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Conciliation Resources Londres 2004 Da paz militar à justiça social? O processo de paz angolano Coordenador do Número: Guus Meijer

Coordenador do Número: Guus Meijer

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Conciliation Resources

Londres 2004

Da paz militar à justiça social?

O processo de paz angolano

Coordenador do Número: Guus Meijer

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O povo em Luanda celebra aassinatura do memorando

de Entendimento de Luena, 5 de Abril de 2004

Fotografia: AFP/Getty Images

Agradecimentos

Coordenadora da Serie Accord Celia McKeonCoordenador do Número Guus MeijerCoordenador/Investigador da Accord Aaron GriffithsCoordenadora de Distribuição Nathalie WlodarczykCoordenadora de Distribuição Focalizada Sarah WheelerDirector do Programa Accord Andy CarlTradutores Luísa Câmara, Marta Amaral, Bruno Creis

e Gonçalo Borges de Sousa

A Conciliation Resources gostaria de estender os seus agradecimentos a todos os que contribuírampara este projecto e, em especial, a Maria da Conceição Neto e Imogen Parsons.

Gostaríamos também de agradecer aos nossos autores, leitores consultivos, fotógrafos, e outros, que nos ajudaram, em particular: Dame Margaret Anstee, David Birmingham, Michael Comerford,Mary Daly, Blanca Diego, Henda Ducados, Arvind Ganesen, Marrack Goulding, Tony Hodges, Eunice Nangueve Inácio, Ruth Jacobson, Johan van Kesteren, Steve Kibble, Filomeno Vieira Lopes,Jean-Michel Mabeko-Tali, Ismael Mateus, Christine Messiant, António de Miranda, Carlinda Monteiro,Domingos Oliveira, Fernando Pacheco, Manuel Paulo, Clare Riches, René Roemersma, Patricia Schor,David Sogge, Ralf Syring, Mário Adauta de Sousa, Oliver Sykes, Fernando Viegas, Alex Vines, Sarah Wykes, Alex Yearsley, e Henk van Zuidam.

Esta publicação foi possível graças ao apoio financeiro do Departmento para DesenvolvimentoInternacional (DFID) do Reino Unido, do Ministério Federal dos Negócios Estrangeiros da Suiça, e da Agência Sueca de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento (ASDI).

Publicado por Conciliation Resources173 Upper StreetLondres N1 1RGReino Unido

Telefone +44 (0)20-7359 7728Fax +44 (0)20-7359 4081E-mail [email protected] http://www.c-r.org

© Conciliation Resources 2004

É concedida autorização para a reprodução e utilização destes materiais com fins educacionais. Por favor, cite a sua fonte quando utilizar estes materiais e notifique a Conciliation Resources.

Número de entidade de beneficência no Reino Unido: 1055436

ISSN 1365-0742

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Índice

Mapa de Angola 4

Siglas e glossário 5

Introdução: Lições do ‘processo de paz’ angolano 6Guus Meijer

O passado e o presente de Angola 10Guus Meijer e David Birmingham

As causas do fracasso de Bicesse e Lusaka. Uma análise crítica 16Christine Messiant

O fim da guerra: o Memorando de Entendimento de Luena 24Aaron Griffiths

O papel das Nações Unidas no processo de paz angolano 28Manuel J. Paulo

Vozes alternativas: o movimento angolano pela paz 32Michael Comerford

Cabinda: entre ‘não-paz’ e ‘não-guerra’ 36Jean-Michel Mabeko-Tali

Para além do calar das armas: desmobilização, desarmamento e reintegração 40

Imogen Parsons

A problemática da terra no contexto da construção da paz:desenvolvimento ou conflito? 44

Fernando Pacheco

O papel da gestão de recursos na construção de uma paz sustentável 48

Tony Hodges

Os desafios de democratização 54Filomeno Vieira Lopes

A mulher angolana após o final do conflito 58Henda Ducados

O papel da mídia no conflito e na construção da democracia 62Ismael Mateus

Paz e reconciliação 66Carlinda Monteiro

Textos de base e acordos 68

Lições para a ONU da UNAVEM II 79

Perfis 80

Cronologia 88

Sugestões para leitura 95

Sobre Conciliation Resources e a série Accord 96

3Índice

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4 Accord 15

Angola Angola situa-se na costa ocidental de África, possuindofronteiras com a Namíbia, Zâmbia, República Democrática doCongo e República do Congo. Tem uma população de quase 14 milhões de habitantes, sendo o grupo étnico ovimbundu o maior (estimado em 37 por cento), os outros são: mbundu (25 por cento), bakongo (13 por cento), mestiços (mistura deeuropeus e africanos – 2 por cento), europeus (1 por cento) e outros (22 por cento). A língua oficial é o Português, sendo o umbundu, kimbundu e kikongo amplamente falados. A principal religião é a Cristã.

As principais exportações de Angola são o petróleo, diamantes,minerais, café, peixe e madeira. O produto interno bruto(produção total de bens e serviços) é de cerca de 1.700 dólaresper capita.

As condições de vida são difíceis. No Relatório de DesenvolvimentoHumano de 2003, do Programa das Nações Unidas para oDesenvolvimento (PNUD), Angola estava classificada no 164ºlugar, entre 175 países, quanto aos ‘índices de desenvolvimentohumano’. A esperança de vida é de cerca de 40 anos, e a taxa de mortalidade infantil foi de 154 em cada 1.000 nados vivos.

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SiglasAA Áreas de Acolhimento

AAF Áreas de Aquartelamento e Família

ACNUR Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados

ADRP Programa para Angola de Desmobilização e Reintegração

CCFA Comissão para a Criação das Forças Armadas

CCPM Comissão Conjunta Político-Militar

CICV Comité Internacional da Cruz Vermelha

CMM Commissao Militar Mista

CMVF Comissão Mista de Verificação e Fiscalização

COIEPA Comité Inter-Eclesial para a Paz em Angola

CPLP Comunidade dos Países de Língua Portuguesa

CS Conselho de Segurança das Nações Unidas

DDR Desmobilização, Desarmamento e Reintegração

EUA Estados Unidos da América

FAA Forças Armadas Angolanas

FALA Forças Armadas de Libertação de Angola

FAPLA Forças Armadas Populares de Libertação de Angola

FLEC Frente de Libertação do Enclave de Cabinda

FMI Fundo Monetário Internacional

FNLA Frente Nacional para a Libertação de Angola

GRAE Governo Revolucionário de Angola no Exílio

GURN Governo de Unidade e Reconciliação Nacional

LIMA Liga Independente de Mulheres Angolanas

MFA Movimento das Forças Armadas

MONUA Missão de Observação das Nações Unidas em Angola

MPLA Movimento Popular da Libertação de Angola

OCHA Escritório para a Coordenação dos AssuntosHumanitários

ONG Organização nao-governamental

ONU Organização das Nações Unidas

OUA Organização da Unidade Africana

OMA Organização das Mulheres Angolanas

PIB Produto Interno Bruto

PIR Polícia de Intervenção Rápida

RDC República Democrática do Congo

SADF Forças de Defesa Sul-Africanas

SWAPO Organização do Povo do Sudoeste Africano

UCAH Unidade de Coordenação de Ajuda Humanitária

UNAVEM Missão de Verificação das Nações Unidas em Angola

UNITA União Nacional para a Independência Total de Angola

UNITA-R União Nacional para a Independência Total de Angola – Renovada

UNMA Missão das Nações Unidas em Angola

UNOA Escritório das Nações Unidas em Angola

UPA União das Populações de Angola

UPNA União das Populações do Norte de Angola

URSS União de Repúblicas Socialistas Soviéticas

USAID Agência Americana para o Desenvolvimento Internacional

VORGAN Voz da Resistência do Galo Negro

GlossárioAssimilado Pessoa indígena ‘assimilada’pelo regime colonial gozando de algunsdos direitos de cidadãos portugueses

Cláusula triplo zero Uma cláusula nosAcordos de Bicesse obrigando ogoverno de Angola e a UNITA de nãoadquirirem material bélico e estipulandoigualmente que os Estados Unidos e aUnião Soviética concordaram acabar

com o fornecimento de tal material aqualquer dos beligerantes e encorajaroutros países para fazer o mesmo

Desconcentração Um aspecto dedecentralização administrativa contidano Protocolo de Lusaka implicando aexistência de representações do poderde estado central nas províncias e nos distritos

Musseques Bairros populares de Luanda

Troika Portugal, os Estados Unidos da América e a União Soviética (mais tarde Rússia) no seu papel de observadores do processo de paz angolano

Fotografia: Ilse van Velzen/IFProductions

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Introduçãolições do ‘processo de paz’ em Angola

Guus Meijer

A26 de Fevereiro de 2003, o Sub-Secretário dasNações Unidas para os Assuntos Africanos e depois Representante Especial do Secretário-Geral

em Angola, Ibrahim Gambari, disse que as “experiências na resolução de conflitos e na construção da pazconstituiriam valiosas lições para o resto do mundo”. À primeira vista, é difícil ver a que lições se referia Gambari.Em primeiro lugar a resolução do conflito angolano foi em grande parte resultado de uma incansável campanhamilitar levada a cabo pelas forças governamentais contra a União Nacional pela Independência Total de Angola(UNITA) . Apenas se consguiu a paz após a morte emcombate do líder da UNITA, Jonas Savimbi, a 22 de Fevereirode 2002, um ano antes dos comentários de Gambari. Quelições valiosas conteria tal estratégia de ‘paz-através-da-guerra’, para além da percepção de que o mundo é umlugar selvagem e perigoso em que a força e a violênciasão, no final, os únicos factores que contam? Isto para não falar no facto da guerra secessionista no enclave deCabinda ainda não ter acabado. Em segundo lugar, asexperiências de Angola com a construção da paz após o conflito são ainda muito rudimentares e existem pelomenos sinais de que as coisas não correm com tantafacilidade como seria de desejar, tal como fica ilustradopor vários artigos contidos nesta publicação. Nestecontexto, fazer um projecto Accord acerca do processo de paz angolano é um certo desafio. Decididos aresponder ao desafio, deixamos aqui uma explicação.

O programa Accord e AngolaO programa Accord da Conciliation Resources e a sua série de publicações Accord – an international review ofpeace initiatives baseia-se no pressuposto de que todospodemos retirar lições úteis da nossa história dolorosa de conflitos violentos e de tentativas de estabelecer econstruir a paz, bem como da experiência de outros. Paratornar possível esta aprendizagem, precisamos de acesso a informação básica acerca destas experiências, tanto asbem sucedidas como as fracassadas.

6 Accord 15

Guus Meijer é consultor e formador

em transformação de conflitos

e construção da paz e antigo

co-director da Conciliation

Resources. Tem estado envolvido

em iniciativas de desenvolvimento

e da sociedade civil em Angola

desde a década de 1980.

Pontes destruídas durante a guerra

Fotografia: Christian Aid/Judith Melby

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Este número da Accord reafirma esta convicção, bem comoassume que a documentação da história contemporâneade forma equilibrada, acessível e atraente constitui – emespecial em situações de pós-guerra ou de conflito armadoem andamento – um instrumento útil para uma maioracção construtiva por parte de políticos nacionais,activistas da sociedade civil, cidadãos ordinários,diplomatas estrangeiros e agências internacionais. Ashistórias sobre como pôr fim a décadas de guerra,ultrapassar obstáculos e tirar vantagem das oportunidades,e como mobilizar para a paz e a justiça em situaçõesaparentemente desesperadas, poderão ajudar a actualgeração em Angola, bem como os povos de outros países dilacerados por conflitos armados, amelhor desempenhar as tarefas futuras. Estas são osdesafios da reconstrução do país e da nação, da justiça ereconciliação, da democratização e da renovação política,do desenvolvimento económico e da criação de uma vida melhor – não apenas para alguns para para a nação como um todo.

A história do conflito armado em Angola é longa ecomplexa. A história das tentativas para acabar com o conflito não podem, por isso, ser contadas de forma

simples ou linear. O resumo dos desafios inerentes ao fim da violência militar e a uma situação que pode sercaracterizada como de paz genuína também não pode sersimples. À luz das características específicas do ‘processode paz’ angolano, e em particular da forma como a guerrafinalmente acabou, nesta edição da Accord decidiu-se darmais atenção e espaço do que o habitual às questões pós-conflito, ou seja, à longa e multifacetada tarefa daconstrução da paz.

Lições emergentesVárias tentativas de conclusões e lições emergem destahistória complicada de conflito armado e dos esforços das pessoas em encontrar uma solução, tal como sãoapresentadas nas contribuições contidas nesta edição.

A transformação dos movimentos de libertação nacionalO primeiro ponto diz respeito aos problemas derivados docarácter dos movimentos de libertação nacional em geral,tanto em África como em todo o antigo ‘Terceiro Mundo’.Estes movimentos pretendiam não apenas libertar a nação do domínio colonial como ser porta-vozes do todo

7Introdução: lições do ‘processo de paz’ em Angola

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nacional, ou seja, ser o único representante legítimo de todos os sujeitos individuais. Existe, portanto, nestesmovimentos uma tendência natural para as pretensõeshegemónicas e para a exclusão. Isto foi muitas vezes umproblema durante a própria luta pela independência, vistoque nem todos se identificavam necessariamente com aagenda política do movimento em questão, mesmo que o objectivo da libertação nacional fosse universalmenteaceite. Mais tarde tornou-se num obstáculo quaseintransponível no contexto de uma entidade políticademocrática e pluralista, a nova norma em África no finalda década de 1980 e início da de 1990. Numa democraciamultipartidária, os partidos que competem pelo poderpolítico representam, por definição, apenas uma parte da população, não a nação no seu todo; os movimentosde libertação tradicionais, transformados em partidospolíticos, em geral não se adaptaram facilmente a essenovo papel e identidade.

A situação não é exclusiva de Angola, mas era certamentemais complexa do que na maior parte dos outros casos.Como David Birmingham e Guus Meijer salientam na suaanálise do contexto histórico, existiam três movimentoscom pretensões hegemónicas - o Movimento Popularpara a Libertação de Angola (MPLA), a Frente Nacionalpara a Libertação de Angola (FNLA) e a União Nacionalpara a Independência Total de Angola (UNITA) – quecompetiam entre si pela legitimidade interna e oreconhecimento internacional. Esta questão não pode ser resolvida na altura da independência em 1975 nem quando o estado de partido único começou adesmoronar-se e se realizaram eleições multipartidáriasem 1992. Esta tradição de pretensões mutuamenteexclusivas de representar o todo nacional está no centrodo fracasso de sucessivos acordos de paz, começando nos Acordos de Alvor assinados pelos três movimentos sobpressão internacional em Janeiro de 1975, e acabando nos Acordos de Bicesse e no Protocolo de Lusaka, assinadosem 1991 e 1994, respectivamente, entre o governo doMPLA e a UNITA. Como em muitos outros casos, o facto dopartido que ganhou a guerra após a independência edominou o país durante mais de duas décadas ter fortesinclinações marxistas-leninistas não fácilitou a transiçãopara uma política mais aberta e pluralista. Em Angola – um país excepcionalmente rico em petróleo, diamantes e outros recursos naturais – isto foi exacerbado pelaemergência, depois da abertura ‘democrática’ do iníciodos anos 90, de uma elite cada vez mais rica e altamentecorrupta, com interesses profundamente instalados e quepor isso não seria facilmente afastada.

As limitações da ‘solução uma bala’Uma outra conclusão a retirar do caso angolano é queparece perigoso aceitar acriticamente a tese de que aeliminação do líder da rebelião armada e a derrota militarda insurreição trarão melhores perspectivas de pazsustentada e estabilidade futura do que um acordonegociado, com o reconhecimento concomitante, mesmoque mínimo e relutante, da perspectiva do outro lado,

bem como os seus compromissos inevitáveis. Esta posição‘realista’ parece ser cada vez mais defendida no caso deconflitos irresolúveis, como a guerra entre o governo doUganda e o LRA (Exército de Resistência do Senhor). Emcertos lugares é mesmo promovida como a única soluçãoviável. Isto deve-se, em parte, à influência da retórica que acompanha a ‘guerra ao terror’ desencadeada pelos EUA e seus aliados. A maior parte dos angolanosindubitavelmente concordariam que pôr termo a quatrodécadas de guerra intestina foi, obviamente, muitoimportante, e esse sentimento de forma alguma deverá ser minimizado. Uma ‘paz negativa’ ou ausência de guerraé de longe preferível a não ter paz nenhuma. Mas emcircunstâncias como as de Angola, com a sua longa históriade rivalidades amargas, exclusão mútua, domínio de um só partido e autoritarismo de todos os lados, o preço pelaforma como este resultado foi atingido pode ser realmentemuito alto. É um preço que apenas gradualmente se vaiconhecendo, quando a situação se desenvolve e muitasdas esperanças e aspirações não são realizadas.

Os anteriores esforços em prol da paz fizeram com que a conclusão final da guerra fosse mais suave. O facto de ter sido conseguido um cessar-fogo e uma reabertura das negociações para a paz tão rapidamente após aeliminação de Savimbi deve-se em parte à possibilidadede os partidos se apoiarem numa série de acordosfalhados. Muitas das questões já tinham sido previstas e resolvidas ao detalhe noutras ocasiões e, na verdade, o Memorando de Luena é formalmente um merosuplemento ao Protocolo de Lusaka, que por sua vez se baseava nos Acordos de Bicesse.

O fim da guerra teve como resultado que o lado vitorioso– o governo do MPLA e os grupos sociais que o apoiam –ficasse com toda a liberdade para fazer o que quisesse,não apenas na arena política mas igualmente em termos sociais e económicos. O incentivo necessário àmudança na forma de enfrentar as questões que de factocausaram o conflito ou o perpetuaram pode ainda nãoexistir. Neste momento, mais de dois anos após o fimoficial da guerra, Angola mostra alguns sinaispreocupantes: conflitos sociais crescentes, desconfiançacontinuada e ostracização de oponentes políticos, falta deoportunidades económicas e um sentimento de desilusãoe frustração por parte de largos segmentos da população, enão apenas de simpatizantes da UNITA. O processo dedemocratização, incluindo a elaboração de uma novaconstituição e a preparação de eleições, é lento e custoso,como sugere Filomeno Vieira Lopes no seu artigo. Areabilitação e a reconstrução social e física do país e areassentamento de deslocados internos e refugiadosrequerem enormes esforços. Imogen Parsons descreve anecessidade de apoio à reintegração de ex-combatentes e de programas de desarmamento da população civil. Estas seriam sempre tarefas enormes e problemáticas, mas o facto de haver poucas oportunidades departicipação, de debate real e desacordo, e de uma livretroca de ideias não ajuda.

8 Accord 15

Page 9: Coordenador do Número: Guus Meijer

Como terminar uma guerra por meios militares consolida o poder do partido vitorioso, o processo democrático, quedepende do diálogo, da negociação, do respeito por outrospontos de vista e de eventuais compromissos parece tersido marginalizado como forma preferencial de resoluçãode conflitos, não apenas na esfera política mas em termosmais gerais. A força e a violência parecem levar a melhor.Isto pode marginalizar ainda mais os grupos que nasociedade se encontram menos aptos para utilizar estesmeios, tais como mulheres, mas também todos os cidadãosque não têm armas em geral. Os hábitos da força e dopoder prevalecentes sobre a justiça e os direitos, e asabordagens tipo ‘quem vence, vence tudo’ não sãoeficazmente defrontados, apesar dos esforços de algunsdirigentes religiosos e de outros actores da sociedade civil.

As contribuições de Christine Messiant e de Manuel Pauloocupam-se em mais detalhe das razões do fracasso dastentativas de paz de Bicesse e Lusaka, e do papel da ONUnos vários estádios do seu envolvimento. A provocadoraanálise de Messiant não esclarece apenas as razõessubjacentes ao fracasso de ambos os processos(demasiados interesses do que denomina a ‘comunidadeinternacional real’, juntamente com a minorização dosinteresses da maioria da população angolana), mas leva-atambém a concluir que a forma como finalmente a paz foi atingida em Luena tem necessariamente um impactonegativo na própria natureza desta paz, no sentido dadoacima, em que a democratização e participação reais nãoserão facilmente conseguidas. Um dos sinais de esperança– paradoxalmente à luz da história de autoritarismoextremo da UNITA e da impiedosa liderança de JonasSavimbi (mas a história de Angola está repleta deparadoxos) – é o facto do último congresso do partido,realizado em Junho de 2003 em Viana, ter mostrado maior abertura e um procedimento mais democrático.

Perspectivas de paz para CabindaDado o sucesso da sua abordagem ‘paz-através-da-guerra’na campanha contra a UNITA, o governo angolano não se mostra particularmente inclinado para chegar a umasolução negociada para a guerra em Cabinda. Comodescreve Jean-Michel Mabeko-Tali no seu artigo, apesardas muitas tentativas feitas ao longo dos anos para umanegociação, e apesar de recentes movimentações queparecem indicar uma vontade da parte do governo deentrar em conversações, existem poucos sinais concretosde um final rápido para o conflito e menos ainda de umasolução que possa agradar aos vários lados envolvidos –principalmente a maioria da população de Cabinda.Paradoxalmente, mas à semelhança de outros conflitosduradouros em que a identidade desempenha umimportante papel (como na Irlanda do Norte), os traçosgerais da solução parecem claros: no caso de Cabinda,seria precisa uma forma de autonomia e um estatutoespecial durante um período de transição relativamentelongo, seguido de negociações entre líderes credíveis e democraticamente legitimados e livres do peso dosdolorosos acontecimentos do passado. Os problemas

reais, contudo, residem noutro sítio, nomeadamente na concepção e execução de um processo que poderiaconduzir à aceitação de tal resultado por todas as partes envolvidas.

Recursos para o conflito versus recursos para a pazA guerra civil angolana, especialmente nas suas etapasfinais, tem sido muitas vezes descrita como sendoprincipalmente uma questão de acesso às riquezas do país (uma questão de ganância mais do que de queixas).Sem dúvida que a disponibilidade destes recursos para oslados em contenda (petróleo para o governo do MPLA,diamantes para a UNITA – especialmente entre 1993 e1997) permitiu-lhes sustentar os respectivos esforços deguerra, mas não significa necessariamente que tenhamsido a fonte ou motivo para o conflito. Os recursos naturais angolanos, incluindo as vastas extensões de terra fértil, podem ser usadas para a reconstrução e odesenvolvimento, bem como para novos conflitos edesestabilizações, como demostram as contribuições de Fernando Pacheco e Tony Hodges. A participação e a inclusão, e a governanção transparente e responsável a todos os níveis são as condições necessárias para asituação se desenvolver numa direcção de progresso epara que as riquezas de Angola sejam exploradas parabenefício do seu povo.

Os artigos de Ismael Mateus acerca da comunicação social,de Michael Comerford sobre a sociedade civil, de CarlindaMonteiro sobre a reconciliação e de Henda Ducadosacerca das mulheres descrevem algumas das dificuldadesque ainda têm de ser vencidas para que isto possaacontecer. Muitas pessoas da UNITA e de outros partidosda oposição, das igrejas e das organizações da sociedadecivil, em particular mulheres e jovens, sentem-se excluídasda possibilidade de participação nos assuntos públicos.Este ressentimento pode muito bem crescer se a renovaçãopolítica, o funcionalismo público não partidarizado e um novo espírito de reconciliação genuína não foremcultivados. Na ausência de outros contra-poderes eficazes,a principal esperança reside no activismo e mobilização dasociedade civil, apoiada por uma comunicação social livre,independente, competente e activa. O desafio daqui emdiante será utilizar as riquezas de Angola – não só asnaturais, como o petróleo, os diamantes, e o solo fértil, masigualmente os seus recursos culturais e sociais, como asmulheres, os jovens e outros activistas de base motivados,e a sua sabedoria e práticas ‘tradicionais’ – para construir apaz em vez de fazer a guerra.

9Introdução: lições do ‘processo de paz’ em Angola

Page 10: Coordenador do Número: Guus Meijer

O passado e o presente deAngola

Guus Meijer e David Birmingham

Em 11 de Novembro de 1975 o Movimento Popularpara a Libertação de Angola (MPLA) declarou aindependência de Angola e nomeou Agostinho

Neto como seu primeiro presidente em Luanda, capital daantiga colónia portuguesa. Este desfecho parecera incertoe mesmo improvável; para aqui chegar o MPLA tivera nãosó de lidar com os seus sérios problemas e dissidênciasinternos como de derrotar o exército colonial português eos dois movimentos armados rivais, cada um apoiado poraliados poderosos. Inicialmente a Frente Nacional para aLibertação de Angola (FNLA), de Holden Roberto, fora omais forte dos três movimentos de libertação e no outonode 1975 estivera quase a capturar Luanda, vindo do norte,e apoiado por um exército fortemente armado fornecidopelo presidente Mobutu Sese Seko do Zaire (actualmenteRepública Democrática do Congo). No sul, duas colunasarmadas de uma força invasora sul-africana, emcoordenação militar com a União Nacional para aIndependência Total de Angola (UNITA), de Jonas Savimbi,quase atingira Luanda antes de serem detidas por tropascubanas, chamadas à pressa para prestar assistência aoMPLA. O estado independente angolano nascia assim do caos e da violência e por entre graves rivalidadesnacionais, regionais e globais. Este legado, com profundas raízes históricas, iria influenciar o desenrolar dos acontecimentos durante muito tempo.

Angola, como a maior parte dos países africanos, nasceude um aglomerado de povos e grupos, cada um com umahistória e tradições distintas. A pouco e pouco, pequenasnações e pequenos estados locais começaram a entrar em contacto uns com os outros e os desenvolvimentoshistóricos levaram-nos a partilhar um destino comum sob a crescente influência portuguesa. Muito antes dachegada dos portugueses, as comunidades de línguabantu tinham estabelecido uma economia agrária emquase todo o território. Tinham absorvido as populaçõesde língua khoisan que havia espalhadas e para além deterem desenvolvido bastante a pastorícia criarameconomias de troca. A povoação de M’banza Kongotornou-se um dos centros mercantis mais bem sucedidose deu origem ao reino do Kongo. Para leste a ideologia

10 Accord 15

David Birmingham foi professor de História

Contemporânea na Universidade de Kent

em Cantuária, com um interesse especial

pela história de Portugal e das suas antigas

colónias africanas, tendo publicado várias

obras sobre o assunto.

Guus Meijer é consultor e formador em

transformação de conflitos e construção da

paz e antigo co-director da Conciliation

Resources. Tem estado envolvido em

iniciativas de desenvolvimento e da

sociedade civil em Angola desde os anos 80.

Soldado das Forças ArmadasAngolanas numa trincheira

da frente, 1994

Fotografia: Joao Silva/PICTURENET

Page 11: Coordenador do Número: Guus Meijer

política dos povos lunda concebia já a formação doestado, e no sul nasceram reinos mais tardios nas terrasaltas das populações ovimbundu.

Angola sob o domínio portuguêsEmbora os primeiros comerciantes, exploradores esoldados portugueses tenham posto o pé pela primeiravez nesta parte da costa africana em 1483, a colonizaçãomoderna de todo o território foi apenas formalizadaquatro séculos depois, após a Conferência de Berlim de1884-85. Grandes áreas de Angola sofreram a dominaçãocolonial durante menos de um século, e mesmo depois de1900 rebentaram revoltas armadas e movimentos deresistência como os dos ovimbundu e dos bakongo, a partirde 1913, até à última resistência a norte ser neutralizada em1917. Durante o seu século de domínio o regime colonialimprimiu marcas profundas na sociedade angolana.

A sua legislação discriminatória, em especial o Estatutodos Indígenas Portugueses das Províncias de Angola,Moçambique e Guiné, separava as populações nativas

de uma pequena elite de indivíduos ‘civilizados’ (ou‘assimilados’) que gozavam de alguns dos direitos doscidadãos portugueses. Em 1961, depois do início da lutaarmada de libertação, o estatuto foi revogado mas asmudanças eram somente superficiais. A políticaportuguesa de discriminação racial e cultural teve um impacto profundo e duradouro no posteriordesenvolvimento social e político de Angola como estado independente. As divisões sociais criadas pelocolonialismo continuaram a exercer uma influência fortenas relações entre grupos e nas atitudes individuais. Adesconfiança racial manifestava-se nos conflitos entre os movimentos de libertação e nas tensões no seio decada um dos movimentos. A desconfiança fortementeenraízada desempenhou um papel decisivo na históricapolítica recente de Angola. Os interesses opostos depopulações rurais e populações urbanas são também, em parte, outra fonte de tensão que a Angolaindependente herdou do estado colonial.

11O passado e o presente de Angola

Page 12: Coordenador do Número: Guus Meijer

Portugal, tal como as outras potências coloniais, estavaprincipalmente interessado na extracção de riquezas dassuas colónias, através da tributação, do trabalho forçado edo cultivo obrigatório de culturas comercializáveis, como o algodão. Sob uma capa de ‘missão civilizadora’ o estadocolonial era muito influenciado pela sua própria variante de fundamentalismo católico, inventada pelo ditador semi-fascista António Salazar. Tratava-se de uma ideologiadesenvolvida a partir do conceito do ‘luso-tropicalismo’,uma forma supostamente portuguesa de harmonizar omodo de vida luso com os costumes dos povos dostrópicos. Em Angola a extracção económica foi mais tardesuplementada pelas influências migratórias, quandoPortugal precisou de resolver o problema de excessopopulacional. Nos anos 50 e 60 Angola recebeu muitosmilhares de camponeses pobres brancos e colonosempreendedores vindos da metrópole. Criaram umapopulação de ascendência europeia que, embora maispequena do que as comunidades portuguesas da França ou do Brasil, era maior do que a da colónia rival de Moçambique.

Durante o período colonial, e em particular sob o EstadoNovo corporativo e as cartas coloniais elaboradas porSalazar ao passar da pasta das Finanças para o cargo dePrimeiro-Ministro em 1932, os desenvolvimentos políticos e económicos de Angola estiveram intimamente ligadosaos da metrópole. Em 1969 Marcello Caetano sucedeu aSalazar e continuou a isolar as colónias, e em especialAngola, a jóia da coroa, dos ventos de mudança que desdeo início da década sopravam ideias de independência por toda a África. Em vez de se preparar para asindependências, como as outras potências coloniaistinham feito com relutância depois da Segunda GuerraMundial, Portugal reforçou o seu controlo imperial. Como era um estado fraco, isolado politicamente eeconomicamente atrasado, socorreu-se de medidasespeciais para segurar as suas colónias e, em 1954,renomeou-as eufemisticamente de ‘provínciasultramarinas’ numa tentativa de evitar as atenções dosinspectores das Nações Unidas. Economicamente, tantoPortugal como Angola achavam-se constantemente àmercê das tendências e desenvolvimentos da economiaglobal, determinados por forças fora do seu controle. A crise económica mundial dos anos 30 empobreceraPortugal e cristalizara o regime autoritário de Salazar. Nosanos 50, quando Portugal aspirava a tornar-se membro dasNações Unidas e ao mesmo tempo manter as colónias, ascrises e oportunidades agrícolas traziam a ameaça desublevações em Angola. A relativa pobreza das terras altasdo sul e o boom nos preços do café no norte levaram àmigração de milhares de camponeses ovimbundu para as plantações de café. Aí seriam humilhados peloscolonizadores brancos e ressentidos pela população local, os bakongo.

As rivalidades constantes entre as várias elites têmdesempenhado um papel importante na história recentede Angola. A FNLA representava as aspirações da elite do

snorte centrada na cidade belga de Kinshasa mas comalguns laços culturais com o antigo reino do Kongo. OMPLA tinha o seu território natural entre o povo mbunduda região em torno de Luanda mas incluía muitos gruposnos centros urbanos, incluindo alguns que descendiamdas antigas famílias assimiladas de angolanos pretos e outros que descendiam da miscigenação racial dacolonização moderna. A UNITA transformou-se na expressão de uma terceira tradição política erepresentava as aspirações económicas dos ovimbundu e dos seus líderes comerciantes no planalto do sul. Emgrande medida a identificação étnica destes movimentosresultou de manobras políticas conscientes feitas por cada uma das lideranças, mais do que de uma expressãogenuína de sentimentos e aspirações populares. Noentanto, com o tempo, os factores sociais e políticos deidentidade e coesão tornaram-se reais.

A sociedade histórica angolana pode ser caracterizada poruma pequena elite semi-urbanizada de famílias ‘crioulas’de língua portuguesa – muitas pretas, algumas mestiças,algumas católicas, outras protestantes, algumas há muitoestabelecidas, outras cosmopolitas – que se distinguem da população geral de africanos pretos camponeses etrabalhadores agrícolas. Até ao século XIX os grandescomerciantes crioulos e os príncipes rurais negociavam em escravos, a maior parte dos quais eram exportadospara o Brasil ou para as ilhas africanas. A aristocracia pretae a burguesia crioula prosperavam com os lucros docomércio ultramarino e viviam em grande estilo,consumindo grandes quantidades de bebidas alcoólicasimportadas e usando a última moda em roupa europeia.No início do século XX, contudo, a sua posição social eeconómica foi corroída pela chegada de pequenoscomerciantes e burocratas vindos de Portugal, quepretendiam agarrar as oportunidades comerciais eprofissionais criadas por uma nova ordem colonial.

Embora a ocupação efectiva fosse recente e persistissemelementos de continuidade pré-colonial, o colonialismoimplicou grandes transformações sociais na urbanização,na instrução, nas práticas religiosas, nas técnicas agrícolase nas ligações comerciais. Estas transformações afectaramtodos os extractos da sociedade e todas as zonas do país, ainda que em graus desiguais e variáveis. Há umatendência para encarar a sociedade angolana, e todas as outras sociedades africanas, como estando divididasfundamentalmente entre um sector ‘moderno’,influenciado por valores ‘ocidentais’ (ou europeus), e umsector ‘tradicional’, governado por sistemas pré-modernosde normas imutáveis e práticas rituais históricas. Taisconcepções, expressas no discurso político e público,simplificam a base socio-cultural do MPLA e da UNITA. Narealidade, cada um dos movimentos teve de gerir as suasrelações com as ‘autoridades tradicionais’ apropriadas.Angola possui uma enorme variedade de influências emisturas, todas profundamente marcadas pela experiênciacolonial e pelo denominado ‘afro-estalinismo’ dos anosque se seguiram à independência. Os conceitos

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‘tradicionais’ são agora transformados para se adaptaremaos desafios da vida presente e futura. Não há partealguma de Angola, por mais remota, e nenhum sector dasociedade angolana, por mais ‘tradicional’, que não estejade alguma forma ligado ao mundo ‘moderno’ daeconomia global e dos seus sistemas culturais e decomunicação.

A luta de libertação nacionalEmbora o domínio colonial nunca tenha deixado de sofrerresistência, apenas em 1961 se deu início a uma formamais organizada de luta armada pela independência,depois dos portugueses terem reprimido de maneirasangrenta um protesto colectivo contra as condiçõescoloniais no norte. Centenas de agricultores ecomerciantes brancos (as estimativas variam entre 250 e 1000) e milhares de trabalhadores agrícolas pretosforam mortos, e muitos mais fugiram do país, formandouma reserva fértil de recrutamento para uma causa anti-colonial emergente.

A actividade política e a resistência nacionalistasinicialmente surgiram pelas mãos da União dos Povos de Angola (UPA), um antecessor da FNLA. Em Luanda e nas cidades do litoral havia muito que associações muitomais antigas expressavam o sentimento nacionalista dapopulação africana de Angola. Este nacionalismo com base urbana incorporava igualmente assimilados emestiços de Luanda e de Benguela, que na década de 1910 organizaram a Liga Angolana e nos anos 40 omovimento Vamos Descobrir Angola, liderado por pessoas como Viriato da Cruz que mais tarde seriamfundadores do MPLA.

A década de 1960 assistiu a um importante confrontoentre o regime colonial português e o nacionalismoangolano. O país passou também pelas primeiras divisõesno seio do movimento nacionalista que iriam marcar a vida política em Angola durante muitos anos. Osprotagonistas eram a FNLA, o MPLA, que mais tarde tentoureclamar a responsabilidade por um ataque a uma prisãode Luanda a 4 de Fevereiro de 1961, e a UNITA, queapareceu em meados dos anos 60. A data do ataque àprisão seria depois celebrada oficialmente como o começoda luta armada.

A luta anti-colonial desencadeada em 1961 foidesenvolvida com tácticas de guerrilha, cujo alcance foicrescendo do norte para o leste do país. Na frentediplomática os nacionalistas trabalhavam a partir de basesem Leopoldville (actualmente Kinshasa), Conakry eBrazzaville, bem como de Lisboa e Paris. A FNLA recebeuapoio político e militar de países africanos, da China e dosEUA. Em 1962 formou um Governo Revolucionário deAngola no Exílio (GRAE) que a Organização de UnidadeAfricana (OUA) começou por reconhecer como o sucessorlegítimo do governo colonial. Mais tarde alguns paísesafricanos transferiram as suas simpatias e apoios para

o MPLA que, embora detivesse um registo militar fraco e uma liderança muito disputada internamente,gradualmente ultrapassou politica e diplomaticamente os seus rivais até atingir a proeminência em 1975.

A FNLA estava tão sujeita a dissensões internas quanto oMPLA e em 1964 Jonas Savimbi abandonou o governoprovisório do qual fizera parte como Ministro dos NegóciosEstrangeiros. Acusava os dirigentes da FNLA de seremmilitarmente ineficazes e muito dependentes dos EUA.Denunciava igualmente a existência de nepotismo e aliderança autoritária de Holden Roberto. E em 1966, apósuma visita a vários países comunistas, fundou a UNITA.Savimbi criou a sua base de apoio no centro e sul do país,com a exploração dos sentimentos de exclusão do maiorgrupo étnico de Angola, os ovimbundu. Começou porconduzir pequenas operações de guerrilha dentro deAngola e acabou estabelecendo uma rede de apoiantes no exterior.

Nenhum dos movimentos armados conseguiu ameaçarrealmente o estado colonial em Angola. O fim desta‘primeira guerra angolana’ foi causado indirectamentepela pressão interna em Portugal e pelo crescentedescontentamento dos militares portugueses com asguerras coloniais de Moçambique e da Guiné. Em Abril de 1974, jovens oficiais pertencentes ao Movimento dasForças Armadas (MFA) derrubaram o regime de Salazar e Caetano na metrópole e iniciaram o processo dedescolonização. Em 1974, contudo, um frenesim deactividade diplomática e política em Portugal e no exteriorimpediu uma independência negociada. Em 1975, com a diminuição da vontade em reter o controle imperial sobre Angola, desencadearam-se combates em muitasprovíncias de Angola e em Luanda, onde os exércitos doMPLA, da FNLA e da UNITA deviam manter a paz compatrulhas conjuntas. Em Janeiro de 1975, sob uma enormepressão internacional, a potência colonial e os trêsmovimentos assinaram um acordo no Alvor queestabelecia um governo de transição, uma constituição,eleições e a independência. Este Acordo de Alvor, contudo,em breve fracassaria e o governo transitório mal chegou a funcionar. Nos confrontos seguintes a FNLA receberiaapoio militar do Zaire, sancionado pela China e pelos EUA, enquanto que sob a liderança de Agostinho Neto o MPLA ganhava terreno, em particular em Luanda, com o apoio da União Soviética e de tropas cubanas. A 11 deNovembro de 1975 Angola tornou-se independente. AFNLA e a UNITA foram expulsas da cidade e do governo e estabeleceu-se um regime socialista de partido únicoque acabaria por ser internacionalmente reconhecido,embora não pelos Estados Unidos.

Angola sob o governo de partido únicoDe 1975 até ao final da década de 1980 a sociedadeangolana foi moldada pelas clássicas regras marxistas-leninistas. O sector estatal, dominante mas cada vez mais

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corrupto, era controlado pelo partido no poder. A iniciativaprivada, à excepção das actividades das companhiaspetrolíferas estrangeiras, era restrita e a religiãoorganizada, incluindo a Igreja Católica, que no regimecolonial detivera um lugar oficial, foi suprimida. Nãoemergiu qualquer ‘sociedade civil’ organizada e o estadocontrolava os meios de comunicação social e asorganizações de massas para a juventude, as mulheres, os trabalhadores e algumas profissões.

Durante a era socialista de Angola um acontecimento teriaum impacto crucial no clima político do país: a tentativafalhada de golpe levado a cabo por Nito Alves e seusseguidores em 27 de Maio de 1977. Alves era ministro dogoverno do presidente Agostinho Neto mas tinha a suabase de apoio nos musseques (bairros populares) deLuanda. A crise nitista era alimentada por ambiçõespessoais mas igualmente por batalhas ideológicas no seiodo campo socialista no poder. Alguns dirigentes eram leais à linha ‘burocrática’ praticada na URSS, enquanto que outros preferiam uma atitude mais ‘revolucionária’, à chinesa. O golpe seria duramente reprimido e estima-seque milhares de supostos apoiantes foram presos ou

mortos nos dias, semanas e meses que se seguiram. Oepisódio teve um efeito profundo no presidente, e o seuregime tornou-se ainda mais autoritário e repressivo. Apopulação de Angola perdia assim a sua inocência, e apartir daí passou a viver no medo.

Guerras seguintesNo final dos anos 70 a UNITA tomou o lugar da FNLA como principal opositor ao governo do MPLA na guerracivil. Conseguira-se uma aproximação entre o MPLA e opresidente Mobutu do Zaire. Os quadros da FNLA,dirigidos pelo protégé de Mobutu, Holdern Roberto,integraram-se gradualmente na sociedade angolana comoos acólitos do mercado livre do estado de partido único. O exército da FNLA, outrora uma força com milhares derecrutas armada pelo exterior, desintegrou-se sem serformalmente desarmado ou desmobilizado.

Agostinho Neto morreu de cancro em 1979 e foi sucedidopor José Eduardo dos Santos, um jovem engenheiropetrolífero educado na URSS. Nesta altura o conflito dassuperpotências no Vietname terminara e Angolatransformou-se numa nova guerra indirecta entre os

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Estados Unidos e a União Soviética. Mais do que a defesade um interesse específico em Angola, cada um dos ladoscompetia em termos geo-políticos. Os aliados regionaisdos EUA continuavam a ser o Zaire e a África do Sul,enquanto que o Congo-Brazzaville alinhava com a UniãoSoviética. Cuba prestou apoio militar e civil ao governo doMPLA e contribuiu significativamente para a reabilitaçãode sectores sociais como a saúde e a educação.

Os diamantes, e mais ainda o petróleo, forneciam ao MPLA as receitas necessárias ao seu funcionamento como governo. Os rendimentos externos financiavamigualmente o estilo de vida da elite governante e a guerracontra a UNITA. Durante os anos de guerra as ligaçõeseconómicas entre as cidades do litoral e o interior agrícolaenfraqueceram ao ponto de desaparecerem. A UNITA, por vezes apoiada pelas forças sul-africanas, ocupavaespasmodicamente partes do país, que se tornavaminacessíveis tanto ao governo como aos comerciantes. As cidades, em especial Luanda, sobreviviam com comidaimportada no lugar da nacional. Os bens de consumoeram pagos com as royalties do petróleo. As zonas ruraiseram neglicenciadas e deixadas às suas estratégias desobrevivência. Ao longo dos anos muitas pessoas fugiramà guerra migrando para as cidades. A ausência deoportunidades nas áreas rurais tornava mais atractivos os centros urbanos, apesar da pobreza dos bairros de lata. A cidade de Luanda cresceu até atingir os 4 milhõesde habitantes.

A ‘segunda guerra angolana’ atingiu o seu auge emmeados dos anos 80. Uma das suas ironias estava norendimento em dólares gerado pelas companhiaspetrolíferas americanas, que pagava a tropas cubanas pela protecção do governo angolano e das suasinstalações petrolíferas dos ataques das forças sul-africanas a mando da UNITA e em parte financiadas pelosEUA. Nesta fase da guerra houve um ponto de viragem, a batalha pela pequena mas estratégica vila de CuitoCuanavale. Em 1986-87, as forças sul-africanas e da UNITAforam obrigadas pelo MPLA e pelas tropas cubanas arecuar, após um longo cerco. Os sul-africanos admitiramque não existia solução militar para a segurança da suafronteira norte e começaram a explorar alternativaspolíticas. As iniciativas de paz que se seguiram,orquestradas por uma Troika composta por Portugal, os EUA e a União Soviética, resultaram finalmente nosAcordos de Bicesse de Maio de 1991, entre o MPLA e aUNITA. A paz foi seguida da realização das primeiras eúnicas eleições legislativas angolanas, sob os auspícios da ONU. Savimbi esperava ganhar o poder na votação de Setembro de 1992. Quando viu que não o conseguira,rejeitou os resultados e regressou à guerra.

A ‘terceira guerra angolana’ foi ainda mais brutal que asprecedentes. Cidades inteiras foram reduzidas aescombros, centenas de milhar de pessoas foram mortasou morreram devido às privações e doenças causadas pelaguerra e milhões de pessoas foram deslocadas, algumaspela segunda ou mesmo terceira vez. Conversações

extensas em Lusaka resultariam num outro acordo de paz, o Protocolo de Lusaka, assinado em Outubro de 1994,mas mesmo então a guerra não tinha chegado ao fim.Apesar das sanções internacionais contra as redes deabastecimento da UNITA, Savimbi mostrava-se reluntanteem abandonar a opção militar. Após quatro anos de nempaz nem guerra, a guerra voltou a rebentar em Dezembrode 1998. O governo angolano, oficialmente um ‘governo deunidade e reconciliação nacional’ em que alguns políticosdissidentes da UNITA participavam sob o comando doMPLA, desenvolveu uma ofensiva que culminaria com oassassinato de Jonas Savimbi em Fevereiro de 2002. A 4 deAbril desse ano, o Memorando de Luena marcava o fim dequatro décadas de guerra e a derrota final da UNITA. EmOutubro de 2002 a UNITA declarava-se um partido políticodemocrático e totalmente desarmado e as sanções que lhe tinham sido impostas pela ONU foram levantadas.

A maior parte do território de Angola vive em paz desdeAbril de 2002 mas em Cabinda, o enclave entre as duasrepúblicas do Congo onde reside cerca de 60 por cento daprodução petrolífera angolana, tem prosseguido umaguerra sem quartel. O governo tem tentado reproduzir aestratégia de terra queimada e de fome que se mostroueficaz contra a UNITA. No entanto, muitos cabindascontinuam a apoiar os movimentos rivais que reclamam a independência. O governo angolano, determinado empreservar os seus principais activos económicos, nuncapoderia oferecer mais do que alguma forma de autonomiaprovincial para o enclave. Em Outubro de 2002, umagrande ofensiva contra a Frente de Libertação do Enclavede Cabinda (FLEC) desencadeou graves acusações deabusos de direitos humanos. No final de 2003, apósalgumas derrotas e deserções da FLEC, o governo deLuanda mostrou que estava preparado para conversaçõesde paz ou mesmo para um referendo. Até agora, contudo,o calar das armas que se sente na maior parte do territórioangolano ainda não chegou a Cabinda e o conflitopermanece por resolver. A paz em Angola mantém-seincompleta. As cicatrizes físicas e psicológicas da guerrasão evidentes. Ainda não foi encontrada solução para odéfice democrático. O regime continua marcado pela suahistória predatória.

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Famílias deslocadas a viverem numarmazém na Kaala, Huambo, 2000

Fotografia: Didier Ruef/Pixsil.com

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As causas dofracasso deBicesse e LusakaUma análise crítica

Christine Messiant

Foram precisos três acordos de paz e o assassinato de Jonas Savimbi, em Fevereiro de 2002, para que asarmas se calassem definitivamente em Angola. Há

várias formas de considerar esta trajectória de doze anos.Logo á partida podemos observar que os primeiros doisacordos – o de Bicesse em Maio de 1991 e o de Lusaka em Novembro de 1994, ambos realizados sob os auspíciosda comunidade internacional – tiveram como resultado a continuação da guerra, com consequências cada vez mais mortíferas para a população civil; enquanto que oterceiro acordo, o Memorando de Luena de 2002, no qual a comunidade internacional desempenhou um papelmuito secundário e em grande medida simbólico, não sóconseguiu a formalização da cessação das hostilidadescomo pôs fim ao ciclo de guerras que devastavam Angola desde a independência, em 1975. É desta formaque o governo angolano gosta de apresentar osacontecimentos, enquanto a comunidade internacionalprefere ver Luena como uma consequência dos seuspacientes esforços em prol da paz.

Como devem ser interpretados estes dois fracassos e este sucesso no alcance da paz? Retrospectivamente asrespostas residem numa combinação de dois factores:uma busca determinada da vitória militar e do poderhegemónico pelas duas partes em conflito, e a existênciade ‘demasiados interesses’ no seio da comunidadeinternacional ‘real’. Em Angola, os interesses destacomunidade internacional ‘real’, formada por grandespotências e empresas transnacionais, contextualizaram e influenciaram fortemente a atitude da comunidadeinternacional ‘oficial’ (as Nações Unidas). Foi assim,primeiro, nos Acordos de Bicesse e Lusaka e na suaimplementação e, depois, no apoio da comunidadeinternacional ‘real’ não só ao governo angolano como,silenciosamente, à opção militar e ao abandono dequaisquer tentativas de negociação.

Fundamentalmente são estes interesses da comunidadeinternacional real’ que explicam as deficiências e osfracassos das intervenções internacionais. Embora tenhammudado ao longo do tempo, eles reforçaram sempre amarginalização das necessidades de paz e democracia

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Christine Messiant é socióloga no Centre

d’études africaines da École des Hautes

Études en Sciences Sociales (EHESS) em

Paris. Faz investigação na área da

história política e social dos países

africanos de língua oficial portuguesa,

em especial Angola.

O Presidente da Zâmbia, Fredrick Chiluba com o Presidente DosSantos (à esquerda) e o líder da UNITA, Jonas Savimbi, em Lusaca, a

seguir a duas horas de conversações, em 6 de Maio de 1995

Fotografia: AFP

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das forças ‘não armadas’ – os angolanos que não sereconheciam nas pretensões hegemónicas dos partidosem conflito (incluindo mesmo alguns elementos dessespartidos). Tornaram possível que os dois partidos armadostratassem a seu bel-prazer a sociedade angolana, nos seusesforços para alcançar o poder total a qualquer preço.

Este artigo pretende mostrar quais eram as questões emjogo para os actores nacionais e internacionais no que diz respeito aos Acordos de Bicesse e Lusaka, e como sedesenvolveram e modificaram depois do fim da GuerraFria. Tentará, ainda, avaliar o seu impacto no ‘processo de paz’, até este se transformar num ‘processo de guerra’.Mesmo que no fim do processo se tenha alcançado a tão almejada paz, a forma como foi conseguida temimplicações óbvias na sua natureza.

A interligação entre interesses externos e forças internasDesde a guerra pela independência que os interessesexternos desempenhavam um papel crucial em Angola.Embora não tenham sido eles a criar as divisões no seio do nacionalismo angolano – divisões nascidas de lutaspelo poder entre diferentes elites – muito seguramenteexacerbaram-nas. Durante e depois da grande guerra civil e internacional de 1975-76 que levou o MovimentoPopular para a Libertação de Angola (MPLA), marxista, ao poder, Angola viu-se envolvida em interessesestrangeiros, regionais e internacionais. A importânciaessencialmente estratégica deste ‘conflito regional’ para as duas potências em confronto na Guerra Fria explica a ferocidade do conflito.

Explica igualmente a situação e o estado de espírito dosprincipais protagonistas no início das negociações, no final dos anos 80. Ambos tinham conseguido manter uma ‘guerra de ricos’, graças aos recursos que tinham à sua disposição: o governo tinha o petróleo, e ambos

podiam contar com o apoio militar, político e financeirodos seus aliados. Embora muito diferentes, ambas aspartes detinham os meios de dominação da sociedade enão precisavam de se preocupar muito com a população.Tinham relutância em democratizar e não davam mostrasde uma aceitação mútua. A União para a IndependênciaTotal de Angola (UNITA), em especial, formada pela guerrae por uma cultura totalitária, julgava-se vitoriosa, por terforçado o seu inimigo a negociar e o ‘seu lado’ ter vencidoa Guerra Fria. Acreditava na força como o principal meiode conquistar o poder. Quanto ao MPLA, sob o manto de um estado-partido militarizado, mergulhara há já unsanos numa espécie de ‘socialismo selvagem’ assente naarbitrariedade, no privilégio e na corrupção em massa porparte da clique dominante, abandonando a população a uma miséria crescente. Mesmo aos olhos dos seusapoiantes estava muito desacreditado, não conseguindorealizar qualquer reforma económica e rejeitando qualquermudança política. O seu poder residia numa oposiçãoalargada à UNITA, ou a Savimbi, e no controlo das riquezaspetrolíferas nacionais e dos recursos do estado e, portanto,na manutenção do sistema de partido único.

O primeiro acordo, assinado em Nova Iorque emDezembro de 1988, foi um acordo internacional. Nãoprocurava resolver a dimensão interna do conflito nemsequer preconizava uma cessação das intervençõesestrangeiras: na verdade, e surpreendentemente para umacordo que pretendia a resolução de um ‘conflito regional’,não incluía uma única cláusula acerca do fim do apoio daURSS e dos EUA a cada um dos lados. O acordo realizou-sedurante o declínio final da União Soviética e enquanto osEUA (os mediadores do acordo, apesar de serem neleparte interessada e determinante) estavam na mó de cima em termos internacionais. O MPLA, sob uma pressãomilitar crescente da UNITA e com os ventos internacionaiscontra si, entrou nas negociações a contra-gosto.

17As causas do fracasso de Bicesse e Lusaka

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O acordo de paz assinado em Bicesse em Maio de 1991assemelha-se bastante a outros acordos da altura emmuitas das suas características, tais como o objectivo dedemocratização das instituições políticas e de escolhaentre os dois lados em conflito através de um processoeleitoral precedido por uma ‘transição’. Os actoresangolanos, o MPLA no governo e os rebeldes da UNITA,como é óbvio, eram belicosos e ditatoriais, mas não maisdo que os seus homólogos em sítios como o Cambodja ou Moçambique. O que torna diferente o caso de Angola é a interligação das questões nacionais e internacionaisem jogo. Isto também ajuda a explicar por que razão não houve correcções ou ajustamentos às deficiênciasintrínsecas deste modelo geral de acordos de paz da‘primeira vaga’, adaptações que poderiam ter evitado o sangrento fracasso de Bicesse.

Bicesse: um curto e descuidado ‘interlúdio’As negociações oficiais iniciaram-se em Portugal em 1990,sob os auspícios de uma Troika composta por Portugal, a URSS e os EUA, com estes a exercerem mais peso. As negociações obrigavam logo à partida o MPLA aabandonar o marxismo-leninismo e a adoptar um sistemamulti-partidário e, mais tarde, em Maio de 1991, e apesarde continuar a ser ‘o governo’, a assinar um acordo de pazcom uma UNITA que era reconhecida como um ‘partido’em pé de igualdade com o MPLA. O acordo forçava aindao MPLA a realizar eleições após um período de transição,durante o qual se deveria proceder à desmilitarização dasduas forças e à formação de um exército único, de forma a assegurar o respeito pelo voto.

Os actores não armados em Angola (‘morais’, políticos,cívicos, etc.) não tiveram qualquer desempenho nasnegociações nem na implementação dos acordos. Naaltura os princípios de gestão de conflitos, em geral, nãoos reconheciam, já que se resumiam essencialmente àutilização de meios eleitorais para ajustar as contasdeixadas pela Guerra Fria. Contudo, em Angola, esteesquema era mais complicado e originou uma situaçãoainda mais estranha: embora as Nações Unidas tivessemestado envolvidas na boa implementação dos Acordos deNova Iorque, não foram chamadas a não ser no final dasnegociações de Bicesse. Os Acordos de Bicesse foramassinados numa altura em que se falava muito numa novaordem internacional e em que a ONU, após a Guerra Fria,podia reconquistar o seu papel proeminente. No entanto,a organização internacional permaneceu à margem dasnegociações e do processo estabelecido pelo acordo depaz: no próprio texto aparecia apenas como ‘convidada’! A Troika, por seu lado, instalou-se na direcção do processo,na Comissão Conjunta Político-Militar (CCPM). Dessa forma,os interesses dos três países membros e principalmente oequilíbrio de poder entre eles, muito a favor dos EstadosUnidos, prevaleceram sobre a ONU. A influência da Troikapodia continuar a dominar até ao fim.

Nenhum dos beligerantes com os quais a Troika e a ONUtinham de partilhar a responsabilidade pelo processo de

paz abandonara ainda a sua procura de hegemonia. Nem o MPLA nem a UNITA estavam interessados nareconciliação ou na democratização. Acima de tudo, oMPLA queria evitar a derrota, e aceitara certas condiçõescom relutância e sob pressão. A UNITA apenas queria a paz porque tinha a certeza – como quase toda a gente naaltura, incluindo o MPLA – que iria vencer as eleições, eatingir o seu objectivo de alcançar o poder do estado. Ostrês países que ‘geriam’ os acordos não podiam ter tidoilusões. Em tais circunstâncias, podemos ver a importânciada comunidade internacional durante o período detransição para o estabelecimento de fundaçõesduradouras para a paz.

O que poderá então ser dito deste acordo, descrito comoexemplar por alguns dos seus promotores internacionais e tão saudado pela população angolana; e por que razão falhou?

Por que razão Bicesse falhouO fracasso pode ser analisado de diversas maneiras. Osautores externos alegaram, mais tarde, que lhes faltava um conhecimento real dos dois lados angolanos,particularmente do ‘perdedor’ do processo, a UNITA.Contudo, isto vale apenas para a ONU e a suaRepresentante Especial, Margaret Anstee, que entrou noprocesso tardiamente. Anstee foi a primeira a aceitar aresponsabilidade da comunidade internacional, massublinhou a falta de recursos (humanos, financeiros, demandato). A sua conclusão era séria: que a ONU nuncadeveria ter conduzido um processo de paz sob aquelascondições. Mas por que razão os actores externos se terão comportado de forma tão irresponsável? As razõesprincipais que os levaram a intervir no processo de pazajudarão a perceber por que terão estabelecido umprocesso diferente de outros do mesmo período, e porque é que esse processo acabou por fracassar. E, emespecial, esclarecerão por que é que não se procederam a correcções e adaptações durante a implementação dos acordos que teriam evitado o seu colapso futuro.

A transição foi inteiramente entregue às duas partesarmadas. Não se estabeleceram regras políticas transitóriasnem se optou por um governo de coligação para operíodo pós-eleitoral (que evitasse os perigos de umdesfecho de ‘quem vence, vence tudo’). Os própriospartidos, e em particular uma UNITA influente, rejeitaram a opção de um governo de coligação antes das eleições,que poderia ter assegurado padrões mínimos deimparcialidade na preparação do escrutínio.

Bicesse incorpora características de outros acordos de paz seus contemporâneos, que naquelas outras situaçõescausaram dificuldades durante a sua implementação e no período pós-eleitoral. Mas em Angola os problemastranscendiam as fraquezas e ideias erradas desta primeiravaga de processos de paz. De facto, para os EUA (com o consentimento dos outros dois países), a paz não era o primeiro e único objectivo. O processo de paz eraencarado mais como uma via para a UNITA chegar ao

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Presidente Dos Santos (a esquerda) e António Dembo, Vice-Presidente da UNITA, 2 de Abril de 1998

Fotografia: AP Photo/Helena Valente

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poder. Esse desfecho, tido quase como garantido, podia ser atingido com custos políticos e financeirosmínimos, graças ao papel central atribuído à Troika. É principalmente por isso que a missão da ONU era tãosecundária, e os meios ao seu dispor tão irrisórios, quandocomparados com os usados na mesma época na Namíbiae no Cambodja. Era também por essa razão que seestabeleceu uma data próxima para as eleições, apesar de ser totalmente irrealista um prazo tão apertado para a conclusão de todos os requisitos necessários. Daí aindiferença em relação ao tipo de governo pré-eleitoral, o que paradoxalmente permitiu ao MPLA manter o seucontrolo sobre o executivo até às eleições – um controlototal em relação a todos os outros actores angolanos, e apenas mitigado pelas cláusulas e órgãos do processo de paz. A UNITA, por seu lado, não desejava arriscar perder credibilidade assumindo responsabilidadesgovernamentais. A única coisa que interessava aos EUA era ‘acompanhar’ a vitória esperada da UNITA, enquantoque para os outros países o envolvimento dos EUA erauma garantia suficiente da tranquilidade com que sedesenrolariam os acontecimentos.

A estrutura do acordo permitia aos diferentes partidos‘preservar o seu estatuto actual’; fora do governo, a UNITAnão tinha qualquer poder de negociação para além da suaforça militar, enquanto que as rédeas do poder transitórioe os recursos do estado-partido continuavam nas mãos do MPLA. A comunidade internacional não pressionounenhum dos lados a mudar durante a implementação doacordo. A UNITA manteve o controlo sobre algumas dassuas áreas e o ‘seu’ povo, e não pretendia perder a sua

única vantagem com o desarmamento, e a comunidadeinternacional fechou os olhos. Entretanto, notando a faltade interesse da comunidade internacional nas suasobrigações democráticas, o MPLA rapidamente mobilizouas suas forças para evitar perder tudo com uma derrotanas eleições: alcançou a vitória graças ao seu acesso a meios financeiros, ao total controlo do aparelhoadministrativo e da comunicação social estatizada, à mobilização de recursos legais e ilegais e aoestabelecimento de uma força para-militar. Multiplicaram-se as violações, sem quaisquer penalizações; perante olaxismo da comunidade internacional, instalou-se umalógica de radicalização. Isto provocou um cepticismocrescente na população, transformando as vantagens da UNITA (as suas armas e a ‘cultura’ que lhes estavaassociada) em desvantagens: a sua arrogância, a retençãoflagrante das suas armas, e a sua sede de vingança. Estesfactores, somados aos enormes esforços (financeiros e de meios) do ‘partido no poder’, congregaram apoios para o MPLA que não possuía na altura de Bicesse. Nestas circunstâncias, teria sido desejável um adiamentodas eleições (como a ONU faria mais tarde emMoçambique), já que não se tinham conseguido ascondições políticas e militares mínimas para a suarealização e subsequente aceitação. Contudo, optou-sepelo inverso. Independentemente do facto do exército daUNITA não ter sido dissolvido e do governo ter criado umanova força policial especial, a data inicialmente acordadapara a votação foi considerada inalterável. Assim, a ONUdeclarou solenemente a dissolução dos dois exércitos e a sua substituição por um único, e empenhou-se a fundona aceleração do processo de recenseamento eleitoral.

19As causas do fracasso de Bicesse e Lusaka

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As eleições realizaram-se na data prevista e deram aoMPLA uma vitória clara sobre a UNITA – 54 contra 34 porcento dos votos. José Eduardo dos Santos, com 49,7 porcento dos votos, conseguiu uma vitória tangencial einsuficiente sobre Jonas Savimbi, com 40,7 por cento. AONU, com uma credibilidade cada vez mais questionada,decretou os resultados “geralmente livres e justos”. Umnúmero significativo de eleitores acreditou nas acusaçõesde fraude feitas pela UNITA e por outros partidos, mesmo que da parte da liderança da UNITA a alegaçãorepresentasse a negação de qualquer possibilidade dederrota. Como é óbvio, os eleitores do MPLA exigiram oreconhecimento do escrutínio e – como também muitosoutros ainda pretendiam o respeito pela votação e evitar aguerra – o governo conseguiu facilmente mobilizar egalvanizar os seus apoiantes com este sancionamento daONU. A comunidade internacional, impotente, tentounegociar pelo menos uma modificação das condições dasegunda volta das presidenciais, para tornar o processomenos desigual. Mas a UNITA já estava mobilizada emtodo o país, como forma de chantagem e preparação para a guerra. O MPLA já não podia ser detido na suacaminhada para a vitória e, agora que tinha a legitimidadenacional e internacional, não considerava qualquer tipo de partilha de poder.

Os acontecimentos que se seguiram foram e continuam a ser controversos mas provas documentais e oraispermitem-nos que os descrevamos assim: enquanto sediscutiam estas condições e a UNITA montava a suamáquina de guerra por todo o país, o governo denunciouuma tentativa por parte da UNITA de tomar o poder nacapital, e organizou um ‘golpe preventivo’ em Luanda evárias capitais provinciais. Como a UNITA detinha armaslegais e ilegais em Luanda deram-se violentos confrontose milhares de pessoas terão morrido em três dias. Umaesmagadora maioria dos mortos estava ligada à UNITA,incluindo um número dos seus dirigentes politico-militares baseados em Luanda, bem como soldados e civis (militantes ou simples simpatizantes).

Não tendo conseguido o respeito pelo resultado daseleições, a comunidade internacional ignorousimplesmente estas mortes numa tentativa de recomeçodas negociações. Mas já eclodira uma luta armada pelopoder, pela ‘ratificação’ ou ‘rectificação’ das eleiçõesencaradas pelos dois opositores como a batalha final pelo poder absoluto. E nessa altura já a comunidadeinternacional não se achava em condições de impedir que estes confrontos descambassem num recomeço da guerra. Por um lado, decidiu confirmar as suas acçõesanteriores, como as eleições e o seu resultado, e assimconsiderar a UNITA responsável pela guerra. Por outrolado, tentou, em vão, apresentar aos dois partidospropostas para o prosseguimento das negociações(estas propostas seriam a base das que finalmente viriam a ser aceites em Lusaka).

A guerra desencadeou uma imensa violência. Como a UNITA permanecera armada enquanto o exército

governamental se desintegrara e as forças paramilitareseram claramente insuficientes para fazer face à rebelião, de início conseguiu uma vantagem considerável.Enquanto a UNITA detivesse a superioridade militar,rejeitaria quaisquer novos termos de acordo propostospela comunidade internacional. Mas os tempos mudarame o governo usou a sua legitimidade crescente para exigirapoio à comunidade internacional. O fim da Guerra Fria e adescoberta de reservas de petróleo consideráveis ao largoda costa angolana, que até aí tinham sido exploradas emparceria com o governo do MPLA, constituíam fortesfactores adicionais em seu favor, ao mesmo tempo queparecia evidente que a UNITA seria incapaz de manter ocontrolo sobre a capital, mesmo que ganhasse no campode batalha. Estava portanto na altura de considerar estanova situação em todos os seus aspectos, incluindo o seuestatuto legal e as perspectivas de negócio que se abriam.Os EUA, totais apoiantes da UNITA até às eleições, davamagora o sinal de mudança. Quando, em meados de 1993, a UNITA voltou a rejeitar um acordo (o Protocolo deAbidjan), os EUA reconheceram finalmente o governo deAngola, abrindo caminho para as sanções à UNITA porparte da ONU. Este realinhamento geral em favor do‘governo legítimo’ implicou uma gradual inversão dasforças políticas, diplomáticas e militares em seu favor.

Lusaka: de acordo de faz-de-conta a ‘solução’ militarSob pressão da comunidade internacional e de um revésmilitar, a UNITA emitiu um comunicado em Outubro de1993 reafirmando a validade dos Acordos de Bicesse,preparando o caminho para as conversações entre os doislados em Lusaka em Novembro. Nos doze meses seguintes,e entre graves confrontos (e muitas mortes), os dois ladosencontraram-se por intermédio de uma equipa lideradapelo novo Representante Especial da ONU, Alioune BlondinBeye, e representantes da Troika.

Em Novembro de 1994, depois de uma série de desairesmilitares, a UNITA – embora não Jonas Savimbipessoalmente – foi forçada a assinar o Protocolo de Lusaka.Este acordo, todavia, não constituia a ratificação de umaderrota. A comunidade internacional assegurava que aderrota militar seria evitada, pois aprendera algumas daslições de Bicesse. Em primeiro lugar, o partido derrotadodeveria ter um lugar no poder, para o resultado daseleições ser politicamente aceite. Em segundo lugar, asfacções armadas envolvidas não deveriam ter os meiosmilitares para mudar o curso dos acontecimentos. E, por fim, o desarmamento devia ser levado a sério e lhedeviam ser atribuídos recursos adequados. O resultado das eleições não era reconsiderado e apenas a segundavolta das presidenciais estava na agenda.

No contexto dos resultados eleitorais, a UNITA era agoraconsiderada uma força rebelde ilegítima e assim punha-sefim à simetria entre os dois partidos que caracterizava osAcordos de Bicesse. Só a UNITA era pressionada a desarmar

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e a desmilitarizar-se de forma a ser integrada num exércitogovernamental, deixado intacto pelo acordo. O quase-intercâmbio que estruturava o acordo – desarmamentoem troca de participação no governo – conformava-secom esta mudança em estatuto legal e com o que seaprendera. A legitimidade governamental viu-seaumentada por dois outros elementos. Em primeiro lugar,e apesar do acordo, as sanções impostas em 1993 paraobrigar a UNITA a negociar não foram levantadas. Emsegundo lugar, a cláusula ‘triplo zero’ contida nos Acordosde Bicesse (repetida num anexo ao Protocolo de Lusaka) –uma cláusula que proibia ambos os partidos de serearmarem e outros países de lhes fornecer armas – nãofazia parte do Protocolo em si mesmo. Isto significava queem termos do texto do acordo e da resolução da ONU de1993 que impunha sanções, o rearmamento constituiauma verdadeira violação para a UNITA, enquanto já nãoera um problema para o governo, pelo menos em termoslegais. Além disso, não havia nada nos textos de Lusakaque proibisse países estrangeiros de rearmar o ‘governolegítimo’. Por outras palavras, não havia apenas umaassimetria estrutural mas um verdadeiro desiquilíbrio de direitos e obrigações no que dizia respeito à questãocentral da desmilitarização.

Embora este acordo, com o seu mandato e recursos daONU algo melhorados em relação a Bicesse, pudesse terajudado a evitar o fracasso de 1991, continha aindadeficiências importantes. Não atribuía qualquer papel àsforças não armadas – as que não faziam parte da luta pelopoder, que eram as que estavam mais preocupadas com a paz. E embora tivesse sido atribuído um papel maisimportante à ONU, a Troika continuava no cerne daoperação. Sobretudo, o acordo foi assinado num contextode total desconfiança entre as partes, e ignorava o facto de ambos os partidos estarem muito determinados a não cumprir as regras do jogo, se tal fosse necessário. A liderança da UNITA ainda acreditava na força das armas.A eliminação dos seus dirigentes e apoiantes em 1992apenas servira para a organização se radicalizar ainda mais politicamente e consolidar essa convicção. Nuncadesarmaria primeiro nem unilateralmente, enquanto a sua sobrevivência e posição política não estivessemasseguradas nas condições pretendidas. Para Savimbi e parte da liderança, isto significava enquanto nãoestivessem no poder. Quanto ao governo, durante os doisanos de guerra conseguira funcionar tal como antes,mesmo sob um sistema multi-partidário no seio do qualcriara, logo após as eleições, um denominado mas fictício‘governo de unidade nacional’ com pequenos partidosaliados. Por essa razão rejeitava completamente a ideia de ser considerado responsável e apenas acordava empartilhar formalmente o poder com a UNITA no Governode Unidade e Reconciliação Nacional (GURN) estabelecidopor Lusaka para não alienar a comunidade internacional.Sob estas novas circunstâncias, que lhe eram muitofavoráveis, lançou-se em práticas comerciais altamentelucrativas embora predatórias e oportunistas. Apesar doconflito armado conseguiu atrair parceiros interessados no

petróleo, importações de guerra e todo o comércio viável.Estas práticas de enriquecimento e corrupção desenfreadosnão eram penalizadas e eram acompanhadas pela imensae crescente miséria da população.

Agora a UNITA via-se forçada a depender apenas dosdiamantes sob o seu controlo de forma a preservar o seuaparelho militar. Determinada em não desarmar, adiou eviolou sistematicamente um acordo que consideravadesfavorável, esperando ser capaz de o renegociar combase na sua força militar contínua. Mas abusando da suaposição, o governo subverteu e ultrapassou o Protocolo enão cumpriu algumas obrigações importantes relativas àpolícia e às forças armadas. Segundo um oficial da ONU, “a UNITA violava o acordo de dia, e o governo de noite”.Estas infracções não eram penalizadas e alimentaram uma desconfiança mútua, conduzindo a um rearmamentodos dois lados. A UNITA realizou-o secretamente, com aajuda de negociantes de armas e diamantes, bem como dos poucos governos que ainda considerava amigos.Inicialmente o governo também comprou armas atravésde canais ilegais ou secretos, mas em breve negociava ecooperava com outros governos, ainda que de formadiscreta. A principal condição preliminar do processo depaz continuava a ser o desarmamento da UNITA. Claro que a comunidade internacional ‘compreendia’ – dada anatureza da economia política de Angola – que a UNITAprecisava de garantias económicas e políticas antes depoder desarmar. Em parte por essa razão, aceitou por duasvezes a ‘declaração’ de desarmamento obviamente falsada UNITA, bem como escolheu aceitar, apesar de todas asprovas em contrário, que o GURN era realmente umgoverno de ‘unidade e reconciliação nacional’.

À data da sua formação, em Abril de 1997, este governoera ‘unido’ e ‘reconciliado’ apenas no nome. Continha‘membros da UNITA’ que tinham sido co-optados, através dos termos do acordo, para um governo que eraexclusivamente dirigido pelo MPLA. A partilha de poderera portanto tão fictícia quanto a desmilitarização domovimento rebelde. Embora numerosos chefes de estadolouvassem o momento da sua constituição, a populaçãoangolana, desta vez, não celebrou. Conhecia os seus amos e os seus inimigos, e já não tinha fé na comunidadeinternacional. Com a estrutura dos acordos e seusdesiquilíbrios fundamentais, e as agendas implícitas mas conhecidas dos ‘partidos angolanos’, teria sido precisauma comunidade internacional muito política, resoluta e equilibrada para evitar o endurecimento do impasse. A situação azedou ainda mais quando o governo decidiuintervir militarmente nos vizinhos Congos – movimentaçõesproibidas no Protocolo – para ajudar a instalar no podergovernos amigos, sem que isso provocasse qualquerreacção internacional.

Ambos os partidos preparavam-se, indesmentivelmente,para um novo confronto e as tensões no terreno cresciam.Em 1998 o governo considerou que estava politica,diplomatica e militarmente capaz de desencadear umaverdadeira guerra. Reconhecendo o fracasso e a futilidade

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das suas políticas, a comunidade internacional admitiuque ambos os lados violavam os termos do acordo, ereiterou que a responsabilidade principal residia no nãodesarmamento da UNITA. Sem poder parar a espiral demilitarização e de violações de parte a parte, esta reiteraçãonão teve qualquer implicação na preservação da paz. Teveimplicações, todavia, no aumento da legitimidade políticado governo. Em Junho de 1998 o Conselho de Segurançareforçou mais uma vez as sanções, incluindo esta vez osdiamantes, o impulsionador da máquina de guerra daUNITA. No final de 1998 o governo lançou o que denominoua sua ‘guerra pela paz’, contra um inimigo “que nuncarespeitara os acordos”, e tudo fez para que o líder inimigo,Savimbi, fosse internacionalmente criminalizado.

A comunidade internacional num impasseÉ impossível entender os objectivos do governo nesta‘última’ guerra sem considerar as suas políticas ‘internas’. O MPLA, dominando todas as ‘instituições democráticas’,graças a quatro anos de uma situação de ‘nem guerra nempaz’ conseguiu realizar a pilhagem dos recursos públicosem total impunidade. Em parceria com interessesestrangeiros e sob os auspícios de uma presidência compoderes reforçados, foi capaz de privatizar em parte essesinteresses para seu próprio proveito. Houve, de facto, umacompetição internacional intensa pelos benefícios, emprimeiro lugar pelo petróleo e também por todos osoutros negócios viáveis. Mas este exercício de clientelismo,que tem como corolário a pobreza e a necessária ausênciade direitos (mesmo os reconhecidos na lei) da esmagadora

maioria da população, era apenas possível se os processosdemocráticos reais fossem ‘neutralizados’, para impedirque forças políticas opostas capitalizassem com acrescente insatisfação. Na medida em que o MPLAcontrolava todas as esferas do estado, a economia públicae privada e os meios de comunicação, a ‘oposição nãoarmada’ foi neutralizada, presa entre a co-optação, arepressão e a impotência. Só restava a oposição armada da UNITA. O objectivo último da estratégia militar dogoverno era neutralizar a UNITA politicamente, pois umaUNITA aniquilada militarmente seria incapaz de negociar e, portanto, incapaz de enfraquecer o controlo do ‘partido no poder’ sob o pretexto de um processo detransição. Uma solução militar seria por isso mais eficaz.Criaria as condições para que o MPLA pudesse, sozinho,determinar os termos da paz, o calendário para as eleiçõese o futuro político, económico e social de Angola, semenfrentar as ameaças ‘normais’ ao seu sistema de poderque a paz acarretaria.

Para conseguir isto o governo podia apoiar-se no facto deser o poder legítimo e dos rebeldes se recusarem adesarmar. Na medida em que a comunidade internacionalera garante desta legalidade e dos acordos, e indiferenteàs realidades da prática governativa do MPLA, o governopodia contar com as relações próximas com uma série depoderosos parceiros estrangeiros e com a aquiescência na sua guerra de uma importante parte da comunidadeinternacional ‘real’ – o que envolvia apoio políticosubstancial mas também apoio militar directo, emboradiscreto, de alguns países amigos. Mas o governo

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pretendia mais. Para prosseguir os seus objectivosambiciosos – e políticos – precisava igualmente que acomunidade internacional oficial conferisse legitimidade à guerra e abandonasse todos as tentativas de diálogo. AONU não seguia completamente esta linha, recusando-sea reconhecer a UNITA-Renovada, formada por dissidentesque diziam substituir a UNITA de Savimbi mas que nãotinham qualquer autonomia em relação ao regime, e adeclarar Savimbi um criminoso de guerra. Mas quebrou,de qualquer forma, todos os contactos com a UNITA, cujasmissões no estrangeiro foram obrigadas a encerrar, e oComité de Sanções do Conselho de Segurança tentoumesmo cortar-lhe os meios de expressão política.

A ONU mostrava-se assim ansiosa por desempenhar um papel num processo futuro que pusesse termo ao conflito e não queria deixar Angola como um fracasso.Consequentemente, estava preocupada em nãoantagonizar o governo. Mas abandonou o seu mandato –a procura da paz através de negociações – e parou com a entrega de ajuda humanitária a áreas dominadas pelaUNITA (uma obrigação à luz do direito internacionalhumanitário). As sanções foram impostas com umatenacidade notável, em especial a partir de 2000, após asprimeiras vitórias militares do governo, e eram justificadascom a referência contínua à ‘responsabilidade principal’ daUNITA pelo impasse, e pela própria natureza das sançõesacordadas. Em breve as sanções começaram a representaruma contribuição real para o esforço de guerra do governo,dificultando a aquisição de abastecimentos pela UNITA eforçando-a a ‘sobreviver pelos seus próprios meios’.

O resultado foi uma tragédia humanitária, com um intensorecurso à política de terra queimada tanto como meio desobrevivência da UNITA como forma de alcançar a vitóriamilitar por parte do governo. Depois da muito desejadaeliminação de Savimbi e da vitória militar que ela reforçava,o resultado foi uma negociação de ‘faz de conta’. Isto nãodeu lugar a qualquer tipo de transição política e assim, talcomo desejara, o governo reteve o controlo solitário sobreo futuro de Angola, com os termos mais favoráveis quepoderia esperar assegurar numa situação de paz.

ConclusãoNo início dos anos 90 a comunidade internacional preferiuignorar os interesses hegemónicos dos dois partidos e amilitarização de uma UNITA que pretendia alcançar opoder a todo o custo. No final da década, foi essa mesmaindiferença para com as necessidades e aspirações dosangolanos que deu rédea livre ao jogo de interesseseconómicos e estratégicos. Estes interesses não se tinhamenfraquecido mas sim reorientado e, em conformidadecom os resultados das eleições, inclinavam-se mais nadirecção do governo. Mas no fim do processo o querestava, aos olhos de muitos angolanos, era a impotência e o descrédito da ONU: quando a ‘ONU política’ deixou de lhe ser útil, o governo culpou-a por não ter feito osuficiente durante ou depois da guerra, e por ter queridoimiscuir-se na sua soberania; a UNITA, por seu lado,

condenou-a por parcialidade durante o segundo período(evitando mencionar o primeiro). As forças cívicas que setinham mobilizado para pôr um fim pacífico à guerra, mascom as quais as Nações Unidas não se tinham envolvido,ressentiram o facto de terem sido abandonadas nos seusesforços para atingir um objectivo que deviam terpartilhado com a organização internacional. O resultadonão era apenas danoso para a ONU. Significava tambémque não tinham sido preenchidas as condições mínimaspara que uma paz conseguida por meios militares fosseconvertida numa democratização e numa paz civil justa e durável, o que era bem mais grave para os angolanos e Angola. Os investidores e parceiros estrangeiros e osseus governos – a comunidade internacional ‘real’ – nãoestavam demasiado preocupados: não o tinham estado noauge da guerra e agora existia estabilidade suficiente paraas suas necessidades comerciais, já para não falar no factoda reconstrução do país oferecer grandes oportunidadesde obtenção de lucros ainda maiores.

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Soldados das Forças Armadas Angolanas em patrulha,durante a guerra de 1998-2002

Fotografia: J. B. Russell/PANOS

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O fim da guerra o Memorando deEntendimento de Luena

Aaron Griffiths

A22 de Fevereiro de 2002 o líder da União Nacionalpara a Independência Total de Angola (UNITA),Jonas Savimbi, foi morto por forças militares do

governo e, em breve, as imagens televisivas do seu cadávereram transmitidas em todo o mundo. O esforço militar dogoverno para derrotar a UNITA reclamara a sua vítima maispreciosa. Tendo resistido a crescentes pedidos domésticose internacionais para novas conversações com a UNITA, ogoverno encontrava-se numa encruzilhada, aparentementenuma posição forte, em que poderia escolher se queriatentar forçar a UNITA a uma rendição total ou iniciar algum tipo de conversações de paz. A UNITA, fracturada e hesitante, enfrentava escolhas ainda mais difíceis. Esteartigo analisa como as partes responderam à oportunidadeoferecida para terminarem a guerra, e interroga a formacomo as decisões que conduziram à assinatura doMemorando de Luena em 4 de Abril podem ter moldado o futuro de Angola.

Passos para as conversaçõesTrês dias após a morte de Savimbi, enquanto as operaçõesmilitares prosseguiam em Angola, o Presidente Dos Santosesteve em Lisboa para discutir a situação com o governoportuguês. Aí, ele fez uma declaração pública indicandoque o próximo passo seria um cessar-fogo, antes de viajarpara Washington, onde se encontraria com o PresidenteGeorge W. Bush e outros altos funcionários dos EUA e,depois, com Ibrahim Gambari, Sub-Secretário da ONU paraos Assuntos Africanos. A 2 de Março, o governo confirmouque contactaria a UNITA para preparar o terreno para umcessar-fogo.

As informações iniciais, a seguir à morte de Savimbi,sugeriram que a UNITA estava determinada a continuar a combater, mas a sensação de derrota iminenteaprofundou-se com a notícia da morte do Vice-PresidenteAntónio Dembo. Surgiram rumores de que ele fora mortopor companheiros da UNITA, porque, não sendo eleovimbundu, seria uma escolha inaceitável para líder, masoutras informações afirmavam que ela era diabético e tinhaperdido os medicamentos. O Secretário-Geral da UNITA,

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Aaron Griffiths é Coordenador/

Investigador de Accord: an

international review of

peace initiatives.

O General Armando da Cruz Neto (à direita) e o GeneralAbreu Muengo Ukwachitembo ‘Kamorteiro’ assinam o

Memorando de Entendimento, em 4 de Abril de 2002

Fotografia: AFP

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General Paulo Lukamba “Gato”, alegadamente da linhadura, tornou-se no líder de facto, no seu papel de‘coordenador’ da recém-formada Comissão de Gestão.

Seguiram-se contactos discretos entre os partidosbeligerantes, e deu-se um avanço público a 13 de Março,quando o governo declarou uma cessação unilateral dasmovimentações militares ofensivas e apresentou um ‘plano de paz’ (ver Textos de base e acordos). Este planoexigia a resolução dos assuntos militares pendentes emconformidade com os Acordos de Bicesse e o Protocolo deLusaka, a desmilitarização e reintegração da UNITA na vidapolítica, e uma amnistia de todos os crimes cometidos noâmbito do conflito armado. Havia também o compromissoem trabalhar, durante o processo, com toda a sociedade,especialmente as igrejas, partidos políticos, e grupos dasociedade civil. O plano foi considerado surpreendente,mas foi, em geral, bem recebido. A Assembleia Nacionalnão foi consultada nem envolvida. O Representante doSecretário-Geral da ONU em Angola, Mussagy Jeichande,exprimiu satisfação com o plano de paz, considerando-o“conciliatório”. Os bispos católicos receberam com agrado“a linguagem e o gesto benevolentes” do governo, e acomunicação social independente também reagiu com agrado.

O problema da UNITAA iniciativa parecia ter impulsionado as perspectivas de umacordo. Contudo, havia que lidar com mais do que umaUNITA. Nominalmente, a abordagem do governo era uma

política dupla que envolvia a discussão dos assuntosmilitares com os comandantes da UNITA no mato, e dosassuntos políticos com a UNITA-Renovada, uma facção domovimento rebelde que há muito reconhecia como sendoa UNITA legítima. Contudo, a UNITA-R, que era largamentevista como um grupo de marionetas que tinha sidointegrado no Governo de Unidade e ReconciliaçãoNacional (GURN), tinha pouca legitimidade junto dosmembros da organização no mato, dos representantes daUNITA no estrangeiro e dos outros deputados. Na prática, aausência de uma UNITA coerente e unificada representavauma oportunidade para o governo limitar qualquer acordoa um acordo estritamente militar, com os seus congéneresmilitares, deixando os assuntos políticos em suspenso.

Um comunicado da UNITA-R anunciou a criação de umacomissão para a reunificação do partido, mas isto foi poucomais do que uma postura. Entretanto, havia uma sériadivisão entre a Comissão de Gestão da UNITA no mato e a sua ala no exterior. Enquanto o governo reconhecia aliderança militar da UNITA como sua parceira denegociações, muitos no partido receavam que esta erapouco mais do que prisioneira, tendo como única escolhaassinar uma rendição disfarçada de acordo de paz. 46 dos70 deputados da UNITA emitiram uma declaração apoiandoa ala externa como o único organismo com legitimidadesuficiente para representar o movimento junto da ONU,para que se pudesse concluir o processo de paz.

O público em geral também começou a exprimir reservassobre a natureza das negociações iminentes. Houve

25O Memorando de Entendimento de Luena

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pedidos para que jornalistas e activistas da sociedade civil,nacionais e estrangeiros, tivessem acesso às negociações eaos membros da UNITA nelas envolvidas, ou, pelo menos,para que houvesse observadores da ONU ou da Troika,para aumentar a credibilidade. Três dias após o anúncio doplano de paz do governo, a Associação Cívica Angolana(ACA) pediu numa carta aberta a elaboração de um planoque não fosse meramente um acordo militar e paraacomodar a UNITA, mas que lidasse com os problemas do país na fase de transição para a democracia.

Um porta-voz governamental respondeu que a presença de terceiros, tais como a igreja ou a ONU, seria confusanessa fase, mas deixou aberta a possibilidade de umenvolvimento posterior. Falando pela Comissão de Gestãoda UNITA, o General Dachala apoiou esta posição.

Conversações preliminares em CassambaConversações preliminares entre as FAA e os generais daUNITA começaram a 15 de Março na vila de Cassamba, naprovíncia do Moxico. Um jornal revelou que o General dasFAA “Implacável” teve uma reunião exploratória de dois diascom Gato, na base da UNITA no Moxico, mas foi o GeneralSamuel Chiwale que liderou a delegação da UNITA nasconversações. Facto importante, um antigo General daUNITA, que mudara de lado em 1993, e liderara operaçõesmilitares recentes, Geraldo Sachipenda Nunda (Chefe deEstado-Maior Adjunto das FAA) liderou a delegação dogoverno nas conversações preliminares. Alegadamente, ele foi capaz de estabelecer uma boa relação com os seusantigos colegas.

O governou caracterizou a situação como sendo deresolução de assuntos militares técnicos. Os dois ladosconcordaram que as FAA seriam responsáveis pelaorganização e provisão de todos os meios logísticos etécnicos necessários para as conversações, incluindo otransporte de delegados da UNITA para o local. Foiacordado que a capital provincial, Luena, a cidade cominstalações do governo mais próxima do campo de batalha,seria um local prático para acolher mais negociações. Asperspectivas para a cessação definitiva das hostilidadespareciam promissoras. O General Nunda das FAA e o Chefede Estado-Maior da UNITA, General Abreu “Kamorteiro”,assinaram um ‘pré-acordo’ de cessar-fogo em Cassamba, a18 de Março. Continuaram a aparecer relatos de combatesem diversas partes do país, mas o governo minimizou a sua importância, insistindo que se deviam apenas a ‘falhas de comunicação’ com os combatentes no terreno.

Contudo, nesta altura, a ala militar da UNITA não tinha ainda conseguido que os restantes elementos dispares da UNITA alinhassem. A ala externa da UNITA não estavapreparada para permanecer na penumbra. Um membro daala externa em Lisboa, Carlos Morgado, afirmou, poucodepois das conversações de Cassamba terem começado,que estas eram “uma farsa. ... Que todo o cenário... sedestinava a ser vendido à comunidade internacional, como se um acordo estivesse iminente.” Ele disse que

os representantes da UNITA nas conversações eramprisioneiros e não compareceram voluntariamente àsconversações. Fontes da UNITA em Portugal informaramtambém que o representante da UNITA em Paris, IsaíasSamakuva, tinha sido eleito líder interino da UNITA.

Aparentemente, Samakuva deu um passo conciliador a 18 de Março, quando apelou às igrejas, sociedade civil epartidos da oposição, que garantissem uma paz digna epediu ao governo uma clarificação sobre o estatuto deGato e de outros generais da UNITA que negociavam comas FAA. Após uma longa conversa telefónica com Gato,Samakuva admitiu ter mais confiança na seriedade dasconversações, apesar de se ter queixado de que a UNITAnão tinha meios de comunicação entre os seus elementosno interior e no exterior.

Os elementos da organização sedeados na Europaacabaram por emitir uma declaração exprimindo o seuapoio total à liderança do General Gato e dando à equipanegociadora um mandato mais claro para chegar a umacordo. A 25 de Março, 55 dos 70 deputados sedeados emLuanda apoiaram uma declaração de apoio total a Gato e à sua Comissão de Gestão – sendo os outros 15 seguidoresde Eugénio Manuvakola, da UNITA-Renovada.

Progressos no LuenaA segunda ronda de conversações começou a 20 de Março,no Luena. Ambos os lados estavam confiantes de que a pazestava ao seu alcance. Kamorteiro disse “muitos políticosusaram a mesma expressão, mas eu não sou político, sousoldado, por isso quando falo de paz é a sério.”

A equipa da UNITA incluía os principais generais e, destavez, era chefiada por Marcial Dachala, Secretário daInformação, e Alcides Sakala, Secretário dos AssuntosExteriores (ambos anteriormente dados como mortos).Gato, mais uma vez, esteve ausente, mas mais tardeafirmou que a equipa negociadora da UNITA esteve emcontacto regular com ele na sua base algures no Moxico,para conciliarem posições.

Durante as conversações, os serviços noticiosos dogoverno relataram um ambiente muito bom entre osnegociadores, com os membros da delegação da UNITAem conversas livres e amigáveis com os seus parceiros das FAA e com elementos do público. Kamorteiro foi,alegadamente, visto a guiar abertamente o seu jipe pelasruas de Luena, e os seus colegas foram vistos em discotecase clubes nocturnos da cidade.

A 23 de Março, os comandantes regionais militares das FAA juntaram-se às conversações e, a 25 de Março, asconversações foram suspensas para consultas. Ainda havia algum nervosismo oriundo do exterior. A ‘missão no exterior’ pediu ao governo para alterar o local dasconversações para um sítio de acesso mais fácil para aimprensa e outros observadores (ou seja, Luanda), e commaiores possibilidades de supervisão da ONU e da Troika,tal como previsto no Protocolo de Lusaka.

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As conversações foram dominadas pelos aspectos técnicosde um cessar-fogo e pela definição detalhada de todos os aspectos relacionados com o aquartelamento edesmobilização das forças da UNITA. Uma Comissão MilitarMista (CMM) foi formada, tendo a ONU e a Troika comestatuto de observadores, e também um grupo técnicoconsistindo de peritos militares das FAA e UNITA e derepresentantes da ONU e Troika. De acordo com o seuestatuto de negociações militares, os assuntos políticos, tais como o papel dos líderes da UNITA nas estruturas doestado e do governo, assentos parlamentares vagos, equestões de longo prazo como eleições e a constituição,foram deixadas para mais tarde.

O acordo militar foi assinado a 30 de Março, abrindocaminho para a assinatura oficial a 4 de Abril. Esperava-seque Gato assinasse pela UNITA, mas ele não compareceu. No início, foi dito aos jornalistas no Luena que ohelicóptero que o fora buscar não podia aterrar devido à chuva forte. Quando o helicóptero chegou, transportava o antigo Comandante Geral da UNITA, General SamuelChiwale, que declarou que Gato “tinha demasiadotrabalho” para poder estar presente. Chiwale garantiu aos repórteres que o General Gato estaria presente nacerimónia, em Luanda, na quinta-feira, 4 de Abril, que seria testemunhada por Gambari e os embaixadores daTroika. Nesse dia, os dois Comandantes-em-Chefe (Da Cruz Neto e Kamorteiro) assinaram o Memorando.Afastando quaisquer receios de um descarte à Savimbi do acordo, Gato compareceu e foi recebido por Dos Santos após a cerimónia.

A sensação de que o Memorando de Luena fora um pactoentre dois partidos, excluindo outras forças políticas,permaneceu. Apesar do seu sucesso em terminar com aguerra, e apesar das palavras amigáveis do plano de paz, as outras forças políticas e sociais foram deixadas de fora. A 3 de Abril, na véspera da cerimónia de assinatura, oPresidente Dos Santos fez um discurso ao país sobre operdão, a reconciliação nacional, a reconstrução, e oscuidados com os desfavorecidos. Em resposta, o líder da Frente Nacional pela Libertação de Angola (FNLA),Holden Roberto – o único líder sobrevivente dos trêsmovimentos de libertação originais – pediu que umacomissão preparasse “um diálogo nacional sem exclusões”para garantir a transição pacífica para a democracia e areconstrução nacional.

As provisões acordadas para a amnistia aumentaram asensação de um pacto exclusivo de dois partidos. A UNITA e as FAA receberam do parlamento uma amnistiatotal, aprovada unanimemente dias antes da assinatura. Foi a primeira vez que uma proposta foi aprovadaunanimemente pela Assembleia, mas a reacção dosobservadores foi menos entusiasta. A 11 de Abril, Gambariencontrou-se com Gato e reiterou que a ONU nãoreconheceria a amnistia, uma vez que os crimes de guerrateriam de ser julgados. A amnistia também foi questionadapor 63 partidos políticos mais pequenos numa carta ao

Presidente. Gato (e até Holden Roberto) consideraram aintervenção de Gambari indesejável e potencialmentedestabilizadora do ambiente optimista reinante.

A nova eraO Memorando de Luena marcou o fim da guerra. Seguiu-seum período de maior contacto entre os dois partidos. Aseguir à primeira reunião da CMM, logo após a assinatura,Nunda informou que não houvera violações do cessar-fogo. Membros da CMM e do grupo técnico foramapresentados à imprensa, e o contingente da UNITAconfirmou essas informações. A CMM acabou por serconsiderada inadequada para completar todas as tarefas,para além das de natureza militar, e assim a Comissão Mista de Lusaka foi ressuscitada durante alguns meses nofinal de 2002, sendo desactivada em Novembro, após oque a ONU levantou as últimas sanções à UNITA.

Apesar da UNITA ter entrado nas conversações dividida, ocaminho para a sua reunificação enquanto partido políticocoerente estava a tornar-se claro. A delegação da UNITA que chegou à capital para a assinatura formal encontrou-secom o líder da UNITA-R, Manuvakola, que se comprometeupublicamente a não interferir nas conversações, para,alegadamente, permitir que “a UNITA representasse a UNITA”. Nos meses seguintes a UNITA encaminhou-se para a reunificação.

Apesar de alguns acharem que é uma afirmação duvidosa,no dia anterior ao cessar-fogo ser assinado Gato avisou que“a guerra poderia ter continuado”. Não é possível saber setinha razão, mas as razões para negociar foram irresistíveis.Os acontecimentos posteriores a Fevereiro de 2002 podemser vistos como a sequência lógica de uma campanhamilitar, em que ambos os lados tinham algo a ganhar com a negociação e o fim da actividade militar. A contenção dogoverno, não declarando abertamente a vitória, foi sensata.O decurso dos acontecimentos pode ser interpretado como uma série de manobras hábeis do governo do Movimento Popular pela Libertação de Angola (MPLA), queconseguiu transmitir a ideia de uma conclusão conciliatóriada guerra, sem conceder qualquer poder.

A questão para Angola é saber o que poderia ter acontecidose o processo tivesse sido definido em termos mais vastos –como uma oportunidade, não só para acabar com ashostilidades militares de forma negociada, mas para abrir oprocesso a uma renovação política mais vasta – através deconsultas aos partidos políticos não armados e à sociedadecivil. Teriam estas fundações sido melhores para umademocratização e reconciliação mais profundas, quepudessem resolver com maior sucesso os problemasfundamentais de Angola? Dadas as estruturas de poder, este tipo de abertura nunca foi uma hipótese real, mas poderá ser Angola a perder por tal processo nunca ter sidolevado a cabo.

27O Memorando de Entendimento de Luena

Page 28: Coordenador do Número: Guus Meijer

O papel dasNações Unidasno processo depaz angolano

Manuel J. Paulo

Nas oscilações cíclicas entre guerra e paz nas últimasdécadas, as Nações Unidas desempenharam papéisdiferentes em Angola. O seu envolvimento político

comecou nos últimos anos da década de 1980 quando oConselho de Segurança supervisionou a independência da Namíbia - acupada ilegalmente pela Africa do Sul desde1915. Os Acordos de Nova Iorque de Dezembro de 1988ligaramà retirada das tropas cubanas estacionadas emAngola. Na segunda metade da década de 1990, e àmedida em que o seu papel na construção e manutençãoda paz foi ficando cada vez mais comprometido, a ONUficou limitada a operações de ajuda humanitária e àpromoção dos direitos humanos.

UNAVEM I (1989-1991)Após muitos anos de impasse, um acordo tripartido entreAngola, Cuba e África do Sul foi assinado sob os auspíciosda ONU em Nova Iorque, a 22 de Dezembro de 1988,conduzindo à retirada de cerca de 50.000 soldadoscubanos de Angola e à independência de Namíbia, sob a supervisão da ONU. A resolução 626 do Conselho deSegurança estabeleceu a Missão de Verificação das NaçõesUnidas em Angola (United Nations Angola VerificationMission - UNAVEM I) abrangendo 70 observadores militarese 20 funcionários civís de dez países. A UNAVEM I foi extintacom a assinatura dos Acordos de Bicesse pelo governo deAngola e pela UNITA, em Maio de 1991, que, sem aparticipação da ONU, foi negociada por uma Troika de‘observadores’: Estados Unidos, Rússia e Portugal.

UNAVEM II (1991-1995)Na sequência dos Acordos de Bicesse, a Resolução 696 doConselho de Segurança da ONU estabeleceu a 30 de Maiouma segunda missão para Angola, a UNAVEM II. Os seusdeveres consistiam em observar e verificar o processo dedesarmamento, bem como apoiar a criação de um novoexército nacional único. Além disso, deveria supervisionar a desminagem, prover auxílio humanitário e facilitar aextensão da autoridade do estado por todo o territórioangolano. O corpo de funcionários da UNAVEM II eraformado por 350 observadores militares não armados, 90 observadores de polícia não armados (mais tardeaumentado para 126) e 100 observadores eleitorais (400durante as eleições propriamente ditas). O orçamento inicialera de 132,3 milhões de dólares americanos, posteriormenteaumentado em 18,8 milhões de dólares em reconhecimentodas tarefas ligadas às eleições. A operação da UNAVEM II em Angola pretendia aproveitar o sucesso do envolvimentoda ONU na Namíbia e noutros lugares. Contudo, enquanto o papel da ONU na Namíbia envolvia a organização deeleições, o papel da UNAVEM II em Angola era meramentede observação e verificação das eleições. Por outro lado, naNamíbia, um país de menor dimensão e menos devastadopela guerra, a ONU tinha montado uma operação emgrande escala, envolvendo mais de 6.000 pessoas; emAngola, a missão da ONU tinha de lidar com um paísafectado por uma guerra civil que durara 16 anos, com as suas infra-estruturas destruídas, e com dois grandesexércitos desconfiando-se mutuamente.

28 Accord 15

Manuel J. Paulo é um investigador no

Programa África do Royal Institute of

International Affairs (Chatham

House), em Londres, e está também

ligado ao British-Angola Forum.

A entrada da Missão de Observação da ONU (MONUA) emLuanda, dias antes da retirada da ONU em 1999

Fotografia: Juda Ngwenya/Reuters

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Com efeito, a missão da ONU, com a intenção declarada de ser uma operação pequena e administrável, vagamentedefinida como de verificação e monitoração, não era nem de construção de paz, nem de mediação, nem de manutenção de paz, nem de imposição de paz. A Representante Especial da ONU Margaret Ansteeargumentava que “os países mais intimamente ligados a Angola queriam verdadeiramente que a paz fosserestaurada, mas queriam uma ‘solução rápida’,particularmente as duas super-potências, as principaisprotagonistas da Guerra Fria. [...] O resultado foi um acordodefeituoso desde o início, e um papel marginal para a ONU, fadado a ser ineficaz.” Anstee concluiu que a ONUnão deveria voltar a aceitar envolver-se na implementação de um acordo de paz se não tivesse sido envolvida nanegociação dos seus termos e mandato.

A ONU também procurou usar Angola como exemplo de administração pós-conflito de baixo custo, com base no sucesso na Namíbia (que de facto beneficiou de umorçamento muito mais elevado de 430 milhões de dólares).Quando a Resolução 747 do Conselho de Segurançaprolongou o mandato da UNAVEM II e autorizou oorçamento eleitoral de 18,8 milhões de dólares, MargaretAnstee descreveu seu mandato em Angola com a famosafrase, é como “pilotar um 747 com combustível suficienteapenas para um DC-3”.

A missão da ONU declarou as eleições realizadas emSetembro de 1992 de uma maneira geral ‘livres e justas’, um veredicto apoiado pelos Estados Unidos, ComunidadeEuropeia, África do Sul e outros observadoresinternacionais. Contudo, porque a União Nacional pelaIndependência Total de Angola (UNITA) contestou osresultados, a guerra voltou a Angola algumas semanasdepois das eleições. As tentativas de negociação de Anstee

visando obter um cessar-fogo fracassaram e o Conselho deSegurança respondeu com a redução e, posteriormente,com a retirada completa de todo o pessoal militar daUNAVEM. Muitos angolanos sentiram-se desencantados eculparam a ONU pelo fracasso deste período de transição,acreditando que uma intervenção decisiva era possível noquadro dos poderes da UNAVEM. E tanto o governo comoa UNITA acusaram a outra parte de violação do acordado,ao mesmo tempo que atacavam a ONU por não ter sidocapaz de fazer cumprir os Acordos de Bicesse. Mas comoobservou o investigador britânico Alex Vines, “emSetembro de 1992, o governo transferiu forças especiaispara Malanje com ordens para lançar palavras de ordemcontra a ONU durante o dia e disparar armas a noite. Amaioria dos tiros eram trocados entre partidários da UNITAe do Movimento Popular pela Libertação de Angola(MPLA), mas alguns eram dirigidos ás instalações da ONU. Se o MPLA não tivesse ganho as eleições, era sua intençãoculpar a ONU por ajudar a UNITA”. Os países da Troika, quetinham sido os actores principais dos Acordos de Bicesse,foram poupados às acusações.

Seguiram-se dois anos de guerra antes que um novo acordode paz fosse alcançado. Fracassaram todas as rondasnegociais na província angolana de Namibe, em Novembrode 1992, em Addis Abeba, em Janeiro de 1993 e em Abidjan,em Abril e Maio de 1993. No Namibe, ambas as partesconcordaram em implementar plenamente os Acordos deBicesse, mas o acordo fracassou, bem como todas astentativas subsequentes de conversações de paz,possivelmente porque a UNITA procurava conquistar opoder a qualquer preço. As duas partes procuravamconversar apenas quando o equilíbrio de forças lhes eradesfavorável. Como Anstee observou: “Angola está numtrágico balanço. Quando uma das partes está em vantagem,não quer negociar, e quando é a outra que está em alta, são

29O papel das Nações Unidas no processo de paz angolano

Page 30: Coordenador do Número: Guus Meijer

eles que não querem conversar”. O Conselho de Segurançatambém foi alvo de crítica pela sua falta de interesse. Com asua atenção voltada para a Bósnia-Herzegovina, o Conselhorecusou-se a enviar os 1.000 capacetes Azuis requeridos pelaUNITA como condição prévia para assinar o Protocolo deAbidjan – deixando a sua mediadora, Margaret Anstee, demãos vazias.

Em 1993, a liderança da UNITA exigiu a substituição doRepresentante Especial da ONU, deixando subentendido que Anstee era favorável ao governo. Anstee, que haviasolicitado ser dispensada dos seus deveres em Angola nofinal de 1992, foi mantida no seu posto para que não sepensasse que a ONU recebia ordens da UNITA. Ansteepartiu depois do fracasso das conversações de Abidjan e foi substituída pelo ex-Ministro dos Estrangeiros do Mali,Alioune Blondin Beye, que estava optimista sobre apreparação de um acordo de paz. Apoiado por algunslíderes africanos e pela Troika de observadores e depois deuma árdua diplomacia de vaivém entre diferentes capitais,Beye logrou reunir o governo e a UNITA para conversaçõespreliminares em Lusaka, em Junho e Novembro de 1993. Oenviado especial dos EUA, Paul Hare, elogiou a experiênciadiplomática, a inteligência, a energia e tenacidade de Beye,a sua vontade de incutir disciplina e espírito de equipa nosmembros da Troika. A par da imensa pressão militar a quefoi sujeita a UNITA, a abordagem de Beye acabou por levaras partes a chegar a um novo acordo. O Protocolo de Lusakafoi assinado a 20 de Novembro de 1994.

UNAVEM III (1995-1997)Beye e Anstee encaravam a sua missão de formasubstancialmente distinta. Para além disso, ao contrário dos Acordos de Bicesse, o Protocolo de Lusaka foi negociado e facilitado pela ONU com o apoio da Troika. Com parcosrecursos e um mandato restrito, coube a Anstee a tarefa que os Acordos de Bicesse não tinham enfrentado,nomeadamente restaurar a confiança entre as partes emguerra. Este testemunho foi passado para Beye quando elesubstitui Anstee. Ele desenvolveu a sua acção tendo comobase as conversações de Abidjan de Maio de 1993,beneficiando de um mandato mais amplo e de recursosmais abundantes. No entanto, ele tinha uma concepçãoalgo errada do processo de construção da confiança ao não apostar em criar oportunidades para que os principaisresponsáveis da guerra pudessem encontrar pontos deacordo. Ao contrário da sua predecessora que procurava oenvolvimento directo das lideranças das duas partes emconflito sempre que surgia um impasse nas negociações,Beye preferia envolver líderes regionais para pressionar epersuadir os protagonistas, e não ser ele próprio a lidardirectamente com eles. O fracasso de Beye na criação desta plataforma de entendimento entre as partes tornou-se evidente com a recusa de Savimbi em comparecer àcerimónia de assinatura: “O Sr. Beye decepcionou-me. Não lhe cabia a ele dizer-me que não viesse a Lusaka para a assinatura do acordo em 20 de Novembro porque era um‘homem vencido’ ou porque não queria ser humilhado. Elefala demais! Agora, ele quer vir aqui para se reunir comigo.

Nesta altura não vale a pena incomodar-se. Eu não queromais conversas com ele.” A trágica morte de Beye numacidente aéreo, em Junho de 1998, findou prematuramenteo seu envolvimento no processo de paz angolano.

De acordo com o Protocolo de Lusaka, as partes deveriamconcluir o processo eleitoral de 1992, sob os auspícios daONU, com o Representante Especial a presidir à ComissãoConjunta que supervisionaria a implementação doprotocolo, inclusive um cessar-fogo, aquartelamento dossoldados da UNITA e desarmamento. A cláusula de partilhade poder era suposto dar garantias à ONU de que ambas as partes teriam a vontade política para restabelecer a paz.As partes concordaram em acatar todas as resoluçõesanteriores do Conselho de Segurança e estava prevista aformação da UNAVEM III com uma presença de 7.000Capacetes Azuis (uma força quase dez vezes maisnumerosa do que a UNAVEM II em 1992). No entanto, amaioria dos angolanos consideraram a UNAVEM III e suasucessora mais modesta, a Missão de Observação dasNações Unidas em Angola (MONUA), inúteis e incapazes de lidar com a busca incansável de poder por parte daUNITA ou de impedir as violações dos acordos, inclusive o rearmamento de ambas as partes.

MONUA, UNOA e UNMA (1998-2003)Ao expirar o mandato da UNAVEM III, em Junho de 1997, foicriada a MONUA, com uma força militar muito reduzida desomente 1.500 homens. A situação militar em Angola, emrápida deterioração, minou os esforços da MONUA paraevitar o conflito aberto, e a queda de dois aviões da ONUabatidos pela UNITA, em Dezembro de 1998 e Janeiro de1999, apressou seu deslizamento para a irrelevância. Tanto o governo quanto a UNITA exigiram a retirada da ONU. Astentativas do sucessor de Beye, Issa Diallo, para retomar odiálogo com Savimbi foram bloqueadas pelo governo, quese recusou a dar-lhe garantias de segurança e ameaçoucortar todos os contactos com ele. Em Fevereiro de 1999, o governo angolano requer o encerramento da MONUA e,consequentemente, o escritório do Representante Especialfoi transferido de Luanda para Nova Iorque. Permaneceu emAngola o Escritório das Nações Unidas em Angola (UNOA)com 30 pessoas, encarregado de “fazer a ligação com asautoridades políticas e civis a fim de explorar medidas para o restabelecimento da paz”. Contudo, Diallo não conseguiupersuadir o governo a negociar porque, desta feita, a balançado conflito pendia para o lado governamental, que estavadeterminado a prosseguir com a sua política de ‘paz-através-da-guerra’. A riqueza em petróleo de Angola reforçou acapacidade do governo em arranjar fundos, de forma que aUNOA se limitou a questões humanitárias e ao reforço dacapacidade institucional.

Na sequência do Memorando de Luena de Abril de 2002, aResolução 1433 do Conselho de Segurança de Agosto de2002 estabeleceu a Missão das Nações Unidas em Angola(UNMA) em substituição da UNOA. Cabia à UNMA presidir a Comissão Militar Conjunta reinstalada, fornecer 30observadores militares para monitorizar as áreas de

30 Accord 15

Page 31: Coordenador do Número: Guus Meijer

aquartelamento como fiadores do acordo e coordenar osesforços humanitários de todas as outras agências dasNações Unidas.

Entretanto, os sucessivos fracassos da ONU, assim que o acordo fora assinado entre um vencedor (o governo) e um perdedor (UNITA), minaram a sua capacidade dedesempenhar um papel principal. O governo vitorioso foicapaz de restringir o papel da UNMA no período pós-Luenameramente a abençoar o acordo e de ser uma garantia àUNITA da seriedade do seu compromisso com o Protocolo de Lusaka. De facto, as áreas de aquartelamento eramadministradas e controladas somente pela UNITA e as FAA,sem a presença dos 30 observadores estipulados peloMemorando de Luena. Ibrahim Gambari, Sub-Secretário paraos Assuntos Africanos, suscitou preocupações na cerimóniaoficial de assinatura sobre a validade da lei de amnistiaaprovada pela Assembleia Nacional de Angola argumentadoque a ONU não reconhece amnistias em casos de genocídio,crimes contra a humanidade e crimes de guerra.

Administração de sançõesDe 1993 a 1997, a ONU adoptou uma série de sançõescontra a UNITA. Entre estas estavam a proibição deaquisição de equipamento militar e produtos petrolíferos(Resolução 864), o bloqueio de viagens ao exterior dos seusfuncionários e o fechamento dos seus escritórios noexterior (Resolução 1127), restrições às viagens aéreas emarítimas a zonas da UNITA, o congelamento de contasbancárias da UNITA, e a proibição da exportação directa ouindirecta de diamantes ilegalmente extraídos (Resolução1173). Foi instituído um Comité de Sanções que se mostrouem grande parte ineficaz face às violações constantes daUNITA e à cumplicidade de muitos países, empresas enegociantes indivíduais. De facto, foi sob a vigência desteregime de sanções que o resultado líquido de vendas dediamantes da UNITA terá atingido cerca de 1,72 biliões dedólares. Os seus funcionários viajavam sem impedimentos,especialmente em África, e continuaram a exprimir-selivremente no mundo exterior através de seusrepresentantes ‘oficiosos’.

Logo a seguir à sua nomeação, em 1999, o Presidente doComité de Sanções, Embaixador Robert Fowler do Canadá,descreveu as sanções contra a UNITA como regras de tráfegoque ninguém enforçava : “As pessoas conduziam por ondequeriam e estacionavam em qualquer lado. Era umcompleto desastre”. Ele recomendou a formação de umpainel de peritos “para registar violações no tráfico de armas,fornecimentos de combustível e comércio de diamantes,bem como as movimentações financeiras da UNITA noexterior”. Em Maio de 1999, o Conselho de Segurança formoudois painéis de peritos para levar a cabo aquelasinvestigações (Resolução 1237) e Fowler apresentou oresultado de suas pesquisas em Março de 2000. A suaestratégia de identificar e envergonhar uma série de‘violadores de sanções’ incluindo países e indivíduos erainédita na história da ONU, provocando enormes tensõescom os estados membros acusados de ajudar a UNITA a

infringir o regime de sanções. O relatório identificava osfuncionários nos governos daqueles países e cinco chefes de estado, uns ainda em funções outros não, como estandopessoalmente implicados na violação das sanções.

O relatório Fowler levou a um aperfeiçoamento domecanismo de monitorização de sanções e a UNITA afirmaque as mesmas contribuíram para sua derrota na últimafase da guerra. As sanções foram completamentelevantadas apenas no final de 2002.

Desafios humanitáriosPara além do seu papel político, a ONU e as suas agênciastêm trabalhado também em questões humanitárias em Angola. A Unidade de Coordenação de AssistênciaHumanitária da ONU (UCAH) foi instituída peloDepartamento de Assuntos Humanitários (DAH) em Abrilde 1993, para coordenar todas as operações humanitáriasda ONU, incluindo naquela época a repatriação de 300.000 refugiados, ajuda para aproximadamente 800.000 pessoas deslocadas internamente, fornecimentode alimentação de emergência e assistência médica, eacomodação para os soldados.

Ao contrário das missões de verificação e fiscalização, e apesar de estar sujeita à mesma autoridade, a UCAHdesempenhou um papel positivo na ocasião em que nãohavia qualquer sinal iminente de cessar-fogo e em que ascondições humanitárias estavam em deterioração. Foi bemsucedida em ganhar acesso ao que necessitavam de ajuda,primeiramente em Kuito e Huambo e mais tarde em outraspartes do país. O sucesso da UCAH deveu-se ao facto de asua missão ser puramente humanitária. No entanto, mesmoela se foi reduzindo lentamente no período do Protocolo de Lusaka, e quando o país regressou à guerra, a UNITA e o governo a recusaram-se a abrir novos corredoreshumanitários e a garantir a segurança do pessoal da ajudahumanitária. Este facto resultou numa degradação da crisehumanitária, que já tinha alcançado níveis catastróficos emmeados de 1993. Com o encerramento da UCAH, oorganismo sucessor do DAH, o Escritõrio de Coordenaçãodos Assuntos Humanitários (OCHA), continuou o trabalhoem Angola, nomeadamente na coordenação da ajuda asoldados acantonados e às suas famílias, assim como àspessoas deslocadas e retornadas.

ConclusãoAs actividades da ONU em Angola estavam comprometidasdesde o início. Margaret Anstee observou que: “como aexperiência do Cambodja demonstrou, mesmo com ummandato forte e recursos adequados, é virtualmenteimpossível para uma força de manutenção de pazdesmobilizar e desarmar completamente um exércitoguerrilheiro espalhado por um país vasto em extensão e com fronteiras porosas”. Consequentemente, o papel da ONU foi-se restringindo cada vez mais a operaçõeshumanitárias e um pequeno departamento de direitoshumanos. Estas deficiências constituem lições salutarespara a organização.

31O papel das Nações Unidas no processo de paz angolano

Page 32: Coordenador do Número: Guus Meijer

Vozesalternativaso movimento angolano pela paz

Michael Comerford

Ao longo da década de 1990, o surgimento de grupos a favor da paz da sociedade civil e a promoção denovas iniciativas de paz tiveram uma importância

considerável. No contexto de uma arena políticapolarizada, dominada pelo governo angolano e pela UNITA,este facto, que mais tarde deu origem a um movimentocoordenado pela paz, resultou na criação de uma terceiravoz ‘nacional’. Contribui para minar a noção simplista deque se devia ser, ou partidário do Movimento pelaLibertação de Angola (MPLA) ou partidário da UniãoNacional para a Independência Total de Angola (UNITA) e, efectivamente, criou um ‘veículo’ de mobilização foradestas estruturas políticas. Em especial com o aproximar do final da década de 1990, emergiu uma força cívica comvisibilidade e que procurava influenciar a tomada dedecisão política.

Este movimento parece ter falhado no seu objectivo dealcançar um acordo negociado para o conflito angolano,já que a guerra foi resolvida militarmente. No entanto, umaanálise mais aprofundada mostra que o movimento cívicosempre diferenciou o ‘fim da guerra’ da ‘paz’. Em muitosaspectos, um dos aspectos mais positivos do movimentoangolano pela paz está no seu conceito de ‘paz’, entendidonum sentido amplo de criação de uma sociedade justa eequitativa. Evidentemente que a paz implicava também,para este movimento, o fim da guerra, mas era igualmenteentendida como devendo conduzir à criação de estruturaspolíticas abertas a todos e de um governo transparente eresponsável, ao desenvolvimento social e económico, àliberdade de opinião e de associação, à salvaguarda dedireitos humanos, e à elaboração de uma constituiçãorepresentativa do todo nacional e assim por diante. Ou seja,o movimento angolano pela paz adoptou uma abordagemabrangente da ideia de construção da paz como soluçãopara a guerra civil, uma abordagem que continua a serválida e urgente, depois do fim das hostilidades.

As instituições mais importantes deste movimento pelapaz são sem dúvida as igrejas angolanas, os meios decomunicação privados, as organizações cívicas, asassociações ou ONGs e a coligação de catorze Partidos deOposição Civil (POC). Há muita continuidade e semelhançaem termos das actividades e debates promovidos por estas entidades, e colectivamente elas desempenharamum papel da maior importância na abertura de um novo‘espaço’ político no qual o próprio movimento pela paz se desenvolveu. No entanto, ao avaliar o impacto destemovimento, é importante adoptar uma perspectivabaseada na história angolana recente. O espaço político em que o movimento angolano pela paz se desenvolveufoi, e ainda o é, um espaço traumatizado, moldado pordiversos factores negativos.

Em primeiro lugar, uma história de repressão colonial crioupoucas oportunidades de participação da população eclaramente deixou um legado pobre em termos depotenciais instituições democráticas que poderiam serdesenvolvidas num estado independente. Em segundolugar, a tentativa de golpe de 27 de Maio de 1977, liderada

32 Accord 15

Michael Comerford é consultor dos

programas de paz do

Desenvolviment Workshop em

Luanda e no Huambo. A sua tese de

doutoramento tem por título

Narrativas angolanas da paz, de

Bicesse até à morte de Savimbi.

Manifestação pela paz em Luanda, 2000

Fotografia: ACTSA

Page 33: Coordenador do Número: Guus Meijer

por Nito Alves, e a resposta repressiva do estado gerou umaonda de terror em toda a Angola e instilou um receio departicipação política, que ainda tem ecos na consciêncianacional. Em terceiro lugar, a herança de anos de governomarxista pouco fizeram para incentivar a participaçãopopular, para além ou fora das estruturas oficiais partidárias e de suas ‘organizações de massa’. Finalmente, a própriaexperiência de um país que viveu durante anos um conflitoviolento marcou profundamente a mentalidade dosangolanos. Todos estes aspectos do passado, cada um à suamaneira, ensinaram aos angolanos que a ‘actividade política’é perigosa e deve ser evitada. No seu conjunto, estes factoresfornecem pistas importantes para os motivos pelos quais nãosurgiu mais cedo um tal movimento pela paz em Angola.Possivelmente, um dos mais sérios desafios enfrentado pelomovimento angolano pela paz foi a ruptura da auto-censuracomo reacção às experiências acima citadas, a rejeição dosreflexos condicionados que tinham resultado desse passado.Este é um desafio que ainda não foi inteiramente superado, e que está a ser vivido com mais intensidade após o fim dashostilidades em 2002, e face à crença generalizada de que aguerra está definitivamente terminada.

IgrejasAs igrejas angolanas desempenharam um papel crucial navanguarda do movimento pela paz. A sua legitimidade einfluência são igualmente fortes nas áreas rurais e urbanas,

e abrangem todos os níveis da população, um factor que as diferencia da maioria de outras organizações desociedade civil, cuja legitimidade e influência sãogeralmente maiores entre os quadros e os assalariadosangolanos de áreas urbanas.

As seguintes organizações eclesiais exerceram influência napromoção de iniciativas de construção da paz. O Conselhodas Igrejas Cristãs de Angola (CICA) e a Aliança EvangélicaAngolana (AEA) são as organizações que reúnem erepresentam as principais igrejas protestantes (metodista,baptista, congregacional, etc.). A Igreja Católica angolana érepresentada pela Conferência Episcopal de Angola e SãoTomé (CEAST). Embora as igrejas tenham desempenhadoum papel claramente positivo na construção da paz, a falta de uma abordagem ecuménica face a uma questãonacional de tal importância foi objecto de grande crítica.Até a formação do Comité Inter-Eclesial para a Paz emAngola (COIEPA) pela CICA, AEA e CEAST em 1999, cadaorganização eclesiástica preferia agir em favor da paz deforma individual. As tensões e rivalidades históricas sãofrequentemente citadas como o motivo para a ausência de uma abordagem conjunta antes de 1999.

Como fórum ecuménico pela paz, a COIEPA teve umdesempenho misto. Obteve algum sucesso ao reunir asigrejas angolanas estruturalmente para trabalharem emfavor da paz. Também se constituiu em foco de diálogocom a comunidade internacional e tornou-se a principal

33O movimento angolano pela paz

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instituição a defender externamente o movimentoangolano pela paz. A COIEPA ganhou reconhecimentointernacional em 2001 quando a União Europeia concedeuo prémio Zakharov de direitos humanos ao presidente daCOIEPA, o Arcebispo Zacarias Kamwenho (que aceitou ahonraria em nome de todos os angolanos que trabalhampela paz). No entanto, este sucesso internacional não tevecorrespondência em Angola, pois poucos angolanossabiam da existência da COIEPA ou das suas actividades. As igrejas não conseguiram criar um perfil nacional para aCOIEPA, e depressa decidiram que o melhor seria utilizar aCOIEPA como uma plataforma internacional, mas confiarnas suas próprias instituições no plano nacional. Em finaisde 1998, as igrejas também estiveram envolvidas na criaçãodo Programa de Construção da Paz (PCP), do qual a CICA, a AEA e a CEAST foram membros fundadores (juntamentecom várias organizações civis e religiosas). Este programatem como objectivo promover respostas locais nasprovíncias de Angola e reforçar, ao nível da população em geral, uma capacidade de gestão de conflito.

Um dos temas principais da análise efectuada pelas igrejassobre a guerra angolana diz respeito à origem do conflitonas divisões históricas profundas entre os movimentosnacionalistas angolanos. Embora a dimensão internacionalfosse claramente evidente em vários estágios do conflito (alógica da Guerra Fria, e, sobretudo, as alianças concretasforjadas nesse contexto pela UNITA e pelo governo doMPLA, particularmente depois de 1992), as igrejasargumentavam sistematicamente que a internacionalizaçãodo conflito se devia à inabilidade dos partidos nacionalistasem superar suas diferenças e alcançar um consenso. Asrivalidades e divisões internas precedem a formação dealianças internacionais. Esta foi a análise que fundamentou a solução proposta pelas igrejas, ou seja, de que o diálogoseria a única maneira de alcançar uma paz duradoura. Defacto, as igrejas ofereceram-se como mediadoras entre osadversários em várias ocasiões (CEAST em 1986; COIEPA em 2000; mediação pelas igrejas em 2001), para facilitar odiálogo entre as partes. Embora Jonas Savimbi, emdeterminado momento em 2000, tenha escrito à CEASTincentivando as igrejas a continuarem em sua busca pelapaz através do diálogo, estas propostas nunca foramrealmente aceites por qualquer dos beligerantes.

A criação pela COIEPA da Rede da Paz, em 2000, situa-se no âmbito deste esforço de análise e promoção da paz. A adesão à Rede da Paz tinha como premissa a aceitaçãodo princípio do ‘diálogo aberto a todos’ como opçãopreferencial para terminar a guerra e pensado como umprocesso envolvendo o apoio e a mediação da sociedadecivil angolana e possivelmente da comunidadeinternacional. A Rede da Paz reuniu um conjuntointeressante de figuras a favor da paz; além das igrejas,ONGs, instituições de comunicação social privadas,organizações femininas e outras, uma série de chefestradicionais e anciões, inclusive alguns dos reis tribais deAngola, expressaram o seu apoio e vontade de colaborar.Infelizmente, a Rede praticamente deixou de funcionardepois de um início promissor.

Um outro tema importante na análise das igrejas,partilhado pelo movimento pela paz no seu todo, é queaqueles a quem se confiou a tarefa de assegurar a paz em Angola conquistaram as suas cadeiras na mesa denegociação pela via das armas. Por sua vez, estespersonagens marginalizaram aqueles que lutaram pela paz através de meios não violentos, frequentemente com oconsentimento da comunidade internacional. Em nenhummomento, durante a negociação de qualquer dos acordosde paz (Bicesse, Lusaka, Luena, ou mesmo nos Acordos deAlvor) houve um mecanismo de envolvimento dasociedade civil, fosse como negociadores ou comoobservadores. O movimento pela paz argumentava queisso privou os vários processos de paz de umaindispensável perspectiva ‘doméstica’ angolana, quepoderia ter ajudado a ‘monitorar’ os acordos, e ter servidocomo uma influência moderadora que teria sido benéficaao processo de construção de um consenso mais amplo.

As igrejas foram uma força poderosa no Congresso pela Pazrealizado em Julho de 2000, em Luanda, sob os auspícios do movimento Pro Pace da CEAST. Esta conferência, quedurou quatro dias, foi a primeira sobre Angola a ser realizada no país (no mês anterior, teve lugar umaconferência internacional com ampla participação angolana em Maputo, a capital de Moçambique). Aconferência reuniu representantes do governo angolano, de participantes parlamentares e políticos, de vinte e duas igrejas, ONGs e organizações da sociedade civil. O congresso criticou ambos os lados no conflito e, entre as suas numerosas recomendações, estava um apelo aocessar-fogo “como primeiro passo para a paz”. Tambémadvogava o estabelecimento de alguma forma de diálogopermanente que deveria incluir “os mais representativosextractos da sociedade civil, tais como Igrejas, Partidos eoutras instituições”. O congresso foi muito criticado nosmeios de comunicação estatais, onde foi apresentado comoum fórum para ‘aqueles que queriam a paz a qualquercusto’. Em contraste, os meios de comunicação privadosderam o seu apoio à iniciativa e publicaram muitos dosdiscursos da conferência. A Rádio Ecclésia, a estação derádio gerida pela Igreja Católica, fez transmissões emdirecto. Alguns argumentaram que a importância do eventodeve ser medida, não tendo como referência a qualidade doconteúdo dos discursos e das recomendações, mas sim asua influência sobre a opinião pública e a sua contribuiçãopara ‘quebrar a regra de silêncio no que diz respeito aocaminho para a paz’, permitindo que os angolanosdiscutissem o conflito de forma aberta.

MídiaOs meios privados de comunicação impressa e radiofónicaforam veículos e aliados importantes do movimento pelapaz. O surgimento de jornais privados ao longo dos anos90 e o relançamento da Rádio Ecclésia em 1997 foramsignificativos na criação de novas arenas de comunicação edebate, acima de tudo em relação ao conflito. A imprensapublicou colunas de opinião e as rádios apresentaram

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debates e programas com participação directa dosouvintes por telefone, nos quais as principais questõeseram debatidas. Regra geral estas questões não tinhamsido sujeitas a debate público e aberto pelas instituiçõesestatais, e a sua discussão pública, especialmente nasestações de rádio privadas, era algo de totalmente novo eatraente. De forma geral, a imprensa estatal considerava o movimento pela paz como anti-governamental por causa da sua rejeição pública da política do governo deprosseguir com a guerra, a partir de 1998.

Organizações e associações cívicasO crescimento e visibilidade das organizações eassociações cívicas foi o aspecto mais marcante damudança em Angola nos últimos dez anos. As reformaspolíticas que precederam a assinatura dos Acordos deBicesse, em 1991, permitiram legalizar as organizaçõesindependentes. Entre as primeiras organizações a serem formadas esteve a Acção Angolana para oDesenvolvimento (AAD) e a Acção para o DesenvolvimentoRural e Ambiente (ADRA), cujos objectivos inicialmenteeram a reconstrução e a agricultura, e a Associação CívicaAngolana (ACA), a qual se preocupava com os direitospolíticos e cívicos. O regresso da guerra em finais de 1992restringiu severamente a actividade e o crescimento destase de outras organizações, e levou à chegada de um grandenúmero de organizações internacionais em resposta àemergência humanitária. Após a assinatura do Protocolo de Lusaka surgiram muitas organizações nacionais,frequentemente com o apoio financeiro de organizaçõesinternacionais, com particular atenção dada aos programasde promoção dos direitos humanos.

Algo inteiramente inédito sucedeu em Angola com aretomada da guerra em 1998 quando as organizaçõescívicas, igrejas, e os meios privados de comunicação socialmanifestaram publicamente o seu desacordo e indignação.É deste época de frustração e irritação que o nascimentodo ‘movimento angolano pela paz’ pode ser datado. Umaampla aliança dos agentes religiosos e seculares, políticos e cívicos opôs-se ao reinicio da guerra. Citando o GrupoAngolano para a Reflexão sobre a Paz (GARP), a guerra édescrita como resultando das “vontades de uma meiadúzia de angolanos imunes ao sofrimento de todo umpovo e alheios às reinvidicações culturais da maioria. Estaguerra, reincidente, vem esconder um processo conscientede desarticulação dos factores de identidade e unidade dopovo angolano. (…) A guerra actual, imposta ao povoangolano, não é senão o encobrimento da falta deargumentos políticos e ideológicos (…)”.

Outros grupos também publicaram reflexões similarescriticando severamente o regresso à guerra. O facto de quedestas críticas não resultaram mudanças na política dogoverno ou da UNITA tem um impacto negativo nomovimento pela paz e mostra uma debilidade na suaabordagem? Talvez sim, mas como já vimos na guerra doIraque, manifestações massivas, apelos das igrejas ou deorganizações da sociedade civil e outras, não conseguem,

como regra, mudar a opinião das lideranças políticas emilitares. Neste caso, a questão de fundo que está em jogoé a natureza do ‘poder’ exercido pelos governos (executivoe militar) e pelos líderes da sociedade civil (opinião einfluência pública).

Enquanto o movimento pela paz continuava a advogar arenovação do diálogo e da negociação durante o resto doconflito, outros temas foram sendo promovidos no quadrodo seu entendimento amplo da noção de construção dapaz. Por exemplo, enfatizou-se a promoção de direitoshumanos com a realização de sessões de formação depromotores de direitos humanos e pela utilizaçãoconstrutiva dos meios de comunicação tanto do estadocomo particulares. Os programas radiofónicos,especialmente os da Rádio Ecclésia, foram particularmenteeficazes neste aspecto, assim como a publicação dematerial informativo na imprensa. Tudo isto contribuiu para enraizar uma consciência cívica sobre uma questãoabsolutamente crucial. Isto foi reforçado peloempenhamento crescente da sociedade civil naimportância de exercer influência sobre o conteúdo danova constituição angolana. Por iniciativa da AAD, ADRA e do Centro Cultural Mosaiko, as organizações cívicasreuniram-se em Dezembro de 1998 e encaminharamdocumentos sobre a sua posição para a comissãoconstitucional dos ‘direitos, liberdades e garantiasfundamentais’. Pela mesma altura, a questão de direito àterra tornou-se uma preocupação importante para omovimento pela paz e outros actores da sociedade civil,como aliás continua a ser até ao presente.

O fim do conflito militar tem apresentado novos desafiosao movimento angolano pela paz, embora o trabalhocomeçado durante os anos de conflito continue a serválido com o fim do conflito armado. Em Novembro de2003, o CEAST e Mosaiko organizaram a segunda SemanaSocial Nacional sobre o tema da participação política, cominiciativas semelhantes em várias províncias. Diversosagrupamentos de organizações cívicas, grupos eclesiais epartidos políticos lançaram ou revitalizaram campanhaspela paz em Cabinda, pela democracia, transparência,direitos humanos, direito à terra e outras questõesrelacionadas com a paz, e que estão a começar a teralguma ressonância. Um destes grupos foi o Jubileu 2000,que teve uma papel importante na mobilização dasociedade civil angolana, inicialmente em torno da questãodo perdão da dívida, mas depois suscitando importantestemas sociais e políticos.

A sociedade civil angolana está a tornar-se num factorimportante de mudança no país. Apesar de o movimentocontinuar a depender grandemente da assistênciafinanceira internacional, e de as suas principaisorganizações ainda precisarem de se consolidar, ao mesmo tempo elas revelam a existência de capacidadesnacionais importantes empenhadas na construção de umasociedade mais justa e pacífica.

35O movimento angolano pela paz

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Cabinda entre ‘não-paz’ e ‘não-guerra’

Jean-Michel Mabeko-Tali

Para se entender o actual conflito em Cabinda,precisamos de ter em conta três factores essenciais. O primeiro é a história colonial do enclave e de

Angola em geral; o segundo tem a ver com as questõessocio-económicas e identitárias; o terceiro diz respeito aosrecursos naturais, nomeadamente o petróleo, e seu peso a nível nacional, regional e internacional.

As raízes históricas e socio-económicas As raízes históricas da questão de Cabinda e, do já longoconflito neste enclave, situam-se na invasão colonial,desencadeada com a corrida para África e, maisconcretamente, com a chamada ‘internacionalização daquestão do Congo’. Nessas rivalidades, Portugal incluíra jáMolembo e Cabinda como parte do seu reino, direito quelhe foi reconhecido pelo Tratado de Aliança Luso-Britânicode 1810, e reconfirmado pela Convenção assinada entre osdois países em 1815. Na Carta Constitucional portuguesade 1826, reconfirmada pela Carta de 1838, afirmava-setaxativamente que “Angola, Benguela e suas dependências,Cabinda e Molembo” eram parte do reino de Portugal. Maisde quatro décadas depois, a 1 de Fevereiro de 1885, oGovernador-Geral de Angola, Ferreira do Amaral, iriarubricar o famoso ‘tratado’ de Simulambuco, hoje pedraangular de todo o discurso independentista. Este foiassinado em presença de tropas da marinha portuguesa.Tratou-se, na realidade, de uma subtil ocupação territoriallevada a cabo pela marinha portuguesa, pretensamente apedido de chefes locais. De resto, a noção de ‘ocupaçãoefectiva’ (que implica nessa precisa conjuntura forçasmilitares) era uma das condições para se reconhecer eaceitar as reivindicações apresentadas por cada um dospaíses que aspiravam à colonização dos territóriosreivindicados na Conferência de Berlim de 1884-85. É desta batalha pela posse de territórios na África Central que nasceu o enclave de Cabinda, entre o Estado Livre do Congo de Leopoldo II da Bélgica (hoje RepúblicaDemocrática do Congo e, anteriormente, Zaire), e o CongoFrancês (hoje República do Congo, ou Congo-Brazzaville).

Identidade e especificidade cabindensesA questão identitária surge basicamente destes doisfactores – o ‘tratado’ de Simulambuco e a criação doenclave em resultado das rivalidades europeias na ‘corrida’a África. As antigas localidades fragmentáriasindependentes (se bem que cultural e linguisticamenteaparentadas) cujas novas fronteiras foram decididas peloseuropeus, estavam doravante reunidas sob o mesmoterritório e a mesma autoridade tutelar colonial.

O factor geográfico, mais o meio-abandono, por longasdécadas, pelo sistema colonial, do que veio a ser o Congoportuguês, e a tradição cabindense de emigraçãoeconómica para ambos os países, criaram, sem dúvidaalguma, referências identitárias profundamente enraizadasnas culturas dos dois Congos. A presença cabindense noentão Congo Francês, por exemplo, é tão antiga e tão

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Jean-Michel Mabeko-Tali é Professor

Associado de História africana na

Howard University, Washington, DC

(EUA), e na Universidade Agostinho

Neto, Luanda. Cresceu e estudou no

Congo-Brazzaville e obteve o seu

doutoramento na Université Paris VII. A

sua história do MPLA em dois volumes

foi publicada em Luanda em 2001.

Pessoas deslocadas em Cabinda, 2003

Fotografia: Justin Pearce

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importante, a ponto de parte da elite de origemcabindense ter participado directa e activamente, desde aindependência, na vida política congolesa, ocupando altasfunções, tais como as de Primeiro-Ministro (casos de AlfredRaoul e Antoine Dacosta), e Presidente do Congo (AlfredRaoul foi Presidente interino após a queda do regime doPresidente Massamba-Débat), e participando nosmovimentos juvenis.

As origens do movimento independentista É nesta elite emigrada e/ou nascida nos dois Congos quenasce o movimento independentista cabindense. Este nasceno fim dos anos 1950, se tomarmos como base a existênciade associações de naturais do enclave, residentes nos paísesvizinhos. Algumas dessas associações eram de carácterregional. Foi o caso da Alliance du Mayombe (Aliança doMaiombe). Mas a manifestação do independentismocabindense afirmou-se claramente no princípio dos anos 60,com a formação do Movimento de Libertação do Enclave de Cabinda (MLEC), sob a liderança de Ranque Franque. O MLEC vai fundir-se com outras sensibilidades para criarem, em 1963, a Frente de Libertação do Enclave deCabinda (FLEC).

Embora não se conheça qualquer acção militar da FLEClogo após a sua criação, ela tentou contudo manifestar-sepoliticamente, ao formar, em 1963, no Congo-Kinshasa, umGoverno de Cabinda no Exílio, cujo acantonamento na

localidade de Tcshela, na fronteira com o enclave, nãoengendrou, porém, uma acção guerrilheira. A seguir ao 25 de Abril de 1974, com a queda do regime salazarista em Portugal, houve verdadeiramente uma ‘explosão’ nasaspirações separatistas, que saíram da longa letargia emque se encontravam. Esta afirmação de aspirações fazia-se,por um lado, numa conjuntura extremamente complexaem Angola, marcada pela confrontação dos trêsmovimentos nacionalistas armados (FNLA, MPLA e UNITA)e, por outro lado, com as aspirações de uma parte dasociedade colonial para uma independência de tiporodesiano (branca).

Os dirigentes do Movimento Popular pela Libertação deAngola (MPLA) apontavam então o dedo em duasdirecções para explicar o mediatizado renascer doseparatismo cabindense, baseado nas duas capitaisvizinhas do Congo e da República do Zaire: as companhiaspetrolíferas, nomeadamente a francesa ELF, e osgovernantes locais congoleses e zairenses. No caso da ELF e da tendência congolesa da FLEC, a coisa era muitosimples para os angolanos: o líder separatista, AlexandreTchioufou, alto quadro congolês de origem cabindense, era administrador da ELF pela parte congolesa. Por outro,acusavam, com algum fundamento, o Presidente Mobutu,do Zaire, de estar a preparar a anexação de Cabinda,nomeadamente após o seu encontro com o GeneralAntónio Spínola, na Ilha de Sal (Cabo Verde), em Abril de 1974.

37Cabinda entre ‘não-paz’ e ‘não-guerra’

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O processo negocial e seus contornos desde osanos 1980Embora nunca tenham sido totalmente cortados desde aindependência, foi sobretudo nos anos 1980 que foramretomados os contactos oficiais entre o governo angolano e os movimentos separatistas cabindenses. Para o efeito,foram escolhidas figuras políticas de destaque de origemcabindense, cuja presença em lugares de prestígio naestrutura político-administrativa do estado angolano, tinha um real e imenso poder atractivo para os demaiscabindenses.

Se, por um lado, esta situação levou o movimentoseparatista a embaraços sérios, ela não foi, contudo, umgrande sucesso, por não ter conseguido convencer as suasprincipais figuras a aderirem à ‘política de reconciliaçãonacional’. E, de facto, tudo indica que tal processo não foralevado a cabo com as mesmas vontades e filosofias dediálogo, por parte de ambas as partes. A leitura de actas de alguns desses encontros, desde os anos 80, permitesustentar esta opinião. Com efeito, enquanto que osdelegados separatistas propunham como ponto crucial da agenda a questão do estatuto futuro de Cabinda, asdelegações governamentais procuraram, por muito tempotratar a questão apenas no âmbito da política de ‘clemência’e de ‘reconciliação nacional’. Enquanto os movimentosseparatistas colocavam na mesa a questão do futuro doenclave, o governo procurava conduzir o encontro noâmbito do diálogo entre ‘irmãos angolanos’. Repetidasrondas de negociações acabaram por esbarrar neste facto.

Entre 1986 e 1989, o Gabão e o Congo receberam umasérie de encontros entre o governo angolano e as váriasfacções independentistas de Cabinda, em Pointe-Noire,Brazzaville (Congo), e Libreville (Gabão). As conversaçõesforam um autêntico ‘diálogo de surdos’, lidandoessencialmente com questões de protocolo. O delegadoscabindenses, que pareciam estar cada vez mais divididos,queixavam-se constantemente de serem tratados commenos respeito do que os seus congéneres angolanos.

Ultrapassada esta etapa, vieram as questões dasprioridades a apresentar na primeira agenda de trabalho.Quando, finalmente, o governo angolano aceitou, nos anos90, prioritariamente discutir a questão do estatuto futurode Cabinda, surgiram outros percalços que o governoapresentou como obstáculo à resolução da questão deCabinda: as constantes divisões dos movimentosseparatistas. Essas divisões iam de questões estratégicas ameras questões pessoais e de luta pela liderança. O factode algumas dessas divisões acabarem em deserções ealianças, voluntárias ou incentivadas, de algumas figurasseparatistas com o governo angolano, parece corroborar asacusações feitas pelos movimentos independentistas dastentativas de o governo angolano de os ‘minar por dentro’.Tanto é, que este tem apresentado desde então, e cada vezmais, como argumento chave ao bloqueio actual dodiálogo, a alegada falta de interlocutores por motivo dessasconstantes divisões dos movimentos separatistas.

As origens das divisõesVários factores podem ser identificados como origemdessas divisões. Em primeiro lugar, um exame atento doseparatismo cabindense revela factores e tendências queresultam, em parte, das trajectórias da diáspora cabindensena África Central. R. Franque, Alexandre Tchioufou, A. Raoul,e outras figuras de origem cabindense, não tiveram amesma formação intelectual nem o mesmo backgroundsocio-político. Estavam demasiado envolvidos nosprocessos socio-políticos dos países onde tiveram a suaformação, enquanto pessoas e activistas políticos, parapermanecerem imunes às aspirações conflituosas einteresses estratégicos dos dois Congos.

Mas há também questões de divisões entre os oriundos doMaiombe e os originários do litoral, nomeadamente dacidade de Cabinda. Os primeiros são acusados de negarem‘legitimidade’ cabindense aos segundos. A esta análise, temque se acrescentar as divisões entre os francófonos e oslusófonos. Esta questão toca sobretudo a nova geração deaderentes, cuja trajectória inicial e de formação de base sedeu no contexto pós-colonial angolano. A sua coabitaçãocom companheiros pertencentes às trajectórias socio-políticas e intelectuais dos dois Congos nem sempre é pacífica. Por fim, há interesses e aspirações individuais.Neste último capítulo, o governo angolano temencontrado um apreciável campo de manobra paraconseguir provocar deserções, ou simplesmente‘compreensão’ para as suas teses.

O fim da guerra com a UNITA e as novasestratégiasDesde o fim da guerra com a UNITA, a guerra redobrou deintensidade em Cabinda, com o governo a levar a cabo‘operações de limpeza’. Tem havido troca de acusações por um lado entre organizações da sociedade civilangolana e os partidos de oposição, e por outro lado, nogoverno angolano, sobre os acontecimentos dos últimosanos no enclave.

Em Outubro de 2002, o governo enviou cerca de 30.000novas tropas, incluindo soldados da União Nacional pelaIndependência Total de Angola (UNITA) recémincorporados, para a província, num esforço de repetir oseu êxito militar contra a UNITA. Vários relatórios acusaramo governo de graves violações dos direitos humanos, sem,contudo, darem atenção igual ao comportamento dasfacções cabindenses. No final de 2003, meia dúzia de altoscomandantes da FLEC entregou-se às autoridadesangolanas, sendo, subsequentemente, integrados noexército nacional, mas nem este sério revés conseguiuterminar com os confrontos.

Qual é o impacto a curto e médio prazo da nova estratégiagovernamental? Será esta uma radicalização total, nosentido de rejeitar o princípio de negociações, mesmo queseja apenas para um estatuto especial para Cabinda? E qualé a estratégia do movimento separatista no seu todo?

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Resumindo, a estratégia do governo angolano repousasobre dois pilares activos, mais um ausente. Os dois pilaresactivos desta estratégia começam a mostrar já os seuslimites. O primeiro consiste em continuar ‘procurando’ um ‘interlocutor válido’, de antemão entendido comoinexistente. Nisto, o governo é ajudado – ou mesmo auto-ajudado – pelas constantes divisões no seio domovimento separatista.

O segundo pilar é a solução militar, para acabar com osmovimentos separatistas. Esta está, aliás, a tomar um lugarcimeiro. Independentemente de razões de soberania dogoverno para defender uma parte do território nacional,resta que a violência militar não só está a aumentarressentimentos nas populações, como também está acolocar o governo angolano numa situação internacionalque poderá tornar-se difícil de sustentar, com a chuva derelatórios sobre abusos cometidos contra os direitoshumanos. Além de que a experiência já mostrou quecombater movimentos cujas bases se encontram noexterior, tem implicações geo-políticas regionais de altorisco. Além do mais, esta violência está a dar maiorvisibilidade mediática ao movimento separatista, até agora pouco conhecido no exterior e, portanto, às causasque defende.

O pilar ausente desta estratégia governamental é oreinvestimento socio-económico dos petro-dólares emCabinda, que se esperou que fosse o primeiro ‘trunfo’ a serutilizado, numa espécie de engenharia de guerra psico-social. Para algumas vozes angolanas, se o governo tivesseagido desde a independência, usando fundos petrolíferospara profundos investimentos socio-económicos e infra-estruturais, isso teria reduzido as reclamações e protestosemitidos pelos mais moderados activistas da causacabindense (inclusive aqueles que aceitam apenas umestatuto de autonomia limitada). O impacto do discursoseparatista teria sido menorizado. Embora o governo tenhadecidido, desde o início dos anos 90, conceder 10 porcento da produção petrolífera anual para o orçamento daprovíncia, esta medida não foi enquadrada por uma gestãopolítica consistente. Já são vários os protestos de quadroscabindenses, inclusive não separatistas, que alertam para oestado de profunda degradação global da província, aausência de infra-estruturas básicas, a poluição das águasmarítimas e a crescente inviabilidade da subsistência dascomunidades piscatórias locais.

Porém, mesmo um uso inteligente desses recursos, comopilar económico e psico-social da guerra contra omovimento separatista cabindense, não chegaria, se aquestão de fundo – a afirmação de uma identidade e deum particularismo cabindenses, agudizados por frustraçõese interesses socio-económicos – não for resolvida.

Enquanto a guerra e a militarização de vastas áreas dointerior de Cabinda prossegue, o governo angolanocontinua a reafirmar publicamente a sua vontade detrabalhar para um diálogo e um acordo negociado, oumesmo para realizar um referendo sobre a

autodeterminação. Contudo, o eterno adiamento de umvasto diálogo com os movimentos separatistas, obedece,certamente, à estratégia de maior fragmentação destes e, de minimizar as hipóteses de se encontrar o tal‘interlocutor válido’ que o governo continua a ‘procurar’. O crescente papel do prelado católico cabindense nestaquestão tem sido ultimamente desvalorizado pelasautoridades governamentais angolanas. Trata-se de umaaposta arriscada, que vai alienando cada vez mais uminterlocutor e potencial moderador – a instituição religiosa.

No início de 2004, as autoridades angolanas proibiram porduas vezes a criação da associação cívica Mpalabanda,criada finalmente em Março de 2004 sob os auspícios daIgreja Católica de Cabinda. Estes acontecimentosradicalizaram ainda mais a opinião pública do enclave edemonstraram, uma vez mais, que a posição da hierarquiada igreja já não era apenas de cariz humanitário, mastambém mais abertamente político.

Quanto ao movimento separatista, a sua situação é muitomais aleatória, e dificilmente se podem apurar estratégiasde conjunto e articuladas num universo tão dividido. Tudo indica, porém, que a principal estratégia é ainternacionalização da questão de Cabinda. Para tal, as suas diversas alas têm procurado voltar a envolver Portugalno processo. O objectivo declarado é levar o estado luso areassumir o seu papel ‘tutelar’, ao abrigo do famoso Tratadode Simulambuco de 1885. O segundo ponto destaestratégia, é levar a ONU a entrar na questão. Isto implicariaque Portugal, como ‘potência tutelar’, fizesse o que fez comTimor. Enquanto, as alas mais radicais procuram manter apressão militar no terreno, parecendo aceitar a deterioraçãoda situação actual e os excessos de ambas as partes.

Tanto o primeiro como o segundo ponto desta estratégiatêm poucas hipóteses de sucesso. Quem quer que governeem Lisboa, Portugal não pode dar-se ao luxo de entrar emconflito com Angola nesta matéria, à luz dos crescentesinteresses económicos portugueses em jogo nesse país, e à pertença dos dois países à Comunidade dos Países deLíngua Portuguesa (CPLP), mesmo que isso não impeçapressões e jogos de bastidores. Além do que, Portugal estávinculado aos Acordos de Alvor, mesmo que a validadedestes já se tenha alterado, depois da tomada unilateral do poder pelo MPLA, a 11 de Novembro de 1975.

A estratégia governamental da eterna procura do suposto ‘interlocutor inexistente’ poderá revelar-se,definitivamente, como uma faca de dois gumes, pois detanto ‘procurar’, vai dando mais visibilidade ao movimentoseparatista, empurrando o prelado cabindense para aassunção de posições políticas claras e radicais, criandocondições para menos hipóteses de uma soluçãomoderada e de largo consenso (uma autonomia alargada),além dos riscos de instabilidade que esta situação cria emtoda a região.

39Cabinda entre ‘não-paz’ e ‘não-guerra’

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Para além docalar das armasdesmobilização,desarmamento e reintegração em Angola

Imogen Parsons

Desde o final da guerra em Abril de 2002, com oprocesso de desmobilização e desarmamentoterminado, a ênfase passou a estar na reintegração

de cerca de 500.000 ex-combatentes da União Nacionalpela Independência Total de Angola (UNITA) e seusfamiliares. Embora o processo tenha sido considerado emgrande parte um sucesso quer pelo governo angolanoquer pela comunidade internacional – pelo menos namedida em que desmentiu as previsões de insegurançageneralizada e quebrou os padrões do passado – a suaimplementação reflectiu a situação de vantagem política e militar do governo e, por vezes, não prestou suficienteatenção às necessidades dos próprios ex-combatentes. Foi dispensada atenção insuficiente à componente‘reintegração’ do processo de Desmobilização,Desarmamento e Reintegração (DDR) – a absorção dos ex-combatentes pela sociedade e a sua transformação em civis. Este processo é que será crucial para aconsolidação da paz no longo prazo.

O Memorando de Entendimento de LuenaEmbora o Memorando de Luena não fosse um novo acordode paz mas um retomar do Protocolo de Lusaka (que, por suavez, tinha por base os Acordos de Bicesse), o processo dedesmobilização e desarmamento em 2002-03 diferiasignificativamente tanto de Bicesse como de Lusaka. O novodispositivo negocial continha, mais uma vez, provisões parao aquartelamento e desmobilização das forças militares daUNITA, para a integração de uma parcela do pessoal daUNITA nas Forças Armadas Angolanas (FAA) e polícia, e paraa desmobilização e reintegração dos demais combatentes.Entretanto, o total de pessoal da UNITA a ser incorporadonas FAA de acordo com as vagas estruturais existentes foilimitado a cerca de 5.000. Enquanto que no Protocolo deLusaka fora estipulado um total para a composição das FAAa ser acordado entre o governo angolano e a UNITA, e, emBicesse fora estipulado um total igual de soldados paraambos os lados. Luena representou, portanto e tão só, aconclusão do processo de integração das duas forçasarmadas iniciado com Bicesse. Este processo permitiu aogoverno angolano consolidar sua vantagem ao dar

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Imogen Parsons é doutoranda na London School

of Economics and Political Science. Durante a sua

pesquisa, ela realizou trabalho de campo em

Angola, e tem textos publicados sobre

desmobilização e reintegração, reconstrução

pós-conflito e construção da paz.

Campo para soldados desmobilizados daUNITA e suas famílias em Catofe

Fotografia: Christian Aid/Judith Melby

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prioridade àqueles considerados como uma ‘ameaça’potencial ao processo de paz – generais e oficiais maisantigos da UNITA que poderiam ser ‘comprados’ isolando-se definitivamente as tropas dos seus líderes – numaestratégia muito efectiva da parte do governo.

De múltiplas formas, portanto, o processo de DDR deacordo com Luena reflectiu melhor a natureza do fim daguerra do que o Protocolo de Lusaka – uma vitória dogoverno angolano ao invés de uma solução negociada.Enquanto que Lusaka apelava a uma participação acrescidada ONU, em Luena, o governo angolano deixou clara a suadeterminação de conduzir sozinho o processo de DDR.Chamou a si integralmente a responsabilidade pelaadministração e financiamento dos processos dedesmobilização e desarmamento (no montante de 187milhões de dólares em Janeiro de 2004). Não incluíacláusulas de verificação e monitorização por terceiros, comonos Protocolo de Lusaka e, nomeadamente, não previa apresença da ONU ou de outras organizações mundiais nasÁreas de Aquartelamento. Criou-se uma nova organização,a Comissão Militar Conjunta (CMC), para supervisionar aimplementação da Luena, dirigida pelo governo ecomposta por militares representando o governo e a UNITA,sendo permitida a presença de observadores militares daONU e da Troika. Somente em Agosto de 2002, depois decompletada a desmobilização formal, o Conselho deSegurança autorizou uma nova missão da ONU. Embora setenha criado subsequentemente (ou restabelecido) umaComissão Conjunta, compreendendo representantes dogoverno, UNITA, ONU e da Troika, para fiscalizar aimplementação de questões pendentes do Protocolo deLusaka, o governo angolano insistiu que este processo fosseencerrado o mais brevemente possível. A Comissão foidissolvida em Outubro de 2002, a despeito de algumasqueixas da UNITA de que o trabalho ficara incompleto e deanseios de que este facto reduzisse os incentivos do

governo para garantir a correcta implementação dosprocessos de DDR.

DesmobilizaçãoAs forças armadas da UNITA foram desmobilizadas a umritmo espantosamente rápido. Os planos iniciais baseavam-se numa estimativa da UNITA de 50.000 combatentes, maseste número subestimava, afinal, em metade, o número queefectivamente se apresentou nas Áreas de Aquartelamentoe de Familiares (AAF). De facto, as pessoas continuaram achegar às AAF mesmo depois da conclusão formal doprocesso de desmobilização e literalmente até ao seuencerramento. Este excedente em relação aos númerosinicialmente previstos impôs uma pressão adicional sobreas capacidades logísticas e de abastecimento e prolongou oregistro e a desmobilização de 80 dias para cerca de quatromeses, atrasando, igualmente, as acções de reintegração.Acredita-se que muitos daqueles que se apresentaram não tinham sido combatentes activos na última fase doconflito – uma hipótese comprovada, até certo ponto, pela pequena quantidade de armas de pequeno calibreentregues pelos ex-combatentes, cerca de 30.000.

Formalmente, a desmobilização teve lugar a 2 de Agosto de2002, primeiro com a integração dos ex-soldados da UNITAna FAA e, em seguida, com a sua desmobilização. Os ex-combatentes tinham a receber o pagamento de 5 meses desalário em atraso de acordo com a sua graduação militar,uma ajuda de reintegração de 100 dólares e um conjuntode utensílios domésticos e ferramentas básicas, assim comodocumentos completos de desmobilização e de identidade.

Contudo, o apoio de desmobilização foi concedidoexclusivamente aos ex-combatentes, as mulheres apenastiveram direito a receber ajuda humanitária enquanto civis(apenas cerca de 0,4 por cento do número total de ex-combatentes registados eram mulheres). As crianças

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soldado não eram geralmente registrados comocombatentes mas transferidos principalmente para Áreasde Familiares e, portanto, não podiam ser enquadrados emprogramas oficiais de reintegração. Embora a separação dosadultos fosse do interesse das crianças, estas tornaram-separticularmente vulneráveis caso não tivessem estruturasfamiliares para lhes dar assistência.

A concessão de ajuda humanitária criou complicaçõesadicionais na reintegração de crianças soldado e demenores separados das suas famílias. A ajuda era distribuídapor família, de acordo com a quantidade de pessoas dafamília (pelo menos pelas agências internacionais,enquanto que as distribuições governamentais parecem tersido menos ordenadas) significando ser do interesse dafamília a adopção de uma qualquer criança ‘abandonada’como criança soldado ou órfã. Contudo, uma vez fora dasÁreas de Acolhimento (AA), esta lógica deixava de funcionarresultando numa quantidade de criançasdesacompanhadas e ‘perdidas’ pelo sistema. As ONG eagências de protecção à infância estão trabalhando com oMinistério da Assistência Social e Reinserção, uma estruturacivil, para corrigir este problema causado pela falta deplaneamento de longo prazo naquilo que eraessencialmente um processo militar.

As Áreas de Aquartelamento e de Familiares /Áreas de AcolhimentoAs Áreas de Aquartelamento foram estabelecidas demaneira geral nos mesmos locais previstos no Protocolo deLusaka, com casas, centros de reunião, escolas e hospitaisconstruídos pelos próprios ex-combatentes. Foramplaneadas inicialmente 27 Áreas, um número aumentadasem seguida para 35 com 7 áreas satélites. As Áreas eramdivididas geralmente em três secções: a Área deAquartelamento, onde se encontraram os ex-combatentes,uma Área de Familiares, separadas mas adjacente,geralmente destinada às mulheres e dependentes e, umaoutra área basicamente para ex-combatentes incapacitadose pessoas mais velhas. Inicialmente, as condições eram más e os níveis de desnutrição frequentemente críticos,chegando ao limiar da fome em algumas áreas. Aassistência aos ex-combatentes era de responsabilidadeexclusiva das FAA e do governo angolano, enquanto que asagências humanitárias da ONU se encarregavam apenas daassistência aos familiares e dependentes. Porém, antes depoder fornecer qualquer tipo de assistência, ao Escritóriopara a Coordenação dos Assuntos Humanitários da ONU(OCHA) teve de passar por um demorado processo denegociação para obter acesso às AAF, conduzindo aacusações de negligência tanto ao OCHA como ao governo.Finalmente, estabeleceu-se a presença tão próxima quantopossível das AAF e as condições acabaram por estabilizar namaior parte das áreas. De facto, os visitantes das AAFficavam frequentemente surpreendidos com o nível deordem e arrumação que reflectia a notória disciplina militarda UNITA. Embora raramente noticiadas no mundo exterior,existiam tensões no interior das AAF, alimentadas por

longas demoras na chegada dos alimentos e outrosabastecimentos, confusões e irregularidades no registo edesmobilização, frequentes alarmes falsos de fechamentodo campo e sentimentos generalizados de insegurança. De maneira similar, havia relatórios de ressentimento dascomunidades vizinhas em algumas áreas em relação aonível de apoio que se apercebiam que os ex-combatentesda UNITA estavam a receber.

As AAF receberam o nome de Áreas de Acolhimento (AA),em Outubro de 2002, para reflectir a finalização do processo de desmobilização, bem como o estatuto civil dos seus habitantes. Embora em algumas AA aadministração das áreas militares e não-militares fosseseparada, na prática essas áreas não eram estritamentedelimitadas e a movimentação entre elas era corrente. De maneira crescente, estas áreas tornaram-sepovoamentos independentes contando com mercados,escolas, hospitais (muito básicos) em funcionamento. E outros ex-combatentes da UNITA de outras áreas depassagem e procurando localizar as suas famílias.Incentivou-se também este processo pela distribuição,através de algumas agências e igrejas, de sementes eferramentas para agricultura de subsistência, uma políticaintensamente debatida precisamente por esta sua ênfasenas necessidades de curto prazo, enquanto que outrosvisavam a reintegração política e social do país a mais longo prazo. Temia-se que, assim, os ex-combatentes teriam menos motivação para regressar às suas regiões de origem criando-se mini enclaves da UNITA. Regra geral,este receio não se concretizou, embora o cultivo de terra tenha atrasado o regresso dos ex-combatentes edeslocados a algumas regiões.

Este foi a maior preocupação do governo, que definiu asdatas de encerramento das AA de Outubro de 2002 emdiante. Estes prazos revelaram-se impossíveis de cumprirdevido à persistência dos atrasos administrativos com aconsequência, intencional ou não, de desmoralizar osresidentes do campo, os quais exprimiam a sua frustração eimpotência ‘nas mãos do governo’. Aqueles que receberamsementes e ferramentas não sabiam se as plantavam nas AA ou se esperavam até ao regresso às suas localidades de origem. Aqueles que não tinham recebido aindadocumentos de identidade não podiam partir, mesmo se quisessem tentar a viagem por sua conta e risco, emesmo pequenas deslocações aos mercados locais podiam resultar em problemas com a polícia.

Por meados de 2003, a maioria das AA tinha sido esvaziada.A primeira etapa na viagem de regresso era geralmentepara uma área transitória, muitas vezes um campo dedeslocados que tinha sido desocupado recentemente ouem que ainda se encontravam alguns deslocados. Aí osproblemas repetiam-se, os ex-combatentes eramfrequentemente forçados a abandonar seus haveres, quenão podiam ser embarcados em aviões e caminhõessuperlotados. No início de 2004, acreditava-se que a maioria havia deixado as áreas transitórias e voltado parasuas ‘regiões de origem’, ou viajado para outros destinos.

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É possível que ainda existam algumas concentrações em torno de certos centros urbanos e em localizaçõestemporárias, seja por causa do cultivo da terra, seja naexpectativa de se juntarem a familiares uma vez estesdefinitivamente instalados. O número de habitantes éincerto e poderá haver futuros fluxos de populaçãorelacionados com os ciclos agrícolas. Para além disso,também poderá haver uma inflexão parcial desta tendênciase os ex-combatentes entenderem que existem maioresincentivos económicos e oportunidades, tais comoprogramas de formação, junto de zonas urbanas.

DesarmamentoO número de armas entregue pelos ex-combatentes daUNITA foi surpreendentemente baixo, tal como referimosanteriormente. Este facto parece reflectir o enormeesgotamento das forças de combate efectivo da UNITA no final da guerra. Estimou-se que as armas devolvidasrepresentavam cerca de 90 por cento do total na posse da UNITA ficando os restantes 10 por cento na posse dapopulação civil. Temia-se que as armas remanescentespudessem ser rapidamente utilizadas em acções debanditismo e violência localizada, mas a ameaça deinsegurança generalizada não se materializou até ao momento.

Entretanto, deve recordar-se que, embora os ex-combatentes da UNITA tenham sido completamentedesarmados, a população civil permanece altamentearmada pois, de acordo com a polícia angolana, 3 a 4milhões de armas de pequeno calibre e outro armamentoligeiro continuam nas mãos de civis. Para muita gente, aposse de armas está ligada à ideia de segurança pessoal, e é também um sinal de alinhamento político. Em Março de 2004, o governo anunciou um plano de desarmamentode civis mas, com excepção de algumas iniciativas dasociedade civil, pouco se verificou na prática. Durante aguerra, formaram-se milícias armadas conhecidas comoDefesa Civil em quase todas as áreas controladas pelogoverno, armadas e vagamente dirigidas pelas FAA. Aparticipação era virtualmente compulsória para jovens epessoas de meia idade do sexo masculino e a recusa emparticipar seria interpretada como falta de apoio aogoverno, senão mesmo como sinal de simpatia inequívocapela UNITA. Não é claro qual será seu papel em tempo depaz. Os planos de desmobilização e reintegração nãooferecem qualquer apoio formal a estas forças, embora elasacreditem ter lutado legitimamente em defesa de seus larese comunidades e, portanto, serem tão merecedoras deassistência como os ex-combatentes da UNITA.

ReintegraçãoCom a conclusão da desmobilização, a reintegração dos ex-combatentes constitui um dos maiores desafios àconstrução da paz em Angola. Os planos de reintegraçãonão foram revelados até ao final de 2002 e, mesmo então,apenas parcialmente. Esperava-se que um Programa de

Desmobilização e Reintegração para Angola (PDRA) a serfinanciado pelo Banco Mundial rapidamente se tornariaoperacional, mas as negociações emperraram na questãoda sua gestão financeira. O PDRA foi finalmente lançado emAbril de 2004, mas é provável que o desembolso de fundospara as organizações promotoras seja lento. É pouco provávelque qualquer projecto se torne activo antes de finais de2004-05. Estes fundos cobririam as necessidades de 105.000ex-combatentes da UNITA e 33.000 soldados do governo(desmobilização necessária para reduzir o tamanho doexército), mas exclui o contingente de ex-combatentesveteranos de Bicesse e Lusaka que o governo esperava incluirinicialmente. Além disto, outros doadores comprometeram-se a financiar iniciativas específicas, nomeadamente 54milhões de dólares da Agência Americana para oDesenvolvimento Internacional (USAID). Entretanto, há orisco de não haver capacidade suficiente para gerir ecoordenar estes projectos de reintegração, especialmentefora de Luanda. As instituições e organizações estabelecidaspara lidar com o retorno, reassentamento e reintegração têmuma presença relativamente fraca nas províncias, e existepouca coordenação efectiva entre as actividades das diversasONG nacionais e internacionais. A reintegração está adecorrer em simultâneo com o regresso de cerca de 3 a 4milhões de deslocados e quase meio milhão de refugiados,muitas vezes para regiões com fraca capacidade deadministração estatal e sérias restrições de acesso a regiõesde reassentamento.

De momento é quase totalmente impossível saber comrigor de que forma o processo de reintegração se está adesenvolver. Embora o consenso geral seja que a situação é relativamente estável, e as previsões mais pessimistasreferentes à insegurança e banditismo generalizados não sematerializaram, algumas ONG como o Human Rights Watchidentificaram abusos e violações de direitos humanos, e as‘regras’ sobre regresso e reassentamento raramente sãoobedecidas. Além disso, decorridos mais que dois anos daassinatura de Luena, que promete acesso a formaçãoprofissional e apoio económico, poucos programas destetipo foram concretizados e parece claro que nem o governocentral nem os governos provinciais dispõem, quer dosmeios quer da vontade política, para assegurar a suaconcretização no futuro. Contudo, a sua reintegração temuma importância crucial não somente para os próprios ex-combatentes – que podem ou não vir a confirmar asexpectivas de virem a constituir uma ameaça para a paz –mas também para a consolidação efectiva da paz entrecomunidades e na sociedade como um todo. Se os ex-combatentes da UNITA não devem passar a ser vistos comobeneficiários indevidos da sua participação na guerra,também não podem tornar-se num encargo para as suasfamílias e comunidades, nem numa fonte de tensõeseconómicas e sociais. Pelo contrário, a sua reintegraçãopressupõe a sua inclusão na comunidade e odesenvolvimento desta última como um todo, e não deindivíduos ou ‘grupos alvo’. Encontrar um equilíbrio entreestes dois objectivos é certamente um desafio, mas umdesafio que deve ser enfrentado.

43Desmobilização, desarmamento e reintegração em Angola

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A problemáticada terra nocontexto daconstrução dapaz em Angoladesenvolvimento ou conflito?

Fernando Pacheco

Aterra constitui, no contexto actual, um tematransversal que abrange vários aspectos da vidapolítica, económica, social e cultural do país, no

âmbito do processo de reconstrução e reconciliaçãopretendido, visando a consolidação da paz em Angola.

A possibilidade de conflitos provocados pela terra foisubestimada até recentemente. Os políticos do país, de raízurbana e preocupados com uma economia baseada nopetróleo, estão há muito tempo alienados de questõesrelacionadas ao desenvolvimento rural. O fim da guerra e odebate em torno do ante-projecto de Lei de Terrasmudaram esta situação. A questão da terra é agora o centrode um debate nacional, assunto de muitas reportagens emotivo de um contacto maior entre o mundo formal dasleis e das elites com o mundo real da maioria dosangolanos. Este artigo abordará o problema dentro daperspectiva da população rural do país, embora a dimensão urbana seja igualmente relevante.

As raízes do problemaTal como muitos outros países africanos, Angola herdou do período colonial um sistema ‘dualista’ de posse epropriedade de terra e de abordagem do desenvolvimentoda agricultura. Tal estrutura se baseia em dois sistemasagrários com padrões culturais, sociológicos e económicosdistintos e com objectivos diferentes. Estas diferenças sãoevidentes no relacionamento entre as unidades de produçãoe os agrupamentos humanos a elas ligados; na sua posiçãoperante o mercado; na atitude perante o cálculo económico;na estrutura dos custos de produção e nos fluxos de energia.Fala-se, pois, de agricultura familiar e agricultura empresarial,embora a realidade seja bem mais complexa. Agriculturafamiliar não é sinónimo de agricultura de subsistência,recorrendo mesmo, por vezes, a mão de obra assalariada deforma não regular, nem a agricultura empresarial diz respeitoapenas aos grandes latifúndios. O sistema dualista é umaconsequência da discriminação rácica e ‘civilizacional’inerente ao Estatuto dos Indígenas Portugueses dasProvíncias de Angola, Moçambique e Guiné, cuja últimaversão data de 1954. Era como se existissem, face aqueleregime jurídico-legal, dois tipos de angolanos: os‘assimilados’ e os ‘indígenas’. Isso haveria de marcar, de certomodo, o contexto sociológico e político do país até àactualidade, apesar das grandes transformações verificadas.

Era nesse quadro jurídico que se inseria o regime de terras.A legislação portuguesa reconhecia o direito dos ‘indígenas’desfrutarem de terras para agricultura e habitação deacordo com os seus usos e costumes, mas não lhesreconhecia o direito de propriedade. Mesmo depois deabolido o Estatuto em 1961 – consequência directa doinício da luta armada pela independência – as populaçõesrurais continuaram submetidas a um regime diferenciado e de subalternização. Nos últimos 12 anos de colonialismoAngola registou um crescimento económico notável, comoresultado de um processo de modernização acelerado comque os portugueses pretendiam dar solução aos velhosproblemas políticos e sociais. Porém, esse crescimento foi feito, em grande medida, à custa dos camponeses

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Fernando Pacheco é agrónomo e

Presidente do Conselho Directivo da ONG

angolana ADRA (Acção para o

Desenvolvimento Rural e Ambiente).

Refugiados recém regressadoscultivam as suas terras em Malanje

Fotografia: Anders Gunnartz/PANOS

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angolanos. Com efeito, nesse período aumentou a corridaàs terras por parte dos colonos portugueses, e as famíliasrurais (cerca de um milhão) viram reduzidas para menos demetade as áreas médias das terras que ocupavam (depouco mais de nove hectares em média por família emmeados da década de 1960 para cerca de quatro em 1973),enquanto que os seis mil agricultores empresariaispassaram a dispôr, em média, de 700 hectares, dos quais sócultivavam, de facto, cerca de 10 por cento. Não surpreende,pois, que nas áreas de maior concentração demográfica(como o planalto central), a situação da agricultura familiartivesse regredido com aumento dos níveis de pobreza,atirando para a migração interna um número crescente dehomens com consequências sociais desastrosas emarcando, mais tarde, o quadro da guerra civil.

O sistema dualista de uso e propriedade de terras e dodesenvolvimento da agricultura continuou a influenciarsocial e politicamente o contexto angolano mesmo após aindependência. Apesar da significativa mobilidade socialque então teve lugar, fruto da situação revolucionária e donotável esforço no campo da educação, a sociedadeangolana não se libertou do dualismo que vinha de trás.Com efeito, os sucessivos governos do Movimento Popularpela Libertação de Angola (MPLA) têm-se vindo a pautarpor uma política que privilegia os centros urbanos,remetendo as populações rurais para uma crescentesituação de exclusão que se traduz em vários domínios:político, social, económico, institucional, territorial e dasreferências simbólicas. Isso explica, em grande medida, odesenvolvimento da guerrilha da União Nacional pelaIndependência Total de Angola (UNITA) entre 1976 e 1991.

É verdade que a independência permitiu aos camponeses oresgate de boa parte das suas terras de forma quase natural,na sequência da fuga dos portugueses e apenas uma parte

delas foi integrada nas empresas do estado que se vieram a constituir. No entanto, esse mesmo abandono tambémprovocou um retrocesso na integração das economias rurais familiares nos circuitos mercantis – um dos grandesobjectivos da política colonial portuguesa nos seus últimostempos. Esse facto permitiu que se formasse no interior do país como que um enorme manto de água onde osguerrilheiros puderam nadar com maior ou menorfacilidade, ainda que a adesão das populações à mensagempolítica da UNITA não fosse uma constante.

A privatização da década de 1990O colapso do modelo socialista no final dos anos 80provocou mudanças várias na política e na estratégia doMPLA, embora nem sempre de forma explícita ou assumida.A construção de uma economia de mercado exige umaclasse empresarial dinâmica, que se pretende criar a partirdas elites políticas e militares. Foi nessa perspectiva que se decidiu redimensionar as propriedades do estado.Redimensionar significava privatizar e adequar a dimensãodas empresas às capacidades técnicas e de gestão dosnovos proprietários. Contudo, esta segunda componentefoi ‘esquecida’. No caso das empresas agrícolas, a ausênciade um cadastro actualizado – ainda hoje se faz recurso ao existente em 1975 – foi determinante para que aspropriedades fossem privatizadas de acordo com a situaçãoe dimensão anteriores, ainda que a terra fosse cedidaapenas em termos de direito de uso. Se tivermos em linhade conta, como se fez notar, que no tempo colonial osportugueses não tinham capacidade para explorar, de facto,senão cerca de 10 por cento das áreas de que dispunham, e que os novos empresários angolanos são ainda muitofrágeis, fácil é entender que a esmagadora maioria dasterras concedidas (50 por cento do total da área queconstituía o sector empresarial no período colonial já havia

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sido distribuída até ao final da década de 1990) seencontram improdutivas. Para isso contribui o facto de, por causa da guerra, só muito recentemente, os novos‘proprietários’ terem tomado contacto com as ‘suas’propriedades, que, entretanto, continuaram ocupadas emmuitos casos por populações das áreas circunvizinhas oupor antigos trabalhadores.

Essa privatização de empresas aconteceu antes e depois da aprovação, em 1992, da primeira Lei de Terras após aindependência. Trata-se de uma lei com aspectos positivosno que respeita à defesa dos direitos das comunidadesrurais, mas que mantém o ‘dualismo’ sem apresentar viaspara o superar. O ‘conflito’ entre práticas costumeiras edireito positivo continua bem presente e isso permitepensar que, por um lado, os direitos das populações ruraisvoltam a ser ignorados (o primeiro reconhecimento legal da posse comunitária de terra ocorreu apenas em 2001, emTchicala, província de Huíla) e, por outro, que certos direitosdos cidadãos – como é o caso do direito das mulheres àherança – continuarão a ser maltratados em termos das tais práticas costumeiras.

No entanto, a implementação da lei, feita de formadesorganizada e pouco transparente, está a ter comoconsequência: (i) as terras comunitárias destinadas àspovoações rurais (uma espécie de ‘reservas’ comunitárias)continuam por definir, o que confere grandevulnerabilidade às famílias rurais; (ii) os beneficiários dostítulos são, fundamentalmente, dirigentes do MPLA,governantes ou ex-governantes, altos oficiais das ForçasArmadas, altos funcionários do estado, empresários, enfim, os grupos que hoje se podem conotar com as elites existentes ou em processo de formação, mas sãotambém aqueles que, não fazendo parte das novas elites,conhecem o caminho das instituições, deixando de fora,sobretudo, as populações desfavorecidas e desinformadas,o que reforça a sua exclusão; (iii) as terras concedidas estão geralmente improdutivas, mas não são retirados ostítulos como prevê a lei; (iv) começa a aparecer, ainda que de forma embrionária, um mercado de terras quepode conduzir ao empobrecimento e aumento davulnerabilidade das famílias; (v) surgem alguns sinais deconflito social devido ao confronto de interesses entre os sectores empresarial e familiar; (vi) o regresso depopulações deslocadas às suas áreas de origem, commedo de verem as suas terras ocupadas; (vii) uma maiorpreocupação das populações com os títulos, pelo que eles representam em termos de segurança, mas tambémpelo reconhecimento gradual da primazia do direitopositivo e escrito sobre o direito costumeiro.

Novos conflitos de terraEm relação a estas últimas observações, já há sinaispreocupantes vindos de províncias como a Kwanza Sul,Huambo, Huíla, Cunene, e mesmo da periferia de Luanda. É de prevêr que com o fim da guerra e com a falta demecanismos adequados, jurídicos ou outros, para aatribuição de terras, os conflitos se vão multiplicando eagravando. Os dois casos seguintes demonstram o tipo de

conflito que surgiu nos últimos anos e pode sergeneralizado no futuro.

Nos Gambos, na província de Huíla, houve uma corrida àsantigas demarcações por parte de novos empresários. Aspopulações pastoris reagiram negativamente a essemovimento porque achavam que os novos agricultoresdificultariam o acesso a determinados pontos de água e de pastagem. O governo da província revelou que muitosdesses agricultores detinham áreas muito superioresàquelas registadas ou que efectivamente necessitavam e que estariam mais de acordo com as suas capacidades. O reordenamento daí resultante permitiu que ascomunidades recuperassem mais de 5 mil hectares para oseu uso colectivo. Este caso foi parcialmente resolvido deforma negociada, mas ainda nos Gambos há situações emque o radicalismo é mais acentuado nos dois lados.

Kenguela Norte, nos arredores de Luanda, é outroexemplo. Após o abandono em 1975 de terras cultivadaspor uma empresa portuguesa, poucas pessoaspermaneceram nessa região árida. Embora nacionalizada,a propriedade da terra não foi assumida pelo estado deforma efectiva. Gradualmente, a guerra provocou a vindade pessoas do interior para a região, e ao mesmo tempo,foram-se instalando empresários privados com opropósito de criar gado. Estes ocuparam as terras semrecorrer ao cadasto, enquanto que os residentes seconsideravam seus ‘proprietários’ legítimos por motivoshistóricos. As autoridades locais concediam lotes de terraaos novos empresários e deslocados independemente doregisto e ao demarcar os seus lotes os empresários nãoconsultaram as autoridades tradicionais. A terra estavasendo cultivada por diferentes usuários de maneirasincompatíveis: os camponeses cultivavam mandioca ecriavam espécies pecuárias de pequeno porte, enquantoque os empresários criavam gado bovino e caprino,espécies que invadem as plantações dos camponeses. O caso estava sendo resolvido pelo Ministério daAgricultura e Desenvolvimento Rural, com o apoiometodológico da Organização para Agricultura eAlimentos da ONU. A solução conjunta que propuseramcombinava a demarcação dos terrenos comunitários, de forma a estabelecer a coabitação e os direitos de propriedade, com compensações para que ascomunidades entregassem terra em troca de assistênciaem projectos de desenvolvimento comunitários.

Muitas das terras que eram produtivas antes da guerraforam abandonadas. É improvável que as terrasabandonadas que se encontram no sector familiar não-demarcado (reconhecidas na última legislação assim como na colonial, mas sem um registo oficial) venham a ser a causa de um grande conflito, a não ser que oscamponeses pobres desenvolvam uma maior capacidadede organização própria. É mais provável que os produtoresmais modernos, que abandonaram terras, entrem emconflito com os camponeses ou novos ‘proprietários’ sobreos terrenos por eles ocupados ou explorados. Outra formade conflito latente é a tentativa dos novos ‘proprietários’ deremover os camponeses das terras que lhes foram

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concedidas. Sem processos adequados de identificação edemarcação de terrenos, alguns dos novos ‘proprietários’poderão recorrer ao uso da força.

Uma nova Lei de TerrasEm 2002 começou o processo de aprovação de um novoante-projecto de Lei de Terras que procura corrigir algumaslacunas da anterior, mas que não resolve as questões defundo apontadas e, pelo contrário, pode criar novasdificuldades. Alguns críticos afirmam que foi concebidopara tornar mais fácil aos mais abastados a manutençãodos direitos sobre a propriedade urbana, mas que poucofaz para tratar da terra informalmente ocupada.

Porém, o debate que ela suscitou na sociedade tempermitido pelo menos colocar a questão da terra no centrodo debate nacional (ainda que limitado praticamente àscidades). Tambem tem resultado numa mais ampladivulgação do tema, que era praticamente desconhecidodo grande público e mesmo dos governantes e fazedoresde opinião. Tem estimulado um maior contacto entre omundo real, onde se processa a vida – que também émuitas vezes o mundo informal, dos excluídos – com omundo das leis, do formal, das elites. Tem gerido umamaior clarificação dos problemas centrais do tema emdebate nos quais se incluem (i) o direito reivindicado pelascomunidades de possuírem um título que lhes dê o direitode propriedade (não apenas de uso) das terras que elesconsideram suas por as terem herdado dos seusantepassados; (ii) o direito dessas mesmas comunidades de reaverem as terras usurpadas durante a colonização eque estão a ser entregues aos novos empresários; e (iii) o reconhecimento da importância da propriedade da terra como aspiração legítima e necessidade de todosaqueles que pretendam dedicar-se à agricultura e suamodernização, o que deve incluir condições como aslimitações das áreas, a sua efectiva utilização, e a aplicaçãode multas pesadas a quem não cultiva. Enfim, o debate tem resultado na melhoria do exercício da cidadania porparte de um leque maior de cidadãos.

Contribuição para uma estratégia de paz e desenvolvimentoAngola vive um processo de mudanças em que aconsolidação da paz, a reconciliação nacional e aconstrução da democracia se afiguram como elementoscentrais. Por isso é importante defender as pessoas queforam vítimas de injustiças ao longo de muitas décadas elutar para que elas tenham acesso a títulos de posse deterras – comunitárias ou individuais, incluindo as mulheresindependentemente da sua situação (casada, viúva ousolteira). Paralelamente, há que garantir que a terra não sejausurpada por uma elite empresarial inepta e absentista quenão está em condições de tirar proveito dela e, ao mesmotempo, facilitar o acesso à terra a quem, efectivamente,tenha condições de a trabalhar e nela e dela viver. Emminha opinião isso, só por si, exigiria um grande esforço porparte das instituições do estado e da sociedade civil.

A história mostra que não basta dizer que a lei respeita osusos e costumes e reconheça os direitos costumeiros, poisisso não dá segurança aos camponeses pobres. Oimportante é que as práticas costumeiras possam serincorporadas na lei escrita e que os cidadãos, sem quaisquertipos de descriminação, tenham acesso facilitado àsinstituições por forma a fazer valer os seus direitos. Issopermitirá a concepção de uma política de terras modernaem que o uso da terra não deve ser função da diferenciaçãosociológica entre sector familiar e empresarial, mas sim dotamanho da propriedade. Parafraseando o moçambicanoJosé Negrão, não é a definição da propriedade da terra quedetermina o passo do processo de desenvolvimento, mas éeste que vai exigir formas cada vez mais complexas dedefinição da propriedade de terra.

É errado pensar que a reabilitação e modernização daagricultura angolana possa ser conseguida com basefundamental no chamado sector empresarial. Este, tal comose apresenta hoje, não tem capacidades técnicas, financeirase de gestão, e as suas referências são as das empresascoloniais que, na sua maioria, apresentavam níveis deprodutividade e de rendimentos pouco diferenciados dos do sector familiar e, por vezes, eram até menores. Por outrolado, é também errado pensar que o sector familiar está (ouestava) vocacionado fundamentalmente para a subsistência.Na verdade, as estatísticas coloniais mostram que erampoucos os produtos agrícolas e pecuários onde o sectorempresarial produzia mais em volume que o familiar: café,algodão, banana para exportação e pouco mais. Por fim, éutopia imaginar que o sector empresarial possa beneficiar de grandes investimentos externos a médio prazo, pois oambiente político, a legislação, a burocracia, as infra-estruturas e os custos desencorajam aqueles que possam ter boa vontade de investir em Angola nos tempospróximos. Não custa, assim, admitir que nas condições deAngola o sector familiar pode garantir mais emprego a curto e médio prazo que o empresarial.

Por tudo isso a solução para a questão rural deveultrapassar a competição entre os dois sectores e radicar na sua complementaridade como base de umdesenvolvimento simultaneamente endógeno emodernizante. O melhor domínio para o investimento(nacional ou estrangeiro) será, pois, o do estabelecimentode parcerias em que as famílias pobres entram com a terrae com o trabalho, e os investidores com o capital e com o conhecimento técnico e de mercado em acções amontante ou a jusante do ciclo produtivo. Esta seria, creio,uma boa estratégia para se dar um golpe no ‘dualismo’.

Tendo em conta o que foi dito, é possível pensar que Angolavive um momento crucial da sua história. Uma reformaagrária inclusiva pode permitir um desenvolvimentodemocrático participativo e sustentável a partir da base.Porém, se optar por um modelo que exclua as populaçõescamponesas pobres (cerca de 80 por cento da populaçãorural), poder-se-ão estar a criar os ingredientes para novos conflitos.

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O papel dagestão derecursos naconstrução deuma pazsustentávelTony Hodges

Angola representa um exemplo claro de como os países em vias de desenvolvimento ricos emsignificativos recursos naturais – em especial

petróleo e outros minérios – se encontram entre aquelescom maior tendência para má governanação, conflitosarmados e desempenhos fracos em termos dedesenvolvimento económico e social. Esta hipótese,sustentada por exemplos de muitas partes do mundo em vias de desenvolvimento, postula que os países cominstituições frágeis (uma característica da maior parte dospaíses em vias de desenvolvimento) têm pouca capacidadepara aguentar as forças destruidoras da corrupção e doconflito que são desencadeadas pelas tentativas decontrolo e apropriação das rendas do estado dependentesda tributação do petróleo e outras actividades mineiras. As exportações de minério fazem subir o valor da moedalocal, debilitando a competitividade do resto da economia(como a agricultura e a indústria), dado que as importaçõesembaratecem. Muitas vezes estes factores alimentam-se eexacerbam outras clivagens sociais, tais como divisõesétnicas, regionais e religiosas.

Uma riqueza em recursos excepcionalNa verdade, Angola possui uma excepcional dotação derecursos. É o segundo maior produtor de petróleo sub-saariano (a seguir à Nigéria), com uma produção actual demais de 900.000 barris por dia (b/d), quase exclusivamenteem plataformas petrolíferas ao largo da costa norte. É também o quarto maior produtor de diamantes domundo (em valor), representando cerca de 15 por cento da produção mundial de diamantes em bruto em 2000. Os recursos em diamantes de aluvião e kimberlitosconcentram-se principalmente no nordeste do país.

Angola tem igualmente jazidas de numerosos outrosminérios por explorar e, no período colonial, era umprodutor de minério de ferro de dimensão média. Foramencontradas jazidas substanciais de gás natural, mas aindanão são exploradas produtivamente: a maior parte do gásassociado às plataformas petrolíferas ainda está a serqueimado e desperdiçado.

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Tony Hodges trabalhou em Angola para

agências da ONU em 1994-95, 1996-98 e

2001-02. É autor de Angola: do afro-

estalinismo ao capitalismo selvagem

(S. João do Estorial: Principia, 2002).

Trabalha para a organização Oxford Policy

Management e encontra-se neste momento

a trabalhar em Moçambique.

Indústria petrolífera em Benguela

Fotografia: Ben Jackson/ACTSA

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A ‘maldição dos recursos’Se os seus recursos fossem devidamente aproveitados,Angola seria um dos países mais prósperos de África. Defacto, com uma população relativamente pequena, apenas14,5 milhões de habitantes, deveria ser capaz de apresentarindicadores de bem-estar humano entre os melhores detoda a África sub-saariana. Em vez disso, a guerra e a mágovernação provocaram o esbanjamento maciço derecursos petrolíferos, ao mesmo tempo que limitaramgravemente o uso efectivo da maior parte dos outrosrecursos (em especial na agricultura).

Embora vários factores não-económicos tenham sidoimportantes na origem e alastramento da guerra emAngola, a partir do início da década de 1990 o conflitotornou-se numa luta feroz pelo poder entre elites internasrivais, na qual os minérios representavam tanto o prémio davitória como os meios para a alcançar. Graças ao aumentoda produção petrolífera, as receitas governamentaisprovenientes do petróleo, que tinham estado abaixo de 1 mil milhões de dólares por ano durante a maior parte dos anos 80, cifravam-se numa média de um pouco maisde 2.5 mil milhões de dólares por ano entre 1995 e 2001.Por seu lado, a União Nacional pela Independência Total de Angola (UNITA) foi capaz de controlar as áreasdiamantíferas mais valiosas do nordeste do país, o que lherendeu cerca de 3.7 mil milhões de dólares em diamantesentre 1992 e 1998, gerando uma receita bruta estimada em2 mil milhões de dólares, com a qual pôde financiar a guerra.

O petróleo tem estado, sem dúvida, igualmente no centrodo conflito em Cabinda. Esta pequena província éresponsável por mais de 55 por cento da produção

petrolífera de Angola. Como consequência, a causaseparatista, defendida desde há muitos anos por váriasfacções da Frente para a Libertação do Enclave deCabinda (FLEC), é alimentada pela perspectiva deviabilidade financeira. Pela mesma razão, contudo,nenhum governo angolano alguma vez poderia aceitar a secessão de Cabinda.

Receitas petrolíferas crescentes erecuperação no pós-guerraA ‘maldição dos recursos’ não é inevitável. Na realidade,Angola neste momento tem uma oportunidade semprecedentes para ultrapassar o seu legado de guerra. Em primeiro lugar, os acordos de paz de Abril de 2002consagraram a vitória militar do governo sobre a UNITA,deixando pouca margem aos derrotados para um regressoà guerra no curto ou médio prazo.

Em segundo lugar, o rápido aumento da produçãopetrolífera e das receitas governamentais nos próximosanos criará condições excepcionalmente favoráveis para areconstrução, o desenvolvimento e a redução da pobreza –se estes recursos forem bem geridos e mais bem utilizadosdo que no passado. Após as grandes descobertas de novasjazidas de petróleo em águas profundas ao largo da costaangolana em meados da década de 1990, os investimentosactualmente envolvidos irão mais do que duplicar aprodução petrolífera nos próximos anos, fazendo-aascender a 2.2 mil milhões b/d em 2008. Isto colocará aprodução petrolífera de Angola quase ao mesmo nível da da Nigéria, e é bem possível que Angola acabe porsuplantar a Nigéria como principal produtor petrolífero da

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África sub-saariana. Os benefícios potenciais são mais doque evidentes, considerando que Angola possui apenascerca de um décimo da população da Nigéria.

Os benefícios directos para os angolanos da actividadepetrolífera são, no entanto, muito limitados. Sendo umaindústria capital-intensiva, emprega apenas cerca de 15.000 angolanos. As ligações tanto a montante como a juzante, a indústrias consumidoras de petróleo ou arefinarias domésticas, são igualmente fracas. A importânciaeconómica do petróleo, portanto, reside quaseinteiramente na sua função enquanto gerador de receitasfiscais para o estado. Em 2001, 80 por cento das receitasgovernamentais vinham do sector petrolífero, e esta receitadeverá crescer espectacularmente nos próximos anos,como é mostrado no Quadro 1, baseado em projecçõesfeitas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI).Assumindo preços para o petróleo de 20 dólares e 24dólares por barril, o FMI projecta uma ascensão da receitafiscal do petróleo para mais de 4 mil milhões de dólares em2004, continuando a crescer constantemente a partir daí,atingindo cerca de 8 mil milhões de dólares em 2008.

A qualidade da gestão de recursos será provavelmente ofactor decisivo para determinar se Angola consegue umapaz sustentável de longo prazo ou sucumbe mais uma veza novas formas de conflito, gerado por factores como aincapacidade para desenvolver os sectores não-mineiros daeconomia (e assim criar emprego e fontes de rendimento),a frustração e a raiva perante a continuidade dos altosníveis de pobreza e desigualdade social e/ou rivalidades noseio da elite em torno do acesso à receita do petróleo eoutras oportunidades económicas. Há aqui duas questõesessenciais. A primeira é a questão de saber quais são asprioridades de despesa do governo. A segunda é atransparência na gestão das finanças públicas.

Alocação de recursosNo passado, os imperativos de segurança ditavam queproporções extremamente elevadas das despesasgovernamentais fossem dirigidas para a defesa esegurança. As despesas com defesa e segurança, enquantopercentagem do PIB, atingiram um máximo de 26 porcento (de longe o nível mais elevado do mundo) em 1999,tendo, porém, caído para 7 por cento em 2001 e 2002, oque, apesar de tudo, continua a ser muito alto por padrõesinternacionais. Deve ser sublinhado que estes númerosestarão muito provavelmente sub-estimados, visto queexcluem despesas substanciais na defesa e segurança nãoorçamentadas (que foram feitas fora do quadro do sistemade gestão financeira do estado). É igualmente preocupanteo facto do governo continuar a conceder uma grandeprioridade à defesa e à segurança, que em 2004 receberam32 por cento do orçamento.

Ao longo dos anos, as grandes despesas com a defesa e asegurança desviaram os dinheiros públicos dos sectoressociais, em especial da educação e da saúde, e das infra-estruturas básicas, como as estradas e o abastecimento deágua. Todos eles são sectores cruciais para o crescimentoeconómico, a criação de emprego, a redução da pobreza eo crescimento do bem-estar humano. Tem havido algumasmelhorias recentes, com a proporção dos sectores sociaisno total da despesa orçamentada a crescer de 9 por centoem 1999 para 22 por cento em 2002 – estes númerosseriam muito mais baixos, porém, se a despesa não-orçamentada fosse incluída, pois apenas uma parte muitopequena (se alguma) dessa despesa vai para a saúde, aeducação ou outros serviços sociais. É também importantenotar que, nos sectores sociais, a alocação de recursos temsido enviesada por interesses de elite, tais como ofinanciamento de bolsas no estrangeiro e evacuação

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médica para o exterior, à custa das necessidades maiselementares da população (cuidados de saúde primários e educação básica).

O problema da transparênciaA segunda grande questão é a falta de transparência dasfinanças públicas. Graças a ela, não é totalmente claro qualo montante de receita recebido pelo governo, nem como éque é gasto esse montante. De acordo com as estimativasdo FMI, em 2003, 31 por cento das despesas do governoforam feitas fora do orçamento, ou seja, executadas fora dasregras e procedimentos para pagamentos estabelecidospelo governo, não tendo sido devidamente registadas nascontas governamentais. É este o caso de 36 por cento dasdespesas governamentais entre 1998 e 2002. Além disso,para o destino dado a 11 por cento da despesa feita entre1998 e 2002 não se encontra qualquer explicação registada.Esta é a discrepância (calculada pelo FMI) entre a despesaconhecida do governo (registada e não-registada) e a receitaconhecida, incluindo o financiamento.

Existem outras questões de transparência intimamenteligadas às receitas governamentais e à dívida externa. Noque diz respeito à receita, aparecem grandes discrepânciasnos dados relativos aos impostos sobre o petróleo. Esteproblema resulta em parte do facto de os impostos dascompanhias petrolíferas (e os ‘bónus de assinatura’ para novos blocos petrolíferos) por vezes não seremdirectamente pagos ao Tesouro mas passarem por contasoff-shore detidas pela companhia petrolífera estatal, aSonangol. Os atrasos da Sonangol no pagamento deimpostos ao Tesouro e a sua não indexação (em relação ao dólar), num contexto de elevada inflação interna,resultaram em grandes perdas para o estado. Além disso, o facto das contas da Sonangol nunca terem sido alvo deuma auditoria independente faz com que seja impossívelverificar se todos os impostos pagos pelas companhiaspetrolíferas acabam por chegar ao Tesouro.

No que se refere à dívida externa, o governo angolano, nadécada passada, recorreu a empréstimos garantidos pelopetróleo para cobrir os seus substanciais e persistentesdéfices. No final de 2000, existia um formidável volume decerca de 5 mil milhões de dólares destes empréstimos(representando cerca de metade do total da dívida externade Angola), que estão a ser pagos com carregamentos depetróleo expressamente destinados ao efeito. Muitas vezesestes empréstimos, pedidos pela Sonangol em nome doestado, não são registados na base de dados de dívidas dogoverno e têm sido usados para despesas extra-orçamentais.

A falta de transparência dificulta a tarefa do governoangolano para mobilizar apoio internacional destinado àreconstrução. Há o sentimento entre os países doadoresque, tendo em conta a escala das suas receitas petrolíferas,o governo poderia fazer mais pela sua própria população eque, no mínimo, deveria ser capaz de explicar devidamentea utilização dos seus recursos. Em jeito de comparação,devemos lembrar que a discrepância inexplicada entre asreceitas conhecidas e o financiamento, de um lado, e a

despesa registada, do outro, que atingiam a média de 490milhões de dólares por ano entre 1998 e 2002, é maior doque a ajuda externa ao desenvolvimento em termos brutos(359 milhões de dólares por ano entre 1997 e 1999).

A falta de transparência significa ainda que o governo nãopode fornecer de forma credível os dados necessários paranegociar no Clube de Paris a reestruturação da grandedívida externa de Angola, que em Dezembro de 2002incluía 5.3 mil milhões de dólares de créditos em mora.

Gestão de recursos e corrupçãoA par do fraco sistema de auditoria governamental, aausência de transparência nas receitas, despesas e dívidacria condições propícias ao florescimento da corrupção. As suspeições e as acusações abundam. Em Dezembro de2000, as autoridades francesas prenderam um homem denegócios franco-brasileiro, Pierre Falcone, e Jean-ChristopheMitterrand, filho do antigo Presidente francês, sob aacusação de tráfico de armas, o qual estaria relacionadocom um negócio de armas-por-petróleo com Angola em1993. As acusações foram depois retiradas por razõesprocessuais, mas o ‘Angolagate’, como ficou conhecido,ajudou a criar uma aura de suspeição em torno do mundoopaco dos empréstimos garantidos com petróleo, finançascomerciais e contratos de armamento de Angola. Um novoescândalo eclodiu em 2003, quando o governo angolanonomeou Falcone, ainda sob investigação e proibido deentrar em França e nos Estados Unidos, seu representantena UNESCO. As investigações continuam.

Uma outra controvérsia surgiu no início de 2002, em tornodo destino dos empréstimos garantidos com petróleousados na reestruturação da dívida bilateral de Angola com a Rússia. Suspeitas relativas a estas transacçõeslevaram as autoridades judiciais suíças a abrir um inquérito,que revelou que centenas de milhões de dólares tinhamsido pagos nas contas bancárias particulares de

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funcionários superiores angolanos (incluindo o chefe deestado) e homens de negócios estrangeiros, à custa dosestados russo e angolano. Várias contas foram congeladas.

Não surpreende, por isso, e dados estes graves incidentes,que Angola seja comumente vista como um dos paísesmais corruptos do mundo: ocupava o 124º lugar, numconjunto de 133 países, no índice de percepções decorrupção da Transparency International em 2003.

Num sentido mais alargado, indo para além da fraudedeclarada, a corrupção abarca uma variedade de práticasque, num sistema caracterizado pela ausência ou nãoaplicação de regras e procedimentos claros, permite aindivíduos bem relacionados ter acesso privilegiado arecursos e benefícios, à custa dos interesses mais gerais dasociedade. Em Angola, onde o nepotismo tem sido umadas estratégias centrais na conservação do poder político,tais práticas têm sido comuns, em particular no que serefere aos diamantes e às terras agrícolas comerciais. Acorrupção é generalizada a todas as camadas sociais e écomum em muitas relações quotidianas, por exemplo entreprofessores e estudantes e entre a polícia e os cidadãos. Éusual em muitas transações pedir uma gazosa, ou seja, umsuborno, embora esta denominada pequena corrupçãonão seja apenas uma questão de imitação dos funcionáriossuperiores pelos inferiores, mas uma estratégia desobrevivência adoptada pelos funcionários angolanos, quesão extremamente mal pagos.

Claro que a corrupção não existe num só sentido. Envolvetanto o ‘corruptor’ como o ‘corrompido’, e, como mostram o Angolagate e outros escândalos, tanto os estrangeiroscomo os angolanos se encontram nela profundamenteenvolvidos. Por esta razão, a acção internacional paraimpedir o conluio de elementos criminosos internacionaiscom funcionários governamentais corruptos é crucial, deforma a impedir que se desviem ilicitamente recursos depaíses onde o quadro institucional para evitar, detectar epenalizar a corrupção é débil. Mas em última análise aquilode que Angola precisa é defender-se a si própria, com ainstauração de um quadro institucional daquele tipo,incluindo rigorosos sistemas no Tesouro, contas públicas,encomendas públicas e auditoria, o efectivo escrutínio dasfinanças públicas pela Assembleia Nacional e um sistemajudicial independente.

DiamantesPara além do papel que desempenharam no financiamentoda UNITA durante os anos 90, os diamantes têm sidotambém uma das principais fontes de enriquecimento dos funcionários superiores governamentais e dos oficiaismilitares na última década. O regime atribuiu concessõesdiamantíferas como recompensa pela lealdade, criandoclássicas situações de busca de renda (rent-seeking) em que os concessionários angolanos agem como ‘parceiros’de companhias estrangeiras, partilhando os lucros, aomesmo tempo que estas arcam com todos os custos deprospecção, desenvolvimento e operação (e portantotodos os riscos).

Entretanto, o contrabando de diamantes continua a ser umsério problema: o Mecanismo de Monitorização de Sançõesdas Nações Unidas contra a UNITA estimava que, em 2000,cerca de um terço do estimado mil milhão de dólares dediamantes exportados de Angola fossem contrabandeados,incluindo cerca de 100 milhões de dólares em diamantescom origem na UNITA e 250 milhões de dólares noutrosdiamantes ilegais. Apesar de ter subido ligeiramente nosanos mais recentes, a receita governamental oriunda daindústria diamantífera continua baixa.

A corrida à riqueza diamantífera, que tem sidoprincipalmente conduzida por estrangeiros, tem geradoressentimentos entre a população local lunda-chokwe, nas províncias ricas em diamantes de Lunda Norte e LundaSul. Isto reflectiu-se na ascenção de um partido regional, oPartido da Renovação Social (PRS), que ficou em segundolugar em ambas as províncias (atrás do MPLA, mas à frenteda UNITA) nas eleições parlamentares de 1992.

O papel dos actores externosDevido à tradicional natureza destrutiva do antigoenvolvimento externo em Angola, os estrangeiros estãomal colocados para influenciar no bom sentido as práticasde gestão de recursos. Em geral gozam de poucacredibilidade no país: a maior parte dos angolanos assumeque o envolvimento estrangeiro é inteiramente motivadopelo desejo de aproveitar o petróleo, os diamantes e osoutros recursos do país.

Como é óbvio, isto é completamente verdadeiro para asempresas multinacionais envolvidas em Angola. Pelaprópria natureza dos seus interesses comerciais (e o seureceio de perderem concessões mineiras ou licençascomerciais), encontram-se numa posição frágil paraquestionar as políticas ou práticas governamentais. Muitos diriam que, de qualquer maneira, esse não é sequer o seu papel.

No entanto, grandes empresas internacionais têm sidopressionadas pelo mundo desenvolvido para agir noquadro de normas de responsabilidade social empresarial(RSE). A maior parte das grandes empresas internacionais aoperar em Angola tentaram cultivar uma imagem de RSE,envolvendo-se em acções filantrópicas de pequena escala.Num caso perverso, certas acções filantrópicas tomaram aforma de apoio à Fundação Eduardo dos Santos (FESA), umorganismo de objectivos supostamente caritativos mascuja principal função é a promoção da boa imagem dochefe de estado. A maior parte das companhias petrolíferascanalizam a sua assistência filantrópica através de um‘fundo social’ gerido pela Sonangol (um denominado‘bónus social’ tem de ser pago a este fundo, a par dosbónus de assinatura pagos ao estado por cada novo blocopetrolífero), enquanto que outras financiam projectospatrocinados por ONGs e agências da ONU, paraactividades que vão desde a desminagem a projectos dedesenvolvimento comunitário localizados. Embora muitasdestas actividades sejam valiosas, em termos financeirosrepresentam uma fracção minúscula dos lucros que estas

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companhias retiram (ou tentam retirar) dos seusinvestimentos em Angola, e também não se dirigemdirectamente às questões de gestão de recursos que emúltima análise são mais imporantes para o bem-estar dopovo angolano.

As iniciativas que a nível internacional vêm sendo tomadaspara tentar parar o comércio dos denominados ‘diamantesde sangue’ e promover a transparência na indústriapetrolífera têm tido maior alcance. Embora ambas asiniciativas abranjam todo o mundo, foram fortementeinfluenciadas pela situação em Angola.

No que se refere à primeira iniciativa, o trabalho da ONGGlobal Witness, sediada na Grã-Bretanha, ajudou a reforçara implementação das sanções da ONU contra a UNITAimpostas em 1998 (uma proibição de compra dediamantes angolanos não-oficiais e o congelamento dascontas bancárias da UNITA). Embora não tenham sidototalmente eficazes, os esforços para tornar realmenteefectivas as sanções, como o estabelecimento de umregime de monitorização, contribuíram para uma subidanos custos de transacção da UNITA, que assim viudiminuídos os seus recursos para a guerra.

Significativamente, isto foi acompanhado de uma alteraçãono papel desempenhado pela De Beers, a companhia quecontrola cerca de 65 por cento do comércio mundial dediamantes em bruto. Durante os anos 90, a De Beerscomprara sistematicamente diamantes de contrabando dezonas de conflito em África, incluindo Angola, de acordocom a sua política de actuação como comprador de últimorecurso, um papel que assumira desde os anos 30 paraestabilizar o mercado mundial de diamantes. Receosa de setornar num alvo dos consumidores mundiais, em 2000 a DeBeers decidiu tomar uma posição firme contra osdiamantes de sangue, e juntou-se à campanha TransacçõesFatais, para acabar com o contrabando desses diamantes,através da introdução do Sistema de Certificação doProcesso de Kimberley. O sistema foi finalmente lançadoem Janeiro de 2003, após três anos de negociações entregovernos, a indústria diamantífera e ONGs, embora tanto aDe Beers e as ONGs tenham criticado a incapacidade paramontar um mecanismo de monitorização eficaz eindependente, o que pode debilitar fatalmente acredibilidade do programa.

Pouca ou nenhuma atenção foi dada entretanto àsquestões de gestão de recursos relativas à indústriadiamantífera angolana, tais como a natureza patrimonialdas concessões de diamantes e o potencial para conflitoentre interesses externos (concessionários angolanos ecompanhias mineiras e comerciais estrangeiras) ecomunidades locais nas zonas ricas em diamantes.

Para além da questão dos diamantes de sangue, o principalalvo da atenção internacional tem sido a necessidade dedivulgação integral dos contributos fiscais e royalties dascompanhias petrolíferas e mineiras nos países em vias dedesenvolvimento. Internacionalmente isto tem sidodefendido pela campanha Publique o Que Paga (PWYP, nasigla em inglês), uma coligação de ONGs, e pela Iniciativa

de Transparência das Indústrias Extractivas (EITI)promovida pelo Primeiro-Ministro inglês, Tony Blair. Noentanto, consultas entre governos e companhiaspetrolíferas e mineiras têm resultado numa rejeição deum quadro internacional de obrigações, tal como opedido pela PWYP, que exigiria das companhias adivulgação de todos os seus pagamentos.

É improvável que um programa voluntário, tal comopreconizado pela EITI, pudesse vir a ter algum efeitoprático, pois as companhias individuais não arriscarão adivulgação dos seus pagamentos a não ser que as suasrivais sejam obrigadas a fazer o mesmo. Na realidade, ospotenciais riscos de divulgação voluntária individualforam bem sentidos por uma companhia petrolífera, aBritish Petroleum, em Angola, em 2001. Quando a BPdecidiu unilateralmente publicar o valor dos impostospagos ao governo angolano, a Sonangol acusou acompanhia de quebrar cláusulas de confidencialidade nos seus acordos e ameaçou terminar os seus contratos.

A divulgação integral dos contributos fiscais seria apenasmeio caminho na melhoria da transparência. Emboraajudasse a clarificar qual a receita recebida pelo estadoangolano, não resultaria necessariamente numa gestãotransparente desses recursos. Para esta questão maisgeral, o FMI tem tentado implementar reformas na gestãodas finanças públicas, especialmente através de dois‘programas monitorizados’, em 1995 e 2000-01. Ambos se revelaram um fracasso, em grande medida devido à incapacidade de orçamentar todas as despesas que foram feitas.

Ao longo dos anos, grandes e crescentes receitaspetrolíferas têm permitido ao governo angolano, aocontrário dos governos de outros países pobres africanos,manter à distância os condicionamentos do FMI e evitarreformas fundamentais na gestão das finanças públicas,apesar de sérios desiquilíbrios macro-económicos e dagrande dívida externa. Esta influência externa, já frágil,tornar-se-á ainda mais fraca com o crescimento, nospróximos anos, das receitas do petróleo. Em últimaanálise, as mudanças fundamentais na gestão de recursosem Angola não surgirão do exterior mas do interior, àmedida que os angolanos forem reivindicando o seudireito a beneficiar da exploração dos recursos naturais do seu país.

Contudo, ao fornecer acesso à informação e maiorconsciência da natureza dos problemas que os paísesricos em recursos enfrentam, a campanha internacionalpró-transparência pode ajudar os que dentro do país (sejano parlamento, na imprensa, nas igrejas, nas associaçõesprofissionais, nos sindicatos e nas ONGs) começam aexercer pressão no sentido de uma transparência total e de uma melhor utilização dos crescentes recursosdisponíveis para a reconstrução e a redução da pobreza.

53O papel da gestão de recursos na construção de uma paz sustentável

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Os desafios dedemocratizaçãoem Angola

Filomeno Vieira Lopes

Ocontrole do estado e das grandes riquezasmineiras sempre esteve na base dos longosconflitos que têm afectado Angola desde a luta

pela independência nacional até a guerra separatista emCabinda que continua até hoje. Todos os acordos de paztentaram essencialmente resolver a questão do exercíciode poder e de regime político. Na independência em 1975foi declarado um regime de partido único, onde acidadania foi suprimida, não havendo qualquer espaço aodesenvolvimento democrático. Quando o fim da GuerraFria provocou uma onda de democratização nocontinente Africano, Angola não ficou para atrás. Uma dastraves mestras das negociações políticas exaradas nosAcordos de Bicesse foi a democratização do país, através deeleições que se realizaram em Setembro de 1992. Aatitude de ‘quem vence, vence tudo’ e a contestação àvitória do Movimento Popular da Libertação de Angola(MPLA), num contexto em que os exércitos partidários nãotinham sido desarmados, nem existiam órgãos arbitraisinternos consolidados conduziu a retoma da guerra. Ofacto de o conflito entre o governo do MPLA e a UniãoNacional pela Independência Total de Angola (UNITA) tersido terminado finalmente em 2002 por meios militares,significa que a negociação política e o processodemocrático ainda não foram devidamente consolidadoscomo normas geralmente aceites para a gestão do estado.Nesta perspectiva, a criação de uma verdadeirademocracia participativa continua a ser o eixofundamental na construção e consolidação de paz.

A contenção democrática durante o conflito pós-eleitoralDurante a guerra pós-eleitoral, o governo aludia que arestrição à abertura democrática então iniciada decorria do facto natural do conflito armado obrigar o governo amedidas excepcionais. Apesar de nunca ter sido declaradoo estado de emergência, o governo enveredou por umconjunto de atitudes, medidas e omissões que dificultaramo aprofundamento do regime democrático que sepretendia estar a ser defendido contra o opositor armado.

Ambas as forças justificavam a violação dos direitoshumanos pela natureza do conflito cuja radicalizaçãomútua conduziu, de forma particular, a violação daspróprias convenções internacionais, nomeadamente, na mobilização indiscriminada de crianças para acçõesmilitares. Também a violação dos direitos humanos fora do teatro de guerra era tolerada. Forças militares eparamilitares, forças policiais e políticos afectos ao podergozaram de impunidade à pretexto de que não se poderia quebrar a unidade. As atitudes governamentaisvisaram de forma particular os jornalistas independentesque foram levados à barra dos tribunais por reportaremnotícias contra a corrupção e ainda intimidados, algunsmesmo assassinados, por reportarem notícias de caráctermilitar ou ditas de segurança. Um caso que apaixonou aopinião pública foi a ofensiva governamental contrajornalistas e jornais que publicaram uma entrevista de

Filomeno Vieira Lopes é economista de

profissão e também activista político.

É secretário para as Relações

Exteriores, Assuntos Parlamentares e

Cívicos do partido político Frente para

a Democracia (FpD), estando envolvido

num vasto leque de iniciativas da

sociedade civil.

O povo a votar nas eleições de Setembro de 1992

Fotografia: Guus Meijer

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Jonas Savimbi, o líder da guerrilha, dada a Voz da Américaem Março de 2001.

Medidas impedindo a formação e desenvolvimento dasactividades de associações de carácter cívico como aAssociação Justiça Paz e Democracia (AJPD) bem como a alteração das leis do direito de antena e de resposta dos partidos políticos (1995) dificultaram a participaçãopolítica destes e a consequente mediatização das suasposições nos grandes órgãos de difusão que são pertença do estado. As associações cívicas eram acusadas pelo regime de antipatrióticas (por acolherem os relatórios sobre direitos humanos de organizaçõesinternacionais) de trabalharem ao serviço do ‘inimigo’ e por serem politicamente da oposição, alegações quecriavam um ambiente de intimidação e dava campo aacções musculadas da segurança de estado contra os seus dirigentes.

O direito constitucional de manifestação transformou-sepraticamente em ‘decreto’ de autorização policial,registando-se ao longo desse tempo várias prisões demilitantes políticos por manifestarem esse direito. Toda a oposição ao governo com capacidade de influenciar a massa de cidadãos era tomada como ‘forma de facilitar a penetração do inimigo’. Por outro lado, o governo foiincapaz de implementar as instituições constitucionais e legais ligadas a defesa fundamental dos direitos doscidadãos como o Tribunal de Contas (só implementadoem 2002), o Tribunal Constitucional, a Procuradoria Geral

da República, o Provedor de Justiça e Alta AutoridadeContra a Corrupção. Também os órgãos de maiorequilíbrio político-social consignados na revisãoconstitucional de 1992 como O Conselho Nacional deConcertação Social e O Conselho Nacional deComunicação Social não funcionam. Tais ‘lacunas’,omissões e infuncionalidade propositados adicionadas a submissão do poder judicial ao ‘comando único’, àpretexto da situação de guerra, completam a malha derestrições a uma verdadeira emergência democrática ecompõem um círculo coerente de bloqueamento doprocesso democrático.

Este clima de contenção democrática induziu certoscidadãos a formularem a ideia de que, no contextoangolano, onde emergiu uma classe de podersubordinada a vivência da guerra, a paz era indispensávelpara a emergência da democracia, o que fez com que o movimento político e social lutasse pela paz comoprioridade. O optimismo radicava no facto de ser evidenteque a guerra era um forte pretexto para que se nãoaprofundasse a democracia que pouco mais significavaque a existência de uma constituição, um conjunto de leisformais, um parlamento multipartidário e de alguns títulosde jornais independentes bem como a emergência tímidade algumas associações de carácter cívico.

Ao longo da guerra observou-se uma atitude manifesta doMPLA de consolidar a sua posição, quer através duma maisestreita partidarização das instituições e da sociedade,

55Os desafios de democratização em Angola

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quer através da privatização da economia pública para acamada detentora de poder político. Tais fenómenosatrasaram ainda mais a emergência dum estadodemocrático no pós-guerra.

As tendências do pós-guerra Com a assinatura do Memorando de Luena entre o governoe a UNITA, em Abril de 2002, a nação testemunhou a pazdos bravos, a paz militar, permitindo o calar das armas. Naverdade, estas calaram-se face a derrota militar duma daspartes sem um cessar-fogo sob guerra activa prenunciadorduma negociação política nem como resultado directo eexplicito da luta então desenvolvida pelos sectores anti-guerra da sociedade civil e dos partidos políticosdemocráticos. A redução da paz á lógica militar, dois anosapós o Memorando, vem dificultando o desenvolvimentodo processo de democratização pois este está entrelaçadocom a paz social, condição que torna reciprocamenteefectiva a democracia. A falta de vontade política, detransparência e sinceridade para uma paz efectiva é aliáspatente na prevalência da situação de guerra que aindadecorre em Cabinda.

De outra forma, o atraso acima observado nademocratização com as restrições acima referidasacrescentadas ao facto de ter sido no período da guerraque se observou no essencial a transferência dapropriedade do estado para um sector estreitamenteligado ao poder político, praticando o estado uma políticade secretismo na gestão das finanças públicas semprestação de contas públicas, quer as do estado quer asdas empresas públicas, vem dificultando a implementaçãoda ‘paz social’. De facto a ausência de democratizaçãoefectiva periga a consolidação da paz, visto que esta só serealiza quando estamos perante uma situação clara deliberdade, de capacidade de partilha, de competiçãopolítica transparente e de justiça social, realidadescontrárias ao controlo absoluto da sociedade pelapartidarização das instituições e privatização do estado.

Dois sintomas começam a observar-se na situação do pós-guerra. A dificuldade em concluir de forma nãoproblemática as tarefas supervenientes do Memorando deLuena como o processo de desmobilização e reintegraçãosocial dos militares, o não desarmamento da populaçãocivil e a própria participação da UNITA em cargos públicos,bem como o ressurgimento da intolerância política,patente em vários pronunciamentos dirigidos ao governode militares e políticos da UNITA; por outro, indiciam-sereacções do povo, algumas das quais violentas, contra apolítica do governo e de abusos das autoridades,nomeadamente, a transferência compulsiva de moradoresde umas zonas para outras devido a interessesimobiliários, a destruição de mercados sem que novasinfra-estruturas sejam construídas, o roubo descarado de agentes policiais dos bens das kinguilas (cambistasinformais) e zungueiras (vendedores ambulantes), e outroscasos de natureza repressiva. Nas províncias, em particular,não há, na generalidade a mínima liberdade política, nem

difusão de ideias em debates, nem questionamento dasmedidas governamentais lesivas da democracia,perdurando o medo como atitude normal dos cidadãos.

Tais protestos, alguns dos quais assumindo já a postura de violência, num contexto de crise multi-facetada(pobreza extrema, cerca de 70 por cento dos angolanosvivendo com menos de um dólar por dia, desempregoacentuado, ausência de investimentos nos sectores sociaiscomo a saúde e educação) é um sinal de ausência daconsolidação da paz, fazendo notar que a falta de um‘pacto’ (reivindicado quer pela sociedade civil, quer pelospartidos políticos da oposição) entre as várias forçaspolíticas e sociais não permitiu criar um quadro deesperança sobre o combate as causas que motivaram aguerra e que motivam a violência, como a fome, asdesigualdades sociais gritantes e a falta de liberdade.Antes pelo contrário o governo persiste na sua atitude deobstaculizar a actividade de organizações de defesa dosinteresses dos cidadãos como as Mãos Livres, a SOSHabitat, a associação cívica de Cabinda, Mpalabanda, e aJubileu 2000. Um ponto crucial desta estratégia decontenção da abertura democrática está na não extensãodo sinal da Rádio Ecclésia, ligada a Igreja Católica, a todo oterritório nacional, a menos que, como o exige oPresidente da República, a emissora mude a sua linhaeditorial. A ‘reconciliação nacional’, com efeito, tem estadorestringida nos marcos de certa divisão de cargos políticospara os membros da UNITA, anteriormente em guerracontra o governo.

A política de contenção democrática conduziu adesqualificação do papel dos partidos políticos daoposição (apenas eficiente em contextos democráticos) e a ausência duma sociedade civil activa. Os partidosestando na Assembleia ou fora dela têm sido incapazes detravar a corrupção que grassa no aparelho de estado, deexigir a prestação de contas, de forçar o cumprimento daConstituição através da implementação das instituições aliconsignadas. Sabendo que quer os partidos políticos, quera sociedade civil organizada jogam no teatro político opapel de forças de mediação, pois canalizam os anseios da massa de cidadãos de forma constitucional, a suaincapacidade obriga aquela a confrontar-se directamentecom o regime que lhe aparece sob a forma policialrepressiva. Tal situação vem consolidando a ideia dopartido no poder da necessidade de investir cada vez maisem meios de repressão, o que é patente no OrçamentoGeral do Estado que, ainda para o ano de 2004, atribui 32 por cento a defesa e segurança, percentagem superiora dos EUA e União Soviética do tempo da Guerra Fria.

As eleições e a nova Constituição – um parto difícilOs angolanos apenas votaram uma vez na vida, em 1992,na sequência dos Acordos de Bicesse. A AssembleiaNacional tem maioria MPLA que pode votar qualquer lei aseu favor. Em 1996 votou para uma auto-prorrogação doseu mandato a pretexto da existência da guerra. Apesar da

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guerra ter terminado oficialmente a 4 de Abril de 2002, o partido no poder não quer definir uma data para aseleições à pretexto de que é preciso que se preencham 14 condições necessárias, o que, no seu parecer, não serápossível antes de 2006. Estas condições vão desde aadopção de uma nova Constituição e Lei Eleitoral até arevitalização da economia rural e um consenso nacionalsobre o desenvolvimento de Angola até ao ano 2025. Os partidos da oposição, incluindo a UNITA, e sectores da sociedade civil têm advogado a realização de eleições no ano de 2004 (FpD em especial) ou 2005 para impedir que a Assembleia Nacional tenha mais um mandato sem legitimidade popular e que o MPLA e o Presidentecontinuem no seu estilo autocrático. O facto do Presidentenão consultar os partidos políticos para marcação daspróximas eleições levou já a que os membros da oposiçãona Comissão Constitucional abandonassem este órgão atéque aquela entidade faça a consulta conforme o prescritona constituição.

De facto regista-se um cansaço geral sobre o sistemapolítico de governação e a grande maioria vê nas eleiçõesuma oportunidade de mudança. O grande desafio políticodas eleições, seja qual for a data escolhida, será deassegurar um ‘campo de jogo’ mais equilibrado do que em 1992 – um grande desafio, visto a omnipresença dopartido no poder não só nas estruturas de governo e deestado mas em todas os sectores da sociedade. Nestecontexto, uma preocupação contínua é adespartidarização das instituições e da sociedademanifesta, pois ainda se regista a presença de células dopartido no poder nos locais de trabalho, sobretudo nosector estatal, e o controle directo pelo partido dasComissões de Moradores e Coordenadores de Bairro –situações que estão a ser desmanteladas só parcial epaulatinamente. Também a partidarização da Justiça, daPolícia e de outros serviços de estado, empresas públicas,sector bancário, clubes desportivos, fundações, etcconstituem um obstáculo a ser superado.

Em Janeiro de 2004, a Comissão Constitucional aprovou já os princípios sobre os quais foi elaborado umAnteprojecto de Constituição por uma equipa técnica. O anteprojecto corporiza um modelo presidencialista degovernação, sem quaisquer contrapoderes: “O Chefe deGoverno é o Chefe de Estado, o Chefe do Governo e oComandante em Chefe das Forças Armadas” (artigo 47º do Anteprojecto de Constituição da República de Angola).Nesse sentido, entre outras competências, nomeia eexonera os Governadores Provinciais e do Banco Nacional,as entidades judiciais, bem como orienta a sua acção, edissolve o Parlamento. Entretanto, “A República de Angolaé um Estado unitário e indivisivel que respeita na suaorganização os princípios da autonomia dos órgãos dopoder local e da descentralização e desconcentraçãoadministrativas” (artigo 8º do Anteprojecto). AConstituição não advoga a eleição de governadoresprovinciais mas a nomeação dos governadores é feita sobproposta do partido mais votado na província nas eleiçõeslegislativas que governará de forma desconcentrada, ou

seja, com órgãos locais de representação central. O MPLAcedeu este ponto à UNITA que inicialmente pugnava coma demais oposição por eleição dos governadores, comocontrapartida do sistema presidencialista. Só ao nível dopoder autárquico (municípios e comunas) é que os órgãossão eleitos e gozam de descentralização administrativa. Deresto, o Anteprojecto referido (artigo 227º) advoga comoinovação a existência dum Conselho Nacional para osAssuntos Locais, órgão de carácter consultivo e nãopermanente da Assembleia Nacional.

Sem democratização não há paz socialPode concluir-se que o processo democrático em Angola atravessa um momento difícil e perigoso face ainterdependência entre paz e democracia, onde qualquerdos termos não consegue realizar-se. De facto a guerraforneceu os elementos de contenção do processodemocrático que permanece através da ideia de que ovencedor militar deve conformar o sistema político como entende.

O processo democrático está incompleto e de certa forma bloqueado, visto que se regista um défice naimplementação de instituições constitucionais e aprotelação da concorrência política através do processoeleitoral, permanecendo uma estrutura autocrática. Omesmo pode ser observado na existência de sistemas decoerção e arbitrariedade, bem como num crescendo damilitarização da vida social que dificulta a existência deassociações e sindicatos e vem suscitando o aparecimentode motins e o germinar da violência. Há falhas na partilhados recursos e do poder, dada a situação prevalecente deum partido-estado e da concentração da riqueza numaminoria política. O estado actual é na realidade umapêndice do partido no poder, que o absorve, por seuturno, através dum sistema oligárquico (‘cleptocrático’)não declarado. O ‘défice democrático’ também é visível noimobilismo da Assembleia Nacional e na sua incapacidadede ter iniciativa legislativa e de fiscalizar a acção doexecutivo. Finalmente, é evidente na inexistência de umdiálogo permanente e inclusivo, capaz de dar origem auma proposta de superação dos grandes desafiosnacionais, entre os quais a reconciliação nacional genuína,a luta contra a pobreza, a degradação do ambiente e odesenvolvimento sustentável.

Em Março de 2004 trinta partidos políticos, incluindo aUNITA, e associações cívicas, sob o patrocínio da OpenSociety-Angola, lançaram uma campanha ‘Paz semdemocracia é fantasia’. A campanha não se limita a capital, mas realiza encontros e manifestações nasprovíncias, desde Cabinda até Huambo e as Lundas, nabase dum Manifesto pela Democracia, que declara, entreoutras coisas, que “hoje (…) o exercício das liberdades e direitos apresentam-se como os maiores desafios para o povo angolano.”

Se os angolanos pretendem preservar e consolidar a paztêm que ter a coragem de enfrentar estes desafios e detornar real o processo democrático.

57Os desafios de democratização em Angola

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A mulherangolana após ofinal do conflito

Henda Ducados

Quatro décadas de um conflito violento infligiramdanos pesados à população angolana eespecialmente às mulheres. O diferente impacto

do conflito e da pobreza em Angola sobre os dois sexos são evidentes nos indicadores inferiores dedesenvolvimento humano das mulheres em comparaçãoaos homens. Com a falta de segurança humana ainda umarealidade quotidiana, as mulheres e crianças constituem os grupos mais vulneráveis e, normalmente, a par dosidosos de ambos os sexos, constituem cerca de 80 porcento da população internamente deslocada. Após aguerra, as mulheres angolanas enfrentam novos desafios e lutam para vencer estes obstáculos e participarplenamente na sua sociedade. Contudo, parece que ogoverno não conseguiu até o momento responder àsmudanças no papel da mulher angolana e àstransformação de relações entre os sexos.

A participação das mulheres na guerraA história recente das mulheres angolanas permaneceamplamente desconhecida do discurso popular sobre aguerra. Os caminhos percorridos por mulheres no papelde soldados, líderes, activistas, sobreviventes e vítimas deuma das guerras mais trágicas do continente africanoainda têm de ser discutidos e suas implicações percebidas.

A Organização da Mulher Angolana (OMA), criada em 1962como ala feminina do Movimento Popular de Libertaçãode Angola (MPLA), teve uma influência crucial no apoio àsforças guerrilheiras dentro e fora de Angola. Os relatóriossobre as actividades da OMA mostram que seus membroscontribuíam para a produção de alimentos para o exércitoguerrilheiro, organizavam campanhas de alfabetização e de cuidados básicos de saúde e transportavamarmamentos e alimentos a grandes distâncias. Não háestimativas do número de mulheres que participavam doexército guerrilheiro da MPLA, mas os testemunhos oraisindicam uma quantidade substancial.

A OMA encarava o envolvimento e participação da mulherna guerra da independência como sendo “um campo deprova em que todos os participantes eram exigidos a dar o máximo do seu esforço e desenvolver seus talentos ehabilidades”. Como em outras organizações femininas, aliderança da OMA incluía principalmente mulhereseducadas com laços familiares fortes ou maritais com aliderança política do partido. Não obstante, a maioria dosmembros eram mulheres comuns de todos antecedentessociais e étnicos, que se envolveram no activismo políticoe no trabalho comunitário. Consequentemente, com aindependência, a OMA ganhou apoio popular suficientepara contar com delegados em todas as províncias eestima-se um total de 1,8 milhão de membros registradosem 1983.

Por sua vez, a Liga Independente de Mulheres Angolanas(LIMA), a ala feminina da União Nacional para aIndependência Total de Angola (UNITA) foi fundada em1973 e também desempenhou um papel importante naluta pela libertação. A versão corrente é que as mulheres

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Henda Ducados é membro fundadora da

Rede Mulher em Angola e Directora

Adjunta do Fundo de Acção Social. Ela tem

mais de dez anos de experiência em

operações de desenvolvimento e gestão

de pesquisa em planeamento estratégico

e programação para os dois sexos.

Mulheres a dançarem após uma reuniãotradicional para a resolução de conflitos no Jango

Fotografia: Margrit Coppé

Page 59: Coordenador do Número: Guus Meijer

que testemunharam o trabalho das alas femininas deoutros movimentos africanos de libertação nacionalinstigaram a criação da LIMA. Em contraste com a OMA, asmulheres que ocupavam posições de liderança na LIMAnão tinham laços de parentesco com a liderança da UNITA,devido ao temor de represálias sobre os maridos se asmulheres fracassassem nos seus esforços.

A actividade das mulheres na UNITA durante a luta pelalibertação envolvia o transporte de materiais, alimentos e armamentos para os homens na linha de combate. Ascargas eram transportadas na cabeça e as distâncias eram longas. Suas actividades políticas consistiamprincipalmente na mobilização de pessoas eespecialmente na adesão dos jovens à luta armada. As mulheres também eram treinadas como activistaspolíticos. Durante a guerra civil após a independência, asmulheres continuaram em actividade em todas as frentese a liderança da LIMA era notada em comícios políticosdentro e fora do país.

O legado da guerraAs mulheres sofreram as consequências directas da guerrade maneiras diversas. Além do grande número demulheres que morreram em consequência de combates,também se reconhece que muitas foram violadas porcombatentes de ambos os lados. Embora os soldadosdevessem proteger a população, muitos aproveitaram-sede sua posição para subjugar as mulheres. O seucomportamento e o impacto sobre as relações de poderentre os dois sexos talvez tenham solapado de forma

durável a confiança da população feminina nessessoldados. Além disso, as mulheres sofreram em maiorproporção com acidentes causado por minas, devido àssuas responsabilidades pela colecta de alimentos. Muitasperderam seus maridos e filhos com a guerra, aumentadoassim o número de mulheres encabeçando lares.

A guerra e seus impacto aumentaram o fardo de trabalho das mulheres, já que elas assumiram umaresponsabilidade maior pelas actividades desenvolvidasnormalmente pelos homens, como a provisão do lar,disciplinar os filhos, construção e reparação de casas,contacto com os líderes comunitários e funcionáriosgovernamentais, e cumprimento das obrigações sociais e religiosas. Muitas continuam a desempenhar estastarefas mesmo em tempo de paz, mormente porque osmaridos morreram ou abandonaram o lar. Os rendimentosdas mulheres no sector informal da economia começaramcausar um sério conflito cultural pondo em causa acapacidades dos homens de ganhar rendimentos e opapel tradicional dos dois sexos na família. Estasmudanças explicam parcialmente a evidência crescente de uma explosão de violência doméstica contra mulherese crianças desde os inícios dos anos 90.

No que concerne ao lar, os longos anos de conflito criaramsituações que dificultam a decisão das mulheres secasarem ou voltarem a casar-se, especialmente se tiveremsofrido abuso sexual. A escassez de homens disponíveispara o casamento também significa que o casamento estáassociado à aceitação da poligamia, que continua a serprática comum e socialmente aceitável em Angola.

59A mulher angolana após o final do conflito

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Quando os homens tinham de combater durante algunsanos numa região diferente, a formação de laressecundários era considerada como legítima.

A interacção de milhares de soldados nas regiões da linhade frente com uma população indigente também teve umtremendo impacto de longo prazo nas relações entre osdois sexos. Por exemplo, as raparigas que se prostituírampara sobreviver durante o conflito podem sofrer de gravesproblemas de saúde, baixa auto-estima ou exclusão socialse engravidaram e/ou contraíram doenças sexualmentetransmissíveis como HIV/SIDA.

Na sequência do Memorando de Luena, o governo acordouum vasto programa de desmobilização, desarmamento ereintegração. Entretanto, contrariamente à recomendaçãodo Banco Mundial e de outras instituições, as combatentesfemininas foram excluídas do recebimento de qualquerbenefício directo, já que o programa cobria somente umnúmero pré-definido de soldados da UNITA e das ForçasArmadas Angolanas (FAA) e não estabeleceu provisõesespecíficas para grupos vulneráveis como viúvas e esposas da UNITA.

As mulheres que foram sequestradas pela UNITAenfrentaram o dilema de deixar ou não os seus maridos da UNITA e voltar aos seus lares originais, onde corriam orisco de serem rejeitadas. Além disto, a integração dospartidários da UNITA é difícil para homens e mulheres, asrelações com os não-partidários da UNITA continuam a serdifíceis, com grandes desconfiadas de parte a parte, ealguns relutantes em dar emprego a partidários da UNITA.

Por outro lado, há indícios de que as mulheres da UNITA,que se embrenharam nas matas durante os anos daguerrilha, sentem agora dificuldade em se relacionar comos homens. As mulheres de áreas urbanas afirmam apreciarpoderem expressar agora mais abertamente os seussentimentos, mas não estão habituadas em fazê-lo; oslongos anos vividos sob um regime de repressão tornaram-nas relutantes em mostrar seus sentimentos publicamente.

Participação na vida política e envolvimentodas mulheres nas iniciativas de pazComo em tantas outras situações de conflito, as mulheresangolanas foram excluídas de uma participaçãosignificativa nas negociações formais de paz entre aspartes em guerra. Nem a OMA, nem a LIMA foram capazesde ter um papel efectivo na promoção do fim da guerra.

A participação mais rumorosa das mulheres na vida política consistiu na promoção de direitos da mulher. Tanto durante como desde o fim da guerra, as mulheresnegociaram constantemente com a liderança política,pressionando para que suas preocupações fossem levadas a sério por políticos e funcionários governamentais. Nopassado, a OMA teve influência decisiva não somente como organização de massa, mas também como umaorganização voltada para políticas dedicadas à luta pelamelhoria da situação legal das mulheres, bem como

para seu fortalecimento económico, e acima de tudo, para a incorporação de questões das mulheres nasprincipais políticas.

Possivelmente, as realizações mais significativas da OMAocorreram na década de 1980. Seus esforços resultaram na introdução do Código de Família e na formulação eimplementação de uma política que proporcionasse olivre planeamento familiar para as mulheres. Os pontosprincipais do Código de Família são o reconhecimento de uniões consensuais a par do casamento, a protecção de filhos nascidos fora do casamento e o incentivo a uma divisão justa de tarefas e responsabilidades de família. A OMA também forneceu assistência técnica àsmulheres e promoveu o debate e discussão de assuntosanteriormente considerados tabus, como o casamentohabitual e o aborto.

E embora a OMA tenha influenciado efectivamente apromoção destas reformas, a realidade é que a maioria das mulheres ainda está lutando para que os seus direitossejam respeitados na prática. E ainda que a OMA continuea ser até hoje um referencial importante do movimentofeminino em Angola, já não é o grupo que lidera arepresentação da agenda da promoção dos direitos dasmulheres. O número de membros entrou em declínio e os laços continuados da organização com o MovimentoPopular pela Libertação de Angola (MPLA) contribuírampara solapar sua credibilidade pública e capacidade deatrair fundos da comunidade internacional. Algunsmembros decidiram criar as suas próprias ONGs comoforma de agir independentemente do partido e têm sido mais activas e engenhosas em responder àsnecessidades das mulheres, através da instigação deprogramas e campanhas de desenvolvimento sobrequestões como direitos de reprodução e vacinação infantil.

É importante observar que algumas organizaçõesfemininas têm se destacado nos esforços de construção de paz. Por exemplo, a Rede Mulher tem advogado pelapaz e realizado uma campanha contra a violência sobre as mulheres, e Mulheres, Paz e Desenvolvimento (MPD)tem sido também actuante na construção da paz. Estasacções contribuíram para formação da plataformafeminina da paz e, o que é mais importante, revelaram que é possível para as mulheres de partidos políticos esectores sociais diferentes juntarem esforços visando omesmo objectivo.

Todavia, o movimento feminino é, em geral, fraco. Comooutros movimentos sociais em Angola, o movimentofeminino carece de capacidade de acção e decoordenação. Muitas ONGs femininas não focalizam seupapel e objectivos, reflectindo uma fraqueza geral dasociedade civil angolana, e o resultado é que têm tidopouca influência nas políticas que poderiam melhorar avida das mulheres. O movimento também tem sidocriticado por seu fracasso em representar os interesses demulheres do povo. A liderança fica muitas vezes nas mãosde mulheres privilegiadas que têm agendas própriasdevido às suas fortes ligações com partidos políticos.

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Uma das razões porque o movimento feminino fracassouem formar uma plataforma comum tem origem no factode que a guerra não teve o mesmo significado para todas as mulheres. As mulheres usaram uma variedade de maneiras para sobreviver. E a realidade social dasmulheres pobres, seja em áreas rurais ou urbanas, diferegrandemente da realidade de mulheres mais privilegiadas.Um número maior de mulheres pobres perdeu seusmaridos e filhos na guerra, ou foram deslocadas paracampos de refugiados. Para essas mulheres resta poucaesperança de melhoria imediata de suas condições devida, considerando o seu baixo nível de educação e o facto de que, politicamente, pouco se faz para lidar com as suas necessidades especiais.

Além disto, as organizações femininas padecem dasmesmas restrições que outras organizações cívicas no que concerne a actividades financeiras e empresariaisindependentemente do governo. O sector nãogovernamental está ainda emergindo e as ONGs não têmexperiência ou capacidade para responder às enormesnecessidades de muitas comunidades. A maioria dasiniciativas cívicas é impulsionada por doadores ao invés decomunidades, que até o momento tendem a implementaractividades humanitárias de curto prazo em detrimentode actividades de desenvolvimento de longo prazo. Neste contexto, os grupos locais necessitam de ajudasignificativa para começar a implementar actividadessustentáveis de longo prazo. Até agora, o fornecimentodesta assistência tem sido deixado, na sua maioria, a cargo de organizações internacionais, contribuindo destamaneira para a grande disparidade entre as capacidadesdos agentes locais e internacionais.

Desafios actuaisHoje em dia, as políticas sociais de Angola continuam a ser dirigidas em grande medida para o sexo masculino. A despeito do reconhecimento dos direitos femininosestabelecidos pela constituição, estes são raramenterespeitados na prática, conforme demonstrado emquestões como o apoio a crianças, em que o governo nãodispõe de mecanismos para assegurar que os homenscumpram com o seu dever paternal. O direito a herança étambém uma área em que as mulheres continuam semavançar, embora este assunto seja mais complexo devidoàs práticas tradicionais que colocam as viúvas em posiçãovulnerável depois da morte de seus companheiros.

O maior obstáculo à realização das provisõesconstitucionais é que a sociedade angolana continuasendo predominantemente uma ‘reserva masculina’ ondeos direitos da mulher são frequentemente violados para apreservação da estrutura patriarcal herdada dos ‘valorestradicionais’ africanos.

Embora mais elevado do que em qualquer outra parte docontinente, o número de mulheres em posições de podere influência permanece claramente inadequado. Embora54 por cento da população seja formada por mulheres,elas estão sub-representadas em todos os órgãos

decisórios. Apenas 34 de um total de 183 parlamentares e3 de um total de 27 ministros do governo são mulheres, eexistem somente duas embaixadoras, três consulesasgerais, e três ministras adjuntas. A participação dasmulheres nos governos locais também é limitada. Estefacto pode ser explicado por muitos factores, incluindosua ausência comparativa da hierarquia dos partidospolíticos e as restrições de tempo que as impedem decompetir em pé de igualdade na esfera política.

As mulheres envolvidas na tomada de decisões nacionaisestão separadas da maioria das mulheres comuns peloestilo de vida, classe e objectivos. E embora muitasmulheres angolanas considerem a criação do Ministério da Família e Promoção da Mulher um avanço real nabatalha pelo espaço político, também se pode entendê-lacomo tendo ajudado a separar as questões da mulher doresto da agenda política do governo. Muitosargumentariam que a liderança do governo não leva oministério a sério, alotando-lhe um dos orçamentos maisbaixos com a consequência imediata de carência de pessoale uma capacidade de actuação limitada.

Os meios de comunicação angolanos também têminfluência, reforçando imagens sexuais estereotipadas demasculinidade, e proporcionando muitas vezes apoioracionalizado para a perpetuação de violência contra asmulheres. As mulheres são exploradas através de imagensdo corpo feminino. Isto pode ser constatado pelos eventosaltamente divulgados em torno da eleição de Miss Angola,apoiados pela Primeira Dama e grandemente apreciadospor muitos governadores provinciais, que em alguns casos subsidiam o espectáculo com vultosas somas dedinheiro público.

ConclusãoA despeito da capacidade de liderança mostrada pormuitas mulheres ao se adaptarem a novas actividadesdurante a guerra, a igualdade plena entre os dois sexos em Angola continua muito distante. Sob certos aspectos, é até desalentador falar em política de igualdade entre ossexos num contexto em que as disparidades sociais eeconómicas são as únicas referências deixadas para asnovas gerações.

Entretanto, há algumas providências que podem seradoptadas desde já. Primeiramente, há a necessidade defazer maiores esforços para analisar e compreender oimpacto nos dois sexos da guerra e do seu legado emAngola. Com isto se construiria uma base para odesenvolvimento de políticas sensíveis à situação dos dois sexos, e que poderia facilitar uma participação maiordas mulheres em todas as esferas da sociedade. Por suavez, tal contribuiria para reajustar as relações entre os dois sexos mais de acordo com as necessidades quer de mulheres quer de homens como uma componentefundamental de um processo de longo prazo dedesenvolvimento pacífico e sustentável.

61A mulher angolana após o final do conflito

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O papel da mídiano conflito e naconstrução dademocracia

Ismael Mateus

Os órgãos de comunicação social em Angolaenfrentam hoje o enorme desafio de setransformarem numa força que trabalha em

benefício da democracia e da reconciliação, depois dedécadas sendo vistos basicamente como instrumentos de luta político-ideológica e de combate aos inimigosmilitares. A importância que os órgãos de comunicaçãosocial assumiram no conflito e controle político deriva dotempo colonial, quando as autoridades portuguesas e osanti-colonialistas do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) transferiram as suas diferenças para asantenas radiofónicas. Vem daí, por exemplo, a história doprograma Angola Combatente, emitido em Brazzaville eouvido então secretamente em várias partes de Angola.

1975-1991: controlando a mídiaDepois da independência, as duas facções passaram a usar formas diferentes de comunicação social parapromover as suas causas. O governo empregou a lógica do‘jornalismo de estado’ decorrente da inspiração marxista-leninista. Salvo nos primeiros anos da independência,quando fervilhava intensamente a flâmula revolucionária,a pressão e a censura não se faziam através da préviaaprovação dos textos. O estilo arcaico do ‘lápis azul’ muitoraramente foi usado; existindo antes uma intervençãodirecta sobre o papel decisório dos editores e chefes dosserviços noticiosos.

Em nome da guerra, os órgãos de comunicação socialforam ‘enxertados’ de elementos que não reuniam asmínimas condições técnicas e éticas para exercerem aprofissão. Contava apenas o critério político. Desde quefossem respeitadas as directrizes políticas, qualqueroperário, qualquer militar, qualquer comissário políticotransformava-se em ‘bom jornalista’. Por outro lado,qualquer jornalista não seria suficientemente bom se nãose inspirasse na ideologia socialista, se não veiculasse osprincípios e as directrizes políticas do poder existente.Uma das facetas mais visíveis do engajamento político dosórgãos de comunicação social, foi a linguagem. A Agênciade Notícias (Angop), o Jornal de Angola, a Rádio Nacionalde Angola e a Televisão Pública de Angola tornaram-se em

62 Accord 15

Ismael Mateus é Secretário-Geral do

Sindicato de Jornalistas Angolanos

(SJA). Trabalhou como redactor-chefe

de órgãos de comunicação social em

Angola e escreve regularmente na

imprensa independente.

Um locutor durante uma emissão em directo deum serviço informativo da Rádio Ecclésia

Fotografia: Chris Armstrong/NiZA

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porta-vozes da retórica política e da agressividade militarcontra o inimigo.

A instrumentalização político-militar dos órgãos foi alógica dominante nos 16 anos que se seguiram àindependência. A utilização da mídia para mobilizaçãopública foi manifesta no Primeiro Seminário Nacional deInformação em 1982, encarregue de definir as linhasestratégicas da comunicação social, que concluiu que “a informação deve trabalhar para que as agressões sul-africanas sejam sentidas, nas suas verdadeiras dimensões,como sendo um problema de todos os angolanos”. Osórgãos de informação estavam cheios de entrevistaspropagandísticas de feitos militares, reportagenstransmitidas até à exaustão para denunciar as agressõesmilitares, e escribas exaltados lançando apelos à defesanacional e ao combate cerrado ‘aos inimigos’ – leia-se aangolanos do lado oposto. Os trabalhos jornalísticosreflectiam o estado da guerra conforme a visão dogoverno, quer para levantar o moral das tropas, quer paracomemorar uma importante vitória ou até silenciar umapesada derrota. Em tempo de maior agressividade, osdiscursos eram mais inflamados, usando-se longos e

agressivos editoriais. Registaram-se episódios de combatesou ataques de que toda a população sabia, com hospitaischeios de feridos, enquanto a comunicação socialcontinuava, tranquilamente, a divulgar notícias deacontecimentos de menor importância ou a destacar as vitórias no campo desportivo.

1991-2002: da liberalização ao retorno à guerraInverteu-se ligeiramente o quadro a partir de 1991 com a conversão do regime ao multipartidarismo. Depressasurgem os primeiros órgãos privados, primeiro osemanário Correio da Semana e depois a rádio LuandaAntena Comercial (LAC). Pena é que esse período tenhadurado pouco menos que um ano por causa do climageral de campanha eleitoral. Uma vez mais, as marcas do conflito estabeleceram as fronteiras da actuação dosjornalistas. A comunicação social estatal (o Jornal deAngola, o programa de rádio Angola Combatente e atelevisão estatal) assumiu um discurso partidarizado, namesma medida que os órgãos oficialmente partidarizados

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da UNITA, a Rádio Vorgan (Voz da Resistência do GaloNegro) e o jornal Terra Angolana.

E se a campanha representou um regresso ao discursopartidarizado na imprensa, o reinício da guerra após aseleições ditou o ressurgimento da linguagem musculada.Assumindo a velha lógica dos meios de comunicaçãocomo veículos ideológico-partidários, os órgãos públicos,pelo partido no poder, e os órgãos afectos à UniãoNacional pela Independência Total de Angola (UNITA)usaram as antenas e o espaço público para o insultorecíproco. Ambas as partes voltaram a recorrer aosdiscursos inflamados: editoriais, declarações de dedo em riste e muita intolerância.

À medida que a guerra foi crescendo, foi-se assistindo aorecrudescer da agressividade na imprensa, abrangendonão só os beligerantes, mas também a mediação e acomunidade internacional. Margaret Anstee descrevevários momentos dessa agressividade, que em muitoscasos se tornou pessoal, como foi o caso da RádioVORGAN: “Entre as muitas observações cuidadosamenteescolhidas, estavam as acusações de que eu era corrupta,paga pelos «Futunguistas» (isto é, a comitiva presidencial),e tinha traído o meu próprio país, Angola, e a confiança daOrganização das Nações Unidas”.

Os militares emitiram comunicados regulares e programasdirigidos às forças armadas na comunicação estatal. Aguerra no Huambo (quartel-general da UNITA), em 1993,proporcionou um momento televisivo de grande horrorcom imagens e descrições horripilantes debombardeamentos, mortes violentas, tratamentosinumanos e outros detalhes. Outros exemplos seseguiram, com relatos telefónicos dos repórteres da RádioNacional nas principais cidades atingidas pela guerra. A única diferença no cenário geral foi introduzido pelaimprensa privada, primeiro com o bissemanário Folha 8,que divulga, entre outras notícias, ataques não veiculadospela imprensa oficial e planos militares das forças armadas.Seguiram-se outros semanários, principalmente o Agora eo Angolense que, gradualmente, foram dando voz àsfaixas da sociedade civil, entre religiosos e políticos, que seopunham à guerra. A par dos esforços da Igreja, é aimprensa privada que ajuda a construir na sociedadeangolana uma consciência crítica em relação à guerra. O ressurgimento da Rádio Ecclésia, afecta à Igreja Católica,em 1997, vai dar novo alento a essa corrente de massacrítica, abrindo os seus microfones à opinião popular.Ainda que o desfecho da guerra não possa ser atribuído ao aumento de uma opinião crítica na sociedade, érazoável admitir que, ao menos, a sociedade conquistouuma maior pluralidade de opiniões no final dos anos 90 e desmistificou o suposto ‘unanimismo popular’ no apoioà guerra, tantas vezes sugerido pelos órgãos públicos da comunicação social.

Os órgãos internacionais de comunicação social passarama ter um papel cada vez maior. Para um acompanhamentomais pormenorizado da situação em Angola, a Voz daAmérica criou um gabinete especial em Luanda e um

programa, chamado Linha Aberta, especificamentedirigido aos angolanos. Sucederam-se agências, rádios ejornais estrangeiros que fixaram em Luanda os seusenviados especiais. É em Portugal que o drama angolanomerece mais manchetes e mais espaço de divulgação.Nalguns casos, as entrevistas, reportagens e comentáriosda imprensa portuguesa acabaram por ter repercussõesde grande impacto em Luanda. Não apenas ao nível daclasse política mas também junto da imprensa privadaangolana que, em determinadas alturas, usa a reposiçãode trabalhos e as citações dos jornais portugueses comoforma de contornar a pressão contra a divulgação denotícias sobre a guerra.

A mídia angolana hoje e a construção da democraciaParadoxalmente, a guerra veio, no entanto, agravar eacelerar a cristalização de um jornalismo mais crítico emais comunicativo. Nos últimos anos da guerra, o própriogoverno e o partido no poder deu mostras de pretenderuma inversão dos slogans militaristas que dominaram operíodo que se seguiu à crise pós-eleitoral de 1992. Nasequência deste longo período ambíguo, há uma pressãosocial crescente para uma comunicação social mais crítica.

O jornalismo veiculado pela imprensa estatal tem sofridomelhorias visíveis, mas não ainda as suficientes para quenão se sinta uma tendência política, nem para afastar avelha experiência da instrumentalização governamental. Oquadro das rádios não tem conhecido grandes alterações,mas prevê-se o aparecimento em breve de novas rádiosprivadas. Ainda está em revisão a Lei de Imprensa,havendo já consenso de que a nova lei abrirá as portas àtelevisão privada. Contudo, existe falta de clareza noconceito de emissões públicas e no entendimento dasdefinições de rádios ‘privadas’ e ‘comunitárias’, nãoexistindo provisões no projecto-lei para a existência deestações de rádio comunitárias. Entretanto, a RádioEcclésia, acusada de ‘terrorismo radiofónico’ pelo governo,em 2003, enfrenta graves obstáculos criados pelasautoridades no que respeita ao seu plano de estender oseu sinal a todo o país.

No sector independente, todas as semanas são publicadoscerca de oito semanários, num esforço verdadeiramentenotável, num país em que não existe indústria de papel eonde uma única gráfica imprime todos os jornais privados.

Infelizmente, não há, exceptuando pequenas iniciativas defraca expressão, imprensa regional. As excepções inclueminiciativas como o boletim comunitário Ondaka, editadopela ONG Development Workshop, no Huambo, emportuguês e língua umbundu. Os jornais privados circulampredominantemente em Luanda e apenas três outrasprovíncias têm rádios privadas (Rádio Morena em Benguela,Rádio 2000 em Lubango e Rádio Comercial em Cabinda)mas elas, na verdade, não oferecem uma efectiva alternativana pluralidade e na liberdade de expressão, tanto ao níveldo mercado concorrencial como ao nível dos conteúdos.

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A qualidade do jornalismo angolano reflecte hoje oslongos anos de silêncios, consentidos ou impostos, daprática de um jornalismo ‘ao serviço da pátria’, ao invés de um jornalismo de interesse público. Nalguns círculosdo jornalismo e do poder político, existe ainda hoje asensação de que o jornalismo se destina a defender ogoverno e de que quem assim não procede, pretendenecessariamente derrubá-lo. A velha prática do controleeditorial instalou-se de tal modo, que se mantém hojeuma luta permanente entre alguns editores, que seprocuram profissionalizar, e chefes de serviços e directoresgerais que insistem em sujeitar as regras do jornalismo aos ditames políticos.

Houve alguns casos de perseguições do governo ajornalistas. O caso mais divulgado foi o de Rafael Marques,que foi ilegalmente detido durante várias semanas em1999, sob a acusação de difamar o Presidente (chamando-lhe ‘ditador’), tendo-lhe mais tarde sido atribuída umapena suspensa de seis meses, depois de um julgamentomanchado por irregularidades. Ironicamente, apublicidade internacional que rodeou este caso acaboupor dar a Marques uma grande margem para criticar ogoverno, tendo-se tornado coordenador do gabinete do Fundação Open Society-Angola.

No momento actual, a comunicação social angolana viveum período de transição. Acabado o período do grandecombate, há necessidade de uma redefinição estratégicaque garanta uma oferta equilibrada de meios decomunicação em todo o país, mas há também questõesde ordem técnica a melhorar.

A crise hoje vivida não se resume exclusivamente àinjecção de não profissionais na classe durante os longosanos de conflito. Há igualmente a considerar o facto denão existirem estruturas sólidas de ensino: não existe,ainda hoje, nenhuma faculdade de jornalismo e só em2003, começou a funcionar um centro de formação.Também não existem carteiras profissionais nem órgãosde auto-regulação da classe, um código de conduta ou leida imprensa. Além disso, ainda subsiste o facto de muitosdos mais bem sucedidos jornalistas serem ‘assediados’pela política ou pela carreira diplomática.

A maior participação da comunicação social nodesenvolvimento democrático do país incluirá a inversãodo entendimento conceptual da ideia de serviço público.Numa comunicação social virada para o desenvolvimento,as prioridades da programação jornalística reorientam-se,também, para os conteúdos informativos e formativos naperspectiva da construção da nação e, no particular, naperspectiva do desenvolvimento local de cada região.

Através da comunicação social pode fazer-se a educaçãocívica dos cidadãos, municiando as pessoas deconhecimentos sobre os seus direitos, deveres e garantias.Através da comunicação social, seja em rádioscomunitárias, jornais regionais ou programas dirigidos detelevisão é possível levar o desenvolvimento aos maisrecônditos pontos do país e é possível criar pontes entreas várias entidades culturais que compõem a emergente

nação angolana. Há que considerar um possível aumentodo uso de línguas indígenas e conteúdos locais, assimcomo um uso mais cuidadoso da língua nacional, oportuguês, incluindo uma formação mais séria dosjornalistas enquanto difusores dessa língua.

Um dos elementos do jornalismo moderno que maiscontribui para a democratização da sociedade é o jornalismode investigação. É um mecanismo valioso de monitorizaçãodo desempenho de instituições democráticas no senso maisamplo, que inclui instituições governamentais, organizaçõescívicas e empresas públicas. Em função do fraco nível deformação dos jornalistas e das exigências do mercado deleitores/ouvintes, os diferentes meios de comunicação socialbuscam e publicam histórias apelidadas de ‘investigação’. Na verdade, estão ainda longe disso, pois acabam por ser um conjunto de informações não confirmadas, em muitoscasos de fiabilidade muito duvidosa, feitas com base emfontes anónimas. Por outro lado, algumas das melhoresoportunidades foram desperdiçadas. Quando o FundoMonetário Internacional (FMI) descobriu que grandes somasde dinheiro desapareceram dos cofres do estado, foi a BBC da Grã-Bretanha que divulgou essa informação.

Há claramente no jornalismo angolano ausência deverdadeiras reportagens de investigação, embora osjornais, sobretudo estes, divulguem amiúde alegadoscasos de corrupção, injustiça e abusos de poder. Regrageral, tais acusações não têm grandes consequências, não só porque é duvidosa a vontade política de investigaros indícios avançados pela imprensa, mas também porque estruturalmente as informações veiculadas pelacomunicação social carecem de um trabalho maisdetalhado e que dê margens de esquiva ao poder político.O grande contributo da comunicação social para ademocratização da sociedade, nesta fase do pós-guerra,está ainda por ser prestado, sem desprimor, obviamente,para o trabalho de denúncia que já vem sendo feito.

Sendo a imprensa no geral um suporte essencial para ademocratização do país, o crescimento desajustado criadistorções na implantação da liberdade de imprensa e no exercício da liberdade de expressão dos cidadãos.

ConclusãoO desafio que se coloca agora à comunicação socialangolana e também ás instituições que se decidirem aapoiar a democracia em Angola é enorme. Contudo,apesar de existirem estruturas profissionais como oSindicato dos Jornalistas Angolanos (SJA) e o Centro deImprensa em Luanda, estas necessitam de ser reforçadas.Juntamente com a fraca formação profissional, estasituação restringe a capacidade da comunicação socialpara dar uma resposta imediata a este desafio. Mas o país, saído da guerra, atolado em casos de corrupção etentando soerguer-se com novos valores éticos e morais, não tem tempo para o longo prazo de uma tarefa tão ingente.

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Paz ereconciliação em Angola

Carlinda Monteiro

Há muito que se reconhece a reconciliação como umelemento fundamental na construção de uma pazjusta e duradoura. Não existem fórmulas específicas

para processos de reconciliação. O significado que osindivíduos e grupos atribuem às experiências de violência elidam com o impacto causado por elas está intrinsecamenterelacionada com contextos sociais e culturais específicos.Em Angola, a maioria da população foi severamenteafectada pela guerra e como consequência o medo e a desconfiança permeiam hoje as relações entre osangolanos. Muitas pessoas se sentem permanentementeameaçadas e desenvolveram mecanismos psicológicos de defesa para enfrentar o medo. Estas respostas sãoreforçadas por valores culturais e de educação, que nãoestimulam a expressão da aflição ou da dor. Embora setenha escrito extensamente sobre a guerra e as suasconsequências, os traumas individuais e o sofrimentocolectivo são mencionados com parcimônia, tanto emparticular como publicamente.

O Anexo 6 do Protocolo de Lusaka (1994) refere: “No espíritoda Reconciliação Nacional, todos os angolanos devemperdoar e esquecer os agravos resultantes do conflitoangolano e encarar o futuro com tolerância e confiança”. Á partida o próprio texto já expressa um aspecto comum a todos os conflitos – o desejo de esquecer, a que maisadiante nos referiremos. Embora a ‘reconciliação nacional’continue a ser evocada como um aspecto importante daconsolidação da paz em Angola, na arena política evidencioufundamentalmente a reconciliação entre as partes emguerra sem explorar as causas do conflito. Tem-se dadopouca atenção aos processos sociais que contribuem paracapacitar indivíduos e comunidades a enfrentar e superar adesconfiança, a polarização e a dor causados pelo conflito.

A cultura e a reconciliação Como dissemos antes, não existem fórmulas próprias eúnicas para se alcançar a paz e a reconciliação. Embora haja conceitos que pretendem ser os únicos correctos euniversalmente válidos, as experiências mostram que areconciliação é um processo complexo, para o qual nãoexistem soluções fáceis. Não existe uma solução pré-fabricada que possa simplesmente ser aplicada em qualquerparte. A maneira como os indivíduos e grupos expressam eatribuem significado às experiências está intrinsecamenterelacionada com o contexto social e cultural específico. Acultura joga um papel crucial no bem-estar psico-social daspopulações uma vez que as estratégias através das quais aspessoas gerem o seu sofrimento estão, pelo menos emparte, baseadas nas percepções culturais.

Angola dispõe de uma grande variedade de recursosculturais para facilitar a reconciliação. Entre estes recursosincluem-se as crenças e costumes tradicionais dacosmologia africana, bem como recursos provenientes dasdiversas igrejas e as numerosas influências ideológicas queforam introduzidas durante e depois da dominação colonial.Independentemente da maneira como eles entraram,fazem hoje parte do património cultural dos angolanos,embora em graus diferentes em vários extractos dasociedade. Embora diferentes eles cruzam-se e

66 Accord 15

Carlinda Monteiro é Directora Adjunta da

Christian Children’s Fund-Angola. Ela é

formada em Serviço Social e especializou-

se no tratamento de crianças e famílias

afectadas pela guerra, combinando

abordagens africanas e ocidentais.

Cemitério no Kuito

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complementam-se uns aos outros. A combinaçãocuidadadosa dos principais valores culturais da nossasociedade pode proporcionar um fundamento sólido para a construção da paz e reconciliação, o que constituirá,por sua vez, a base para o desenvolvimento do país.

Enquanto que os valores ocidentais se caracterizam porprivilegiar uma abordagem individual, os elementosculturais africanos enfatizam o colectivo, o social, acomunidade. A maior parte da população angolana é deorigem camponesa e provavelmente será reintegrada nassuas comunidades de origem, onde a filosofia de vida estáprofundamente enraizada no sistema de valores tradicionais.Mesmo as populações mais expostas ao meio urbanocontinuam ainda em transição e fazem recurso à tradição,especialmente em momentos de crise pessoal e/ou social.Os rituais e as cerimónias são a forma através das quais sãohonradas ou geridas situações específicas. Em consequênciada guerra e do deslocamento frequente da população,muitos costumes e rituais tradicionais caíram em desuso. Noentanto alguns rituais continuam a realizar-se e têm grandeimportância, como os rituais ligados à morte e ao luto, rituaispara aqueles que participaram da guerra, e rituais dereintegração de pessoas desaparecidas e crianças órfãs.

Guerra e rituais fúnebres Um tema central da cosmologia africana tradicional é a suacrença profunda na relação dinâmica e interdependenteentre as forças naturais, espirituais e sociais. O mundo visívele o invisível estão indestrutivelmente ligados. Os espíritosdos ancestrais são responsáveis pelo bem-estar, saúde esorte dos indivíduos e das comunidades. Os vivos vivem sobum medo constante de perturbar os seus antepassados epor isso fazem tudo para ganhar a sua protecção. Estascrenças acentuam a importância da harmonia social. Depois da morte, o indivíduo irá encontrar-se com os seusancestrais. Uma vez que os laços vitais não se desfazem, elevai continuar a existir entre os vivos. Se os rituais fúnebressão cumpridos de acordo com a tradição e o desejo dosantepassados, o espírito da pessoa morta irá chegar seguraao seu destino. Se não forem realizados ou cumpridosadequadamente, irá ficar perdido e desgostoso e poderávingar-se nos vivos. Isto poderá ser fonte de permanenteperigo e poderá provocar o mal na comunidade. O nãocumprimento dos rituais pode também ser visto como uminsulto à pessoa morta e um atentado à solidariedade dacomunidade que é sagrada e deve ser protegida todo otempo. Sem a realização dos rituais fúnebres, a sobrevivênciae a vida da comunidade não podem ser garantidas. Omundo visível só estará seguro se o indivíduo realmente‘morre’ através dos rituais fúnebres e é recebido nacomunidade dos antepassados. A pessoa morta deve serrecebida no mundo do além-túmulo e a sua residência é‘fixada’ para que não corra o risco de andar a vaguearperdida. A família e a comunidade ‘promovem’ o morto àclasse de antepassado e assim restabelecem a solidariedadee a ordem social.

Embora os rituais fúnebres sejam muito importantes, emcircunstâncias difíceis como na guerra, é muito difícil enterraros mortos condignamente. Por outro lado são muitas as

pessoas cujo paradeiro se desconhece e por isso não se sabese morreu ou não. Sabe-se que é enorme o número depessoas que morreram e não tiveram rituais fúnebresadequados. Por conseguinte todos estes mortos sãoconsiderados como espíritos insatisfeitos e inquietos. Estefacto dificulta a necessária reconciliação entre os vivos e osmortos e por consequência a reconciliação entre os vivos.

A verdadeSaber os porquês, a verdade sobre os acontecimentospassados é um factor essencial da reconciliação. Na guerra,há vítimas e vitimadores, os que sofreram e os queprovocaram o sofrimento (muitas vezes também elesvítimas). A verdade, vista no sentido a que nos referimos,não tem que ser necessariamente sustentada com a criaçãode comissões ou qualquer outro tipo de estrutura oficial. Asmemórias dolorosas são parte da memória colectiva e nãopodem ser trabalhadas individualmente. O mais importanteé que haja um reconhecimento público do sofrimentocausado através de um pedido de perdão à população, eque os autores que estiveram envolvidos na guerra emAngola se sentem juntos e discutam sobre o que ocorreuno passado, sobre o que os dividiu e os levou a lutardurante tantos anos. É importante sobretudo chegar a um acordo de como gerir estas diferenças no futuro.

Esquecer e recordarNo entanto, falar da verdade implica não só informar-se,mas sobretudo comover-se, lidar com as histórias horríveisque se conhece e identificar-se com os que sofreram ousofrem. Significa sentir raiva, dor, indignação e tristeza. Daíque seja muito frequente que as reacções da sociedade edos indivíduos, face aos horrores cometidos, seja de nãoquerer saber a verdade. Há normalmente em toda a genteque passa por estas situações, um desejo muito grande deesquecer, e todos os esforços são feitos nesse sentido. Noentanto esquecer, sem a elaboração do passado, seria pôrum ponto final num assunto que não terminou de serresolvido. É preciso criar um ‘espaço’ de reconhecimento eidentificação da realidade. Só então se poderão identificar ereconhecer os aspectos em desacordo, exorcizar, em parte,o medo e recuperar a noção de que somos todos sujeitoscom os mesmos direitos . Daí surge a importância darealização de actos colectivos, de rituais para honrar os quemorreram durante a guerra, de exposições, publicações ououtros materiais de referência à experiência passada, demonumentos, assim como de comemorações, reuniões que ajudam a lembrar e elaborar o passado.

Qual é a verdade sobre a guerra em Angola? Não existeapenas uma verdade, cada um tem a sua verdade, a suaversão das coisas. Existem várias verdades construídas apartir das experiências de cada um e da forma como elasforam interpretadas. Cada indivíduo e cada comunidadetem a sua própria história e o quadro completo seriacomposto por pedaços de cada uma. Um tal quadrohistórico talvez seja um pré-requisito para todos osangolanos encararem juntos o presente e o futuro de umamaneira mais construtiva e dessa forma praticar a‘reconciliação nacional’.

67Paz e reconciliação em Angola

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68 Accord 15

Textos de base e acordos

Traduções oficiosas ou sumários dos textosindicados em negrito estão incluídas nessapublicação. Versões completas podem serconsultadas no site da Conciliation Resources:www.c-r.org/accord

! Acordos de Alvor, acordo entre o MPLA, a UNITA, a FNLA e oGoverno de Portugal, 15 de Janeiro de 1975. Alvor, Portugal.

! Acordos de Lusaka, acordo entre os Governos de Angola eÁfrica do Sul, 16 de Fevereiro de 1984. Lusaka, Zâmbia.

! Princípios de Nova Iorque, acordo entre os Governos de Cuba, Angola e África do Sul, 20 de Julho de 1988. NovaIorque, EUA.

! Protocolo de Genebra, acordo entre os Governos de Cuba,Angola e África do Sul, 5 de Agosto de 1988. Genebra, Suiça.

! Protocolo de Brazzaville, acordo entre os Governos de Cuba, Angola e África do Sul, 13 de Dezembro 1988. Nova Iorque, EUA.

! Acordo Bilateral, (ou Acordo entre o Governo da República deCuba e o Governo da República Popular de Angola para aConclusão da Missão Internacional do Contingente MilitarCubano), 22 de Dezembro de 1988. Nova Iorque, EUA.

! Acordo Tripartido para a Paz (ou Acordo entre a RepúblicaPopular de Angola, a República de Cuba e a República de Áfricado Sul), 22 de Dezembro de 1988. Nova Iorque, EUA.

! Acordos de Bicesse (ou Acordos de Paz para Angola), acordoentre o MPLA e a UNITA, 31 de Maio de 1991. Bicesse(Estoril), Portugal.

! Protocolo de Lusaka, acordo entre o MPLA e a UNITA, 15 de Novembro de 1994. Lusaka, Zâmbia.

! Declaração do Governo da República de Angola, 13 de Março de 2002. Luanda, Angola.

! Memorando de Entendimento de Luena (Memorando deentendimento complementar ao protocolo de Lusaka para acessação das hostilidades e resolução das demais questõesmilitares pendentes nos termos de protocolo de Lusaka),acordo entre as Forças Armadas Angolanas e as Forças Militares da UNITA, 4 de Abril de 2002. Luena, Moxico, Angola.

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Pontos Essenciais dosAcordos de BicesseTexto completo disponível emwww.c-r.org/accord/ang/index.shtml

O Governo da República Popular deAngola (GRPA) e a União Nacional para a Independência Total de Angola(UNITA), com a mediação do Governo de Portugal e a participação deobservadores dos governos dos EstadosUnidos da América (EUA) e da União dasRepúblicas Soviéticas Socialista (URSS),

Aceitam como vinculativos os seguintesdocumentos, que constituem os Acordosde Paz para Angola:

a) Acordo de Cessar-fogo (incluindo os anexos I e II);

b) Princípios fundamentais para oestabelecimento da paz em Angola(incluindo o anexo relativo àComissão Militar Mista);

c) Conceitos para a resolução dequestões pendentes entre o Governoda República Popular de Angola e a UNITA;

d) O Protocolo do Estoril.

Estes acordos de paz foram rubricadosem 1 de Maio de 1991 pelos respectivos líderes das delegações esubsequentemente aprovados pelo GRPA e da UNITA (como é atestado pelacomunicação endereçada ao Primeiro-Ministro de Portugal não depois dameia-noite de 15 de Maio de 1991, queocasionou a suspensão de facto dashostilidades em Angola a partir dessadata) e entrarão em vigor imediatamenteapós a sua assinatura.

[Assinaturas]

Presidente da República Popular de Angola

Presidente da União Nacional para aIndependência Total de Angola

Acordo de Cessar-fogoA definição e princípios caracterizam o cessar-fogo como a cessação dehostilidades entre o GRPA e a UNITA,com o fim de alcançar a paz em todo o território nacional. Indicam que ocessar-fogo deve ser total e definitivoem todo o território nacional, e que temde garantir a livre circulação de pessoase bens. A supervisão geral do cessar-fogo será da responsabilidade do GRPAe da UNITA, no âmbito da moldura daComissão Conjunta Político-Militar

(CCPM), criada de acordo com o anexoaos Princípios Fundamentais para oEstabelecimento da Paz em Angola. AONU será convidada a enviar monitorespara apoiarem as partes angolanas, apedido do GRPA. O cessar-fogo inclui a cessação de toda a propaganda hostilpor parte dos partidos, a nível domésticoe internacional, e obriga os partidos aabsterem-se de adquirir equipamentoletal. O compromisso dos EUA e daURSS em não fornecerem equipamentoletal a qualquer das partes angolanas, eem encorajarem outros países a agiremde forma semelhante, fica registado.

A secção sobre a entrada em vigor docessar-fogo indica que é necessária aestrita observância dos compromissosassumidos pelas partes, assim como das decisões tomadas pelos órgãos comautoridade para verificar e acompanharo cessar-fogo. Entre as questõesabordadas estão os abastecimentoslogísticos de materiais não letais, alibertação de todos os prisioneiros civise militares detidos em consequência do conflito (com verificação do ComitéInternacional da Cruz Vermelha), e aaplicação do cessar-fogo a todas asforças estrangeiras presentes emterritório angolano. A secção enumeratodas as actividades a cessar. A nãoobservância de qualquer uma dasdisposições acima estabelecidasconstitui uma violação do cessar-fogo,sem prejuízo das decisões tomadas pelosgrupos de verificação e acompanhamento.

Será criada uma Comissão Mista deVerificação (CMVF) antes da entrada emvigor do cessar-fogo. A sua composiçãoestá indicada, e fica determinado que a CMVF reportará à CCPM. Teráautoridade para criar os grupos desupervisão necessários para a completaobservância do cessar-fogo. Tais gruposserão subordinados à CMVF. É tratada a criação e composição dos grupos de acompanhamento, e são fornecidosalguns detalhes sobre o acompanhamentodos grupos pela ONU. Os órgãos emecanismos criados para verificar eacompanhar o cessar-fogo deixaram de existir no final do cessar-fogo. Noanexo I são delineadas outras disposiçõesrelacionadas com a verificação eacompanhamento do cessar-fogo.

Quanto à regulação das medidas deverificação e acompanhamento, édeclarado que a CMVF terá a autoridadenecessária para garantir umaobservância eficaz do cessar-fogo, e sãoenumerados os seus deveres específicos.

A CMVF decidirá sobre os seus própriosregulamentos, tem também autoridadepara definir as funções e aprovar osregulamentos de quaisquer grupos deacompanhamento que criar. Os gruposde acompanhamento farão verificações“no local” à observância do cessar-fogo,para impedir, verificar e investigarpossíveis violações.

O calendário do cessar-fogo (maisdetalhado no anexo II) fornece as datasde acontecimentos chave, incluindo da rubrica do Acordo, da suspensão de facto das hostilidades, da assinatura e entrada em vigor do cessar-fogo, dacriação dos grupos de acompanhamento,da instalação do sistema de verificaçãoda ONU, e dos movimentos de forçaspara as áreas de agrupamento. Na data das eleições, o processo de cessar-fogo estará terminado e os órgãos de verificação e acompanhamento serão extintos.

Anexo I: Verificação eacompanhamento do cessar-fogoO anexo I especifica as disposiçõesreferentes à verificação eacompanhamento do cessar-fogoacordadas pelas partes.

O mandato e os regulamentos daComissão Mista de Verificação (CMVF)estabelecem que a CMVF é responsávelpela implementação e funcionamentodos mecanismos de verificação docessar-fogo. São detalhadas as suasresponsabilidades específicas. Acomposição, localização e linhasorientadoras da CMVF são indicadas,assim como a frequência das suasreuniões, que serão presididasalternadamente pelo GRPA e a UNITA.As decisões da CMVF, vinculativas pornatureza, serão tomadas por consensoentre as partes. No caso de a CMVF nãochegar a uma decisão, ou de a CCPMrejeitar essa decisão, a decisão finalcaberá a este último órgão.

São fornecidos detalhes sobre o sistemade verificação e acompanhamento. Oacompanhamento do cessar-fogo nolocal é assegurado pelo GRPA e pelaUNITA, através de grupos deacompanhamento subordinados à CMVFe compostos por 8 a 12 indivíduos decada parte, de acordo com o Apêndice 1,Sistema de Acompanhamento, GráficosOrganizacionais. A localização dosgrupos está referida no Apêndice 2,Zonas de Agrupamento (listando as 27 zonas de agrupamento para as tropasdo GRPA e as 23 zonas para as tropas

69Textos de base e acordos

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da UNITA) e no Apêndice 3, Aeroportose Portos (listando 32 aeroportos e 22portos). A ligação entre a CMVF e osgrupos de acompanhamento é garantidapor grupos de acompanhamentoregionais, de seis regiões e sub-regiõesespecificadas. Funcionários da ONUverificarão se os grupos deacompanhamento estão a assumir assuas responsabilidades. São fornecidosmais detalhes sobre o seu papel, aresponsabilidade pela sua segurança e o apoio que requerem.

São estipuladas as disposições para aszonas de acantonamento. Entre elas,que todas as forças armadas estejamacantonadas 60 dias após a entrada em vigor do cessar-fogo, nas áreasespecificadas no Apêndice 2. As forçasde ambas as partes devem respeitar naíntegra as regras de conduta contidas no Apêndice 4, Regras de Conduta paraas Tropas nas Zonas de Acantonamento.As secções seguintes tratam dasdisposições para os abastecimentos naszonas de acantonamento de cada umadas partes, e dos postos de controlofronteiriço listados no Apêndice 5,Postos Fronteiriços (listando 37 postos).

As forças paramilitares oumilitarizadas de ambas as partes jádeverão ter sido desmobilizadas ouintegradas nas respectivas forçasmilitares regulares, na altura em que o cessar-fogo entre vigor, o que seráverificado pela CMVF. Outras secçõestratam da troca de informação militarlistada no Apêndice 6, InformaçãoMilitar a ser Trocada entre o GRPA e a UNITA (em que são listados pontosrelativos à informação militar, sob os títulos Pessoal, Equipamento e Armamento, e Outros) e dasinvestigações sobre a existência de arsenais de armas químicas.

Anexo II: Sequência de Tarefasnas Diferentes Fases do Cessar-fogoO Anexo detalha o Calendário descrito noacordo, segundo as seguintes fases: FasePreliminar (1 a 15 de Maio de 1991); 1ª Fase (15 – 29/31 de Maio de 1991,assinatura e entrada em vigor do acordo);2ª Fase (31 de Maio – 30 de Junho de1991, implementação do sistema deacompanhamento); 3ª Fase (1 de Julho –1 de Agosto de 1991, transferência deforças); 4ª Fase (1 de Agosto de 1991 –data das eleições, verificação eacompanhamento do acordo).

Princípios Fundamentais para oEstabelecimento da Paz em Angola Ponto 1: O reconhecimento pela UNITAdo Estado Angolano, do Presidente JoséEduardo dos Santos e do GovernoAngolano, até serem realizadas eleições gerais.

Ponto 2: No momento em que cessar-fogo entrar em vigor, a UNITA adquiriráo direito a realizar e participar livrementeem actividades políticas, de acordo coma Constituição revista e leis pertinentesrelativas à criação de uma democraciamultipartidária.

Ponto 3: O GRPA realizará conversaçõescom todas as forças políticas, paraescutar as suas opiniões quanto àsalterações propostas à Constituição.Depois, o GRPA trabalhará com todos os partidos para criar as leis queregularão o processo eleitoral.

Ponto 4: Irão realizar-se eleições livres e justas, após um recenseamentoeleitoral conduzido sob a supervisão deobservadores eleitorais internacionais,que permanecerão em Angola atécertificarem que as eleições foram livrese justas e até os resultados terem sidoanunciados oficialmente. Na altura daassinatura do cessar-fogo, as partesdeterminarão o período dentro do qualdeverão ser realizadas eleições livres e justas. A data exacta das referidaseleições será estabelecida através deconsulta a todas as forças políticas de Angola.

Ponto 5: Respeito pelos direitoshumanos e liberdades básicas, incluindoo direito de livre associação.

Ponto 6: O processo de criação doExército Nacional começará quando ocessar-fogo entrar em vigor, e terminaráem data a acordar entre o GRPA e aUNITA. A neutralidade do ExércitoNacional durante o processo eleitoralserá garantida pelas partes angolanas,no âmbito da moldura da CCPM, com o apoio do grupo de acompanhamentointernacional.

Ponto 7: Proclamação e entrada emvigor do cessar-fogo em todo oterritório angolano, em conformidadecom o acordo a ser concluído a esterespeito entre o GRPA e a UNITA.

Anexo

O anexo contém o acordo entre as partespara formarem a CCPM, na altura daassinatura dos Princípios fundamentais

para o estabelecimento da paz emAngola. A composição, tarefas eautoridade da CCPM são indicadas. A CCPM deverá assegurar que osacordos de paz são aplicados, e tomar a decisão final sobre possíveis violaçõesdesses acordos. Deverá ter a autoridadenecessária para aprovar todas as regrasrelativas ao seu funcionamento,particularmente quanto aos seusregulamentos internos. As suas decisõesserão tomadas por consenso entre oGRPA e a UNITA.

Adenda III: Conceitos para a resolução de questões pendentesentre o Governo da RepúblicaPopular de Angola e a UNITA1. No momento em que cessar-fogoentrar em vigor, a UNITA adquirirá odireito a realizar e participar livrementeem actividades políticas, de acordo coma Constituição revista e leis pertinentesrelativas à criação de uma democraciamultipartidária. Na altura da assinaturado cessar-fogo, as partes determinarão o período dentro do qual deverão serrealizadas eleições livres e justas. A data exacta das referidas eleições seráestabelecida através de consulta a todasas forças políticas de Angola.

2. O GRPA realizará conversações comtodas as forças políticas, para escutar as suas opiniões quanto às alteraçõespropostas à Constituição. Depois, oGRPA trabalhará com todos os partidospara criar as leis que regularão oprocesso eleitoral.

3. O acordo de cessar-fogo obrigará aspartes a deixarem de receber materialletal. Os EUA, a URSS e todos os outrospaíses apoiarão a implementação docessar-fogo e deixarão de fornecermaterial letal a qualquer uma das partes angolanas.

4. A supervisão política geral doprocesso de cessar-fogo será daresponsabilidade das partes angolanas,no âmbito da moldura da CCPM. Averificação do cessar-fogo será daresponsabilidade do grupo internacionalde acompanhamento. A ONU seráconvidada a enviar monitores paraapoiarem as partes angolanas, a pedidodo GRPA. Os governos que enviarãomonitores serão escolhidos pelas partes angolanas, no âmbito da moldura da CCPM.

5. O processo de criação do ExércitoNacional começará quando o cessar-

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fogo entrar em vigor, e terminará nadata das eleições. A neutralidade doExército Nacional durante o processoeleitoral será garantida pelas partesangolanas, no âmbito da moldura da CCPM, com o apoio do grupo de acompanhamento internacional. As partes angolanas reservam paranegociações posteriores as discussõessobre a ajuda internacional que possa ser necessária para formar oExército Nacional.

6. Irão realizar-se eleições livres e justaspara o novo Governo sob a supervisãode observadores eleitorais internacionais,que permanecerão em Angola atécertificarem que as eleições foram livrese justas e até os resultados terem sidoanunciados oficialmente.

Adenda IV: Protocolo do Estoril EleiçõesÉ proclamado que serão realizadaseleições. Para o Presidente da República,serão por sufrágio directo e secreto,através de um sistema de maioria, com o recurso a uma segunda volta, senecessário. Para a Assembleia Nacional,serão por sufrágio directo e secreto,através de um sistema de representaçãoproporcional a nível nacional. Umprocesso de consultas, envolvendo todas as forças políticas angolanas,determinará se decorrerão emsimultâneo, assim como a duração doperíodo oficial de campanha eleitoral.Uma opinião técnica (não vinculadoradas partes) sobre a sua duraçãodesejável será obtida de um organismointernacional especializado, como a ONU. A votação será secreta e serãotomadas medidas especiais para aquelesque não sabem ler ou escrever. Estasmedidas serão incluídas na lei eleitoral,a ser criada após o cessar-fogo, depoisde um processo de consultas entre o GRPA e todas as forças políticasangolanas. Todos os partidos políticos epessoas interessados terão oportunidadede se organizarem e de participarem noprocesso eleitoral em pé de igualdade,independentemente das suas posiçõespolíticas. A liberdade total de expressãoe associação, e o acesso aos meios decomunicação, serão garantidos.

As partes aceitaram a propostatripartida das delegações de Portugal,EUA e URSS, para que as eleições serealizem entre 1 de Setembro e 30 de Novembro de 1992. As partesconcordaram que a seguinte declaração

tripartida deverá ser levada emconsideração na discussão da dataexacta: “Considerando as dificuldadeslogísticas na organização do processo eleitoral, especificamente a conveniência de as eleições serealizarem na época seca, e anecessidade de reduzir os altos custosque a comunidade internacional terá dedespender com o acompanhamento docessar-fogo, as delegações de Portugal,Estados Unidos e União Soviética,recomendam vivamente que as eleiçõesse realizem durante a primeira parte doperíodo sugerido, preferivelmente entre1 de Setembro e 1 de Outubro de 1992.”

Comissão Conjunta Político-Militar (CCPM)Quanto à CCPM, o documento assinalaque, segundo os Conceitos para aresolução de questões pendentes entre o GPRA e a UNITA e o anexo aosPrincípios fundamentais para oestabelecimento da paz em Angola, amissão da CCPM é a supervisão políticageral do processo de cessar-fogo. Terá o dever de assegurar que os acordos depaz são aplicados, e tomar a decisãofinal sobre possíveis violações dessesacordos. As suas decisões serão tomadaspor consenso entre o GRPA e a UNITA,após escutada a opinião dosobservadores. A CCPM não visasubstituir o GRPA e o seu mandatotermina na data em que o governoeleito tomar posse. As tarefas para asquais a CCPM se deverá estruturar sãolistadas, a composição da CCPM éestipulada, e é indicado que as suasreuniões deverão ser presididasalternadamente pelo GRPA e pelaUNITA, sem prejuízo para o princípio do consenso no processo de tomada de decisão. São fornecidos detalhesrelativos ao apoio de conselheiros, e às responsabilidades da CCPM quanto a regulamentos internos e orçamento.

Princípios relativos ao problemada segurança interna durante o período entre a entrada emvigor do cessar-fogo e a realizaçãode eleições.É indicado que todos os angolanos terão o direito a conduzir e realizaractividades políticas sem sofreremintimidações, de acordo com aConstituição revista e as leis pertinentesrelativas à criação de uma democraciamultipartidária, e com as disposições

dos Acordos de Paz. São criadasmedidas para a verificar e acompanhara neutralidade da polícia, através deequipas de acompanhamento, e éespecificada a composição, mandato, e quantidade proposta por província dasequipas. As equipas de acompanhamentoestão subordinadas à CCPM, e devemfornecer relatórios das suas actividadesa esse organismo.

Em conformidade com o convite doGoverno, a UNITA participará na forçapolicial responsável pela manutenção da ordem pública. São dadas garantiasquanto à disponibilidade de vagas e deformação para os recrutas da UNITA. A UNITA será responsável pelasegurança pessoal das suas altas chefias,e o GRPA concederá estatuto policialaos membros da UNITA encarregados de garantir essa segurança.

Direitos políticos a serem exercidospela UNITA após o cessar-fogo

De acordo com as disposições contidasnos Conceitos para a resolução dequestões pendentes entre o GPRA e a UNITA, na altura da entrada em vigor do cessar-fogo, a UNITA adquiriráo direito a conduzir e participarlivremente em actividades políticas, deacordo com a Constituição revista e asleis pertinentes relativas à criação deuma democracia multipartidária.Incluindo especificamente: liberdade de expressão, o direito a apresentar,publicar e debater livremente o seuprograma político, o direito a recrutar eangariar membros, o direito a organizarreuniões e manifestações, o direito deacesso à comunicação social do estado,o direito à liberdade de movimentos e segurança pessoal dos seus membros,o direito a apresentar candidatos àseleições, e o direito de abrir sedes egabinetes de representação em qualquerparte de Angola. Sem prejuízo paraestas estipulações, que permitem àUNITA o exercício imediato dessesdireitos, a UNITA deve, após a entradaem vigor do cessar-fogo, satisfazer osrequisitos formais para o seu registocomo partido político, em conformidadecom a ‘Lei dos Partidos Políticos’.

Estruturas administrativas

Ambas as partes aceitam o princípio da extensão da Administração Centralàs zonas de Angola que presentemente se encontram fora do alcance da sua autoridade. Ambas as partesreconhecem que essa extensão não

71Textos de base e acordos

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deve ser feita abruptamente ou colocarem perigo a livre circulação de pessoas e bens, as actividades das forçaspolíticas, e a execução das tarefasrelacionadas com o processo eleitoral.Ambas as partes concordam em deixarpara data posterior o estudo daimplementação dessa extensão, que será efectuada no âmbito da moldura da CCPM por equipas competentes,compostas por representantes do GRPAe da UNITA.

Criação das Forças ArmadasAngolanas

Quanto à Identificação e PrincípiosGerais, as partes concordam que serãocriadas as Forças Armadas Angolanas(FAA). A missão global das FAA édefinida como a defesa e salvaguarda da independência e da integridadeterritorial. A composição das FAA seráconstituída exclusivamente por cidadãoangolanos, e a sua estruturaorganizacional será unitária. Terá umacomposição, estrutura de alto comando,tropas, mecanismos e equipamento,determinados de acordo com ameaçasexternas previsíveis e as condições socio-económicas do país. As FAA são nãopartidárias e obedecem aos órgãos desoberania competentes, no âmbito doprincípio de subordinação à autoridadepolítica, e comprometem-se publicamentea respeitar a Constituição e outras leis daRepública. Os militares em serviço activoterão o direito de voto, mas não poderãousar as suas funções ou as unidadesestruturais das FAA para interferirem emquaisquer outras actividades de políticapartidária ou sindicais.

O processo de criação das ForçasArmadas deverá começar com a entradaem vigor do cessar-fogo e deveráterminar na data das eleições, devendoevoluir em simultâneo com oacantonamento, desarmamento, eintegração na vida civil das tropasdesmobilizadas. O recrutamento dasFAA durante o período anterior àseleições deverá decorrer de acordo como princípio da livre vontade, a partir dasfileiras das FAPLA e FALA. Éobrigatório que todo o pessoal militarincorporado nas FAA antes da data daseleições frequente cursos de formaçãoprofissional, com vista a alcançar umaunificação em termos de doutrina emétodos, que conduza aodesenvolvimento de um esprit de corpsessencial. Na altura em que foremrealizadas as eleições, apenas deverãoexistir as FAA, não poderão existir

quaisquer outras tropas. Todos osmembros das presentes forças armadasde cada uma das partes, que não seincorporem nas FAA, deverão serdesmobilizados antes da realização deeleições. Adicionalmente, são dadasgarantias quanto à neutralidade dasforças armadas durante o períodoanterior à realização de eleições, aosdireitos individuais do pessoal militar e à salvaguarda das unidades criadasdurante esse período.

Em Poderio das Tropas, sãoespecificados os números de tropas doExército, Força Aérea e Armada, e éacordado que cada uma das partesfornecerá ao Exército 20.000 homens(15.000 soldados, 3.000 sargentos e2.000 oficiais). As primeiras tropasatribuídas à Força Aérea e à Armadadeverão ser fornecidas pelos ramosrespectivos das FAPLA, tendo em contaque as FALA não possuem tais unidades.Assim que começar o processo deformação das FAA, a UNITA poderáparticipar na Força Aérea e Armada, emtermos a ser definidos no âmbito daCCFA. Entre várias outras disposiçõescriadas em relação à Força Aérea eArmada, constam as que definem queelas deverão estar sujeitas a verificação e acompanhamento, e deverão estarsubordinadas ao Alto Comando das FAA.

Em Estruturas de Comando das FAA, sãofornecidos princípios gerais que indicamque a CCFA, subordinada à CCPM,deverá ser criada especificamente paradirigir o processo de criação das FAA.São criadas disposições que asseguram anatureza não partidária da Estrutura deComando das FAA, como está descritono anexo. As nomeações para o AltoComando e para os comandos dos trêsramos das FAA serão propostas pelaCCFA, e aprovadas pela CCPM. A CCFAconstitui o órgão de transição, até à datadas eleições, entre as estruturas político-militares e a estrutura das FAA. Sãofornecidos mais detalhes quanto à suacomposição e funções. As últimasincluem, entre outras, a proposta decritérios para a selecção de pessoal dasFAPLA e FALA, com vista à criação dasFAA, e a proposta dos nomes dosprincipais oficiais comandantes das FAA.

São indicadas a missão global e acomposição do Alto Comando das FAA,assim como os princípios paraestruturação do Comando do Exércitodas FAA e a criação da Força Aérea eArmada (os detalhes serão publicadosem directivas a emitir pela CCFA).

É tratada a criação e funcionamento de um Comando Logístico e de Infra-estruturas, e as suas responsabilidadesparticulares. A estrutura de comando e as unidades do seu Estado-Maior sãomais detalhadas.

O calendário para o processo de criaçãodas FAA é descrito em cinco fases.Imediatamente após a nomeação de cadacomando, deverão ser organizados osrespectivos Estados-Maiores.

Assistência Técnica de PaísesEstrangeiros. As partes informarão oGoverno Português, nunca depois dadata de notificação da aceitação dosacordos, sobre quais são os países queserão convidados a ajudar no processode criação das FAA.

Desmobilização. A acomodação dasforças desmobilizadas constitui umproblema nacional, que deverá serestudado conjuntamente pelas duaspartes e submetido à CCPM para análisee decisão. O mesmo tratamento deveráser dado ao problema das pessoas queficaram fisicamente incapacitadas devidoà guerra.

Anexo: Diagrama da Estrutura das FAA

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Pontos essenciais doProtocolo de LusakaTexto integral disponível em www.c-r.org/accord/ang/index.shtml

Lusaka, Zâmbia, 15 de Novembro de 1994

O Governo da República de Angola(GRA) e a União Nacional para aIndependência Total de Angola (UNITA),com a mediação das Nações Unidas, e napresença de representantes dos PaísesObservadores do Processo de PazAngolano (Estados Unidos da América,Federação da Rússia e Portugal) têmpresente a necessidade de concluir aimplementação dos Acordos de Bicesse,de permitir um funcionamento regulardas instituições resultantes das eleiçõesde 1992 e de estabelecer uma Paz justa e duradoura, no quadro de umareconciliação nacional.

Aceitam como obrigatórios osdocumentos seguintes, que constituem o Protocolo de Lusaka:

Anexo 1: Agenda das Conversações dePaz sobre Angola entre o Governo e aUNITA

A agenda enumera a ordem dediscussão dos temas em negociação, que é subsequentemente reflectida noordenamento dos anexos ao acordo.

Anexo 2: Reafirmação da aceitaçãopelo Governo e pela UNITA dosinstrumentos jurídicos pertinentes

O Governo e a UNITA reafirmam a suaaceitação dos instrumentos jurídicospertinentes, nomeadamente dos Acordosde Bicesse e das resoluções do Conselhode Segurança pertinentes. A posição doGoverno assume a forma de uma cartaao Representante Especial da ONU,Alioune Blondin Beye.

Anexo 3: Questões Militares – I

O anexo abarca três pontos:restabelecimento de um cessar-fogo,retirada, aquartelamento edesmilitarização das forças militares da UNITA; e o desarmamento de civis.

A definição e princípios gerais indicamque o cessar-fogo consiste na cessaçãodas hostilidades entre o Governo e aUNITA, e que deve ser total e definitivoem todo o território nacional. Indicamque a supervisão, controle e verificaçãogeral do cessar-fogo será daresponsabilidade da ONU.

Os princípios específicos incluem: anatureza bilateral do cessar-fogo e ainstalação dos mecanismos deverificação e fiscalização pela ONU; aretirada e aquartelamento das forças daUNITA, de acordo com a Resolução 864do Conselho de Segurança da ONU;fornecimento de informação à ONU, porambas as partes, sobre a composição,armamento, equipamento e localizaçãodas suas forças; as FAA abandonarão as posições avançadas para permitir averificação e fiscalização da ONU;repatriamento de todos os mercenários;livre-circulação de pessoas e bens;recolha, armazenamento e custódia, pelasNações Unidas, do armamento das forçasda UNITA, no contexto do processo deselecção de efectivos destinados às FAA;recolha, armazenamento e custódia dearmamento na posse de civis; e alibertação de todos os prisioneiros civis e militares detidos ou retidos emconsequência do conflito, sob osauspícios do Comité Internacional daCruz Vermelha (CICV).

As modalidades relativas a estesprincípios são listadas por ordem.

É delineado um calendário para asmodalidades do cessar-fogo bilateral. APrimeira Fase consiste em cinco medidasa serem tomadas no prazo de 45 diasapós a assinatura do Protocolo. ASegunda Fase consiste em mais seismedidas.

Anexo 4: Questões Militares - II

Este anexo está relacionado com aconclusão da criação das ForçasArmadas Angolanas (FAA), incluindo a desmobilização.

Os princípios gerais incluem o objectivode concluir a formação de forçasarmadas únicas, nacionais, apartidárias,sob a verificação e fiscalização dasNações Unidas. A composição das forçasarmadas reflectirá o princípio deproporcionalidade acordado entre oGoverno e a UNITA nos Acordos deBicesse. O pessoal militar excedentárioserá desmobilizado e integrado nasociedade civil, no âmbito de umprograma de reintegração social.

Os princípios específicos delineiam asdecisões relativas ao processo e aofaseamento da integração das forças da UNITA nas FAA, a sua formação e o papel da ONU na verificação documprimento. Pormenorizam a criaçãode uma Comissão Conjunta, que inclui o Governo, UNITA, ONU e os PaísesObservadores.

As modalidades são delineadas em três fases. A Primeira Fase especifica a criação de um grupo de trabalho daComissão Conjunta, para supervisionaraspectos da conclusão da formação dasFAA, incluindo critérios de selecção,dimensão e composição das FAA. Estegrupo de trabalho é dissolvido naSegunda Fase, sendo criado um novogrupo de trabalho para supervisionar o planeamento e implementação doprocesso. Na Segunda Fase ocorretambém a incorporação inicial deefectivos seleccionados da UNITA nasFAA, e a desmobilização de membrosdas FAA e da UNITA. A Terceira Faseincorpora a selecção e integração depessoal militar da UNITA nas FAA, a selecção dos que permanecerão, adesmobilização total do pessoalexcedentário e a verificação final da ONU.

Anexo 5: A Polícia

Este anexo cobre o papel da PolíciaNacional Angolana, as funções e esferade acção da Polícia de IntervençãoRápida, e a incorporação de membros daUNITA em ambos os organismos.

Os princípios gerais delineiam o papelda Polícia Nacional Angolana enquantoórgão da administração públicaangolana, governada pela legislaçãoexistente e as provisões pertinentes dosAcordos de Bicesse e Protocolo deLusaka. As suas actividades nãorestringirão o exercício pelos cidadãosdos seus direitos políticos, em benefíciode qualquer partido político. Comoinstituição apartidária, deverá ser uminstrumento para reforçar a reconciliaçãonacional. Em conformidade com osAcordos de Bicesse, será incorporado um número significativo de membros da UNITA.

Os princípios específicos incluem opapel da ONU no acompanhamento dasactividades da polícia, e a independênciada polícia em relação às FAA. Asfunções e esfera de acção da Polícia de Intervenção Rápida são delineadas.Todos os outros órgãos de vigilância e policiamento são proibidos.

As modalidades indicam os númerosespecíficos de membros da UNITA que participarão na Polícia NacionalAngolana e na Polícia de IntervençãoRápida, e o faseamento da suaincorporação.

73Textos de base e acordos

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Anexo 6: Reconciliação Nacional

Este anexo refere-se às tarefas eprocessos específicos ponderados, nabusca do imperativo da reconciliaçãonacional, incluindo o papel dacomunicação social, a implementaçãode uma descentralização edesconcentração administrativa, e ospapéis das autoridades provinciais.Também inclui provisões para aparticipação da UNITA nas instituiçõesdo governo e do estado.

Os princípios gerais do Anexo 6 indicama vontade do Governo e da UNITA decoabitarem no âmbito do quadroconstitucional, político e jurídicoangolano, reafirmando o seu respeitopela vontade popular, expressa atravésde eleições livres e justas, e pelo direitode oposição. Os princípios incluem umaprovisão para a participação demembros da UNITA nos diversos níveise instituições da actividade política,administrativa e económica. Implicam a descentralização e desconcentraçãoadministrativa do país e condenam autilização da violência como meio deresolução de diferendos. Identificam opapel dos meios de comunicação socialno apoio ao processo de convivência ede consolidação democrática. Referem aconcessão de uma amnistia para crimescometidos durante o conflito.

Quanto aos princípios específicos, foiacordado que o Governo e a UNITArealizarão uma campanha desensibilização pública para promover atolerância, convivência e confiança. Asliberdades de expressão, associação eorganização, assim como a liberdade deimprensa, são garantidas. É garantido odireito de acesso à imprensa, rádio etelevisão estatais aos partidos políticosque cumpram a legislação em vigor.

A Rádio VORGAN, a estação de rádio daUNITA, poderá emitir até ao dia D + 9meses, no fim deste prazo estaráconcluído o processo de mudança doestatuto da VORGAN para uma estaçãode radiodifusão apartidária.

A descentralização e desconcentraçãoadministrativa será efectuada, de formaa que as autoridades provinciaisdisponham de poderes próprios nosdomínios administrativos, financeiro,fiscal e económico (incluindo acapacidade de atraírem investimentosestrangeiros), em conformidade com alegislação em vigor. Em conformidadecom a lei e com o Anexo 5 do Protocolode Lusaka, as responsabilidades da

Polícia a nível provincial concernentes àdirecção, coordenação e fiscalização dassuas actividades, competem aosComandos Provinciais. Os titulares dosórgãos do poder local serão eleitos emconformidade com a legislação que seráelaborada segundo as disposições daConstituição.

Será garantido ao Presidente da UNITAum estatuto especial. Os primeiros 70deputados eleitos nas listas decandidaturas da UNITA nas eleiçõeslegislativas de Setembro de 1992 serãoinvestidos nas suas funções naAssembleia Nacional e constituirão ogrupo parlamentar da UNITA. Serágarantida uma segurança apropriada aosaltos dirigentes da UNITA que nãogozem de outro regime especial inerenteaos seus cargos.

Os casos dos angolanos impedidos deexercer os seus direitos laborais, emvirtude de circunstâncias anteriores àassinatura do Protocolo de Lusaka, serãodevidamente examinados por instânciasdo estado

O princípio da participação deelementos da UNITA concretizar-se-ápela sua integração em funçõesprofissionais adequadas, na medida do possível, e tendo em conta as suascapacidades técnicas e profissionais.

Os programas de assistência e dereinserção social devem ser aplicadosem todo o território nacional. Um Fundode Apoio ao Empresariado Nacionalfornecerá ajuda e encorajamento para a criação de empresas privadas.

O Governo assumirá a gestão de todo o património do estado, no estado emque se encontrar. Todo o património da UNITA voltará à posse da UNITA, no estado em que se encontrar.

Serão atribuídas à UNITA instalaçõespartidárias adequadas e residênciasapropriadas para os seus dirigentes.

Os direitos e liberdades fundamentaisdos cidadãos são garantidos através daindependência do poder judicial.

É considerada importante a questão darevisão dos símbolos da República deAngola, no quadro das instânciascompetentes.

As modalidades delineiam asresponsabilidades práticas de cada umdos partidos, no que respeita àimplementação dos princípios. Contêmtrês documentos distintos, relativos àsgarantias de segurança para os líderes

da UNITA; à participação da UNITA naadministração local e missõesdiplomáticas no estrangeiro; e àsnormas da participação de membros daUNITA no Governo de Unidade eReconciliação Nacional (GURN).

Anexo 7: Conclusão do ProcessoEleitoral

Este anexo refere-se ao processo deconclusão da segunda volta das eleiçõespresidenciais e aos papéis das instituiçõesdo estado, dos candidatos e da ONU.

Os princípios gerais indicam aimportância da participação doscidadãos na escolha dos líderes do paíse da necessidade de concluir as eleiçõesde 1992 com uma segunda volta daseleições presidenciais. Estas serãorealizadas após a ONU declarar que ascondições necessárias estão reunidas.Instituições do estado angolanoorganizarão as eleições, com verificaçãoe acompanhamento da ONU, e aparticipação de observadoresinternacionais.

Os princípios específicos referem-se àlegislação relevante para as eleições eao papel dos candidatos e das suasagendas no controlo do desenrolar daseleições. A Assembleia Nacional decidiráo calendário para as eleições, uma vezque a ONU determine que as condiçõesnecessárias estão reunidas. Estascondições são descritas como sendogarantias de segurança, de livre-circulação de pessoas e bens e deliberdades públicas; garantia efectiva de funcionamento da administração doestado; e processos de normalização,tais como o restabelecimento das vias de comunicação e a reinstalação dosdeslocados. Os meios do estado,incluindo os meios financeiros, deverãoser equitativamente utilizados durante o processo. Os membros das mesas devoto serão protegidos pela PolíciaNacional e pela verificação efiscalização das Nações Unidas. Apublicação dos resultados eleitoraisdeverá obedecer ao estipulado nalegislação nacional. Num prazo de 48 horas após a proclamação oficial dos resultados nacionais, a ONU faráuma declaração sobre o carácter livre e justo das mesmas.

As modalidades descrevem o papel efunções da ONU no processo, incluindoa verificação e fiscalização dapreparação de material eleitoral, e apreparação dos cadernos de registoeleitoral. Referem-se também à

74 Accord 15

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condução de uma campanha deeducação cívica sobre os objectivos dasegunda volta das eleições presidenciais.

Anexo 8: O mandato da ONU, o papeldos Observadores e a ComissãoConjunta

O Mandato das Nações Unidas

Os princípios gerais referem-se àaceitação pelo Governo e pela UNITA de que a conclusão bem sucedida doprocesso de paz é, em primeiro lugar,sua responsabilidade, e de que aceitamcooperar amplamente com a ONU paraeste fim. Convidam a ONU adesempenhar o papel delineado nosAcordos de Bicesse e no Protocolo deLusaka, incluindo a presidência daComissão Conjunta.

Os princípios específicos fornecemdetalhes sobre as funções da ONUrelativamente a 1) Assuntos militares; 2)Actividades policiais 3) Actividades dereconciliação nacional; e 4) Conclusãodo processo eleitoral. Cada um destesgrupos de tarefas reporta-se a pontosespecíficos da agenda e anexos doProtocolo de Lusaka.

O papel dos observadores naimplementação dos Acordos de Bicessee do Protocolo de Lusaka

Os Governos dos Estados Unidos daAmérica, da Federação da Rússia e dePortugal são os observadores doprocesso de paz, nesta qualidade, têmassento na Comissão Conjunta.

As suas funções incluem assistir areuniões, acompanhar a aplicação detodas as disposições ainda nãoimplementadas dos Acordos de Bicesse edas disposições do Protocolo de Lusaka.Em todas as reuniões, as decisões sãotomadas depois de ouvida a opinião dosrepresentantes dos países observadores.

C. A Comissão Conjunta

A Comissão Conjunta é formada peloGoverno da República de Angola e pelaUNITA, tendo a ONU a presidir e aTroika na qualidade de observadora. A sua função é velar pela aplicação dasdisposições ainda não implementadasdos Acordos de Bicesse e de todas asdisposições do Protocolo de Lusaka.Deverá acompanhar a aplicação dasresoluções pertinentes do Conselho deSegurança das Nações Unidas e tomardecisões finais sobre possíveisinfracções. A sua sede ficará em Luanda.A Comissão Conjunta estabelecerá o seupróprio regulamento interno e tomará

decisões por consenso. A ComissãoConjunta entra em funções no dia daassinatura do Protocolo de Lusaka.Quando a Comissão Conjunta achar que todas as provisões pertinentes dosAcordos de Bicesse e do Protocolo deLusaka foram implementadas, dissolver-se-á.

Anexo 9: Calendário de aplicação doProtocolo de Lusaka

O calendário planeia o ordenamento das actividades a partir do Dia D (Aassinatura do Protocolo de Lusaka).Delineia 10 fases, sendo atribuída a cada uma um período específico de dias para o seu cumprimento. Na fasefinal (Dia D + 455), várias tarefasdeverão ser completadas. É mencionadoque a calendarização detalhada seráestabelecida pela Comissão Conjunta,que nenhuma tarefa será iniciada antesque a precedente tenha sido concluída, e de que, no caso de se verificar aexistência de condições, os calendáriopoderá ser antecipado por acordo entreo Governo e a UNITA.

Anexo 10: Questões diversas

O Protocolo de Lusaka será assinado nodia 15 de Novembro de 1994, emLusaka, Zâmbia.

Signatários

O Protocolo de Lusaka foi assinado em31 de Outubro de 1994, pelos líderes das delegações do Governo e da UNITA,Fernando Faustino Muteka e EugéenioNgola “Manuvakola”, e peloRepresentante Especial das NaçõesUnidas, Sr. Alioune Blondin Beye. Foisubsequentemente aprovado pelasinstâncias constitucionais competentesda República de Angola e pelasautoridades competentes da UNITA.

Pontos Essenciais doMemorando de LuenaTexto completo disponível emwww.c-r.org/accord/ang/index.shtml

Memorando de EntendimentoComplementar ao Protocolo de Lusakapara a Cessação das Hostilidades eResolução das Demais QuestõesMilitares Pendentes nos Termos doProtocolo de Lusaka

PreâmbuloA Delegação das Forças ArmadasAngolanas, mandatada pelo Governo daRepública de Angola; a Delegação dasForças Militares da UNITA, mandatadapela sua Comissão de Gestão; napresença da ONU e dos PaísesObservadores;

Considerando que o Protocolo deLusaka, o instrumento legal e políticopara a resolução do conflito angolano,não conheceu a evolução positivaesperada para a sua conclusão definitiva;

Considerando que a crescente epremente necessidade de se obter a paze a reconciliação nacional em Angolase afigura imperativa e urgente, e exigeprimeiro a cessação do conflito armadoentre a UNITA e o Governo,promovendo, para este fim, iniciativasapropriadas para a conclusão definitivado Protocolo de Lusaka;

Conscientes de que o termo do conflitointerno conduz à paz e à reconciliaçãonacional, e constitui um desafio a quese comprometem a vencer, parabenefício do povo angolano;

Nesta conformidade, em ordem amaterializar os seus compromissos eobrigações, no quadro do Protocolo deLusaka, decidem adoptar o Memorandode Entendimento, nos seguintes termos:

Objecto e princípiosObjecto

• Um compromisso das partes num cessar-fogo, a resolução de questões militares pendentes e,subsequentemente, a definitivaresolução do conflito armado.

• A resolução dos factores militaresnegativos que bloquearam oProtocolo de Lusaka e a criação de condições para a sua conclusãodefinitiva.

75Textos de base e acordos

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Princípios fundamentais

• O respeito pelo Estado de Direito,pelas instituições democráticas deAngola, a observância daConstituição e demais legislação em vigor.

• A aceitação inequívoca da validadedos instrumentos jurídico-políticospertinentes, em particular, oProtocolo de Lusaka e as resoluçõesdo Conselho de Segurança da ONU.

• O reconhecimento de que o respeitopela democracia é essencial à paz ereconciliação nacional.

Agenda de memorando de entendimentoReconciliação Nacional

Amnistia

O Governo garante a aprovação epublicação de uma Lei de Amnistia detodos os crimes cometidos no âmbito doconflito armado.

Cessação das hostilidades e questõesmilitares pendentes no termos doprotocolo de Lusaka

Cessar-fogo

As partes reiteram o seu engajamentopara dar cumprimento escrupuloso dosseus compromissos e obrigaçõesrelativamente à tarefa derestabelecimento do cessar-fogo (noespírito do Anexo 3 do ponto II.1 daAgenda de Trabalhos – QuestõesMilitares I do Protocolo de Lusaka). As partes emitirão e cumprirão umadeclaração de reconhecimento do cessar-fogo. Esta tarefa inclui:

• Cessação de acções militares total edefinitiva em todo o territórionacional e a não veiculação depropaganda hostil.

• Não realização de movimentos deforça para ocupar novas posiçõesmilitares, nem de actos de violênciacontra a população civil ou dedestruição de bens.

• Informação regular sobre a situaçãode posicionamento das unidades edemais estruturas para-militares dasForças Militares da UNITA, em zonasprováveis de tensão militar.

• Garantia da protecção das pessoas eseus bens, dos recursos e benspúblicos, e da livre circulação depessoas e bens.

Desengajamento, aquartelamento econclusão da desmilitarização das ForçasMilitares da UNITA

As partes reiteram o seu engajamentopara dar cumprimento escrupuloso dosseus compromissos e obrigaçõesrelativamente ao aquartelamento econclusão da desmilitarização das ForçasMilitares da UNITA (no espírito doAnexo 3 do ponto II.1 da Agenda deTrabalhos – Questões Militares I doProtocolo de Lusaka).

Neste sentido, a Comissão Militar Mista,com o apoio do Estado-Maior das FAA,procede ao aquartelamento edesmilitarização de todas as unidadesmilitares eestruturas para-militares dasForças Militares da UNITA. Incluindo:

a) Informação, pelo Alto Estado-MaiorGeral das Forças Militares da UNITA,à CMM, de todos os dados relativos àcomposição combativa e numéric dasunidades militares e para-militaresda UNITA, e sua localização.

b) Estabelecimento de mecanismos demonitorização do processo dedesmilitarização das Forças Militaresda UNITA.

c) Identificação das unidades militarese estruturas para-militares da UNITAe o estabelecimento de áreas deaquartelamento para as mesmas.

d) Definição dos respectivos itinerários,meios de movimento e realização domovimento das forças militares daUNITA para as áreas deaquartelamento.

e) Desengajamento e movimentodasforças militares da UNITA para asáreas de aquartelamento.

f) Recepção, alojamento, alimentação eregisto das forças militares da UNITAnas áreas de aquartelamento.

g) Entrega e recolha contínua,armazenamento e destruição de todoo armamento e equipamento dasunidades militares e estruturas para-militares da UNITA

Integração do pessoal militar da UNITAnas Forças Armadas Angolanas (FAA)

O Governo procede à integração dopessoal militar da UNITA nas FAA, deacordo com as vagas orgânicasexistentes. Este processo incluiráformação e patenteamento.

Integração na Polícia Nacional

O Governo procede à integração dealguns Generais e Oficiais Superiores daUNITA na Polícia Nacional, de acordocom as vagas orgânicas existentes. Esteprocesso incluirá formação.

Desmobilização e extinção das ForçasMilitares da UNITA

As partes reiteram o seu engajamentopara dar cumprimento escrupuloso dosseus compromissos e obrigaçõesrelativamente à desmobilização dasForças Militares da UNITA e à suaextinção (no espírito do Anexo 4 doponto II.1 da Agenda de Trabalhos –Questões Militares II do Protocolo de Lusaka).

A CMM, com o apoio da ONU, procede a;

• A desmobilização individual dopessoal excedário das ForçasMilitares da UNITA.

• A extinção formal e definitiva dasForças Militares da UNITA.

• A colocação do pessoal desmobilizadodas ex-Forças Militares da UNITA nadependência administrativa doEstado-Maior General das FAA,através das Regiões Militares eComandos Operacionais.

Reinserção socio-profissional do pessoaldesmobilizado da UNITA na vida nacional

As partes reiteram o seu engajamentopara dar cumprimento escrupuloso dosseus compromissos e obrigaçõesrelativamente à reintegração social dosdesmobilizados (no espírito do Anexo 4do ponto II.1 da Agenda de Trabalhos –Questões Militares II do Protocolo deLusaka).

Neste sentido, o Governo, através doEstado-Maior General das FAA, com aparticipação da UNITA e a ajuda daComunidade Internacional, procede àreintegração dos desmobilizados nasociedade civil dentro de um programade reinserçãosocio-profissional.Incluindo: protecção, alojamento ealimentação do antigo pessoal militar daUNITA nos centros de formação, e suaformação profissional, habilitando-opara o mercado de trabalho, medianteum programa de reintegração socialespecial e urgente.

Coordenação e aplicação domemorando de entendimentoCoordenação do memorando deentendimento (MdE)

As estruturas institucionais decoordenação:

Comissão Militar Mista (CMM)

Composição e Direcção:

• Membro executivo e presidente: orepresentante militar do Governo

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• Membro executivo: o representantemilitar das Forças Militares da UNITA

• Observadores permanentes: umrepresentante militar por cadaobservador; ONU, EUA, Rússia, e Portugal

Grupo Técnico

Funções:

• Assistir à Comissão Militar Mista nodesempenho das suas atribuições

• Zelar pela aplicação de todas asdisposições do MdE

• Organizar reuniões ‘ad-hoc’ deperitos militares para estudar ascausas de eventuais dificuldades queentravem a execução eficaz do MdEou outras questões consideradas deinteresse pela CMM

Elaborar a calendarização detalhadaassim como a precisão das actividades arealizar no âmbito da aplicação do MdE

Regras de funcionamento:

• Reune-se, ordinariamente, a fim depreparar as reuniões da CMM e,extraordinariamente, para analisar asquestões dimanadas pela CMM ousempre que para ta; se revelenecessário

• A nível regional, reune-sediariamente, sendo dirigido por umperito militar das FAA

Calendário de aplicação O calendário consiste de 7 fasesdistintas, começando no Dia D eprosseguindo até ao fim da fase final,após 262 dias (D + 262).

Disposições finaisOs diferendos de interpretação ouaplicação do MdE devem são submetidosà CMM para a solução, num espírito deamizade, tolerância e compreensão.

AssinaturasPela delegação das Forças ArmadasAngolanas: General de ExércitoArmando da Cruz Neto, Chefe do EstadoMaior General das Forças ArmadasAngolanas

Pela delegação das Forças Militares daUNITA: General Abreu MuengoUcuatchitembo “Kamorteiro”, Chefe doAlto Estado Maior Geral das ForçasMilitares da UNITA

Testemunhado pelas entidades a seguirmencionadas

Pela ONU:

Ibrahim Gambari, Sub-Secretário-Geralda ONU e Conselheiro Especial paraÁfrica

Pelos Países Observadores do Processode Paz:

O Embaixador dos EUA em Angola

O Embaixador da Federação Russa emAngola

O Embaixador da República Portuguesaem Angola

Anexos1: Aquartelamento das Forças Militaresda UNITA

O anexo fornece detalhes dos pontosgerais sobre o aquartelamento e,especificamente, sobre a estrutura,gestão e localização das Áreas deAquartelamento.

1/a: Aquartelamento, Desarmamento eRepatriamento das Forças MilitaresEstrangeiras em áreas sob controlo daUNITA

O anexo reconhece a existência de forçasmilitares estrangeiras em territórioscontrolados pela UNITA, e indica comoas partes irão proceder aoaquartelamento, desarmamento erepatriamento dessas forças.

2: Integração do pessoal militar daUNITA nas FAA de acordo com asvagas existentes.

O anexo fornece uma lista de pessoalmilitar, para orientar a incorporação epatenteamento de 5.027 militares daUNITA nas FAA.

3: Integração de Generais e OficiaisSuperiores da UNITA na PolíciaNacional de acordo com as vagasorgânicas existentes

O anexo fornece uma lista de pessoal da Polícia Nacional, para orientar aincorporação de 40 militares da UNITAna Polícia Nacional.

4: Reintegração socio-profissional do pessoal militar desmobilizado daUNITA na vida nacional

O anexo trata da reintegraçãovocacional de antigo pessoal militar da UNITA e das garantias e métodosnecessários para efectuá-la.

5: Considerações referentes àscondições para a conclusão doProtocolo de Lusaka

O anexo considera que foram criadascondições para garantir a continuidadeda participação da UNITA no processo de conclusão da implementação doProtocolo de Lusaka, e recomenda àUNITA que crie rapidamente o necessário consenso interno paraparticipar neste processo.

6: Considerações referentes àSegurança Especial nos termos doProtocolo de Lusaka

O anexo regista que as partesconsideram válida e aplicável o dispostono Documento Relativo ao RegimeEspecial de Segurança Garantido aosDirigentes da UNITA em Aplicação do Parágrafo 3 das Modalidades deReconciliação Nacional do Protocolo de Lusaka.

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Declaração do Governoda República de Angola Luanda, aos 13 de Março de 2002

1. Governo de Unidade e ReconciliaçãoNacional da República de Angolaconsidera que o país vive um momentosingular da sua história para acongregação de vontades que conduzamdefinitivamente ao fim do actual conflitoarmado, devendo as questões da Paz e daReconciliação Nacional ser equacionadasnum quadro jurídico e político em que serespeite a Lei Constitucional vigente, oordenamento jurídico e as instituições do Estado e se aceite de modo inequívocoa validade dos Acordos de Paz e dasresoluções do Conselho de segurança das Nações Unidas sobre Angola.

2. Para o alcance da Paz o Governodefiniu uma Agenda que passanecessariamente pela resolução de todasas questões militares resultantes doconflito armado surgido depois daformação das Forças Armadas Angolanas,nos termos do Acordo de Bicesse e doProtocolo de Lusaka.

3. Com a finalidade de encorajar epromover a confiança de toda a naçãoangolana relativamente a estaoportunidade de paz que não se devedesperdiçar, o Governo instruiu o Estado-Maior General das Forças ArmadasAngolanas (FAA) para que estas cessemtodos os movimentos ofensivos a partirdas 00H00 do dia 14 de Março de 2002,de modo a permitir o estabelecimento decontactos “in situ” entre as chefiasmilitares das FAA e das Forças Militaresda UNITA.

4. Com esta medida, abrir-se-á caminhoao diálogo e à colaboração entre aschefias militares, para que se alcance nomais breve prazo possível um cessar-fogogeral e a consequente paralização detodos os movimentos de forças que visemo reforço ou a ocupação de novasposições militares, a realização de actosde violência contra as populações civis, a destruição de bens públicos ou privadosou a obstrução da livre circulação doscidadãos e seus haveres.

5. O Governo considera fundamental edecisiva a desmilitarização da UNITA, nos termos da lei. No interesse dareconciliação nacional o Governoapresentará um programa para oenquadramento na vida nacional dosgenerais, oficiais e soldados da ForçasMilitares da UNITA.

6. Quanto às questões concernentes àplena integração da UNITA na vida

política nacional, na qualidade de partidopolítico cuja acção é importante para aconsolidação do processo democrático, oGoverno pretende, no quadro das suasresponsabilidades públicas, contribuirpara que se criem no país as condiçõesque permitam aos militantes da UNITAresolver internamente e em liberdade oproblema da liderança do seu partido e dasua reorganização e funcionamento deacordo com a lei.

7. O Governo proporá à AssembleiaNacional a aprovação de uma amnistiapara todos os crimes cometidos no âmbitodo conflito armado, visando com estamedida assegurar as necessárias garantiasjurídicas e políticas para a promoção eefectivação do processo de reconciliaçãonacional.

8. No âmbito da implementação dastarefas administrativas constantes doProtocolo de Lusaka deverá ser concluídaa extensão e instalação da Administraçãodo Estado em todo o território nacional e a nomeação de quadros da UNITA paraos cargos políticos previstos.Simultaneamente, deverão ser criadascondições seguras para o regresso daspopulações deslocadas às zonas de origem,de modo a permitir a gradual revitalizaçãoda economia em todo o país. Neste sentido,o Governo promoverá com o apoio dacomunidade internacional um amploprograma de desminagem para tornarpossível a livre circulação de pessoas e bens em todo o território nacional.

9. O Governo considera ser necessárioencontrar-se uma solução política ejurídica para o processo eleitoral nãoconcluído em 1992 e declara queimplementará as medidas políticas,jurídicas e administrativas pertinentespara a organização das próximas eleições.Para o efeito, além da conclusão doprocesso de aprovação de uma novaConstituição, o Governo vai empenhar-sena revisão da legislação eleitoral, noreassentamento das populaçõesdeslocadas e na realização de operaçõesde registo e recenseamento eleitoral.

10. O Governo trabalhará com toda asociedade, nomeadamente as Igrejas, osPartidos Políticos, as Associações Cívicase as Associações Sócio-Profissionais, emtodo este processo, continuando a manterconsultas regulares com estas entidades,com a finalidade de obter a sua valiosacontribuição relativamente às acções aempreender para a consolidação da paz e da democracia no país e, em especial,para a pacificação dos espíritos, aobservância de tolerância e respeitorecíprocos e a mobilização de recursos e vontades para a rápida resolução dos

problemas que afectam as populaçõesvítimas da guerra.

11. A consolidação da Paz requer umtratamento oportuno e eficaz dasconsequências imediatas da guerra sobrea vida das camadas da população maisafectadas, devendo-se trabalhar nosentido de se fazer chegar a assistênciahumanitária a todas as pessoasnecessitadas, sem discriminação. Nesteâmbito, o Governo tem em preparação umPrograma de Emergência para apoiar areintegração social e reassentamento de 4 milhões de deslocados, o enquadramentosocial de 150 mil desmobilizados dasvárias guerras de Angola e dos antigoscombatentes, a reinserção de 100 milmutilados e o acolhimento de 50 milcrianças orfãs de guerra.

12. O Governo reconhece o esforço quetem sido desenvolvido pela comunidadeinternacional no domínio da ajudahumanitária e reitera o seu apelo aosdoadores nacionais e internacionais nosentido de mobilizarem recursos paraapoiar o referido programa, cujaimplementação deverá contar com aparticipação efectiva das Igrejas,Organizações Não-Governamentais edemais vontades da Sociedade Civil, as quais colocarão à disposição a suaexperiência para se assegurar atransparência e a utilização racional dos bens disponíveis.

13. No quadro do seu engajamento emprol da rápida reconstrução do país, oGoverno dará cumprimento às tarefasimediatas constantes do seu Programapara a Saída da Crise, de que é parteintegrante e essencial o Programa deInvestimentos Públicos (PIP). Aimplementação do PIP permitirá reabilitaras infra-estruturas económicas e sociaisque viabilizarão o exercício da actividadeeconómica, a prestação de assistênciamédica às populações e a elevação dosseus índices de escolaridade, a circulaçãode pessoas e bens e uma melhor ligaçãoentre as províncias, municípios ecomunas, bem como a instalação,organização e capacitação daAdministração local. Com a finalidade de mobilizar recursos adicionais para agrandiosa tarefa da reconstrução deAngola em tempos de Paz, o Governotomou a iniciativa de, com o concurso de países amigos, promover em data adefinir a realização de uma ConferênciaInternacionais de Doadores.

14. O Governo apela a todas as forçaspolíticas e à Sociedade Civil em geral paraque, neste período crucial em que sedecide uma vez mais o destino da Nação,cada cidadão mantenha um elevado

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sentido de responsabilidade nos seus actose palavras. O Governo encoraja a que sepropague e se consolide em todo o paísum clima de tolerância, no qual o debatee a confrontação de ideias sejam possíveissem o recurso à violência física ou verbal,ofensa ou calúnia.

15. O Governo exorta à unidade de todosos angolanos para juntos virarem umaimportante página na sua história. Étempo de reconciliação, de perdão mútuoe de unidade. Digamos definitivamenteadeus às armas e à guerra e dediquemo-nos fraternalmente à reconstrução de umaAngola próspera e moderna, capaz degarantir bem-estar físico, material eespiritual a todos os seus cidadãos eocupar o lugar que lhe cabe por direitopróprio no concerto das nações.

Lições para a ONU da UNAVEM II (1991-93)Depois de terminar a sua missão como Representante Especial do Secretário-Geral da ONU em Angola, em 1993, Margaret Anstee formulou a seguinte listade lições a tirar para o envolvimento da ONU em processos de paz:

Trabalhar para Não existe uma solução rápida para umo longo prazo conflito duradouro e enraizado. A comunidade

internacional deve estar preparada para o longo prazo, senão não deve envolver-se.

Envolvimento nas A ONU deve estar sempre envolvida nanegociações negociação dos acordos de paz que vai supervisionar.

Um mandato claro A ONU deve possuir um mandato claro e forte, erecursos adequados, ajustados à missão e fornecidos a tempo.

Compromisso O compromisso dos antagonistas com a paz é com a paz essencial, mas é necessário um árbitro forte.

Dizer não! O Secretário-Geral deve poder recusar as operaçõespara as quais não existem as condições, mandato erecursos necessários. Isto é mais fácil de enunciar doque de aplicar, devido aos pesos pesados do Conselhode Segurança.

Eleições Não devem ser realizadas eleições enquanto não forem cumpridas as condições mínimas estabelecidas nos acordos de paz. Não deverá existir um prazo arbitrário.

Ninguém ganha tudo Evitar os sistemas eleitorais do género ‘quem vence,vence tudo’.

O contexto mais amplo É essencial tomar medidas paralelas de construção daconfiança e da paz (ou seja; direitos humanos, forçaspoliciais neutrais, medidas económicas e sociais,reintegração social)

Comunicação social Deve ser considerada a importância da comunicaçãosocial a nível interno e externo. É essencial a criaçãode uma operação eficaz de informação pública da ONU.

Logística A logística é um factor político (ex.: ponte aéreadurante as eleições)

Incentivos e As condenações verbais do Conselho de admoestações Segurança à UNITA, em 1993, não obtiveram

resultados nenhuns. As sanções de Setembro de 1993foram muito pouco, muito tarde, tendo sido facilmentecontornadas. Teria sido melhor testar a sinceridade daUNITA, aceitando as suas exigências, em Abidjan, deuma presença simbólica de 1.000 Capacetes Azuis.

Interesse genuíno A comunidade internacional deve estar genuinamenteinteressada e empenhada. Angola estava emdesvantagem, pois a Jugoslávia e a Somália eram asprioridades; houve um desencanto crescente com amanutenção da paz e com Angola; esta deixara de seruma prioridade para os que exacerbaram o conflitodurante a guerra-fria.

Fonte: Margaret J. Anstee

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Perfis

Estado

Poder executivoO Presidente é chefe deestado e chefe de governo,além de comandantesupremo das forçasarmadas. O Presidentenomeia o Primeiro-Ministroe os demais ministros,sendo que o Primeiro-Ministro detém pouco poder. O governo está subordinadona prática ao Gabinete do Presidente, e não são poucos osanalistas que afirmam que a Presidência exerce umexcessivo controlo de facto sobre o aparelho de estadosem ter qualquer obrigação de prestar contas aoparlamento ou ao partido. Entre as figuras mais poderosasna Presidência estão os chefes das Casas Civil e Militar.

Desde 1997, há um Governo de Unidade e ReconciliaçãoNacional (GURN) com participação de vários partidos. O principal partido da oposição, a União Nacional para a Indepêndencia Total de Angola (UNITA), tem algunsministros no GURN e, em meados de 2004, não haviaqualquer sinal de uma intenção sua de se retirar doexecutivo.

Poder legislativoO poder legislativo encontra-se depositado na Assembleia Nacional com 220 deputados. Com o final da guerra, a Assembleia formou uma ComissãoConstitucional para elaborar uma nova Constituição.

Poder regional e localAngola está dividida em 18 províncias, 164municipalidades e 578 comunas. Um Governador chefiacada província e administradores chefiam os níveisinferiores do poder autárquico. Não há representaçãoformal do estado ao nível das vilas ou distritos urbanos.Mas o Presidente nomeia todos estes funcionários.

Verificou-se na década de 1990 uma liberalização políticaparcial, que a par das crescentes receitas governamentaisprovenientes do petróleo, permitiram a este últimoescapar em grande parte a pressões da sociedade civil efinanciar sem dificuldades a guerra contra a UNITA. Tendoa comunidade internacional responsabilizado largamentea UNITA pela retomar da guerra, o governo do MovimentoPopular de Libertação de Angola (MPLA) foi finalmentereconhecido pelos Estados Unidos e por outros estadosque lhe eram tradicionalmente hostis. Após o colapso doProtocolo de Lusaka em 1998, o governo prosseguiu umaestratégia de alcançar a paz por via da vitória militar.

PresidentesAgostinho Neto (MPLA) 1975-1979

José Eduardo dosSantos (MPLA) 1979–

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Forças de segurançaA ala militar do MPLA durante a luta de libertação, asForças Armadas Populares para a Libertação deAngola (FAPLA), tornou-se o exército nacional depois daindependência. Os militares tornaram-se extremamentepoderosos com a redução do controlo civil na sequênciadas incursões militares da África do Sul no início da décadade 1980. Conseguiram chamar a si uma grande parte dosrecursos governamentais dispendidos em aquisiçõesmassivas de material bélico.

Como consequência dos Acordos de Bicesse, as forçasmilitares foram reformadas para passarem a integrar umaparte das forças da UNITA no exército nas agoradenominadas Forças Armadas Angolanas (FAA) no finalde 1992. Quando o país voltou a entrar em guerra, ogoverno apoiou-se fortemente na Polícia de ReacçãoRápida – PIR, ou “Ninjas”, uma polícia paramilitar criada em1992, e em milícias para combater a UNITA e os seuspartidários. A integração com as forças da UNITA foitentada mais uma vez sem sucesso depois do Protocolo deLusaka. Apesar disso, muitos oficiais e soldados das ForçasArmadas pela Libertação de Angola (FALA) juntaram-se às FAA ao longo da década de 1990, comoconsequência não só dos acordos de desmobilização eintegração, mas também como resultado da crescentefalta de apoio a Savimbi, em que a UNITA se fracturava àmedida que a sua derrota parecia cada vez mais inevitável.

As FAA são um dos maiores e mais experientes exércitosde África com um efectivo estimado de 100.000 homens,aproximadamente. As FAA absorvem uma grande parte dorendimento nacional. As despesas com a defesa esegurança do estado representam um total de 32 porcento do orçamento de estado de 2004. As FAAexecutaram operações para além das fronteiras de Angola,por exemplo na República Democrática do Congo (RDC)quando em 1997 ajudaram Laurent Kabila a depor oPresidente Mobutu, e regressando no verão de 1998 emdefesa de Kabila contra os rebeldes apoiados por Ruanda eUganda. O governo anunciou a sua retirada total da RDC apartir de Janeiro de 2002.

Movimentos angolanos

MPLAO Movimento Popular pela Libertação de Angola (MPLA)tem governado Angola desde a independência. As suasraízes estão no movimento crescente pela independênciade Angola, que se desenvolveu na clandestinidade emLuanda na década de 1950 e entre estudantes angolanosque estudavam em Lisboa. Há quem afirme que IlídioMachado, Viriato da Cruz, Matias Migueis, Higino Aires eAndré Franco de Sousa formaram o MPLA a partir degrupos pré-existentes (de que se destacam o Partido daLuta Unida dos Africanos de Angola e o Partido Comunistade Angola) em Dezembro de 1956. Mas outrosquestionam se é possível afirmar-se que o MPLA teriaverdadeiramente existido enquanto tal antes de 1960.

O MPLA começou verdadeiramente a desenvolver a suaactividade depois da irrupção de violência a partir deFevereiro de 1961, quando uma prisão de Luanda em queestavam detidos prisioneiros políticos foi atacada. O MPLAreivindicou depois ter estado envolvido na preparação doataque, embora seja hoje considerado mais provável que o ataque tenha sido executado por elementos estranhosao movimento.

Em 1962, o MPLA estabeleceu a sua primeira sede no exíliona cidade de Leopoldville no Zaire (hoje Kinshasa na RDC).No mesmo ano, Viriato da Cruz foi substituído comoSecretário-Geral por Mário Pinto de Andrade, que cedeu apresidência a Agostinho Neto, que tinha já estabelecidascredenciais nacionalistas e populistas – ajudado pelo factode ser negro e não mestiço. Em meados de 1963, Viriatoda Cruz tinha liderado uma dissidência do MPLA aderindoà Frente Nacional para a Libertação de Angola (FNLA), oque provocou confrontos entre os partidários de ambas osmovimentos nas ruas de Leopoldville. Estas tensõescontribuíram para o facto da Organização de UnidadeAfricana (OAU) reconhecer em 1963 o auto-denominadoGoverno Revolucionário no Exílio (GRAE) do líder da FNLA,Holden Roberto, como o único reprensentante legítimo domovimento independentista angolano, o que resultou naexpulsão do MPLA de Leopoldville. Usando Brazzaville(Congo) como base, o MPLA foi-se re-organizandogradualmente. Em 1964, a OAU reconheceu o MPLA comomovimento legítimo e gradualmente suspendeu o seuapoio ao GRAE. O apoio cubano e soviético ao MPLAcomeçou na década de 1960.

Os problemas internos do MPLA ressurgiram em 1973-74.A Revolta do Leste, liderada pelo comandante DanielChipenda, desafiou sem sucesso a liderança de AgostinhoNeto, resultando na adesão de Chipenda ao FNLAacompanhado pelas suas forças. Um tipo diferente derevolta deu-se no ano seguinte: a Revolta Activa, que foiuma crítica política à liderança de Agostinho Neto, umatentativa sem violência de Mário de Andrade e outrosintelectuais para mudar o rumo do movimento. Muitosdos protagonistas foram encarcerados ou exilados até aamnistia em 1978.

Com o conflito com Portugal a passar para segundo planodepois da revolução portuguesa em 1974, o MPLA assinouos Acordos de Alvor com os seus rivais em Janeiro de 1975.Porém, as tensões entre os diferentes movimentos delibertação exacerbaram-se logo em seguida, e o MPLAdurante o ano de 1975 lutou para obter o controlo do país.O apoio cubano e soviético ajudaram o MPLA a conseguiro controlo da capital na data da independência. Em 1976,a OAU e a ONU reconheceram o MPLA como o governolegítimo de Angola.

Em Maio de 1977, Nito Alves – comandante militarcarismático e ministro de governo com apoio militantenos musseques (bairros populares) de Luanda – liderouum sangrento golpe de estado contra a liderança doMPLA. A facção de Nito Alves mostrava-se favorável a darao partido uma orientação mais africana contrariando a

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alegada dominação dos mulatos. A purga desta facção e are-estruturação do partido resultou no desmantelamentode estruturas democráticas populares emdesenvolvimento. A liderança montou um sistema políticocentralizado em torno do Comité Central e do presidentedo partido.

No primeiro congresso do MPLA, em Dezembro de 1977, opartido transformou-se num partido marxista-leninista de“trabalhadores, camponeses e intelectuais revolucionários”e a sua denominação foi alterada para MPLA-Partido doTrabalho (MPLA-PT). Organizações de massa, como aOrganização de Mulheres Angolanas (OMA) e a UniãoNacional dos Trabalhadores Angolanos (UNTA) tornaram-se o elemento principal da sua organização. Ao mesmotempo, a quantidade de membros do partido diminuía econcentrava-se principalmente em Luanda e noutrasregiões kimbundu. À época em que José Eduardo dosSantos sucedeu a Agostinho Neto, após a sua morte em1979, o número total de membros tinha declinado de60.000 em 1975 para 16.500.

Na segunda metade dos anos 80, Eduardo dos Santoscomeçou a consolidar seu poder pessoal sobre o partido e o governo. Mas apesar disso, na assinatura de um acordoem Gbadolite em 1989, ele não contou com o apoio defiguras importantes do partido que se recusavam areconhecer a necessidade de negociar com a UNITA.

Com o fim da guerra fria e a onda de democratização emÁfrica, o MPLA promoveu numerosas reformas na décadade 1990. Em 1990, abandonou o marxismo-leninismo emfavor da social democracia. Em 1991, as organizações dasociedade civil exteriores ao partido foram legalizadas eum congresso extraordinário procurou ampliar o apelo dopartido. Marcolino Moco, um ovimbundu, e o reformistaLopo do Nascimento foram eleitos para posiçõesdestacadas. Em Maio desse ano, os Acordos de Bicessepuseram oficialmente fim ao regime de partido único.

UNITA A União Nacional pela Independência Total de Angola(UNITA) foi formada em 1966 depois do fundador, JonasSavimbi, ter abandonado a FNLA. Savimbi, que era umovimbundu, estava descontente com o controlo da FNLApelos bakongos, com a sua ineficácia militar, com ainfluência americana e com a liderança autoritária dofundador do partido, Holden Roberto. A UNITA surgiucomo um partido ‘africanista’, dando ênfase aos elementosétnicos e rurais em contraste com a perspectiva urbana e‘ocidentalizada’ do MPLA. O apoio internacional da UNITAvariou desde a China até à África do Sul, do Zaire até aosEstados Unidos. Nos primeiros anos, o carisma de Savimbie sua imagem de defensor dos oprimidos permitilharam-lhe conquistar um apoio significativo no centro e no sul de Angola, especialmente entre os ovimbundu queconstituem 40 por cento da população angolana.

Depois de assinar o acordo de cessar-fogo com Portugal,em Junho de 1974, Savimbi estabeleceu o seu quartel

general em Nova Lisboa (hoje Huambo) e começou a criara estrutura local do partido. Criou uma rede de apoiantes,inclusive alguns colonos brancos. Diversas reportagens daimprensa estrangeira, repetidas pelo MPLA, afirmam que,durante a primeira metade da década de 1970, a UNITAtinha cooperado com o exército português no leste deAngola, assim como com comerciantes brancos demadeira e o serviço secreto português. Porém, acima detudo, Savimbi previa que o apoio em massa dosovimbundu seria a base para uma vitória eleitoral depoisda independência. A sua promoção da consciência étnicaovimbundu tornou-se mais pronunciada à medida que asua base de apoio se tornava mais regionalizada noconflito entre os movimentos de libertação. Savimbicultivou um relacionamento com a liderança protestante eco-optou muitas organizações ovimbundu acentuando adivisão entre as elites ovimbundu e o estado.

Quando os Acordos de Alvor fracassaram e o paísmergulhou na guerra civil, a UNITA recebeu o apoio daÁfrica do Sul, mas foi expulsa de Luanda e perdeu ainiciativa. Na sequência da vitória do MPLA, a UNITAinicialmente retirou-se para a sua base no Huambo.Depois, reorganizou-se e começou uma campanha desabotagem económica em 1977, que se expandiu com o apoio directo da África do Sul, depois de 1983, e dosEstados Unidos.

A partir de 1979, a UNITA estabeleceu uma auto-denominada ‘região autónoma’, baptizada de Terras Livresde Angola tendo na Jamba a sua capital. Esta região teriaem 1989 uma população entre 800 mil a um milhão dehabitantes a quem assegurava serviços de educação esaúde. Enquanto o MPLA centralista ‘re-educou’, a UNITAmobilizou as comunidades de vilas por via dos líderes‘tradicionais’. No entanto, a UNITA também podia ser muitobrutal, aterrorizando as populações rurais e impedindo ascidades sitiadas de receber alimentos.

A UNITA tinha as características de um partido, com umcomité central, um secretariado político, um secretário-geral e ‘organizações de massa’ para mulheres e jovens.Como organização de combate, a UNITA e a sua ala militar,as FALA, mantinham laços estreitos e os oficiais de patentemais elevada integravam os orgãos de direcção política.No entanto, a característica mais importante da UNITA eraa concentração do poder na pessoa de Savimbi,presidente do movimento e também comandante-em-chefe das FALA. Ele mantinha um controlo apertado dopoder e era impiedoso no seu exercício. Havia purgasregulares na liderança, afastando-se as figuras maisantigas, que por vezes eram torturadas e assassinadas.

Alguns membros de origem étnica diferente da maioriaovimbundu ressentiram-se do poder do círculo íntimodesta etnia, leal a Savimbi, especialmente dos membros desua família (por exemplo, seu sobrinho o general “Ben-Ben”) ou dos originários de Andulu, a sua região natal (porexemplo, o general “Bock”). Houve algumas facçõesdissidentes na metade da década de 1980 que o acusavam

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de se ter vendido à África do Sul. Antigos líderesdestacados, como António da Costa Fernandes, acusaramSavimbi de valer-se de feiticeria em julgamentos,esquartejando, afogando e queimando dissidentespolíticos como feiticeiros. Por outro lado, a suamanipulação das crendices populares, especialmente noque diz respeito à feiticeria, reforçou o seu apelo entre oscamponeses. Contudo, o seu apoio internacional foiprejudicado, especialmente depois de alegações queSavimbi estaria por detrás do assassinato de Tito Chingunji(um dos negociadores dos Acordos de Nova Iorque em1988), Wilson dos Santos, comandante AntónioVakulukutu, e outros.

A estratégia da UNITA para as eleições de 1992 foi acampanha de ‘nós’ contra ‘eles’ (camponeses pobrescontra cidadãos urbanos com formação), que não deubons resultados em cidades politicamente maissofisticadas como Luanda, Malanje e Benguela. Contudo, aUNITA demonstrou que poderia organizar uma campanha,propor candidatos em todo o país, e ganhar maioriasconsideráveis em províncias de grande importância. Aomesmo tempo, o MPLA pode desenvolver uma campanhamais inclusiva, acolhendo Fernandes e um outrodissidente, Miguel N’zau Puna (que havia abandonado aUNITA acusando Savimbi de planejar secretamente oregresso à guerra caso perdesse). Tendo ganho o MPLA,Savimbi alegou que as eleições haviam sido fraudulentase, num quadro de violência em larga escala nas ruas, aUNITA voltou à guerra. Rapidamente assumiu o controlode boa parte do país, mas ficou cada vez mais isoladainternacionalmente e foi sendo forçada a recuar, tendoacabado por ser levado a assinar o Protocolo de Lusaka emNovembro de 1994.

A natureza do envolvimento da UNITA em iniciativas depaz, como as negociações de Lusaka, refletia o estilo deliderança de Savimbi. A posição protocolar dosnegociadores mudava frequentemente, já que Savimbimanobrava constantemente procurando maximizar a suainfluência e punir as pessoas que não fossem consideradasabsolutamente leais. As principais figuras destas equipasnegociais eram principalmente oriundas das forçasarmadas da UNITA, nomeadamente, no caso de Lusaka, o Vice-Presidente António Dembo, chefe do Estado-Maior,General Arlindo Pena “Ben Ben”, General Paulo Lukamba“Gato”, Jorge Valentim, Eugénio Ngolo “Manuvakola”, mastambém representantes no exterior (por exemplo, IsaíasSamakuva de Londres) e um advogado português,António Oliveira. Savimbi não assinou pessoalmente oProtocolo de Lusaka, deixando a tarefa para Manuvakola(que mais tarde foi encarcerado por Savimbi durante trêsanos). Os 70 deputados da UNITA não tomaram assento no parlamento, já que Angola mais uma vez acabou porregressar à guerra.

Com muitos dos seus membros cada vez mais desiludidos,a UNITA fracturou-se. O núcleo da organização (osseguidores de Savimbi) continuou a lutar de 1998 até2002. Um grupo baseado em Luanda auto-intutitulado

UNITA-Renovada criou uma dissidência em Setembro de 1998 sob a liderança de Manuvakola e Valentim. Ogoverno considerou a UNITA-R como o único interlocutorlegítimo para a finalização do processo de paz, mas muitosviram o grupo como um fantoche do MPLA. 54 deputadosda UNITA deixaram claro que não reconheciam a UNITA-R,e confirmaram Abel Chivukuvuku (antigo enviado pessoalde Savimbi ao Presidente Dos Santos) como seu líder.

A capacidade da UNITA para resistir militarmente aogoverno entrou em colapso gradualmente nos anos entre1998 e 2002, em que perdeu cada vez mais território epartidários. O retorno a táticas de guerrilha não inverteu ofluxo da maré, já que as sanções da ONU começaram aatingir as suas redes logísticas.

Por fim, Savimbi foi morto em Fevereiro de 2002. O Vice-Presidente Dembo morreu dias depois, alegadamente decausas naturais. O Secretário-Geral Lukamba Gato assumiuentão a chefia do movimento. O Chefe do Estado-MaiorAbreu “Kamorteiro” assinou o Memorando de Luena emAbril de 2002. A desmilitarização deu-se de forma rápida, a partir de Agosto de 2002 com a integração dos soldadosda UNITA nas FAA e a sua desmobilização, com excepçãode 5.000.

Em Julho de 2002, as diferentes facções da UNITAreunificaram-se e aceitaram a direcção de uma nova‘Comissão Política’. Em Junho de 2003, durante o primeiro congresso do partido depois da morte deSavimbi, Isaías Samakuva derrotou facilmente Gato e foi eleito líder da UNITA.

FNLANa década de 1950, os emigrantes bakongo originários donoroeste de Angola fundaram a União dos Povos do Nortede Angola (UPNA), que depois se tornou a União dos Povosde Angola (UPA), à medida que a organização procurouorientar-se mais para uma posição de nacionalismoangolano. No início da década de 1960, o líder HoldenRoberto tinha estabelecido um perfil internacional bemmais destacado do que as lideranças mais difusas do MPLA, e tinha estabelecido ligações com os EUA. Eletambém se tinha voltado para a resistência armada e, nosúltimos anos da década de 1950, a UPA era um nomeconhecido entre os militantes jovens em muitas regiões dopaís. Depois de o MPLA ter reivindicado com sucesso(embora dubiamente) a responsabilidade pelo ataque de 4 de Fevereiro de 1961 à prisão em Luanda, a UPA liderouataques armadas no norte em Março. A partir da base daUPA em Kinshasa, Holden Roberto fundou a Frente Nacionalpela Libertação de Angola (FNLA) em 1962. Ele também foi o primeiro a estabelecer um GovernoRevolucionário de Angola em Exílio (GRAE), no mesmo ano.

Apoiado pelo Presidente do Zaire Mobutu Sese Seko, aFNLA travou uma discreta guerra de guerrilha no noroestede Angola. O seu apoio internacional diminuiu nos últimosanos da década de 1960 e início da década de 1970,quando a OAU transferiu o seu reconhecimento para o

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MPLA. Pareceu receber um segundo fôlego no início dadécada de 1970 com o apoio renovado do Zaire e dosEUA, mas a ajuda das forças militares do Zaire e África doSul não foi suficiente durante a guerra civil de 1975-76, e aFNLA foi virtualmente destruída como uma força militar.

Holden Roberto exilou-se em Paris em 1979 e emboraalguns milhares de soldados tenham permanecido nonorte de Angola, não se mostraram capazes de controlaresse território. Em 1984, muitos deles aceitaram umaamnistia do governo. Holden Roberto regressou a Angolae concorreu à eleição presidencial de 1992, tendo obtidoapenas 2,1 por cento do voto, enquanto que a FNLAganhou cinco assentos na Assembleia.

Hoje em dia, a FNLA é em grande parte irrelevante. EmSetembro de 1998, uma comissão de gestão de 51membros proeminentes removeu publicamente HoldenRoberto da presidência, substituindo-o por Lucas Ngonda.Em resposta, Roberto expulsou os membros da comissãode gestão e declarou as suas acções ilegais. Depois devárias tentativas fracassadas de mediação, o partido logrou a sua reunificação em Abril de 2004.

FLECA Frente pela Libertação do Enclave de Cabinda (FLEC) foiformada em 1963 reunindo algumas organizações maispequenas que lutavam pela independência de Cabinda dePortugal, inclusive o Movimento pela Libertação doEnclave de Cabinda (MLEC) e a Aliança de Mayombe. AFLEC foi liderada por Luís Ranque Franque e criou umGoverno de Cabinda no Exílio em 1967.

Portugal recusou reconhecer a FLEC em 1974, a qualrespondeu desenvolvendo uma ala militar. Excluída dasconversações de Alvor em 1975, a FLEC tentou assumir ocontrolo de Cabinda em Novembro com o apoio do Zaire.O MPLA e as forças cubanas derrotaram os separatistas,que passaram desde então a desenvolver uma guerra deguerrilha, que incluiu o rapto de trabalhadoresestrangeiros empregues no território na indústriapetrolífera, da construção e da extração de madeira.

A insurreição em Cabinda tem sido caracterizada pelofaccionismo e a FLEC tem vivido inúmeras cisões. Em 1977,uma cisão levou à criação de um Comando Militar pelaLibertação de Cabinda (CMLC). Em 1984, a FLEC dividiu-seem FLEC-FAC (Forças Armadas de Cabinda) liderada porHenriques Nzita Tiago e FLEC-Renovada (FLEC-R), lideradapor António Bento-Bembe. Outras facções incluem aFrente Democrática de Cabinda (FDC), a UNCL (baseadaem Libreville, Gabão), a UNALEC e FLEC-Lubota (lideradapor Francisco Xavier Lubota). Todas as tentativas dereagrupar estes movimentos fracassaram.

As sedes de todas estas facções ficam fora de Cabinda. AFLEC-FAC em Paris é mais militante e conta com maiscombatentes do que a FLEC-R. Os números não são maisdo que estimativas, mas pensa-se que a FLEC-FAC teriaentre 600 e 1.000 homens em armas em meados dadécada de 1990. Esta organização reivindica uma República

Federal de Cabinda sob a presidência de Tiago, que, noentanto, parece existir apenas no papel e na internet.

A FLEC-FAC intensificou suas actividades depois daseleições de 1992, assumindo o controlo de boa parte dointerior rural, enquanto que o governo aumentou aquantidade de soldados em Cabinda para 15.000 emmeados de 1993. A UNITA apoiou os rebeldes durante operíodo 1993-94. O governo anunciou conversações coma FLEC-FAC em Março de 1994, mas estas nunca serealizaram. Recentemente, surgiram novas divisões sobrese se deveria discutir um estatuto de autonomia em vez dereclamar independência total.

A FLEC-R de Bembe tem uma história de tentativas denegociação, como o cessar-fogo que assinou com ogoverno em Setembro de 1995. Este facto levou a umacordo adicional em Maio de 1996, mas a condiçõesdeterioraram-se entretanto, já que as FAA prosseguiram aguerra com a FLEC-FAC, e em resposta à falta de interessedo governo a FLEC-R retomou a luta armada comnumerosos ataques em 1997.

A FLEC-R dividiu-se novamente, com a Plataforma FLEC deBembe reivindicando ser a sucessora natural da FLECoriginal de Franque. Franque terá participado emconversas exploratórias com o governo de Luanda emAgosto de 2003.

A FLEC-R, agora reclamando a sigla FLEC, estabeleceu umgoverno em exílio com sede em França. Como todas asFLECs, a FLEC-R considera o território como sendoformalmente um protetorado português que foi integradoillegalmente com Angola e, em 2003, apelou a Portugalpara ajudá-lo a realizar um referendo sobre o seu futuro.

Desde que o governo lançou uma ofensiva importante nofinal de 2002, alguns oficiais da FLEC desertaram aderindopublicamente às FAA, mas os rumores sobre o fim da FLECainda não se traduziram numa realidade concreta, e osgrupos secessionistas armados continuam activos. Osgrupos da sociedade civil em Cabinda e Luanda têm-semovimentado em torno da denúncia de abusos aosdireitos humanos durante a campanha das FAA.

Envolvimento internacional

PortugalA posse da colónia de Angola foi reconhecida a Portugalna Conferência de Berlim de 1884-85, 400 anos depois doprimeiro contacto com os povos da bacia do Congo. Como crescimento do número de colonos, Portugal não tinhaqualquer intenção de aceitar a independência angolanaaté ao golpe de estado sem derramento de sangue, deAbril de 1974, em Lisboa, executado por elementosesquerdistas das forças armadas portuguesas.

O novo regime negociou em Janeiro de 1975 os Acordosde Alvor entre os diferentes movimentos de libertação. Os simpatizantes do MPLA no governo de transição eramhostis a determinados colonos brancos, que consideravam

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a pior face do colonialismo português, e verificou-se umacrise profunda de autoridade na colónia. Existiam, porém,ligações antigas em Portugal entre as forças da oposição,sobretudo do Partido Comunista Português (PCP) e o MPLA.

As relações entre Portugal e Angola foram tensas nadécada a seguir à independência, já que Angolasuspeitava que o antigo poder colonial, e especialmente oPrimeiro-Ministro socialista Mário Soares (um dosarquitectos dos Acordos de Alvor), encorajava os EstadosUnidos a não reconhecer o MPLA e a apoiar a UNITA.Também havia em Portugal muitos retornados (colonosbrancos refugiados) descontentes com a descolonização ecom o regime marxista do MPLA. De forma que cada vezmais Lisboa se tornou a segunda base da UNITA.

As relações com o MPLA começaram a melhorar depois deCavaco Silva se ter tornado Primeiro-Ministro em 1985, oque possibilitou a Portugal assumir o papel de mediador.Cavaco Silva começou por procurar ganhar a confiança doMPLA, cujos líderes, por sua vez, consideravam Lisboacomo um veículo importante de reaproximação aos EUAnuma época em que a continuação do apoio soviéticoparecia cada vez menos garantida. A resistência de CavacoSilva ao forte lobby favorável à UNITA em Lisboa alcançouessse objectivo, mas depois do fracasso das conversaçõesde Gbadolite em 1989, tornou-se óbvio que o governoportuguês também teria de melhorar as suas relações coma UNITA, se quisesse assumir um papel de mediação. Foientão permitida a visita de Savimbi a Lisboa no início de1990 e as restrições à sua actuação cessaram.

Com a ‘solução africana’ preferida do MPLA esgotada apósGbadolite, o MPLA via como cada vez mais provável ter denegociar com a UNITA sob a mediação dos EUA, o que nãolhe agradava de todo. A alternativa, igualmente aceitávelpelas duas superpotências, era mediação de Portugal, quenão tinha condições de influenciar a vida internacional, neminteresses óbvios na vitória de qualquer dos beligerantes.

Os portugueses, sob a liderança do Secretário de EstadoDurão Barroso, organizaram diversas rondas negociaisentre Abril de 1990 e Maio de 1991, que resultaram naassinatura dos Acordos de Bicesse. Portugal foi um dosmembros da Troika de países que mediava e monitorizavaa implementação do processo de paz angolano. Portugalcontinua a manter relações mais estreitos com Angola doque outros países europeus.

Estados Unidos da AméricaDa década de 1960 até o início da década de 1990, oenvolvimento dos Estados Unidos em Angola foi orientadopor considerações derivadas do clima de Guerra Fria.Atraídos pela abundância de petróleo e diamantes, os EUAapoiaram Portugal na sua luta pelo controlo de Angoladurante a maior parte da década de 1960. No entanto,durante algum tempo sob a presidência de John F.Kennedy, também houve um certo apoio aoanticolonialismo, bem como ao anticomunismo, o queconduziu ao estabelecimento de vínculos com a FNLA.

Os Estados Unidos deram ajuda aos movimentosanticomunistas em Angola durante a guerra civil de 1975-76. No entanto, numa fase decisiva, em Dezembro de1975, o Senado aprovou a Emenda Clark que decretou ofim da assistência clandestina às forças anticomunistas emAngola. Com a FNLA efectivamente derrotada e perante aimpossibilidade de aceitar um regime marxista, os EUAcomeçaram a voltar-se para a UNITA por volta de 1977 eem 1985, com a revogação da Emenda Clark, enviam umaajuda substancial através do Zaire.

Com o enfraquecimento da União Soviética, os EUAaproveitaram a oportunidade para exercer o papel demediador, sendo o anfitrião das conversações entreAngola, Cuba e África do Sul, em Nova Iorque, emDezembro de 1988. Entretanto, a política dos EstadosUnidos continuava a ser fortemente favorável à UNITA eeste apoio atingiu um valor próximo dos 90 milhões dedólares em 1990. Apesar de os Estados Unidos apoiaremum fim negociado para a guerra, argumentavam que umaUNITA mais forte seria necessária para a transição para opluralismo político. Os Estados Unidos ajudaram a orientaras partes rumo aos Acordos de Bicesse em 1991 e parecemter estado plenamente confiantes de que a UNITA venceriaas eleições de 1992. A decisão da UNITA de regressar àguerra, depois da sua controversa derrota, foi o começo dofim da sua relação próxima com os Estados Unidos e apóso fracasso das conversações de paz em Adis Abeba eAbidjan, em 1993, os Estados Unidos decidiramestabelecer, pela primeira vez, relações diplomáticasplenas com o governo do MPLA.

Os Estados Unidos ainda desempenharam um papelimportante no regresso da UNITA à mesa de negociaçõesem Lusaka, mas com o aproximar do final da década,tornaram-se aliados cada vez mais importantes dogoverno do MPLA, em parte por causa da importânciacrescente do petróleo angolano.

URSS/RússiaA concessão de ajuda financeira, diplomática e de materialmilitar pelos soviéticos ao MPLA começou na década de1960, permanecendo entretanto clandestina e insuficientepara permitir que o MPLA desafiasse Portugal. O apoioatingiu o seu ponto mais baixo em 1973, num contextodominado por duas revoltas contra a liderança deAgostinho Neto, e foi retomado apenas quando a situaçãode Neto se consolidou. Durante a guerra civil de 1975-76, aURSS enviou por avião armamento pesado para o MPLAnos meses decisivos, imediatamente antes e depois daindependência, ajudando assim a garantir o triunfo dosseus aliados. Com a superpotência rival ainda em crise porcausa do Vietname, a URSS estabeleceu relações estreitascom o MPLA através da assinatura em 1976 de um Tratadode Amizade e Cooperação.

A URSS forneceu apoio financeiro e militar essencial aogoverno angolano durante toda a década de 1980. Asrelações com o regime do MPLA nem sempre foram fáceis,com suspeitas de apoio soviético à tentativa de golpe de

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Nito Alves em 1977 e a purga das figuras mais pró-soviéticas no congresso do partido em 1985.

Nos últimos anos da década de 1980, tornou-se óbvio que o governo do MPLA não podia contar com o apoiosoviético indefinidamente, já que a URSS procurava umentendimento com os EUA. A URSS (e mais tarde a Rússia)assumiram o seu lugar como um dos países da Troika queacompanhou os acordos de paz de 1991 e 1994, um papelque manteve até ao Memorando de Luena de 2002.

OutrosOs vizinhos de Angola desempenharam papéis de grandeimportância. Os laços étnicos e políticos entre os povosbakongo de ambos os lados da fronteira foram uma dasrazões que levaram o Presidente Mobutu do Zaire (hoje aRepública Democrática do Congo) a apoiar a FNLA. Ainfluência de Mobutu sobre outros líderes africanos, comoKaunda de Zâmbia e Nyerere da Tanzânia foram decisivosno ressurgimento da FNLA no início da década de 1970.Holden Roberto também utilizou o apoio de Zaire parareforçar os laços com a China e mesmo para controlardivergências internas na FNLA quando o Zaire envioutropas para sufocar um motim nas forças armadas da FLNAem 1973. Mobutu interveio directamente na guerra civilangolana em 1975, enviando tropas para apoiar a FNLAcontra o MPLA. O Zaire proporcionou também uma viapara tranferir o apoio dos EUA para a FLNA e ajudou aatrair a África do Sul, que aproveitou a oportunidade deser vista a lutar ao lado de uma nação africana negra.

Depois de efectivada a sua derrota na guerra civil, Mobutulogo se entendeu com o governo do MPLA, o quesignificou o desaparecimento de Holden Roberto comoprotagonista sério nas lutas pelo poder em Angola. Asrelações com Angola declinaram novamente depois de1981, já que Mobutu começara a apoiar as políticas dedesestabilização dos EUA e o Zaire tornou-se uma ‘base deretaguarda’ importante para a UNITA, especialmentedepois de 1986, quando serviu de canal para a vendailegal de diamantes e via de entrada de equipamento.Mobutu aproveitou a oportunidade para assumir o papelde mediador, em 1989, quando foi o anfitrião dasconversações de Gbadolite, mas Portugal assumiu estaposição nos Acordos de Bicesse. A queda de Mobutu em1997 foi um golpe importante para Savimbi.

O Zaire deu igualmente apoio considerável à FLEC, comotambém o fez o Congo (República do Congo –Brazzaville), já que ambos aspiravam a controlar umaCabinda independente, se não mesmo anexá-la. Ambos ospaíses reagiram positivamente à proclamação daindependência da ‘República de Cabinda’ emitida pelaFLEC baseada em Kinshasa, na cimeira da OAU em Agostode 1975. Contudo, Brazzaville apoiava uma facção rivalFLEC de N’Zita Tiago, e o MPLA, que era anti-secessionista(um regime também apoiado pelos soviéticos, eigualmente rival do Zaire, que apoiava a FNLA). Ambos ospaíses acabaram por abandonar publicamente os seus

apoios à independência de Cabinda e às diversas facçõesda FLEC.

A África do Sul do apartheid também interveio contra oMPLA em diversas ocasiões, motivada pelo desejo de terum regime amistoso e não-comunista em Luanda quenegasse santuário aos guerrilheiros da Organização doPovos do Sudoeste Africano (SWAPO), o movimento delibertação da Namibia. O seu envolvimento começou comuma intervenção militar de pequeno escala em 1975 emnome da proteção de seus investimentos no projetohidroelétrico do rio Cunene, mas empenhou-se cada vezmais no treino de forças da UNITA e FNLA. Em Outubro de1975, tropas das Forças de Defesa Sul-Africanas (SADF)juntaram-se à ofensiva da UNITA/FNLA. Primeiramente, aestratégia era ajudar a UNITA a reivindicar tanto territórioquanto possível na corrida para possíveis negociações eentão retirar-se; entretanto, o foco se transformou, ao invésdisto, em atacar para cima até Luanda, já que o Zaire e aFLNA atacavam para baixo partindo do norte (preocupandoSavambi que temia uma conspiração para colocar a FNLAno poder). A operação não conseguiu impedir que o MPLAconservasse o controlo de Luanda e solapou decisivamenteo apoio geopolítico aos rivais do MPLA.

A SADF retirou-se em Março de 1976, mas a África do Sulmanteve durante os anos que se seguiram uma políticaagressiva de baixa intensidade, e voltou a ser umprotagonista importante na guerra durante a década de1980. A pressão da ONU levou ao Acordo de Lusaka de1984, em que os sul-africanos concordaram em retirar seos angolanos cortassem a sua ajuda à SWAPO, mas a SADFregressaram em 1985 em apoio às forças da UNITA contrauma grande ofensiva das FAPLA com apoio cubano. Em1987-88, a luta no sul de Angola culminou no cerco deCuito Cuanavale por forças sul-africanas e da UNITA. Obrutal impasse militar que se seguiu foi um golpe fatal nassuas esperanças de vitória militar em Angola. Os Acordosde Nova Iorque de Dezembro de 1988 puseram-lhe termodefinitivo e resultaram na independência da Namibia.

No lado oposto na maior parte das intervenções da Áfricado Sul, estava Cuba. O interesse cubano no MPLAcomeçou com a visita de Che Guevara à África Central em1964-65. Na guerra civil de 1975, Cuba interveio ao lado doMPLA enviando primeiro conselheiros militares e, emseguida, tropas pretensamente como resposta àintervenção da África do Sul, embora a decisão de avançarfosse provavelmente anterior, tal como os pedidos deajuda do MPLA. Os efectivos cubanos, que seriam cerca de1.000 em Outubro de 1975, aumentaram para 14.000 noperíodo até Fevereiro de 1976. As tropas de elite enviadaslogo no início ajudaram a defender Luanda nomomemento da independência a 11 de Novembro de1975. O apoio cubano também ajudou a reforçar oenvolvimento da URSS.

Nos anos a seguir à independência, Cuba forneceutambém apoio não-militar indispensável ao regime doMPLA, enviando arquitectos, engenheiros, professores,

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médicos, funcionários civis e outros para construir o novopaís. A presença militar de Cuba ganhou maiorimportância para o governo do MPLA, de novo, na décadade 1980, quando as forças cubanas se envolveramfrequentemente na luta contra os sul-africanos e os seusefectivos chegaram a atingir os cerca de 50.000 homens.

Na década de 1990, Cuba deixou de ter grande utilidadepara o MPLA. A mudança nas prioridades do MPLA ficouclaramente marcada quando a partir de Dezembro de1995 Angola, paradoxalmente, deixou de votar naAssembleia Geral das Nações Unidas contra o bloqueio de Cuba, o que enfureceu o Presidente Fidel Castro.

Protagonistas multilateraisAs Nações Unidas desempenharam um papel demonitorização e verificação a partir da assinatura dosAcordo de Nova Iorque em 1988. A Missão de VerificaçãoAngolana das Nações Unidas - UNAVEM I (Dezembro de1988 a Maio de 1991) foi estabelecida para verificar aretirada, por fases e total, das tropas cubanas do territóriode Angola. A UNAVEM II (Maio de 1991 a Fevereiro de1995) pretendia verificar as actividades acordadas pelogoverno de Angola e a UNITA referentes à monitorizaçãodo cessar-fogo e da polícia angolana, durante o períododo cessar-fogo, além de observar e homologar as eleições.Em Fevereiro de 1995, a UNAVEM III foi autorizada peloConselho de Segurança a dar assistência à restauração dapaz e ao processo de reconciliação nacional. Esta Missãofoi substituída pela Missão de Observação das NaçõesUnidas em Angola (MONUA) em 30 de Junho de 1997, quedeu por encerradas as suas actividades em Julho de 1999depois de ser forçada a retirar quando as últimasesperanças de paz se desvaneceram.

Foi criada em 1999 uma pequena representação dasNações Unidas em Angola – Escritório das Nações Unidasem Angola (UNOA), que foi substituída depois doMemorando de Luena por uma missão de maiorenvergadura (Missão das Nações Unidas em Angola –UNMA) com a duração de seis meses. Após Fevereiro de2003, o chefe do Programa das Nações Unidas para oDesenevolvimento (PNUD) tornou-se o funcionário maisimportante da hierarquia da ONU em Angola – a qualmantém uma presença cada vez mais reduzida no país. O progresso de paz deixou de ser apreciadaperiodicamente pelo Conselho de Segurança.

As Nações Unidas impuseram um importante conjunto desanções contra a UNITA à partir de 1993, tendo como alvo,entre outras coisas, o abastecimento em material militar daUNITA, as deslocações no exterior dos seus funcionários, o congelamento das suas contas bancárias e a proibição da exportação de diamantes sem certificação. Aimplementação das sanções foi insatisfatória até 1999quando um relatório da autoria do novo presidente doComité de Sanções Robert Fowler recomendouprocedimentos mais estritos na verificação do cumprimentodas mesmas. As sanções foram levantadas em Novembro de 2002.

Outras agências das Nações Unidas tiveram acções em Angola: a Unidade de Coordenação de AssistênciaHumanitária (UCAH), encerrada nos meados de 2004, o Programa Alimentar Mundial (PAM) e o escritório do Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados(ACNUR).

O Banco Mundial (BM) e o Fundo MonetárioInternacional (FMI) têm tido um relacionamento difícilcom o governo angolano, embora com algum sucesso nodesenvolvimento de numerosas reformas estruturais. Noinício da década de 1990, o Banco Mundial canalizou umaboa parte de sua ajuda através de ONGs porque o governoera considerado corrupto e também porque ao BMinteressava legitimar as suas acções numa época em queas suas políticas de ajustamento estrutural estavam a serfortemente criticadas. Este facto contribuiu para um fortedesenvolvimento do sector humanitário, que era um dosmaiores empregadores em Angola em finais de 1995. O FMI tem estado na linha de frente dos esforços paraincrementar a transparência governamental nos últimosanos. Em 2004, o governo tem estado a procurar alcançarum acordo com o Fundo sobre as reformas económicasque poderiam levar à reunião de uma conferênciainternacional de doadores e que permitiria, por sua vez, a Angola recuperar o estatuto de devedor fiável nosmercados financeiros internacionais.

87Perfis

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88 Accord 15

Cronologia

Pré-históriaOs povos khoi e san vivem em Angola desde 25.000 A.C., a partir de 7.000 A.C. os primeiros povos sedentáriosestabelecem-se junto às margens do rio Kongo. Por voltade 800 A.C. chegam os povos bantu, com maior influxoentre os anos 1.300 e 1.500 A.C., quando emergemsociedades mais centralizadas.

Colonização europeiaOs portugueses ancoram no rio Congo em 1482-83 e iniciam contactos com o reino do Kongo. Em 1491,missionários, soldados e artesãos portugueses sãorecebidos na capital, M’banza Kongo.

O reino do Kongo começa a desintegrar-se no século XVI,enfraquecido pelo comércio de escravos. Os portuguesesaumentam seu contacto com o povo de idioma mbunduao sul, especialmente com o florescente reino Ndongo, efundam Luanda em 1575. Chamam a esta área Angola, dapalavra ngola que no idioma kimbundu significa‘governante’.

Face à resistência crescente às tentativas de conquistar asterras mbundu, na primeira metade do século XVII, osportugueses desembarcam na costa mais a sul e fundamBenguela. Os holandeses ocupam Luanda entre 1641 e 1648 e também se aliam à rainha Nzinga de bakongo e ndongo.

Os colonos portugueses exploram crescentemente otrabalho escravo africano. A seguir à aboliçãointernacional, Portugal abole formalmente o comércio de escravos com o Novo Mundo em 1836. Entretanto, aabolição efectiva de escravatura nas colónias acontecesomente em 1878, sendo substituída por um sistema de trabalho forçado.

1884-1885A Conferência de Berlim traça as fronteiras do norte deAngola com o Estado Livre do Congo e concede a Portugalo território a sul, para além do enclave de Cabinda.Portugal só na década de 1920 consegue ‘pacificar’ atotalidade do país e concluir a definição das suas fronteirasorientais e meridionais.

1912Descobrem-se diamantes em Angola.

Década de 1950Formam-se diversos movimentos nacionalistas em Angolano final da década. O Movimento Popular pela Libertaçãode Angola (MPLA) forma-se a partir de movimentos deresistência menores de Luanda, embora a data precisa dasua fundação seja discutível.

1961Em Janeiro, é violentamente reprimido um protesto decamponeses contra o cultivo forçado de algodão emMalanje. Eventos subsequentes – um ataque contra umaprisão em Luanda em Fevereiro (cuja autoria seriareivindicada mais tarde pelo MPLA), e em Março umarevolta armada da União dos Povos de Angola (UPA) nonorte – marcam o início da luta armada pelaindependência.

1962A UPA une-se ao Partido Democrático Angolano (PDA),formando a Frente Nacional de Libertação de Angola(FNLA), sob a liderança de Holden Roberto, querapidamente estabelece um Governo Revolucionário de Angola no Exílio (GRAE).

1963Forma-se a Frente de Libertação do Enclave de Cabinda(FLEC).

1966Jonas Savimbi, tendo abandonado a FNLA e o seu governoem exílio, funda a União Nacional para a IndependênciaTotal de Angola (UNITA).

Descobre-se petróleo em Cabinda.

1974AbrilEm Portugal, unidades das forças armadas portuguesastomam o poder. O general António de Spínola é nomeadolíder do regime do Movimento das Forças Armadas (MFA).

JunhoPortugal suspende as actividades militares contranacionalistas angolanos.

JulhoPortugal reconhece o direito de auto-determinação de Angola, com todas as suas consequências, e umesquerdista, o Almirante Rosa Coutinho é nomeado Alto-Comissário em Angola.

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89Cronologia

SetembroSem o conhecimento de Coutinho, Spínola promove umareunião secreta em Cabo Verde, alegadamente comPresidente Mobutu do Zaire, Roberto, Savimbi e DanielChipenda, dissidente do MPLA, numa tentativa deestabelecer um governo provisório, excluindo o Presidentedo MPLA Agostinho Neto. Duas semanas depois, Spínolarenuncia e os radicais ganham poder dentro do MFA.

1975JaneiroPortugal convida o MPLA, a UNITA e a FNLA paraparticiparem num governo de transição, de acordo comdetalhes desenvolvidos nos Acordos de Alvor, assinados em15 de Janeiro.

O governo de transição toma posse em 31 de Janeiro. É formado por uma ‘troika’ presidencial dos trêsmovimentos de independência, sendo as posiçõesministeriais divididas entre os movimentos e Portugal. O esquema fracassa e logo irrompem combates entre o MPLA e a FNLA.

Abril-AgostoO MPLA expulsa a FNLA de Luanda em Julho, depois deviolentos combates de rua, e a UNITA envolve-setotalmente em combates noutras regiões do país.

Chegam os primeiros conselheiros militares cubanos doMPLA. Em Agosto, unidades do Zaire penetram no nortede Angola, em apoio à FNLA. As tropas da Força de Defesada Sul-Africanas (SADF) ocupam a região limítrofe doCunene com a Namíbia.

SetembroO controlo do MPLA em Luanda fica assegurado, quandoos últimos funcionários da UNITA que restavam se retirampara cidades do centro de Angola, acompanhados de10.000 partidários.

OutubroAs tropas da SADF avançam do Cunene para norte, emdirecção a Luanda.

NovembroEm 11 de Novembro, Portugal transfere formalmente asoberania para o povo angolano. O MPLA, que tem ocontrolo de Luanda, enquanto o conflito incendeia o país,proclama a República Popular de Angola. A FNLA e aUNITA formam um governo próprio no Huambo, que sedesmorona rapidamente.

DezembroEm meados de Dezembro, forças sul-africanas e da UNITAestão estacionadas a 290 quilometros a sul de Luanda.

O Senado norte-americano acaba com a assistência veladaa forças anticomunistas em Angola. Mais tarde, a EmendaClark estende essa proibição à ajuda secreta.

1976Em Janeiro, depois do transporte soviético de materiaisem grande escala para o MPLA, as posições da UNITA-SADF estão sob ataque maciço. Em Fevereiro, o MPLArecaptura o Huambo, Benguela, São Salvador (M’banza-Kongo, um baluarte da FNLA) e o último posto avançadoda FNLA em Santo António do Zaire (Soyo). A OUAreconhece Angola como estado membro.

A África do Sul retira a maioria de suas forças em Março. A ONU reconhece Angola como membro pleno emNovembro.

1977Em Maio, uma facção do MPLA liderada por Nito Alvestenta um golpe que é sangrentamente sufocado,resultando numa maior centralização e controlo pelogoverno de Agostinho Neto, para além de maior repressãopolítica.

No Primeiro Congresso do MPLA, em Dezembro, o partidomodifica sua denominação para MPLA-Partido doTrabalho, e adopta formalmente uma ideologia marxista-leninista.

1978A SADF ataca Cassinga, Huíla, alegando a presença de umcampo de treino da Organização do Povo do SudoesteAfricano (SWAPO). Centenas de pessoas morrem no queficou conhecido como o ‘Massacre de Cassinga’.

1979O Presidente Agostinho Neto morre de cancro emSetembro, sucedendo-lhe José Eduardo dos Santos.

1981Em Agosto, a África do Sul invade novamente o sul deAngola, com o objectivo declarado de perseguir osrevoltosos da SWAPO, embora o grosso do combate fosseentre a SADF e as forças angolanas.

1982Em Dezembro, realizam-se em Cabo Verde negociaçõessecretas entre a África do Sul e Angola.

1984Em Fevereiro, Angola e a África do Sul assinam um acordoem Lusaka, estabelecendo o cessar-fogo, a retirada sul-africana e a deslocação da SWAPO para longe da regiãofronteiriça. A sua implementação demora mais de um ano.

1987A África do Sul admite abertamente seu apoio à UNITA eenvolve-se em confrontos directos contra tropas cubanase soviéticas. O governo angolano envia as Forças ArmadasPopulares de Libertação de Angola (FAPLA) numa grandeofensiva contra a UNITA-SADF, com o fim de recapturarMavinga e o seu aeródromo; mas, depois dos progressosiniciais, as FAPLA são forçadas a recuar para CuitoCuanavale. Em Novembro, a África do Sul é castigada peloConselho de Segurança da ONU. Em Dezembro, as forçassul-africanas bombardeiam fortemente Cuito Cuanavale.

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90 Accord 15

1988Em Janeiro, a queda de Cuito Cuanavale fica próxima, mas SADF e UNITA são obrigadas a recuar em Março eafrouxam o cerco em Maio, uma vez que se iniciamnegociações em Londres entre Angola, Cuba e África do Sul.

As FAPLA e os cubanos atacam em Junho a barragem deCalueque, há anos detida pela África do Sul. As forças sul-africanas retiram-se, atravessando a fronteira.

No seguimento dos acordos assinados em Julho e Agosto,assinam-se em Dezembro, sob os auspícios da ONU, osAcordos de Nova Iorque; pelo Protocolo de Brazzaville de 13 de Dezembro, os governos de Cuba, Angola e África do Sul comprometem-se em assinar um acordo para aretirada das tropas cubanas. A cerimónia de assinatura do Acordo Tripartido (além do Acordo Bilateral entre Angola e Cuba) realiza-se em 22 de Dezembro.

O Conselho de Segurança da ONU cria a UNAVEM (Missãode Verificação das Nações Unidas em Angola) parasupervisionar a retirada cubana.

1989O Presidente Dos Santos e Savimbi assinam o cessar-fogoem Junho, em Gbadolite, no Zaire, a convite do PresidenteMobutu. O acordo fracassa devido a interpretaçõesdiversas sobre o que havia sido acordado.

1990Realizam-se em Lisboa novas rodadas de conversaçõesentre o governo e a UNITA, em Abril, Julho, Agosto eSetembro. O MPLA abandona o marxismo-leninismo emOutubro.

1991MarçoIntroduz-se a Lei de Associações (14/91), permitindo oregisto e actividade de ONGs seculares e eclesiásticas,independentemente do MPLA.

AbrilOs mediadores portugueses anunciam uma ‘sessãoininterrupta rumo à paz’, em 4 de Abril.

MaioO governo de partido único é abolido por lei em 11 deMaio. Os Acordos de Bicesse são assinados em Portugal. As derradeiras tropas cubanas retiram-se e é criada aUNAVEM II.

NovembroAs várias facções da FLEC reúnem-se em Lisboa e formamo malfadado Conselho de Coordenação Supremo da FLEC.

1992AgostoA denominação da República Popular de Angola éalterada para República de Angola.

SetembroApesar de os níveis necessários de desmobilização nãoterem sido alcançados, as FAPLA e as Forças Armadas paraa Libertação de Angola (FALA) da UNITA juntam-se

formalmente para formarem as novas Forças ArmadasAngolanas (FAA), em 27 de Setembro. Os generais dasFALA abandonam-nas uma semana depois.

As eleições realizam-se em 29 e 30 de Setembro e sãoconsideradas “em geral livres e justas” por observadoresinternacionais, inclusive a ONU. Com 92 por cento decomparecimento às urnas, o MPLA ganha 54 por centodos votos para lugares no parlamento, enquanto que aUNITA ganha 34 por cento. José Eduardo dos Santosganha 49,6 por cento dos votos nas eleições parapresidente e Savimbi 40,7 por cento, tornando necessárioprogramar uma segunda volta.

OutubroSavimbi afirma que as eleições se caracterizaram porfraude e irregularidades. Em 5 de Outubro, a UNITA retira-se das FAA. Em 7 de Outubro, falando pela ‘OposiçãoDemocrática Angolana’, a UNITA adverte que rejeitaráquaisquer resultados anunciados antes do término dasinvestigações sobre irregularidades. Em 16 de Outubro, a ONU confirma que as eleições foram livres e justas.

Em 31 de Outubro, forças armadas e unidades de milíciada UNITA e do MPLA confrontam-se em combates nas ruasde Luanda, iniciando o regresso da violência e aderrapagem rumo à ‘terceira guerra’ de Angola. Nassemanas seguintes, muitas pessoas morrem em combatesentre militantes armados nas cidades. A liderança daUNITA em Luanda é virtualmente exterminada e muitosdos seus partidários são mortos. Mais tarde, o governoalegará que tal foi o resultado da acção de cidadãosenfurecidos, e negará o envolvimento de soldadosdesmobilizados, ‘ninjas’ (polícia antimotim criada pelogoverno) ou agentes do serviço secreto

1993JaneiroA UNITA inicia ofensivas em grande escala em áreas fora da capital.

Em 22 de Janeiro, em Luanda, dezenas de pessoas sãomortas em motins contra zairenses e angolanos queretornavam dos Congos.

Sob os auspícios da ONU, reúnem-se em Adis Abebafuncionários do MPLA e UNITA para tentar reviver oprocesso de paz. As conversações não foram conclusivas.

MarçoA UNITA conquista o Huambo depois de um cerco de 55dias.

AbrilEstabelece-se a Unidade de Coordenação de AssistênciaHumanitária (UCAH) das Nações Unidas.

A Representante Especial das Nações Unidas, MargaretAnstee, conduz negociações em Abidjan, Costa de Marfim.

MaioOs Estados Unidos concedem reconhecimentodiplomático pleno ao governo do MPLA.

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91Cronologia

As conversações de Abidjan encalham na questão dastropas de manutenção da paz da ONU chegarem antes oudepois do cessar-fogo. A ONU recusa-se a aprovar opedido de Margaret Anstee de uma força simbólica de1.000 pacificadores para quebrar o impasse. Asconversações fracassam.

JunhoA ONU condena a UNITA por continuar a guerra. AliouneBlondin Beye sucede a Margaret Anstee comoRepresentante Especial do Secretário-Geral.

SetembroO Conselho de Segurança impõe um embargo de petróleoe armas contra a UNITA. Nesse momento, a UNITA controlacerca de 70 por cento do território de Angola.

OutubroEm 6 de Outubro, a UNITA emite um comunicado de setepontos reafirmando a validade dos Acordos de Bicesse e asua aceitação das eleições de 1992. Nas ‘conversações deaproximação’ em Lusaka, os funcionários do MPLA e UNITAconcordam em retomar as negociações a 15 de Novembro.

DezembroEm Lusaka, as equipas de negociação não conseguemacordar sobre o número de soldados de cada lado queseriam incluídos nas forças armadas integradas. Umbombardeamento governamental nos subúrbios do Kuíto leva a UNITA a acusar o governo de tentar assassinar Savimbi.

1994FevereiroO governo bombardeia Huambo e a UNITA responde comfogo de artilharia contra Malanje.

Março-MaioOs negociadores e observadores, em Lusaka, concentram-se nas posições do governo a serem oferecidas à UNITA,sem alcançarem acordo. Para quebrar o impasse, a equipade mediação da Troika faz, a 17 de Março, uma propostarevista, que é finalmente aprovada pelo governo, commudanças menores, a 28 de Maio.

Junho-AgostoA UNITA responde às propostas de 28 de Maio, exigindoque se adicione Huambo à lista de províncias que lhecaberiam. Sob ameaça de sanções da ONU, a UNITArenuncia a esta exigência em Agosto, mas o governoobjecta à continuada insistência da UNITA em aprovar a selecção do governador do Huambo, e ataca a cidadeem 31 de Agosto.

SetembroEm nova carta, a UNITA aceita sem reservas as propostasde 28 de Maio.

OutubroA despeito dos confrontos militares crescentes, o Protocolode Lusaka é rubricado a 31 de Outubro.

NovembroO governo captura o Huambo, o quartel-general da UNITA,a 10 de Novembro, uma acção condenada pelo Conselhode Segurança e pelo governo dos Estados Unidos.

Em 14 de Novembro, uma equipa militar da UNITA discutacom o governo uma trégua a nível nacional, que entra emvigor dois dias depois.

Entre relatos constantes dos avanços militares do governo,e com cinco dias de atraso em relação ao planeado, oProtocolo de Lusaka é assinado em 20 de Novembro.Savimbi não comparece e Eugénio Manuvakola assina pela UNITA.

1995FevereiroA UNAVEM III é criada.

MaioO Presidente Dos Santos reúne-se com Savimbi, emLusaka, para conversações organizadas pela Zâmbia.

AgostoRealiza-se uma segunda reunião entre Dos Santos eSavimbi, em Franceville, no Gabão, tendo como anfitrião o Presidente Omar Bongo. O encontro reduztemporariamente as tensões suscitadas desde Janeiro,relativas a violações do cessar-fogo e à lentadisponibilização de tropas de manutenção da paz.

NovembroO aquartelamento dos soldados da UNITA começaoficialmente a 20 de Novembro.

DezembroA UNITA suspende o processo de aquartelamento, depoisde as FAA ocuparem localidades em redor de Soyo.

1996FevereiroNo fim do mês, a UNITA aquartelara cerca de 16.500soldados. O ritmo é mais reduzido após isto, na opinião daUNITA devido à lentidão na concessão de uma amnistiapor parte do governo.

MarçoRealiza-se uma quarta reunião entre Dos Santos e Savimbi,em Libreville, no Gabão. Concordam em concluir oprocesso de aquartelamento até Junho. É oferecida a vice-presidência a Savimbi.

MaioA 8 de Maio, é aprovada uma nova Lei de Amnistia, noseguimento das leis de amnistia de Julho de 1991 eDezembro de 1994.

JunhoNo final do prazo estabelecido para Junho, a UNITAaquartelara 52.000 soldados, quantidade abaixo da forçatotal declarada de 62.500.

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92 Accord 15

AgostoEm sessão extraordinária do seu congresso, a UNITAdeclina a oferta a Savimbi da vice-presidência, a despeitode uma resposta aparentemente positiva dadaanteriormente neste ano.

Setembro-NovembroO prazo de 20 de Setembro para a Comissão Conjuntaconcluir as tarefas militares, não é cumprido. No debateem curso sobre o estatuto especial de Savimbi, a UNITApropõe que lhe seja concedida o estatuto de Líder daOposição e que ele ocupe a posição de número dois emtermos protocolares. O governo rejeita a proposta.

DezembroOs generais da UNITA são incorporados nas FAA.

1997Fevereiro-MarçoAngola despacha dois batalhões para o Zaire, em apoio àrevolta de Laurent Kabila.

Em Março, a Comissão Conjunta aprova um textoconcedendo a Savimbi o título de Presidente do MaiorPartido da Oposição, com certos privilégios em actospúblicos e cerimónias protocolares do estado. O governorejeitara a sugestão anterior de Savimbi – ConselheiroPrincipal do Presidente, com responsabilidades especiaisno desenvolvimento rural e reconciliação nacional.

AbrilToma posse o Governo da Unidade e ReconciliaçãoNacional (GURN), detendo a UNITA quatro ministérios, mas Savimbi não comparece.

JunhoEntre tensões crescentes, é criada a Missão de Observaçãodas Nações Unidas em Angola (MONUA), sob a chefia deAlioune Blondin Beye, com um efectivo de 1.500 soldados.

AgostoO Conselho de Segurança da ONU proíbe viagens defuncionários da UNITA ao exterior e impede voos comorigem ou destino nas áreas controladas pela UNITA.

Setembro-OutubroSoldados angolanos cruzam a fronteira de Cabinda com a República do Congo, para apoiarem o General Sassou-Nguesso contra o Presidente Lissouba, alegando oenvolvimento deste último com a UNITA.

NovembroO governo assume o controlo de cidades em poder daUNITA nas zonas diamantíferas das Lundas.

1998Janeiro-FevereiroAs partes aceitam um calendário para as tarefas restantesnecessárias à implementação do Protocolo de Lusaka, masos prazos esgotam-se sem o cumprimento de algumastarefas. O prazo de conclusão do processo de paz a 28 deFevereiro não é cumprido.

MarçoA UNITA torna-se um partido político legalizado edesmobiliza-se formalmente, mas acredita-se amplamenteque terá conservado as suas unidades de combate de elitee 20.000 soldados.

JunhoAlioune Beye morre num acidente de avião na Costa deMarfim, a 28 de Junho.

JulhoO Presidente Dos Santos afirma que os ataques armadosda UNITA nos últimos dois meses obrigam o governo a“adoptar medidas adequadas para enfrentar o que é umestado não declarado de guerra”.

AgostoIssa Diallo substitui o falecido Alioune Beye comoRepresentante Especial para Angola.

As tropas angolanas recomeçam a combater na RepúblicaDemocrática do Congo (antigo Zaire), em apoio doPresidente Kabila.

A UNITA cessa a sua cooperação com a Troika de paísesobservadores, alegando parcialidade desta. O governoafirma que este facto significa o fim do processo de Lusakae suspende do GURN os quatro ministros da UNITA. Nofinal do mês a UNITA retomara um terço da área cedida acontrolo do governo no âmbito do Protocolo de Lusaka.

SetembroO governo anuncia que negociará apenas com a recém-formada UNITA-Renovada, uma facção de dissidentes daUNITA. A FNLA também se divide em duas facções, umaliderada por Lucas Ngonda, e a outra pelo fundadorHolden Roberto.

NovembroEmerge uma nova facção da UNITA, liderada por AbelChivukuvuku, que rejeita tanto a UNITA-Renovada como aluta armada levada a cabo por Savimbi.

DezembroNo quarto congresso do MPLA, o governo anuncia oregresso a uma estratégia totalmente militar – ‘paz atravésda guerra’ – declarando o fim do processo de Lusaka e aretirada da MONUA.

1999JaneiroA segunda de duas aeronaves da ONU é abatida sobreterritório da UNITA, não havendo sobreviventes.

A despeito de ser especificada na Constituição, a posiçãode primeiro-ministro, vaga desde Junho de 1996, éabolida. Dos Santos torna-se chefe de estado e chefe de governo.

FevereiroRetiram-se as forças restantes da ONU, que dá porterminada sua missão de manutenção da paz, com oargumento de que não há paz para ser mantida.

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93Cronologia

MaioO Conselho de Segurança das Nações Unidas cria painéisde peritos para examinar a forma como a UNITA viola assanções da ONU, e o modo de a comunidadeinternacional endurecer as sanções.

JulhoUm Manifesto pela Paz em Angola apela a um cessar-fogoimediato, diálogo entre os beligerantes e abertura decorredores humanitários. O manifesto é assinado porcentenas de angolanos amplamente conhecidos de todosos sectores da sociedade e, em seguida, é colocado emcirculação para o endosso da população em geral.

AgostoEnquanto a UNITA alegadamente aumenta os seusataques às cidades e vilas, Savimbi concede entrevistas narádio apelando a novas negociações, mas insistindo que“Lusaka está morta, completamente morta”.

SetembroAs FAA lançam uma contra-ofensiva, a partir de Malanje,Kuito e Huambo.

Outubro-DezembroA ONU autoriza a instalação de um escritório em Angola,em Outubro (embora sem nomear o seu director até Julhode 2000).

As FAA capturam muitas cidades no coração do territórioda UNITA, no planalto central, incluindo Bailundo eAndulo.

2000MarçoUm relatório da ONU sobre as sanções expõe as pessoas e países que ajudaram a UNITA a montar o seu arsenal,através de tráfico de diamantes e por outros meios.

AbrilO Conselho de Segurança estabelece um mecanismo defiscalização e cumprimento de sanções contra a UNITA eabre o caminho para acções adicionais contra os estadosque as desrespeitam.

É criado o Comité Inter-Eclesial para a Paz em Angola(COIEPA).

JulhoO Congresso Pro Pace, organizado sob os auspícios daIgreja Católica, pede um cessar-fogo imediato.

Setembro-OutubroAs FAA continuam a ter sucesso, capturando Cazombo, no Moxico. Um relatório da ONU estima que o número de deslocados cresceu para 2.7 milhões, desde Janeiro de 1998.

DezembroÉ divulgado o relatório final do Mecanismo de Fiscalizaçãode Sanções para Angola , que recomenda a continuaçãodas sanções.

2001AbrilEm adenda ao seu relatório de Dezembro, o Mecanismo deFiscalização de Sanções da ONU apresenta um relatório,afirmando que, embora a UNITA ainda conduza activamenteuma guerra de guerrilha, a fiscalização das sanções pelaONU, tem sido eficaz contra as suas linhas de fornecimento.

JunhoO governo estabelece uma Comissão para a Paz eReconciliação Nacional, com a participação de 24deputados.

As FAA informam ter ocupado diversas cidades e terrepelido um importante ataque da UNITA contra Uíge.

AgostoEm 10 de Agosto, a UNITA ataca um comboio no CuanzaNorte, causando a alegada morte de 440 pessoas.

SetembroA Igreja Católica e a Fundação Open Society-Angolalançam uma campanha por uma paz negociada. O seuobjectivo é efectuar uma simulação de referendo à paz.

DezembroAs tropas do governo empreendem uma ofensiva contra aUNITA. Grupos da sociedade civil exigem novamente umcessar-fogo imediato. O Sub-Secretário da ONU para osAssuntos Africanos, Ibrahim Gambari, anuncia que ogoverno está preparado para aceitar que a ONU retome oseu papel de mediação e para trazer a UNITA de volta àmesa de negociações.

2002FevereiroEm 22 de Fevereiro, as forças do governo matam Savimbino Moxico. O Vice-Presidente da UNITA, António Dembo,morre três dias depois, alegadamente de doença.

MarçoEm 13 de Março, o governo faz uma declaração unilateralde trégua e revela um plano de paz, prometendo permitirque a UNITA se reorganize e se integre na vida políticanacional, propondo uma amnistia e oferecendo-se paratrabalhar em conjunto com as igrejas e a sociedade civil.

A 15 de Março, os comandantes das FAA e UNITAencontram-se em Cassamba, no Moxico, para uma reuniãode pré-negociações. Concordam em prosseguir com asnegociações no Luena, onde se alcança um acordo a 30 de Março.

AbrilA 4 de Abril, após duas semanas de negociações, oMemorando de Entendimento de Luena é assinadoformalmente em Luanda pelos dois chefes de estado-maior, por Ibrahim Gambari pela ONU, e pelosembaixadores da Troika de países observadores.

Maio O comandante militar da UNITA afirma que 85 por centodas suas tropas estão recolhidas em campos de

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94 Accord 15

desmobilização, contudo, há preocupações sobre aescassez de alimentos.

AgostoA UNITA renega oficialmente a sua ala armada.

A ONU autoriza uma nova Missão em Angola (UNMA) porseis meses.

A conferência da Fundação Open Society-Angola sobre ‘AAgenda da Paz e Reconciliação em Angola’ reivindicamaior participação da sociedade civil.

OutubroAs FAA lançam uma campanha ‘final’ de contra-revolta emCabinda, alegadamente utilizando soldados da UNITArecém-incorporados. No final do mês, as FAA tinhamdestruído Kungo-Shonzo, a principal base de uma dasfacções da FLEC, a FLEC-FAC. O Presidente Dos Santossugere que a autonomia de Cabinda fará parte de umasolução pacífica.

Novembro É formalmente dissolvida a Comissão Conjunta quesupervisionava a implementação do Memorando deLuena. As questões pendentes devem ser tratadasbilateralmente entre o governo e a UNITA.

As diversas facções da UNITA concordam em unir-se sobuma autoridade única, a Comissão Política, já que a UNITA-Renovada resolve dissolver-se.

Dezembro Fernando da Piedade Dias dos Santos “Nandó” toma possecomo Primeiro-Ministro, quando este cargo érestabelecido.

O Conselho de Segurança da ONU levanta as sançõesremanescentes contra a UNITA.

2003JaneiroO Secretário de Assuntos Políticos da UNITA, AbílioCamalata “Numa”, pede que o povo perdoe a UNITA peloserros cometidos e pelas mortes que ocorreram durante aguerra, insistindo que a luta armada fora impulsionada porum “projecto político” e não fora uma aventura pessoal deuma só pessoa.

Alegadamente, os líderes da FLEC-FAC reúnem-se em Paris com funcionários do governo para conversaçõesexploratórias.

FevereiroO Ministro da Informação Hendrick Vaal Neto acusa aemissora católica Rádio Ecclésia de servir de “veículo deofensa, difamação e propaganda falsa e destrutiva contrafiguras e instituições públicas do país.”

O mandato da UNMA não é renovado pelo Conselho de Segurança.

Aníbal Lopes Rocha, governador de Cabinda, anuncia queo governo está a preparar um plano para resolver oconflito de Cabinda por meios pacíficos. O plano não se materializa.

AbrilUm representante da FLEC-FAC declara que, embora aindependência seja uma “solução desejável” para oconflito em curso, a FLEC-FAC permanece aberta anegociações sobre o futuro estatuto da província.

MaioO Alto Comissariado das Nações Unidas para osRefugiados começa a repatriar 150.000 refugiadosangolanos, principalmente da Zâmbia e RDC.

JunhoA UNITA realiza seu nono congresso e elege para seu novolíder o antigo representante em Paris, Isaías Samakuva.

AgostoA UNITA queixa-se de que os seus escritórios no Huamboforam atacados por jovens trajando T-shirts do MPLA.Outros escritórios foram alegadamente saqueados.

OutubroDezoito ex-oficiais da FLEC-FAC, que se renderamrecentemente, incorporam-se nas FAA.

O Escritório das Nações Unidas para a Coordenação daAssistência Humanitária (OCHA) relata que as Áreas deAcolhimento foram todas encerradas.

2004JaneiroO governo angolano anuncia ser provável a realização deeleições em 2006 que permitam a adopção de uma novaconstituição e de uma nova lei eleitoral, e a realização deum censo e recenseamento nacionais. A UNITA e ospartidos de oposição criticam o repetido atraso.

A Comissão Técnica da Comissão Constitucional daAssembleia Nacional apresenta o seu esboço da novaconstituição angolana, propondo um sistema semi-presidencialista com maior devolução do poder.

MarçoEm algumas cidades dão-se protestos esporádicos de ruacontra abusos de poder e falta de progresso sócio-económico, depois de dois anos de paz – algunsreprimidos violentamente pela polícia anti-motim.

A Fundaçaõ Open Society-Angola, bem como cerca detrinta outras organizações cívicas e partidos políticos,lançam uma Campanha por uma Angola Democrática,pressionando o governo a acelerar o processo dedemocratização e a marcar uma data para as eleições.

É lançada em Cabinda uma nova associação cívicachamada Mpabalanga, que reivindica um diálogorenovado, bem como o respeito pela identidade edesenvolvimento de Cabinda.

AbrilAs duas facções da FNLA voltam a unir-se.

JunhoA UNITA sauda cautalosamente o anúncio do Presidenteque a o Conselho da República, um orgão consultativo,começaria a discutir as possíveis datas para eleições.

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95Sugestões para leitura

Sugestões para leituraGeral! Bender, Gerald J. Angola sob o domínio português – Mito

e realidade (Lisboa: Sá da Costa, 1976)! Birmingham, David. Portugal e África (Basingtoke:

Macmillan, 1999)! Carvalho, Paulo de. Angola: quanto tempo falta para

amanhã? Reflexões sobre as crises política, económica esocial (Oeiras: Celta Editora, 2002)

! Domingues, Carlos Alberto. Guerra, justiça e paz:contribuição para a história contemporânea de Angola(Lisboa: Universitária, 2002)

! Hodges, Tony. Angola: do afro-estalinismo aocapitalismo selvagem (S. João do Estorial: Principia,2002)

! Mabeko-Tali, Jean-Michel. Dissidências e poder doestado: o MPLA perante si próprio (1962-1977). Ensaio dehistória política. 2 vols. (Luanda: Editorial Nzila, 2001)

! Mateus, Ismael, Reginaldo Silva & Bernardo Vieira (dir.)Angola: A festa e o luto. 25 anos de independencia(Lisboa: Vega Editora, 2002)

! Neto, Maria da Conceição. “Angola no século XX até1974”. Em: Valentim Alexandre (ed.), O império africano:séculos XIX e XX (Lisboa: Colibri, 2000)

! Pezarat Correia, Pedro. Descolonização de Angola. A joía da coroa do império português (Luanda: Ler &Escrever, 1991)

Processos de paz! Anstee, Margaret Joan. Orfão da Guerra Fria. Radiografia

do colapso do processo de paz angolano (Porto: Campodas Letras, 1997)

! Barroso, J. M. Durão. ‘A cooperação internacional e osprocessos de paz: o examplo angolano’ Estrategia 8/9(1991): 13-20

! Human Rights Watch. Angola explicada. Ascensão equeda do processo de paz de Lusaka (Nova Iorque:Human Rights Watch, 1999)http://www.hrw.org/portuguese/reports/angopor/

! Messiant, Christine. “Angola. A caminho de que paz ?”.História 51 (Novembro de 2000) 26-32

! Moura Roque, Fátima (coordenação). Apelos angolanos.Chegou a hora da paz e da reconciliação (Lisboa: Hugin,2000)

! Pezarat Correia, Pedro. Angola: do Alvor a Lusaka(Lisboa: Hugin, 1996)

Sociedade civil! Howen, Nicholas. Construção da paz e sociedade civil em

Angola: Um papel para a comunidade internacional(Londres: Departamento para DesenvolvimentoInternacional & Ministério dos Negócios Estrangeiros eda Commonwealth, 2001)

! Rede da Paz em Angola. A sociedade civil angolana e apaz. Como participar na edificação da paz?Documentação do workshop da Rede da Paz emAngola 29 a 31 de Maio de 2002 (Luanda: FriedrichEbert Stiftung/Rede da Paz/COIEPA, 2002)

Outros! Albuquerque, Carlos. Angola. A cultura do medo.

(Lisaboa: Livros do Brasil, 2002).! Cunha da Silva, José Paulino. As resolucões das Nações

Unidas sobre Angola (Luanda: Editorial Nzila, 2002)! Global Witness. “Os homens dos presidentes”. A história

devastadora das indústrias petrolíferas e bancárias naguerra privatizada de Angola (Londres: Global Witness,2002)http://www.globalwitness.org/reports/index.php?language=po

! Rafael Marques (dir.). Terror em Cabinda. 1° Relatóriosobre a situação dos direitos humanos em Cabinda,(Comissão Ad-Hoc para os Direitos Humanos/Coligação pela Reconciliação, Transparência eCidadania, 10 de Dezembro de 2002)

! Robson, Paul & Sandra Roque. “Aqui na cidade nadasobra para ajudar”. Buscando solidariedade e acçãocolectiva em bairros peri-urbanos de Angola (Luanda:Development Workshop, 2001)

Websites! Agência Angola Press (Angop)

www.angolapress-angop.ao! Jornal da Rádio Ecclésia (Igreja Católica)

www.apostolado.info! Jornal de Angola (estatal)

www.jornaldeangola.com! Boletim Ondaka (Development Workshop, Huambo)

www.ondaka-angonet.org/journal/ondaka.aspx! Cabinda

www.ibinda.org! Rede de ONGs angolanas

www.angonet.org! British-Angola Forum

www.britishangolaforum.org/public/index_portuguese.htm

! Conferência Pro Pace (Julho de 2000)http://members.tripod.com.br/~propace/

! Human Rights Watch (documentos sobre Angola)www.hrw.org/doc?t=africa&c=angola

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96 Accord 15

conciliation resourcesSobre a Conciliation ResourcesA Conciliation Resources (CR) foi criada em 1994 paraprestar auxílio internacional e servir como recurso nocampo da construção da paz e transformação de conflitos.O principal objectivo da CR é apoiar as actividades degrupos locais, que trabalhem a nível comunitário ounacional, para prevenir a violência ou para transformar osconflitos armados em oportunidades de desenvolvimentosocial, político e económico, baseado em relações mais justas.

Para tentar alcançar esse objectivo, a CR:• ajuda organizações a desenvolverem soluções inovadoras

e sustentáveis para os problemas de curto e longo prazorelacionados com conflitos armados;

• envolve grupos anteriormente marginalizados emprocessos de restabelecimento e construção da paz a nívelcomunitário ou nacional;

• ajuda a fortalecer as capacidades cívicas para o diálogo, e aresolução de problemas e acção construtiva a nível local,nacional e regional;

• contribui para o desenvolvimento e disseminação, local e internacional, da prática e teoria de transformação de conflitos

Número de entidade de beneficência no Reino Unido: 1055436

Para além do programa Accord, a CR trabalhou recentemente com:• grupos cívicos na Guiné, Libéria, Serra Leoa e Nigéria

• Kacoke Madit e seus parceiros no norte do Uganda

• jornalistas e organizações de comunicação social naNigéria, Serra Leoa e Uganda

• a organização não-governamental angolana ADRA e seus parceiros locais

• o Fórum Constitucional dos Cidadãos (CCF) das Fiji

• organizações não-governamentais e funcionários doestado na Geórgia e Abkhazia

Para mais informações, ou fazer um donativo, contacte:Conciliation Resources173 Upper StreetLondres N1 1RGReino Unido

Telefone +44 (0)20-7359 7728Fax +44 (0)20-7359 4081E-mail [email protected] www.c-r.org

Accord: an international review of peace initiatives forneceinformação e análise detalhados sobre situações de guerra eprocessos de paz num formato acessível. Esta publicaçãoperiódica tem por objectivo proporcionar um recurso práticode reflexão para todos que estão envolvidos em actividadesem prol da paz. Cada número é produzido em colaboraçãocom organizações locais e envolve autores com experiênciadirecta do processo de paz em questão.

Números anteriores da Accord lideram com situações deconflito na Libéria, Guatemala, Moçambique, Sri Lanka,Cambodja, Filipinas-Mindanao, Geórgia-Abkhazia, Irlanda doNorte, Serra Leoa, Tajikistan, norte do Uganda, Papua Nova

Guiné e Colômbia. Também foi publicado um númerotemático sobre a participação pública em processos de paz eum outro está a ser preparado sobre envolvimento de actoresnão-estatais em processos de paz.

A série Accord é publicado em inglês na sua totalidade e pode ser obtida gratuitamente no site da CR (www.c-r.org/accord). Para além desta edição em português sobreAngola, existem traduções (em espanhol, russo e outraslínguas) de vários números publicados.

Para encomendar um exemplar.

A série Accord