvimento econmico, particularmente em pases que no abrigam centros de servios financeiros e mercados de capitais internacionais, so incapazes de se endividar internacionalmente em sua prpria moeda e, tendo poucos meios de controlar instabilidades financeiras internacionais, devem proteger-se delas de antemo. De fato, como mencionamos, pases que seguem um modelo orientado de investimentos produtivos, complementado por regulao do crdito e controle de capitais, vm apresentando historicamente maiores taxas de crescimento e menor vulnerabilidade financeira e cambial que pases latino-americanos, adeptos precoces ou tardios do Consenso de Washington e do regime de contas financeiras liberalizadas.40

    Alm disso, anlises da experincia internacional mostram que: (1) controles de entrada tendem a alongar prazos de passivos, evitar

    apreciao cambial e preservar maior autonomia de poltica macroeconmica em momentos de abundncia de liquidez internacional, mas precisam ser complementados por controles de sada, para limitar ataques especulativos em momentos de crise de liquidez e fuga para qualidade;

    (2) em geral, o momento da aplicao dos controles importante para determinar o tipo de controle a ser usado. melhor no esperar pela crise financeira antes de implementar controles, mas sua imposio deve ser rpida, abrangente e profunda uma vez que uma crise ocorra;

    (3) o controle do movimento de capitais de curto prazo no inibe a oferta de capitais de maior prazo. Pelo contrrio, pode estimular sua atrao, desde que permita que o horizonte do investidor seja balizado, a longo termo, por expectativas de crdito barato e cmbio competitivo, e por mecanismos de controle da dvida pblica que no deprimam o gasto pblico, nem prejudiquem o planejamento de investimentos em infra-estrutura.

    Em suma, entendemos que controles de capitais so necessrios para aumentar os graus de autonomia da poltica econmica local, mas no so suficientes para assegurar que esse espao de autonomia seja aproveitado para estimular o crescimento econmico sustentado. Para isso, preciso que os controles complementem estratgias de desenvolvimento, lideradas por coalizes polticas estveis, que combinem aumento dos investimentos em capital fixo, integrao do mercado interno e incentivo s exportaes.

    Concluamos com a qualificao de que nossa preocupao aqui era mais a de tecer relaes entre processos de liberalizao financeira e condies de sustentao de elevados nveis de crescimento econmico, e menos a de relacionar abertura financeira e perfis de desenvolvimento mais ou menos equilibrados

    (40) Cf. Dooley; Folkers-Landau e Garber (2004) e Silva (2004).

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    socialmente. A respeito, evidncias internacionais indicam que a liberalizao do movimento de capitais de curto prazo tende a piorar a distribuio de renda, em razo de efeitos sobre (1) ritmo e composio dos investimentos induzidos ao longo do ciclo econmico, (2) ritmo de crescimento, perfil e remunerao de empregos gerados, (3) prticas de governana corporativa que, diante de opes lquidas de aplicao financeira e arbitragem internacional, podem valorizar lucros e dividendos imediatos em prejuzo de investimentos de longo prazo, (4) impacto de crises econmicas em emprego e salrios, (5) aumento do poder de veto de fugas de capital contra polticas tributrias ou outras de carter distributivo, (6) esterilizao de impostos por meio de taxas de juros mais elevadas sobre a dvida pblica, canalizando recursos pblicos crescentes para elites rentistas.41 Consideramos esse um tema crucial para novos pesquisadores.

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    (41) Keynes j arrolara alguns desses efeitos distributivos luz da experincia dos anos 1920 e 1930:

    ver, em especial, Helleiner (1994) e Pollin (2000). Sobre o debate recente, ver Artus e Virard (2005), Cobham (2001), Das e Mohaprata (2001), Dumnil e Lvy (2004) e (2005), Epstein e Jayadev (2005), Epstein e Power (2003), Fitzgerald (1998), Harrison; Aisbett e Zwane (2005), Hoeven e Lubker (2006), e Lee e Jayadev (2005). Sobre o papel da dvida pblica na produo de desigualdade, o caso brasileiro avaliado por Silva (2005) e Vernengo (2005).

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