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1 CoPs: o Caso da S-as-P Autoria: Raphael de Jesus Campos de Andrade, Dorelland Ponte Lima, George Christian Linhares Bezerra, Ana Sílvia Rocha Ipiranga Resumo Desde os primórdios da humanidade, as pessoas se articulam voluntariamente para desenvolver o aprendizado sobre um determinado domínio, com foco na prática. A capacidade de discutir sobre a melhor maneira de realizar algum tipo de atividade é inerente ao homem. Sob um enfoque próprio às organizações, esse tipo de aprendizagem assume a denominação de Comunidade de Práticas (CoPs), que constitui o tema central desta pesquisa. As CoPs são grupos de profissionais que estabelecem relações de modo informal com o intuito de encontrar soluções para problemas da organização. Em vista disso, este trabalho tem como objetivo descrever uma determinada CoPs, tendo em vista aspectos como engajamento, práticas, identidade, negociação e aprendizagem. Trata-se da comunidade virtual Strategy-as-Practice (S-as-P), que discute o ato de “fazer estratégia”, o modo como a estratégia ocorre na prática. Os dados coletados diretamente do site da comunidade foram tratados com o recurso da análise qualitativa de conteúdo, que ainda foi amparada por pesquisa documental e observação participante. Os resultados demonstraram que a CoPs da S-as-P tem um núcleo principal delineado, no qual os participantes compartilham mensagens que representam contribuições evidentes ao debate de idéias e agregação de conhecimento com resultados de aprendizagem sobre o tema de domínio da CoPs sob estudo. Introdução A existência de redes de pessoas que desenvolvem de forma compartilhada o aprendizado sobre um domínio específico, com foco na prática é, provavelmente, quase tão antiga quanto o próprio homem. As corporações de artesões da Grécia Antiga, por exemplo, constituíam contextos sociais de aprendizagem intimamente ligados a uma prática e as associações da Idade Média, por sua vez, formavam aprendizes e disseminavam novas práticas como formas de desenvolvimento social (WENGER; SNYDER, 2000). Sob um enfoque mais próprio à gestão das organizações atuais, esse tipo de aprendizagem ligado às atividades produtivas assume a denominação de Comunidade de Práticas (CoPs). O termo tem sua origem relacionada aos estudos sobre aprendizado desenvolvidos pelo Institute for Research on Learning, sediado na Califórnia (STEWART, 1998). As Comunidades de Práticas são essencialmente grupos de pessoas que compartilham uma preocupação ou uma paixão por algo que fazem e que procuram aprimorar cada vez mais suas habilidades por meio de trocas de experiências (WENGER, 2001). Lave e Wenger (1991) as definem como um grupo de profissionais que estabelecem relações de modo informal com o intuito de encontrar soluções para uma classe comum de problemas, incorporando conseqüentemente um estoque de conhecimento. É a partir das próprias situações e relações cotidianas que nascem as Comunidades de Práticas. Para Stewart (1998, p. 86), “surgem por consenso próprio: três, quatro, vinte, talvez trinta pessoas vêem-se atraídas umas às outras por uma força que é tanto social quanto profissional; elas cooperam de forma direta, sondam-se mutuamente, ensinam umas às outras, exploram juntas um novo assunto”. A importância das Comunidades de Práticas dentro do processo de aprendizagem organizacional é ressaltada na literatura e ganha destaque pelo crescimento de pesquisas que

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CoPs: o Caso da S-as-P

Autoria: Raphael de Jesus Campos de Andrade, Dorelland Ponte Lima, George Christian Linhares Bezerra, Ana Sílvia Rocha Ipiranga

Resumo Desde os primórdios da humanidade, as pessoas se articulam voluntariamente para desenvolver o aprendizado sobre um determinado domínio, com foco na prática. A capacidade de discutir sobre a melhor maneira de realizar algum tipo de atividade é inerente ao homem. Sob um enfoque próprio às organizações, esse tipo de aprendizagem assume a denominação de Comunidade de Práticas (CoPs), que constitui o tema central desta pesquisa. As CoPs são grupos de profissionais que estabelecem relações de modo informal com o intuito de encontrar soluções para problemas da organização. Em vista disso, este trabalho tem como objetivo descrever uma determinada CoPs, tendo em vista aspectos como engajamento, práticas, identidade, negociação e aprendizagem. Trata-se da comunidade virtual Strategy-as-Practice (S-as-P), que discute o ato de “fazer estratégia”, o modo como a estratégia ocorre na prática. Os dados coletados diretamente do site da comunidade foram tratados com o recurso da análise qualitativa de conteúdo, que ainda foi amparada por pesquisa documental e observação participante. Os resultados demonstraram que a CoPs da S-as-P tem um núcleo principal delineado, no qual os participantes compartilham mensagens que representam contribuições evidentes ao debate de idéias e agregação de conhecimento com resultados de aprendizagem sobre o tema de domínio da CoPs sob estudo. Introdução

A existência de redes de pessoas que desenvolvem de forma compartilhada o aprendizado sobre um domínio específico, com foco na prática é, provavelmente, quase tão antiga quanto o próprio homem. As corporações de artesões da Grécia Antiga, por exemplo, constituíam contextos sociais de aprendizagem intimamente ligados a uma prática e as associações da Idade Média, por sua vez, formavam aprendizes e disseminavam novas práticas como formas de desenvolvimento social (WENGER; SNYDER, 2000).

Sob um enfoque mais próprio à gestão das organizações atuais, esse tipo de aprendizagem ligado às atividades produtivas assume a denominação de Comunidade de Práticas (CoPs). O termo tem sua origem relacionada aos estudos sobre aprendizado desenvolvidos pelo Institute for Research on Learning, sediado na Califórnia (STEWART, 1998).

As Comunidades de Práticas são essencialmente grupos de pessoas que compartilham uma preocupação ou uma paixão por algo que fazem e que procuram aprimorar cada vez mais suas habilidades por meio de trocas de experiências (WENGER, 2001). Lave e Wenger (1991) as definem como um grupo de profissionais que estabelecem relações de modo informal com o intuito de encontrar soluções para uma classe comum de problemas, incorporando conseqüentemente um estoque de conhecimento.

É a partir das próprias situações e relações cotidianas que nascem as Comunidades de Práticas. Para Stewart (1998, p. 86), “surgem por consenso próprio: três, quatro, vinte, talvez trinta pessoas vêem-se atraídas umas às outras por uma força que é tanto social quanto profissional; elas cooperam de forma direta, sondam-se mutuamente, ensinam umas às outras, exploram juntas um novo assunto”.

A importância das Comunidades de Práticas dentro do processo de aprendizagem organizacional é ressaltada na literatura e ganha destaque pelo crescimento de pesquisas que

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estão sendo desenvolvidas recentemente no mundo e no Brasil (TERRA; GORDON, 2002; SOUZA-SILVA, J. C.; DAVEL, E., 2007). Os trabalhos compreendem abordagens teóricas e análises empíricas diversas que se debruçam comumente sobre casos de empresas ou instituições públicas (CABELLEIRA, 2007; KIMIECK, 2002; GAZZOLI, 2006; IPIRANGA et al., 2005), mas também se destacam casos de comunidades de consultores (VIEIRA; FEITOSA; CORREIA, 2007) e de comunidades que se desenvolvem em ambiente predominantemente virtual (CHANDON, 1999).

Seguindo essas premissas teóricas, este trabalho tem como objetivo descrever uma determinada Comunidade de Práticas, tendo em vista aspectos como o engajamento mútuo dos membros, o foco nas práticas desenvolvidas, a identidade partilhada, a negociação de significados, o processo de aprendizagem e a produção de conhecimento. Trata-se da comunidade virtual Strategy-as-Practice (S-as-P), que é resultado da união de autores de diversas nacionalidades como Richard Whittington, Paula Jarzabkowski, Henk Volberda e outros interessados em fomentar estudos no campo da estratégia como prática social.

A Estratégia como prática é uma abordagem que vem ganhando espaço no meio acadêmico, principalmente na Europa, e representa um contraponto às perspectivas tradicionais, predominantemente baseadas nos princípios da organização industrial, que dão pouca atenção para o cotidiano, para o que os estrategistas realmente fazem.

As principais preocupações dessa abordagem estão ligadas à questão de “fazer estratégia” tal como ela ocorre na prática. Estudar estratégia a partir desse prisma é buscar compreender como os atores concebem a estratégia a partir de suas interações com outros atores, recorrendo a práticas específicas dentro de um determinado contexto (JARZABKOWSKI; WILSON, 2004).

No plano metodológico, a abordagem adotada é qualitativa e o nível da pesquisa é descritivo. Quanto ao delineamento do trabalho, realizou-se uma pesquisa documental dos dados coletados diretamente do site da comunidade. Além disso, utilizou-se a observação participante, visto que os autores desta pesquisa são membros da comunidade e, estão, inclusive, levando ao fórum virtual as questões que foram aqui discutidas. O tratamento das informações foi feito com o recurso da análise de conteúdo.

Além desta introdução, este artigo está dividido em cinco partes: na primeira parte, apresenta-se uma abordagem conceitual das Comunidades de Práticas; na segunda parte, trata-se de uma discussão sobre a estratégia como prática; a terceira parte diz respeito aos procedimentos metodológicos desta pesquisa; a quarta parte tem a ver com a descrição do caso da comunidade de Strategy-as-Practice; e por fim, as considerações finais são apresentadas. 1. Comunidade de Práticas

As Comunidades de Práticas se constituem como ambientes onde, motivadas pela busca de um empreendimento comum, as pessoas se propõem a compartilhar conhecimentos e experiências de modo voluntário. Nesse ambiente, o conhecimento está intimamente relacionado às práticas cotidianas, a aprendizagem é contextualizada nas ações do dia-a-dia de trabalho, nas atividades produtivas das pessoas, não se restringindo a situações específicas como aulas, sessões de treinamento e leitura de livros (WENGER, 2001).

As Comunidades de Práticas podem apresentar diversas configurações, tendo em vista aspectos como tamanho, meios de comunicação utilizados, origem de seus participantes, heterogeneidade dos papéis por eles desempenhados, formalidade ou não com a qual são reconhecidas, ambiente em que operam (presencial ou virtual) etc.

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Wenger (2001) observa algumas características que definem as Comunidades de Práticas e as distinguem de outros grupos.

Primeiramente, elas possuem uma identidade própria, que se desenvolve ao longo do tempo por meio das trocas de experiências e significados e dos empreendimentos comuns de seus membros. Esses empreendimentos não são delimitados a partir de uma agenda, com cronograma pré-determinado; eles surgem da tentativa de desenvolver habilidades em função de uma determinada prática, e não apenas do cumprimento de objetivos determinados. Além disso, as atividades das Comunidades de Práticas resultam em aprendizado e desenvolvem uma forma particular de lidar com as questões que compartilham.

No sentido de facilitar o reconhecimento de uma Comunidade de Práticas, Wenger (1999) sugere como fundamental a identificação de três elementos característicos, que são: domínio, prática e comunidade. Esses elementos não servem apenas para a identificação de uma Comunidade de Práticas, mas, mais do que isso, representam aspectos distintivos que motivam a participação das pessoas numa determinada comunidade.

O domínio representa a área de conhecimento em torno da qual convergem os interesses dos membros da comunidade, constitui uma base comum e um senso de identidade. Bem definido, o domínio legitima a comunidade pela afirmação dos propósitos e valores dos membros e outros atores interessados (WENGER; McDERMOTT; SNYDER, 2002). O conceito de domínio é resultado da pressuposição de que o “fazer” está intrinsecamente ligado ao “saber”, visto que o acúmulo de experiências resulta em áreas de conhecimento mais ou menos consolidadas historicamente e também porque a descoberta de novas maneiras de se realizar uma determinada tarefa pode ser expressa e transmitida por meio da linguagem.

A prática é o conjunto de ações dos indivíduos dentro da comunidade, incluindo aspectos tácitos e explícitos do domínio da comunidade, como, por exemplo, a apresentação de casos e histórias, o desenvolvimento de teorias, o estabelecimento de regras, frameworks, modelos, princípios, a criação de ferramentas, a produção de artigos etc. Conforme Wenger (2001), o termo prática denota um conjunto de maneiras socialmente definidas de se realizar algo em um domínio específico: um jogo de aproximações comuns e padrões compartilhados que criam uma base para ação, comunicação, solução de problemas, desempenho e responsabilidade. A prática compreende também um modo de se comportar, uma perspectiva em relação aos problemas, um estilo de pensamento e até mesmo uma postura ética, constituindo-se numa identidade da comunidade.

O resultado da prática é a própria comunidade, que diz respeito às trocas coletivas de experiências e significados. É com base nos interesses que têm em relação ao domínio que os membros se envolvem em atividades diversas, participam de discussões, prestam ajuda mútua e compartilham informações. Wenger (2001) ressalta que a existência de uma visão compartilhada pelos membros e o estabelecimento de regras para o funcionamento da comunidade são fundamentais para a promoção de um relacionamento de confiança.

A interação dentro da comunidade leva os participantes a discutirem aspectos variados de suas práticas e compartilharem conhecimentos e experiências de forma contínua. Dessa forma, eles vão construindo um domínio que, além de embasar a prática, vão transformando suas próprias identidades. De fato, os membros podem assumir diferentes tipos de participação em decorrência das respectivas necessidades, interesses e perspectivas que assumem em relação à comunidade. Para Wenger (1999), os tipos de participação podem ser classificados como: (1) Grupo principal: um pequeno grupo cuja paixão e envolvimento energizam a comunidade; (2) Adesão completa: membros que são reconhecidos como praticantes e definem a Comunidade; (3) Participação periférica: pessoas que pertencem à comunidade, mas com menos

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envolvimento e autoridade, seja por se tratar de um novato ou porque não têm muito compromisso pessoal com a prática; (4) Participação transacional: pessoas de fora da comunidade que interagem ocasionalmente para receber ou prover um serviço sem se tornar, necessariamente, um membro da comunidade; (5) Acesso passivo: uma grande quantidade de pessoas que tem acesso aos artefatos produzidos pela comunidade, como publicações, site ou suas ferramentas.

O desenvolvimento de tipos de participação como “grupos principais” e “adesão completa” demanda tempo, mas o que realmente define uma Comunidade de Práticas não são os seus anos de existência, e sim o nível de engajamento de seus membros na busca de um empreendimento comum e no compartilhamento de conhecimentos e experiências capazes de gerar um aprendizado significativo.

Essa preocupação com o processo de aprendizagem e com o desenvolvimento de habilidades relacionadas a atividades produtivas remete à distinção que Nonaka e Takeuchi (1995) fazem entre conhecimento tácito e explícito. O conhecimento explícito pode ser facilmente “processado” por um computador, transmitido eletronicamente ou armazenado em bancos de dados. No entanto, a natureza subjetiva e intuitiva do conhecimento tácito dificulta o processamento ou a transmissão do conhecimento adquirido por qualquer método sistemático ou lógico. Para que possa ser comunicado e compartilhado, o conhecimento tácito tem que ser convertido em palavras ou números que qualquer pessoa possa compreender. É exatamente durante o tempo em que essa conversão ocorre que o conhecimento é criado.

Gazzoli (2006) afirma que a expressão dos indivíduos e a transmissão do conhecimento tácito se tornam mais fáceis no caso das Comunidades de Práticas, justamente por tratarem das ações diárias de seus membros, de suas práticas e experiências de trabalho. “De fato, o aprendizado mais poderoso vem da experiência direta. A criança aprende a comer, andar e falar através de tentativa e erro; aprende com o corpo, não apenas com a mente” (NONAKA; TAKEUCHI, 1995, p. 9). Wenger (2001) acrescenta que o compartilhamento do conhecimento tácito é possível somente mediante o crescimento da confiança entre os membros do grupo.

Para que o estabelecimento dessa confiança seja possível é preciso que as Comunidades de Práticas desenvolvam um autogerenciamento por meio de um processo de negociação interna das regras de funcionamento do grupo. O conceito de negociação, que dá conta dos processos de interpretação e tipificação a que recorrem os participantes de uma determinada Comunidade de Práticas, leva a considerar cada membro como a sede última do sentido e da negociação. Em conseqüência, uma Comunidade de Práticas surge como se estivesse fundada nos procedimentos interpretativos de seus membros. Isso não quer dizer que os símbolos e significados vigentes possuem um peso de realidade efetiva, mas significa que as definições de cada um dos membros constituem o processo global de interação.

Lave e Wenger (1991) argumentam que a aprendizagem é sempre situada, ou seja, é indissociável da atividade, do contexto e da cultura na qual ocorre. Nesse sentido, as Comunidades de Práticas se caracterizam como contextos sócio-históricos, nos quais ocorre o aprendizado social, mediante a negociação de significados, isto é, o processo pelo qual experimentamos o mundo e nosso compromisso nele como algo significativo. Independente do que falemos, agimos, pensemos, resolvamos problemas ou sonhemos acordados, sempre nos ocupamos de significados (WENGER, 2001).

O processo de negociação de significados pressupõe: (1) ser ao mesmo tempo dinâmico e histórico; (2) resistência e maleabilidade; (3) competência mútua de influenciar e ser influenciado; (4) intervenção de uma multiplicidade de fatores e perspectivas; (5) a produção de um novo status a partir da convergência desses fatores e perspectivas; (6) o fato de que esse novo status é incompleto, efêmero e específico para cada situação. A negociação, portanto, traz a idéia

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de uma interação contínua que pressupõe um processo de troca entre os indivíduos. O significado negociado é ao mesmo tempo histórico e dinâmico, contextual e único.

As questões e dimensões teóricas mais relevantes até aqui desenvolvidas sobre Comunidades de Práticas estão reunidas de forma simplificada no Quadro 1.

DIMENSÕES CARACTERÍSTICAS

Engajamento mútuo e empreendimento comum

Está ligado ao processo de participação ativa numa comunidade. A vontade de se aprofundar num domínio de conhecimento é um fator importante de engajamento. O empreendimento comum refere-se ao processo de desenvolver projetos e idéias conjuntamente, visando contribuir com a geração de conhecimentos para a comunidade de prática.

Aprendizagem contextualizada na prática

O processo de conhecer está vinculado a uma prática cotidiana. Em outras palavras, conhecer é ser capaz de participar de uma prática socialmente legitimada por uma comunidade.

Surgimento é voluntário e informal

Uma comunidade de prática surge sem a necessidade dos mesmos padrões que moldam as estruturas formais de uma organização.

Identidade partilhada Por meio da associação em comunidades, desenvolvendo projetos conjuntamente, adotam-se sistemas de crenças, rotinas, caminhos de fazer as coisas e, conseqüentemente, desenvolve-se uma identidade partilhada.

Negociação de significados

Os empreendimentos comuns constituem-se em contextos relevantes para que a negociação de significados aconteça. Assim, as pessoas, conjuntamente, negociam ativamente experiências e vivências práticas, bem como produzem artefatos. É no relacionamento das experiências individuais e da competência social que a aprendizagem acontece.

Quadro 1: Dimensões da comunidade de prática. Fonte: Adaptado de Wenger (2001) e Souza-Silva e Davel (2007).

A seguir, apresentam-se os aspectos conceituais da estratégia como prática, que

representa o domínio central da Comunidade de Práticas que será investigada. 2. Estratégia como prática

A estratégia como prática é uma nova abordagem do campo da estratégia que tem caminhado para se consolidar como uma disciplina autônoma. Sob a perspectiva dessa abordagem, a estratégia, antes de tudo, é algo que as pessoas fazem no dia-a-dia, que pode ser percebido como uma prática social como outra qualquer. Como em qualquer outra atividade, as pessoas que fazem estratégias podem ser ajudadas a melhorar suas práticas por meio da troca de experiências com outras pessoas, outros estrategistas (WHITTINGTON, 2004).

Como explicam Jarzabkowski e Wilson (2004), estudar estratégia a partir desse prisma é buscar uma explicação de como os atores concebem a estratégia a partir de suas interações com outros atores, recorrendo a práticas específicas dentro de um determinado contexto. A estratégia está relacionada ao conhecimento sobre onde e quando ocorrem as decisões dos atores e como eles constituem e reconstituem um sistema de práticas decisórias compartilhadas ou negociadas (JARZABKOWSKI; WILSON, 2004).

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A estratégia como prática é relativamente recente nos estudos organizacionais e pode ser mais profundamente compreendida dentro do amplo contexto de mudanças observadas no corpo das ciências sociais desde as décadas de 1960 e 1970, quando as pesquisas em estratégia passaram a buscar uma maior proximidade com o cotidiano, com as práticas que se realizam em diversos campos sociais.

Whittington (2004), um dos maiores expoentes no campo da estratégia como prática, argumenta que a pesquisa em estratégia passa por um momento estimulante, evidenciado por uma postura mais crítica e pela adoção de diferentes perspectivas:

Por um longo período de tempo, a estratégia esteve presa às suposições modernistas dos Estados Unidos da década de 1960, país em que se originou. O modernismo manteve a estratégia restrita em termos epistemológicos, pois considerou a imparcialidade científica superior ao engajamento prático, o geral superior ao contextual, e o quantitativo superior ao qualitativo. Hoje, no entanto, o ceticismo pós-moderno, de certa forma, está quebrando essas restrições epistemológicas e fazendo com que o monopólio modernista comece a se desintegrar (…). As generalizações quantitativas e imparciais do modernismo tornaram-se apenas um dos possíveis caminhos para a pesquisa em administração estratégica (Whittington, 2004, p. 45).

Tureta et al. (2006) comentam que tal movimento voltado para a prática encontra grande aceitação entre os insatisfeitos com as teorias sociais modernas (fundadas nas noções de homo economicus e homo sociologicus) e com as high-moderns (mentalismo, intersubjetivismo e textualismo), que são versões universalistas e intelectualistas das teorias culturalistas. A estratégia como prática é um movimento fortemente influenciado pelas tradições de pesquisa interpretativista e culturalista, cujas origens são atribuídas aos trabalhos de Wittgenstein e Heidegger.

É nesse contexto que a estratégia como prática ganha destaque dentro dos estudos organizacionais e, nesse avanço rumo à prática, o continente europeu desempenha, não ocasionalmente, um papel central. Como explica Whittington (2004), toda uma tradição européia, que apresenta uma maior proximidade entre academia e prática, construiu um legado intelectual mais amplo e possibilitou a consolidação de pesquisas qualitativas e contextuais de campo.

Além dessa tradição, pode-se supor que a atual conjuntura político-econômica da Europa propicia o desenvolvimento de uma abordagem contrária ao discurso norte-americano sobre a estratégia. É nesse sentido que Whittington e outros autores defendem uma perspectiva européia para a estratégia, que possa manter o foco na prática e apresentar uma série de questões úteis para o seu desenvolvimento, tais como (CLEGG; CARTER; KORNBERGER, 2004): onde e como a atividade de criação e administração de estratégias é realmente feita? Quem realiza esta atividade? Quais são as competências necessárias a esta atividade e como elas são adquiridas? Quais são as ferramentas comuns e as técnicas de criação e administração de estratégias? Como esta atividade é realizada? Como seus resultados são divulgados e utilizados?

Os dois principais objetivos dessa corrente liderada por Whittington se constituem em tratar a estratégia como uma importante prática social, que exige uma profunda análise de cunho sociológico; e transformar esse conhecimento numa maneira de melhorar o modo como as estratégias são conduzidas. Whittington et al. (2003) também destacam uma preocupação em

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intensificar os graus de reflexão entre os estrategistas e iniciar um programa de reforma envolvendo praticantes e comunidade acadêmica.

Uma agenda de pesquisa relacionada a todos esses questionamentos está sendo fomentada e compartilhada por diversos autores e vem ganhando corpo dentro dos estudos organizacionais e das práticas gerenciais. Essa agenda é formulada e realizada especialmente a partir da troca de experiências que ocorre na Comunidade de Práticas Strategy-as-Practice (S-as-P), que será apresentada a partir das categorias relacionadas às CoPs logo após o item de metodologia desta pesquisa, que está desenvolvido logo a seguir. 3. Metodologia

O propósito do artigo, de apresentar os aspectos fundamentais da Comunidade de Práticas Strategy-as-Practice, conduziu à escolha da abordagem qualitativa para realizar a investigação, opção justificada pela assertiva de Richardson (1999, p. 80) de que uma das situações em que se aplica esse tipo de pesquisa é a do uso de observações “como indicadores de funcionamento de estruturas sociais”, como é o caso das Comunidades de Práticas, o que atribui à investigação uma natureza descritiva. Essa adequação do método ao propósito da investigação é fortalecida pelo conteúdo de simbolismo e subjetividade inerente às Comunidades de Práticas, notadamente nesse caso caracterizado por questões ligadas à estratégia como uma prática social.

Quanto ao delineamento do trabalho, realizou-se uma pesquisa documental dos dados coletados diretamente do site da comunidade. Além disso, utilizou-se a observação participante, visto que os autores desta pesquisa são membros da comunidade e, estão, inclusive, levando ao fórum virtual as questões que foram aqui desenvolvidas.

A pesquisa documental se caracteriza pela busca de informações em documentos que não receberam nenhum tratamento científico, como relatórios, reportagens de jornais, revistas, cartas, filmes, gravações, fotografias, sites (como no caso deste artigo), entre outras matérias de divulgação. Por sua vez, a observação participante ocorre quando o pesquisador faz parte do grupo e, por isso, deve acompanhá-lo em situações informais ou formais, interrogando-o sobre seus atos e significados por meio de um diálogo constante (OLIVEIRA, 2007).

O tratamento das informações foi feito por meio da análise de conteúdo, que visa identificar o que está sendo dito sobre determinado tema. Trata-se de um conjunto de técnicas de análise das comunicações, visando obter, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção destas mensagens (VERGARA, 2006).

A identificação das dimensões de análise desta pesquisa teve como base o diálogo entendido à luz de categorias e informações contextuais variadas fazendo emergir a interpretação como elemento intrínseco ao processo de pesquisa. Desta forma, iniciando com as categorias articuladas ao longo do referencial teórico, este processo levou, em um segundo momento, a descrição das categorias empírico-analíticas, entre estas: “engajamento mútuo e o empreendimento comum estabelecidos pelos membros”, “aprendizagem contextualizada na prática”, “surgimento voluntário e informal da comunidade”, “identidade partilhada e a negociação de significados”.

O item a seguir apresenta a descrição do caso da Comunidade de Práticas Strategy-as-Practice, a análise dos dados de acordo com as dimensões delineadas no procedimento metodológico e os resultados finais da pesquisa.

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4. O caso da CoPs S-as-P

A comunidade Strategy-as-Practice (S-as-P) é anunciada em seu site (Figura 1) como um grupo de estudiosos interessados em questões ligadas ao “conceber” e ao “fazer” estratégia. Esses estudiosos procuram tratar de uma variedade de abordagens teóricas e perspectivas práticas sobre organizações, construção de sentido, análise de discurso, entre outras coisas. O principal ponto de acordo entre os participantes diz respeito aos processos e práticas que constituem as atividades do dia-a-dia da vida organizacional e da relação dessas atividades com a realização dos objetivos estratégicos, que são compreendidos dentro de uma perspectiva macro-social, isto é, uma abordagem mais voltada para a cooperação sistemática entre o maior número possível de empresas. Portanto, pode-se inferir que a S-as-P é uma CoP de práticas de ensino e pesquisa sobre estratégia como prática. Essa inferência será questionada ao longo da análise dos dados e retomada durante a apresentação dos resultados.

Como pretende teorizar sobre as práticas relacionadas às estratégias que são de fato desenvolvidas dentro das organizações, a CoPs S-as-P procura situar as atividades dos estrategistas dentro de um contexto mais amplo de ação. Dessa forma, ela partilha com a pesquisa tradicional sobre estratégia uma preocupação com a questão do desempenho, destacando a significância de resultados múltiplos proporcionados pelas estratégias e suas interações ao longo do tempo.

Mas, enquanto a Teoria Econômica Neoclássica e outras perspectivas teóricas mais conservadoras se preocupam com os retornos superiores de cada empresa individualmente, a estratégia como prática e, conseqüentemente, a CoPs S-as-P dedicam uma atenção maior ao desenvolvimento dos setores econômicos como um todo ou de grandes espaços geográficos a partir da cooperação entre as organizações por meio de suas práticas. Essa lógica da integração por meio do compartilhamento de práticas pode ser observada, por exemplo, nas principais diretrizes da União Européia, cuja realização mais significativa é a criação de uma moeda comum a todos os seus países membros.

Por conta da natureza de suas preocupações, a S-as-P está envolvida, entre outras coisas, na discussão de metodologias qualitativas capazes de examinar o interior dos processos estratégicos e das práticas dos estrategistas nas organizações. Essas metodologias são debatidas sempre no sentido de encontrar caminhos e instrumentos de pesquisa não apenas sobre o papel dos acadêmicos e estudiosos da área de atividades estratégicas, mas também sobre as atividades daqueles que conhecem e produzem estratégias somente a partir da experiência cotidiana, tais como consultores, gerentes das áreas funcionais de empresas, empreendedores e também formuladores de políticas públicas.

A S-as-P pretende ser um fórum de discussões para estudiosos interessados em pesquisar, ensinar e realizar a estratégia como prática. Através da S-as-P é possível encontrar estudiosos com interesses e posicionamentos semelhantes, ter acesso a notícias e eventos, contribuir para a agenda de pesquisa da estratégia como prática, consultar e comentar trabalhos de pesquisa de outros membros, obter arquivos da biblioteca virtual ou colaborar com a mesma e, especialmente, interagir no Fórum de Discussões. Constata-se, portanto, que a S-as-P é uma CoPs capaz de estimular o engajamento dos seus membros, visto que oferece recursos, apoio, desafios e estímulos.

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Figura 1: Página principal da CoPs S-as-P na internet. Fonte: Endereço eletrônico www.s-as-p.org.

Criada voluntariamente por pesquisadores da área de estratégia em julho de 2002, a CoPs S-as-P vem sendo moderada e mantida por David Seidl, da Universidade Ludwig-Maximilians de Munique, e Paula Jarzabkowski, pesquisadora do Grupo de Administração Estratégica da Universidade de Aston, no Reino Unido, e conta ainda com o apoio financeiro da Sociedade para o Progresso dos Estudos sobre Administração e da Revista de Estudos sobre Administração.

Em março de 2008, a S-as-P possuía 1015 registros cadastrais provenientes de cerca de noventa países dos cinco continentes. Esse número de registros não corresponde necessariamente ao número de participantes, pois muitos deles estão cadastrados mais de uma vez sob diferentes endereços eletrônicos. Desse total, 133 membros nasceram ou são radicados no Brasil. Apesar dessa considerável representação no Fórum, as participações desses membros têm sido muito discretas, especialmente quando comparadas aos grupos principais de participação, com destaque para as contribuições de Paula Jarzabkowski e Richard Whittington. Portanto, pode-se classificar a participação brasileira no fórum da S-as-P como acesso passivo, de acordo com a tipologia estabelecida por Wenger (1999) e assinalada ao longo do referencial teórico desta pesquisa, visto que foram identificadas cinco postagens brasileiras arquivadas até o final de fevereiro de 2008.

Num levantamento realizado em julho de 2003, ou seja, um ano após o início do grupo, os moderadores apresentaram a seguinte estatística sobre o perfil de atuação dos então 370 membros: 51% eram acadêmicos, 26% eram estudantes (mestrado, doutorado e graduação), 15% eram profissionais e 8% foram agrupados na categoria “Outros”.

A primeira troca de idéias da S-as-P decorreu de uma publicação do pesquisador britânico Richard Whittington. Depois de enaltecer a agenda de pesquisa proposta pelos moderadores como um “fabuloso” ponto de partida, Whittington pergunta até onde a perspectiva da estratégia como prática pode ser relevante para outras áreas de trabalho como, por exemplo, contabilidade, recursos humanos e marketing, para além da estratégia em si. Ele acrescenta que, se isso pode soar ambicioso neste estágio inicial com estratégia, talvez já exista material de pesquisa nessas áreas.

Respondendo a essas questões, Ducan Lewis da Universidade de Glamorgan (Reino Unido) sugere o livro de Hosdkison e Sparrow (2002) sobre estratégia e psicologia. Da Universidade de Aalborg, na Dinamarca, Brian Vejrum Sørensen alega que o foco na prática pode representar uma importante contribuição para os debates, ao conceituar o caráter internalizado e de inserção social do aprendizado, transpondo, assim, o fosso entre aprendizado individual e aprendizado organizacional/estratégico. Fechando esse primeiro ciclo de discussões, o Professor John Hendry, da Universidade de Londres, coloca-se em contraposição às colocações de Whittington a partir do seguinte posicionamento:

Existe uma tática familiar em seminários e conferências que consiste em fazer perguntas que ninguém mais é capaz de responder além de você mesmo e eu suspeito que você [Whittington] o tenha feito aqui sem perceber… Não estou certo se compensa compartilhar experiências em estratégia como prática, mas no espírito das coisas, eu o farei… A contabilidade pode não ser a única área da administração que estabeleceu um modelo pelo qual se pode realizar a estratégia como prática, mas parece ser o mais desenvolvido e adequado… Em certo sentido, contudo, isso vai contra o seu próprio foco sobre os

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praticantes de estratégia e, se partirmos desse foco, então a sua referência à sociologia da ciência é certamente apropriada… Acho, entretanto, que pode haver uma significativa diferença entre ciência e estratégia como prática social, a saber, que o cientista é um construto social relativamente bem definido… ao passo que o estrategista não o é. Assim, enquanto os filósofos se preocupam com “o que é ciência”, os sociólogos tendem a defini-la na prática como “o que os cientistas fazem”, e, em estratégia, tendemos a ir em direção oposta e definimos estrategistas como “pessoas que fazem estratégia”. Tais ponderações ainda geram um comentário do Professor Richard Bean, da

Universidade Flórida A&M, advertindo que a contabilidade não é uma área da administração, e sim uma função da área de negócios. Mas um tema que prometia instigantes contribuições e réplicas logo cedeu espaço a novos assuntos. De qualquer forma, isso mostra claramente a negociação de significados, que Wenger (2001) destaca como uma das características fundamentais de uma Comunidade de Práticas.

Além da negociação de significados, pode-se destacar a partir da mensagem publicada por Finn Jackson, que não identifica a sua origem, aspectos como o engajamento mútuo, o foco na prática e a identidade partilhada:

Quero responder a alguns questionamentos que têm sido feitos em recentes mensagens e, assim, espero agrupá-las… Gerry diz que, quando os alunos “aplicam as ferramentas e técnicas que são convencionalmente ensinadas – Surpresa! Surpresa! –, eles acham que tais recursos não são fáceis de usar. Eles algumas vezes não proporcionam soluções ou mesmo intuições prontas”… Isso combina com a minha própria experiência de estratégia e mudança (num negócio de tecnologia global). Muito embora algumas ferramentas como as 5 Forças de Porter e análise PEST ou STEP sejam úteis no planejamento de mudanças, muitas não são… Se esse é o caso, significa que o papel da ‘estratégia’ passa de ajudar as empresas a tomarem melhores decisões a ajudá-las a implementar melhores ações (uma diferença sutil e importante)… Estratégia, então, deixa de ser vista como algo separado, e começa a se tornar incorporada como parte das atividades do dia-a-dia do negócio. (Isso, certamente, é o que é ‘estratégia como prática’)… Eu também colocaria estratégia como prática no coração do sucesso de um negócio.

Portanto, Finn Jackson se engaja com as questões anteriormente colocadas por Gerry Johnson, da Escola de Administração da Universidade de Strathclyde no Reino Unido, acrescenta a essas questões as suas próprias práticas e, por fim, destaca a importância da estratégia como prática, que representa o tema central da comunidade, isto é, a identidade partilhada pela S-as-P.

Outra mensagem bastante significativa para este estudo é a que Whittington publica sobre os vários significados da estratégia enquanto prática:

É verdade que “estratégia como prática” está aberta a um número de interpretações, mas onde você [Gerry Johnson] vê “confusão” eu vejo “inclusão”… prática como se referindo a “práticas” de estratégia, por exemplo, o uso de certas ferramentas, discursos e procedimentos–padrões para fazer estratégia, tais como, planejamento estratégico, 5 forças ou usar consultores… Um entendimento da prática institucionalizada de estratégia parece muito importante para abordar qualquer episódio de atividade/prática… prática como se referindo a uma semi-profissão, a “prática da estratégia” como no caso da “prática da advocacia”. Mais uma vez, entender como o trabalho e os trabalhadores da estratégia institucionalizaram a si mesmos e como essa institucionalização varia conforme os tempos,

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países e setores parece importante para abordar a atividade da estratégia… prática como “prático”. As intuições acima são provavelmente pelo menos tão práticas quanto as de outras abordagens em pesquisa de estratégia. Isso é importante para nós, pois pesquisa sobre atividade requer muita cooperação e confiança dos praticantes… prática como se referindo à “vez da prática” em teoria social… Em particular, pessoas como Bourdieu e de Certeau têm muito a oferecer ao estudo da atividade.

O número de mensagens publicadas até 15 de março de 2008 era de 437, bem inferior ao número de inscritos na comunidade, delineando, portanto, o tipo de participação classificado segundo Wenger (1999), como Núcleo Principal da CoP. Além disso, nem todas essas mensagens representam contribuições evidentes ao debate de idéias e agregação de conhecimento. Do total de mensagens, 154 tem a ver com divulgação de eventos (seminários, simpósios, workshops, conferências, etc.), chamadas de trabalhos, lançamento de revista, avisos de vírus, testes, anúncio de vagas para trabalho em universidades, atualização da bibliografia do site, dentre outros temas.

Analisando-se as participações a partir do conteúdo de cada uma das mensagens, pode-se concluir, especialmente, que o maior número de contribuições foi gerado em torno do assunto “Reforçando os Sentidos da Prática”, com 18 (dezoito) mensagens publicadas ao longo de nove dias. Os demais temas mais discutidos dentro da S-as-P são apresentados a partir do Quadro 2.

Assunto Nº de mensagens Duração das discussões em dias Uso de ferramentas de estratégia 17 62 O rótulo da ‘prática’ 16 19 Estratégia em ação 15 06 Ensinando Estratégia como Prática 14 42 Um desafio da estratégia da prática 11 03 Balanced scorecard 09 127 Que práticas são estratégicas 08 11 Procurando as descrições de Miles e Snow para estratégia de negócios

07 140

A prática e as atividades de contadores e controllers

07 03

Escolha estratégica e identidade do formador de opinião

07 10

Uso de ferramentas estratégicas 07 62 Fenomenologia 07 02 Capacidades inovadoras de comunidades on line 05 01 Estratégia e além 05 21 Quadro 2: Temas mais discutidos no fórum da S-as-P. Fonte: Dados da pesquisa.

Vale notar que dentre essas mensagens são bastante freqüentes os pedidos de ajuda para a produção de artigos, dissertações e teses, evidenciando que a S-as-P constitui realmente uma CoP de práticas de ensino e, principalmente, pesquisa. Destaca-se que um pesquisador brasileiro da UNISUL de Florianópolis solicitou um auxílio, prontamente atendido, para aperfeiçoar um artigo que utilizava uma metodologia desenvolvida por Whittington. Além disso, apenas uma mensagem tratou diretamente do tema “Pequenas e Médias Empresas”, mas

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solicitou-se que as contribuições fossem remetidas ao endereço eletrônico pessoal do interessado. O tema “Comunidade de Práticas” foi discutido em três mensagens:

… Os textos sobre Comunidades de Práticas derivados de Lave e Wenger e Brown e Duguid que Hugh Willmott menciona são sustentados nas noções de prática de Bourdieu e pela interpretação de Engeström para a teoria da atividade. Acho que há uma base a ser estabelecida aqui porque as literaturas sobre CoPs e teoria da atividade lidam diretamente com ação social e iniciativas compartilhadas, o que é muito aplicável a uma visão mais distribuída, subjetiva, emergente, da elaboração da estratégia… Tenho algumas reservas sobre a forma com que CoPs tem sido discutida na literatura, que parece presumir que uma CoPs é uma “boa coisa” administrativa (veja Wenger e Snyder, 2000, particularmente em HBR-Harvard Business Review). Eu me pergunto se as comunidades não estão também propensas a formas de socialização, aprendizado e interação que não são necessariamente criadoras de valores para a empresa… … Estudos clássicos identificados como exemplos de CDP, tais como, a palestra de Orr sobre máquinas, indica tensões entre comunidades ocupacionais (de técnicos copiadores) e preocupações e prioridades gerenciais. Alessia Contu e eu temos um trabalho a ser publicado em Organization Science, que proporciona uma revisão crítica da literatura sobre CoPs, ilustrada pelo trabalho de Julian Orr, em termos da omissão sobre as tensões e relações de poder… … Em resposta à recente postagem de John Hendry, uma conexão que eu ainda não vi explorada é entre “estratégia como prática (talvez discursiva)” e “CoPs”. Aqueles interessados na última área podem começar com os escritos de Lave e Wenger e Engestrom (teoria da atividade) e também ver o periódico Organization Science e mais um recente número especial de Organization. Se alguém souber de trabalhos ligando estas literaturas, eu ficarei grato pelas referências…

Conclui-se que, apesar da efetiva participação de seus moderadores, da

representatividade internacional de seus membros e de algumas contribuições aprofundadas, especialmente sobre metodologias sociológicas capazes de dar conta das práticas relacionadas à estratégia, a S-as-P esbarra em algumas limitações que são comuns nesse tipo de espaço de interação social. Entre essas limitações, aponta-se que dificilmente os pesquisadores se dispõem a esgotar suas contribuições numa seqüência de mensagens, até porque, em alguns casos, mantêm relacionamentos paralelos (contato pessoal, troca direta de e-mails etc.) às possibilidades de interação oferecidas pela S-as-P. Por outro lado, mesmo quando os participantes estão mais envolvidos com determinados debates, percebe-se um determinado receio de parecer excessivamente polêmico, visto que não se sabe dos interesses de todos os membros, que, muitas vezes, fazem parte de culturas e realidades completamente diferentes. Além disso, algumas contribuições disponibilizadas no fórum não obtiveram nenhuma resposta, mesmo tratando de temas relevantes ou de pedidos de ajuda para a realização de atividades.

Essas limitações podem, conforme destacado por Wenger (2001), comprometer a confiança estabelecida pelos membros entre si e em relação à própria S-as-P. Em vista disso, os moderadores da comunidade devem ressaltar a importância de uma visão compartilhada pelos membros e estabelecer regras para o funcionamento da S-as-P, uma vez que a confiança é um dos aspectos fundamentais para o desenvolvimento de qualquer CoPs.

Mas, apesar dessas dificuldades, a S-as-P, de fato, funciona como um veículo eficiente para a coleta de informações e troca de experiências entre os seus membros,

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representando um caso de sucesso que pode servir de exemplo para o desenvolvimento de iniciativas semelhantes aqui no Brasil, que, cada vez mais, precisa apostar em organizações centradas no conhecimento. 5. Considerações finais

Conforme os resultados pode-se afirmar que o objetivo desta pesquisa, qual seja, a descrição de uma Comunidade de Práticas segundo as dimensões de análise estabelecidas, foi, de fato, atingido. A partir da análise do conteúdo do site da CoPs S-as-P foi possível, não apenas descrever uma prática social voltada para a estratégia, mas também realizar uma aproximação entre teoria e prática. Em outras palavras, ora o referencial sobre CoPs se torna objeto da pesquisa, visto que os conteúdos desenvolvidos pelos atores pesquisados tratam dessa questão, ora as questões investigadas no campo apontam para novos caminhos de investigação. Portanto, esta pesquisa se desenvolve através de um processo dinâmico entre teoria e prática, que não esgota as questões levantadas. Em vista disso, propõe-se como perspectiva futura de trabalho um aprofundamento dessa relação entre tema de pesquisa e realidade empírica. Para tanto, publicou-se no fórum da S-as-P uma mensagem (Quadro 3) que trata justamente dessas questões, no sentido de aprofundar o papel da observação participante utilizada nesse trabalho e extrair do próprio campo as orientações necessárias para esse empreendimento de pesquisa.

Prezados,

Estamos realizando uma pesquisa sobre Comunidades de Práticas; mais especificamente queremos analisar o processo de aprendizagem e a produção de conhecimento de uma determinada comunidade de práticas em função da negociação dos significados estabelecida entre os seus membros, conforme Wenger destaca em boa parte de seus trabalhos. Considerando esse objetivo de pesquisa e ainda o nosso interesse particular na prática da estratégia, pensamos em estudar esta comunidade de Stategy-as-Practice. Acreditamos que se trata de um campo empírico ideal para os nossos propósitos de pesquisa, até porque é um espaço de discussão já bastante amadurecido, com acadêmicos realmente preocupados com problemas reais e relevantes e propostas consistentes e desafiadoras. Portanto, embora não achemos que alguém desta comunidade pense em se contrapor à realização de nossa pesquisa, queremos pedir a permissão de todos para a promoção de tal empreendimento. Em contrapartida, garantimos traduzir nossa pesquisa para o inglês e disponibilizá-la para todos os membros da comunidade. Além disso, gostaríamos de adiantar algumas dúvidas que já fazem parte do trabalho: 1. Estudar uma comunidade de práticas de estratégia como prática pode ser uma maneira interessante e coerente de aproximar o referencial teórico (sobre comunidade de práticas) do caso empírico (a Strategy-as-Practice), a teoria da prática? Ou, por outro lado, isso pode constituir uma grande confusão na hora de prepararmos o relatório de pesquisa? 2. Interagir na comunidade, levantar questões, expor aos membros da comunidade os nossos interesses de pesquisa… enfim, realizar uma observação participante é um modo adequado de engrandecer a pesquisa? Ou será que isso pode nos levar a uma metalinguagem interminável e despropositada? 3. Alguém pode sugerir alguma discussão desta comunidade que possa constituir um objeto interessante para nossa pesquisa, isto é, que contenha uma troca de idéias mais acirrada, com os membros discordando de proposições e mudando de posição ao longo do debate? (Já identificamos alguns debates assim, mas gostaríamos de saber a opinião dos membros).

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Bom, é isso! Agradecemos desde já. Quadro 3: Mensagem publicada pelos pesquisadores no fórum da S-as-P. Fonte: Elaborado pelos autores.

Até o presente momento, 15 de março de 2008, nenhum membro da S-as-P respondeu a esta mensagem. Bibliografia CABELLEIRA, D. M. Comunidades de Prática: conceitos e reflexões para uma estratégia de gestão do conhecimento. In: ENANPAD, 31., 2007, Rio de Janeiro. Anais… Rio de Janeiro: Anpad, 2007.

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