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Tradução guilherme miranda Richelle Mead da se É rie Blꝏdlines

Coração ardente (Bloodlines #4), de Richelle Mead

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http://www.editoraseguinte.com.br/titulo/index.php?codigo=55050A alquimista Sydney Sage não é mais a mesma. Criada desde criança para desprezar os vampiros, ela acabou vencendo seus preconceitos em sua última missão. Aos poucos, a garota não só criou laços de amizade com esses seres como acabou se apaixonando por um deles - o irresistível Adrian Ivashkov - e, surpreendendo até a si mesma, decidiu levar o relacionamento proibido adiante, em segredo. Tudo se complica quando Zoe, sua irmã, se junta à missão. Apesar de querer resgatar a amizade entre elas, Sydney precisa guardar seu segredo enquanto tenta fazer com que a caçula perceba como as crenças alquimistas estão equivocadas.Enquanto isso, Adrian sofre com os fortes efeitos do espírito - um elemento mágico que, ao mesmo tempo em que lhe confere poderes, como curar as pessoas, pode levá-lo à loucura, através de alucinações e mudanças de humor extremas. Sydney é seu maior incentivo para abrir mão desses poderes e buscar uma saúde mental equilibrada, mas Adrian nem consegue imaginar como seria vê-la machucada e não poder fazer nada. Neste quarto volume da série Bloodlines, ele precisa escolher entre sua sanidade e a capacidade de ajudar a todos - especialmente aqueles que ama.

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  • Traduoguilherme miranda

    Richelle Mead

    da se rie Bloodlines

  • Copyright 2013 by Richelle Mead

    O selo Seguinte pertence Editora Schwarcz S.A.

    Grafia atualizada segundo o Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

    ttulo original The Fiery Heart

    capa Paulo Cabral

    preparao Isadora Prospero

    reviso Renato Potenza Rodrigues e Mariana Cruz

    [2014]Todos os direitos desta edio reservados editora schwarcz s.a.Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 3204532-002 So Paulo spTelefone (11) 3707-3500Fax (11) 3707-3501www.seguinte.com.brwww.facebook.com/[email protected]

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Mead, RichelleCorao ardente / Richelle Mead ; traduo Guilherme

    Miranda. 1a ed. So Paulo : Seguinte, 2014.

    Ttulo original: The Fiery Heart.ISBn 978-85-65765-44-2

    1. Fico norte-americana i. Ttulo. ii. Srie.

    14-06831 CDD-813

    ndice para catlogo sistemtico:1. Fico : Literatura norte-americana 813

  • Para Nicole e Alexis

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    Adrian

    No vou mentir: entrar no quarto e encontrar sua namorada lendo um livro de nomes de beb pode assustar um pouco.

    no sou nenhum especialista comecei, escolhendo as pala-vras com cuidado. Quer dizer na verdade, sou sim. E tenho qua-se certeza de que a gente precisa fazer certas coisas antes de comear a ler esses livros.

    Sydney Sage, a namorada em questo e luz da minha vida, nem ergueu os olhos, embora um sorriso perpassasse seu rosto.

    para a iniciao ela disse, com um tom prtico, como se estivesse falando sobre pintar as unhas ou fazer compras, e no sobre entrar para um cl de bruxas. Preciso de um nome mgico para usar nas convenes.

    Certo. nome mgico, iniciao. Mais um dia como outro qual-quer na sua vida, n? no que eu pudesse falar alguma coisa, j que era um vampiro com a capacidade incrvel mas complicada de curar e compelir pessoas.

    Dessa vez, recebi um sorriso completo, e ela levantou os olhos. A luz do fim de tarde que entrava pela janela do meu quarto refletiu neles, salientando seu brilho amarelo-mbar. Eles se arregalaram de surpresa quando ela notou as trs caixas empilhadas que eu estava car-regando.

  • 8 O que tem a? Uma revoluo musical respondi, pondo-as no cho com

    reverncia. Abri a primeira caixa, revelando um toca-discos. Vi o cartaz de um cara vendendo no campus. Abri outra caixa cheia de vinis e peguei Rumours, do Fleetwood Mac. Agora posso ouvir m-sica da forma mais pura.

    Ela no pareceu impressionada, o que era surpreendente conside-rando que via meu Mustang 1967, que batizara de Ivashmvel, como uma espcie de santurio sagrado.

    Tenho quase certeza de que msica digital to pura quanto. Foi um desperdcio de dinheiro, Adrian. Consigo pr as msicas de todas essas caixas no meu celular.

    Consegue pr no seu celular as outras seis que esto no carro?Ela pestanejou, perplexa, e pareceu desconfiada. Adrian, quando gastou nisso tudo?Ignorei a pergunta. Ei, ainda consigo pagar o carro. Eu acho. Pelo menos no

    precisava gastar com aluguel, j que o apartamento estava pago, mas eu tinha muitas outras contas. Alm disso, tenho um oramento maior para esse tipo de coisa agora que algum me fez parar de fumar e beber.

    Voc bebia o dia todo! ela exclamou. Estou cuidando da sua sade.

    Sentei ao lado dela na cama. Assim como estou cuidando de voc e do seu vcio em cafena.

    Era um acordo que havamos feito, formando um tipo de grupo de apoio. Eu tinha parado de fumar e passado a beber apenas uma dose por dia. Ela tinha trocado as dietas obsessivas por uma quantidade saud-vel de calorias e no tomava mais que uma xcara de caf por dia. Por incrvel que parea, era mais difcil para ela do que para mim. nos pri-meiros dias, achei que precisaria intern-la numa clnica de reabilitao para viciados em cafena.

  • 9 no era um vcio ela resmungou, ainda com rancor. Era mais um estilo de vida.

    Ri e a puxei para um beijo, fazendo o resto do mundo desaparecer. no existiam livros de nomes, discos ou vcios. Havia apenas ela e o gosto de seus lbios, a forma maravilhosa como conseguiam ser macios e ardentes ao mesmo tempo. O resto do mundo achava que ela era fria e rgida. S eu conhecia a intensidade e o desejo escondidos dentro dela quer dizer, eu e Jill, a menina que conseguia enxergar o que se passava na minha cabea por causa do lao psquico que comparti-lhvamos.

    Quando deitei Sydney na cama, tive, como sempre, aquela sensao vaga e passageira de que o que estvamos fazendo era proibido. Huma-nos e Moroi no se misturavam desde que minha raa tinha se escon-dido do resto do mundo na Idade Mdia. Fizemos isso por segurana, achando que era melhor os humanos no saberem da nossa existncia. Agora, meu povo e o dela (os que sabiam sobre os Moroi) consideravam relaes como a nossa erradas e, em certos crculos, sinistras e perver-sas. Mas eu no me importava. S ligava para ela e para a forma como seu toque me enlouquecia, por mais que sua presena calma aplacasse as violentas tempestades que se agitavam dentro de mim.

    Mas nem por isso alardevamos nossa relao. na verdade, nosso romance era um segredo muito bem guardado, que exigia muitas esca-padas e um planejamento cuidadosamente calculado. Mesmo naquele momento, nosso tempo era curto. Essa era nossa rotina durante a se-mana. Ela tinha uma sesso de estudo independente no ltimo hor-rio, ministrada por uma professora indulgente que a deixava sair mais cedo e correr at a minha casa. Tnhamos uma nica hora preciosa para nos beijar ou conversar normalmente, nos beijar, com ardor ainda maior devido presso do tempo e, depois, ela voltava para a escola particular, na hora exata em que Zoe, sua irm grudenta e vampirof-bica, saa da aula.

  • 10

    Sabe-se l como, Sydney tinha um relgio interno que lhe avisava quando o tempo estava terminando. Acho que tinha a ver com seu ta-lento inato de pensar em centenas de coisas ao mesmo tempo. Eu no. nessas horas, meus pensamentos normalmente estavam concentrados em tirar a blusa dela e ver se, dessa vez, conseguiria me livrar do suti tambm. At agora, nada.

    Ela sentou com as bochechas avermelhadas e o cabelo loiro desgre-nhado. Era to bonita que fazia minha alma doer. naqueles momentos, sempre queria pint-la e imortalizar sua expresso. Seus olhos adqui-riam uma suavidade que eu raramente via em outras ocasies, uma vul-nerabilidade total e absoluta em algum que costumava ser reservada e analtica nas outras reas da vida. Mas, por mais que eu fosse um pintor razovel, registrar Sydney em tela estava alm da minha capacidade.

    Ela pegou sua blusa marrom e a abotoou, escondendo a renda azul--turquesa com a camisa formal com que gostava de se resguardar. Tinha trocado os sutis durante o ms anterior e, por mais que eu sempre fi-casse triste quando desapareciam, era bom saber que estavam l, aque-les pontos coloridos e secretos na vida dela.

    Enquanto ela caminhava at o espelho sobre a cmoda, invoquei um pouco da magia de esprito para vislumbrar sua aura, a energia que rodeava todos os seres vivos. A magia trouxe uma breve onda de prazer e, ento, vi aquela luz reverberante em torno dela. Estava como sem-pre: o amarelo dos estudiosos balanceado com um roxo mais ardente de paixo e espiritualidade. num piscar de olhos, a aura se apagou e, junto com ela, a euforia avassaladora do esprito.

    Ela terminou de arrumar o cabelo e baixou os olhos. O que isso? Hum? Levantei e fui at ela, pondo os braos ao seu redor.

    Ento, meu corpo ficou rgido ao ver o que tinha pegado: abotoaduras cintilantes com rubis e diamantes encravados. De repente, a ternura e a alegria que eu tinha acabado de sentir foram substitudas pela velha

  • 11

    escurido glida. Ganhei de presente da minha tia Tatiana faz alguns anos.

    Sydney pegou uma delas e a estudou com um olhar de especialista. Ento abriu um sorriso largo.

    Voc tem uma fortuna aqui. Isso platina. Se vender isso, vai ter penso pro resto da vida. E todos os discos que quiser.

    Prefiro dormir numa caixa de papelo a vender isso.Ela percebeu a mudana em mim e virou para me encarar, com o

    rosto preocupado. Ei, eu estava brincando. Sua mo tocou meu rosto de leve.

    Tudo bem. Est tudo bem.Mas no estava. De repente, o mundo era um lugar cruel e ins-

    pito, vazio desde a morte da minha tia, a rainha dos Moroi e nica parente que nunca me julgou. Senti um n na garganta e as paredes pareceram se fechar ao meu redor quando me lembrei de como ela havia sido apunhalada at a morte e as fotos divulgadas em todo can-to para encontrar o assassino. no importava que a assassina estivesse presa e condenada morte. Isso no traria minha tia de volta. Ela havia partido para um lugar aonde no podia segui-la, ao menos no ainda, e eu estava ali, sozinho e insignificante e sem rumo

    Adrian.A voz de Sydney era calma mas firme e, lentamente, fui saindo

    daquele desespero que podia surgir to rpida e intensamente, uma escurido que vinha aumentando ao longo dos anos quanto mais eu usava o esprito. Era o preo daquele poder, e essas mudanas repen-tinas estavam ficando cada vez mais frequentes. Eu me concentrei nos olhos dela e a luz voltou ao mundo. Ainda sofria pela morte da minha tia, mas Sydney estava l, minha esperana e minha ncora. Eu no estava sozinho. no era incompreendido. Engolindo em seco, assenti e dei um sorriso frgil enquanto me libertava das garras sombrias do esprito. Por enquanto.

  • 12

    Estou bem. Vendo a descrena no rosto dela, dei-lhe um bei-jo na testa. Mesmo. Voc precisa ir, Sage. Seno Zoe vai estranhar e voc vai se atrasar para o encontro com as bruxas.

    Ela me olhou preocupada por mais alguns segundos e ento rela-xou um pouco.

    Certo. Mas se precisar de alguma coisa Eu sei, eu sei. Ligo no Celular do Amor.Ela voltou a sorrir. Fazia pouco tempo que tnhamos comprado

    celulares pr-pagos que a organizao dos alquimistas, para a qual ela trabalhava, no conseguiria rastrear. no que costumassem rastrear o celular normal dela, mas sem dvida poderiam se tivessem alguma sus-peita, e no queramos deixar um rastro de mensagens e ligaes.

    E farei uma visitinha hoje noite acrescentei.Seus traos voltaram a se endurecer. Adrian, no. arriscado demais.Outra vantagem do esprito era a capacidade de visitar as pessoas

    nos sonhos. Era um bom jeito de conversar, j que tnhamos pouco tempo acordados e no o gastvamos conversando , mas, como qualquer uso do esprito, apresentava um risco contnuo minha sani-dade. Ela ficava preocupada, mas eu achava que valia a pena para ficar com ela.

    Sem discusso avisei. Quero saber como vo as coisas. E sei que voc quer saber sobre mim.

    Adrian Vai ser rpido prometi.Relutante, ela concordou, sem parecer nem um pouco satisfeita, e

    eu a acompanhei at a porta. Enquanto atravessvamos a sala, ela parou na frente de um pequeno aqurio perto da janela. Sorrindo, ajoelhou--se e cutucou o vidro. Dentro, havia um drago.

    Srio. O nome exato era callistana, mas raramente nos referamos a ele assim. normalmente o chamvamos de Pulinho. Sydney o invo-

  • 13

    cara de alguma dimenso demonaca como uma espcie de ajudante. na maior parte do tempo, ele parecia querer nos ajudar a comer todas as besteiras que eu tinha no meu apartamento. ns dois estvamos li-gados ao bichinho e, para mant-lo saudvel, precisvamos nos revezar tomando conta dele. Desde que Zoe se mudara, porm, minha casa era seu lar principal. Sidney levantou a tampa do tanque e ofereceu a mo para que a criaturinha de escamas douradas subisse correndo. Ele a olhou com venerao, e eu no podia culp-lo.

    Ele est nessa forma faz um tempo ela disse. Quer umas frias? Pulinho podia existir em sua forma viva ou ser transformado numa estatuazinha, o que ajudava a evitar perguntas constrangedoras quando algum vinha visitar. Mas s ela conseguia transform-lo.

    Sim. Ele vive tentando comer minhas tintas. E no quero que me veja dando um beijo de despedida em voc.

    Ela fez um carinho de leve no queixo dele e falou as palavras que o transformavam em esttua. A vida era sem dvida mais fcil assim, mas a sade dele exigia que o libertssemos de vez em quando. Alm disso, tinha me apegado ao bichinho.

    Fico com ele um pouco ela disse, colocando a pedra na bol-sa. Mesmo inerte, era bom para ele ficar perto dela.

    Livre dos olhinhos redondos do callistana, dei um longo beijo de despedida nela, daqueles que nunca terminam. Deixei as mos no ros-to dela.

    Plano de fuga no 17 falei. Fugir e abrir uma barraca de suco em Fresno.

    Por que Fresno? Parece um bom lugar pra tomar suco.Ela sorriu e me beijou de novo. Os planos de fuga eram uma

    brincadeira entre ns, sempre mirabolantes e numerados ao acaso. normalmente eu os inventava na hora. O triste, porm, era que pas-svamos muito mais tempo pensando neles do que em qualquer plano

  • 14

    real. Era difcil, mas ambos sabamos muito bem que estvamos viven-do cada momento, com o futuro incerto.

    Romper aquele segundo beijo tambm foi difcil, mas por fim ela conseguiu e fiquei olhando enquanto se afastava. Meu apartamento pa-recia mais sombrio sem ela.

    Levei as outras caixas que estavam no carro para dentro e examinei os tesouros que havia nelas. A maioria dos vinis era dos anos 1960 e 1970, com alguns dos anos 1980 aqui e ali. no estavam organizados, mas nem pensei em arrum-los. Quando Sydney parasse de pensar que tinham sido um desperdcio de dinheiro, no conseguiria se conter e acabaria arrumando-os por artista, gnero ou cor. Por enquanto, co-loquei a vitrola na sala e peguei um lbum ao acaso: Machine Head, do Deep Purple.

    Eu ainda tinha algumas horas at o jantar e me agachei diante de um cavalete, olhando para a tela em branco enquanto pensava sobre o trabalho para a aula de pintura a leo avanada: um autorretrato. no precisava ser exatamente igual. Podia ser abstrato. Podia ser qualquer coisa, desde que me representasse. E eu no sabia o que fazer. Seria ca-paz de pintar qualquer pessoa que conhecia. Ainda que no conseguisse capturar exatamente aquele olhar de arrebatamento que Sydney tinha em meus braos, poderia retratar a aura ou a cor dos olhos dela. Po-deria recriar o rosto melanclico e frgil da minha amiga Jill Mastrano Dragomir, uma jovem princesa Moroi. Poderia pintar rosas flamejantes em homenagem minha ex-namorada, que havia partido meu corao mas, mesmo assim, ganhado minha admirao.

    Mas eu mesmo? no sabia o que fazer. Talvez fosse s um bloqueio artstico. Talvez eu s no me conhecesse. Enquanto olhava fixamente para a tela, cada vez mais frustrado, lutei contra a nsia de ir at o armrio de bebidas esquecido e pegar um copo. O lcool nem sem-pre me tornava um bom artista, mas costumava inspirar alguma coisa. Quase conseguia sentir o gosto da vodca. Poderia misturar com suco

  • 15

    de laranja e fingir que estava sendo saudvel. Meus dedos tremeram e meus ps quase me levaram at a cozinha, mas resisti. A seriedade nos olhos de Sydney brilhou na minha mente e voltei a me concentrar na tela. Eu podia fazer aquilo sbrio. Havia prometido que s tomaria uma dose por dia e vinha me mantendo fiel promessa. E, por enquanto, precisava daquela dose no fim do dia, quando ia me deitar. Eu no dor-mia bem. nunca tinha dormido, em toda a minha vida, ento qualquer ajuda era bem-vinda.

    Mas minha deciso de ficar sbrio no me trouxe inspirao e, s cinco da tarde, a tela continuava em branco. Levantei e me alonguei, sentindo o retorno daquela velha escurido. Fiquei mais nervoso que triste dessa vez, alm de frustrado por no conseguir pintar. Meus pro-fessores de arte diziam que eu tinha talento, mas, em horas como aque-la, eu me achava o moleque mimado que a maioria das pessoas pensava que eu era, destinado a uma vida de fracassos. Era especialmente depri-mente quando me comparava a Sydney, que sabia tudo sobre todas as coisas e se daria bem em qualquer carreira que escolhesse. Esquecendo o problema entre vampiros e humanos, eu precisava pensar o que tinha para oferecer a ela. no conseguia nem pronunciar metade das coisas que a interessavam, muito menos conversar sobre elas. Se um dia con-segussemos ter uma vida normal juntos, ela sairia para pagar as contas e eu ficaria em casa fazendo faxina. E nem nisso era muito bom. Se ela s quisesse chegar em casa noite e encontrar um cara bonito com um cabelo legal, pelo menos isso eu podia garantir.

    Eu sabia que esses medos que me consumiam estavam sendo am-pliados pelo esprito. nem todos eram reais, mas era difcil ignor-los. Dei as costas para o quadro e sa, na esperana de encontrar alguma distrao na noite que caa. O sol estava se pondo e o anoitecer do inverno em Palm Springs mal pedia um casaco leve. Era o perodo favorito dos Moroi, quando ainda havia luz, mas no o bastante para in-comodar. Conseguamos lidar com um pouco de luz, ao contrrio dos

  • 16

    Strigoi, os vampiros mortos-vivos que matavam para conseguir sangue. O sol os destrua, o que era uma vantagem para ns. Toda ajuda para lutar contra eles era bem-vinda.

    Dirigi at Vista Azul, um bairro a dez minutos do centro da cidade que abrigava a Escola Preparatria Amberwood, o internato particular que Sydney e o resto do nosso grupo heterogneo frequentavam. nor-malmente Sydney era a motorista do grupo, mas essa honra duvidosa havia recado sobre mim naquela noite, enquanto ela saa s pressas para sua reunio clandestina com o cl das bruxas. Todo o grupo estava esperando no meio-fio em frente ao alojamento feminino quando esta-cionei. Inclinei-me sobre o banco de passageiro e abri a porta.

    Todos a bordo eu disse.Eles entraram correndo. Eram cinco agora, alm de mim, o que

    daria um sete da sorte se Sydney estivesse l. Quando chegamos a Palm Springs, ramos s quatro. Jill, o motivo por que estvamos ali, sen-tou-se correndo ao meu lado e abriu um sorriso.

    Se Sydney era a principal fora tranquilizante na minha vida, Jill era a segunda. Ela s tinha quinze anos, sete a menos que eu, mas pos-sua um encanto e uma sabedoria irradiantes. Sydney podia ser o amor da minha vida, mas Jill me entendia como ningum. Era meio difcil no entender, com nosso lao psquico. Ele havia sido criado quando usei o esprito para salvar a vida dela no ano anterior. E quando digo salvar, estou falando srio. Jill esteve tecnicamente morta por me-nos de um minuto, mas morta. Usei o poder do esprito para realizar um milagre de cura e traz-la de volta vida antes que ela partisse para o outro mundo. Isso nos ligou com um lao que lhe permitia ver e sen-tir o que se passava na minha cabea mas no o contrrio.

    Pessoas trazidas de volta vida daquele jeito eram chamadas de beijadas pelas sombras, e s o nome bastaria para perturbar qualquer um. Jill tinha o azar extra de ser uma das duas remanescentes de uma linhagem minguante da realeza Moroi. Isso ainda era novidade para ela,

  • 17

    e sua irm, Lissa, rainha Moroi e grande amiga minha, precisava que Jill permanecesse viva para continuar no trono. Quem se opunha ao go-verno liberal de Lissa queria a morte de Jill, para invocar uma antiga lei que exigia que o monarca tivesse outro membro vivo na famlia. Assim, algum teve a ideia supostamente genial de mandar Jill se esconder no meio de uma cidade humana no deserto. Afinal, que vampiro ia querer morar l? Era uma pergunta que eu vivia me fazendo.

    Os trs guarda-costas de Jill sentaram no banco traseiro. Eram to-dos dampiros, uma raa mestia que remontava poca em que huma-nos e vampiros ainda viviam juntos. Eles eram mais fortes e rpidos que o resto de ns, o que os tornava guerreiros ideais na batalha contra os Strigoi e os assassinos da realeza. Eddie Castile era o lder do grupo, um guardio slido e confivel que estava com Jill desde o incio. An-geline Dawes, a ruivinha esquentada, era um pouco menos confivel. na verdade, no era nem um pouco confivel, mas arrasava nas lutas. O mais novo reforo do grupo era neil Raymond, tambm conhecido como Alto, Certinho e Chato. Por motivos que eu no entendia muito bem, Jill e Angeline pareciam achar que o comportamento rgido dele era sinal de carter nobre. O fato de que tinha estudado na Inglaterra e adquirido um leve sotaque britnico parecia excitar o estrognio delas ainda mais.

    A ltima integrante do grupo ficou parada na porta do carro, recu-sando-se a entrar. Zoe Sage, a irm de Sydney.

    Ela se debruou na janela e me encarou com olhos castanhos quase iguais aos de Sydney, mas um pouco menos dourados.

    no tem lugar ela disse. no cabe todo mundo no seu carro.

    no verdade eu disse para ela. Seguindo a deixa, Jill se aproximou de mim. Cabem trs neste banco. O ltimo dono at colocou um cinto de segurana extra. Embora fosse mais seguro para os tempos modernos, Sydney quase tivera um ataque cardaco

  • 18

    ao saber da mudana no estado original do Mustang. Alm disso, somos uma famlia, certo? Para termos acesso fcil uns aos outros, tnhamos dito em Amberwood que ramos todos irmos ou primos. no caso de neil, porm, os alquimistas tinham finalmente desistido de inventar um parentesco porque as coisas j estavam ficando ridculas.

    Zoe olhou para o lugar vago durante vrios segundos. Por mais que o assento realmente fosse longo, ela ficaria apertadinha com Jill. Zoe estava em Amberwood fazia um ms, mas ainda tinha todas as reservas e preconceitos do seu grupo em relao a vampiros e dampiros. Eu os conhecia muito bem porque Sydney tambm os tivera. Era irnico porque a misso dos alquimistas era manter o mundo dos vampiros es-condido dos outros humanos, que eles consideravam incapazes de lidar com o sobrenatural. Os alquimistas eram movidos pela crena de que minha raa era uma parte perversa da natureza que devia ser ignorada e mantida longe dos humanos, seno os corromperamos com nossa mal-dade. Apesar dessa averso, eles nos ajudavam e eram teis em situa-es como a de Jill, quando era preciso fazer negociaes secretas com autoridades humanas e funcionrios da escola. Eram timos em fazer as coisas acontecerem. Assim, Sydney tinha sido recrutada no comeo para facilitar a vida de Jill no exlio, j que os alquimistas no queriam uma guerra civil entre os Moroi. E havia pouco tempo mandaram Zoe como aprendiz, tornando um p no saco esconder nossa relao.

    no precisa ter medo eu disse. no podia ter falado nada que a motivasse mais. Ela queria se tornar uma superalquimista, prin-cipalmente para impressionar o pai delas, que, pelo que conclu depois de vrias histrias, era um grande babaca.

    Zoe respirou fundo, desconfortvel. Sem dizer outra palavra, en-trou ao lado de Jill e bateu a porta, apertando-se o mximo possvel contra ela.

    Sydney devia ter deixado o suv ela murmurou um pouco depois.

  • 19

    Onde est Sage, alis? A mais velha, quero dizer corrigi, dando partida no carro. no que eu no goste de ser o chofer de vocs. Devia ter me trazido um quepe preto, Chave de Cadeia. Cutuquei Jill, que me cutucou de volta. Podia me fazer um no clube de costura.

    Ela saiu para fazer um projeto da sra. Terwilliger Zoe res-pondeu, em tom desaprovador. Ela vive fazendo essas coisas. no entendo por que uma pesquisa de histria precisa levar tanto tempo.

    Mal sabia Zoe que o tal projeto envolvia a iniciao de Sydney no cl da professora. A magia humana ainda era estranha e misteriosa para mim e completamente detestvel para os alquimistas , mas, pelo jeito, Sydney tinha um talento natural para a coisa. no era nenhuma surpresa: ela tinha um talento natural para tudo. Havia vencido seus medos da magia, assim como vencera o medo que tinha de mim, e ago-ra estava completamente imersa no aprendizado do ofcio, ao lado de sua mentora estabanada mas amvel, Jackie Terwilliger. Dizer que os alquimistas no aprovariam era um eufemismo. na verdade, era difcil saber o que os deixaria mais furiosos: que ela estivesse aprendendo as artes arcanas ou namorando um vampiro. Seria cmico se no fosse pelo meu medo de que os fanticos mais violentos entre eles fizessem algo terrvel com Sydney caso ela fosse descoberta. Era por isso que a companhia constante de Zoe tinha tornado tudo mais perigoso nos ltimos tempos.

    Porque a Sydney Eddie disse, do banco de trs. Pelo espe-lho retrovisor, vi o sorriso tranquilo no rosto dele, embora houvesse uma ateno constante em seus olhos, sempre alertas para qualquer perigo. Ele e neil haviam sido treinados pelos guardies, uma organi-zao de dampiros treinados para proteger os Moroi. Dedicar-se cem por cento a uma tarefa pouco para ela.

    Zoe meneou a cabea, no vendo tanta graa quanto a gente. uma aula idiota. Ela s tem que passar.

  • 20

    No, pensei. Ela tem que aprender. Sydney no se alimentava de co-nhecimento s por vocao. Fazia isso porque adorava estudar. O que adoraria mais do que qualquer outra coisa era se entregar intensidade acadmica da faculdade, onde poderia aprender tudo o que quisesse. Em vez disso, tinha sido criada para o negcio da famlia, obedecen-do quando os alquimistas a mandavam para novas misses. J tinha se formado no ensino mdio, mas tratava esse segundo ltimo ano to seriamente quanto tinha tratado da primeira vez, louca para aprender tudo o que pudesse.

    Algum dia, quando tudo isso acabar e Jill estiver em segurana, vamos fugir. Eu no sabia para onde, nem como, mas Sydney resolveria esses detalhes. Fugiria das garras dos alquimistas e viraria a dra. Sydney Sage, Ph.D., enquanto eu bom, eu faria alguma coisa.

    Senti uma mo delicada tocar meu brao e baixei os olhos rapi-damente. Jill me encarava com carinho em seus olhos brilhantes cor de jade. Ela sabia em que eu estava pensando, sabia das fantasias que costumava inventar. Retribu com um sorriso frgil.

    Atravessamos a cidade at os arredores de Palm Springs, onde fi-cava a casa de Clarence Donahue, o nico Moroi louco o bastante para morar naquele deserto antes de aparecermos no outono anterior. O velho Clarence era meio maluco, mas havia acolhido nosso grupo con-fuso de Moroi e dampiros e nos deixava usar sua fornecedora/ gover-nanta. Os Moroi no precisavam matar para tomar sangue, como os Strigoi, mas precisvamos beber pelo menos algumas vezes por sema-na. Felizmente, havia muitos humanos no mundo que ficavam felizes em nos dar seu sangue em troca das endorfinas causadas pela mordida dos vampiros.

    Encontramos Clarence na sala, sentado em sua enorme poltrona de couro e lendo um livro antigo com uma lupa. Ele levantou os olhos, espantado com nossa chegada.

    Vocs aqui numa quinta! Que surpresa agradvel!

  • 21

    Hoje sexta, sr. Donahue Jill disse, com doura, inclinando--se para dar um beijo no rosto dele.

    Ele a olhou com carinho. mesmo? Mas vocs no vieram aqui ontem? Enfim, no im-

    porta. Tenho certeza que Dorothy vai ter o maior prazer em servir vocs.

    Dorothy, a velha governanta dele, realmente sentia muito prazer em nos servir. Havia tirado a sorte grande quando eu e Jill chegamos em Palm Springs. Moroi mais velhos no bebiam tanto sangue quanto os mais jovens e, embora Clarence ainda pudesse lhe dar um barato ocasional, as nossas visitas frequentes a deixavam quase constantemen-te chapada. O que ningum alm de Jill sabia era que, embora o grupo s trouxesse Jill duas ou trs vezes por semana, eu vinha todos os dias beber o sangue de Dorothy. Devia ser por isso que Clarence estava to confuso em relao ao dia da semana. Eu nunca tinha ficado sedento por sangue em momentos ntimos com Sydney, e achava que nunca ficaria. no entanto, por mais que ela tivesse superado seus medos em relao aos vampiros, o fato de eu beber sangue ainda a deixava um pouco nauseada, e eu no queria correr o risco de pensar em mord-la no calor do momento. Outros Moroi faziam esse tipo de coisa entre si e com os dampiros, mas eu no faria isso com ela. Era o corpo dela que eu queria, no o sangue.

    Jill foi correndo at Dorothy. Posso ir? A velhinha fez que sim, ansiosa, e as duas saram

    para acomodaes mais privadas. Um olhar de repulsa passou pelo rosto de Zoe, mas ela no falou nada. Sua expresso e a forma como sentou longe de todos a deixavam to parecida com a Sydney de anti-gamente que quase sorri.

    Angeline estava praticamente pulando no sof de ansiedade. O que tem pra jantar? Ela tinha um sotaque sulista estranho

    por ter crescido numa comunidade rural de Moroi, dampiros e huma-

  • 22

    nos nas montanhas, que era o nico lugar, at onde eu sabia, em que viviam livremente juntos e casavam entre si. Todos os outros de suas respectivas raas os viam com um misto de horror e fascnio. Por mais interessante que fosse essa brecha, morar com eles nunca havia passa-do pela minha cabea nas minhas fantasias sobre o futuro. Eu odiava acampar.

    ningum respondeu. Angeline olhou de um para outro. E ento? Por que no tem comida aqui? Os dampiros no

    bebiam sangue e podiam comer os alimentos normais dos humanos. Os Moroi tambm precisavam desse tipo de comida, mas no nas mes-mas quantidades. J o metabolismo rpido dos dampiros requeria mui-ta energia.

    Aqueles encontros regulares haviam se tornado uma espcie de jantar familiar, no apenas de sangue, mas tambm de comida normal. Era uma boa maneira de fingir que levvamos uma vida comum.

    Sempre tem comida ela comentou, caso nunca tivssemos percebido. Gostei daquele prato indiano que a gente comeu um dia desses. Masala-alguma-coisa, ou seja l o que for. Mas acho que no deveramos comer mais l at eles comearem a chamar de comida nativo-americana. mais politicamente correto.

    normalmente a Sydney quem cuida da comida Eddie dis-se, ignorando a tendncia que Angeline tinha de mudar de assunto.

    normalmente, no corrigi. Sempre.O olhar de Angeline se voltou para Zoe. Por que no se lembrou de pegar alguma coisa pra gente co-

    mer? Porque esse no meu trabalho! Zoe ergueu a cabea.

    Estamos aqui para manter o disfarce de Jill e garantir que ela fique escondida. no tenho que fornecer comida pra vocs.

    Fornecer em que sentido? perguntei. Eu sabia muito bem que era maldade dizer uma coisa dessas, mas no consegui resistir. Ela

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    levou um tempo para entender o duplo sentido. Primeiro ficou plida, depois vermelha de raiva.

    nenhum! no sou empregada de vocs. E a Sydney tambm no. no entendo por que ela faz tudo pra vocs. S deveria cuidar das coisas essenciais para sobrevivncia. Pedir pizza no uma delas.

    Fingi um bocejo e me recostei no sof. Talvez ela ache que, se estivermos bem alimentados, vocs duas

    no parecero to apetitosas.Zoe ficou horrorizada demais para responder e Eddie me lanou

    um olhar furioso. Chega. no to difcil pedir pizza. Deixem que eu fao isso.Quando ele terminou a ligao, Jill voltou com um sorriso no ros-

    to. Pelo jeito, havia presenciado a conversa. O lao no ficava ativo o tempo todo, mas parecia estar forte naquele dia. Acabado o dilema da pizza, todo mundo entrou numa camaradagem inesperada quer dizer, todo mundo menos Zoe, que s ficava olhando e esperando. As coisas estavam surpreendentemente cordiais entre Angeline e Eddie, apesar do recente namoro desastroso dos dois. Ela tinha superado e agora fingia estar obcecada por neil. Se Eddie ainda estava magoado, no demonstrava, o que era tpico dele. Sydney tinha me contado que ele estava secretamente apaixonado por Jill, outra coisa que era bom em esconder.

    Eu aprovaria a relao dos dois, mas Jill, assim como Angeline, fingia estar apaixonada por neil. As duas estavam mentindo, mas nin-gum, nem mesmo Sydney, acreditava em mim.

    Gostou do que a gente pediu? Angeline perguntou para neil. Voc no falou nada.

    neil balanou a cabea, impassvel. O cabelo castanho dele tinha um corte insuportavelmente curto e eficiente. Era o tipo de coisa pr-tica que os alquimistas adorariam.

    no posso perder tempo com coisas bobas como pepperoni e

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    cogumelos. Se tivesse frequentado minha escola em Devonshire, en-tenderia. Em uma das matrias do segundo ano, nos deixaram sozinhos num pntano para aprendermos tcnicas de sobrevivncia. Depois que voc passa trs dias comendo galhos e arbustos, aprende a no discutir sobre a comida que vem at voc.

    Angeline e Jill suspiraram como se aquela fosse a coisa mais mscu-la que j tivessem ouvido. Eddie estava com uma expresso que refletia o que eu pensava: sem saber se o cara era to srio quanto parecia ou s um bom ator com falas apaixonantes.

    O celular de Zoe tocou. Ela olhou para a tela e levantou afobada. meu pai. Sem olhar para trs, atendeu e saiu correndo da

    sala.Eu no era o tipo intuitivo, mas senti um calafrio na espinha. O sr.

    Sage no era o tipo de pai carinhoso que ligava para dizer oi em hor-rio comercial, quando sabia que Zoe estava em misso alquimista. Se havia algum problema com ela, tambm havia com Sydney. E isso me preocupou.

    Mal prestei ateno no resto da conversa enquanto contava os se-gundos at Zoe voltar. Quando finalmente entrou na sala, seu rosto plido indicava que havia alguma coisa errada. Algo ruim tinha acon-tecido.

    O que foi? perguntei. Sydney est bem? Tarde de-mais, percebi que no deveria ter demonstrado nenhuma preocupao especial com Sydney. nem nossos amigos sabiam da nossa relao. Fe-lizmente, toda a ateno estava voltada para Zoe.

    Devagar, ela meneou a cabea, com os olhos arregalados e incr-dulos.

    n-no sei. So meus pais. Eles vo se divorciar.