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Convivencias #4

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Convivências é uma publicação semestral da Casa Tomada que aborda o processo do programa de residência artística da Casa - Ateliê Aberto- e conta com textos sobre os participantes, imagens dos processos, depoimentos dos visitantes que os projetos receberam, além dos trabalhos produzidos pelos pesquisadores do Ateliê Aberto

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Page 3: Convivencias #4

editorialPensar o programa de residência Ateliê Aberto #4 em parceria com o SESC e a Associação

Cultural Videobrasil foi também uma oportunidade para compreendermos como se dariam

as trocas e relações entre essas instituições e a Casa Tomada. O programa foi repensado

em conjunto para atender às necessidades da parceria e desenvolvido lado a lado durante

o último ano, entre convocatória, seleção, residência e finalizações. Se o tema tratado nas

residências é o convívio, desta vez não foi diferente. E o convívio ultrapassou as paredes

da Casa e o dia-a-dia dos residentes para se estabelecer dentro do contexto do 17º Festival

Internacional de Arte Contemporânea SESC_Videobrasil.

Foram selecionados quatro artistas, com projetos específicos a serem desenvolvidos e

apresentados posteriormente dentro da exposição Panoramas do Sul no 17º Festival. Duas

pesquisadoras também foram selecionadas não com projetos pré-determinados,

mas com a ideia de que os trabalhos surgiriam a partir da convivência. Ao longo de quatro

meses os seis residentes dividiram o mesmo espaço de trabalho e receberam visitas

constantes de Ana Maria Tavares, Bernardo Mosqueira, Marcos Moraes e Ronaldo Entler,

que acompanharam os trabalhos em desenvolvimento.

A base do programa de residência da Casa Tomada é a convivência e o estar junto

durante os processos para que as trocas se dêem diretamente entre os participantes.

Este encontro acontece no dia-a-dia e se estabelece das mais variadas formas. No observar

o trabalho do outro, nas discussões, nos cafés com bolo, nos embates, nas discordâncias

e até mesmo no silêncio o encontro se dá. Aqui o processo é tão importante quanto a obra

concluída e acompanhar o desenvolvimento e transformação dos trabalhos é estar aberto

para o encontro.

Comemorando as parcerias que se estabeleceram ao longo dos quatro meses de

convívio e apontando para a diversidade dos processos de trabalho durante a residência,

Convivências #4 é o resultado das pesquisas desenvolvidas por Ana Luisa Lima e Galciani

Neves dentro da 4ª edição do programa Ateliê Aberto da Casa Tomada.

Tainá Azeredo e Thereza Farkas

Page 4: Convivencias #4

residentesCarolina Caliento

nasceu em 1982, reside e trabalha

em São Paulo. Graduada em

Artes Plásticas pela USP em 2007,

atualmente desenvolve pesquisa em

pintura e colagem, com referência em

imagens reproduzidas nos meios de

comunicação de massa. Participou

da residência Rapaces - Instituto

Espira La Espora, Nicarágua, 2009 e

do coletivo Anarcademia, proposto

por Dora Longo Bahia, e realizado

na XXVIII Bienal de São Paulo. Expôs

no Museo de Arte de El Salvador, no

CCSP e no Salão de Arte do Grande

ABC. Integrante do Grupo Hóspede,

desde 2005, entre os trabalhos

desenvolvidos, destacam-se:

residência ‘Laboratório Hotel’,

Largo da Batata-São Paulo, 2007, e

exposições ‘Associados S/A’, CCSP e

Plano de Reconversão de Logradouros

Culturais-Pinneaple Luxury Complex

,Paço das Artes, 2009.

ana luisa lima é

pesquisadora independente e

crítica de arte. Graduada em

Licenciatura em Artes Plásticas

pela UFPE; crítica de arte do

espaço expositivo Sala Recife (PE);

editora da revista Tatuí (PE) desde

2006 e membro do Centro de

estudos – DESFORMAS, ECA-USP.

Foi curadora I Salão Universitário

de Arte Contemporânea – UNICO |

SESC-PE |. Participou de residências

como Prêmio Interações Florestais

2010 e V::E::R 2011 Encontro de

Arte Viva | Terra UNA | Liberdade-

MG; selecionada para residência

Projeto Gestores | Capacete

Entretenimentos | SP e RJ. Escreveu

em catálogos e exposições de

Elida Tessler, Marcelo Solá, Paulo

Whitaker, Stéphane Pauvret e

Christine Laquet; e revistcomo

DASartes (RJ), ReviSPA 2009 e 2010

(PE), SANTA Art Magazine (RJ).

galCiani neves é

graduada em Comunicação Social,

Universidade Federal do Ceará.

Mestre em Comunicação e semiótica

(PUC-SP), com tema sobre os

procedimentos criativos do livro de

artista. Atualmente cursa Doutorado,

realizando uma pesquisa sobre

entrevistas, depoimentos e escritos

de artistas, como subsídios para a

crítica de arte. É professora no Curso

de Comunicação e Multimeios na

PUC – SP, e na FMU. Faz parte do

conselho curatorial da Intermeios

(Casa de Artes e Livros) Desenvolve

atividades relacionadas à crítica de

arte, produção de conteúdos e relatos

na Fundação Bienal de São Paulo e no

Instituto Itaú Cultural.

Page 5: Convivencias #4

guilherme Peters

nascido em 1987 em São Paulo,

começou a estudar artes em 2004

com aulas de pintura com a artista

plástica Rachel Almeida Magalhães,

e com o a artista plástico Dudi

Maia Rosa. Em julho de 2010

se formou bacharel em artes

plásticas pela Fundação Armando

Álvares Penteado, orientado pela

artista plástica Dora Longo Bahia.

Participou de exposições como

“40ª Anual de Arte FAAP”, de duas

edições da amostra de performance

“Verbo” realizada na Galeria

Vermelho, da exposição “À Sombra

do Futuro” realizada no Instituto

Cervantes, foi um dos finalistas ao

Prêmio EDP nas artes em 2010 e

participou da publicação Caderno

SESC Vídeobrasil em 2010.

Paulo nimer PJota

nasceu em 1988, vive e trabalha em

São Paulo. Formado em Artes Visuais

pelo Centro Universitario Belas

Artes-SP. Desenvolve trabalhos que

transitam entre desenho, pintura

e instalação. Aborda a qualidade

gráfica e pictórica urbana junto a um

imaginário figurativo que percorre

da história da arte ao cotidiano.

Entre suas exposições estão: Transfer-

Pavilhão das Cultura Brasileiras

(São Paulo-2010); Paperview–

John Jones Limited Project

Space (Londres-2009); Human

Piramids–Ghetto Gloss Gallery (Los

Angeles-2009); Voluvel- MAC Paraná

(Curitiba- 2008); Ilegitimo–Paço

das Artes (São Paulo 2008); Em 2007

recebeu premiação nos salões de

Piracicaba e São José do Rio Preto,

em 2009 fez sua primeira exposição

individual na galeria californiana

Anno Domini.

regina Parra nascida

em 1981, vive e trabalha em São

Paulo. Integrou o grupo 2000e8

e foi selecionada para alguns dos

principais programas para jovens

artistas, como a Temporada de

Projetos - Paço das Artes, em 2009,

e o Programa de Exposições do

Centro Cultural São Paulo – onde

apresenta um trabalho inédito

em vídeo. Realizou exposições

individuais no Project Room - Galeria

Leme-SP, e na Fundação Joaquim

Nabuco- Recife. Entre as coletivas,

destacam-se A Carta da Jamaica,

Oi Futuro - Rio de Janeiro; Rice and

Beans -Miami; À Sombra do Futuro,

Instituto Cervantes; Paralela 2010; e

2000e8 - SESC Pinheiros. Graduada

em Artes Plásticas pela FAAP, cursa

o mestrado em Artes Visuais da

Faculdade Santa Marcelina. Estudou

também na École des Beaux Arts -

Paris, e na Escola de Artes Visuais do

Parque Lage - Rio de Janeiro.

Page 6: Convivencias #4

Não há afeto, coisa ou representação que não se dê ao longo

do tempo. Ao avançarem, seguem reinventando-se, aciden-

tando-se em acasos, colecionando camadas, construindo-se

e contaminando-se na linguagem – a sua morada.

O tempo da criação (ou leia-se mudança) é o gerúndio. E

mudança não é a simples sucessão de movimentos, um

após o outro, ordenada e previsivelmente, para que se pos-

sa adiante narrar o retrospecto; mas a passagem entre um e

outro e o entrelaçamento de todos seus intervalos. O olho

tende a fixar, a tornar a passagem novamente uma posição,

e logo depois, uma série delas, preferindo lidar com a defi-

nição do momento, estancando o movente, impondo-lhe

pausas e um ponto final.

o tempo como presençanotas sobre “sujeitos em ação e autorias se constituindo”*

por galciani neves

* Para Cecilia Almeida Salles, esse é um movimento de transformação e de construção de uma obra de arte.

“(...) há mais, e não menos, na possibilidade de cada

um dos estados sucessivos do que em sua realidade”

(Henri Bergson, La pensée et le mouvant, 1903-1923).

“Texto quer dizer Tecido; mas enquanto até aqui esse tecido foi sempre tomado

por um produto, por um véu acabado, por detrás do qual se mantém, mais ou menos oculto, o sentido

(a verdade), nós acentuamos agora, no tecido, a ideia gerativa de que o texto se faz, se trabalha

através de um entrelaçamento perpétuo; perdido nesse tecido – nessa textura – o sujeito desfaz-se,

qual uma aranha que se dissolvesse ela mesma nas secreções construtivas da sua teia”

(Roland Barthes, O prazer do texto, 1973).

Page 7: Convivencias #4

Bachelard (A poética do Espaço, 1978) nos diz que na presença

da imagem, da obra, do projeto, que sonha, que se move,

que não está, mas segue sendo, é preciso também deixar-

-se ir na sua correnteza, prosseguir no devaneio que o cria.

Pois bem, diante do movimento de construção, da gênese,

dos gestos criadores, pode dar-se conta que o que se retém é

escapável, já que está em expansão, em mobilidade, em ple-

no trajeto de mutabilidade. Mas ao mesmo tempo, é possível

resgatar algo que lhe é próprio, que o diferencia na história.

Um “ateliê aberto” é um convite a um olhar, que não ousa

pousar, pois o terreno é movediço. É uma escolha por confor-

mar-se no que não se conforma: na infreável mobilidade das

poéticas no tempo. É o artista fazendo sua trama e o crítico

flagrando o que a sorte permite: “procedimentos cognitivos

responsáveis pelo desenvolvimento do pensamento, que

está sendo abordado em seu aspecto relacional” (Cecilia Sal-

les, Redes da criação: construção da obra de arte,2006).

Dessa maneira, a experiência de “interação humana criadora”

(Martin Buber, Do diálogo ao dialógico, 1982), na qual os parti-

cipantes revelam-se e alargam o conhecimento do mundo e

deles próprios, se transforma em diálogo, em encontro. Nisso

se prolonga o contato com as singularidades de cada percur-

so, sem avaliá-las, mas antes a fim de construir pensamentos

de viés processual, que não planarizam a obra, nem descar-

tam a sua moldura de “entregue ao público”, mas admitem

seu movimento constitutivo, que dela é indissociável.

Tentar fitar esses movimentos é uma das possibilidades de

aproximação a desejos, intenções, planos, que integram

projetos artísticos. “Estar presente” nesse “estar sendo” é

admitir que os objetos não são estanques, isolados, inde-

Page 8: Convivencias #4

pendentes. Acompanhar esses objetos em construção é

uma chance de vislumbrar um jogo de interações, ramifi-

cando-se e prolongando-se, é deixar-se aos poucos conta-

minar por suas dilatações e permitir aderências ao próprio

pensamento, que se reformula.

Há, sim, outras maneiras de embate, de formular em outra

linguagem o que o artista já nos propõe como potência –

um dos instantes possíveis de todo seu percurso. Mas o que

fazer, se ao alcance das mãos, há possibilidades de estreita-

mento de um estar junto artista-crítico? E se nesse “estar”

pode se dar uma linguagem outra, construída a várias mãos?

Somos sujeitos em apreensão do mundo, coletando e sele-

cionando o que nos afeta, o que nos constitui ao longo do

tempo. E de novo Bergson: somos “a flecha que voa. (...) O

curso da flecha é precisamente essa extensão, tão simples

quanto ela, indiviso como ela”. E é também ao longo des-

se tempo que nos vinculamos, que tecemos pactos, que

nos dispomos a encontros, que nos aproximem ou que nos

ponham em tensão, através da arte, ávidos pela troca, por

apontar e defender.

A tarefa proposta a esse tempo é uma construção que se ide-

aliza como não-homogeneizante, palavras pretensamente

“polifônicas” a tender superar uma condição (apenas) julga-

dora da crítica, conscientes de que não são a “única verdade”,

para citar Bakhtin (Problemas da Poética de Dostoiévski, 1929),

mas exercício perceptivo de autorias tecendo sua trama,

atando nós e percebendo-se ao longo do tempo.

Page 9: Convivencias #4

“Ética não é a vida que simplesmente se submete à lei moral, mas a

que aceita, irrevogavelmente e sem reservas, pôr-se em jogo nos

seus gestos. Mesmo correndo o risco de que, dessa maneira, venham a

ser decididas, de uma vez por todas, a sua felicidade e a sua infelicidade.”

(Agamben, em O Autor como Gesto)

Recebeu um convite para participar de uma

residência artística como pesquisadora e

pelo fato de lhe deixarem claro que não

estaria ali para acompanhar e dar conta de

entender, apontar ou mesmo diagnosticar

a produção daqueles artistas que seriam

seus companheiros de jornada, lhe pareceu

uma ótima oportunidade de respiro. Talvez,

localizar melhor o que vinha fazendo nos úl-

timos quase cinco anos como crítica de arte

e editora de uma revista também de crítica.

Não só isso, mas esse lugar de quem “acom-

panha” o processo criativo do artista não lhe

parecia muito generoso. Não por não achar

instigante ser testemunha da concepção e

gestação de uma obra, mas pelo desconfor-

to de nunca ter entendido ao certo os ter-

mos dessa convivência (artista-crítico) que,

desapercebidamente, poderia passar de

dialógica a autoritária.

A AusênciA como gestopor AnA luisA limA

Page 10: Convivencias #4

Os processos criativos, sempre teve consci-

ência, tinham caminhos muito diversos de

artista para artista. Sabia que eram infinitos

os modos processuais de criatividade. Por

exemplo, uns trabalhariam intuitivamente

a partir de configurações de imagens, sem

saber ao certo quais significados exatamen-

te teriam; outros, de temas que os levariam

a encontrar a forma ao final; outros, ain-

da, procurariam pensar forma e conteúdo

imbricadamente. Nesse sentido, lhe era

imprescindível guardar certa distância no

diálogo. Sob pena de interferir muito brus-

camente nessa construção daquele artista e

pela famigerada necessidade de “entender”

processos que não necessariamente preci-

sam de entendimento.

Assim, estabelecer termos de um possível

diálogo igualitário para formas de criação

tão distintas lhe parecia, já de início, um

lugar de atuação equivocado. Certa vez,

me disse: “creio que as formas de residên-

cias que impõem modos de agir, cooptam

as formas também do criar. Pôr em contato,

não de forma dialógica, com outros profis-

sionais que vão acompanhar, questionar,

até mesmo julgar os trabalhos que ainda

estão sendo feitos podem descambar em

relações de hierarquias, ao meu ver, pouco

proveitosas no processo de criação. Porque

no lugar de horizontalmente se criar diálo-

gos, hierarquicamente criam-se expecta-

tivas. Neste último, cabe ao artista muito

mais a posição de se justificar ou defender

o seu trabalho, do que se deixar mover no

mar de possibilidades de uma conversa es-

tabelecida a partir de um elo de cumplicida-

de criado pelo diariamente”.

Page 11: Convivencias #4

Ainda trazia sobre si um questionamen-

to muito cuidadoso que era o de saber em

que termos estaria atuando a crítica de arte,

pelo menos por aqui. E dizia que crítica de

arte no Brasil passava por um momento

bastante opaco. Não se podia saber ao cer-

to se os textos sobre arte que líamos por aí

(em revistas, catálogos, sites especializados,

etc) poderiam ser tidos como críticas de arte

na dimensão que se tinha antes. Era possí-

vel perceber que a escrita sobre arte esta-

va sendo ativada mais por uma demanda

institucional-mercadológica, menos por um

exercício crítico independente. Não queria

dizer absolutamente que a demanda institu-

cional e de mercado em si configurasse um

mal, mas de reconhecer que aquele tipo de

escrita, quase sempre, a priori, alterava a rota

dessa escrita e ia cumprir outra função que

não tanto de pensamento reflexivo sobre o

trabalho de arte, mas de afirmação (porque

vinha de uma demanda de legitimação) de

procedimentos, discursos e visualidades. E

isso interessava a quem? Questionava-se.

Partia de um pressuposto muito simples de

que a obra de arte carrega certa autonomia

do artista, e que ficar em busca de índices,

vestígios, respostas lineares do que se dá no

antes para agregar valores na obra-resultado

poderia implicar na construção de uma obra

engessada. Acreditava que toda obra é algo

novo no mundo (ainda que não fosse abso-

lutamente nova em suas referências estéti-

cas, políticas, sociais...). E sendo coisa nova

era preciso que esta tivesse tempo de nas-

cer, respirar, conviver com seu entorno para

que se fosse possível ver que diálogos traria.

Page 12: Convivencias #4

Entendia que era papel do crítico conceder

esse respiro, esse fulgor da obra, que Mario

Pedrosa chamou, nos anos 1960, de revolu-

ção. Todo artista está fazendo sua revolu-

ção, dizia ele. E ao crítico caberia articular

todas essas revoluções dentro de algo maior

que são os contextos (estéticos, políticos,

sociais...). Assim, não acreditava na potência

de uma crítica a priori, que não considerava

a autonomia da obra de arte. Para ela, era

instigante acompanhar a concepção e ges-

tação, mas o que lhe interessava de verdade

era o nascimento. Ver a obra como rebento

e esperar para ver como se comportaria.

Assim que chegou na residência se propôs

pensar acerca de questões que lhe leva-

riam a refletir sobre o seu trabalho tanto do

ponto de vista de seus conteúdos, quanto

como posicionamento político. Ora, mesmo

que o modo empresarial tivesse engolfado

praticamente todas as relações, do afeto ao

trabalho, ainda se via na luta de imaginar

que sua escrita deveria se dar numa instân-

cia política, de uma função social, do que

se deixar entender numa engrenagem sis-

têmica, homogenizante das falas, dos pen-

samentos e demais modos de. Não sabia se

persistia nisso por ingenuidade ou preten-

são. Os dois, talvez.

Page 13: Convivencias #4

Como elaborar uma pesquisa

em crítica de arte?

Casa Tomada | Ateliê #4 | 22.04.11

> Algumas considerações:

Quais relações possíveis entre

arte e público:

. o texto é uma interface?

. o texto é uma construção ficcional?

. o texto como elaboração de (novos)

significados?

. o texto como ‘condutor’ da

experiência estética?

. o texto precisaria ser nexo causal

entre artista e público?

. o texto precisa ser escrito?

. quais as formas possíveis

de um ‘texto’ crítico?

. o ‘texto’ crítico como experiência estética?

A partir dessas questões criou um programa

metodológico que a pudesse auxiliar nes-

sa tentativa de entender um possível lugar

da crítica de arte que fosse de fato propo-

sitivo, rearticulador de significados, e não

cumpridor de uma funcionalidade ideológi-

ca (nem tão velada) distante de si mesmo.

Sua necessidade de exercício crítico, ainda

vinha antes de uma demanda profissional-

-mercadológica. Não à toa estava naquele

momento interessada em investigar outros

dispositivos críticos, que não o textual-es-

crito, engendrados por Frederico Morais e

Wilson Coutinho há pelo menos 5 décadas.

Exposições e peças audiovisuais que cum-

priam a função de crítica de arte.

Page 14: Convivencias #4

EXPERIMENTOS EM CRÍTICA DE ARTE

. das investigações sensoriais.

PROGRAMA

Fase.1

Semana.1

. da captação do áudio.

passar a semana de 2 a 6 de maio

percebendo as construções criativas

apenas pelo que for possível captar com

gravador digital.

Semana.2

. da captação de imagem (estática).

passar a semana de 9 a 13 de maio

percebendo as construções criativas

apenas pelo que for possível captar

com câmeras fotográficas.

Semana.3

. da mediação através da escrita.

passar a semana de 18 a 22 de maio

percebendo as construções criativas

apenas com o que for possível registrar

através de textos escritos. Notas,

simulações de diálogos, crônicas, etc.

Semana.4

. da captação de audiovisual.

passar a semana de 25 a 29 de maio

percebendo as construções criativas

apenas com o que for possível captar

através da camêra.

Semana.5

. da percepção olfativa e do tato.

passar a semana de 30 de maio a 3 de junho

percebendo as construções criativas apenas

o que for possível através do olfato e do tato.

Fase.2

. análise do material produzido.

.tentativas de aproximação e diferenciação

entre as experiências.

. reflexões sobre o conjunto de

experiências.

Obs.1: O material coletado será usado

como documento primário. A pesquisa

deve ser feita única e exclusivamente

com esse material.

Obs.2: Documentos secundários só serão

utilizados na fase final do projeto em que

haverá uma tentativa de discussão do

resultado dessas experiências com outras

já feitas na história da arte brasileira.

Exemplos, Wilson Coutinho, vídeo sobre

Cildo Meireles de 1979; Frederico Morais

na exposição Agnus Dei, na Petite Galerie,

1970, Rio de janeiro, também sobre o Cildo.

Page 15: Convivencias #4

Fase.3

. elaboração dos modos de apresentação

do material colhido.

. tentativas de viabilizar a pesquisa-

resultado enquanto corpo único.

Ao final da terceira semana, deu-se conta

de que tais experimentos não deslocavam

o lugar da crítica de arte de sua fala aprio-

rística. E que “experimentar” o processo e

não o trabalho de fato seria investir-se nessa

nova forma de esquizofrenia que é subjul-

gar a obra pelos seus modos de criação. Ao

tempo que, inevitavelmente, qualquer ten-

tativa de crítica estaria atrelada apenas ao

discurso do artista de modo que essa fala

não representaria, no fim das contas, uma

construção dialógica, mas possivelmente o

sequestro do pensamento do artista sobre

seu próprio trabalho, ou ainda um equivo-

cado exercício de apreendimento de um

conhecimento ainda não gerado, muito

menos experimentado, porque ainda não

posto no mundo.

Page 16: Convivencias #4

A ideia de criação de audiovisual como

dispositivo crítico não foi descartada. Mas

estava certa de que tamanha empreitada

precisaria de mais tempo e não poderia se

construir apenas dos discursos dos artistas

na concepção e gestação dos trabalhos.

Não lhe era possível entender o crítico como

porta-voz do artista. Parecia um posiciona-

mento de um lado paternalista, do outro,

condescendente. O artista é porta-voz de si

mesmo. Isso lhe era assertivo assim. Tanto

quanto a obra, acreditava, deveria ter con-

dições de estar de pé e assim andar por si

mesma sem muletas biográficas do artista.

Nenhum dos textos, ou outros dispositivos

críticos, que havia se proposto a fazer sobre

os trabalhos dos artistas, colegas de traba-

lho naquela residência, estariam concluídos

quando o prazo para entrega dos textos

estorou e as obras não haviam sido conclu-

ídas. O que tinha eram anotações acerca de

referências que os trabalhos em construção

pediram. Estava à espera do nascimento.

Porque talvez as obras «se rebelassem» e

fosse nada daquilo do que disseram que se-

riam. Preferia aguardá-las.

Notas:

Necessário dizer que aqui não se está negando a

possibilidade de uma interlocução artista-crítico. Mas,

pontuar o cuidado que deve haver ao se instaurar esse

diálogo. Sobretudo, quando o crítico está nesse lugar

de formação tanto quanto o artista.

Entendeu que o percurso que fez, por si mesmo, já tinha

como ganho. Ainda que o projeto inconcluso. Porque

a fez trazer à tona questões e posicionamentos que

lhe pareceram mais importantes, naquele momento,

colocar em evidência. Ainda que cheios de arestas.

Page 17: Convivencias #4
Page 18: Convivencias #4
Page 19: Convivencias #4

Gostaria que nossa conversa percorresse o movimento de

transformação de algumas questões presentes no seu trabalho.

Em nosso primeiro encontro, lembro que você falou sobre uma negação de uma

linguagem que se definisse como autobiográfica e uma preocupação com o contexto.

Outras questões giravam em torno de uma volta à pintura, das referências da pintura

histórica, da materialidade da fotografia, dos usos dos arquivos de imagens. Não

posso esquecer quando você falou do “registro inegável do real”, que o céu é o seu

sublime e que juntos esses aspectos dão a carga dramática do seu trabalho.

Gal, queria primeiro falar sobre essas poéticas muito pessoais. Talvez eu não tenha for-

mulado direito, porque é óbvio que também trabalho em cima de uma poética pessoal. Não

é simplesmente uma negação de uma poética autobiográfica. O que me move é que eu

quero discutir a cidade, a percepção da imagem, em planos de linguagem, de como articulo

elementos para transformar um trabalho. Quando falo dessa negação é uma definição do

que eu não quero fazer: trabalhar em cima de contextos muito autobiográficos não me inte-

ressam. Não sei se chega a ser uma coisa tão digna de nota. Porque é óbvio também que vejo

as coisas e trabalho sob o meu ponto de vista, sob uma ótica e uma poética muito pessoal.

É preciso deixar isso claro.

Acho que isso já havia ficado muito claro para mim, anteriormente. O seu olhar

não era para dentro, de diário, de retomar intimidades... por mais que isso exista,

mas sempre vi uma preocupação com o entorno, com um diálogo com o de fora, em

reter essas relações com o externo. Por mais que as relações sejam pautadas subjetiva

e particularmente. Acho que o que você está dizendo não nega isso.

É um campo difícil de se discutir, porque acho que entra em outros méritos. Não é produtivo

negar tudo. Tenho uma vontade de trabalhar o mundo e trabalhar outras coisas que dizem

respeito a mais gente do que somente a mim. Isso tem a ver com o contexto social. Parto de

algo que eu acho que é comum a todos. São imagens de mídia impressa, de grande circulação.

Tenho pensando ultimamente que meu trabalho tem muitos fragmentos, que se unem e que

criam tensões entre si. E também que a nossa experiência é fragmentada. A forma com que

as coisas circulam e a velocidade com a qual a gente entra em contato com as informações

também diluem muito a experiência e aumentam essa fragmentação. E de repente é uma se-

quencia de coisas distintas que passam diante dos nossos olhos e a gente acaba absorvendo

como conjunto: cenas do mundo, da vida, que vão desde a novela mais absurda, à guerra, à

gal :: carolina Esta foi uma conversa distraída,

em um dia frio de junho, enquanto

estávamos sentadas ao sol.

É possível perceber no trabalho da artista uma tendência em colher imagens

que tragam índices de realidade. Muitas dessas imagens são retiradas de

jornais, por serem consideradas acontecimentos importantes de serem

noticiados e lidos. Assim se dá o “real” em seu trabalho.

Com base no mapa de interações

proteína-proteína de Hawong

Jeong, proposto por Cecilia

Salles (2006) para pensar os

processos de criação em rede, eu

formulei um esquema visual com

componentes visualizáveis no

percurso de criação de Carolina

Caliento. Utilizada pela primeira

vez, essa experimentação

tenta reativar e colher mais

informações sobre o tempo, o

espaço de criação, os desejos,

intenções, planos, desistências,

conceitos que balizam a

linguagem da artista, além de

tornar as relações de sua rede

mais complexas. Vale ressaltar

que esse esquema foi construído

a partir de depoimentos

da artista e em algumas

observações registradas ao

longo dos meses na casa.

Durante a residência foi possível

observar o caminhar da artista

em seu projeto. Grande parte

dessa conversa aqui publicada

deve-se a um desejo de ver

a artista reativando seu

movimento de construção e

pontuando suas transformações.

Não há nenhuma pretensão em

dar conta da totalidade da obra,

muito menos diagnosticá-la via

seu processo de construção,

mas antes de tudo, pretende-

se territorializar esse texto

num campo do diálogo, numa

tentativa de resgatar mais

camadas conceituais sobre o

trabalho da artista.

Page 20: Convivencias #4

Esta foi uma conversa distraída,

em um dia frio de junho, enquanto

estávamos sentadas ao sol.

É possível perceber no trabalho da artista uma tendência em colher imagens

que tragam índices de realidade. Muitas dessas imagens são retiradas de

jornais, por serem consideradas acontecimentos importantes de serem

noticiados e lidos. Assim se dá o “real” em seu trabalho.

Com base no mapa de interações

proteína-proteína de Hawong

Jeong, proposto por Cecilia

Salles (2006) para pensar os

processos de criação em rede, eu

formulei um esquema visual com

componentes visualizáveis no

percurso de criação de Carolina

Caliento. Utilizada pela primeira

vez, essa experimentação

tenta reativar e colher mais

informações sobre o tempo, o

espaço de criação, os desejos,

intenções, planos, desistências,

conceitos que balizam a

linguagem da artista, além de

tornar as relações de sua rede

mais complexas. Vale ressaltar

que esse esquema foi construído

a partir de depoimentos

da artista e em algumas

observações registradas ao

longo dos meses na casa.

Durante a residência foi possível

observar o caminhar da artista

em seu projeto. Grande parte

dessa conversa aqui publicada

deve-se a um desejo de ver

a artista reativando seu

movimento de construção e

pontuando suas transformações.

Não há nenhuma pretensão em

dar conta da totalidade da obra,

muito menos diagnosticá-la via

seu processo de construção,

mas antes de tudo, pretende-

se territorializar esse texto

num campo do diálogo, numa

tentativa de resgatar mais

camadas conceituais sobre o

trabalho da artista.

Page 21: Convivencias #4

Gostaria que nossa conversa percorresse o movimento de

transformação de algumas questões presentes no seu trabalho.

Em nosso primeiro encontro, lembro que você falou sobre uma negação de uma

linguagem que se definisse como autobiográfica e uma preocupação com o contexto.

Outras questões giravam em torno de uma volta à pintura, das referências da pintura

histórica, da materialidade da fotografia, dos usos dos arquivos de imagens. Não

posso esquecer quando você falou do “registro inegável do real”, que o céu é o seu

sublime e que juntos esses aspectos dão a carga dramática do seu trabalho.

Gal, queria primeiro falar sobre essas poéticas muito pessoais. Talvez eu não tenha for-

mulado direito, porque é óbvio que também trabalho em cima de uma poética pessoal. Não

é simplesmente uma negação de uma poética autobiográfica. O que me move é que eu

quero discutir a cidade, a percepção da imagem, em planos de linguagem, de como articulo

elementos para transformar um trabalho. Quando falo dessa negação é uma definição do

que eu não quero fazer: trabalhar em cima de contextos muito autobiográficos não me inte-

ressam. Não sei se chega a ser uma coisa tão digna de nota. Porque é óbvio também que vejo

as coisas e trabalho sob o meu ponto de vista, sob uma ótica e uma poética muito pessoal.

É preciso deixar isso claro.

Acho que isso já havia ficado muito claro para mim, anteriormente. O seu olhar

não era para dentro, de diário, de retomar intimidades... por mais que isso exista,

mas sempre vi uma preocupação com o entorno, com um diálogo com o de fora, em

reter essas relações com o externo. Por mais que as relações sejam pautadas subjetiva

e particularmente. Acho que o que você está dizendo não nega isso.

É um campo difícil de se discutir, porque acho que entra em outros méritos. Não é produtivo

negar tudo. Tenho uma vontade de trabalhar o mundo e trabalhar outras coisas que dizem

respeito a mais gente do que somente a mim. Isso tem a ver com o contexto social. Parto de

algo que eu acho que é comum a todos. São imagens de mídia impressa, de grande circulação.

Tenho pensando ultimamente que meu trabalho tem muitos fragmentos, que se unem e que

criam tensões entre si. E também que a nossa experiência é fragmentada. A forma com que

as coisas circulam e a velocidade com a qual a gente entra em contato com as informações

também diluem muito a experiência e aumentam essa fragmentação. E de repente é uma se-

quencia de coisas distintas que passam diante dos nossos olhos e a gente acaba absorvendo

como conjunto: cenas do mundo, da vida, que vão desde a novela mais absurda, à guerra, à

gal :: carolina

Page 22: Convivencias #4

propaganda. E é surreal. Eu trouxe um jornal desses que distribuem no metrô. E a primeira

capa é um comercial do Dorflex. A capa inteira é um anúncio.

É uma capa falsa de publicidade.

Eu trouxe o jornal, preciso mostrar para que você entenda. “O mundo em que ninguém sente

dor” é o título desse anúncio, que funciona como capa. E isso parece muito real, mas é um

anúncio. Depois de ler essa capa que ninguém sente dor, a gente vê o jornal real com a man-

chete da capa se referindo à morte de um ciclista atropelado. Acho que esses dados de lingua-

gem que são comuns me movem a trabalhar com esse tipo de material.

Eu ainda estou muito nas conjecturas, pensando sobre hipóteses. Mas acho que hoje em dia,

não existe essa dimensão do impossível. Qualquer absurdo é passível de acontecer, o desejo

virou executável sempre. Acho que se perdeu uma certa medida da experiência do mundo.

Há outras tensões criadas sobre o desejo, por meio da propaganda. O espaço físico virou um

cenário de acomodação. É uma dimensão materialmente palpável: é um espaço que de fato

eu atuo, domino, e modifico. Mas o espaço já vem como dado, e as ações já vêm mediadas por

uma certa ideia.

De todas essas questões que se inserem no seu trabalho, de que

maneira você consegue transpor esses ideais para o material?

Ainda não está nada resolvido. Estou em busca mesmo. Experimentando como isso vai ser

apresentado. Acho que tem muitas diferenças entre o meu trabalho final, que estou fazendo

aqui, e a pintura histórica como minha inspiração. Pode parecer até que estou forçando a barra

porque vou num determinado tipo de trabalho e quero puxá-lo para o que estou formatando.

Então, talvez por isso, afirmar sobre a presença da pintura histórica no meu trabalho e sobre a

negação da autobiografia me incomodam tanto. São coisas não tão resolvidas.

Eu acho que tem um sentido de apropriação, que está,

em alguma medida, na construção da sua linguagem, no seu

movimento, no tom que você confere à obra. O trabalho fala.

Não se trata de esconder ou negar, mas dar a devida importância.

Eu me aproprio de referências. Tento tratar esses elementos diretamente. E a partir daí começo

a transformar em outro tipo de linguagem, unir essas diferentes imagens e compor alguma

coisa em cima.

Page 23: Convivencias #4

Você também formula arquivos, verdade?

Sim, meu arquivo é uma reunião desse bruto. Reúno imagens que me interessam e as vou

transformando em um trabalho plástico. A solução da pintura, se vai continuar a ser pintura

ou se vai ter essa dimensão que eu estou fazendo agora, se vai voltar a ser pequeno, se de

repente não vai virar uma pintura, se vai virar outra coisa mais para frente, é algo que o pró-

prio trabalho vai falar.

Mas acho que é esse processo que faz com que todas essas ideias sejam transpostas para uma

linguagem é um desejo de pegar a coisa tal como ela é. Não vou partir dessa experiência e

falar: “ó, humanidade doente”. Vou unindo o concreto.

Esse arquivo de informações, mesmo que ainda em estado bruto, como você falou,

não é montado com qualquer tipo de imagem. São imagens que, de alguma forma,

“representam” registros de realidade. São acontecimentos. A gente já falou sobre isso:

são imagens que estão num território, que é o jornal, que é o da notícia, que as atestam

como verdade. Até sob o ponto de vista do fazer dessas imagens: é um fotojornalista, com

um olhar sujeito aos acontecimentos, que vai a campo dar conta de uma pauta e procura

fatos importantes para serem noticiados, veiculador como verdade.

Eu acho que esse ambiente, que é de um registro inegável do real, é mesmo o

ambiente que você procura as suas imagens. Não é qualquer um, mesmo quando este

ambiente está, por exemplo, como um campo forjado, como esse da propaganda no

jornal. Essas variedades de informação também interessam. Acho que existe uma

importância dessas imagens de realidade, como elas vão ser processadas e vão ser

transformadas plasticamente. Há uma grande importância depositada sobre esse lugar

e sobre o contexto em que elas são feitas e para onde estão indo.

Há outro aspecto que é a “vida” dessas imagens. Eu as retiro do jornal e as levo para agirem no

meu trabalho. Mas estou levando em conta que o jornal também é descartável, reproduzido

aos milhares e visto por outros milhares de pessoas. São imagens que vêm, passam, são lidas

e são passadas para frente ou deixadas de lado. Você passou por uma notícia e de repente já

esqueceu a imagem, porque essa é a velocidade da vida contemporânea. Fazer esse arquivo é

um pouco dialogar com isso.

Não estou usando o preciosismo da imagem e também não estou fazendo um histórico de

cada uma. Estou dialogando com a maneira em que elas são absorvidas e como circulam. Tam-

bém acho que elas não são algo imaculado que não possam ser dissociadas do seu tempo ou

A artista esclarece as definições de critérios autobiográficos em seu

trabalho e como lida com o seu entorno.

Page 24: Convivencias #4

propaganda. E é surreal. Eu trouxe um jornal desses que distribuem no metrô. E a primeira

capa é um comercial do Dorflex. A capa inteira é um anúncio.

É uma capa falsa de publicidade.

Eu trouxe o jornal, preciso mostrar para que você entenda. “O mundo em que ninguém sente

dor” é o título desse anúncio, que funciona como capa. E isso parece muito real, mas é um

anúncio. Depois de ler essa capa que ninguém sente dor, a gente vê o jornal real com a man-

chete da capa se referindo à morte de um ciclista atropelado. Acho que esses dados de lingua-

gem que são comuns me movem a trabalhar com esse tipo de material.

Eu ainda estou muito nas conjecturas, pensando sobre hipóteses. Mas acho que hoje em dia,

não existe essa dimensão do impossível. Qualquer absurdo é passível de acontecer, o desejo

virou executável sempre. Acho que se perdeu uma certa medida da experiência do mundo.

Há outras tensões criadas sobre o desejo, por meio da propaganda. O espaço físico virou um

cenário de acomodação. É uma dimensão materialmente palpável: é um espaço que de fato

eu atuo, domino, e modifico. Mas o espaço já vem como dado, e as ações já vêm mediadas por

uma certa ideia.

De todas essas questões que se inserem no seu trabalho, de que

maneira você consegue transpor esses ideais para o material?

Ainda não está nada resolvido. Estou em busca mesmo. Experimentando como isso vai ser

apresentado. Acho que tem muitas diferenças entre o meu trabalho final, que estou fazendo

aqui, e a pintura histórica como minha inspiração. Pode parecer até que estou forçando a barra

porque vou num determinado tipo de trabalho e quero puxá-lo para o que estou formatando.

Então, talvez por isso, afirmar sobre a presença da pintura histórica no meu trabalho e sobre a

negação da autobiografia me incomodam tanto. São coisas não tão resolvidas.

Eu acho que tem um sentido de apropriação, que está,

em alguma medida, na construção da sua linguagem, no seu

movimento, no tom que você confere à obra. O trabalho fala.

Não se trata de esconder ou negar, mas dar a devida importância.

Eu me aproprio de referências. Tento tratar esses elementos diretamente. E a partir daí começo

a transformar em outro tipo de linguagem, unir essas diferentes imagens e compor alguma

coisa em cima.

A artista esclarece as definições de critérios autobiográficos em seu

trabalho e como lida com o seu entorno.

Page 25: Convivencias #4

Você também formula arquivos, verdade?

Sim, meu arquivo é uma reunião desse bruto. Reúno imagens que me interessam e as vou

transformando em um trabalho plástico. A solução da pintura, se vai continuar a ser pintura

ou se vai ter essa dimensão que eu estou fazendo agora, se vai voltar a ser pequeno, se de

repente não vai virar uma pintura, se vai virar outra coisa mais para frente, é algo que o pró-

prio trabalho vai falar.

Mas acho que é esse processo que faz com que todas essas ideias sejam transpostas para uma

linguagem é um desejo de pegar a coisa tal como ela é. Não vou partir dessa experiência e

falar: “ó, humanidade doente”. Vou unindo o concreto.

Esse arquivo de informações, mesmo que ainda em estado bruto, como você falou,

não é montado com qualquer tipo de imagem. São imagens que, de alguma forma,

“representam” registros de realidade. São acontecimentos. A gente já falou sobre isso:

são imagens que estão num território, que é o jornal, que é o da notícia, que as atestam

como verdade. Até sob o ponto de vista do fazer dessas imagens: é um fotojornalista, com

um olhar sujeito aos acontecimentos, que vai a campo dar conta de uma pauta e procura

fatos importantes para serem noticiados, veiculador como verdade.

Eu acho que esse ambiente, que é de um registro inegável do real, é mesmo o

ambiente que você procura as suas imagens. Não é qualquer um, mesmo quando este

ambiente está, por exemplo, como um campo forjado, como esse da propaganda no

jornal. Essas variedades de informação também interessam. Acho que existe uma

importância dessas imagens de realidade, como elas vão ser processadas e vão ser

transformadas plasticamente. Há uma grande importância depositada sobre esse lugar

e sobre o contexto em que elas são feitas e para onde estão indo.

Há outro aspecto que é a “vida” dessas imagens. Eu as retiro do jornal e as levo para agirem no

meu trabalho. Mas estou levando em conta que o jornal também é descartável, reproduzido

aos milhares e visto por outros milhares de pessoas. São imagens que vêm, passam, são lidas

e são passadas para frente ou deixadas de lado. Você passou por uma notícia e de repente já

esqueceu a imagem, porque essa é a velocidade da vida contemporânea. Fazer esse arquivo é

um pouco dialogar com isso.

Não estou usando o preciosismo da imagem e também não estou fazendo um histórico de

cada uma. Estou dialogando com a maneira em que elas são absorvidas e como circulam. Tam-

bém acho que elas não são algo imaculado que não possam ser dissociadas do seu tempo ou

Page 26: Convivencias #4

ainda que não possam ser lidas sem a matéria. Porque acho que as imagens são informações

que vão se acumulando e vão se confundindo com outras. E a relevância delas vai mudando.

Acho que entendi um pouco sobre o que você queria dizer sobre essa indeterminação

do caráter autobiográfico no seu trabalho. Não se trata de afirmar uma poética “íntima”,

mas há uma subjetividade no seu olhar que confere a sua postura particular, desde

quando você recolhe essas imagens, que são vistas em todo o mundo, que estão

inseridas num contexto espaço/tempo, para fazerem parte de um arquivo. Quando você

as descontextualiza, mesmo que elas ainda carreguem um vínculo de onde elas vieram,

quando elas vão ser colocadas em tensão com outras e quando elas vão ser recebidas por

um outro ambiente, se dá uma outra costura. E é essa costura que também reafirma o seu

olhar, a sua subjetividade. É a escolha dessas imagens e a forma como elas voltam a atuar

que confere o que poderíamos chamar de caráter autobiográfico.

É como se fosse um mecanismo que reelaborasse as imagens, mas que não apaga de

onde elas vêm. Há sempre questões em pólos antagônicos. E seu trabalho não nos deixa

esquecer essas diferenças. Esses pólos estão o tempo inteiro se relacionando e fazendo

questão de propor diálogo, mas também de propor tensão. Então a imagem vem com sua

carga de verdade, recebe um outro invólucro, uma outra costura, um outro ambiente.

Ouvindo você falar, parece mais uma ilustração de como eu lido com a absorção das imagens.

Tirá-las do jornal e recombiná-las é uma maneira de entender como transformo essa confu-

são de absorção de imagens. E é engraçado, conversando com você, fiquei pensando, porque

mesmo que a pintura não esteja resolvida tecnicamente, talvez a pintura seja uma tentativa

de reconstruir a imagem em um patamar que a imagem ainda soe estranha. Não sei se é isso.

Fico imaginando se não fosse a pintura, fosse outro suporte, eu talvez não conseguisse colocar

essas estranhezas da imagem em evidência.

Concordo. Seu trabalho evidencia e busca manter essa estranheza, um algo de

estrangeiro em todos os sentidos, porque lida com uma imagem de jornal que foi levada

para outro contexto. É uma imagem que foi tirada, digamos, da realidade e foi costurada

em outro ambiente, uma imagem que não é “digna” e foi levada para a pintura, que é

encarada como uma linguagem nobre. Eu acho que tem uma vontade de deslocamento.

Nesse outro lugar se dão preenchimentos de outros contextos, de outros textos, de

outras formulações e de outros pensamentos. Eu acho que também é possível

Page 27: Convivencias #4

pensar dessa maneira sobre a pintura histórica, a pintura como monumento,

que também é registro de imagem como verdade, como verdade coletiva.

Já falamos sobre seus arquivos de imagens, sobre os deslocamentos de imagem que

você opera. Gostaria de falar sobre a composição. Como você faz para compor os temas?

Eu vou por imagem. Meus arquivos não têm nenhum tipo de catalogação, recorto e coloco

tudo junto, depois vou selecionando. É quase como um desenho: componho a imagem en-

caixando com outras. Nessas últimas pinturas realizadas aqui na Casa, usei a pintura de um

artista inglês do século XVIII, chamado Philip James de Loutherbourg. Eu só usei a estrutura da

composição dele para sobrepor minhas imagens por cima.

Fiz o download do arquivo na internet e imprimi grande. Depois fiz a colagem do jornal por

cima desse arquivo, escaneei a colagem do jornal. Montei o arquivo com a colagem de novo no

computador e dei a saída para poder ter como base da pintura essa impressão.

Você montou uma tela com a pintura de Philip James de Loutherbourg

mais as colagens de fotografias de jornal para pintar por cima de novo?

Isso. Mas quando não uso um quadro, eu faço livres combinações.

É que no começo da residência você já tinha umas imagens prontas,

provenientes de arquivos. Essa pintura grande veio depois?

Isso.

É a mesma série?

Eu vejo tudo como uma série. Vejo o mesmo trabalho dando um passo diferente.

Percorro a pintura me apropriando de imagens de jornais ou de pintura histórica. Me aproprio

das duas. Muita gente me fala que posso ter problemas com direitos autorais. A sociedade está

muito controlada, você não pode fazer nada. Fiz uma pintura na qual está bem visível uma

placa de imobiliária com o telefone da empresa e eu não escondi, continua lá.

Acho que do mesmo jeito quando alguém tira uma foto da rua e publica no jornal, eu tiro a

foto do jornal e ponho no meu quadro.

Eu acho que essa polêmica autoral nem é uma preocupação do seu trabalho.

Você lida com propostas de materializar essas imagens em outros registros.

Não é apropriação de uma marca. É só a cidade. A rua é pública. O funcionário da gráfica, onde

Trago aqui um registro

de um dos nossos

encontros: “algo digno de

se noticiar e memorável é

descontextualizado e torna-

se autoral de novo. A artista

transforma em histórico de

novo (na arte)”. Sigo minhas

anotações com uma citação da

artista: “ao novo traço do recorte

de imagem modifico tudo

em um campo só, transformo

tudo em pintura”. Concluo:

“achatamento das camadas da

imagem para torná-la outra

verdade”.

Pode-se observar que a artista

entende seu trabalho como

um processo contínuo, no

qual algumas questões vão se

revelando na construção de

algumas obras e desdobrando-

se em outras.

Defeat of the Spanish Armada, 1796 Philip James de Loutherbourg

Page 28: Convivencias #4

ainda que não possam ser lidas sem a matéria. Porque acho que as imagens são informações

que vão se acumulando e vão se confundindo com outras. E a relevância delas vai mudando.

Acho que entendi um pouco sobre o que você queria dizer sobre essa indeterminação

do caráter autobiográfico no seu trabalho. Não se trata de afirmar uma poética “íntima”,

mas há uma subjetividade no seu olhar que confere a sua postura particular, desde

quando você recolhe essas imagens, que são vistas em todo o mundo, que estão

inseridas num contexto espaço/tempo, para fazerem parte de um arquivo. Quando você

as descontextualiza, mesmo que elas ainda carreguem um vínculo de onde elas vieram,

quando elas vão ser colocadas em tensão com outras e quando elas vão ser recebidas por

um outro ambiente, se dá uma outra costura. E é essa costura que também reafirma o seu

olhar, a sua subjetividade. É a escolha dessas imagens e a forma como elas voltam a atuar

que confere o que poderíamos chamar de caráter autobiográfico.

É como se fosse um mecanismo que reelaborasse as imagens, mas que não apaga de

onde elas vêm. Há sempre questões em pólos antagônicos. E seu trabalho não nos deixa

esquecer essas diferenças. Esses pólos estão o tempo inteiro se relacionando e fazendo

questão de propor diálogo, mas também de propor tensão. Então a imagem vem com sua

carga de verdade, recebe um outro invólucro, uma outra costura, um outro ambiente.

Ouvindo você falar, parece mais uma ilustração de como eu lido com a absorção das imagens.

Tirá-las do jornal e recombiná-las é uma maneira de entender como transformo essa confu-

são de absorção de imagens. E é engraçado, conversando com você, fiquei pensando, porque

mesmo que a pintura não esteja resolvida tecnicamente, talvez a pintura seja uma tentativa

de reconstruir a imagem em um patamar que a imagem ainda soe estranha. Não sei se é isso.

Fico imaginando se não fosse a pintura, fosse outro suporte, eu talvez não conseguisse colocar

essas estranhezas da imagem em evidência.

Concordo. Seu trabalho evidencia e busca manter essa estranheza, um algo de

estrangeiro em todos os sentidos, porque lida com uma imagem de jornal que foi levada

para outro contexto. É uma imagem que foi tirada, digamos, da realidade e foi costurada

em outro ambiente, uma imagem que não é “digna” e foi levada para a pintura, que é

encarada como uma linguagem nobre. Eu acho que tem uma vontade de deslocamento.

Nesse outro lugar se dão preenchimentos de outros contextos, de outros textos, de

outras formulações e de outros pensamentos. Eu acho que também é possível

Trago aqui um registro

de um dos nossos

encontros: “algo digno de

se noticiar e memorável é

descontextualizado e torna-

se autoral de novo. A artista

transforma em histórico de

novo (na arte)”. Sigo minhas

anotações com uma citação da

artista: “ao novo traço do recorte

de imagem modifico tudo

em um campo só, transformo

tudo em pintura”. Concluo:

“achatamento das camadas da

imagem para torná-la outra

verdade”.

Pode-se observar que a artista

entende seu trabalho como

um processo contínuo, no

qual algumas questões vão se

revelando na construção de

algumas obras e desdobrando-

se em outras.

Defeat of the Spanish Armada, 1796 Philip James de Loutherbourg

Page 29: Convivencias #4

pensar dessa maneira sobre a pintura histórica, a pintura como monumento,

que também é registro de imagem como verdade, como verdade coletiva.

Já falamos sobre seus arquivos de imagens, sobre os deslocamentos de imagem que

você opera. Gostaria de falar sobre a composição. Como você faz para compor os temas?

Eu vou por imagem. Meus arquivos não têm nenhum tipo de catalogação, recorto e coloco

tudo junto, depois vou selecionando. É quase como um desenho: componho a imagem en-

caixando com outras. Nessas últimas pinturas realizadas aqui na Casa, usei a pintura de um

artista inglês do século XVIII, chamado Philip James de Loutherbourg. Eu só usei a estrutura da

composição dele para sobrepor minhas imagens por cima.

Fiz o download do arquivo na internet e imprimi grande. Depois fiz a colagem do jornal por

cima desse arquivo, escaneei a colagem do jornal. Montei o arquivo com a colagem de novo no

computador e dei a saída para poder ter como base da pintura essa impressão.

Você montou uma tela com a pintura de Philip James de Loutherbourg

mais as colagens de fotografias de jornal para pintar por cima de novo?

Isso. Mas quando não uso um quadro, eu faço livres combinações.

É que no começo da residência você já tinha umas imagens prontas,

provenientes de arquivos. Essa pintura grande veio depois?

Isso.

É a mesma série?

Eu vejo tudo como uma série. Vejo o mesmo trabalho dando um passo diferente.

Percorro a pintura me apropriando de imagens de jornais ou de pintura histórica. Me aproprio

das duas. Muita gente me fala que posso ter problemas com direitos autorais. A sociedade está

muito controlada, você não pode fazer nada. Fiz uma pintura na qual está bem visível uma

placa de imobiliária com o telefone da empresa e eu não escondi, continua lá.

Acho que do mesmo jeito quando alguém tira uma foto da rua e publica no jornal, eu tiro a

foto do jornal e ponho no meu quadro.

Eu acho que essa polêmica autoral nem é uma preocupação do seu trabalho.

Você lida com propostas de materializar essas imagens em outros registros.

Não é apropriação de uma marca. É só a cidade. A rua é pública. O funcionário da gráfica, onde

Page 30: Convivencias #4

fui dar a saída de umas imagens com um carro capotado com a placa bem visível, me pergun-

tou se eu não queria que ele tirasse no photoshop a placa do carro. Ele disse que isso poderia

me gerar problemas. Isso me faz crer que descontextualizar as imagens do veículo original cria

uma nova potência. Quando aparece câmera ou repórter na rua, todo mundo quer aparecer,

dar tchauzinho. Mas quando essa relação se descontextualiza vira uma ameaça. Acho muito

menos grave, pois o número de pessoas que vão a uma exposição é muito menor.

Eu acho que não é nem só pelo número de pessoas, mas pela força da imagem.

Acontecem outros significados, outras informações, são outros pressupostos.

Você consegue pensar no seu trabalho como um campo de tensões: entre

o que é registro e o que é apropriação, o que é “erro” de pintura e pintura de

novo, o que é fotografia e pintura.

Eu lembro quando a gente conversou pela primeira vez, você me falou que não

estava nada resolvido no seu trabalho, mas você tinha medo de tudo isso virar uma

fórmula. Acho que seu trabalho com a pintura não vai tão cedo tornar-se fórmula ou

recurso pronto. Exatamente porque as questões que são discutidas na sua poética são

inesgotáveis. Estão presentes definições, pólos muito antagônicos.

Talvez você ainda não se dê conta disso.

Agora consigo pensar isso com mais evidência. Depois de quase 3 meses de residência, al-

gumas preocupações, que eu tinha tal como essa, sumiram e, em compensação, outras, tão

graves quanto, apareceram.

Como o que, por exemplo?

Como um trabalho que seja capaz de abarcar esses aspectos de uma maneira em que nenhum

deles seja colocado de lado. É um “não estar resolvido”. E tudo bem, porque se resolvesse não

teria trabalho.

Acho que algumas escolhas que fiz nessa residência – fazendo uma autocrítica – me guiaram

para caminhos muito bons. Do mesmo jeito que trato o jornal, passei a tratar a referência da

pintura; penso em como eu também vou combinar isso tudo com uma certa hierarquia que é

dada pela quantidade de ação que existe em um quadro e da quantidade de céu. Desde a par-

te técnica da impressão na tela: entender o que não está funcionando no trabalho, mas saber

parar quando a impressão no papel fica incrível.

Page 31: Convivencias #4

É um amadurecimento.

Por outro lado, acho que teve um movimento que foi mais ligado ao cotidiano da produção,

de fazer rápido e não ter esse tempo do trabalho, de me perder um pouco. Acho que deixei

um pouco de lado a vontade de fazer algo, que de repente não iria dar certo, mas eu insistiria

em fazer só para pensar...

Em outros processos?

É, em outras respostas. O trabalho exige um tempo, exige uma concentração, exige um es-

forço muito maior e às vezes me dá vontade de pular esse esforço e ir para o final já de cara.

E às vezes acho que faço isso porque a nossa vida é assim também. Ninguém quer saber de

processos, quer saber de produto. Poucos persistem no que é necessário.

Quase um tempo de decantação...

Fico pensando quanto tempo foi necessário para grandes pintores virarem grandes pintores. E

esse tempo não é nosso agora. Não é da nossa vida hoje.

Mas eu acho que mesmo esse tempo que é acelerado e que mesmo essas suas definições

que são tomadas em nome de grandes projetos, em nome de um tempo que é mais

rápido, são soluções muito constitutivas de um pintor e de qualquer outro artista. Se é

mais ou se é menos tempo, na verdade, a gente mede algo que não dá para medir. Não

é só o tempo que você supostamente usou para construir uma obra, tem que colocar

também um tempo muito anterior, de outras leituras, de outros processos de trabalho, de

outros artistas que você estudou, de outras tentativas que você já experimentou. Eu acho

que não dá para pensar que esse trabalho se resolveu em 10 dias.

Sim, sim. Tenho toda a minha história, que também está jogando comigo, não estou jogando

do zero. Mas tenho que ter paciência para ver que às vezes não cheguei lá, que ainda não sei.

Isso é muito auto-terapia?

É importante. Carol, nesse momento avaliativo, que passo você deu aqui,

na Casa, que você consegue visualizar como materialização no trabalho?

A escolha da pintura foi decisiva para mim: escolher a pintura histórica como base para mon-

tar. Acho que isso fez muito sentido e era uma coisa que até então não tinha percebido. Eu

acho que tinha que ir na fonte.

Segundo o crítico e teórico

francês Raymond Bellour (1997),

não se consegue mais pensar as

práticas artísticas separada ou

independentemente, pois por

mais exterior e distante que uma

esteja de outra, nenhuma prática

pode ser apreendida sem se

observar as referências ao que ela

própria altera – “em suma, tudo

de onde ela provém e para onde

volta a cessar, a fim de moldar

uma identidade que lhe escapa”.

As experiências artísticas não

apresentam mais especificidades

puras e se dão de forma múltipla

e entre “Passagens, corolários que

cruzam sem recobrir inteiramente

esses “universais” da imagem: dessa

forma se produz entre foto, cinema

e vídeo, [literatura, escultura,

instalação, pintura, vídeo-arte], uma

multiplicidade de sobreposições,

de configurações pouco previsíveis.

A própria natureza de uma mídia

capaz de integrar e de transformar

todas as outras, associada à

capacidade peculiar que os

produtos que dela derivam têm

de aparecer a todo instante numa

caixa simultaneamente íntima

e planetária, acabou mudando

profundamente (isto se tornou uma

evidência) tanto nosso sentido de

fabricação quanto o da apreensão

das imagens. Desse modo

(virtualmente), o entre-imagens é

o espaço de todas essas passagens.

Um lugar, físico e mental, múltiplo.

Ao mesmo tempo muito visível e

secretamente imerso nas obras,

remodelando nosso corpo interior

para prescrever-lhe novas posições,

ele opera entre as imagens, no

sentido muito geral e sempre

particular dessa expressão.

Page 32: Convivencias #4

fui dar a saída de umas imagens com um carro capotado com a placa bem visível, me pergun-

tou se eu não queria que ele tirasse no photoshop a placa do carro. Ele disse que isso poderia

me gerar problemas. Isso me faz crer que descontextualizar as imagens do veículo original cria

uma nova potência. Quando aparece câmera ou repórter na rua, todo mundo quer aparecer,

dar tchauzinho. Mas quando essa relação se descontextualiza vira uma ameaça. Acho muito

menos grave, pois o número de pessoas que vão a uma exposição é muito menor.

Eu acho que não é nem só pelo número de pessoas, mas pela força da imagem.

Acontecem outros significados, outras informações, são outros pressupostos.

Você consegue pensar no seu trabalho como um campo de tensões: entre

o que é registro e o que é apropriação, o que é “erro” de pintura e pintura de

novo, o que é fotografia e pintura.

Eu lembro quando a gente conversou pela primeira vez, você me falou que não

estava nada resolvido no seu trabalho, mas você tinha medo de tudo isso virar uma

fórmula. Acho que seu trabalho com a pintura não vai tão cedo tornar-se fórmula ou

recurso pronto. Exatamente porque as questões que são discutidas na sua poética são

inesgotáveis. Estão presentes definições, pólos muito antagônicos.

Talvez você ainda não se dê conta disso.

Agora consigo pensar isso com mais evidência. Depois de quase 3 meses de residência, al-

gumas preocupações, que eu tinha tal como essa, sumiram e, em compensação, outras, tão

graves quanto, apareceram.

Como o que, por exemplo?

Como um trabalho que seja capaz de abarcar esses aspectos de uma maneira em que nenhum

deles seja colocado de lado. É um “não estar resolvido”. E tudo bem, porque se resolvesse não

teria trabalho.

Acho que algumas escolhas que fiz nessa residência – fazendo uma autocrítica – me guiaram

para caminhos muito bons. Do mesmo jeito que trato o jornal, passei a tratar a referência da

pintura; penso em como eu também vou combinar isso tudo com uma certa hierarquia que é

dada pela quantidade de ação que existe em um quadro e da quantidade de céu. Desde a par-

te técnica da impressão na tela: entender o que não está funcionando no trabalho, mas saber

parar quando a impressão no papel fica incrível.

Segundo o crítico e teórico

francês Raymond Bellour (1997),

não se consegue mais pensar as

práticas artísticas separada ou

independentemente, pois por

mais exterior e distante que uma

esteja de outra, nenhuma prática

pode ser apreendida sem se

observar as referências ao que ela

própria altera – “em suma, tudo

de onde ela provém e para onde

volta a cessar, a fim de moldar

uma identidade que lhe escapa”.

As experiências artísticas não

apresentam mais especificidades

puras e se dão de forma múltipla

e entre “Passagens, corolários que

cruzam sem recobrir inteiramente

esses “universais” da imagem: dessa

forma se produz entre foto, cinema

e vídeo, [literatura, escultura,

instalação, pintura, vídeo-arte], uma

multiplicidade de sobreposições,

de configurações pouco previsíveis.

A própria natureza de uma mídia

capaz de integrar e de transformar

todas as outras, associada à

capacidade peculiar que os

produtos que dela derivam têm

de aparecer a todo instante numa

caixa simultaneamente íntima

e planetária, acabou mudando

profundamente (isto se tornou uma

evidência) tanto nosso sentido de

fabricação quanto o da apreensão

das imagens. Desse modo

(virtualmente), o entre-imagens é

o espaço de todas essas passagens.

Um lugar, físico e mental, múltiplo.

Ao mesmo tempo muito visível e

secretamente imerso nas obras,

remodelando nosso corpo interior

para prescrever-lhe novas posições,

ele opera entre as imagens, no

sentido muito geral e sempre

particular dessa expressão.

Page 33: Convivencias #4

É um amadurecimento.

Por outro lado, acho que teve um movimento que foi mais ligado ao cotidiano da produção,

de fazer rápido e não ter esse tempo do trabalho, de me perder um pouco. Acho que deixei

um pouco de lado a vontade de fazer algo, que de repente não iria dar certo, mas eu insistiria

em fazer só para pensar...

Em outros processos?

É, em outras respostas. O trabalho exige um tempo, exige uma concentração, exige um es-

forço muito maior e às vezes me dá vontade de pular esse esforço e ir para o final já de cara.

E às vezes acho que faço isso porque a nossa vida é assim também. Ninguém quer saber de

processos, quer saber de produto. Poucos persistem no que é necessário.

Quase um tempo de decantação...

Fico pensando quanto tempo foi necessário para grandes pintores virarem grandes pintores. E

esse tempo não é nosso agora. Não é da nossa vida hoje.

Mas eu acho que mesmo esse tempo que é acelerado e que mesmo essas suas definições

que são tomadas em nome de grandes projetos, em nome de um tempo que é mais

rápido, são soluções muito constitutivas de um pintor e de qualquer outro artista. Se é

mais ou se é menos tempo, na verdade, a gente mede algo que não dá para medir. Não

é só o tempo que você supostamente usou para construir uma obra, tem que colocar

também um tempo muito anterior, de outras leituras, de outros processos de trabalho, de

outros artistas que você estudou, de outras tentativas que você já experimentou. Eu acho

que não dá para pensar que esse trabalho se resolveu em 10 dias.

Sim, sim. Tenho toda a minha história, que também está jogando comigo, não estou jogando

do zero. Mas tenho que ter paciência para ver que às vezes não cheguei lá, que ainda não sei.

Isso é muito auto-terapia?

É importante. Carol, nesse momento avaliativo, que passo você deu aqui,

na Casa, que você consegue visualizar como materialização no trabalho?

A escolha da pintura foi decisiva para mim: escolher a pintura histórica como base para mon-

tar. Acho que isso fez muito sentido e era uma coisa que até então não tinha percebido. Eu

acho que tinha que ir na fonte.

Page 34: Convivencias #4

É porque ela era referência.

Isso. Acho que faz parte da minha apropriação. Do mesmo jeito como eu imprimo, pinto, es-

caneio, trato a imagem, todos esses processos vão virar uma pintura. Também uso a imagem

original da pintura.

Talvez seja uma forma diferente de pensar a pintura.

Eu adiciono todos esses mecanismos para determinado resultado. Não é que uso a pintura,

a composição como modelo e vou pintar do zero uma tela. Não. Vou expor isso numa tela e

pronto. Tenho todo esse processo, incluo até a própria pintura nesse processo.

A pintura como linguagem? Ou o fato de pintar em cima dessas demandas?

A pintura como a referência da composição total: eu quero fazer um quadro, com determinado

fundo, determinada atmosfera nessa composição. Daí vou direto num pintor que já fez isso e

o uso como base. Adorei fazer isso. Porque tem a ver com todo o resto, faz muito sentido, não

preciso fabricar essa parte que estava faltando. Eu me aproprio.

O que não está resolvido ainda é que a minha pintura, em si, não é uma pintura. Ou ela é uma

pintura, mas não é “a” pintura. Ainda não entendi o que é essa “pintura” que estou fazendo por

cima. Não sei ainda onde eu quero chegar, sei que é por aí, mas entendo que às vezes a minha

pintura por cima entra como um ornamento, como uma maquiagem.

E não sei se não quero que ela seja maquiagem ou se ela é para ser mesmo maquiagem. Como

também evidenciar isso para não parecer que ela estava tentando ser outra coisa?

Acho que é pintura, porque se a gente pensar: pintura é pigmento

sobre tela, é construção de uma imagem. Mas ao mesmo tempo, você

constrói a sua pintura com outros recursos, em outro campo.

Só sei que sem ela acho que falta algo. Com ela eu acho que tem chão, mas acho que ela ainda

não está assumida. E acho que isso é uma coisa que mexe bastante comigo porque vou ter que

assumir o que não está!

Você já havia pensado nessa “maquiagem” anteriormente?

Não, acho que é a primeira vez, porqe antes eu pintava de verdade. Não que a pintura saía boa.

Quando eu fazia esses primeiros quadros eu pintava, e apenas uma pequena parte que era

colada. Eu sabia que queria isso, a parte que colava era uma parte muito pequena. Era quase

Page 35: Convivencias #4

como um elemento estranho.

Talvez, essa característica quantitativa não seja tão decisiva para entender

o que você faz. Mesmo que o que você faz como pintura questione a natureza

da pintura. O que eu acho é que existem colagens de materiais, interferências,

colagens de linguagens, mas a pintura está lá. De alguma forma resignificada,

mas ela está lá. Eu entendo que é uma inquietação.

Acho que também tem um questionamento sobre até que ponto a minha mão está nesse

processo. Porque antes o meu fazer ocupava a maior parte, me remeto a um fazer artesanal.

Você acha que o seu fazer é menos artesanal, é menos seu, só pelo fato

de você recortar, enquadrar, editar e colar imagens em outro campo?

Sim, continua sendo meu, mas é outro. Utilizo processos industriais também. Mas a questão

é justamente essa. Antes a minha mão falava. Agora, a minha cabeça fala, mas a impressora é

que monta. Quando entra a minha mão é que eu acho que não sei onde ela está indo.

Eu entendo. Acho que de novo a gente entra em categorias artísticas que existem

como campos não específicos. Acho que isso é uma dúvida muito mais conceitual.

Acho que faz parte também. Do mesmo jeito como essa resolução de me apropriar diretamen-

te da pintura de alguém e usar como uma parte em que eu iria pintar. Ao invés de pintar um

céu incrível, pego um céu incrível que já existe.

Mas você está fazendo esse céu incrível, de qualquer forma.

Sim, mas tudo parte de uma escolha. A questão é: como eu estou renunciando isso? Ainda vejo

como seções não resolvidas, assim como as tais das maquiagens que faço em cima. Acho que é

o processo que me diz disso. Quando resolver isso, outra tensão vai ficar latente.

Não há uma resolução permanente. Sempre vão surgir questões.

É, não tem.

E essa questão tem uma história: desde quando você pintava as placas que eram

apropriações. E você resgatou isso de uma outra forma, com um contraste entre o

industrial da placa e o seu fazer artesanal na pintura e o seu gesto. Essas questões de

Page 36: Convivencias #4

É porque ela era referência.

Isso. Acho que faz parte da minha apropriação. Do mesmo jeito como eu imprimo, pinto, es-

caneio, trato a imagem, todos esses processos vão virar uma pintura. Também uso a imagem

original da pintura.

Talvez seja uma forma diferente de pensar a pintura.

Eu adiciono todos esses mecanismos para determinado resultado. Não é que uso a pintura,

a composição como modelo e vou pintar do zero uma tela. Não. Vou expor isso numa tela e

pronto. Tenho todo esse processo, incluo até a própria pintura nesse processo.

A pintura como linguagem? Ou o fato de pintar em cima dessas demandas?

A pintura como a referência da composição total: eu quero fazer um quadro, com determinado

fundo, determinada atmosfera nessa composição. Daí vou direto num pintor que já fez isso e

o uso como base. Adorei fazer isso. Porque tem a ver com todo o resto, faz muito sentido, não

preciso fabricar essa parte que estava faltando. Eu me aproprio.

O que não está resolvido ainda é que a minha pintura, em si, não é uma pintura. Ou ela é uma

pintura, mas não é “a” pintura. Ainda não entendi o que é essa “pintura” que estou fazendo por

cima. Não sei ainda onde eu quero chegar, sei que é por aí, mas entendo que às vezes a minha

pintura por cima entra como um ornamento, como uma maquiagem.

E não sei se não quero que ela seja maquiagem ou se ela é para ser mesmo maquiagem. Como

também evidenciar isso para não parecer que ela estava tentando ser outra coisa?

Acho que é pintura, porque se a gente pensar: pintura é pigmento

sobre tela, é construção de uma imagem. Mas ao mesmo tempo, você

constrói a sua pintura com outros recursos, em outro campo.

Só sei que sem ela acho que falta algo. Com ela eu acho que tem chão, mas acho que ela ainda

não está assumida. E acho que isso é uma coisa que mexe bastante comigo porque vou ter que

assumir o que não está!

Você já havia pensado nessa “maquiagem” anteriormente?

Não, acho que é a primeira vez, porqe antes eu pintava de verdade. Não que a pintura saía boa.

Quando eu fazia esses primeiros quadros eu pintava, e apenas uma pequena parte que era

colada. Eu sabia que queria isso, a parte que colava era uma parte muito pequena. Era quase

Page 37: Convivencias #4

como um elemento estranho.

Talvez, essa característica quantitativa não seja tão decisiva para entender

o que você faz. Mesmo que o que você faz como pintura questione a natureza

da pintura. O que eu acho é que existem colagens de materiais, interferências,

colagens de linguagens, mas a pintura está lá. De alguma forma resignificada,

mas ela está lá. Eu entendo que é uma inquietação.

Acho que também tem um questionamento sobre até que ponto a minha mão está nesse

processo. Porque antes o meu fazer ocupava a maior parte, me remeto a um fazer artesanal.

Você acha que o seu fazer é menos artesanal, é menos seu, só pelo fato

de você recortar, enquadrar, editar e colar imagens em outro campo?

Sim, continua sendo meu, mas é outro. Utilizo processos industriais também. Mas a questão

é justamente essa. Antes a minha mão falava. Agora, a minha cabeça fala, mas a impressora é

que monta. Quando entra a minha mão é que eu acho que não sei onde ela está indo.

Eu entendo. Acho que de novo a gente entra em categorias artísticas que existem

como campos não específicos. Acho que isso é uma dúvida muito mais conceitual.

Acho que faz parte também. Do mesmo jeito como essa resolução de me apropriar diretamen-

te da pintura de alguém e usar como uma parte em que eu iria pintar. Ao invés de pintar um

céu incrível, pego um céu incrível que já existe.

Mas você está fazendo esse céu incrível, de qualquer forma.

Sim, mas tudo parte de uma escolha. A questão é: como eu estou renunciando isso? Ainda vejo

como seções não resolvidas, assim como as tais das maquiagens que faço em cima. Acho que é

o processo que me diz disso. Quando resolver isso, outra tensão vai ficar latente.

Não há uma resolução permanente. Sempre vão surgir questões.

É, não tem.

E essa questão tem uma história: desde quando você pintava as placas que eram

apropriações. E você resgatou isso de uma outra forma, com um contraste entre o

industrial da placa e o seu fazer artesanal na pintura e o seu gesto. Essas questões de

Page 38: Convivencias #4

apropriação foram se tornando cada vez mais complexas. É como uma teia, as questões

vão se ligando de maneiras diferentes, reverberando em outras questões, em outros

trabalhos. E muitas vezes, o artista não tem domínio sobre isso. Às vezes, alguém de fora

fala e o artista toma mais consciência.

Posso ler uma coisa do Blanchot que a Regina me deu? Tem a ver com essa preocupação

e com possíveis apontamentos exteriores. “- Quando você está presente e nós falamos,

eu me dou conta que, quando você se ausenta, eu estou implicado numa palavra que

poderia ser para mim completamente exterior.”

Quando eu li isso, pensei logo numa dimensão da crítica que desconsidera o diálogo. Um

texto crítico não é construído sozinho. Não pode ser linguagem distanciada do trabalho

do artista. Da mesma maneira em que um comentário sobre um trabalho, num processo

de acompanhamento, não pode ser dito “impunemente”.

É isso. Evidenciar por onde essa compreensão está passando é completar a fala do outro.

De fato eu acredito que aos críticos caibam esse papel de formalizar, construir ou

propiciar o espaço de diálogo, que pode ser esse frente a frente, como a gente, ou pode

ser vendo a obra. E o que se estabelece com esse diálogo é um conhecimento produzido

a dois. Ao mesmo tempo em que eu assumo um papel de crítica, tentando conhecer o seu

trabalho, eu acho que você também está resgatando coisas do seu trabalho que vão te

dar novos parâmetros para pensá-lo.

E esse movimento é o grande “x” da questão, de como esse estar junto enriquece a produção.

A Aracy Amaral fala da relação entre o Ronaldo Brito e o Waltércio Caldas.

Ela conta que não é possível saber se as experimentações artísticas do artista são

pautadas pelos questionamentos do crítico ou se é o contrário, dada a intimidade

entre os dois. Acho legítimo posicionar o crítico como alguém que intervem, que troca

com o artista. É impossível colocá-lo como alguém neutro. Seria uma visão purista

demais. Você é uma esponja seletiva, há coisas que você vai absorver e outras que não

vão aderir ao seu trabalho.

É óbvio que a produção é do artista, mas quem acompanha suscita questões, propõe,

colabora em certa medida. Da mesma maneira que eu acredito que meu entendimento de

pintura se alarga e se estende quando você me fala da sua pintura. O que me

alimenta enquanto crítica, de fato, é o processo de produção de um artista. Enquanto isso

Page 39: Convivencias #4

acontece, eu também me questiono sobre essa pintura, também estou fazendo

você pensar sobre a pintura no seu trabalho. É uma via de mão dupla muito fluída.

Você enxerga? Acho que é mais fácil do que a gente imagina que é.

Acho que é mais generoso. Acho que mesmo que não se entre em um consenso, isso também

serve tanto para afirmar posições discordantes e deixar mais claro qual a defesa que você vai

usar, tanto para evidenciar tensões que são comuns a todos.

Mas, Carol, você acha que isso reverbera algo de forma a contribuir no seu trabalho?

A nossa conversa? Acho que sim, porque é um esforço das duas partes, tanto para eu falar

sobre o que estou produzindo e tentar unir os pedaços em um todo, como para quem está de

fora e também quer apontar coisas, que às vezes podem não ser percebidas.

Eu acho que essa é a melhor discussão também para gente

pontuar em uma residência, que é deixar-se estar em contato.

É. Uma vez estava conversando com outro residente, o Gui, e ele falou que estava com várias

dúvidas sobre o trabalho dele e que não sabia direito para onde ir. E eu disse para ele fazer

um “manifesto”. Falei em tom de brincadeira, mas depois pensei que isso era uma ótima ideia.

Porque quando falo, por exemplo, em negar a poética autobiográfica é um pouco definir o que

não quero. Fiz esse exercício quando fui para Nicarágua.

Era exatamente entender o que era arte para cada um!

É. E isso ao mesmo tempo também faz com que eu queira trabalhar. Quando voltei da Nica-

rágua, já tinha um indício desse trabalho. Escrevi na rua com giz de lousa: “Este es el paisaje”.

Eu não queria fazer uma coisa para humanidade. Eu queria fazer uma coisa para mim mesma.

Acho que, às vezes, é negando outras coisas que você se afirma e se autoconstitui.

Claro! Acho que é mais difícil para você, que é crítica, que tem que encarar extremos totalmen-

te opostos com a mesma seriedade. Acho extremamente difícil conseguir ter essa abertura tão

grande. É difícil você jogar com tudo isso.

Para mim, o crítico só consegue passear por todos esses territórios da arte,

se pensar que sua atividade não inclui, pelo menos idealmente, juízo de valor.

O texto crítico aponta possibilidades de leitura e conversa com a obra.

Blanchot, Maurice. A conversa Infinita.

São Paulo: Escuta, 2010.

Nos primeiros trabalhos, a

composição era muito mais

simples. Eu me apropriava de

fotografias de placas de lojas, de

fachadas, e as pintava em meio

a um por do sol. Elas acabavam

se dissolvendo neste céu, sem

uma referência da arquitetura ou

limites claros do próprio objeto.

Residência RAPACES: Tiempo y

Lugar, promovido pelo Espira La

Espora, e ocorrido em Granada,

Nicarágua, em 2009.

“Quando, nos anos 70, conheci

Ronaldo Brito e Waltércio

Caldas, tive a impressão de que

estava diante de um fenômeno

novo: não sabia se a obra então

produzida por Waltércio Caldas

provinha da relação intelectual

de ambos, ou se Ronaldo Brito

escrevia a partir de obras

nascidas de suas especulações

teóricas diante da observação

das esculturas de Waltércio”

(Aracy Amaral, 2006, em

O purgatório do artista).

Page 40: Convivencias #4

apropriação foram se tornando cada vez mais complexas. É como uma teia, as questões

vão se ligando de maneiras diferentes, reverberando em outras questões, em outros

trabalhos. E muitas vezes, o artista não tem domínio sobre isso. Às vezes, alguém de fora

fala e o artista toma mais consciência.

Posso ler uma coisa do Blanchot que a Regina me deu? Tem a ver com essa preocupação

e com possíveis apontamentos exteriores. “- Quando você está presente e nós falamos,

eu me dou conta que, quando você se ausenta, eu estou implicado numa palavra que

poderia ser para mim completamente exterior.”

Quando eu li isso, pensei logo numa dimensão da crítica que desconsidera o diálogo. Um

texto crítico não é construído sozinho. Não pode ser linguagem distanciada do trabalho

do artista. Da mesma maneira em que um comentário sobre um trabalho, num processo

de acompanhamento, não pode ser dito “impunemente”.

É isso. Evidenciar por onde essa compreensão está passando é completar a fala do outro.

De fato eu acredito que aos críticos caibam esse papel de formalizar, construir ou

propiciar o espaço de diálogo, que pode ser esse frente a frente, como a gente, ou pode

ser vendo a obra. E o que se estabelece com esse diálogo é um conhecimento produzido

a dois. Ao mesmo tempo em que eu assumo um papel de crítica, tentando conhecer o seu

trabalho, eu acho que você também está resgatando coisas do seu trabalho que vão te

dar novos parâmetros para pensá-lo.

E esse movimento é o grande “x” da questão, de como esse estar junto enriquece a produção.

A Aracy Amaral fala da relação entre o Ronaldo Brito e o Waltércio Caldas.

Ela conta que não é possível saber se as experimentações artísticas do artista são

pautadas pelos questionamentos do crítico ou se é o contrário, dada a intimidade

entre os dois. Acho legítimo posicionar o crítico como alguém que intervem, que troca

com o artista. É impossível colocá-lo como alguém neutro. Seria uma visão purista

demais. Você é uma esponja seletiva, há coisas que você vai absorver e outras que não

vão aderir ao seu trabalho.

É óbvio que a produção é do artista, mas quem acompanha suscita questões, propõe,

colabora em certa medida. Da mesma maneira que eu acredito que meu entendimento de

pintura se alarga e se estende quando você me fala da sua pintura. O que me

alimenta enquanto crítica, de fato, é o processo de produção de um artista. Enquanto isso

Blanchot, Maurice. A conversa Infinita.

São Paulo: Escuta, 2010.

Nos primeiros trabalhos, a

composição era muito mais

simples. Eu me apropriava de

fotografias de placas de lojas, de

fachadas, e as pintava em meio

a um por do sol. Elas acabavam

se dissolvendo neste céu, sem

uma referência da arquitetura ou

limites claros do próprio objeto.

“Quando, nos anos 70, conheci

Ronaldo Brito e Waltércio

Caldas, tive a impressão de que

estava diante de um fenômeno

novo: não sabia se a obra então

produzida por Waltércio Caldas

provinha da relação intelectual

de ambos, ou se Ronaldo Brito

escrevia a partir de obras

nascidas de suas especulações

teóricas diante da observação

das esculturas de Waltércio”

(Aracy Amaral, 2006, em

O purgatório do artista).

Page 41: Convivencias #4

acontece, eu também me questiono sobre essa pintura, também estou fazendo

você pensar sobre a pintura no seu trabalho. É uma via de mão dupla muito fluída.

Você enxerga? Acho que é mais fácil do que a gente imagina que é.

Acho que é mais generoso. Acho que mesmo que não se entre em um consenso, isso também

serve tanto para afirmar posições discordantes e deixar mais claro qual a defesa que você vai

usar, tanto para evidenciar tensões que são comuns a todos.

Mas, Carol, você acha que isso reverbera algo de forma a contribuir no seu trabalho?

A nossa conversa? Acho que sim, porque é um esforço das duas partes, tanto para eu falar

sobre o que estou produzindo e tentar unir os pedaços em um todo, como para quem está de

fora e também quer apontar coisas, que às vezes podem não ser percebidas.

Eu acho que essa é a melhor discussão também para gente

pontuar em uma residência, que é deixar-se estar em contato.

É. Uma vez estava conversando com outro residente, o Gui, e ele falou que estava com várias

dúvidas sobre o trabalho dele e que não sabia direito para onde ir. E eu disse para ele fazer

um “manifesto”. Falei em tom de brincadeira, mas depois pensei que isso era uma ótima ideia.

Porque quando falo, por exemplo, em negar a poética autobiográfica é um pouco definir o que

não quero. Fiz esse exercício quando fui para Nicarágua.

Era exatamente entender o que era arte para cada um!

É. E isso ao mesmo tempo também faz com que eu queira trabalhar. Quando voltei da Nica-

rágua, já tinha um indício desse trabalho. Escrevi na rua com giz de lousa: “Este es el paisaje”.

Eu não queria fazer uma coisa para humanidade. Eu queria fazer uma coisa para mim mesma.

Acho que, às vezes, é negando outras coisas que você se afirma e se autoconstitui.

Claro! Acho que é mais difícil para você, que é crítica, que tem que encarar extremos totalmen-

te opostos com a mesma seriedade. Acho extremamente difícil conseguir ter essa abertura tão

grande. É difícil você jogar com tudo isso.

Para mim, o crítico só consegue passear por todos esses territórios da arte,

se pensar que sua atividade não inclui, pelo menos idealmente, juízo de valor.

O texto crítico aponta possibilidades de leitura e conversa com a obra.

Residência RAPACES: Tiempo y

Lugar, promovido pelo Espira La

Espora, e ocorrido em Granada,

Nicarágua, em 2009.

Page 42: Convivencias #4

apropriação foram se tornando cada vez mais complexas. É como uma teia, as questões

vão se ligando de maneiras diferentes, reverberando em outras questões, em outros

trabalhos. E muitas vezes, o artista não tem domínio sobre isso. Às vezes, alguém de fora

fala e o artista toma mais consciência.

Posso ler uma coisa do Blanchot que a Regina me deu? Tem a ver com essa preocupação

e com possíveis apontamentos exteriores. “- Quando você está presente e nós falamos,

eu me dou conta que, quando você se ausenta, eu estou implicado numa palavra que

poderia ser para mim completamente exterior.”

Quando eu li isso, pensei logo numa dimensão da crítica que desconsidera o diálogo. Um

texto crítico não é construído sozinho. Não pode ser linguagem distanciada do trabalho

do artista. Da mesma maneira em que um comentário sobre um trabalho, num processo

de acompanhamento, não pode ser dito “impunemente”.

É isso. Evidenciar por onde essa compreensão está passando é completar a fala do outro.

De fato eu acredito que aos críticos caibam esse papel de formalizar, construir ou

propiciar o espaço de diálogo, que pode ser esse frente a frente, como a gente, ou pode

ser vendo a obra. E o que se estabelece com esse diálogo é um conhecimento produzido

a dois. Ao mesmo tempo em que eu assumo um papel de crítica, tentando conhecer o seu

trabalho, eu acho que você também está resgatando coisas do seu trabalho que vão te

dar novos parâmetros para pensá-lo.

E esse movimento é o grande “x” da questão, de como esse estar junto enriquece a produção.

A Aracy Amaral fala da relação entre o Ronaldo Brito e o Waltércio Caldas.

Ela conta que não é possível saber se as experimentações artísticas do artista são

pautadas pelos questionamentos do crítico ou se é o contrário, dada a intimidade

entre os dois. Acho legítimo posicionar o crítico como alguém que intervem, que troca

com o artista. É impossível colocá-lo como alguém neutro. Seria uma visão purista

demais. Você é uma esponja seletiva, há coisas que você vai absorver e outras que não

vão aderir ao seu trabalho.

É óbvio que a produção é do artista, mas quem acompanha suscita questões, propõe,

colabora em certa medida. Da mesma maneira que eu acredito que meu entendimento de

pintura se alarga e se estende quando você me fala da sua pintura. O que me

alimenta enquanto crítica, de fato, é o processo de produção de um artista. Enquanto isso

Blanchot, Maurice. A conversa Infinita.

São Paulo: Escuta, 2010.

Nos primeiros trabalhos, a

composição era muito mais

simples. Eu me apropriava de

fotografias de placas de lojas, de

fachadas, e as pintava em meio

a um por do sol. Elas acabavam

se dissolvendo neste céu, sem

uma referência da arquitetura ou

limites claros do próprio objeto.

Residência RAPACES: Tiempo y

Lugar, promovido pelo Espira La

Espora, e ocorrido em Granada,

Nicarágua, em 2009.

“Quando, nos anos 70, conheci

Ronaldo Brito e Waltércio

Caldas, tive a impressão de que

estava diante de um fenômeno

novo: não sabia se a obra então

produzida por Waltércio Caldas

provinha da relação intelectual

de ambos, ou se Ronaldo Brito

escrevia a partir de obras

nascidas de suas especulações

teóricas diante da observação

das esculturas de Waltércio”

(Aracy Amaral, 2006, em

O purgatório do artista).

Page 43: Convivencias #4

acontece, eu também me questiono sobre essa pintura, também estou fazendo

você pensar sobre a pintura no seu trabalho. É uma via de mão dupla muito fluída.

Você enxerga? Acho que é mais fácil do que a gente imagina que é.

Acho que é mais generoso. Acho que mesmo que não se entre em um consenso, isso também

serve tanto para afirmar posições discordantes e deixar mais claro qual a defesa que você vai

usar, tanto para evidenciar tensões que são comuns a todos.

Mas, Carol, você acha que isso reverbera algo de forma a contribuir no seu trabalho?

A nossa conversa? Acho que sim, porque é um esforço das duas partes, tanto para eu falar

sobre o que estou produzindo e tentar unir os pedaços em um todo, como para quem está de

fora e também quer apontar coisas, que às vezes podem não ser percebidas.

Eu acho que essa é a melhor discussão também para gente

pontuar em uma residência, que é deixar-se estar em contato.

É. Uma vez estava conversando com outro residente, o Gui, e ele falou que estava com várias

dúvidas sobre o trabalho dele e que não sabia direito para onde ir. E eu disse para ele fazer

um “manifesto”. Falei em tom de brincadeira, mas depois pensei que isso era uma ótima ideia.

Porque quando falo, por exemplo, em negar a poética autobiográfica é um pouco definir o que

não quero. Fiz esse exercício quando fui para Nicarágua.

Era exatamente entender o que era arte para cada um!

É. E isso ao mesmo tempo também faz com que eu queira trabalhar. Quando voltei da Nica-

rágua, já tinha um indício desse trabalho. Escrevi na rua com giz de lousa: “Este es el paisaje”.

Eu não queria fazer uma coisa para humanidade. Eu queria fazer uma coisa para mim mesma.

Acho que, às vezes, é negando outras coisas que você se afirma e se autoconstitui.

Claro! Acho que é mais difícil para você, que é crítica, que tem que encarar extremos totalmen-

te opostos com a mesma seriedade. Acho extremamente difícil conseguir ter essa abertura tão

grande. É difícil você jogar com tudo isso.

Para mim, o crítico só consegue passear por todos esses territórios da arte,

se pensar que sua atividade não inclui, pelo menos idealmente, juízo de valor.

O texto crítico aponta possibilidades de leitura e conversa com a obra.

Page 44: Convivencias #4

Eu acho que o fundamental de uma construção crítica é fazer com que

as pessoas tenham uma outra aproximação com o trabalho. E para mim

essa aproximação pode se viabilizar por viés processual.

Eu entendo, uma outra aproximação do trabalho, e ao mesmo tempo essa outra aproximação

do trabalho é um segundo momento de um embate que já existiu. E esse embate que já exis-

tiu, por si só, já precisa proporcionar um deslocamento. Aí está a minha dificuldade. É muito

difícil achar esse primeiro embate.

Às vezes eu acho que não vem imediatamente.

Mas você não acha que se não vem imediatamente não é também falhar um pouco?

Eu acho que os conteúdos agem de forma diferente. Às vezes

vagarosamente, às vezes depois, às vezes vem quando você recebe

um outro estímulo e aí você resignifica o trabalho.

Eu fico pensando que é uma resistência. A partir do momento em que experiencio um traba-

lho, e que esse trabalho, neste primeiro momento, não me proporciona um deslocamento, não

diga a que veio e que é preciso buscar uma bula, ter que buscar esse segundo, esse terceiro

momento, eu me perco dele.

Eu acho, Carol, que isso tem muito a ver com uma urgência sua como artista.

Estou pensando em como quero articular meu discurso para que ele se mostre.

Esse “se mostrar” e a força e a potência de trabalho fazem com que você

veja trabalhos por um olhar que é de artista. Eu acho que isso já tem muito

do seu olhar. Carol, essa resistência ou negação de alguns trabalhos, que você

desconsidera como arte, são afirmações do seu próprio trabalho.

É isso. Por um lado é totalmente autoritário que eu negue o que não me agrada, por outro,

delimito o campo que acho possível trabalhar. Não consigo abrir, porque se abrir, me perco.

Consigo identificar sua fala completamente no seu trabalho. Não é uma

equiparação, mas os questionamentos estão aqui presentes. E eu acho que

tem essa estranheza exatamente porque tem essas questões que não se resolveram.

Mas a pintura se estabeleceu mais forte. Eu acho que agora parece mais pintura que

Page 45: Convivencias #4

as outras telas, por exemplo. A materialidade te impõe questões?

É. Foi, na verdade, uma volta. No começo eu imprimia uma tela e colava o papel. Comecei a

imprimir direto na tela porque tinha problema de colagem e isso foi uma coisa que, durante o

tempo que fiquei aqui, vi que não estava caminhando para o lado bom. Aí voltei para o papel.

Há questionamentos no seu trabalho, nas relações entre as obras, que funcionam

como trampolins para você pensar em outros projetos, outros problemas.

Page 46: Convivencias #4

Eu acho que o fundamental de uma construção crítica é fazer com que

as pessoas tenham uma outra aproximação com o trabalho. E para mim

essa aproximação pode se viabilizar por viés processual.

Eu entendo, uma outra aproximação do trabalho, e ao mesmo tempo essa outra aproximação

do trabalho é um segundo momento de um embate que já existiu. E esse embate que já exis-

tiu, por si só, já precisa proporcionar um deslocamento. Aí está a minha dificuldade. É muito

difícil achar esse primeiro embate.

Às vezes eu acho que não vem imediatamente.

Mas você não acha que se não vem imediatamente não é também falhar um pouco?

Eu acho que os conteúdos agem de forma diferente. Às vezes

vagarosamente, às vezes depois, às vezes vem quando você recebe

um outro estímulo e aí você resignifica o trabalho.

Eu fico pensando que é uma resistência. A partir do momento em que experiencio um traba-

lho, e que esse trabalho, neste primeiro momento, não me proporciona um deslocamento, não

diga a que veio e que é preciso buscar uma bula, ter que buscar esse segundo, esse terceiro

momento, eu me perco dele.

Eu acho, Carol, que isso tem muito a ver com uma urgência sua como artista.

Estou pensando em como quero articular meu discurso para que ele se mostre.

Esse “se mostrar” e a força e a potência de trabalho fazem com que você

veja trabalhos por um olhar que é de artista. Eu acho que isso já tem muito

do seu olhar. Carol, essa resistência ou negação de alguns trabalhos, que você

desconsidera como arte, são afirmações do seu próprio trabalho.

É isso. Por um lado é totalmente autoritário que eu negue o que não me agrada, por outro,

delimito o campo que acho possível trabalhar. Não consigo abrir, porque se abrir, me perco.

Consigo identificar sua fala completamente no seu trabalho. Não é uma

equiparação, mas os questionamentos estão aqui presentes. E eu acho que

tem essa estranheza exatamente porque tem essas questões que não se resolveram.

Mas a pintura se estabeleceu mais forte. Eu acho que agora parece mais pintura que

Page 47: Convivencias #4

as outras telas, por exemplo. A materialidade te impõe questões?

É. Foi, na verdade, uma volta. No começo eu imprimia uma tela e colava o papel. Comecei a

imprimir direto na tela porque tinha problema de colagem e isso foi uma coisa que, durante o

tempo que fiquei aqui, vi que não estava caminhando para o lado bom. Aí voltei para o papel.

Há questionamentos no seu trabalho, nas relações entre as obras, que funcionam

como trampolins para você pensar em outros projetos, outros problemas.

Page 48: Convivencias #4
Page 49: Convivencias #4

Durante a residência eu fiz alguns registros de observações sobre seu trabalho,

pontuações como efeito transformador, as noções, as relações e os fluxos entre pintura

e desenho; o que era intervenção para você; a obra como um espaço aberto a ruídos

colaborativos. Em um dos nossos encontros, você falou algo que me chamou atenção:

“meu trabalho é um lugar de registro”. Ao meu ver, são anotações visuais acontecendo

processualmente... Como todo trabalho, claro, mas tenho a sensação de que o processo

de pintura e esse registro em camadas ao longo do tempo são fundamentais. Você

questiona a pintura, ao mesmo tempo em que ela é sua matéria-prima e linguagem.

É isso mesmo, basicamente o que você falou. Não dá para considerar que faço só pintura ou só

desenho. E as linguagens vão se construindo com o tempo. Acho importante que meu traba-

lho consiga ter um caráter que aceita transformações e registros ao longo da produção.

Estou há quatro meses em uma residência, me dedicando a apenas uma obra. Talvez o que eu

faço no primeiro mês possa virar outra coisa no quarto mês. Quero inserir todos esses elemen-

tos. Tento dar ao trabalho esse caráter de aceitar novos elementos, aceitar anotações, aceitar

campos de agregação de elementos que conversam mais, agregação de elementos que con-

versam menos, usando tinta, lápis, caneta, spray, tudo isso. E essa diversidade vem um pouco

das minhas referências na cidade, que é a partir de onde eu consigo entender um pouco como

essas coisas se juntam e como essa composição é possível. Comecei a minha relação com a

pintura na cidade e eu caminho muito por aí.

Você já grafitou?

Pixava e fazia grafitti, com uns doze anos. Isso me deu a oportunidade de entender que o que

me interessava não era o grafitti, nem a pixação. Mas era a cidade em si, o que a cidade discutia

de pintura, o que a cidade discutia de desenho, de colagem, de assemblage, de agregação...

Como se a cidade fosse uma pele recebendo essas alterações?

Isso! Em São Paulo não se consegue ver linha do horizonte, mas eu tentava ver através da

minha janela. Eu fiz isso! A janela pode enquadrar uma imagem e transforma tudo em bidi-

mensional e eu transformo aquele enquadramento em divisão de cores. Isso praticamente se

transformou no que é o meu trabalho. É uma composição que busco, são alguns acúmulos e

alguns vazios. Lembro bem desse momento: alguns prédios à esquerda, outros prédios à di-

reita, um pedaço de céu no meio e esses acúmulos de cor e mais uma parede chapada. Penso

a composição muito através disso.

gal :: pjota

Para essa conversa com o Pjota

elenquei algumas observações

feitas durante nossos encontros

na casa e reuniões com o grupo.

Essas observações me ajudaram

a construir uma espécie de

mapa visual, com conceitos-

chave sobre seu percurso de

criação, que nos guiaram como

um roteiro de sugestões para

nossa conversa. Vale ressaltar

que a fala do artista revelou

outras de suas inquietações e

ainda pontuaram discussões

relevantes.

Page 50: Convivencias #4

Para essa conversa com o Pjota

elenquei algumas observações

feitas durante nossos encontros

na casa e reuniões com o grupo.

Essas observações me ajudaram

a construir uma espécie de

mapa visual, com conceitos-

chave sobre seu percurso de

criação, que nos guiaram como

um roteiro de sugestões para

nossa conversa. Vale ressaltar

que a fala do artista revelou

outras de suas inquietações e

ainda pontuaram discussões

relevantes.

Page 51: Convivencias #4

Durante a residência eu fiz alguns registros de observações sobre seu trabalho,

pontuações como efeito transformador, as noções, as relações e os fluxos entre pintura

e desenho; o que era intervenção para você; a obra como um espaço aberto a ruídos

colaborativos. Em um dos nossos encontros, você falou algo que me chamou atenção:

“meu trabalho é um lugar de registro”. Ao meu ver, são anotações visuais acontecendo

processualmente... Como todo trabalho, claro, mas tenho a sensação de que o processo

de pintura e esse registro em camadas ao longo do tempo são fundamentais. Você

questiona a pintura, ao mesmo tempo em que ela é sua matéria-prima e linguagem.

É isso mesmo, basicamente o que você falou. Não dá para considerar que faço só pintura ou só

desenho. E as linguagens vão se construindo com o tempo. Acho importante que meu traba-

lho consiga ter um caráter que aceita transformações e registros ao longo da produção.

Estou há quatro meses em uma residência, me dedicando a apenas uma obra. Talvez o que eu

faço no primeiro mês possa virar outra coisa no quarto mês. Quero inserir todos esses elemen-

tos. Tento dar ao trabalho esse caráter de aceitar novos elementos, aceitar anotações, aceitar

campos de agregação de elementos que conversam mais, agregação de elementos que con-

versam menos, usando tinta, lápis, caneta, spray, tudo isso. E essa diversidade vem um pouco

das minhas referências na cidade, que é a partir de onde eu consigo entender um pouco como

essas coisas se juntam e como essa composição é possível. Comecei a minha relação com a

pintura na cidade e eu caminho muito por aí.

Você já grafitou?

Pixava e fazia grafitti, com uns doze anos. Isso me deu a oportunidade de entender que o que

me interessava não era o grafitti, nem a pixação. Mas era a cidade em si, o que a cidade discutia

de pintura, o que a cidade discutia de desenho, de colagem, de assemblage, de agregação...

Como se a cidade fosse uma pele recebendo essas alterações?

Isso! Em São Paulo não se consegue ver linha do horizonte, mas eu tentava ver através da

minha janela. Eu fiz isso! A janela pode enquadrar uma imagem e transforma tudo em bidi-

mensional e eu transformo aquele enquadramento em divisão de cores. Isso praticamente se

transformou no que é o meu trabalho. É uma composição que busco, são alguns acúmulos e

alguns vazios. Lembro bem desse momento: alguns prédios à esquerda, outros prédios à di-

reita, um pedaço de céu no meio e esses acúmulos de cor e mais uma parede chapada. Penso

a composição muito através disso.

gal :: pjota

Page 52: Convivencias #4

Isso se tornou um trabalho?

Não, não se tornou um trabalho específico, mas eu sempre tento olhar desse jeito. Esses dias

estava olhando uma caçamba, havia umas estruturas com cores, uma padronagem. E essas

coisas me interessam. Em alguns momentos até faço uns pantones, divisões com várias cores.

Campos de cor?

É. Quase isso. Quase um campo de cor, mesmo. Só que campos de cores são mais chapados, o

que faço é uma pintura um pouco mais realista com manchas, com alterações. E aí que entra

um pouco essa discussão sobre o que é a pintura, sobre o que são esses campos de cor.

Você pretende sempre provocar relação entre as coisas.

É, tudo o que faço se relaciona de alguma maneira. Penso na forma como se dá a pintura da

cidade, que são essas manchas, esses rabiscos de banheiro ou de ponto de ônibus, essas cores

que às vezes se apagam. Também me refiro a elementos de construção, de plantas. A ideia

principal é juntar elementos que aparentemente não tem nada a ver, que se remetam à cons-

trução: uma arma – ela constrói e desconstrói; um trator, que é um elemento de construção da

cidade. Parecem não estar em relação, mas podem apresentar um ponto de junção. E aí tam-

bém tento – não que tento especificamente – mas gosto de juntar coisas diferentes e às vezes,

meio inocentemente, só porque eu gosto e mais nada. Nunca parto de uma só ideia principal.

Eu não me encaixo nessa produção de pintura que aborda apenas uma temática na tela. O que

me interessa não é discutir apenas um assunto. E essa é a maneira que componho uma obra –

bidimensional, no caso – discutindo vários assuntos que me inquietam, tanto de arte, de vida,

quanto de alguns momentos políticos, por exemplo.

Há acréscimos, acúmulos e sobreposições ao longo do processo. Talvez não se devam

necessariamente ao acaso, mas se abrem aos acontecimentos. E isso se dá na tela. É difícil

falar mais claramente porque a pintura, como qualquer outra linguagem, é processual,

pode ser corrigida, o tema pode mudar.

Mas tenho a sensação que existe uma espécie de pretensão processual. Ao longo do tempo,

essa obra vai se construindo e os movimentos dessa construção podem ser notados na

própria tela. Não se reconhece uma hierarquia ou uma linha do tempo, mas é possível

observar que os elementos foram compostos aos poucos. Acho que isso faz um link com

o que você fala sobre registro no seu trabalho. Se a gente tomar registro, como algo que

Page 53: Convivencias #4

acontece ao longo do tempo, de acordo com observações que são tecidas no cotidiano.

E é isso mesmo. É isso que você falou. Às vezes quero colocar uma coisa num dia, no dia se-

guinte, já escolho algo das pesquisas que faço. E eu coloco na tela. Não tenho o esboço dessas

composições. E vou fazendo diretamente na tela. Não treino isso antes, eu vou fazer no próprio

trabalho, que é o trabalho final. E se aquilo interessar ou se o resultado final me agradar, eu

deixo, senão apago.

E essa questão do apagar e das camadas para mim não são um problema. As coisas que apago

ainda podem aparecer. Não quero que aquilo suma completamente. Não vejo nada como final.

Acho que isso tem a ver com as pesquisas que faço.

Estou escrevendo um projeto agora e comecei a pensar na relação do meu trabalho com

pesquisa de elementos, de imagens, de cores, de material, e de como eu quero que a minha

visão cotidiana se torne pesquisa. Isso tem a ver com o jeito que encaro a cidade, andando,

observando.

Naquele dia que a gente estava andando, indo para casa, isso ficou muito claro para mim.

A gente olhou para um canteiro que tinha uma árvore e uns restos de madeira e você

disse: “É isso! Me dá vontade de levar pra casa”. Lembra?

É, verdade. O tempo inteiro estou, mesmo que inconscientemente, pensando nisso. E como

penso essa relação com a cidade desde cedo, a minha visão já está condicionada a procurar

esses elementos: nos muros, buscando desenhos, que tornam a cidade para mim uma compo-

sição bidimensional. E desse jeito, o trabalho tem que ser como registro, como uma pesquisa.

O processo também acaba sendo o trabalho final.

É como se você quisesse deixar aparente todas essas camadas.

É isso mesmo. Eu gosto, além de tudo, da estética disso, de como isso tudo se relaciona, de

maneira tosca – não sei se é a palavra certa – com manchas se misturando a uma pintura que

é extremamente técnica, mais realista a um monte de risco, de coisas fúteis, meio bobas. O

simples dialoga com o complexo.

Não há algo considerado como digno de ser registrado. Existem as coisas do dia a dia,

existe o seu olhar na cidade. E tudo isso vai se mesclando.

A complexidade está em como essas coisas se relacionam. Como eu estava falando: procuro

um ponto em comum entre uma planta, uma arma e um tucano, por exemplo. Poderia até

Isso se dá por conta talvez de uma

relação muito próxima do meu

trabalho com a vida.

O artista não tem pudor.

A tela pode receber todas

as materialidades, temas e

desenhos em qualquer fase

de produção.

A tela tem camadas sobrepostas

de vestígios, tentativas de outras

imagens, rascunhos.

“O artista observa o mundo e

recolhe aquilo que, por algum

motivo, o interessa. Trata-

se de um percurso sensível e

epistemológico de coleta (...).

Esse armazenamento parece ser

importante, pois funciona como

um potencial a ser, a qualquer

momento, explorado, atua

como uma memória para obras”

(SALLES, 2006,p. 51).

Page 54: Convivencias #4

Isso se tornou um trabalho?

Não, não se tornou um trabalho específico, mas eu sempre tento olhar desse jeito. Esses dias

estava olhando uma caçamba, havia umas estruturas com cores, uma padronagem. E essas

coisas me interessam. Em alguns momentos até faço uns pantones, divisões com várias cores.

Campos de cor?

É. Quase isso. Quase um campo de cor, mesmo. Só que campos de cores são mais chapados, o

que faço é uma pintura um pouco mais realista com manchas, com alterações. E aí que entra

um pouco essa discussão sobre o que é a pintura, sobre o que são esses campos de cor.

Você pretende sempre provocar relação entre as coisas.

É, tudo o que faço se relaciona de alguma maneira. Penso na forma como se dá a pintura da

cidade, que são essas manchas, esses rabiscos de banheiro ou de ponto de ônibus, essas cores

que às vezes se apagam. Também me refiro a elementos de construção, de plantas. A ideia

principal é juntar elementos que aparentemente não tem nada a ver, que se remetam à cons-

trução: uma arma – ela constrói e desconstrói; um trator, que é um elemento de construção da

cidade. Parecem não estar em relação, mas podem apresentar um ponto de junção. E aí tam-

bém tento – não que tento especificamente – mas gosto de juntar coisas diferentes e às vezes,

meio inocentemente, só porque eu gosto e mais nada. Nunca parto de uma só ideia principal.

Eu não me encaixo nessa produção de pintura que aborda apenas uma temática na tela. O que

me interessa não é discutir apenas um assunto. E essa é a maneira que componho uma obra –

bidimensional, no caso – discutindo vários assuntos que me inquietam, tanto de arte, de vida,

quanto de alguns momentos políticos, por exemplo.

Há acréscimos, acúmulos e sobreposições ao longo do processo. Talvez não se devam

necessariamente ao acaso, mas se abrem aos acontecimentos. E isso se dá na tela. É difícil

falar mais claramente porque a pintura, como qualquer outra linguagem, é processual,

pode ser corrigida, o tema pode mudar.

Mas tenho a sensação que existe uma espécie de pretensão processual. Ao longo do tempo,

essa obra vai se construindo e os movimentos dessa construção podem ser notados na

própria tela. Não se reconhece uma hierarquia ou uma linha do tempo, mas é possível

observar que os elementos foram compostos aos poucos. Acho que isso faz um link com

o que você fala sobre registro no seu trabalho. Se a gente tomar registro, como algo que

Page 55: Convivencias #4

acontece ao longo do tempo, de acordo com observações que são tecidas no cotidiano.

E é isso mesmo. É isso que você falou. Às vezes quero colocar uma coisa num dia, no dia se-

guinte, já escolho algo das pesquisas que faço. E eu coloco na tela. Não tenho o esboço dessas

composições. E vou fazendo diretamente na tela. Não treino isso antes, eu vou fazer no próprio

trabalho, que é o trabalho final. E se aquilo interessar ou se o resultado final me agradar, eu

deixo, senão apago.

E essa questão do apagar e das camadas para mim não são um problema. As coisas que apago

ainda podem aparecer. Não quero que aquilo suma completamente. Não vejo nada como final.

Acho que isso tem a ver com as pesquisas que faço.

Estou escrevendo um projeto agora e comecei a pensar na relação do meu trabalho com

pesquisa de elementos, de imagens, de cores, de material, e de como eu quero que a minha

visão cotidiana se torne pesquisa. Isso tem a ver com o jeito que encaro a cidade, andando,

observando.

Naquele dia que a gente estava andando, indo para casa, isso ficou muito claro para mim.

A gente olhou para um canteiro que tinha uma árvore e uns restos de madeira e você

disse: “É isso! Me dá vontade de levar pra casa”. Lembra?

É, verdade. O tempo inteiro estou, mesmo que inconscientemente, pensando nisso. E como

penso essa relação com a cidade desde cedo, a minha visão já está condicionada a procurar

esses elementos: nos muros, buscando desenhos, que tornam a cidade para mim uma compo-

sição bidimensional. E desse jeito, o trabalho tem que ser como registro, como uma pesquisa.

O processo também acaba sendo o trabalho final.

É como se você quisesse deixar aparente todas essas camadas.

É isso mesmo. Eu gosto, além de tudo, da estética disso, de como isso tudo se relaciona, de

maneira tosca – não sei se é a palavra certa – com manchas se misturando a uma pintura que

é extremamente técnica, mais realista a um monte de risco, de coisas fúteis, meio bobas. O

simples dialoga com o complexo.

Não há algo considerado como digno de ser registrado. Existem as coisas do dia a dia,

existe o seu olhar na cidade. E tudo isso vai se mesclando.

A complexidade está em como essas coisas se relacionam. Como eu estava falando: procuro

um ponto em comum entre uma planta, uma arma e um tucano, por exemplo. Poderia até

Isso se dá por conta talvez de uma

relação muito próxima do meu

trabalho com a vida.

O artista não tem pudor.

A tela pode receber todas

as materialidades, temas e

desenhos em qualquer fase

de produção.

A tela tem camadas sobrepostas

de vestígios, tentativas de outras

imagens, rascunhos.

“O artista observa o mundo e

recolhe aquilo que, por algum

motivo, o interessa. Trata-

se de um percurso sensível e

epistemológico de coleta (...).

Esse armazenamento parece ser

importante, pois funciona como

um potencial a ser, a qualquer

momento, explorado, atua

como uma memória para obras”

(SALLES, 2006,p. 51).

Page 56: Convivencias #4

Isso se tornou um trabalho?

Não, não se tornou um trabalho específico, mas eu sempre tento olhar desse jeito. Esses dias

estava olhando uma caçamba, havia umas estruturas com cores, uma padronagem. E essas

coisas me interessam. Em alguns momentos até faço uns pantones, divisões com várias cores.

Campos de cor?

É. Quase isso. Quase um campo de cor, mesmo. Só que campos de cores são mais chapados, o

que faço é uma pintura um pouco mais realista com manchas, com alterações. E aí que entra

um pouco essa discussão sobre o que é a pintura, sobre o que são esses campos de cor.

Você pretende sempre provocar relação entre as coisas.

É, tudo o que faço se relaciona de alguma maneira. Penso na forma como se dá a pintura da

cidade, que são essas manchas, esses rabiscos de banheiro ou de ponto de ônibus, essas cores

que às vezes se apagam. Também me refiro a elementos de construção, de plantas. A ideia

principal é juntar elementos que aparentemente não tem nada a ver, que se remetam à cons-

trução: uma arma – ela constrói e desconstrói; um trator, que é um elemento de construção da

cidade. Parecem não estar em relação, mas podem apresentar um ponto de junção. E aí tam-

bém tento – não que tento especificamente – mas gosto de juntar coisas diferentes e às vezes,

meio inocentemente, só porque eu gosto e mais nada. Nunca parto de uma só ideia principal.

Eu não me encaixo nessa produção de pintura que aborda apenas uma temática na tela. O que

me interessa não é discutir apenas um assunto. E essa é a maneira que componho uma obra –

bidimensional, no caso – discutindo vários assuntos que me inquietam, tanto de arte, de vida,

quanto de alguns momentos políticos, por exemplo.

Há acréscimos, acúmulos e sobreposições ao longo do processo. Talvez não se devam

necessariamente ao acaso, mas se abrem aos acontecimentos. E isso se dá na tela. É difícil

falar mais claramente porque a pintura, como qualquer outra linguagem, é processual,

pode ser corrigida, o tema pode mudar.

Mas tenho a sensação que existe uma espécie de pretensão processual. Ao longo do tempo,

essa obra vai se construindo e os movimentos dessa construção podem ser notados na

própria tela. Não se reconhece uma hierarquia ou uma linha do tempo, mas é possível

observar que os elementos foram compostos aos poucos. Acho que isso faz um link com

o que você fala sobre registro no seu trabalho. Se a gente tomar registro, como algo que

Isso se dá por conta talvez de uma

relação muito próxima do meu

trabalho com a vida.

O artista não tem pudor.

A tela pode receber todas

as materialidades, temas e

desenhos em qualquer fase

de produção.

A tela tem camadas sobrepostas

de vestígios, tentativas de outras

imagens, rascunhos.

“O artista observa o mundo e

recolhe aquilo que, por algum

motivo, o interessa. Trata-

se de um percurso sensível e

epistemológico de coleta (...).

Esse armazenamento parece ser

importante, pois funciona como

um potencial a ser, a qualquer

momento, explorado, atua

como uma memória para obras”

(SALLES, 2006,p. 51).

Page 57: Convivencias #4

acontece ao longo do tempo, de acordo com observações que são tecidas no cotidiano.

E é isso mesmo. É isso que você falou. Às vezes quero colocar uma coisa num dia, no dia se-

guinte, já escolho algo das pesquisas que faço. E eu coloco na tela. Não tenho o esboço dessas

composições. E vou fazendo diretamente na tela. Não treino isso antes, eu vou fazer no próprio

trabalho, que é o trabalho final. E se aquilo interessar ou se o resultado final me agradar, eu

deixo, senão apago.

E essa questão do apagar e das camadas para mim não são um problema. As coisas que apago

ainda podem aparecer. Não quero que aquilo suma completamente. Não vejo nada como final.

Acho que isso tem a ver com as pesquisas que faço.

Estou escrevendo um projeto agora e comecei a pensar na relação do meu trabalho com

pesquisa de elementos, de imagens, de cores, de material, e de como eu quero que a minha

visão cotidiana se torne pesquisa. Isso tem a ver com o jeito que encaro a cidade, andando,

observando.

Naquele dia que a gente estava andando, indo para casa, isso ficou muito claro para mim.

A gente olhou para um canteiro que tinha uma árvore e uns restos de madeira e você

disse: “É isso! Me dá vontade de levar pra casa”. Lembra?

É, verdade. O tempo inteiro estou, mesmo que inconscientemente, pensando nisso. E como

penso essa relação com a cidade desde cedo, a minha visão já está condicionada a procurar

esses elementos: nos muros, buscando desenhos, que tornam a cidade para mim uma compo-

sição bidimensional. E desse jeito, o trabalho tem que ser como registro, como uma pesquisa.

O processo também acaba sendo o trabalho final.

É como se você quisesse deixar aparente todas essas camadas.

É isso mesmo. Eu gosto, além de tudo, da estética disso, de como isso tudo se relaciona, de

maneira tosca – não sei se é a palavra certa – com manchas se misturando a uma pintura que

é extremamente técnica, mais realista a um monte de risco, de coisas fúteis, meio bobas. O

simples dialoga com o complexo.

Não há algo considerado como digno de ser registrado. Existem as coisas do dia a dia,

existe o seu olhar na cidade. E tudo isso vai se mesclando.

A complexidade está em como essas coisas se relacionam. Como eu estava falando: procuro

um ponto em comum entre uma planta, uma arma e um tucano, por exemplo. Poderia até

Page 58: Convivencias #4

escolher imagens mais próximas, mas o conceito acontece nesse espaço distante onde as

coisas se unem.

Talvez, essa escolha que parece não priorizar algo, de fato prioriza, porque tem uma

seleção, tem um registro do olho, tem uma busca, como você falou. Eu acho que isso

acompanha o lidar como a tela, que vai se construindo porosamente, obviamente

com seleção, mas, como se ela fosse retendo e sugando essa sua pesquisa. E isso pode

acontecer entre o “tosco” e o mais “complexo”, pode ser aliando o “simples” a esses

elementos de construção que você está sempre procurando.

Isso. Para mim isso não tem a ver com uma hierarquia. Está tudo ali, proposto, sem uma ima-

gem principal. A composição não é usual, os componentes vão se juntando e se agregando. Há

coisas que são mais soltas. Penso uma composição como uma quase não-composição.

Tem uma hierarquia diferente. Não é uma hierarquia baseada em critérios tão fixos. Está

aberta a modificações e transformações ao longo do processo. De novo a gente fala em

processo. A obra vai acontecendo e ela vai retendo essas modificações e aí, como você

disse, isso tudo fica muito aparente.

Outro ponto que eu gostaria de discutir com você é sobre a abertura e a proposta de

colaboração que você pretendia dar ao trabalho. O quanto dessa intenção se viabilizou?

O que eu queria de colaboração foi o que aconteceu. Alguns elementos, que são quase ruídos,

foram surgindo como um registro do movimento da Casa Tomada.

As questões, que giravam em torno dessas suas pretensões sobre colaboração e

intervenção foram bastante discutidas entre nós. Até que ponto havia uma ressalva para

essa abertura ao outro, a outros gestos? Em que medida o trabalho poderia aceitar essas

transformações? O trabalho dependia disso?

Não, nem era a minha intenção que dependesse.

Há outras propostas de colaboração que eu pretendo fazer, outros projetos que talvez depen-

dam mais de colaboração. Eu pensava nessas intervenções como mais um elemento que me

interessa para a construção do meu próprio trabalho. Essas participações poderiam ser um

problema na pintura. Geralmente o artista não quer que outra pessoa vá na tela e intervenha.

No meu caso, isso não é um problema. É mais um camada que me interessa, que agrega outros

valores ao trabalho.

Page 59: Convivencias #4

Você acha que, de certa forma, essas pequenas intervenções disparam possibilidades de

outras composições, de outros temas ou uma vontade de construir algo em torno do que

foi ali proposto?

Em alguns momentos, sim. Os desenhos do Guilherme na tela formam uma força maior.

Algum além do Batman?

Sim, ele também desenhou uma caveira ali na Igreja. Visualmente esses desenhos se agrupam

e formatam um campo de atração maior.

Você pintou algo por conta do desenho do Guilherme?

Sim. Aquele adesivo e a mancha branca geraram um acúmulo por conta dessa intervenção

do Guilherme. É curioso: ninguém fez nada no espaço branco. O espaço em branco deveria

chamar essas intervenções. Mas a minha ideia era realmente deixar branco.

Lembro de um dia que a gente conversou e eu disse que parecia que o trabalho tinha

dado uma pausa ali na terceira tela e que parecia uma pausa dramática.

Essa pausa tem uma importância para mim na composição, principalmente quando as telas

estiverem na parede.

É um espaço de respiro na composição, sem ser óbvio.

Em alguns momentos eu sugeri o espaço na tela para intervenção, com a Carol foi assim. Mas

as pessoas que interagiram no trabalho estavam livres. Essas intervenções aconteceram pela

primeira vez. Foi mais uma experiência.

Essa foi a primeira vez que você abriu o trabalho para intervenções?

Uma única vez, propus a um amigo, que nem era artista.

E você consegue observar, depois desses meses aqui na casa, depois te ter feito suas

pesquisas, essas camadas de assuntos no trabalho?

Consigo ver alguns. Tem algumas coisas que me interessam: as armas, que falam de uma certa

violência, os desenhos que parecem desenhos de cadeia, essa sobreposição de assuntos que

não parecem da arte. Não consigo falar de um único tema. Acho que essa é maneira como

penso também.

Estava expondo na Galeria

Choque, em 2009, e uma criança

assinou o nome dela em uma das

telas, por vontade própria.

No início da residência, o Pjota

estudava as possibilidades de

uma pintura produzida em

colaboração. As telas estariam

abertas a intervenções,

colaborações e modificações.

Segundo ele, essa ideia ganhou

força quando uma criança

escreveu o próprio nome em

um de seus trabalhos, em 2009.

A artista Regina Parra, também

residente, questionava Pjota

sobre que tipo de abertura ele

daria ao outro e em uma de

nossas reuniões citou um trecho

do livro A Discussion with Jacques

Derrida: “Abrir meu espaço,

minha casa – minha língua,

minha nação, meu Estado, meu

próprio eu. Eu não tenho que

abrir porque está aberto, está

aberto antes mesmo de eu

tomar uma decisão a respeito:

então eu tenho que manter

aberto ou tentar manter aberto

incondicionalmente (...). Tentar

abrir meu espaço não é tentar

incluir o Outro no meu espaço.

Pedir que ele ou ela aprenda a

minha língua ou adote minha

religião ou se torne inglês ou se

torne francês. (...) Se eu quero

abrir minha casa, é claro que

minha cama é sua cama, mas

você quer usar minha cama? –

é uma cama, você tem que se

acostumar a ela; isto é o que

eu como, eu posso te dar o

que eu como; você tem que se

acostumar a isto. Mas tem aí um

jogo duplo, ao mesmo tempo

em que eu tenho que respeitar

a singularidade do Outro,

não devo pedir que ele ou ela

respeite ou mantenha intacto

meu próprio espaço ou minha

própria cultura”

Page 60: Convivencias #4

escolher imagens mais próximas, mas o conceito acontece nesse espaço distante onde as

coisas se unem.

Talvez, essa escolha que parece não priorizar algo, de fato prioriza, porque tem uma

seleção, tem um registro do olho, tem uma busca, como você falou. Eu acho que isso

acompanha o lidar como a tela, que vai se construindo porosamente, obviamente

com seleção, mas, como se ela fosse retendo e sugando essa sua pesquisa. E isso pode

acontecer entre o “tosco” e o mais “complexo”, pode ser aliando o “simples” a esses

elementos de construção que você está sempre procurando.

Isso. Para mim isso não tem a ver com uma hierarquia. Está tudo ali, proposto, sem uma ima-

gem principal. A composição não é usual, os componentes vão se juntando e se agregando. Há

coisas que são mais soltas. Penso uma composição como uma quase não-composição.

Tem uma hierarquia diferente. Não é uma hierarquia baseada em critérios tão fixos. Está

aberta a modificações e transformações ao longo do processo. De novo a gente fala em

processo. A obra vai acontecendo e ela vai retendo essas modificações e aí, como você

disse, isso tudo fica muito aparente.

Outro ponto que eu gostaria de discutir com você é sobre a abertura e a proposta de

colaboração que você pretendia dar ao trabalho. O quanto dessa intenção se viabilizou?

O que eu queria de colaboração foi o que aconteceu. Alguns elementos, que são quase ruídos,

foram surgindo como um registro do movimento da Casa Tomada.

As questões, que giravam em torno dessas suas pretensões sobre colaboração e

intervenção foram bastante discutidas entre nós. Até que ponto havia uma ressalva para

essa abertura ao outro, a outros gestos? Em que medida o trabalho poderia aceitar essas

transformações? O trabalho dependia disso?

Não, nem era a minha intenção que dependesse.

Há outras propostas de colaboração que eu pretendo fazer, outros projetos que talvez depen-

dam mais de colaboração. Eu pensava nessas intervenções como mais um elemento que me

interessa para a construção do meu próprio trabalho. Essas participações poderiam ser um

problema na pintura. Geralmente o artista não quer que outra pessoa vá na tela e intervenha.

No meu caso, isso não é um problema. É mais um camada que me interessa, que agrega outros

valores ao trabalho.

No início da residência, o Pjota

estudava as possibilidades de

uma pintura produzida em

colaboração. As telas estariam

abertas a intervenções,

colaborações e modificações.

Segundo ele, essa ideia ganhou

força quando uma criança

escreveu o próprio nome em

um de seus trabalhos, em 2009.

A artista Regina Parra, também

residente, questionava Pjota

sobre que tipo de abertura ele

daria ao outro e em uma de

nossas reuniões citou um trecho

do livro A Discussion with Jacques

Derrida: “Abrir meu espaço,

minha casa – minha língua,

minha nação, meu Estado, meu

próprio eu. Eu não tenho que

abrir porque está aberto, está

aberto antes mesmo de eu

tomar uma decisão a respeito:

então eu tenho que manter

aberto ou tentar manter aberto

incondicionalmente (...). Tentar

abrir meu espaço não é tentar

incluir o Outro no meu espaço.

Pedir que ele ou ela aprenda a

minha língua ou adote minha

religião ou se torne inglês ou se

torne francês. (...) Se eu quero

abrir minha casa, é claro que

minha cama é sua cama, mas

você quer usar minha cama? –

é uma cama, você tem que se

acostumar a ela; isto é o que

eu como, eu posso te dar o

que eu como; você tem que se

acostumar a isto. Mas tem aí um

jogo duplo, ao mesmo tempo

em que eu tenho que respeitar

a singularidade do Outro,

não devo pedir que ele ou ela

respeite ou mantenha intacto

meu próprio espaço ou minha

própria cultura”

Page 61: Convivencias #4

Você acha que, de certa forma, essas pequenas intervenções disparam possibilidades de

outras composições, de outros temas ou uma vontade de construir algo em torno do que

foi ali proposto?

Em alguns momentos, sim. Os desenhos do Guilherme na tela formam uma força maior.

Algum além do Batman?

Sim, ele também desenhou uma caveira ali na Igreja. Visualmente esses desenhos se agrupam

e formatam um campo de atração maior.

Você pintou algo por conta do desenho do Guilherme?

Sim. Aquele adesivo e a mancha branca geraram um acúmulo por conta dessa intervenção

do Guilherme. É curioso: ninguém fez nada no espaço branco. O espaço em branco deveria

chamar essas intervenções. Mas a minha ideia era realmente deixar branco.

Lembro de um dia que a gente conversou e eu disse que parecia que o trabalho tinha

dado uma pausa ali na terceira tela e que parecia uma pausa dramática.

Essa pausa tem uma importância para mim na composição, principalmente quando as telas

estiverem na parede.

É um espaço de respiro na composição, sem ser óbvio.

Em alguns momentos eu sugeri o espaço na tela para intervenção, com a Carol foi assim. Mas

as pessoas que interagiram no trabalho estavam livres. Essas intervenções aconteceram pela

primeira vez. Foi mais uma experiência.

Essa foi a primeira vez que você abriu o trabalho para intervenções?

Uma única vez, propus a um amigo, que nem era artista.

E você consegue observar, depois desses meses aqui na casa, depois te ter feito suas

pesquisas, essas camadas de assuntos no trabalho?

Consigo ver alguns. Tem algumas coisas que me interessam: as armas, que falam de uma certa

violência, os desenhos que parecem desenhos de cadeia, essa sobreposição de assuntos que

não parecem da arte. Não consigo falar de um único tema. Acho que essa é maneira como

penso também.

Estava expondo na Galeria

Choque, em 2009, e uma criança

assinou o nome dela em uma das

telas, por vontade própria.

Page 62: Convivencias #4

escolher imagens mais próximas, mas o conceito acontece nesse espaço distante onde as

coisas se unem.

Talvez, essa escolha que parece não priorizar algo, de fato prioriza, porque tem uma

seleção, tem um registro do olho, tem uma busca, como você falou. Eu acho que isso

acompanha o lidar como a tela, que vai se construindo porosamente, obviamente

com seleção, mas, como se ela fosse retendo e sugando essa sua pesquisa. E isso pode

acontecer entre o “tosco” e o mais “complexo”, pode ser aliando o “simples” a esses

elementos de construção que você está sempre procurando.

Isso. Para mim isso não tem a ver com uma hierarquia. Está tudo ali, proposto, sem uma ima-

gem principal. A composição não é usual, os componentes vão se juntando e se agregando. Há

coisas que são mais soltas. Penso uma composição como uma quase não-composição.

Tem uma hierarquia diferente. Não é uma hierarquia baseada em critérios tão fixos. Está

aberta a modificações e transformações ao longo do processo. De novo a gente fala em

processo. A obra vai acontecendo e ela vai retendo essas modificações e aí, como você

disse, isso tudo fica muito aparente.

Outro ponto que eu gostaria de discutir com você é sobre a abertura e a proposta de

colaboração que você pretendia dar ao trabalho. O quanto dessa intenção se viabilizou?

O que eu queria de colaboração foi o que aconteceu. Alguns elementos, que são quase ruídos,

foram surgindo como um registro do movimento da Casa Tomada.

As questões, que giravam em torno dessas suas pretensões sobre colaboração e

intervenção foram bastante discutidas entre nós. Até que ponto havia uma ressalva para

essa abertura ao outro, a outros gestos? Em que medida o trabalho poderia aceitar essas

transformações? O trabalho dependia disso?

Não, nem era a minha intenção que dependesse.

Há outras propostas de colaboração que eu pretendo fazer, outros projetos que talvez depen-

dam mais de colaboração. Eu pensava nessas intervenções como mais um elemento que me

interessa para a construção do meu próprio trabalho. Essas participações poderiam ser um

problema na pintura. Geralmente o artista não quer que outra pessoa vá na tela e intervenha.

No meu caso, isso não é um problema. É mais um camada que me interessa, que agrega outros

valores ao trabalho.

Estava expondo na Galeria

Choque, em 2009, e uma criança

assinou o nome dela em uma das

telas, por vontade própria.

No início da residência, o Pjota

estudava as possibilidades de

uma pintura produzida em

colaboração. As telas estariam

abertas a intervenções,

colaborações e modificações.

Segundo ele, essa ideia ganhou

força quando uma criança

escreveu o próprio nome em

um de seus trabalhos, em 2009.

A artista Regina Parra, também

residente, questionava Pjota

sobre que tipo de abertura ele

daria ao outro e em uma de

nossas reuniões citou um trecho

do livro A Discussion with Jacques

Derrida: “Abrir meu espaço,

minha casa – minha língua,

minha nação, meu Estado, meu

próprio eu. Eu não tenho que

abrir porque está aberto, está

aberto antes mesmo de eu

tomar uma decisão a respeito:

então eu tenho que manter

aberto ou tentar manter aberto

incondicionalmente (...). Tentar

abrir meu espaço não é tentar

incluir o Outro no meu espaço.

Pedir que ele ou ela aprenda a

minha língua ou adote minha

religião ou se torne inglês ou se

torne francês. (...) Se eu quero

abrir minha casa, é claro que

minha cama é sua cama, mas

você quer usar minha cama? –

é uma cama, você tem que se

acostumar a ela; isto é o que

eu como, eu posso te dar o

que eu como; você tem que se

acostumar a isto. Mas tem aí um

jogo duplo, ao mesmo tempo

em que eu tenho que respeitar

a singularidade do Outro,

não devo pedir que ele ou ela

respeite ou mantenha intacto

meu próprio espaço ou minha

própria cultura”

Page 63: Convivencias #4

Você acha que, de certa forma, essas pequenas intervenções disparam possibilidades de

outras composições, de outros temas ou uma vontade de construir algo em torno do que

foi ali proposto?

Em alguns momentos, sim. Os desenhos do Guilherme na tela formam uma força maior.

Algum além do Batman?

Sim, ele também desenhou uma caveira ali na Igreja. Visualmente esses desenhos se agrupam

e formatam um campo de atração maior.

Você pintou algo por conta do desenho do Guilherme?

Sim. Aquele adesivo e a mancha branca geraram um acúmulo por conta dessa intervenção

do Guilherme. É curioso: ninguém fez nada no espaço branco. O espaço em branco deveria

chamar essas intervenções. Mas a minha ideia era realmente deixar branco.

Lembro de um dia que a gente conversou e eu disse que parecia que o trabalho tinha

dado uma pausa ali na terceira tela e que parecia uma pausa dramática.

Essa pausa tem uma importância para mim na composição, principalmente quando as telas

estiverem na parede.

É um espaço de respiro na composição, sem ser óbvio.

Em alguns momentos eu sugeri o espaço na tela para intervenção, com a Carol foi assim. Mas

as pessoas que interagiram no trabalho estavam livres. Essas intervenções aconteceram pela

primeira vez. Foi mais uma experiência.

Essa foi a primeira vez que você abriu o trabalho para intervenções?

Uma única vez, propus a um amigo, que nem era artista.

E você consegue observar, depois desses meses aqui na casa, depois te ter feito suas

pesquisas, essas camadas de assuntos no trabalho?

Consigo ver alguns. Tem algumas coisas que me interessam: as armas, que falam de uma certa

violência, os desenhos que parecem desenhos de cadeia, essa sobreposição de assuntos que

não parecem da arte. Não consigo falar de um único tema. Acho que essa é maneira como

penso também.

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Page 71: Convivencias #4
Page 72: Convivencias #4

Há umas observações do cotidiano.

O cotidiano é a base, mas faço intervenções. Então, o que está no trabalho não é como a gente vê

na vida, por assim dizer. Quando você olha para as telas, você pensa diretamente no cotidiano?

Não. Aqui tem outra formatação, outras relações de linguagem e significado.

São essas ligações que eu estava falando para você. Não são visíveis, mas elas existem e elas

não são soltas uma da outra. No momento que uso uma caneta bic numa pintura já quebro a

noção de pintura. A matéria-prima influencia no recurso que utilizo e vice-versa.

Claro. Está tudo relacionado.

Eu acho que o conceito é muito mais complexo do que a imagem. Essa imagem abrange mui-

tas camadas de imagem.

Quando estávamos no primeiro mês da residência, lembro de vir aqui no ateliê e você

me disse: “Está quase na hora de fazer o chão”. Esse “chão” é um elemento importante na

composição?

É, fiz o chão, mas já não quero mais pintá-lo.

Você está querendo tirar?

Não, vou deixar nesse trabalho, mas no próximo não vou fazer um chão como esse. Estou pen-

sando em coisas mais soltas, como as que faço no papel. Minha vontade muda. Eu comecei a

fazer o chão porque achava que estava tudo muito solto na composição. Queria uns campos

maiores de cor. É uma coisa meio cíclica.

Que você sabe só quando começa a produzir?

É, porque para mim também não importa só o conceito. O trabalho pede uma forma.

Uma superfície?

Sim. Na tela há uma busca por um virtuosismo formal. Não estou dizendo que a minha pintura

é tão boa assim, mas eu busco.

Seu processo de construção de imagem é diferente. A imagem vai se espalhando

nessas telas em grande formato. E não se dá por completude. Você vai ocupando esses

Page 73: Convivencias #4

espaços de forma fragmentada, como registros, que vão se acumulando aos poucos.

São temas interligados numa trama complexa, que vai se expandindo processualmente,

engendrando temas, imagens, intervenções e até trocas dialógicas.

Acredito que quando o Guilherme fez os desenhos você visualizou um campo que

necessitava de uma continuação. Assim como quando o Marcos Moraes veio aqui e

perguntou sobre o título. Você ainda não tinha uma proposta, mas hoje a gente consegue

visualizar algumas palavras na própria tela, que sugerem um título. Diante disso, é

possível pensar que essas interferências e essas colaborações vêm de outras formas que

não são só visuais.

Eu gosto de pensar nesses links.

São sugestões. E o olhar vai percorrendo esses entrelaçamentos. É um trabalho que

propõe um tempo para pensar, para ir construindo essas relações.

É, são associações de conteúdos e de imagens e construção de significados.

A trama se dá por inferência. Por exemplo, o que é que um tubarão tem a ver com um

passarinho, que tem a ver com um pinguim, e com uma planta? E por que as palavras

“processo” e “trabalho” estão escritas na tela?

É que todo esse processo faz parte da obra.

Vejo um grande mapa de associações.

Também. Isso é muito importante para o meu trabalho. Não sei se as pessoas entendem, mas

busco na construção dessas imagens uma associação conceitual e visual que proponha dire-

cionamentos. Talvez não entenda exatamente porque eu escrevi “the natural history”, mas isso

vai propor um pensamento, uma percepção, que vão se construindo até enxergar o pinguim, e

depois o trator. E o significado vai se dando nessas relações.

É, como se as peças estivessem na tela, mas o jogo fica a critério de quem vê.

A obra está aberta às interpretações.

Pode-se pensar numa espécie de efeito transformador entre as imagens que aparecem

na tela: à medida que foram sendo construídas foram transformando as anteriores. A

estética das telas também passa isso: essas imagens foram aparecendo, sugerindo outros

Page 74: Convivencias #4

Há umas observações do cotidiano.

O cotidiano é a base, mas faço intervenções. Então, o que está no trabalho não é como a gente vê

na vida, por assim dizer. Quando você olha para as telas, você pensa diretamente no cotidiano?

Não. Aqui tem outra formatação, outras relações de linguagem e significado.

São essas ligações que eu estava falando para você. Não são visíveis, mas elas existem e elas

não são soltas uma da outra. No momento que uso uma caneta bic numa pintura já quebro a

noção de pintura. A matéria-prima influencia no recurso que utilizo e vice-versa.

Claro. Está tudo relacionado.

Eu acho que o conceito é muito mais complexo do que a imagem. Essa imagem abrange mui-

tas camadas de imagem.

Quando estávamos no primeiro mês da residência, lembro de vir aqui no ateliê e você

me disse: “Está quase na hora de fazer o chão”. Esse “chão” é um elemento importante na

composição?

É, fiz o chão, mas já não quero mais pintá-lo.

Você está querendo tirar?

Não, vou deixar nesse trabalho, mas no próximo não vou fazer um chão como esse. Estou pen-

sando em coisas mais soltas, como as que faço no papel. Minha vontade muda. Eu comecei a

fazer o chão porque achava que estava tudo muito solto na composição. Queria uns campos

maiores de cor. É uma coisa meio cíclica.

Que você sabe só quando começa a produzir?

É, porque para mim também não importa só o conceito. O trabalho pede uma forma.

Uma superfície?

Sim. Na tela há uma busca por um virtuosismo formal. Não estou dizendo que a minha pintura

é tão boa assim, mas eu busco.

Seu processo de construção de imagem é diferente. A imagem vai se espalhando

nessas telas em grande formato. E não se dá por completude. Você vai ocupando esses

Page 75: Convivencias #4

espaços de forma fragmentada, como registros, que vão se acumulando aos poucos.

São temas interligados numa trama complexa, que vai se expandindo processualmente,

engendrando temas, imagens, intervenções e até trocas dialógicas.

Acredito que quando o Guilherme fez os desenhos você visualizou um campo que

necessitava de uma continuação. Assim como quando o Marcos Moraes veio aqui e

perguntou sobre o título. Você ainda não tinha uma proposta, mas hoje a gente consegue

visualizar algumas palavras na própria tela, que sugerem um título. Diante disso, é

possível pensar que essas interferências e essas colaborações vêm de outras formas que

não são só visuais.

Eu gosto de pensar nesses links.

São sugestões. E o olhar vai percorrendo esses entrelaçamentos. É um trabalho que

propõe um tempo para pensar, para ir construindo essas relações.

É, são associações de conteúdos e de imagens e construção de significados.

A trama se dá por inferência. Por exemplo, o que é que um tubarão tem a ver com um

passarinho, que tem a ver com um pinguim, e com uma planta? E por que as palavras

“processo” e “trabalho” estão escritas na tela?

É que todo esse processo faz parte da obra.

Vejo um grande mapa de associações.

Também. Isso é muito importante para o meu trabalho. Não sei se as pessoas entendem, mas

busco na construção dessas imagens uma associação conceitual e visual que proponha dire-

cionamentos. Talvez não entenda exatamente porque eu escrevi “the natural history”, mas isso

vai propor um pensamento, uma percepção, que vão se construindo até enxergar o pinguim, e

depois o trator. E o significado vai se dando nessas relações.

É, como se as peças estivessem na tela, mas o jogo fica a critério de quem vê.

A obra está aberta às interpretações.

Pode-se pensar numa espécie de efeito transformador entre as imagens que aparecem

na tela: à medida que foram sendo construídas foram transformando as anteriores. A

estética das telas também passa isso: essas imagens foram aparecendo, sugerindo outros

Page 76: Convivencias #4

conteúdos, se modificando e também transformando o contexto que tudo se insere.

É um movimento de acréscimo. E é um movimento transformador mesmo, onde um elemento

depende e transforma outro.

Esses desenhos não são estáticos, resolvidos. Há um conteúdo formal e conceitual no

pinguim, por exemplo, que é dilatável e latente, que recorre à planta que veio antes e vai

recorrer também ao desenho que vai vir depois.

A composição inteira é feita assim mesmo. Por isso que demoro tanto e que as telas sempre es-

tão mudando. Porque uma planta que está ali, daquele tamanho, vai pedir outra coisa ao lado

para que aconteça a composição. Todos os elementos são totalmente ligados. Se eu fizer uma

mancha branca aqui, vou sentir necessidade de fazer uma mancha branca em outro lugar. Já

conheço esse meu processo, é dessa maneira que eu vejo minhas composições: os elementos

dependem um do outro.

Eles sugerem uma relação entre eles. É por isso que eu estou falando desse efeito

transformador. Não só o seu gesto transformador, mas como cada signo depois que está

na tela se transforma com o aparecimento de outro.

É. É bem isso mesmo. Um tempo atrás, eu ia nomear uma exposição de “relações dimensio-

nais”, por causa disso tudo: do tamanho das telas e de como um elemento precisa do outro pra

existir e de como eles vão se construindo dimensionalmente. Por exemplo, o primeiro desenho

elaborado pode estar ao lado de um outro desenho feito três meses depois. E eles vão existir

juntos, em relação. Se eu apagar aquela planta verde, a tela inteira vai ficar, no meu ponto de

vista, desequilibrada. Porque é a minha composição, é o meu jeito de pensar a composição.

Pedi a opinião da Carol. Talvez ela nem notasse essas mudanças na composição, só que para

mim é essencial pensar essa composição como um todo, que vai se dando em partes. Um ris-

quinho de lápis que fiz ali no canto da folha vai sugerir o que vou fazer no outro canto da tela.

Há muitos rascunhos também.

Sim, eu vou apagando, fazendo, reconstruindo, até chegar a um ponto da composição que me

satisfaz. Embora isso demore a acontecer e os rascunhos não desapareçam da tela.

Isso parece reafirmar o que eu digo. Todas essas imagens apresentam um efeito

modificador da atmosfera das telas. Cada signo ao mesmo tempo em que propõe um

Page 77: Convivencias #4

efeito também se transforma. Os signos se transformam na tela, como transformam o

próximo passo, o próximo signo. E a relação dele com o próximo signo faz o signo anterior

também se transformar.

É isso mesmo. Aquela planta verde transforma o resto inteiro e o resto inteiro também trans-

forma a planta, tanto pela composição quanto pela relação das coisas. É claro que na pintura

essas transformações são um pouco rígidas, não consigo fazer tudo que quero. Não é um pho-

toshop. Tenho que lidar com essa dificuldade de fazer manual.

Mas você também apaga coisas?

Apago. Em um outro trabalho, apaguei uma letra que não estava no lugar onde eu queria. A

pintura dessa letra tinha muitos degradês e deu muito trabalho pintar de novo. Não consegui

deixar do jeito que estava. Precisava apagar e deslocar um pouco. Se fosse photoshop seria

bem mais fácil.

Você acabou os trabalhos?

Não sei. Acho que não. Mas, assim, se alguém vier aqui e quiser levar essas telas para a exposição

amanhã não tem problema. Mas se eu ficar aqui mais cinco meses, as telas vão continuar mudando.

É bem claro que o que vai ser apresentado é um instante do trabalho.

É, porque posso aumentar isso 600 vezes. Posso colocar um monte de outras telas ao lado. Não

sei se é certo ou errado, mas é como é a minha produção. Não sei se precisa estar pronto, se

não precisa não estar pronto, mas é como as coisas vão acontecendo.

É um pouco por continuação? Desdobramento?

Eu procuro que seja uma evolução de pensamento, de relação com o próprio trabalho. Para

mim uma coisa tem que levar à outra, senão, não me motivo para produzir. Por isso que tento

não pensar no convencional da pintura, no convencional do desenho, no convencional da tela.

Gosto de pensar como isso vai me atingir como pessoa, no que sou, em relação ao trabalho,

em relação ao que é arte, ao que não é, nas minhas relações com a história da arte.

Você é feito disso também?

Claro. No momento que encosto um pincel numa tela, de uma forma ou de outra vou dialogar

com a história da arte.

Os elementos que acontecem

na tela geram relações entre

os demais e juntos criam

interrelações modificadoras

de uma trama que “rege”

todo o trabalho e se encontra

potencialmente em expansão.

A composição dos elementos

nas 3 telas acontece por embates

visuais e de significados.

As 3 telas produzidas durante

a residência situam-se no

campo da mutabilidade e do

inacabamento. Não me refiro à

estética do inacabado, mas a um

caráter de continuidade como

impulsionador em outras obras.

Novamente, retomo as palavras

de Cecilia Salles: o trabalho

exposto é uma “versão daquilo

que pode vir a ser modificado”

e faz parte de um “processo

inacabado”, que se viabiliza

temporalmente em um processo

contínuo de criação.

Page 78: Convivencias #4

conteúdos, se modificando e também transformando o contexto que tudo se insere.

É um movimento de acréscimo. E é um movimento transformador mesmo, onde um elemento

depende e transforma outro.

Esses desenhos não são estáticos, resolvidos. Há um conteúdo formal e conceitual no

pinguim, por exemplo, que é dilatável e latente, que recorre à planta que veio antes e vai

recorrer também ao desenho que vai vir depois.

A composição inteira é feita assim mesmo. Por isso que demoro tanto e que as telas sempre es-

tão mudando. Porque uma planta que está ali, daquele tamanho, vai pedir outra coisa ao lado

para que aconteça a composição. Todos os elementos são totalmente ligados. Se eu fizer uma

mancha branca aqui, vou sentir necessidade de fazer uma mancha branca em outro lugar. Já

conheço esse meu processo, é dessa maneira que eu vejo minhas composições: os elementos

dependem um do outro.

Eles sugerem uma relação entre eles. É por isso que eu estou falando desse efeito

transformador. Não só o seu gesto transformador, mas como cada signo depois que está

na tela se transforma com o aparecimento de outro.

É. É bem isso mesmo. Um tempo atrás, eu ia nomear uma exposição de “relações dimensio-

nais”, por causa disso tudo: do tamanho das telas e de como um elemento precisa do outro pra

existir e de como eles vão se construindo dimensionalmente. Por exemplo, o primeiro desenho

elaborado pode estar ao lado de um outro desenho feito três meses depois. E eles vão existir

juntos, em relação. Se eu apagar aquela planta verde, a tela inteira vai ficar, no meu ponto de

vista, desequilibrada. Porque é a minha composição, é o meu jeito de pensar a composição.

Pedi a opinião da Carol. Talvez ela nem notasse essas mudanças na composição, só que para

mim é essencial pensar essa composição como um todo, que vai se dando em partes. Um ris-

quinho de lápis que fiz ali no canto da folha vai sugerir o que vou fazer no outro canto da tela.

Há muitos rascunhos também.

Sim, eu vou apagando, fazendo, reconstruindo, até chegar a um ponto da composição que me

satisfaz. Embora isso demore a acontecer e os rascunhos não desapareçam da tela.

Isso parece reafirmar o que eu digo. Todas essas imagens apresentam um efeito

modificador da atmosfera das telas. Cada signo ao mesmo tempo em que propõe um

Os elementos que acontecem

na tela geram relações entre

os demais e juntos criam

interrelações modificadoras

de uma trama que “rege”

todo o trabalho e se encontra

potencialmente em expansão.

A composição dos elementos

nas 3 telas acontece por embates

visuais e de significados.

As 3 telas produzidas durante

a residência situam-se no

campo da mutabilidade e do

inacabamento. Não me refiro à

estética do inacabado, mas a um

caráter de continuidade como

impulsionador em outras obras.

Novamente, retomo as palavras

de Cecilia Salles: o trabalho

exposto é uma “versão daquilo

que pode vir a ser modificado”

e faz parte de um “processo

inacabado”, que se viabiliza

temporalmente em um processo

contínuo de criação.

Page 79: Convivencias #4

efeito também se transforma. Os signos se transformam na tela, como transformam o

próximo passo, o próximo signo. E a relação dele com o próximo signo faz o signo anterior

também se transformar.

É isso mesmo. Aquela planta verde transforma o resto inteiro e o resto inteiro também trans-

forma a planta, tanto pela composição quanto pela relação das coisas. É claro que na pintura

essas transformações são um pouco rígidas, não consigo fazer tudo que quero. Não é um pho-

toshop. Tenho que lidar com essa dificuldade de fazer manual.

Mas você também apaga coisas?

Apago. Em um outro trabalho, apaguei uma letra que não estava no lugar onde eu queria. A

pintura dessa letra tinha muitos degradês e deu muito trabalho pintar de novo. Não consegui

deixar do jeito que estava. Precisava apagar e deslocar um pouco. Se fosse photoshop seria

bem mais fácil.

Você acabou os trabalhos?

Não sei. Acho que não. Mas, assim, se alguém vier aqui e quiser levar essas telas para a exposição

amanhã não tem problema. Mas se eu ficar aqui mais cinco meses, as telas vão continuar mudando.

É bem claro que o que vai ser apresentado é um instante do trabalho.

É, porque posso aumentar isso 600 vezes. Posso colocar um monte de outras telas ao lado. Não

sei se é certo ou errado, mas é como é a minha produção. Não sei se precisa estar pronto, se

não precisa não estar pronto, mas é como as coisas vão acontecendo.

É um pouco por continuação? Desdobramento?

Eu procuro que seja uma evolução de pensamento, de relação com o próprio trabalho. Para

mim uma coisa tem que levar à outra, senão, não me motivo para produzir. Por isso que tento

não pensar no convencional da pintura, no convencional do desenho, no convencional da tela.

Gosto de pensar como isso vai me atingir como pessoa, no que sou, em relação ao trabalho,

em relação ao que é arte, ao que não é, nas minhas relações com a história da arte.

Você é feito disso também?

Claro. No momento que encosto um pincel numa tela, de uma forma ou de outra vou dialogar

com a história da arte.

Page 80: Convivencias #4

Você carrega um peso simbólico, do que você tomar para si

e em cima do que você discute.

Todo trabalho de arte se fundamenta na discussão que pode suscitar. É isso que tento propor:

uma discussão tanto para mim quanto para outras pessoas.

Page 81: Convivencias #4
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Você carrega um peso simbólico, do que você tomar para si

e em cima do que você discute.

Todo trabalho de arte se fundamenta na discussão que pode suscitar. É isso que tento propor:

uma discussão tanto para mim quanto para outras pessoas.

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Page 85: Convivencias #4

Gui, durante alguns encontros aqui na Casa Tomada, inclusive em um dia com

o Bernardo Mosqueira, nós discutimos muito sobre arte militante, sobre os

posicionamentos dos artistas diante dos problemas da contemporaneidade. Você

e a Carol falaram muito sobre o teor revolucionário de alguns trabalhos e de como

propor questionamentos na arte.

Acho que a gente vive um momento de muita dificuldade de converter retórica

em resultado, depois de ter passado por meia dúzia de desilusões, planos

fracassados e algumas tentativas em vão. A dinâmica das utopias parece ter se

diluído em projetos vagos e frustrantes. A arte não passa ilesa. Segundo a Claire

Bishop, a arte parece ter se tornado a última esfera de reivindicação e discussão

e ainda, em certa medida, sem dar conta de todas essas pretensões.

Ficou bem claro durante a residência que essas questões pontuam sua produção. Como

seu trabalho lida com esses temas e com essas suposições de esvaziamento de urgências?

Eu me questiono sobre isso o tempo todo: ainda é possível uma ação revolucionária? Ou cons-

truir algo que transforme o mundo e as pessoas? Às vezes acho que me acomodar nessa im-

possibilidade é justamente uma situação conformista. Virou regra não pensar no que poderia

ser possível. Não se sabe mais como tomar uma atitude política. Será que o mercado de arte

está esperando isso de um trabalho? Ou se o mercado espera um trabalho político porque isso

vende? Parece que as pretensões de ação revolucionária também foram incorporadas. E aí, me

pergunto como é possível fazer algo para fugir de toda essa situação.

Às vezes, não vejo muitas saídas de como agir nesse mundo onde tudo pode ser incorporado

pelo mercado. É uma pergunta que eu lanço e que nem sei a resposta.

Você acha que mesmo as exceções na arte estão virando regra?

E que, nesse sentido, o seu trabalho tem que ocorrer como um desvio?

Acho quase impossível pensar em exceções que não sejam rapidamente absorvidas. E não

corro por fora, senão eu não estaria aqui dentro, não toparia expor na Galeria Vermelho, não

estaria me inserindo num circuito.

Então, seu trabalho se constrói inserido nesses circuitos? Como elaborar uma brecha?

Não pretendo criar um projeto específico, nem quero colocar regras de como agir no mundo.

Eu não quero quebrar com nada, porque ainda não sei o que deveria vir no lugar. Não tenho o

“meu” projeto, uma “utopia”. Sinto que alguma coisa precisa mudar, mas eu não sei como, nem

gal :: guilherme

A conversa com o Guilherme

Peters aconteceu depois da

captação das imagens do seu

vídeo. Sentamos rodeados por

seus desenhos de soldados,

War poems, Medo líquido, de

Zygmunt Bauman; Bem-vindo ao

deserto do real, de Slavoj Zizek;

O livro vermelho, de Mao Tse-

Tung; Ensaios sobre o medo, de

Adauto Novaes. Próximo a nós

também estavam suas anotações

sobre o seminário Revoluções

(abril/2011) – uma espécie de

caderno de anotações aberto.

“E se, pelo contrário, essa

“condenação” constituísse

a oportunidade histórica a

partir da qual, nos últimos

dez anos, vem surgindo a

maioria dos mundos artísticos

que conhecemos? Essa

“oportunidade” cabe em poucas

palavras: aprender a habitar

melhor o mundo, em vez de

tentar construí-lo a partir de uma

ideia preconcebida de evolução

histórica. Em outros termos, as

obras já não perseguem a meta

de formar realidades imaginárias

ou utópicas, mas procuram

constituir modos de existência

ou modelos de ação dentro da

realidade existente, qualquer

que seja a escala escolhida pelo

artista” (Nicolas Bourriaud, em

Estética Relacional, 2009).

Como tomar o poder se não se

sabe o que colocar no lugar.

Page 86: Convivencias #4

A conversa com o Guilherme

Peters aconteceu depois da

captação das imagens do seu

vídeo. Sentamos rodeados por

seus desenhos de soldados,

War poems, Medo líquido, de

Zygmunt Bauman; Bem-vindo ao

deserto do real, de Slavoj Zizek;

O livro vermelho, de Mao Tse-

Tung; Ensaios sobre o medo, de

Adauto Novaes. Próximo a nós

também estavam suas anotações

sobre o seminário Revoluções

(abril/2011) – uma espécie de

caderno de anotações aberto.

“E se, pelo contrário, essa

“condenação” constituísse

a oportunidade histórica a

partir da qual, nos últimos

dez anos, vem surgindo a

maioria dos mundos artísticos

que conhecemos? Essa

“oportunidade” cabe em poucas

palavras: aprender a habitar

melhor o mundo, em vez de

tentar construí-lo a partir de uma

ideia preconcebida de evolução

histórica. Em outros termos, as

obras já não perseguem a meta

de formar realidades imaginárias

ou utópicas, mas procuram

constituir modos de existência

ou modelos de ação dentro da

realidade existente, qualquer

que seja a escala escolhida pelo

artista” (Nicolas Bourriaud, em

Estética Relacional, 2009).

Como tomar o poder se não se

sabe o que colocar no lugar.

Page 87: Convivencias #4

Gui, durante alguns encontros aqui na Casa Tomada, inclusive em um dia com

o Bernardo Mosqueira, nós discutimos muito sobre arte militante, sobre os

posicionamentos dos artistas diante dos problemas da contemporaneidade. Você

e a Carol falaram muito sobre o teor revolucionário de alguns trabalhos e de como

propor questionamentos na arte.

Acho que a gente vive um momento de muita dificuldade de converter retórica

em resultado, depois de ter passado por meia dúzia de desilusões, planos

fracassados e algumas tentativas em vão. A dinâmica das utopias parece ter se

diluído em projetos vagos e frustrantes. A arte não passa ilesa. Segundo a Claire

Bishop, a arte parece ter se tornado a última esfera de reivindicação e discussão

e ainda, em certa medida, sem dar conta de todas essas pretensões.

Ficou bem claro durante a residência que essas questões pontuam sua produção. Como

seu trabalho lida com esses temas e com essas suposições de esvaziamento de urgências?

Eu me questiono sobre isso o tempo todo: ainda é possível uma ação revolucionária? Ou cons-

truir algo que transforme o mundo e as pessoas? Às vezes acho que me acomodar nessa im-

possibilidade é justamente uma situação conformista. Virou regra não pensar no que poderia

ser possível. Não se sabe mais como tomar uma atitude política. Será que o mercado de arte

está esperando isso de um trabalho? Ou se o mercado espera um trabalho político porque isso

vende? Parece que as pretensões de ação revolucionária também foram incorporadas. E aí, me

pergunto como é possível fazer algo para fugir de toda essa situação.

Às vezes, não vejo muitas saídas de como agir nesse mundo onde tudo pode ser incorporado

pelo mercado. É uma pergunta que eu lanço e que nem sei a resposta.

Você acha que mesmo as exceções na arte estão virando regra?

E que, nesse sentido, o seu trabalho tem que ocorrer como um desvio?

Acho quase impossível pensar em exceções que não sejam rapidamente absorvidas. E não

corro por fora, senão eu não estaria aqui dentro, não toparia expor na Galeria Vermelho, não

estaria me inserindo num circuito.

Então, seu trabalho se constrói inserido nesses circuitos? Como elaborar uma brecha?

Não pretendo criar um projeto específico, nem quero colocar regras de como agir no mundo.

Eu não quero quebrar com nada, porque ainda não sei o que deveria vir no lugar. Não tenho o

“meu” projeto, uma “utopia”. Sinto que alguma coisa precisa mudar, mas eu não sei como, nem

gal :: guilherme

Page 88: Convivencias #4

por onde começar. Não sei ainda como combater o sistema.

Talvez não tenha sido muito claro, mas tudo ainda está nebuloso para mim. São assuntos que

exploro, não tenho certezas construídas.

Está claro, sim. Acho que é na conversa que a gente vai se encontrar.

Quando a gente fala para o outro, às vezes, acaba resignificando tudo.

O título do seu trabalho diz muito sobre tudo isso, sobre essas percepções

que você ainda não domina, como você mesmo disse.

Ainda tenho dúvidas sobre o título. Você não acha que fica meio didático? Ou que o título pode

ser apenas uma entrada no trabalho?

Eu gosto muito de trabalhos com títulos. Às vezes, o artista propõe um

direcionamento ou joga com significados através do título. O título do seu trabalho,

por exemplo, recorre a uma ausência de um inimigo comum a todos nós, ao mesmo

tempo em que elabora uma ameaça, que não se sabe de onde vem.

Quando você falou sobre seu projeto, no começo da residência, os filmes

de guerra e os poemas eram uma referência forte. Mas essas referências traziam

muito claramente quem era o inimigo. Há aí uma contradição?

Esse trabalho vem muito de algumas discussões, de coisas que compartilho com meus ami-

gos. Às vezes, até de maneira nostálgica, eles pensam que uma verdadeira mudança só faria

sentido se fosse violenta. Eu não concordo. A gente nem tem uma possibilidade de confronto

porque não se sabe ao certo com o que se confrontar. Antes, a gente via nações lutando nas

guerras defendendo seu povo, seus interesses. Parece que nada tem mais vínculo. Tudo virou

virtual: o capital, as relações... Como uma guerra é traçada? Quem a define? Tudo ficou muito

difuso. Não se veste mais uma ideologia. A gente vive um fracasso da noção de nação. Antes de

ser um país, uma cultura, onde as pessoas se reúnem em torno de uma língua, o Brasil é uma

empresa, uma economia.

Eu entendo seu discurso como uma espécie de cartografia de uma

situação contemporânea: ausência de identidades. Nesse sentido,

não reconhecemos nossos inimigos. Parece que eles estão à espreita.

As imagens que assisti do seu vídeo formatam uma atmosfera de tensão, de um medo

latente rondando, como se o soldado estivesse sendo vigiado, pronto para reagir em

Page 89: Convivencias #4

todas as direções. Como você pensou nessa construção?

Eu tentei dar esse tom em outros trabalhos, inclusive. É uma expectativa não cumprida, uma

promessa que não se realiza. Pretendia criar um suspense, mas a narrativa não chegaria a lugar

nenhum. Quando fiz Robespierre, pretendia fazer um filme épico sobre a revolução francesa,

mas eu sabia que não ia dar conta disso. No Inimigo invisível é o mesmo: proponho um filme de

guerra, no qual a guerra não acontece, porque não tem conflito.

É uma guerra que existe como imagem, como você falou.

Isso, porque acho que é assim que a guerra chega a nós: por imagem. As imagens de guerra

chegam até nós quase que disfarçadas de publicidade, com interesses por trás.

Não há embate. Há sempre uma ameaça que não se concretiza, um

confronto impossível. Acho que isso configura a territorialização conceitual

do trabalho e isso se projeta muito na linguagem do vídeo que você começou

a construir. A câmera é subjetiva e percorre espaços como se procurasse

alguma coisa. É meio nervosa, vasculha os ambientes, propõe um olhar atento.

Primeiro pensei num plano sequencia, com uma estética de vídeo-game. O observador vê o

personagem na sua frente, mas, ao mesmo tempo, o segue, como se o controlasse. O obser-

vador também é esse personagem. Depois pensei numa câmera mais “fantasmagórica”, que

desconstrói o espaço, que se perde. Tentei construir um espaço ainda mais labiríntico.

É uma imagem imersiva.

Eu queria que tivesse esse mergulho. Não queria câmera no tripé, que constrói uma imagem

plana para um espectador como um público de teatro, com um enquadramento distante. Que-

ria criar aflição, colocando o espectador na ação, simulando os movimentos.

Queria quebrar com o distanciamento de uma imagem fixa, rígida. A câmera traz os movimen-

tos, propondo olhares, mergulhos, hipnotizando e configurando um ambiente virtual, de uma

guerra que não é guerra, que não é confronto, sem embate físico. É tudo imaterial, virtual.

No Inimigo invisível, o seu corpo não está presente nas imagens, mas você dirige o ator,

propõe uma coreografia de movimentos, de como ele deve se movimentar. Da mesma

maneira, você também se coloca na direção de fotografia, seu olhar está ali. E assistindo

as primeiras imagens não tem como desvincular essa fotografia de um virtuosismo da

O Guilherme também contou

com a colaboração de Vilson, um

ex-militar, que fez treinamento

nas Forças Especiais e o

guiou nas coreografias e na

performance do ator.

War poems, editado pela

Everyman’s Library em 1999, é

uma seleção de poemas e trechos

de diários de vários soldados, que

atuaram em diversas guerras.

Robespierre e a tentativa de

retomar a revolução, 2010.

Técnica: vídeo. Duração: 9’34’’.

Título provisório do trabalho

realizado durante a residência.

Page 90: Convivencias #4

por onde começar. Não sei ainda como combater o sistema.

Talvez não tenha sido muito claro, mas tudo ainda está nebuloso para mim. São assuntos que

exploro, não tenho certezas construídas.

Está claro, sim. Acho que é na conversa que a gente vai se encontrar.

Quando a gente fala para o outro, às vezes, acaba resignificando tudo.

O título do seu trabalho diz muito sobre tudo isso, sobre essas percepções

que você ainda não domina, como você mesmo disse.

Ainda tenho dúvidas sobre o título. Você não acha que fica meio didático? Ou que o título pode

ser apenas uma entrada no trabalho?

Eu gosto muito de trabalhos com títulos. Às vezes, o artista propõe um

direcionamento ou joga com significados através do título. O título do seu trabalho,

por exemplo, recorre a uma ausência de um inimigo comum a todos nós, ao mesmo

tempo em que elabora uma ameaça, que não se sabe de onde vem.

Quando você falou sobre seu projeto, no começo da residência, os filmes

de guerra e os poemas eram uma referência forte. Mas essas referências traziam

muito claramente quem era o inimigo. Há aí uma contradição?

Esse trabalho vem muito de algumas discussões, de coisas que compartilho com meus ami-

gos. Às vezes, até de maneira nostálgica, eles pensam que uma verdadeira mudança só faria

sentido se fosse violenta. Eu não concordo. A gente nem tem uma possibilidade de confronto

porque não se sabe ao certo com o que se confrontar. Antes, a gente via nações lutando nas

guerras defendendo seu povo, seus interesses. Parece que nada tem mais vínculo. Tudo virou

virtual: o capital, as relações... Como uma guerra é traçada? Quem a define? Tudo ficou muito

difuso. Não se veste mais uma ideologia. A gente vive um fracasso da noção de nação. Antes de

ser um país, uma cultura, onde as pessoas se reúnem em torno de uma língua, o Brasil é uma

empresa, uma economia.

Eu entendo seu discurso como uma espécie de cartografia de uma

situação contemporânea: ausência de identidades. Nesse sentido,

não reconhecemos nossos inimigos. Parece que eles estão à espreita.

As imagens que assisti do seu vídeo formatam uma atmosfera de tensão, de um medo

latente rondando, como se o soldado estivesse sendo vigiado, pronto para reagir em

Robespierre e a tentativa de

retomar a revolução, 2010.

Técnica: vídeo. Duração: 9’34’’.

Page 91: Convivencias #4

todas as direções. Como você pensou nessa construção?

Eu tentei dar esse tom em outros trabalhos, inclusive. É uma expectativa não cumprida, uma

promessa que não se realiza. Pretendia criar um suspense, mas a narrativa não chegaria a lugar

nenhum. Quando fiz Robespierre, pretendia fazer um filme épico sobre a revolução francesa,

mas eu sabia que não ia dar conta disso. No Inimigo invisível é o mesmo: proponho um filme de

guerra, no qual a guerra não acontece, porque não tem conflito.

É uma guerra que existe como imagem, como você falou.

Isso, porque acho que é assim que a guerra chega a nós: por imagem. As imagens de guerra

chegam até nós quase que disfarçadas de publicidade, com interesses por trás.

Não há embate. Há sempre uma ameaça que não se concretiza, um

confronto impossível. Acho que isso configura a territorialização conceitual

do trabalho e isso se projeta muito na linguagem do vídeo que você começou

a construir. A câmera é subjetiva e percorre espaços como se procurasse

alguma coisa. É meio nervosa, vasculha os ambientes, propõe um olhar atento.

Primeiro pensei num plano sequencia, com uma estética de vídeo-game. O observador vê o

personagem na sua frente, mas, ao mesmo tempo, o segue, como se o controlasse. O obser-

vador também é esse personagem. Depois pensei numa câmera mais “fantasmagórica”, que

desconstrói o espaço, que se perde. Tentei construir um espaço ainda mais labiríntico.

É uma imagem imersiva.

Eu queria que tivesse esse mergulho. Não queria câmera no tripé, que constrói uma imagem

plana para um espectador como um público de teatro, com um enquadramento distante. Que-

ria criar aflição, colocando o espectador na ação, simulando os movimentos.

Queria quebrar com o distanciamento de uma imagem fixa, rígida. A câmera traz os movimen-

tos, propondo olhares, mergulhos, hipnotizando e configurando um ambiente virtual, de uma

guerra que não é guerra, que não é confronto, sem embate físico. É tudo imaterial, virtual.

No Inimigo invisível, o seu corpo não está presente nas imagens, mas você dirige o ator,

propõe uma coreografia de movimentos, de como ele deve se movimentar. Da mesma

maneira, você também se coloca na direção de fotografia, seu olhar está ali. E assistindo

as primeiras imagens não tem como desvincular essa fotografia de um virtuosismo da

O Guilherme também contou

com a colaboração de Vilson, um

ex-militar, que fez treinamento

nas Forças Especiais e o

guiou nas coreografias e na

performance do ator.

War poems, editado pela

Everyman’s Library em 1999, é

uma seleção de poemas e trechos

de diários de vários soldados, que

atuaram em diversas guerras.

Título provisório do trabalho

realizado durante a residência.

Page 92: Convivencias #4

por onde começar. Não sei ainda como combater o sistema.

Talvez não tenha sido muito claro, mas tudo ainda está nebuloso para mim. São assuntos que

exploro, não tenho certezas construídas.

Está claro, sim. Acho que é na conversa que a gente vai se encontrar.

Quando a gente fala para o outro, às vezes, acaba resignificando tudo.

O título do seu trabalho diz muito sobre tudo isso, sobre essas percepções

que você ainda não domina, como você mesmo disse.

Ainda tenho dúvidas sobre o título. Você não acha que fica meio didático? Ou que o título pode

ser apenas uma entrada no trabalho?

Eu gosto muito de trabalhos com títulos. Às vezes, o artista propõe um

direcionamento ou joga com significados através do título. O título do seu trabalho,

por exemplo, recorre a uma ausência de um inimigo comum a todos nós, ao mesmo

tempo em que elabora uma ameaça, que não se sabe de onde vem.

Quando você falou sobre seu projeto, no começo da residência, os filmes

de guerra e os poemas eram uma referência forte. Mas essas referências traziam

muito claramente quem era o inimigo. Há aí uma contradição?

Esse trabalho vem muito de algumas discussões, de coisas que compartilho com meus ami-

gos. Às vezes, até de maneira nostálgica, eles pensam que uma verdadeira mudança só faria

sentido se fosse violenta. Eu não concordo. A gente nem tem uma possibilidade de confronto

porque não se sabe ao certo com o que se confrontar. Antes, a gente via nações lutando nas

guerras defendendo seu povo, seus interesses. Parece que nada tem mais vínculo. Tudo virou

virtual: o capital, as relações... Como uma guerra é traçada? Quem a define? Tudo ficou muito

difuso. Não se veste mais uma ideologia. A gente vive um fracasso da noção de nação. Antes de

ser um país, uma cultura, onde as pessoas se reúnem em torno de uma língua, o Brasil é uma

empresa, uma economia.

Eu entendo seu discurso como uma espécie de cartografia de uma

situação contemporânea: ausência de identidades. Nesse sentido,

não reconhecemos nossos inimigos. Parece que eles estão à espreita.

As imagens que assisti do seu vídeo formatam uma atmosfera de tensão, de um medo

latente rondando, como se o soldado estivesse sendo vigiado, pronto para reagir em

O Guilherme também contou

com a colaboração de Vilson, um

ex-militar, que fez treinamento

nas Forças Especiais e o

guiou nas coreografias e na

performance do ator.

War poems, editado pela

Everyman’s Library em 1999, é

uma seleção de poemas e trechos

de diários de vários soldados, que

atuaram em diversas guerras.

Robespierre e a tentativa de

retomar a revolução, 2010.

Técnica: vídeo. Duração: 9’34’’.

Título provisório do trabalho

realizado durante a residência.

Page 93: Convivencias #4

todas as direções. Como você pensou nessa construção?

Eu tentei dar esse tom em outros trabalhos, inclusive. É uma expectativa não cumprida, uma

promessa que não se realiza. Pretendia criar um suspense, mas a narrativa não chegaria a lugar

nenhum. Quando fiz Robespierre, pretendia fazer um filme épico sobre a revolução francesa,

mas eu sabia que não ia dar conta disso. No Inimigo invisível é o mesmo: proponho um filme de

guerra, no qual a guerra não acontece, porque não tem conflito.

É uma guerra que existe como imagem, como você falou.

Isso, porque acho que é assim que a guerra chega a nós: por imagem. As imagens de guerra

chegam até nós quase que disfarçadas de publicidade, com interesses por trás.

Não há embate. Há sempre uma ameaça que não se concretiza, um

confronto impossível. Acho que isso configura a territorialização conceitual

do trabalho e isso se projeta muito na linguagem do vídeo que você começou

a construir. A câmera é subjetiva e percorre espaços como se procurasse

alguma coisa. É meio nervosa, vasculha os ambientes, propõe um olhar atento.

Primeiro pensei num plano sequencia, com uma estética de vídeo-game. O observador vê o

personagem na sua frente, mas, ao mesmo tempo, o segue, como se o controlasse. O obser-

vador também é esse personagem. Depois pensei numa câmera mais “fantasmagórica”, que

desconstrói o espaço, que se perde. Tentei construir um espaço ainda mais labiríntico.

É uma imagem imersiva.

Eu queria que tivesse esse mergulho. Não queria câmera no tripé, que constrói uma imagem

plana para um espectador como um público de teatro, com um enquadramento distante. Que-

ria criar aflição, colocando o espectador na ação, simulando os movimentos.

Queria quebrar com o distanciamento de uma imagem fixa, rígida. A câmera traz os movimen-

tos, propondo olhares, mergulhos, hipnotizando e configurando um ambiente virtual, de uma

guerra que não é guerra, que não é confronto, sem embate físico. É tudo imaterial, virtual.

No Inimigo invisível, o seu corpo não está presente nas imagens, mas você dirige o ator,

propõe uma coreografia de movimentos, de como ele deve se movimentar. Da mesma

maneira, você também se coloca na direção de fotografia, seu olhar está ali. E assistindo

as primeiras imagens não tem como desvincular essa fotografia de um virtuosismo da

Page 94: Convivencias #4

pintura. E aí, retomo uma de nossas conversas, quando você disse que

seu trabalho tinha na pintura uma forte referência.

Para mim, há uma configuração performática nesse trabalho, mesmo que o seu corpo

não esteja lá, e há um gesto de construção visual muito forte, mesmo que sem pincel.

Eu não queria me colocar naquele cenário de jeito nenhum. Quando me coloco nas perfor-

mances, me proponho uma espécie de desafio, como quando tentei levar uma bóia até o ho-

rizonte ou quando fui levado por um carro num deserto. Nessas ações, há um motivo para me

colocar em risco.

Você tem razão, eu me coloco nesse vídeo de outra maneira. Tentei fazer uma performance

junto com a câmera.

Você já tinha pensado nisso?

Não. Mas faz sentido, porque eu guio um olhar através de um outro corpo que olha.

E você constrói o movimento do ator, quase como um fantoche.

No primeiro dia de filmagem, eu não decidi nada, nem os caminhos que o ator percorreu.

Mas não deu certo, havia um problema técnico. A câmera não conseguiu acompanhar o ritmo

dos movimentos do ator. Tive que dirigir todo o percurso dele, acabou sendo uma coisa meio

fantoche, sem ser pejorativo. O ator não tinha a dimensão da imagem. Tive que negociar o

caminho que ele faria para que a imagem, que eu queria, acontecesse.

A respeito da pintura, como referência, penso que você configura uma paisagem

imersiva para esse corpo interagir.

Acho que antes de se tornar bidimensional, a pintura é uma ideia de imagem. O Narciso se

apaixonou não só pela própria imagem, mas por uma imagem refletida, bidimensional. Quan-

do se constrói uma imagem, todos esses questionamentos e toda a carga simbólica vêm junto.

É óbvio que não estou usando tinta sobre tela, é outro suporte, eu uso o tempo, não é uma

imagem fixa. Mas é uma composição de imagem, produzida para ser bidimensional. É assim

que penso também no trabalho do Beuys explicando pintura para uma lebre morta. Ele esco-

lheu um lugar, uma vitrine, que enquadrava as imagens da performance.

A gente atua com uma série de regras, num jogo que vem acontecendo desde Caravaggio,

desde a Grécia Antiga até Bruce Nauman. E a arte carrega toda essa história. Se um trabalho

não carrega todo esse peso, não é um trabalho de arte.

Page 95: Convivencias #4

Acho que tem uma discussão sobre presença no seu vídeo, com diferentes

abordagens: do seu olhar, do seu corpo, que está atrás da câmera, mas que

também constrói a imagem. E essa imagem é composta pela interação de

um ator nesse ambiente que você também dirige.

Acho que há uma junção de pintura com performance. No vídeo, tudo teve que ser coreogra-

fado: o ator, a câmera, a luz. E tudo isso virou a imagem. Então, antes da imagem acontecer,

havia uma movimentação no espaço, uma dança, talvez.

E o que serviu de base para essa elaboração?

Talvez o Caravaggio e outros tantos pintores. Mas, sobretudo, pensei na construção de uma

imagem que trouxesse a dimensão de um lugar que nunca pode ser alcançado, na constru-

ção de uma natureza impossível de ser trazida para o real, num ambiente inatingível. Queria

construir uma promessa que nunca fosse cumprida. Acho que esse vídeo se liga a uma impos-

sibilidade de elaborar um filme de guerra, que é também uma guerra que nunca vai acontecer.

Eu ainda não consegui elaborar completamente uma fala consistente sobre essa imagem, ain-

da não consegui finalizar esse processo. Talvez precise estudar mais sobre linguagem para dar

conta de alguns problemas no meu trabalho.

Todo projeto é inacabado, porque ele vai sempre

te jogar para um outro lugar, para outras questões.

Mas é frustrante! Eu comecei a estudar arte porque achava e continuo pensando que a arte

tem um potencial transformador e porque o artista está sempre em contato com o outro pro-

pondo novas possibilidades.

Não se faz arte para si próprio, se faz arte para o outro ver, para mudar o outro. Mas, ao mesmo

tempo, arte sempre foi um projeto fracassado. Sempre se tentou criar outro lugar e esse lugar

nunca veio de fato. Arte é só uma ficção de uma construção? Uma construção inatingível?

Vivo uma dualidade: muitas vezes acredito que arte pode transformar, mas também me sinto

autor de um projeto fracassado. Eu lido com essa dualidade o tempo inteiro. É quase como

uma cenoura na frente de um burro. O burro nunca vai conseguir comer a cenoura, mas ele

sempre fica em movimento.

É uma eterna tentativa. É muito bom ver todos esses movimentos de questionamentos, e

também de constituição artística acontecendo. É muito bom presenciar essas crises. Essas

“A arte é um jogo entre todos

os homens de todas as épocas”

(Marcel Duchamp).

Passageiro externo, 2010. Técnica:

vídeo. Duração: 3’24’’. Vídeo

realizado no dia 01/01/2010, em

que fui arrastado por um carro,

por toda a extensão do “Vale

de la muerte”, no Deserto do

Atacama (Chile).

Tentativa de levar uma bóia rosa

até o horizonte, 2009. Técnica:

vídeo. Duração: 3’18’’.

Page 96: Convivencias #4

pintura. E aí, retomo uma de nossas conversas, quando você disse que

seu trabalho tinha na pintura uma forte referência.

Para mim, há uma configuração performática nesse trabalho, mesmo que o seu corpo

não esteja lá, e há um gesto de construção visual muito forte, mesmo que sem pincel.

Eu não queria me colocar naquele cenário de jeito nenhum. Quando me coloco nas perfor-

mances, me proponho uma espécie de desafio, como quando tentei levar uma bóia até o ho-

rizonte ou quando fui levado por um carro num deserto. Nessas ações, há um motivo para me

colocar em risco.

Você tem razão, eu me coloco nesse vídeo de outra maneira. Tentei fazer uma performance

junto com a câmera.

Você já tinha pensado nisso?

Não. Mas faz sentido, porque eu guio um olhar através de um outro corpo que olha.

E você constrói o movimento do ator, quase como um fantoche.

No primeiro dia de filmagem, eu não decidi nada, nem os caminhos que o ator percorreu.

Mas não deu certo, havia um problema técnico. A câmera não conseguiu acompanhar o ritmo

dos movimentos do ator. Tive que dirigir todo o percurso dele, acabou sendo uma coisa meio

fantoche, sem ser pejorativo. O ator não tinha a dimensão da imagem. Tive que negociar o

caminho que ele faria para que a imagem, que eu queria, acontecesse.

A respeito da pintura, como referência, penso que você configura uma paisagem

imersiva para esse corpo interagir.

Acho que antes de se tornar bidimensional, a pintura é uma ideia de imagem. O Narciso se

apaixonou não só pela própria imagem, mas por uma imagem refletida, bidimensional. Quan-

do se constrói uma imagem, todos esses questionamentos e toda a carga simbólica vêm junto.

É óbvio que não estou usando tinta sobre tela, é outro suporte, eu uso o tempo, não é uma

imagem fixa. Mas é uma composição de imagem, produzida para ser bidimensional. É assim

que penso também no trabalho do Beuys explicando pintura para uma lebre morta. Ele esco-

lheu um lugar, uma vitrine, que enquadrava as imagens da performance.

A gente atua com uma série de regras, num jogo que vem acontecendo desde Caravaggio,

desde a Grécia Antiga até Bruce Nauman. E a arte carrega toda essa história. Se um trabalho

não carrega todo esse peso, não é um trabalho de arte.

“A arte é um jogo entre todos

os homens de todas as épocas”

(Marcel Duchamp).

Passageiro externo, 2010. Técnica:

vídeo. Duração: 3’24’’. Vídeo

realizado no dia 01/01/2010, em

que fui arrastado por um carro,

por toda a extensão do “Vale

de la muerte”, no Deserto do

Atacama (Chile).

Tentativa de levar uma bóia rosa

até o horizonte, 2009. Técnica:

vídeo. Duração: 3’18’’.

Page 97: Convivencias #4

Acho que tem uma discussão sobre presença no seu vídeo, com diferentes

abordagens: do seu olhar, do seu corpo, que está atrás da câmera, mas que

também constrói a imagem. E essa imagem é composta pela interação de

um ator nesse ambiente que você também dirige.

Acho que há uma junção de pintura com performance. No vídeo, tudo teve que ser coreogra-

fado: o ator, a câmera, a luz. E tudo isso virou a imagem. Então, antes da imagem acontecer,

havia uma movimentação no espaço, uma dança, talvez.

E o que serviu de base para essa elaboração?

Talvez o Caravaggio e outros tantos pintores. Mas, sobretudo, pensei na construção de uma

imagem que trouxesse a dimensão de um lugar que nunca pode ser alcançado, na constru-

ção de uma natureza impossível de ser trazida para o real, num ambiente inatingível. Queria

construir uma promessa que nunca fosse cumprida. Acho que esse vídeo se liga a uma impos-

sibilidade de elaborar um filme de guerra, que é também uma guerra que nunca vai acontecer.

Eu ainda não consegui elaborar completamente uma fala consistente sobre essa imagem, ain-

da não consegui finalizar esse processo. Talvez precise estudar mais sobre linguagem para dar

conta de alguns problemas no meu trabalho.

Todo projeto é inacabado, porque ele vai sempre

te jogar para um outro lugar, para outras questões.

Mas é frustrante! Eu comecei a estudar arte porque achava e continuo pensando que a arte

tem um potencial transformador e porque o artista está sempre em contato com o outro pro-

pondo novas possibilidades.

Não se faz arte para si próprio, se faz arte para o outro ver, para mudar o outro. Mas, ao mesmo

tempo, arte sempre foi um projeto fracassado. Sempre se tentou criar outro lugar e esse lugar

nunca veio de fato. Arte é só uma ficção de uma construção? Uma construção inatingível?

Vivo uma dualidade: muitas vezes acredito que arte pode transformar, mas também me sinto

autor de um projeto fracassado. Eu lido com essa dualidade o tempo inteiro. É quase como

uma cenoura na frente de um burro. O burro nunca vai conseguir comer a cenoura, mas ele

sempre fica em movimento.

É uma eterna tentativa. É muito bom ver todos esses movimentos de questionamentos, e

também de constituição artística acontecendo. É muito bom presenciar essas crises. Essas

Page 98: Convivencias #4

reflexões tornam seu trabalho um objeto de formulação utópica para

você próprio. Por isso você continua querendo produzir, mesmo sem

conseguir resolver completamente algumas questões.

Parece que nunca vou chegar a lugar nenhum, mas é impossível parar.

Estamos sempre em processos não finalizáveis e

ainda pensando no que vai acontecer daqui a pouco.

Voltando ao trabalho, bem no começo você falou que queria uma narrativa

com textos ou legendas, que dessem um tom de confusão de tempos verbais.

Isso. Eu queria uma confusão entre algo que não vai acontecer, mas que ficasse na eminência

ou ainda num passado não realizável. Queria passar uma ameaça. Abandonei um pouco essa

vontade de criar esse apocalipse atemporal. Vi que eu não precisava reafirmar em texto a situ-

ação da imagem do soldado perdido num labirinto. O texto ficaria apenas ilustrativo.

E o trecho do Hamlet?

Quero construir o som com essa narração do Hamlet entrando quase como textura, não como

uma narração em si, mas com o mesmo peso do som dos passos do soldado, do som ambiente.

Tem uma frase do Hamlet muito significativa para mim, quando ele encontra o espírito pai, ele

diz: “The time get out of the track”.

A partir daquele momento o tempo é outro. O passado vem à tona, o tempo joga tudo para

outro rumo. Isso me faz pensar que a gente faz parte de uma geração quase sem pai. Falo de

uma filiação de postura, de ideologia. Não saber identificar o inimigo é também não saber

identificar quem é o seu pai.

Page 99: Convivencias #4
Page 100: Convivencias #4

reflexões tornam seu trabalho um objeto de formulação utópica para

você próprio. Por isso você continua querendo produzir, mesmo sem

conseguir resolver completamente algumas questões.

Parece que nunca vou chegar a lugar nenhum, mas é impossível parar.

Estamos sempre em processos não finalizáveis e

ainda pensando no que vai acontecer daqui a pouco.

Voltando ao trabalho, bem no começo você falou que queria uma narrativa

com textos ou legendas, que dessem um tom de confusão de tempos verbais.

Isso. Eu queria uma confusão entre algo que não vai acontecer, mas que ficasse na eminência

ou ainda num passado não realizável. Queria passar uma ameaça. Abandonei um pouco essa

vontade de criar esse apocalipse atemporal. Vi que eu não precisava reafirmar em texto a situ-

ação da imagem do soldado perdido num labirinto. O texto ficaria apenas ilustrativo.

E o trecho do Hamlet?

Quero construir o som com essa narração do Hamlet entrando quase como textura, não como

uma narração em si, mas com o mesmo peso do som dos passos do soldado, do som ambiente.

Tem uma frase do Hamlet muito significativa para mim, quando ele encontra o espírito pai, ele

diz: “The time get out of the track”.

A partir daquele momento o tempo é outro. O passado vem à tona, o tempo joga tudo para

outro rumo. Isso me faz pensar que a gente faz parte de uma geração quase sem pai. Falo de

uma filiação de postura, de ideologia. Não saber identificar o inimigo é também não saber

identificar quem é o seu pai.

Page 101: Convivencias #4
Page 102: Convivencias #4
Page 103: Convivencias #4

Eu gostaria de começar nossa conversa pensando nos fluxos que o seu trabalho

trilha. Estou me referindo aos fluxos do texto Mundus Novus, de Américo Vespúcio,

que você escolheu para ser lido. O texto é um relato sobre o Brasil, a partir da visão

de um “explorador”, que daqui nada sabia. Você se apropriou desse texto e ainda

propõe para um estrangeiro ler. Há aí outra apropriação. E todos esses ciclos de

tradução e apropriação fazem parte do vídeo. Ou ainda, podemos chamar esses

ciclos de “tradução intersemiótica”, como propõe o Julio Plaza.

Tem tudo a ver. Eu não cheguei a falar com você sobre tradução?

Não.

Porque é disso que trata o segundo capítulo da minha dissertação.

Você usou o que o Julio Plaza propõe?

Não, exatamente. Usei A Tarefa do Tradutor, do Benjamin. O meu trabalho se relaciona com a

tarefa do tradutor e com a ideia de tradução como um processo de transformação e criação.

Gostei muito do que você falou, que você vê no trabalho um processo de tradução, porque,

realmente, eu penso nesse deslocamento de um texto que vai passando de pessoa para pes-

soa e absorvendo camadas. Vou falar da minha dissertação, porque traz uma contextualização

para o trabalho. Posso?

Claro, a gente vai pensar juntas.

A pesquisa é sobre o Anri Sala, mas acaba passando por assuntos que me interessam e con-

versam também com a minha produção artística. O que procurei pesquisar no Anri Sala foi

exatamente como ele trabalha situações onde o convívio entre diferenças pode ser vislumbra-

do. O primeiro capítulo da pesquisa é sobre a resistência da obra (de arte ou literária) diante

de qualquer tentativa de análise, ou seja, sobre como há sempre um componente que escapa

à análise e à tentativa de interpretação total, mas é esse elemento, esse nó que dá sentido a

todo o resto. E no segundo capítulo tento propor como a tradução pode ser esse lugar onde o

convívio entre diferenças é possível, mas não um convívio apaziguador ou nivelador, não um

convívio que um anula o outro. É um embate – daí entra o que você falou – a tradução como

uma possibilidade de criação. E o que o Benjamin fala – que também tem a ver com esse traba-

lho – é que a tradução é sempre um processo de transformação que envolve renúncia, envolve

perda, mas também envolve criação.

gal :: regina Eu e Regina Parra gravamos essa

conversa uma semana antes da

captação das imagens do seu

vídeo. Havia muita expectativa

sobre a interpretação e leitura

do texto e ainda sobre como

os intérpretes se sentiriam na

locação. Discutimos muito sobre

o seu desejo de trazer a cada

leitura a subjetividade de cada

um dos intérpretes.

Depois de ter gravado as

imagens, a Regina me contou

que a nossa conversa foi

importante para reafirmar

algumas de suas intenções sobre

o vídeo, sobretudo porque

falamos sobre “tradução”, sobre

as noções de criação, de perda,

de sobreposição de camadas

no ato de interpretação como

tradução.

Para Haroldo de Campo, a tradução é uma atividade lúcida e lúdica,

“permitindo recombinar criticamente a pluralidade dos passados

possíveis e presentificá-la como diferença, na unicidade hic et nunc pós-

utópico (Poesia e Modernidade: O Poema Pós-utópico, 1984).

“Como prática artística a Tradução Intersemiótica se consuma como

recepção produtiva ou consumo que é produção e se resolve na síntese

entre o pensar e o fazer, uma vez que encapsula a atividade crítico-

metalinguística no bojo da criação. O lúdico informado pelo lúcido. É

a prática da tradução, nessa medida, que nos permite recuperar, na

contemporaneidade, o sentido grego de poiesis como um fazer que é,

antes de tudo, uma técnica, ou melhor, fazer que significa o saber que

acompanha e se exprime no ato de criar, um produzir sapiente” (Julio

Plaza, Tradução Intersemiótica, 2003).

Page 104: Convivencias #4

Eu e Regina Parra gravamos essa

conversa uma semana antes da

captação das imagens do seu

vídeo. Havia muita expectativa

sobre a interpretação e leitura

do texto e ainda sobre como

os intérpretes se sentiriam na

locação. Discutimos muito sobre

o seu desejo de trazer a cada

leitura a subjetividade de cada

um dos intérpretes.

Depois de ter gravado as

imagens, a Regina me contou

que a nossa conversa foi

importante para reafirmar

algumas de suas intenções sobre

o vídeo, sobretudo porque

falamos sobre “tradução”, sobre

as noções de criação, de perda,

de sobreposição de camadas

no ato de interpretação como

tradução.

Para Haroldo de Campo, a tradução é uma atividade lúcida e lúdica,

“permitindo recombinar criticamente a pluralidade dos passados

possíveis e presentificá-la como diferença, na unicidade hic et nunc pós-

utópico (Poesia e Modernidade: O Poema Pós-utópico, 1984).

“Como prática artística a Tradução Intersemiótica se consuma como

recepção produtiva ou consumo que é produção e se resolve na síntese

entre o pensar e o fazer, uma vez que encapsula a atividade crítico-

metalinguística no bojo da criação. O lúdico informado pelo lúcido. É

a prática da tradução, nessa medida, que nos permite recuperar, na

contemporaneidade, o sentido grego de poiesis como um fazer que é,

antes de tudo, uma técnica, ou melhor, fazer que significa o saber que

acompanha e se exprime no ato de criar, um produzir sapiente” (Julio

Plaza, Tradução Intersemiótica, 2003).

Page 105: Convivencias #4

Eu gostaria de começar nossa conversa pensando nos fluxos que o seu trabalho

trilha. Estou me referindo aos fluxos do texto Mundus Novus, de Américo Vespúcio,

que você escolheu para ser lido. O texto é um relato sobre o Brasil, a partir da visão

de um “explorador”, que daqui nada sabia. Você se apropriou desse texto e ainda

propõe para um estrangeiro ler. Há aí outra apropriação. E todos esses ciclos de

tradução e apropriação fazem parte do vídeo. Ou ainda, podemos chamar esses

ciclos de “tradução intersemiótica”, como propõe o Julio Plaza.

Tem tudo a ver. Eu não cheguei a falar com você sobre tradução?

Não.

Porque é disso que trata o segundo capítulo da minha dissertação.

Você usou o que o Julio Plaza propõe?

Não, exatamente. Usei A Tarefa do Tradutor, do Benjamin. O meu trabalho se relaciona com a

tarefa do tradutor e com a ideia de tradução como um processo de transformação e criação.

Gostei muito do que você falou, que você vê no trabalho um processo de tradução, porque,

realmente, eu penso nesse deslocamento de um texto que vai passando de pessoa para pes-

soa e absorvendo camadas. Vou falar da minha dissertação, porque traz uma contextualização

para o trabalho. Posso?

Claro, a gente vai pensar juntas.

A pesquisa é sobre o Anri Sala, mas acaba passando por assuntos que me interessam e con-

versam também com a minha produção artística. O que procurei pesquisar no Anri Sala foi

exatamente como ele trabalha situações onde o convívio entre diferenças pode ser vislumbra-

do. O primeiro capítulo da pesquisa é sobre a resistência da obra (de arte ou literária) diante

de qualquer tentativa de análise, ou seja, sobre como há sempre um componente que escapa

à análise e à tentativa de interpretação total, mas é esse elemento, esse nó que dá sentido a

todo o resto. E no segundo capítulo tento propor como a tradução pode ser esse lugar onde o

convívio entre diferenças é possível, mas não um convívio apaziguador ou nivelador, não um

convívio que um anula o outro. É um embate – daí entra o que você falou – a tradução como

uma possibilidade de criação. E o que o Benjamin fala – que também tem a ver com esse traba-

lho – é que a tradução é sempre um processo de transformação que envolve renúncia, envolve

perda, mas também envolve criação.

gal :: regina

Page 106: Convivencias #4

Acho muito bom que a gente tenha se encontrado num

mesmo ponto, a partir de autores diferentes.

Sim. E o melhor desses pensamentos é que eles admitem que o texto vai se modificando, que

existem possibilidades de criação de coisas novas e inesperadas. Isso tem a ver com o texto

que eu estou trabalhando no vídeo. Há mais camadas: há estudos que dizem que o texto do

Américo Vespúcio, provavelmente nem foi escrito por ele. Ou seja, tomei um texto que já é,

provavelmente, uma tradução modificada por alguém. Imagina o quanto isso já foi traduzido

até chegar a essa versão que eu tenho.

Quando proponho esse texto para o imigrante ler, espero que essa leitura não seja neutra.

Estamos conversando bastante sobre o trabalho, sobre o que é esse texto, o que ele fala, por

quem ele foi escrito. Estou tentando provocá-los para saber a opinião deles, o que eles acham

desse texto, o que eles acham do Brasil.

Você está realizando encontros com eles?

Sim, nos vemos uma vez por semana. Estamos trabalhando como a impressão deles sobre o

Brasil pode aparecer na leitura desse texto. Se eles não acreditam que aqui se vive muito, por

exemplo, essa opinião está sendo trabalhada para aparecer na respiração, no tom da leitura,

nas pausas. É mais uma provocação para que a leitura não fique uma leitura mecânica. Assim,

acredito que a leitura deles também pode ser considerada como uma tradução. A leitura pode

resignificar o texto. Em um segundo momento, em contato com o público, o trabalho vai ope-

rar mais uma tradução. A maneira como os vídeos vão estar instalados também vai criar mais

uma camada. São sobreposições de camadas gerando interferências no texto.

O seu trabalho tem muito desses procedimentos, desses

fluxos, ou traduções, como estamos pensando agora.

No Livro_acervo, organizado pela Lenora de Barros e pelo ArturLescher, eu publiquei um tra-

balho chamado Exílio (ou desvio obrigatório), construído a partir de um texto crítico que o Fer-

nando Oliva escreveu sobre uma exposição que eu fiz no Paço das Artes. O trabalho é formado

por 8 folhas datilografadas: na primeira folha, lemos o texto original em português. Nas folhas

seguintes, esse mesmo texto vai entrando em contato com outras seis línguas estranhas: do

português atravessa para o inglês, do inglês para o italiano, do italiano para o swahili, do swahili

para o alemão, do alemão para o francês, do francês para o espanhol, até enfim retornar para

o português (terra natal). Nesse percurso, apenas o primeiro texto foi datilografado em preto.

Page 107: Convivencias #4

Os outros 7 textos foram datilografados usando papel carbono, e, portanto, são azuis e mais

“gastos” e imprecisos que o primeiro. O papel carbono evidencia uma vontade de reprodução

ou fidelidade ao texto original, ao mesmo em tempo que mostra a impossibilidade dessa re-

produção fiel. A transformação e os desvios são inevitáveis quando se entra em contato com

o outro. Assim, a cada texto, a cada nova interpretação e tradução, uma pequena mudança é

incorporada. Sendo o texto final, em português, a soma de todas as mudanças e desvios do per-

curso. O título do texto, por exemplo, que inicialmente era Mise-en-scéne, por Fernando Oliva, se

transformou em Wise, um lugar de – vantagens da laje para o sul. São cópias não fiéis.

Você passou por um processo difícil para escolher o texto a ser lido

pelos imigrantes. Esse texto foi pensado intencionalmente para suscitar

pausas, múltiplas traduções, interpretações e até transformações por quem lê-lo?

Sim, queria aderências na leitura desse texto. Mas eu editei e retirei alguns trechos absurdos

que falavam sobre leões e ursos no Brasil. Mas mantive a noção de um Brasil paradisíaco: “Cer-

tamente se o paraíso terrestre estiver em alguma parte da terra, creio não estar longe dessa

região”. É óbvio que não acho que o paraíso é aqui e nem acho que esses exploradores tam-

bém achavam, mas tenho uma vontade de trazer esse olhar para um Brasil atual, Brasil utópico,

adorado de novo, quem sabe... O Brasil é o país do futuro para os nossos vizinhos da América

do Sul. A gente passa uma ideia de construção, uma promessa de esperança. Por isso também

que estou querendo uma paisagem que traga essa fragilidade da construção aliada a ruínas.

Porque para mim isso tem muito a ver com a construção utópica de paraíso.

Você teve dificuldades com os textos anteriores. E agora eu acho

que você conseguiu condensar na escolha desse texto o deslocamento

de tempo e o deslocamento de ideias sobre o Brasil. Isso vai propiciar

processos de tradução e interpretação de maneira mais fluída talvez.

No outro trabalho, a leitura dificultou bastante, porque eles não estavam falando por eles, mas

através de uma leitura. Quero trazer a subjetividade deles, a singularidade de cada um pela

leitura. É muito sutil, muito delicado, mas é isso que pretendo. Com esses encontros, eles estão

bem confortáveis com a situação toda.

Na primeira vez, fiz tudo muito na correria: dei o texto no susto e a pessoa lia no susto e não se

estabeleceu uma relação. Dessa vez, escolhi pessoas que realmente queriam participar, mes-

mo não falando nada de português. Escolhi pessoas que queriam se envolver com o projeto.

A Regina se propôs a refazer

um trabalho, durante a

residência. Ela notou que uma

das possíveis falhas da primeira

versão do trabalho situava-se

na interpretação dos textos,

primeiro porque eram textos

com linguagem muito rebuscada

e também porque ela não

teve tempo de estabelecer um

contato mais profundo com os

intérpretes.

Page 108: Convivencias #4

Acho muito bom que a gente tenha se encontrado num

mesmo ponto, a partir de autores diferentes.

Sim. E o melhor desses pensamentos é que eles admitem que o texto vai se modificando, que

existem possibilidades de criação de coisas novas e inesperadas. Isso tem a ver com o texto

que eu estou trabalhando no vídeo. Há mais camadas: há estudos que dizem que o texto do

Américo Vespúcio, provavelmente nem foi escrito por ele. Ou seja, tomei um texto que já é,

provavelmente, uma tradução modificada por alguém. Imagina o quanto isso já foi traduzido

até chegar a essa versão que eu tenho.

Quando proponho esse texto para o imigrante ler, espero que essa leitura não seja neutra.

Estamos conversando bastante sobre o trabalho, sobre o que é esse texto, o que ele fala, por

quem ele foi escrito. Estou tentando provocá-los para saber a opinião deles, o que eles acham

desse texto, o que eles acham do Brasil.

Você está realizando encontros com eles?

Sim, nos vemos uma vez por semana. Estamos trabalhando como a impressão deles sobre o

Brasil pode aparecer na leitura desse texto. Se eles não acreditam que aqui se vive muito, por

exemplo, essa opinião está sendo trabalhada para aparecer na respiração, no tom da leitura,

nas pausas. É mais uma provocação para que a leitura não fique uma leitura mecânica. Assim,

acredito que a leitura deles também pode ser considerada como uma tradução. A leitura pode

resignificar o texto. Em um segundo momento, em contato com o público, o trabalho vai ope-

rar mais uma tradução. A maneira como os vídeos vão estar instalados também vai criar mais

uma camada. São sobreposições de camadas gerando interferências no texto.

O seu trabalho tem muito desses procedimentos, desses

fluxos, ou traduções, como estamos pensando agora.

No Livro_acervo, organizado pela Lenora de Barros e pelo ArturLescher, eu publiquei um tra-

balho chamado Exílio (ou desvio obrigatório), construído a partir de um texto crítico que o Fer-

nando Oliva escreveu sobre uma exposição que eu fiz no Paço das Artes. O trabalho é formado

por 8 folhas datilografadas: na primeira folha, lemos o texto original em português. Nas folhas

seguintes, esse mesmo texto vai entrando em contato com outras seis línguas estranhas: do

português atravessa para o inglês, do inglês para o italiano, do italiano para o swahili, do swahili

para o alemão, do alemão para o francês, do francês para o espanhol, até enfim retornar para

o português (terra natal). Nesse percurso, apenas o primeiro texto foi datilografado em preto.

A Regina se propôs a refazer

um trabalho, durante a

residência. Ela notou que uma

das possíveis falhas da primeira

versão do trabalho situava-se

na interpretação dos textos,

primeiro porque eram textos

com linguagem muito rebuscada

e também porque ela não

teve tempo de estabelecer um

contato mais profundo com os

intérpretes.

Page 109: Convivencias #4

Os outros 7 textos foram datilografados usando papel carbono, e, portanto, são azuis e mais

“gastos” e imprecisos que o primeiro. O papel carbono evidencia uma vontade de reprodução

ou fidelidade ao texto original, ao mesmo em tempo que mostra a impossibilidade dessa re-

produção fiel. A transformação e os desvios são inevitáveis quando se entra em contato com

o outro. Assim, a cada texto, a cada nova interpretação e tradução, uma pequena mudança é

incorporada. Sendo o texto final, em português, a soma de todas as mudanças e desvios do per-

curso. O título do texto, por exemplo, que inicialmente era Mise-en-scéne, por Fernando Oliva, se

transformou em Wise, um lugar de – vantagens da laje para o sul. São cópias não fiéis.

Você passou por um processo difícil para escolher o texto a ser lido

pelos imigrantes. Esse texto foi pensado intencionalmente para suscitar

pausas, múltiplas traduções, interpretações e até transformações por quem lê-lo?

Sim, queria aderências na leitura desse texto. Mas eu editei e retirei alguns trechos absurdos

que falavam sobre leões e ursos no Brasil. Mas mantive a noção de um Brasil paradisíaco: “Cer-

tamente se o paraíso terrestre estiver em alguma parte da terra, creio não estar longe dessa

região”. É óbvio que não acho que o paraíso é aqui e nem acho que esses exploradores tam-

bém achavam, mas tenho uma vontade de trazer esse olhar para um Brasil atual, Brasil utópico,

adorado de novo, quem sabe... O Brasil é o país do futuro para os nossos vizinhos da América

do Sul. A gente passa uma ideia de construção, uma promessa de esperança. Por isso também

que estou querendo uma paisagem que traga essa fragilidade da construção aliada a ruínas.

Porque para mim isso tem muito a ver com a construção utópica de paraíso.

Você teve dificuldades com os textos anteriores. E agora eu acho

que você conseguiu condensar na escolha desse texto o deslocamento

de tempo e o deslocamento de ideias sobre o Brasil. Isso vai propiciar

processos de tradução e interpretação de maneira mais fluída talvez.

No outro trabalho, a leitura dificultou bastante, porque eles não estavam falando por eles, mas

através de uma leitura. Quero trazer a subjetividade deles, a singularidade de cada um pela

leitura. É muito sutil, muito delicado, mas é isso que pretendo. Com esses encontros, eles estão

bem confortáveis com a situação toda.

Na primeira vez, fiz tudo muito na correria: dei o texto no susto e a pessoa lia no susto e não se

estabeleceu uma relação. Dessa vez, escolhi pessoas que realmente queriam participar, mes-

mo não falando nada de português. Escolhi pessoas que queriam se envolver com o projeto.

Page 110: Convivencias #4

Como você explicou a escolha do texto?

Expliquei o trabalho todo e porque queria ouvir a voz deles. Para mim é muito importante a

visão de alguém de fora para entender o Brasil. A gente se constitui pelo outro.

Eu registrei no meu caderno uma observação sobre o seu trabalho: “via de mão dupla,

visão do Brasil a partir do viajante, o que é o Brasil para o imigrante e como nós vemos o

Brasil”. É quase uma busca de um reconhecimento através da voz do outro.

É, exatamente. Através dessa voz com sotaque, que erra, que vai criar outras palavras, um outro

olhar com renúncias e com outras formulações pode ajudar nos ajudar a nos entender melhor.

Eu fiquei pensando que a língua de um estrangeiro, num outro país, é sempre

uma espécie de ponte, um sempre atravessar, mas que não leva de um lugar para

outro. Essa ponte é sempre uma iminência de travessia. Com base nisso, talvez a

noção de interpretação e de tradução criadora, que você está pretendendo e propondo

a esses imigrantes, na verdade, funcione como o “estatuto”, segundo o Derrida.

É como se você, de alguma forma, reafirmasse, no seu trabalho, que existe um território

possível para que esse estatuto se dê. Mesmo que você admita, como em outras

conversas, que você não pretende que o seu trabalho seja um lugar de reivindicação.

Mas acho que, em certa medida, você confere ao estrangeiro o estatuto da

personalidade estrangeira admitindo a língua dele no nosso país.

Gosto muito dessa ideia de ponte: aquilo que nos separa é também o nos une. Em Travessia

(ou sobre la marcha), eu tento discutir a regularização da situação de quem cruza a fronteira.

Mesmo conseguindo a cidadania, o imigrante nunca se torna cidadão de verdade. Eles podem

falar português fluentemente só que a língua materna os separa, os coloca nesse lugar entre

aqui e lá. A língua é um território também.

Quando você fala que vê, no meu trabalho, uma afirmação dessa possibilidade do “estatu-

to”, eu concordo. Mas eu trato mais de uma possibilidade de convívio, que não acontece sem

embates. Tomo o que o Derrida fala, novamente: a língua é a primeira violência. Quando o

estrangeiro chega em outro país, ele é obrigado a falar outra língua, mesmo que para pedir

socorro. Essa é a primeira violência, é a primeira imposição. O estrangeiro não consegue fazer

absolutamente nada sem falar a outra língua. Então quando dou um texto em português, por

mais que eu proporcione uma abertura ao sotaque, às palavras criadas, estou impondo um

texto numa língua que não é a deles.

Page 111: Convivencias #4

Não deixa de ser um ato de violência, de embate. Eu não tinha pensado assim.

É. Por isso que tenho muito cuidado com esse trabalho, porque estou propondo uma leitura

de um texto do ano de 1500, com palavras difíceis e em português! É um ato de violência, de

certa forma. Nessa leitura há uma possibilidade de convívio, a partir de uma terceira língua

criada, de uma situação de convívio, de alguém tentando se adaptar no Brasil. Mas é sempre

uma leitura fora de encaixe.

Não é daqui, mas também não é completamente de lá.

Não é mais de lugar nenhum.

Como você pensou a construção da paisagem no vídeo? A locação

se relaciona com essa indefinição do lugar? Com essas noções de fronteiras?

A minha ideia é justamente essa: como é que essa paisagem pode, na verdade, deslocar ain-

da mais essa situação. Quero deixar essa situação mais estranha ainda. E enfatizar esse não

pertencimento dos imigrantes. Eles vão ler o texto de pé. E isso vai dar mais uma camada de

estranheza.

Acho que a sua pintura tem um pouco desse potencial performático. Sua pintura também

atua. E a paisagem que você escolheu atua e contribui para esse deslocamento.

Acho que é isso. A fala vai se construindo junto, vai reverberando nesse lugar. Eu assumi um

risco, desistindo do fundo neutro. Isso começou com uma provocação da Lisette que me per-

guntou sobre o enquadramento e sobre a cadeira que eu havia escolhido. Tudo comunica

algo, até o fundo neutro.

Acho que, inicialmente, eu estava com um certo receio, por estar entrando numa linguagem

que não domino completamente, que envolve uma equipe e colaboradores. Havia um receio

de me colocar mais, então, achava que me expondo menos, aceitando o mais simples ou o

neutro, eu erraria menos também. Estava achando que eu seria mais crua e mais real se não

interferisse tanto nessa cena. Mas o neutro também tinha que ser uma escolha e não era.

Foi muito bom ter conhecido o Gui Mohallem, que participou do Ateliê Aberto #1. Ele vai me

ajudar na fotografia. Ele tem uma luz linda e o nosso trabalho conversa muito. Estou mais tran-

quila e admitindo um certo olhar mais pictórico nesse trabalho. Já estou pensando no con-

traste que a imagem vai ter e em como a paisagem interfere nos meus parceiros imigrantes.Travessia (ou sobre la marcha),

vídeo digital, 5’, 2010.

É uma tentativa de se ouvir na voz

do outro.

Estava lendo Homi Bhabha e ele

citava esse trecho do Heidegger:

“Sempre, e sempre de modo

diferente, a ponte acompanha os

caminhos morosos ou apressados

dos homens para lá e para cá, de

modo que eles possam alcançar

outras margens... A ponte

reúne enquanto passagem que

atravessa”.

Page 112: Convivencias #4

Como você explicou a escolha do texto?

Expliquei o trabalho todo e porque queria ouvir a voz deles. Para mim é muito importante a

visão de alguém de fora para entender o Brasil. A gente se constitui pelo outro.

Eu registrei no meu caderno uma observação sobre o seu trabalho: “via de mão dupla,

visão do Brasil a partir do viajante, o que é o Brasil para o imigrante e como nós vemos o

Brasil”. É quase uma busca de um reconhecimento através da voz do outro.

É, exatamente. Através dessa voz com sotaque, que erra, que vai criar outras palavras, um outro

olhar com renúncias e com outras formulações pode ajudar nos ajudar a nos entender melhor.

Eu fiquei pensando que a língua de um estrangeiro, num outro país, é sempre

uma espécie de ponte, um sempre atravessar, mas que não leva de um lugar para

outro. Essa ponte é sempre uma iminência de travessia. Com base nisso, talvez a

noção de interpretação e de tradução criadora, que você está pretendendo e propondo

a esses imigrantes, na verdade, funcione como o “estatuto”, segundo o Derrida.

É como se você, de alguma forma, reafirmasse, no seu trabalho, que existe um território

possível para que esse estatuto se dê. Mesmo que você admita, como em outras

conversas, que você não pretende que o seu trabalho seja um lugar de reivindicação.

Mas acho que, em certa medida, você confere ao estrangeiro o estatuto da

personalidade estrangeira admitindo a língua dele no nosso país.

Gosto muito dessa ideia de ponte: aquilo que nos separa é também o nos une. Em Travessia

(ou sobre la marcha), eu tento discutir a regularização da situação de quem cruza a fronteira.

Mesmo conseguindo a cidadania, o imigrante nunca se torna cidadão de verdade. Eles podem

falar português fluentemente só que a língua materna os separa, os coloca nesse lugar entre

aqui e lá. A língua é um território também.

Quando você fala que vê, no meu trabalho, uma afirmação dessa possibilidade do “estatu-

to”, eu concordo. Mas eu trato mais de uma possibilidade de convívio, que não acontece sem

embates. Tomo o que o Derrida fala, novamente: a língua é a primeira violência. Quando o

estrangeiro chega em outro país, ele é obrigado a falar outra língua, mesmo que para pedir

socorro. Essa é a primeira violência, é a primeira imposição. O estrangeiro não consegue fazer

absolutamente nada sem falar a outra língua. Então quando dou um texto em português, por

mais que eu proporcione uma abertura ao sotaque, às palavras criadas, estou impondo um

texto numa língua que não é a deles.Travessia (ou sobre la marcha),

vídeo digital, 5’, 2010.

É uma tentativa de se ouvir na voz

do outro.

Estava lendo Homi Bhabha e ele

citava esse trecho do Heidegger:

“Sempre, e sempre de modo

diferente, a ponte acompanha os

caminhos morosos ou apressados

dos homens para lá e para cá, de

modo que eles possam alcançar

outras margens... A ponte

reúne enquanto passagem que

atravessa”.

Page 113: Convivencias #4

Não deixa de ser um ato de violência, de embate. Eu não tinha pensado assim.

É. Por isso que tenho muito cuidado com esse trabalho, porque estou propondo uma leitura

de um texto do ano de 1500, com palavras difíceis e em português! É um ato de violência, de

certa forma. Nessa leitura há uma possibilidade de convívio, a partir de uma terceira língua

criada, de uma situação de convívio, de alguém tentando se adaptar no Brasil. Mas é sempre

uma leitura fora de encaixe.

Não é daqui, mas também não é completamente de lá.

Não é mais de lugar nenhum.

Como você pensou a construção da paisagem no vídeo? A locação

se relaciona com essa indefinição do lugar? Com essas noções de fronteiras?

A minha ideia é justamente essa: como é que essa paisagem pode, na verdade, deslocar ain-

da mais essa situação. Quero deixar essa situação mais estranha ainda. E enfatizar esse não

pertencimento dos imigrantes. Eles vão ler o texto de pé. E isso vai dar mais uma camada de

estranheza.

Acho que a sua pintura tem um pouco desse potencial performático. Sua pintura também

atua. E a paisagem que você escolheu atua e contribui para esse deslocamento.

Acho que é isso. A fala vai se construindo junto, vai reverberando nesse lugar. Eu assumi um

risco, desistindo do fundo neutro. Isso começou com uma provocação da Lisette que me per-

guntou sobre o enquadramento e sobre a cadeira que eu havia escolhido. Tudo comunica

algo, até o fundo neutro.

Acho que, inicialmente, eu estava com um certo receio, por estar entrando numa linguagem

que não domino completamente, que envolve uma equipe e colaboradores. Havia um receio

de me colocar mais, então, achava que me expondo menos, aceitando o mais simples ou o

neutro, eu erraria menos também. Estava achando que eu seria mais crua e mais real se não

interferisse tanto nessa cena. Mas o neutro também tinha que ser uma escolha e não era.

Foi muito bom ter conhecido o Gui Mohallem, que participou do Ateliê Aberto #1. Ele vai me

ajudar na fotografia. Ele tem uma luz linda e o nosso trabalho conversa muito. Estou mais tran-

quila e admitindo um certo olhar mais pictórico nesse trabalho. Já estou pensando no con-

traste que a imagem vai ter e em como a paisagem interfere nos meus parceiros imigrantes.

Page 114: Convivencias #4

A paisagem vai falar.

Vai ser ao mesmo tempo acolhedora e excludente.

Isso tem muito a ver com o que eu estava falando sobre a sua pintura: ela é performática.

Tem uma tensão latente, como se tivesse algo para acontecer, mas não acontece. Acho que eu

estou assumindo mais isso, até na maneira como construo figura e fundo. O fundo entra na

figura. Eles tão juntos.

Eles se fundem...

Voltando ao trabalho. Eu queria que você falasse mais um pouco sobre

a carga dramática das leituras. Pois sei que esse foi um dos problemas

da primeira versão. As pausas te incomodaram.

No trabalho anterior achei que a pausa podia ser muito interessante, mas em alguns momen-

tos ela passava do ponto e ficava quase constrangedor. Eu precisava cuidar de todo o processo

para resolver isso. O que quero agora é que tenha essa pausa com um desconforto de uma

língua que não é própria, o desconforto de não ser desse país. Mas o que não pode acontecer

é eles ficarem desconfortáveis por estar fazendo esse trabalho.

Como eles não vão relatar o que acham do Brasil, o depoimento vai acontecer, se tudo der

certo, nas pausas. Isso eu senti no outro trabalho. Os momentos do silêncio eram muito ricos.

Onde eles pausavam, você conseguia vislumbrar qual seria o relato deles, preencher aquele

silêncio com algumas coisas, mas sem ter certeza de nada. Me agrada não entender tudo, que

se fique apenas no vislumbre. O público nunca vai saber qual é a opinião real dos imigrantes.

Cada pessoa vai preencher com uma história diferente.

Existe uma direção nessa interpretação, nessa leitura.

Existe uma provocação, eu acho, para que eles entendam que não é uma leitura corrida, que o

objetivo não é chegar ao final do texto, nem falar português perfeitamente. O objetivo é trazê-

-los nessa leitura. Acredito que apesar de toda a encenação, a autenticidade vai aparecer. No

improviso, a personalidade de cada um vai brotar.

Não vai ser preciso controlar tudo.

Acredito que tem que ter essa abertura ao acaso.

Page 115: Convivencias #4

Essa noção de trazê-los na leitura me remete ao comentário que fiz sobre o estatuto.

Você os “provoca” para que eles se coloquem, se mostrem mais.

É, acho que é isso, se mostrem como pessoas com opinião e atuantes no trabalho e não passi-

vos, fazendo o que peço.

A língua que separa é a mesma que confere o estatuto.

É a mesma que os mostra. Bom, essa é a minha vontade, pelo menos. É muito sutil. Tem um

risco de uma fala mecânica mesmo e eu vou ter que lidar com isso.

Mas eu acho que a fala mecânica também diz algo.

Sim, revela algo. Não tem nada neutro aqui. De novo estou pensando no Derrida. Quando ele

fala de hospitalidade, ele se refere à promessa e ameaça. Pare ele, toda palavra traz junto uma

promessa de entendimento e a ameaça de desmembrar-se ou ruir no meio da frase. O risco

vem porque não sabemos o que ou quem nos espera no final de uma frase. Como seremos

interpretados?

É porque aquele que diz é sempre o outro. A leitura desse texto

dá uma dimensão do outro falando sobre o meu país.

Exatamente. É ele que está me dizendo quem eu sou. A questão do estrangeiro me coloca em

questão e me questiona. Já estou pensando em outro trabalho, por conta do nosso livro do

Blanchot.

Lembra que um dos diálogos ele começa “eu gostaria de saber o que você busca”? Eu quero

fazer um vídeo com vários imigrantes olhando para a câmera e falando isso “eu gostaria de

saber o que você busca”. É meio controverso, porque ele é o estrangeiro e é ele quem me

pergunta o que eu busco.

De onde vem o interesse por esse olhar de fora?

Acho que tem muitos motivos. O primeiro deles é que a imigração é realmente um problema

sério e urgente. Por mais que o discurso seja de abertura de fronteiras e globalização, há mui-

ta intolerância e cada vez mais pessoas refugiadas, emigradas, que precisam ser recebidas. E

acho também que de alguma maneira, todos nós somos imigrantes, somos estranhos, diferen-

tes, sofremos violência, somos tolhidos.

Eu lembro que fui a uma Bienal de Veneza, há uns 4 ou 6 anos atrás, cujo tema era “não existem

Durante a residência, a Regina

me indicou “A Conversa infinita”,

de Maurice Blanchot. Essa leitura

apontou algumas questões

sobre a construção de um texto

crítico, como a possibilidade de

se configurar como uma “palavra

exterior” ao trabalho do artista.

Nesse sentido, Duchamp parece

ter razão: “O crítico transpõe,

traduz uma emoção para

outra forma de comunicação,

a comunicação pela palavra, e

eu me pergunto se tal tradução

pode exprimir a essência

desta outra língua comumente

chamada de arte”. Pensando

nisso, e com o intuito de me

distanciar ao máximo dessa

escrita a priori ou desvinculada

do projeto da artista, a conversa

com a Regina foi uma tentativa

de explorar os desejos, as

intenções da artista e a partir

disso revelar algumas camadas

conceituais do seu percurso de

criação.

Page 116: Convivencias #4

A paisagem vai falar.

Vai ser ao mesmo tempo acolhedora e excludente.

Isso tem muito a ver com o que eu estava falando sobre a sua pintura: ela é performática.

Tem uma tensão latente, como se tivesse algo para acontecer, mas não acontece. Acho que eu

estou assumindo mais isso, até na maneira como construo figura e fundo. O fundo entra na

figura. Eles tão juntos.

Eles se fundem...

Voltando ao trabalho. Eu queria que você falasse mais um pouco sobre

a carga dramática das leituras. Pois sei que esse foi um dos problemas

da primeira versão. As pausas te incomodaram.

No trabalho anterior achei que a pausa podia ser muito interessante, mas em alguns momen-

tos ela passava do ponto e ficava quase constrangedor. Eu precisava cuidar de todo o processo

para resolver isso. O que quero agora é que tenha essa pausa com um desconforto de uma

língua que não é própria, o desconforto de não ser desse país. Mas o que não pode acontecer

é eles ficarem desconfortáveis por estar fazendo esse trabalho.

Como eles não vão relatar o que acham do Brasil, o depoimento vai acontecer, se tudo der

certo, nas pausas. Isso eu senti no outro trabalho. Os momentos do silêncio eram muito ricos.

Onde eles pausavam, você conseguia vislumbrar qual seria o relato deles, preencher aquele

silêncio com algumas coisas, mas sem ter certeza de nada. Me agrada não entender tudo, que

se fique apenas no vislumbre. O público nunca vai saber qual é a opinião real dos imigrantes.

Cada pessoa vai preencher com uma história diferente.

Existe uma direção nessa interpretação, nessa leitura.

Existe uma provocação, eu acho, para que eles entendam que não é uma leitura corrida, que o

objetivo não é chegar ao final do texto, nem falar português perfeitamente. O objetivo é trazê-

-los nessa leitura. Acredito que apesar de toda a encenação, a autenticidade vai aparecer. No

improviso, a personalidade de cada um vai brotar.

Não vai ser preciso controlar tudo.

Acredito que tem que ter essa abertura ao acaso.

Durante a residência, a Regina

me indicou “A Conversa infinita”,

de Maurice Blanchot. Essa leitura

apontou algumas questões

sobre a construção de um texto

crítico, como a possibilidade de

se configurar como uma “palavra

exterior” ao trabalho do artista.

Nesse sentido, Duchamp parece

ter razão: “O crítico transpõe,

traduz uma emoção para

outra forma de comunicação,

a comunicação pela palavra, e

eu me pergunto se tal tradução

pode exprimir a essência

desta outra língua comumente

chamada de arte”. Pensando

nisso, e com o intuito de me

distanciar ao máximo dessa

escrita a priori ou desvinculada

do projeto da artista, a conversa

com a Regina foi uma tentativa

de explorar os desejos, as

intenções da artista e a partir

disso revelar algumas camadas

conceituais do seu percurso de

criação.

Page 117: Convivencias #4

Essa noção de trazê-los na leitura me remete ao comentário que fiz sobre o estatuto.

Você os “provoca” para que eles se coloquem, se mostrem mais.

É, acho que é isso, se mostrem como pessoas com opinião e atuantes no trabalho e não passi-

vos, fazendo o que peço.

A língua que separa é a mesma que confere o estatuto.

É a mesma que os mostra. Bom, essa é a minha vontade, pelo menos. É muito sutil. Tem um

risco de uma fala mecânica mesmo e eu vou ter que lidar com isso.

Mas eu acho que a fala mecânica também diz algo.

Sim, revela algo. Não tem nada neutro aqui. De novo estou pensando no Derrida. Quando ele

fala de hospitalidade, ele se refere à promessa e ameaça. Pare ele, toda palavra traz junto uma

promessa de entendimento e a ameaça de desmembrar-se ou ruir no meio da frase. O risco

vem porque não sabemos o que ou quem nos espera no final de uma frase. Como seremos

interpretados?

É porque aquele que diz é sempre o outro. A leitura desse texto

dá uma dimensão do outro falando sobre o meu país.

Exatamente. É ele que está me dizendo quem eu sou. A questão do estrangeiro me coloca em

questão e me questiona. Já estou pensando em outro trabalho, por conta do nosso livro do

Blanchot.

Lembra que um dos diálogos ele começa “eu gostaria de saber o que você busca”? Eu quero

fazer um vídeo com vários imigrantes olhando para a câmera e falando isso “eu gostaria de

saber o que você busca”. É meio controverso, porque ele é o estrangeiro e é ele quem me

pergunta o que eu busco.

De onde vem o interesse por esse olhar de fora?

Acho que tem muitos motivos. O primeiro deles é que a imigração é realmente um problema

sério e urgente. Por mais que o discurso seja de abertura de fronteiras e globalização, há mui-

ta intolerância e cada vez mais pessoas refugiadas, emigradas, que precisam ser recebidas. E

acho também que de alguma maneira, todos nós somos imigrantes, somos estranhos, diferen-

tes, sofremos violência, somos tolhidos.

Eu lembro que fui a uma Bienal de Veneza, há uns 4 ou 6 anos atrás, cujo tema era “não existem

Page 118: Convivencias #4

estrangeiros na arte”. Mas acho que o tema deveria ser o contrário: “somos todos estrangeiros

e conseguimos viver juntos apesar das diferenças”. Mas é sempre muito difícil se abrir ao outro.

Porque ele é simplesmente o outro.

Porque ele é o outro absoluto.

Conversando com você, me veio uma questão sobre seu trabalho:

você já pensou na sua produção como uma construção literária?

Há o personagem numa trama, há uma proposta de interpretação.

Todos os meus trabalhos trazem isso. Sempre penso na narrativa e no seu desenrolar no públi-

co. Procuro a encenação. Tenho necessidades de citações sempre. Mesmo na pintura, exploro

um clima. Como você falou, como se o enquadramento fosse retirado de uma situação que

tenha antes, durante, depois, como uma narrativa.

Você sente que está dando um passo à frente nesse trabalho?

É um ato de coragem refazê-lo.

Eu refaço muito e mudo também. Mudei um trabalho por causa do texto do Blanchot. As pin-

turas vão para exposição e são vendidas, mas se ficassem comigo talvez eu seguisse modifi-

cando.

Estou feliz que a gente ainda teve essa brecha para retomar nossa conversa,

depois da captação das imagens. Como foram as gravações? Você ficou satisfeita

com a interpretação? Você acha que as reuniões com os intérpretes surtiram efeito?

As gravações deram muito certo: a fotografia funcionou e a equipe estava muito entrosa-

da. Acho que os encontros funcionaram para esclarecer o projeto todo, então, nos dias de fil-

magem, todos estavam muito conscientes da proposta do trabalho e do papel deles ali. Todos

se colocaram nas leituras, nas interpretações. E isso era o mais importante: trazer a subjetivida-

de, a singularidade de cada um.

Page 119: Convivencias #4

Foram gravadas leituras com 10

intérpretes

Page 120: Convivencias #4

estrangeiros na arte”. Mas acho que o tema deveria ser o contrário: “somos todos estrangeiros

e conseguimos viver juntos apesar das diferenças”. Mas é sempre muito difícil se abrir ao outro.

Porque ele é simplesmente o outro.

Porque ele é o outro absoluto.

Conversando com você, me veio uma questão sobre seu trabalho:

você já pensou na sua produção como uma construção literária?

Há o personagem numa trama, há uma proposta de interpretação.

Todos os meus trabalhos trazem isso. Sempre penso na narrativa e no seu desenrolar no públi-

co. Procuro a encenação. Tenho necessidades de citações sempre. Mesmo na pintura, exploro

um clima. Como você falou, como se o enquadramento fosse retirado de uma situação que

tenha antes, durante, depois, como uma narrativa.

Você sente que está dando um passo à frente nesse trabalho?

É um ato de coragem refazê-lo.

Eu refaço muito e mudo também. Mudei um trabalho por causa do texto do Blanchot. As pin-

turas vão para exposição e são vendidas, mas se ficassem comigo talvez eu seguisse modifi-

cando.

Estou feliz que a gente ainda teve essa brecha para retomar nossa conversa,

depois da captação das imagens. Como foram as gravações? Você ficou satisfeita

com a interpretação? Você acha que as reuniões com os intérpretes surtiram efeito?

As gravações deram muito certo: a fotografia funcionou e a equipe estava muito entrosa-

da. Acho que os encontros funcionaram para esclarecer o projeto todo, então, nos dias de fil-

magem, todos estavam muito conscientes da proposta do trabalho e do papel deles ali. Todos

se colocaram nas leituras, nas interpretações. E isso era o mais importante: trazer a subjetivida-

de, a singularidade de cada um.

Foram gravadas leituras com 10

intérpretes

Page 121: Convivencias #4
Page 122: Convivencias #4

uma realização

Page 123: Convivencias #4

equipe

CASA TOMADA

direção e curadoria: Tainá Azeredo e Thereza Farkas

produção: Iara Andrade

assistente de produção: Nicole Candian

programação visual e video: Habacuque Lima

1º PREMIO ATELIÊ ABERTO VIDEOBRASIL

comissão de acompanhamento: Ana Maria Tavares,

Bernardo Mosqueira, Marcos Moraes e Ronaldo Entler

CONVIVÊNCIAS #4

textos: Ana Luisa Lima e Galciani Neves

projeto gráfico: Lila Botter

Page 124: Convivencias #4
Page 125: Convivencias #4

agradecimentosAndre Costa

Carla Caffe

Carlos Tannure

Leda Catunda

Lisette Lagnado

Ñukanchik People

Pedro Marques

Sergio Almeida

Veronica Soares

apoio

Page 126: Convivencias #4

A Casa Tomada é um

espaço reservado para

práticas, investigações

e reflexões de caráter

artístico. O projeto surgiu

da vontade de construir

um espaço que fosse um

ponto de convergência

entre as diversas áreas

de atuação das artes.

Focado em todo o processo

de produção e não somente

no produto final, o Ateliê

Aberto tem como proposta

incentivar a discussão e

o desenvolvimento de

trabalhos motivados pela

vivência compartilhada na

Casa, além de discutir o

hibridismo de linguagens

nos processos artísticos

contemporâneos.

www.casatomada.com.br