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Coram Deo
Vivendo perante a face de Deus
Pr Gustavo Bessa
Esta versão é exclusiva para o Processo Seletivo do CTMDT.
É proibido qualquer tipo de cópia, impressão ou comercialização deste
conteúdo.
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PREFÁCIO
Viver diante da face de Deus é o principal desejo dos cristãos; buscamos
honrar ao Senhor com nossa vida e de agradar-lhe todo o tempo.
Para agradar a Deus, é importante não apenas procurar conhecê- Lo a
cada dia, mas também são fundamentais o autoconhecimento e os
relacionamentos humanos.
Este livro fala de conhecimento: de Deus, de si, do outro. Nesse processo
de conhecimento d’ Aquele que nos chamou para si e nos tem transformado avida, são fundamentais a oração e a leitura das Escrituras, e, não podem ser
abandonados a busca de santidade e a comunhão. Todos esses elementos são
mostrados como elementos fundamentais da vida cristã.
Em uma linguagem muito agradável, com exemplos de pessoas que
procuravam honrar a Deus e se tornaram referência em sua geração, pela sua
integridade, pelo seu empenho e cuidado no que faziam, pela sua busca intensa
do Senhor, essa obra mostra que viver diante de Deus deve ser nossa procura
ainda hoje.
Grandes teólogos, como Agostinho, Lutero, John Wesley, John Owen, e
pessoas, para muitos de nós desconhecidas, como irmão Lawrence e David
Brainerd, são recuperados como referenciais de espiritualidade, de oração, de
consagração ao Senhor. De forma poética e muita sabedoria, Gustavo nos
mostra cada uma delas como que apontando para alvos que também são
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nossos, como se, através delas, nosso coração fosse sondado e nossas
motivações fossem analisadas.
Em cada exemplo, em cada referência bíblica, em cada recuperação
histórica (e são várias ao longo do livro), nas análises e citações presentes
nessa obra, Gustavo não apenas traz à tona marcos que precisam ser
resgatados, como também retrata aquilo que, há tempos, faz seu coração pulsar
mais forte e seus olhos se encherem de brilho: o desejo de viver, a cada dia,
para agradar a Deus.
A motivação maior do coração do Gustavo é levar os outros a verem avida de Deus em sua própria vida. Seu amor pelo Senhor, sua busca intensa por
conhecer ao Pai e aos Seus propósitos para cada uma de suas decisões, sua
preocupação com aqueles que permanecem alheios a esse amor ou
desconhecem a palavra graça, seu desejo de contagiar as pessoas a uma vida
intensa com Deus permeiam todas as páginas do livro.
Se pudesse sintetizar esse livro em uma frase, eu o definiria como, um
transbordar da graça. A graça de Deus chama, acolhe, ensina, capacita, orienta,
nutre, sustenta. Graça é a palavra mais forte das Escrituras para o Gustavo, e,
ela não poderia ficar ausente dessa obra.
Convido-o para a leitura desse livro. Tenho certeza de que seu coração
será aquecido e constrangido pelo transbordar da graça que flui dele. Espero
que, como aconteceu comigo, ao terminar as várias leituras que fiz do livro, seu
desejo por conhecer-se e ao Amado da sua alma, se intensifique.
Daniela Borja Bessa
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INTRODUÇÃO
Todas as pessoas vivem perante a face de Deus; todos vivem Coram
Deo. Entretanto, nós, cristãos é que fomos chamados a ter essa consciência.
Precisamos reconhecer que toda a nossa vida é vivida perante a face de Deus.
Não há um só momento em que os olhos do Senhor não estejam sobre nós; e
não há um só momento em que não devamos nos lembrar disso.
Essa lembrança, ao invés de nos trazer temor, precisa nos trazer paz; ao
invés de trazer tristeza, precisa nos trazer alegria. Afinal, Deus estáconsiderando todos os nossos caminhos, não para nos punir, mas, sim para nos
trazer recompensa. Essa era a convicção do apóstolo Paulo. Ao encorajar os
crentes de Corinto, Paulo escreveu: “Sejam sempre dedicados à obra do
Senhor, pois vocês sabem que, no Senhor, o trabalho de vocês não será inútil”. 1
Obviamente, ao reconhecermos que vivemos perante a face de Deus,
precisamos também reconhecer alguns princípios de vida. A nossa vida não
pode ser vivida de qualquer maneira. Pelo contrário, devemos viver segundo a
dignidade do nosso chamamento. E é disso que trata esse livro.
Precisamos entender que não somos os primeiros a terem consciência do
chamado. Já houve muitos homens e mulheres com essa mesma convicção.
Eles viveram diante do trono. Eles caminharam perante a face de Deus.
Certamente, a história e o testemunho do passado nos ajudarão a viver a
história e o testemunho do presente.
1 1Coríntios 15.58 – NVI.
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O passado naturalmente nos remete à Palavra de Deus e à oração.
Todos os cristãos que já caminharam com o Senhor, caminharam sob os
princípios da Bíblia e da amizade com Jesus. Esses sempre foram valores
inegociáveis e essencialmente relevantes para a vida de qualquer cristão.
Prescindir desses princípios é prescindir da fé.
Nessa caminhada, ninguém que se colocou sob a luz da Palavra e sob a
influência da amizade com Deus permaneceu com a mesma visão de si mesmo.
Pelo contrário, todos foram confrontados e quebrantados. Todos se
reconheceram da mesma maneira como Paulo se reconheceu: “Cristo Jesusveio ao mundo para salvar os pecadores, dos quais eu sou o pior”.2
E em meio a essa comunidade de salvos – santos e pecadores, Deus
estabeleceu a sua habitação. Fomos todos chamados a nos relacionar uns com
os outros através de Cristo, mediante o que Jesus já fez por nós. Essa
comunhão não se dá entre perfeitos, mas entre todos aqueles que já foram
alcançados por Jesus.
Portanto, nessa nossa caminhada perante a face de Deus, precisamos,
dentre outras coisas, fazer essas considerações e guardar os princípios
referentes à história, à Palavra, à oração, ao paradoxo, ao auto-exame e à
comunhão.
Que o Senhor nos ajude e nos fortaleça nessa caminhada.
Gustavo Borja Bessa
Páscoa de 2007.
2 1Timóteo 1.15 – NVI.
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CAPÍTULO 1 – A HISTÓRIA
“O Lexus e a Oliveira”
Vivemos em um mundo globalizado. Não há como negar esse fato. Basta
lermos algum jornal ou revista para notarmos que as notícias que nos chegam
ao Brasil não tratam apenas das questões do nosso país. Alguém já disse que
“um espirro na China pode provocar um vendaval no Brasil”. Até certo ponto,
isso é verdade. Se, por exemplo, as bolsas de valores chinesas sofrerem
alguma baixa, o Brasil será atingido. Praticamente, na mesma proporção, seuma moda é lançada na Itália, ela é adotada no Brasil.
Na década de noventa, o jornalista norte-americano Thomas Friedman
avaliou alguns aspectos da globalização e escreveu o livro intitulado ‘o Lexus e a
Oliveira’. Segundo ele, dentre outras coisas, o fenômeno da globalização fez
intensificar o conflito entre o Lexus e a Oliveira, o novo e o velho.
Para os que não entendem nada sobre automóveis, o Lexus é um carro
de luxo fabricado pelos japoneses. Nas fábricas do Lexus, é mais comum notar
a presença de robôs do que de seres humanos. Os robôs fazem praticamente
todo o trabalho de montagem do carro. O trabalho das pessoas é basicamente
verificar o controle de qualidade e, de vez em quando, apertar algum parafuso.
Por outro lado, a Oliveira é uma árvore que pode viver por muitos anos.
Algumas podem viver milhares de anos. Em Jerusalém, no Monte das Oliveiras,
por exemplo, existem árvores que, segundo os guias turísticos, têm
aproximadamente dois mil anos de vida. Nasceu gente, morreu gente; entrou
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geração, passou geração; levantaram-se governos, derrubaram-se governos; e
durante aproximadamente dois mil anos aquelas oliveiras não saíram do lugar e
não “mudaram o seu estilo de vida”.
Ao escrever sobre as oliveiras em seu livro, Thomas Friedman fez uma
observação alegórica bastante interessante. Ele disse o seguinte:
As oliveiras são importantes. Elas representam tudo o que nos enraíza,
nos ancora, nos identifica e nos localiza nesse mundo – como o
sentimento de pertencer a uma família, a uma comunidade, a uma tribo,
a uma nação, a uma religião ou, sobretudo, a algo chamado lar.3
O Lexus e a oliveira, portanto, representam mundos e realidades bastante
distintas. O Lexus retrata o novo, a inovação, a tecnologia, a mudança e o
temporário; e a oliveira representa o antigo, as raízes, as tradições, a história e a
permanência. Enquanto o Lexus sofre constantes mudanças, fruto das
inovações, a oliveira permanece a mesma, simplesmente oliveira.
O mais impressionante em toda essa questão é o fato de que o novo e o
antigo coexistiram pacificamente, durante muitos séculos, no mesmo mundo.
Durante centenas de anos, em muitos países, o novo conviveu com o antigo, as
inovações coexistiram com as tradições e os jovens viveram com os mais
velhos.
Contudo, na era da globalização, a coexistência entre o novo e o antigo
tem se tornado cada vez mais difícil. Atualmente, a balança pende para as
novidades. O mundo parece rejeitar o passado, desconsiderar a história e
3 FRIEDMAN, Thomas L. O lexus e a oliveira. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p.54
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abandonar as tradições. Na linguagem cunhada por Thomas Friedman, o Lexus
engoliu a Oliveira.
“Lembrem-se dos dias do passado”
Contudo, em muitos momentos, a Bíblia não aprova essa destruição do
antigo pelo novo. Quando o povo de Israel ainda estava no deserto de Cades,
por exemplo, Deus lhes ensinou uma canção nova. E Moisés fez o povo cantar:
“Lembrem-se dos dias do passado!”4
Os israelitas ainda nem tinham entrado na Terra Prometida! Eles nem
tinham atravessado o rio Jordão! Eles nem tinham se deparado com outrospovos, culturas e novidades! Eles ainda permaneciam no deserto, sob a nuvem
de Deus e sob os cuidados do Anjo do Senhor. Contudo, ainda que não
tivessem se esquecido do passado, Deus ordenou que Moisés lhes ensinasse a
cantar: “Lembrem-se dos dias do passado”!
O problema era que o contato com outros povos e culturas poderia trazer
um grande impacto aos israelitas. Essa novidade poderia levá-los a, tolamente,
se esquecer do passado: quem eram, de onde haviam vindo, como haviam
chegado ali e quem era o Deus que os conduzia.
Assim, não foi por acaso que o Senhor decidiu lhes ensinar essa canção:
“lembrem-se dos dias do passado”! Era uma canção que os remetia ao passado,
às tradições antigas, às lembranças das intervenções divinas, aos princípios
estabelecidos no começo, às origens de tudo, ao início da história.
4 “Lembrem-se dos dias do passado; considerem as gerações há muito passadas. Perguntemaos seus pais, e estes lhes contarão, aos seus líderes, e eles lhes explicarão” (Dt 32.7 – NVI)
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Mesmo não podendo se esconder daquilo que era novo – eles viveriam
em meio às novidades e aos povos da terra – eles poderiam e deveriam
preservar a sua história. O sucesso da permanência na terra de Canaã, o
sucesso da não assimilação pelos outros povos dependia do quanto a própria
história e as tradições estariam arraigados em seus corações e vidas.
Deus mantêm o seu princípio
Essa mesma ordem dada ao povo de Israel tem relevância para hoje:
para todos nós que vivemos nesse mundo globalizado. Se não nos recordarmos
constantemente da nossa história e das nossas tradições, vamos desaparecer.Nós corremos o risco de perdermos a nossa própria identidade e de sermos
assimilados pela cultura de massa do nosso tempo.
São muitos os perigos nessa assimilação pela cultura de massificação. O
cristão que perde as raízes, perde a própria identidade. Ele deixa de ser,
essencialmente, diferente das pessoas do seu tempo. Ele deixa de cumprir o
propósito para o qual foi chamado pelo Senhor Jesus. Ele deixa de ser luz do
mundo e sal da terra. Ele deixa de ser uma voz profética dentro da sociedade.
Ele não mais consegue dizer às pessoas: “Assim diz o Senhor”.
A cultura de massificação do nosso mundo globalizado destrói toda e
qualquer forma de tradição. A massificação leva o indivíduo a perder a sua
identidade: ele é desenraizado da sua história e da história do seu povo. Ainda
que o cristão desenraizado venha usar termos bíblicos e linguagem
“evangeliquês”, ele somente conseguirá proclamar a palavra que os outros
proclamam. Ele não conseguirá proclamar a Palavra de Deus. Ele perdeu o
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contato com o Senhor. Ao abrir mão da história escrita por Deus, ele abriu mão
do Deus da história.
Eles se tornaram pagãos
O povo de Israel, apesar da canção que aprendeu, apesar dos alertas
recebidos, não conseguiu manter as tradições. Ele foi assimilado pela cultura
dos povos do seu tempo. A despeito dos cultos, dos sacrifícios, das ofertas e do
vocabulário “diferenciado”, Deus olhou para o seu povo e o viu como apóstata.
Israel foi assemelhado a Sodoma e Gomorra.
O profeta Isaías, sofrendo com a mesma indignação do Senhor,proclamou:
Governantes de Sodoma, ouçam a palavra do SENHOR! Vocês, povo
de Gomorra, escutem a instrução do nosso Deus! [...] Quando vocês
vêm à minha presença, quem lhes pediu que pusessem os pés em
meus átrios? Parem de trazer ofertas inúteis! [...] Não consigo suportar
suas assembléias cheias de iniquidade.5
O problema do povo de Israel foi não ter se recordado do passado. Os
israelitas não guardaram as tradições antigas. Eles se esqueceram da própria
história. Eles se perderam na história e na cultura dos outros povos. Ao invés de
serem um “reino de sacerdotes e uma nação santa”6, eles se tornaram tão
pagãos, idólatras e injustos como as demais pessoas do seu tempo.
Mas Deus jamais se calou. A mesma canção que havia sido ensinada no
passado era relembrada no presente. Diversos profetas foram comissionados
5 Isaías 1.10-13 - NVI6 Êxodo 19.6 - NVI
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Amados, embora estivesse muito ansioso por lhes escrever acerca da
salvação que compartilhamos, senti que era necessário escrever-lhes
insistindo que batalhassem pela fé uma vez por todas confiada aos
santos.12
Essa insistência dos apóstolos quanto à importância do passado e das
tradições não era descabida. Eles viviam em um mundo de constantes
novidades. Havia, por exemplo, alguns grupos de filósofos que viajavam de
cidade em cidade, chamando as pessoas para as recentes descobertas e para
novas revelações. Tudo isso era muito sedutor, especialmente para aqueles que
desejavam, sinceramente, conhecer a Verdade.
A única arma contra a cilada das novidades dos falsos pregadores eram
as tradições e a história. Por isso, os apóstolos, em suas cartas e pregações,
alertaram os crentes para a importância do passado. Todo novo conhecimento e
revelação deveriam ser medidos pelo antigo conhecimento e pelos testemunhos
da história.
Inimigos da história, inimigos do evangelho
O zelo apostólico pela história não é exagerado. Em princípio, os inimigos
da história são hereges em potencial. Todo aquele que a rejeita ou a ignora
corre o risco de se tornar, consciente ou inconscientemente, um inimigo do
evangelho. O testemunho da igreja é farto de relatos de cristãos sinceros que
desprezaram a história e distorceram o evangelho. Os gnósticos são um
exemplo de cristãos que fizeram tipo de rejeição.
12 Judas 1.3 - NVI
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Eles surgiram logo no início da era da igreja e viveram entre os séculos II
e IV d.C.. Havia neles uma motivação correta. Eles eram sinceros na sua busca
por Deus e na pregação. Contudo, havia um problema: no afã de tornarem a sua
mensagem contemporânea, eles distorceram as Escrituras. O escritor Kelly faz a
seguinte observação:
Muitos dos mestres gnósticos [...] consideravam-se sinceramente
cristãos, e há um elemento de verdade na tese de que seus sistemas
eram tentativas de expressar de novo o evangelho simples em termos
que seus contemporâneos achassem filosófica e até cientificamente
mais satisfatórios. A incompatibilidade básica entre o cristianismo e o
gnosticismo encontrava-se [...] em suas diferentes posturas face à
ordem material e ao processo histórico. Pelo fato de, em geral,
desprezarem a matéria e não estarem interessados na história, os
gnósticos (no sentido mais restrito e mais conveniente do termo) viram-
se impedidos de dar pleno valor à doutrina cristã fundamental da
encarnação do Verbo.13
O desprezo pela história foi um dos fatores que levou os cristãos
gnósticos a se afastarem de Cristo. Eles se apegaram muito mais ao que era
admirado e estimado em seu próprio tempo. E pouco a pouco, porque ignoraram
as tradições, foram influenciados pelo conhecimento de sua época. Fascinados,
eles foram iludidos pela tentação do novo, do aceitável, do científico, do
misterioso e do popular. Ao se tornarem inimigos da história e do que era
histórico, eles se tornaram inimigos do evangelho e de Cristo.
13 KELLY, J.N.D. Doutrinas centrais da fé cristã: origem e desenvolvimento. São Paulo: VidaNova, 1993.p.20.
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Deus não mudou
Muitas das pessoas são iludidas pelo novo porque se esquecem de que
Deus não mudou. Ainda que muitos proclamem: “Deus é o mesmo, ontem, hoje
e para sempre”, são poucos os que aplicam essa verdade a todas as áreas de
suas vidas. São poucos os cristãos que anunciam essa verdade com coerência.
São poucos os que entendem os desdobramentos dessa verdade.
Se Deus não mudou e Ele está agindo nas nossas vidas e na igreja
contemporânea, então, da mesma maneira, Ele agiu nas pessoas e na igreja do
passado. Assim, porquanto Ele agiu nas pessoas e na igreja do passado, otestemunho da história é totalmente relevante para os dias de hoje.
Esse é um alerta para todos os cristãos desse mundo massificado. É um
aviso para todos que ansiamos por novidades. Não podemos prescindir da
história! Não podemos nos esquecer das tradições! Não podemos ignorar o que
o Espírito Santo já realizou! Não podemos abrir mão do que já foi vivido e
ensinado no passado!
Hoje, mais do que em qualquer tempo, precisamos voltar os nossos olhos
para trás. Necessitamos ouvir o que Deus já falou aos nossos irmãos que
viveram antes de nós. Eles nos ajudarão em nossa caminhada. Eles nos
alertarão enquanto andamos pelas estranhas e sedutoras estradas do mundo
contemporâneo.
“Senti o coração maravilhosamente aquecer-se”
O testemunho do passado tem muito a nos ensinar. Quando olhamos
para trás, verificamos que muitos dos nossos irmãos sabiamente reconheceram
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a ação do Espírito Santo dentro da história. Mesmo sabendo da ação de Deus
em seu próprio tempo, eles não ignoraram o passado. Eles reconheceram que
Deus já havia agido e ministrado na vida de várias outras pessoas. Por isso, eles
leram e estudaram aquilo que as outras pessoas haviam escrito e ensinado.
A experiência de conversão de João Wesley é um testemunho dessa
prática. Wesley, que viveu no século XVIII, se converteu com a leitura de um
texto que havia sido escrito por Martinho Lutero no século XVI. O próprio João
Wesley nos relata esse fato:
À tarde fui, com pouca vontade, a uma reunião na Aldersgate Street
(Londres); quando cheguei alguém estava lendo o prefácio de Lutero à
Epístola de Paulo aos Romanos. Cerca das vinte horas e quarenta e
cinco minutos, enquanto ele descrevia a mudança que Deus opera
mediante a fé em Cristo, senti o coração maravilhosamente aquecer-se,
senti que eu agora confiava realmente em Cristo, somente em Cristo,
para salvação; e me foi dada a segurança de que Cristo havia perdoado
os meus pecados, sim, os meus, e que eu estava salvo da lei do pecado
e da morte.14
Da mesma maneira como Deus havia usado o comentário de Martinho
Lutero à Epístola de Paulo aos Romanos no século XVI, Deus o usou no século
XVIII. O Espírito Santo usou esse mesmo texto, que havia trazido impacto à
Europa no período da Reforma Protestante, para converter o coração de Wesley
a Jesus. Os anos não apagaram o poder da mensagem. Ela foi relevante no
século XVI, no século XVIII, e também pode ser relevante no século XXI.
14 WESLEY, João. Trechos do diário de João Wesley . São Paulo: Junta geral de educação cristãda igreja Metodista do Brasil, 1965.p.24.
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O nosso chamado atual é o de redescobrir a história. Precisamos nos
apropriar dos testemunhos do passado. Aquilo que fez os homens poderosos
em Deus nos tempos antigos também pode nos fazer poderosos em Deus nos
tempos atuais. Ele não mudou! Não precisamos andar a procura das novidades,
dos novos moveres, dos novos congressos ou das novas doutrinas. Podemos,
simplesmente, ouvir o que o Espírito Santo já fez. Ele nos edificará na Palavra e
no testemunho da igreja. E seremos protegidos das ciladas dos hereges e de
todos aqueles que escolhem tanto ignorar a história como fechar os ouvidos
para a Palavra de Deus.
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CAPÍTULO 2 – A PALAVRA DE DEUS
“Toma e lê”
A história da igreja é marcada pelo testemunho de vida de muitos homens
e mulheres de Deus: pessoas que se entregaram completamente ao Senhor,
sem qualquer reserva. Um desses homens chamava-se Aurélio Agostinho. Ele
nasceu na cidade de Tagaste – hoje, Souk-Ahras, Argélia – no dia 13 de
novembro de 354 d.C..
Agostinho viveu muitos conflitos interiores durante a sua caminhada. Elemesmo nos deixou o relato da sua história na sua autobiografia, as Confissões.
Apesar do valor que dava aos tantos livros, estudos acadêmicos, filosofias e
conhecimentos, Agostinho entendeu que somente a Palavra de Deus é a plena
Verdade. Somente ela tem o poder de mudar o coração e a vida do ser humano.
Ele mesmo foi mudado a partir da leitura das Escrituras. Quando ainda era
ímpio, enquanto lia a Bíblia, o Espírito Santo lhe revelou Cristo, quebrantando o
seu coração e transformando-lhe os pensamentos.
O momento de conversão de Agostinho aconteceu quando ele estava
com o coração grandemente angustiado. Ele tinha muitas lutas interiores. De um
lado, o pecado e os desejos carnais tentavam afastá-lo de Deus; de outro lado, o
Espírito Santo lhe trazia ao coração a lembrança da doce Palavra de Cristo. Ele
nos conta essa sua luta em suas Confissões, de onde se pode ler o trecho
abaixo:
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Quando essas severas reflexões me fizeram emergir do íntimo eexpuseram toda a minha miséria à contemplação do coração,desencadeou-se uma grande tempestade portadora de copiosa torrentede lágrimas. Para dar-lhe vazão com naturalidade, levantei-me e afastei-me de Alípio [...]. Alípio percebeu o estado em que me encontrava: otom da voz embargada pelas lágrimas, ao dizer-lhe alguma coisa, havia-me traído. Levantei-me; ele permaneceu atônito, onde estávamossentados. Deixei-me, não sei como, cair debaixo de uma figueira e deilivre curso às lágrimas, que jorravam de meus olhos aos borbotões,como sacrifício agradável a Ti. [...]. Eis que, de repente, ouço uma vozvinda da casa vizinha. Parecia de um menino ou menina repetindocontinuamente uma canção: “Toma e lê, toma e lê”. [...]. Reprimi opranto e levantei-me. A única interpretação possível, para mim, era a deuma ordem divina para abrir o livro e ler as primeiras palavras queencontrasse. [...] Apressado, voltei ao lugar onde Alípio ficara sentado,pois, ao levantar-me, havia deixado aí o livro do Apóstolo. Peguei-o, abrie li em silêncio o primeiro capítulo sobre o qual caiu o meu olhar: “Nãoem orgias e bebedeiras, nem em devassidão e libertinagem, nem emrixas e ciúmes. Mas revesti-vos do Senhor Jesus Cristo e não procureissatisfazer os desejos da carne”. Não quis ler mais, nem era necessário.
Mal terminara a leitura dessa frase, dissiparam-se em mim todas astrevas da dúvida, como se penetrasse no meu coração uma luz decerteza.15
A leitura das Escrituras foi o meio que Deus usou para transformar a vida
de Agostinho. Mas não somente a de Agostinho. A vida de muitas pessoas foi
transformada pelo encontro com a Palavra. Elas se encontraram com a Palavra
e tiveram um encontro com Cristo.
A Palavra Viva
Quem não se recorda da história do eunuco etíope? Ele havia estado em
Jerusalém para adorar a Deus. Ele era um prosélito, um convertido ao
Judaísmo. Contudo, ele não conhecia a Cristo. Ele não sabia nada acerca da
salvação do homem. Ele havia adorado a Deus, mas o seu coração permanecia
da mesma maneira. Ele havia obedecido às exigências da religião, mascontinuava sem transformação. Ele tinha as Escrituras nas mãos, mas
15 AGOSTINHO, Santo. Confissões. São Paulo: Paulus, 1997.p.230-231.
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continuava com um véu diante dos olhos. A sua religião o impedia de enxergar
Cristo.
Então, de repente, Filipe se aproximou dele. A pergunta de Filipe foi
simples e direta: “O senhor entende o que está lendo?”16. Apesar de ter a Bíblia
nas mãos, aquele homem permanecia sem entendimento. A sua visão da Bíblia
era limitada e parcial. Ele ainda não conhecia a Cristo. Ele ainda não conhecia a
Palavra Viva de Deus. Ele nada sabia sobre o Verbo que se fez carne.
Mas tão logo ouviu sobre Jesus, os seus olhos foram abertos, o véu lhe
foi arrancado e a sua vida foi transformada. O encontro com a Palavra Vivamudou a vida do eunuco. Ele não foi mais o mesmo. A alegria invadiu o seu
coração. Ainda que o ambiente à sua volta permanecesse o mesmo – ele
continuou seguindo o seu caminho – o seu coração estava mudado.17 O
encontro com Cristo mudou a sua vida.
O encontro com Cristo muda a vida de qualquer pessoa. Ele é a Palavra
Viva de Deus. Ele é a única “chave” que abre as Escrituras. Ele é o único que
pode tirar o véu da face as pessoas. Sem um encontro com a Palavra Viva, a
leitura da Bíblia permanece leitura morta, fria, insensível, acadêmica, arrogante
e polêmica.
A questão não é saber sobre Cristo, mas encontrar-se com Ele; não é ler
a Escritura, mas relacionar-se com a Palavra Viva. São muitos os que sabem
sobre Cristo, mas não O conhecem de fato. Conseguem dissertar horas e horas
sobre a pessoa de Jesus, mas não conhecem Jesus em Pessoa. São doutores
16 Atos 8.30 – NVI.17 Atos 8.39.
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em teologia, mas fariseus em sua conduta. Têm a Bíblia nas mãos, mas não
entendem uma só Palavra. Permanecem com o véu nos olhos e com a religião
sobre o coração.
A sabedoria de Deus
Como esse tipo de situação é comum! Como é fácil encontrar pessoas
sinceramente enganadas. Gente que pensa que conhecer a palavra sobre Cristo
equivale a conhecer o Cristo da Palavra; gente que se debruça sobre as
Escrituras, não para conhecer Jesus, mas para conhecer sobre Jesus; gente
que ao invés de um encontro com Cristo teve um encontro com sua própriasabedoria e religiosidade.
Phillip Spener, já no século XVII, se entristeceu com esse tipo de
situação:
O pior de tudo é que, em tantos pregadores, a vida e a falta dos frutosda fé indica que eles mesmos são carentes de fé. Aquilo que elespensam ser fé e no qual baseiam os seus ensinamentos não é, de formaalguma, a verdadeira fé, e sim fantasia humana. A verdadeira fé é
despertada pela iluminação, testemunho e selo do Espírito Santo,através da Palavra de Deus. Tais pregadores estão longe da verdadeiraluz divina e da vida de fé, pois eles apreenderam apenas a letra daEscritura, sem a atuação do Espírito Santo. Em outras palavras, elesobtiveram o que possuem apenas com o esforço humano – da mesmaforma como outros adquirem conhecimentos em seus respectivoscampos de estudo.18
Os escritos de Spener são um alerta para todos nós. Diariamente
corremos o risco de nos afastarmos da doce Palavra de Deus e de nos
envolvermos com a venenosa palavra dos homens; corremos o risco de
abandonarmos a Sabedoria de Deus e abraçarmos a sabedoria dos homens;
corremos o risco de lermos a Bíblia, não com os óculos trazidos por Jesus, mas
com os óculos trazidos pelo mundo.
18 SPENER, Phillip Jacob. Mudança para o futuro: pia desideria. Curitiba: Encontrão, 1996.p.38.
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Como a sabedoria humana nos fascina hoje! Como ela já fascinava nos
dias de Paulo! Por várias vezes, Paulo precisou confrontar as pessoas por causa
da sabedoria do mundo; em diversos momentos ele precisou chamar as
pessoas de volta à sabedoria de Deus:
A mensagem da cruz é loucura para os que estão perecendo, mas paranós, que estamos sendo salvos, é o poder de Deus. Pois está escrito:Destruirei a sabedoria dos sábios e rejeitarei a inteligência dosinteligentes. Onde está o sábio? Onde está o erudito? Onde está oquestionador desta era? Acaso não tornou Deus louca a sabedoriadeste mundo? [...] Os judeus pedem sinais miraculosos, e os gregosprocuram sabedoria; nós, porém, pregamos a Cristo crucificado, o qual,de fato, é escândalo para os judeus e loucura para os gentios, mas paraos que foram chamados, tanto judeus como gregos, Cristo é o poder deDeus e a sabedoria de Deus.19
Cristo é a sabedoria de Deus. Ele é a chave hermenêutica que abre as
portas do entendimento da Bíblia. Ele é o único que pode nos garantir a
transformação enquanto lemos as Escrituras. Somente Ele pode aquecer o
nosso coração enquanto ouvimos a Palavra de Deus.
Talvez essa seja a maior necessidade dos dias de hoje. Precisamos
reaprender a parar não simplesmente para ler a Palavra de Deus; mas paraouvir a Palavra de Cristo. Precisamos mudar o modo como nos aproximamos da
Escritura. Precisamos transformar os nossos olhos clínicos em ouvidos atentos.
Transformando olhos em ouvidos
Pode parecer estranho, mas essa mudança de olhos em ouvidos é
fundamental para a nossa saúde espiritual. Essa mudança não implica em uma
novidade, mas em um recomeço. Quando alguém tem um encontro com Cristo,
ele sabe que não se encontrou com um livro, mas com uma pessoa. Ele
reconhece que não leu algumas palavras, mas que ouviu uma voz. O seu
19 1Coríntios 1.18-20;22-24 – NVI.
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coração foi afetado, não por um conhecimento novo, mas por um novo
relacionamento.
É isso que precisa ser resgatado nos dias de hoje. Precisa haver um
retorno ao começo. A aproximação da Palavra de Deus não pode se dar através
dos olhos, mas sim através dos ouvidos. Como diz Eugene Peterson,
Ouvir e ler não são a mesma coisa. Envolvem sentidos diferentes. Aoouvir, usamos nossos ouvidos; na leitura, os olhos. Ouvimos o som deuma voz, lemos marcas em um papel. [...] Ouvir é um ato interpessoal,que envolve duas ou mais pessoas em razoável proximidade. A leituraenvolve uma pessoa com um livro escrito por alguém que pode estar amuitos quilômetros de distância, ou morto há séculos, ou ambas ascoisas. O ouvinte precisa estar atento ao falante, e estar mais ou menosà mercê dele. Com o leitor, a situação é bem diferente, já que é o livro
que está à mercê dele e pode ser levado de um lugar para o outro,aberto ou fechado, de acordo com sua vontade, lido ou não. Quandoouço, a outra pessoa sabe muito bem se estou ou não atento a ela. Aoouvir, outros iniciam o processo, na leitura, eu começo. Ao ler, eu abro olivro e presto atenção às palavras. Posso fazê-lo sozinho, mas não ouvirsozinho. Ouvindo, o falante está no controle; na leitura, quem controla éo leitor.20
Essa mudança de olhos em ouvidos muda até mesmo o modo como nós
nos vemos no mundo. O uso dos olhos, a prática da leitura, me faz imaginar que
estou sozinho no mundo e que sou centro de todas as coisas. Sou eu quem
tomo a iniciativa de ver e de ler.
Por outro lado, o uso dos ouvidos, a prática do diálogo, me faz perceber
que eu não estou sozinho no mundo e que eu não sou o centro de todas as
coisas. É o outro quem toma a iniciativa de falar comigo. Eu simplesmente
respondo a Ele e dou continuidade ao diálogo que Ele mesmo começou.
Essa é a postura correta diante do Senhor e da Sua Palavra. Não foi o ser
humano quem primeiramente falou com Deus, mas foi Deus quem
20 PETERSON, Eugene H. Um pastor segundo o coração de Deus. Rio de Janeiro: Textus,2000.p.82.
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primeiramente falou com o ser humano. Não foi o homem quem tomou a
iniciativa para esse relacionamento, mas foi Deus quem tomou a iniciativa para
tal relacionamento. O homem jamais foi atrás de Deus, mas Deus
constantemente tem ido atrás do homem. A primeira pergunta de Deus ao
homem continua ecoando nas paredes dos séculos: “Onde está você?”.21
Um retorno à Palavra
Precisamos ouvir a Palavra de Deus. Precisamos nos voltar para a
Palavra de Deus. A carência do mundo moderno não são dissertações, teses,
livros, compêndios ou dicionários. O mundo moderno já está cheio das palavrasdos homens. E mesmo assim as pessoas continuam vazias, angustiadas,
perdidas, amarguradas, desesperadas, violentas, assassinas e suicidas.
O aumento crescente do número de cristãos na sociedade não tem
trazido um aumento crescente de saúde para a sociedade. Pelo contrário, o
mundo parece estar mais enfermo do que nunca: são mais mentiras, mais
orgulho, mais ganância, mais avareza, mais corrupção e mais incredulidade.
As igrejas têm se tornado “quentes”, mas o amor tem se esfriado.22 As
igrejas têm organizado “moveres”, mas as pessoas continuam doentemente
imóveis. Os crentes têm se tornado ricos, mas a pregação do evangelho tem se
tornado pobre. Os pastores têm se tornado conhecidos, mas Cristo, não. As
instituições eclesiásticas têm se tornado fortes, mas muitos irmãos permanecem
carentes. Há muito conhecimento humano, mas pouco conhecimento divino. Há
21 Gênesis 3.9 – NVI.22 Mateus 24.12.
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muitos livros de estratégia, mas pouco da estratégia do Livro. Há muito de outros
livros, mas pouco da Palavra de Deus.
Os pastores, os líderes e os cristãos, que deveriam ser instrumentos de
transformação da sociedade, precisam, eles mesmos serem transformados. Eles
precisam se encontrar menos com as outras coisas, e se encontrar mais com a
Palavra Viva. Eles precisam se desintoxicar do veneno que absorveram, e se
intoxicar da saúde celestial. Eles precisam abandonar as técnicas e estratégias
da sabedoria humana, e se apropriar da mensagem e da Palavra de Deus.
Quando Martinho Lutero se encontrou com a Palavra de Deus, a sua vidafoi transformada. Mas não somente a sua vida. Toda a Europa experimentou o
impacto dessa transformação. Antes de Lutero, a Europa vivia em um estado de
caos. Ninguém acreditava que o mundo iria sobreviver àqueles dias. Mas,
depois que Lutero se encontrou com a Palavra, a fisionomia européia mudou. O
próprio Lutero testificou isso. Ele mesmo confirmou que o poder que trazia a
transformação era a Palavra de Deus:
Simplesmente ensinei, preguei, escrevi a Palavra de Deus; não fiz maisnada. E então, enquanto eu dormia, ou bebia cerveja de Wittenberg commeu Filipe e meu Amsdorf, a Palavra enfraqueceu tão intensamente opapado que nenhum príncipe ou imperador jamais fez estrago assim.Não fiz nada. A Palavra fez tudo.23
A transformação da Europa aconteceu porque alguém se debruçou para
ouvir a Palavra de Deus. Ao invés de ouvir o que os outros diziam, ou o que os
escolásticos comentavam, esse homem escolheu se colocar atento à Palavra
que desde o início do mundo falava: “Onde está você?”. Humildemente, Lutero
23 LUTERO, Martinho apud GEORGE, Timothy. Teologia dos reformadores. São Paulo: VidaNova, 1993.p.55.
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se colocou a escutar o que Deus lhe dizia e, prontamente, se levantou para
obedecer ao que lhe era falado.
Quando os pastores, os líderes e os cristãos retornarem para a Palavra, o
mundo será transformado. Quando eles, humildemente, se debruçarem para
ouvir a Deus, e prontamente se levantarem para obedecê-lO, a sociedade
experimentará uma mudança. Essa mudança não começará primeiramente na
sociedade, mas no coração dos próprios cristãos. Essa mudança ocorrerá
quando nós nos dispusermos a ouvir a Palavra de Deus.
Uma experiência com a PalavraTodos nós somos chamados a responder à Palavra de Deus; todos nós
somos chamados a dar sequência ao diálogo que Deus começou com o homem,
lá no início, quando perguntou: “Onde está você?”.
Eu me lembro de uma ocasião em que eu pude dar seqüência a esse
diálogo. Eu estava debruçado sobre o texto da tentação de Jesus, em Lucas 4.1-
13. E ali, ouvindo a voz de Deus, eu respondi ao Senhor:
“Senhor, Tu nos conduzes ao deserto. Há pessoas cheias do Espírito
Santo passando pelo deserto: lugar de ausências, lugar de carências, lugar de
silêncio, lugar de solidão, lugar de provação, lugar onde eu não encontro
ninguém para me encorajar, ninguém para trazer-me palavras de refrigério,
ninguém para me conduzir a Ti.
No deserto, estou sozinho. Há momentos em que eu não ouço nem
mesmo a Tua voz. Não percebo nem mesmo a Tua presença. É tão difícil... Sou
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tentado. O meu inimigo me questiona. Ele lança dúvidas no meu coração; se eu
estou no caminho certo.
No deserto, tudo fica tão difícil que eu sou tentado a questionar se Tu
estás comigo e se eu estou contigo. Não há qualquer sinal da Tua presença. É
difícil imaginar que o Teu Santo Espírito foi quem me conduziu ao deserto. Eu
penso que o problema está em mim; que eu não tenho orado tempo suficiente;
que eu não tenho lido a Bíblia como deveria; que eu tenho dado vazão à
carnalidade. Eu penso que eu mesmo fui o responsável por me conduzir ao
deserto. Não consigo sequer imaginar que o Teu Santo Espírito tenha feito isto...Não é fácil ficar sem ouvir a Tua voz. Não é fácil ficar sem perceber a Tua
presença ao meu lado. Não é fácil deixar de receber aquelas bênçãos de que eu
tanto preciso. Não é fácil ficar sem ganhar presentes. É difícil ficar no deserto. E
mais difícil é aceitar que o Teu Espírito me tenha conduzido a esse lugar onde
não há quaisquer sinais ou evidências da Tua graça; pelo contrário, só vejo
provações, faltas, ausências, carências, necessidades e demônios tentando me
fazer cair.
Mas, por outro lado, eu vejo que Jesus, cheio do Espírito Santo, foi
conduzido pelo Espírito ao deserto. É difícil aceitar que o Espírito Santo, estando
eu vivendo em santidade, me tenha levado ao deserto. Contudo, eu vejo que
isso acontece. Jesus não foi levado ao deserto por causa de pecado ou
desobediência. Ele foi levado ao deserto quando estava cheio do Espírito Santo.
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Ajuda-me Senhor! Não é fácil ficar sem perceber a Tua presença. Não é
fácil suportar as tentações. Já não percebo a Tua presença e ainda enfrento
tentações...
Oh Deus! O inimigo quer me fazer cair. Ele quer me afastar de Ti. E Tu, ó
Deus, além de me levares ao deserto, permaneces em silêncio? Tu me colocas
no lugar onde as tentações vêm e não fazes nada? Tu permaneces imóvel? Eu
não ouço aplausos, nem palavras de honra, nem encorajamentos e nem
progresso... Pelo contrário, eu ouço críticas, cobranças, desencorajamento,
pressões e comparações. E Tu, ó Senhor, permaneces imóvel.Penso que o problema está em mim. Sou tentado a fazer alguma coisa:
transformar pedras em pães ou saltar do pináculo do Templo. Sou tentado a
fazer algo para chamar a atenção das pessoas e mostrar para elas que eu sou
alguém bem sucedido e muito poderoso. Sou tentado a ceder às tentações... (E
pensar que o Teu Espírito me levou ao deserto para ser tentado em todas essas
coisas. E Tu me deixaste ali, sozinho, sem ninguém, cheio de limitações, cheio
de carências)...
É difícil, Senhor, não ter as glórias, não ter as honras, não ter os
aplausos, não ter os holofotes, não ter os agradecimentos. É difícil deixar o lugar
de festa, de multidões, de glórias para ir ao deserto, lugar de ausências e de
solidão.
Mas é aí, no lugar da solidão, do deserto, que eu consigo aprender o
valor real de todas as coisas. É no deserto que eu consigo colocar as coisas nos
seus devidos lugares; e, saber que mais importante que as glórias humanas, os
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elogios e as multidões é a minha fidelidade ao Senhor e a certeza do Teu amor
para comigo.
Por que não ceder às tentações?
Porque eu sei que Tu me amas. Tu és Deus e toda a glória é devida a Ti
somente. Teu Espírito me levou ao deserto para eu aprender que somente Tu e
a Tua Palavra são realmente importantes. Eu não devo abrir mão do meu
relacionamento contigo e das minhas convicções em Ti”.
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CAPÍTULO 3 – A ORAÇÃO
Não podiam ao menos permanecer de pé
É muito difícil alguém ler o livro “ A vida de David Brainerd ” e permanecer
a mesma pessoa. Ainda que não seja uma leitura muito popular, há mais de 250
anos esse livro tem incendiado o coração de vários cristãos. João Wesley, por
exemplo, o homem que Deus usou para avivar a Inglaterra no século XVIII,
incentivou todos os pregadores a considerarem e imitarem a vida de David
Brainerd.Uma das características mais notáveis de Brainerd, como se pode notar
no seu diário pessoal, era a sua vida de oração. Em seu diário, verificamos as
tantas menções que ele faz sobre os seus momentos de oração e de
intercessão diante de Deus. Nem sempre eram momentos fáceis. Havia
momentos de grande refrigério como também de agonia e luta nesses períodos
de oração.
Contudo, após tantas horas, dias e meses de oração e comunhão com
Deus, Brainerd pode experimentar um avivamento em sua própria vida e na vida
dos pagãos em favor de quem ele tanto intercedia. No dia 08 de agosto de 1745,
podemos ler as seguintes palavras no seu diário:
Preguei à tarde para os índios, cujo número agora era de cerca de
sessenta e cinco pessoas, entre homens, mulheres e crianças. Meusermão estava alicerçado sobre Lucas 14.16-23, para o qual fuifavorecido por uma incomum liberdade espiritual. Entre os índios houveum interesse muito visível enquanto eu discursava publicamente; mas,em seguida, quando falava particularmente com um ou outro quedemonstrava estar sob mais forte impressão, foi que o poder de Deuspareceu descer sobre a assembléia “como um vento impetuoso”, o qual,com espantosa energia, derrubava a todos à sua frente.
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Fiquei admirado diante da influência espiritual que tomara conta quaseque totalmente da audiência, não podendo compará-la com outra coisasenão com a força irresistível de uma poderosa torrente de umainundação crescente, que, com seu insuportável peso e pressão, leva deroldão a tudo e a qualquer coisa em seu caminho. Quase todas aspessoas, sem importar a idade, foram envolvidas, inclinando-se sob aforça da convicção, e quase ninguém foi capaz de resistir ao choquedaquela surpreendente ação divina. Homens e mulheres idosos, quetinham sido viciados em álcool por muitos anos, e até algumas criançaspequenas, de não mais de seis ou sete anos, pareciam estar aflitasdevido ao estado de suas almas [...].Estavam quase todos orando eclamando por misericórdia por toda parte da casa, e até do lado de forada casa, e alguns deles não podiam ao menos permanecer de pé.24
Deus usou David Brainerd para vivenciar um dos mais impressionantes
avivamentos da história da igreja. Sem dúvida, a sua fome e sede por Deus, o
seu anelo pela presença do Salvador, a sua compaixão pelos perdidos, a sua
perseverança na oração e a sua dependência do Senhor foram fundamentais
para que ele fosse esse vaso de honra nas mãos do Pai.
Amizade com Deus
As orações de Brainerd, longe de serem frias ou repetitivas, eram a
expressão de um coração que ansiava por ter amizade com Deus. Em seu
diário, freqüentemente, se notam expressões como: “Desfrutei de várias outras
ocasiões, doces e preciosas, de comunhão com Deus [...], nas quais minha alma
gozou de indizível consolo”;25 “Oh! Uma hora com Deus ultrapassa infinitamente
todos os prazeres e deleites deste mundo terreno”;26 “Oh, meu Deus bendito!
Deixe-me subir para bem perto dEle, e amá-lo, e anelar por Ele, e pleitear, lutar,
e expandir-me até Ele, para libertação do corpo do pecado e da morte”; 27
“Sentindo meus desejos centrados em Deus, tive grande atração de alma por
24 EDWARDS, Jonathan. A vida de David Brainerd . São José dos Campos: Fiel, 1993.p.107-108.25 Idem p.24.26 Ibidem p.24.27 Ibidem p.28.
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Ele, em vários momentos do dia”;28 “Senti algo da doçura da comunhão com
Deus, bem como a força constrangedora de seu amor; quão notavelmente esse
amor cativa a alma, e faz com que todos os desejos e afetos centralizem-se em
Deus!”29
O único desejo de Brainerd era poder se relacionar intimamente com
Deus e ser o embaixador do Senhor no meio dos pagãos. Como ele amava os
perdidos e ansiava por vê-los salvos! Como ele se angustiava por ver os
indígenas aprisionados no álcool e escravizados pelo pecado! O seu coração,
pode-se dizer, batia no mesmo ritmo do coração de Deus que, também poramor, desceu dos céus a fim de proclamar a salvação aos perdidos.
A compaixão que Brainerd tinha dos perdidos era certamente um reflexo
da compaixão do Salvador pelos pecadores. Por causa das tantas orações, das
muitíssimas horas na presença do Senhor, dos inumeráveis encontros com
Jesus, dos incontáveis momentos de comunhão com o Pai Celestial, David
Brainerd foi irresistivelmente influenciado pelo amor do Senhor. A presença de
Deus o afetou profundamente, deixando-o mais parecido com Jesus Cristo.
Conformar-se a Jesus Cristo
Esse é o propósito maior da oração: levar-nos, através de nossos
períodos de relacionamento com Deus, a nos tornarmos cada vez mais
parecidos com Jesus. O Pai anseia que os seus filhos sejam conformados à
28 Ibidem p.29.29 Ibidem p.33.
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imagem do Seu primogênito.30 Igualmente, essa é a ardente expectativa de toda
a criação. Ela ansiosamente aguarda que os filhos de Deus sejam revelados.31
Equivocadamente, alguns imaginam que essa revelação dos filhos de
Deus está relacionada com a manifestação de sinais, maravilhas e prodígios. E,
por isso, oram incessantemente pelos sinais sobrenaturais. Entretanto, ainda
que a manifestação sobrenatural certamente acompanhe aqueles que crêem em
Jesus,32 os sinais sobrenaturais não são uma evidência confiável de que alguém
é filho de Deus. No final do Sermão do Monte, o próprio Senhor Jesus afirmou
que, no último dia, muitos se aproximarão dEle, dizendo terem realizadodiversos prodígios e maravilhas; e que, apesar disso, a despeito de todos os
sinais sobrenaturais, eles serão lançados para longe da Sua santa Presença.33
A nossa oração, portanto, não deve colocar a sua maior ênfase na busca
do sobrenatural. Ainda que esse desejo seja legítimo34, ele não deve ser o foco
da oração. O foco da oração deve ser a comunhão com Deus, e,
conseqüentemente, o conformar-se a Jesus Cristo.
Esse era o maior desejo do apóstolo Paulo. Escrevendo aos crentes da
cidade de Filipos, ele afirmou: “Quero conhecer Cristo, o poder da sua
ressurreição e a participação em seus sofrimentos, tornando-me como ele em
sua morte, para, de alguma forma, alcançar a ressurreição dentre os mortos”. 35
30 Romanos 8.2931 Romanos 9.1932 Cf. Marcos 16.17; João 14.1233 Mateus 7.21-2334 Atos 4.29-30.35 Filipenses 3.10-11 – NVI
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O nosso anelo, o propósito de toda busca em oração deve, necessariamente,
ser a conformação com Cristo.
Vãs repetições
Nessa busca, nós não devemos usar de vãs repetições como faziam os
gentios dos tempos de Jesus.36 Eles supunham que se repetissem
constantemente a mesma oração, eles seriam respondidos por Deus. A oração
deles era mera repetição mecânica de palavras. Ao invés de nascer no coração,
a oração nascia da “boca para fora”. Era um simples discursar de palavras de
cunho religioso.Nos dias atuais, muitos, ignorantemente, têm repetido a prática dos
gentios que viveram nos tempos de Jesus. São crentes bem intencionados que
distraidamente recitam orações, supondo que as palavras têm poder nelas
mesmas. Seguem o bem traçado caminho do pragmatismo37, e, assim, deduzem
que se a oração funcionou uma vez, ela se tornou fórmula que funcionará todas
as vezes.
Entretanto, a oração não é estática, como julgam os pragmáticos. Porque
a oração tem a sua existência no contexto do relacionamento, ela é dinâmica.
Ela segue os livres contornos de um relacionamento saudável e equilibrado.
Imagine um relacionamento em que uma das pessoas só conversasse,
utilizando-se de fórmulas pré-fabricadas por outros. Como você reagiria a esse
tipo de relacionamento tão frio e mecânico? Você não sentiria falta do calor do
36 Mateus 6.737 Em termos gerais, a teoria pragmática implica que uma crença P é verdadeira se, e somentese, P funcione ou seja útil possuí-la. (MORELAND, J.P., GRAIG, William Lane. Filosofia ecosmovisão cristã. São Paulo: Vida Nova, 2005.p.184.)
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coração? E não desejaria que o relacionamento fosse menos superficial e mais
profundo?
Infelizmente, muitas pessoas têm se relacionado com Deus como se Ele
fosse uma máquina de computador, esperando receber os dados corretos para
efetuar as operações correspondentes. Esses indivíduos se aproximam dEle
com versículos bíblicos, fórmulas prontas, construções teológicas, reivindicações
e ordens. Eles imaginam que Deus é uma coisa, e, não uma Pessoa que,
transbordante de amor, deseja se relacionar com o ser humano.
Ainda que o modelo pragmático possa funcionar algumas vezes, pelasmisericórdias divinas, ele, dificilmente, aproximará a pessoa do Salvador. Pelo
contrário, ele fará com que a distância entre Deus e o homem se torne cada vez
maior: de um lado, o Deus pessoal, amoroso, anelando por ter amizade com o
homem; e, de outro lado, o homem frio, mecânico, repetitivo, equivocadamente,
pensando que Deus é uma máquina.
Deus não é uma máquina
Talvez, para o homem moderno, seja mais cômodo pensar em Deus
como uma máquina, do que pensar nEle como uma pessoa. Uma máquina não
tem afeições, não se entristece conosco, não aponta as nossas falhas, não
anseia por relacionamento, não nos chama para um diálogo e nem nos convida
para um tempo de comunhão. A máquina é insensível e está sempre a
disposição para que nós a usemos da maneira que quisermos. A pessoa, não.
Muitos preferem pensar em Deus como uma máquina porque querem se
manter acomodados. Sabem que todo relacionamento interpessoal traz
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exigências e mudanças. E essas pessoas não querem mudar. Antes, querem
continuar vivendo as suas vidas solitárias, egoístas e medíocres. Têm medo de
serem tiradas da zona de conforto e de serem levadas a lugares mais altos e
profundos. Não desejam perder o controle da situação.
Contudo, Deus não se transforma em máquina porque esse é o desejo de
muita gente. Deus é e sempre será Pessoal. Ele é e sempre será relacional.
Ainda que muitos o vejam como uma máquina, e se aproximem dEle como se
estivessem se aproximando de um objeto, Ele permanece sendo Pessoa, e,
pouco a pouco, faz com que a sua presença “desorganize” o mundo acomodadodo indivíduo que se aproxima dEle.
Deus desorganiza a vida organizada
Durante muitos anos Isaías serviu como profeta e sacerdote no meio do
povo de Israel. Ele serviu durante os reinados de Uzias, Jotão, Acaz e Ezequias,
reis de Judá38. Apesar de ter contato com as coisas de Deus, Isaías,
aparentemente, não desenvolvia um relacionamento profundo com o Senhor.
Parece que ele, simplesmente, cumpria com as suas obrigações religiosas,
servindo diante de Deus.
Contudo, houve um momento em que a vida de Isaías mudou
completamente. Um dia, quando estava servindo no templo, no ano da morte do
rei Uzias, a presença de Deus “desorganizou” a sua vida “organizada”.39 Isaías
foi completamente transformado e se tornou um poderoso arauto de Deus no
meio do povo de Israel.
38 Isaías 1.139 Isaías 6.1-8.
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36
Da mesma maneira como Deus “desorganizou” a vida acomodada de
Isaías, Ele “desorganizou” a vida acomodada de Jeremias, de Oséias, de Amós,
de Pedro, de Tiago, de Mateus, de Paulo, de David Brainerd e de tantos outros
que se aproximaram dEle. Mesmo que as pessoas, despretensiosamente, se
aproximem de Deus, não há como elas não serem influenciadas e afetadas no
relacionamento com Ele. É impossível alguém permanecer o mesmo, ou manter-
se no controle da situação, depois que se encontra e se relaciona com o Senhor.
Todo e qualquer relacionamento é dinâmico, e, por isso, de alguma
maneira, imprevisível. O mesmo ocorre no nosso relacionamento com Deus.Não sabemos o que Ele irá nos trazer e desconhecemos de que modo a
convivência com Ele irá afetar as nossas vidas. Ainda que tentemos manter
alguns limites enquanto nos relacionamos, nem sempre esses limites são
inflexíveis. Pelo contrário, muitas vezes Deus os ultrapassa, e faz com que a
nossa vida seja mudada.
Joio no meio do trigo
Infelizmente, nem sempre a presença de Deus irá levar alguém a se
parecer cada vez mais com Jesus Cristo. Há muitos que optam por resistir e
permanecer resistindo à doçura da ação divina. Há muitos que preferem manter
as suas capas religiosas e as suas vidas arrogantes.
Houve inúmeros fariseus que resistiram a Jesus. Eles escolheram manter
o seu estilo de vida orgulhoso a serem transformados durante o relacionamento
com o Salvador. Eles optaram pela religião, pelo pragmatismo, pela
superficialidade e pela sua zona de conforto.
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37
A oração dessas pessoas não se dava em um contexto de
relacionamento, mas sim, em um ambiente de cobranças e de legalismos. Deus,
para eles, continuava a ser como que uma máquina, que exigia os dados certos
para apresentar as respostas correspondentes.
A presença de Deus, para esses fariseus, não trouxe transformação para
a vida, mas sim, justiça para a condenação. Diante da contínua resistência à
presença transformadora de Deus, os fariseus foram chamados por Jesus de
filhos do diabo,40 e como parte daquele grupo que não pertencia a Deus. 41
O apóstolo Paulo também se deparou com pessoas desse tipo
42
epreveniu Timóteo contra esse tipo de gente. Judas, escrevendo aos crentes,
também alertou sobre essas pessoas.43 É gente que permanece na igreja, mas
que não é conformada a Cristo nos seus momentos de oração e relacionamento
com Deus. São joio no meio do trigo, e, que, portanto, só serão distinguidos no
dia da vinda do Senhor.
A perseverança na comunhão
O nosso chamado certamente inclui a perseverança da nossa comunhão
com Deus. Porque Brainerd não desistiu de buscar essa intimidade, ele foi
afetado pelo amor do Senhor e pôde servir como vaso de honra e instrumento
para a conversão dos índios. O avivamento veio porque ele perseverou em estar
Coram Deo.
40 João 8.44.41 João 8.47.42 2Timoteo 4.14-15.43 Judas 4, 8-13.
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Como Brainerd, muitas outras pessoas, em diversos momentos da
história, perseveraram na comunhão com Deus, se tornaram imitadores de
Cristo e, conseqüentemente, referenciais para outros indivíduos. O século XVII
abrigou um desses homens. Ele ficou conhecido como irmão Lawrence.
Dentre as poucas cartas do irmão Lawrence que chegaram até nós,
várias comentam sobre a importância de se viver uma vida de comunhão diária
com o Senhor. Em uma delas, ele revela quando e de que modo ele começou a
vivenciar um relacionamento contínuo com Deus. Ele escreveu o seguinte:
Alguns dias atrás, eu estava conversando com um irmão sobre piedade.Ele me disse que a vida espiritual era uma vida de paz alcançada emtrês etapas. Disse que há primeiro o medo; em seguida, o medoconverte-se em esperança de vida eterna; finalmente, vem umaconsumação, que é a do puro amor. Ele disse que cada um dessesestágios é um estágio diferente que, por fim, leva a pessoa a “essabendita consumação”. Nunca segui esse método. Pelo contrário, foi por tanto desanimar-mecom esses métodos que, quando finalmente vim para o Senhor, decidiapenas entregar-me a Ele.[...]. Compreendi que somente por causa dopuro amor para com Ele pude renunciar todas as outras preocupações einteresses do mundo.Durante os primeiros anos de minha busca por Deus, usei métodos. Eureservava momentos para dedicar meus pensamentos à morte, ao juízo,
ao céu, ao inferno e aos meus pecados. Fiz isso durante anos.Entretanto, no restante do dia, comecei a fazer outra coisa. Passava oresto do meu tempo, mesmo em meio ao trabalho, voltandocuidadosamente minha mente para a presença de Deus. Sempre penseique Sua presença estivesse comigo, até em mim!Por fim, deixei de usar esses momentos específicos de oração parapraticar qualquer tipo de devoção metódica que fosse de grande prazere conforto para mim. Comecei a usar meus momentos regulares dedevoção do mesmo modo que usava o restante do meu tempo, nosentido de concentrar minha mente na presença de Deus. Esta novaprática revelou-me uma excelência ainda maior do meu Senhor.Somente a fé – não um método e, certamente, não o medo – foi capazde satisfazer-me enquanto vinha para Ele.
Foi assim que comecei.44
Nós precisamos compreender que se quisermos alcançar mais profunda
intimidade com Deus, devemos, hoje mesmo, nos comprometer a investir tempo
44 LAWRENCE, irmão; LAUBACH, Frank. Praticando a presença de Deus. Rio de Janeiro:Danprewan, 2003.p.103-104.
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no nosso relacionamento com Ele. Precisamos começar. Certamente, pouco a
pouco, a medida que perseveramos em nos encontrar diariamente com o
Senhor, notaremos que a nossa vida se tornou diferente e que começamos a
nos parecer mais e mais com Jesus.
Mas não somente isso: também, as pessoas à nossa volta notarão essa
nossa transformação e, sob o impacto da nossa companhia, também serão
transformadas pelo Espírito Santo. Um avivamento coletivo só acontecerá
depois de haver um avivamento individual; somente depois de reconhecermos
as nossas próprias fragilidades.
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CAPÍTULO 4 - O PARADOXO
As nossas próprias fragilidades
A conversão é apenas o início da caminhada cristã, e não o fim. Isso
significa que, durante toda a jornada, nós experimentaremos transformação
interior a partir da ação e intervenção do Espírito Santo. Quanto mais íntimos
nós nos tornarmos de Deus, quanto mais próximo estivermos do Senhor, mais a
Sua luz incidirá sobre o nosso coração, e, mais consciência nós teremos das
nossas próprias fragilidades e pecaminosidades.O relacionamento e a intimidade com Deus não nos deixam embrutecidos
e insensíveis diante da situação do nosso próprio coração. Pelo contrário,
mediante a nossa crescente comunhão com Ele, na oração e meditação das
Escrituras, nós nos tornamos mais cônscios da necessidade que temos de ser
profundamente transformados. Somos levados a reconhecer que ainda estamos
muito aquém do propósito de Deus para nós e que carecemos da atuação do
Espírito Santo em nossas vidas para nos conformarmos mais a Cristo.
Ao editar o diário de David Brainerd, Jonathan Edwards fez as seguintes
observações acerca da caminhada desse homem de Deus:
Brainerd era dotado de um espírito suave e terno! Oh, como as suasexperiências, esperanças e alegrias se distanciavam da tendência deembrutecê-lo e endurecê-lo, de depreciar as suas convicções e
sensibilidade de consciência, de amortecer seus sentimentos para comseus pecados atuais e passados, e de torná-lo menos cônscio acerca deseus pecados futuros! Quão longe estavam essas experiências,esperanças e alegrias de deixá-lo mais tranqüilo quanto a negligênciados deveres difíceis e inconvenientes, de deixá-lo mais vagaroso eparcial no cumprimento de mandamentos difíceis, menos apto a ficaralarmado diante de seus próprios defeitos e transgressões, maisfacilmente induzido a admitir apetites carnais! Pelo contrário, quãosensível era a sua consciência! Quão tendente era o seu coração aculpá-lo! Quão facilmente ele se alarmava diante do aparecimento da
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perversão moral! Quão grande e constante era seu cuidado com o seupróprio coração!45
A constante comunhão com o Senhor trouxe ao coração de Brainerd um
misto de satisfação e insatisfação. De um lado, ele era satisfeito pelo privilégio
de poder vivenciar um profundo relacionamento com Deus. Por outro lado, ele
era insatisfeito pela sua própria condição imperfeita. Ele reconhecia o quanto
ainda o seu coração era inclinado para o pecado e o quão profundamente ele
precisava ser transformado pela ação sobrenatural de Deus.
O apóstolo Paulo expressou essa mesma convicção em várias de suas
cartas. Escrevendo aos filipenses, por exemplo, ele afirmou:
Não que eu já tenha obtido tudo isso ou tenha sido aperfeiçoado, masprossigo para alcançá-lo, pois para isso também fui alcançado por CristoJesus. Irmãos, não penso que eu mesmo já o tenha alcançado, masuma coisa faço: esquecendo-me das coisas que ficaram para trás eavançando para as que estão adiante, prossigo para o alvo, a fim deganhar o prêmio do chamado celestial de Deus em Cristo Jesus. [...]Pelo poder que o capacita [Jesus] de colocar todas as coisas debaixo doseu domínio, ele transformará os nossos corpos humilhados, tornando-os semelhantes ao seu corpo glorioso.46
Santos e pecadores
Martinho Lutero se referiu a essa mesma situação, descrevendo o cristão
como santo e pecador, ao mesmo tempo. O cristão não é em parte pecador e
em parte justo. Mas ele é, ao mesmo tempo, completamente justo e pecador.
Lutero expressou esse paradoxo assim:
Somos verdadeira e totalmente pecadores, com respeito a nós mesmose ao nosso primeiro nascimento. Inversamente, já que Cristo nos foi
dado, somos santos e justos totalmente. Então, de diferentes aspectos,somos considerados justos e pecadores ao mesmo tempo.47
45 EDWARDS, Jonathan. A vida de David Brainerd . São José dos Campos: Fiel, 1993.p.232.46 Filipenses 3.12-14, 21 – NVI47 LUTERO, Martinho apud GEORGE, Timothy. Teologia dos reformadores. São Paulo: VidaNova, 1993.p.73
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O cristão, durante a sua jornada em direção à Cidade Celestial, jamais
deixará de ser completamente pecador. E de igual modo, ele jamais deixará de
ser completamente santo. Ele é ao mesmo tempo e completamente pecador e
santo – semper iustus et peccator .
Esse paradoxo que caracteriza a pessoa do cristão é tão somente um dos
tantos paradoxos apresentados nas Escrituras48. Qualquer afirmação que ignore
essa tensão na pessoa do cristão está condenada ao simplismo e à
superficialidade. E não somente isso: a ignorância quanto a essa tensão na
pessoa do cristão pode levar o indivíduo ao desequilíbrio dos extremos. Porachar-se somente santo, ele pode cair nas garras da negligência e do orgulho;
ou, por achar-se somente pecador, ele pode sofrer nas mãos do legalismo e da
condenação.
O desequilíbrio dos extremos
Na Idade Média, por exemplo, o desequilíbrio pendeu para o legalismo e
a condenação. As pessoas se achavam tão somente e completamente
pecadoras. O desequilíbrio era tão extremo que as pessoas se martirizavam
inclusive com chicotes, como era o caso dos flagelantes.
Houve diversas tentativas de aliviar a culpa que pesava tão fortementena alma das pessoas. A mais radical de todas eram as váriascompanhias de flagelantes, ascetas rigorosos que viajavam de cidadeem cidade, açoitando-se publicamente com chicotes de couro, naesperança de expiar os pecados seus e da sociedade.49
48 Ao revelar-nos os profundos e sábios desígnios de Deus, a Escritura constantemente utiliza-sede paradoxos, tais quais: lei e evangelho, ira e graça, fé e obras, carne e espírito, liberdade eescravidão, coram Deo e coram mundo, Deus revelado e Deus oculto, soberania de Deus eresponsabilidade do homem. O paradoxo semper iustus et peccator é apenas mais um dosdiversos paradoxos encontrados nas Escrituras.49 GEORGE, Timothy. Teologia dos reformadores. São Paulo: Vida Nova, 1993.p.28.
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Em outras ocasiões, o desequilíbrio pendeu para a negligência e o
orgulho. Esse tipo de desequilíbrio caracterizou , por exemplo, os ensinos de
Marcião, um herege que viveu nos primeiros séculos da era cristã. Se por um
lado, Marcião não colocava a sua ênfase na santidade do cristão, por outro lado,
ele ignorava a sujidade do pecado no ser humano. Ele desconsiderava o
problema do pecado no cristão – ignorando a ira e a justiça do Senhor – e
ressaltava o amor, a bondade e a compaixão ilimitada de Deus.
Parece que, na atualidade, esse é o tipo de pensamento que tem sido
enfatizado no meio de muitos cristãos ocidentais. Esse ensinamentodesequilibrado se fortaleceu no final do século XIX, quando alguns pregadores
desconsideraram o paradoxo justiça e graça. Ao invés de manterem a tensão
apresentada nas Escrituras, eles começaram a enfatizar a graça de Deus em
detrimento da sua justiça. Segundo o escritor Richard Lovelace,
Toda a igreja estava se deixando levar em direção ao marcionismo,evitando o retrato bíblico do Deus soberano e santo que fica irado com
os maus, todos os dias, e cuja ira permanece sobre aqueles que nãoquerem receber seu Filho. Reservando essa imagem a um canto não-visitado de sua consciência, a igreja substituiu-a por um novo deus queera a projeção da bondade de avó misturada aos modos gentis eatraentes de um Jesus que quase não tinha que morrer pelos nossospecados. Muitas congregações americanas já estavam pagando seuspastores para protegê-las do Deus real.50
Obviamente, com essa abordagem focalizando desequilibradamente
apenas o amor e a misericórdia de Deus, os cristãos começaram a ignorar a
presença do pecado em seus próprios corações. Por não considerarem tal
realidade, eles começaram a se imaginar tão somente e totalmente santos. Tal
descompensada suposição resultou em uma igreja condescendente com
50 LOVELACE, Richard F. Teologia da vida cristã: as dinâmicas da renovação espiritual. SãoPaulo: Shedd Publicações, 2004. p.49-50.
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pecado, negligente na busca de um relacionamento com Deus e
triunfalisticamente orgulhosa, a despeito de sua precária situação.
Já e ainda não
Diante dessa exposição sobre a situação paradoxal em que vive o cristão,
algumas perguntas podem surgir, tais como: “Mas o que dizer sobre os efeitos
da morte e da ressurreição de Jesus na vida do cristão? Será que o sacrifício de
Jesus foi insuficiente para resgatar o crente da triste situação de pecado?
Aquele que tem fé em Jesus continua sendo totalmente pecador, a despeito do
que Jesus fez por ele?” A Bíblia responde a essas perguntas apresentando um novo paradoxo: o
crente já foi salvo, mas ainda não completamente. Ainda que o sacrifício de
Jesus tenha sido perfeito e o cristão já experimente, cotidianamente, os
benefícios desse sacrifício, o cristão ainda não usufrui completamente a
plenitude das bênçãos advindas da morte e da ressurreição de Jesus.
O apóstolo Paulo, por exemplo, apresenta essa tensão do “já e ainda
não” em praticamente todos os seus escritos. Escrevendo aos crentes de Éfeso,
ele diz: “pois vocês são salvos pela graça.”51 A idéia nesse texto é a de que a
salvação já aconteceu. Contudo, essa não é a única afirmação de Paulo acerca
da salvação.
Uma vez que a salvação final ainda não foi plenamente realizada, ele
[Paulo] pode [também] falar da salvação como alguma coisapresentemente em processo (“estamos sendo salvos”, 1Co 1.18 – NVI)e de igual modo [como algo] a ser completado (“seremos salvos da irade Deus”, Rm 5.9 – NVI)52
51 Efésios 2.8 – NVI.52 FEE, Gordon D. Paulo, o Espírito e o povo de Deus. São Paulo: United Press, 1997.p.57.
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O paradoxo acerca da salvação do crente é totalmente evidente nas
Escrituras: o crente já foi salvo, mas ainda não foi completamente salvo. Mas o
paradoxo não se restringe ao ensinamento sobre a salvação. Ele continua
permeando o ensinamento de toda a Escritura. A Bíblia, ao ensinar sobre a
redenção, afirma que ela já aconteceu53, porém ainda não completamente, pois
ainda aguardamos o dia em que ela acontecerá.54 Da mesma maneira, a nossa
adoção de filhos já aconteceu55, mais ainda não completamente, uma vez que
ainda “gememos interiormente, esperando ansiosamente nossa adoção como
filhos, a redenção do nosso corpo”.
56
E a mesma tensão do “já e do ainda não”se aplica à justificação. Nós já experimentamos o dom da justiça, ou seja, já
fomos justificados pela fé em Jesus57, mas ainda “aguardamos pela fé a justiça,
que é a nossa esperança”.58
Esse paradoxo do “já e do ainda não” referente como vimos aos
elementos concernentes à salvação do crente, é que explica o paradoxo da
pessoa do cristão, que é completamente e ao mesmo tempo santo e pecador.
Na carta aos Colossenses, por exemplo, Paulo afirma que o crente já foi despido
do velho homem e revestido do novo.59
Contudo, até mesmo essa expressão encontra o seu paradoxo nas
Escrituras. Ao mesmo tempo em que Paulo ensina que esse despir do velho
53 Efésios 1.7.54 Efésios 4.30.55 Romanos 8.15.56 Romanos 8.23 – NVI.57 Romanos 5.1.58 Gálatas 5.5 – NVI.59 Colossenses 3.9-10.
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homem e esse revestir do novo homem já aconteceu, ele mostra que o crente
ainda precisa se esforçar para fazer isso acontecer.
Embora o vestir-se de um novo homem seja visto como algo acontecidoem Cristo, não é um evento que já aconteceu de uma vez por todas,pois Paulo exorta a nos despirmos do velho homem que se manifesta naconduta pagã, para nos revestirmos do novo homem, que é criado àsemelhança de Deus (Ef 4.22-24)60
Obviamente, esse despir-se do velho e revestir-se do novo diz respeito às
atitudes do crente diante do pecado e da sua natureza pecaminosa. Na verdade,
nós só conseguimos resistir, lutar e vencer o pecado que ainda reside em nós
por causa da presença do Espírito Santo dentro de nós. Igualmente, a santidade
que temos é toda ela devida à presença do mesmo Santo Espírito em nossos
corações. É Ele quem nos fortalece e nos capacita a vencer o pecado.
A intensa luta interior
Naturalmente, porque ainda vivemos dentro do contexto do paradoxo, nós
experimentamos intensas lutas em nosso interior. David Brainerd, por exemplo,
suportando violentas batalhas em seu coração, escreveu no dia 26 de outubro
de 1742 as seguintes palavras:
Estive em grande agonia sob um senso de minha própria indignidade.Pareceu-me mais que merecia ser expulso do lugar, e não que alguémme tratasse com gentileza e viesse ouvir-me pregar. De fato, estava deânimo tão deprimido, naquelas horas (e em várias ocasiões), que meparecia impossível que pudesse tratar almas imortais com fidelidade.Sentia-me tão infinitamente vil em mim mesmo que pensei que nãopoderia tratá-las com fidelidade e intimidade. Oh, não passo de pó ecinzas, para pensar em pregar o evangelho aos outros! De fato, nuncapoderei ser fiel por um momento sequer, mas certamente ficarei apenas
“caiando paredes”, no dizer de Ezequiel 13.10, se Deus não me outorgarajuda especial.61
Essas lutas jamais irão terminar. Enquanto formos peregrinos na terra,
nós vivenciaremos esses períodos de guerra e paz, lutas e tréguas, força e
60 LADD, George Eldon. Teologia do Novo Testamento. ed. rev. São Paulo: Hagnos, 2003.p.653.61 EDWARDS, Jonathan. A vida de David Brainerd . São José dos Campos: Fiel, 1993.p.39.
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fraqueza, vitórias e derrotas, risos e lágrimas. A nossa condição atual não nos
permite enxergar a nossa caminhada com outros olhos. Nem mesmo a Escritura
aponta para uma outra direção. Pelo contrário, a Bíblia nos chama a ter a
consciência do paradoxo, nos exorta a desembaraçarmo-nos de todo o peso e
pecado62 e nos encoraja a buscar e viver em santidade.
Há muitos séculos, viveu um homem conhecido como São Pacon. Ele
abriu mão de todas as coisas que possuía com o único propósito de se dedicar
inteiramente a buscar a Deus. Mas, mesmo depois de anos de intensa busca,
ele continuava sendo atacado por demônios, sofrendo tentações e propenso apecar contra o Senhor. Ele mesmo nos narra uma das lutas que enfrentou em
sua caminhada:
Embora eu seja muito avançado em idade e tenha passado quarentaanos de minha vida nesse [quarto] pensando apenas em minhasalvação [diz um dia são Pacon a Paládio], continuo sempre a sertentado. Há mais de doze anos, não passou um só dia, uma só noitesem que eu tenha sido atormentado ou perseguido pelo demônio. Umdia, tendo se transformado numa jovem etíope que eu tinha visto noverão, em minha juventude, colhendo espigas de trigo, pareceu-me queela vinha sentar-me sobre meus joelhos. Excitou em mim tamanhodesejo de ofender a Deus com ela que fiquei penetrado de dor e lhe deiuma bofetada, depois do que ela sumiu. Mais de dois anos depois,minha mão ainda fedia tanto que eu não podia suportar o mau cheiro.63
Esse e outros testemunhos têm o propósito de nos encorajar a viver para
o Senhor, aproximarmo-nos dEle, aprofundarmo-nos em nossa comunhão sem
deixarmos a perseverança e perdermos a esperança. Certamente, quanto mais
nos aproximarmos de Deus, mais teremos a consciência do paradoxo no meio
do qual vivemos e mais notaremos que somos completamente e ao mesmo
tempo santos e pecadores. Contudo isso não deve nos desanimar. Pelo
62 Hebreus 12.163 LACARRIÈRE, Jacques. Padres do deserto: homens embriagados de Deus. São Paulo:Loyola, 1996.p.211.
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contrário, deve levar-nos a seguir adiante até que Cristo seja engrandecido em
nossas vidas e até cumprirmos a nossa carreira.
John Bunyan, no seu livro “O Peregrino”, descreve de forma alegórica e
magistral o fim da jornada de tantas lutas dos crentes. Ele escreveu:
Então vi no meu sonho os dois homens passando pelo portão, e eis que,entrando, se transfiguraram e receberam vestes que resplandeciamcomo ouro. Também alguns os receberam com harpas e coroas, quelhes foram dadas: a harpa para o louvor e as coroas como sinal dehonra.Nesse momento, ouvi no meu sonho que todos os sinos da cidaderepicavam de júbilo, e aos peregrinos se disse: “Entra no gozo do teuSenhor” (Mt 25.21). Ouvi também que os próprios peregrinos cantavama plenos pulmões:- Àquele que está assentado no trono, e ao Cordeiro, seja o louvor, e a
honra, e a glória, e o domínio pelos séculos dos séculos (Ap 5.13).64
Em breve, as lutas que diariamente travamos irão cessar; e, então
veremos o quanto foi proveitoso perseverarmos em nossa jornada e guardarmos
o nosso coração no Senhor. Naquele dia, nós nos alegraremos com a nossa
plena transformação. Enfim seremos tão somente e completamente santos.
64 BUNYAN, John. O peregrino. São Paulo: Mundo Cristão, 1999.p.231.
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CAPÍTULO 5 – O AUTOEXAME
“Deixei de vigiar, de me manter sóbrio”
O livro “O Peregrino”, escrito por John Bunyan, consagrou-se como a
obra de ficção mais lida de todos os tempos. Escrito há mais de 300 anos, narra
a jornada do cristão rumo à Cidade Celestial. Através de alegorias, traz
ensinamentos, orientações e cenas daquilo que o cristão pode encontrar durante
a sua jornada de fé.
Em uma das cenas, o cristão estava na casa de Intérprete a fim deaprender algumas coisas úteis para a sua jornada. Depois de passar por muitos
lugares, o cristão foi levado até um homem extremamente amargurado sentado
atrás de grades de ferro. Ali, iniciou-se o seguinte diálogo:
- O que você é? – perguntou Cristão.- Sou o que antes não era – respondeu o homem.CRIS – O que você era?HOMEM – Antes era um professor formoso e bem sucedido, tanto aos
meus próprios olhos quanto aos olhos dos outros. Pensava que eradestinado a subir até a Cidade Celestial, e então até me alegrava dianteda idéia de que lá chegaria.CRIS – Sim, mas o que você é agora?HOMEM – Hoje sou um homem desesperado, e no desespero estoupreso, como nessas grades de ferro. Não posso sair. Ah, já não possomais.CRIS – Mas como é que você chegou a esta condição?HOMEM – Deixei de vigiar, de me manter sóbrio. Larguei as rédeas nopescoço das minhas paixões. Pequei contra a luz da palavra e abondade de Deus. Entristeci o Espírito e Ele se foi. Tentei o Diabo, e eleme veio. Provoquei a ira de Deus, e Ele me abandonou. Tanto endurecio meu coração, que já não posso me arrepender. [...]CRIS – Então não há esperança? Você tem de continuar preso atrásdessas grades de ferro, em desespero?HOMEM – Esperança nenhuma.CRIS – Por quê? Se o Filho do Bem-Aventurado é sobremodomisericordioso?HOMEM – Eu o crucifiquei de novo para mim mesmo; desprezei a suapessoa; desdenhei da sua justiça; tive o seu sangue como uma coisaímpia, ultrajei o Espírito da graça (Hb 10.29). Portanto, distanciei-me detodas as promessas, e agora nada me resta senão ameaças, terríveis
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ameaças, temíveis ameaças de segura condenação e feroz indignação,que me irão devorar como um adversário.CRIS – Por conta do que você se deixou cair em tal estado?HOMEM – Pelas paixões, prazeres, proveitos deste mundo, e ao gozá-los prometi a mim mesmo muito deleite. Mas agora cada uma dessascoisas me rói e me atormenta como verme ardente.CRIS – Mas agora você não pode se arrepender e voltar atrás?HOMEM – Deus me negou o arrependimento. Sua Palavra não meencoraja a crer. Sim, ele mesmo me trancou atrás dessas grades deferro, e nem todos os homens do mundo podem me libertar. Ah,eternidade! Eternidade! Como lutar contra a miséria que me aguarda naeternidade?65
Esse quadro tão vívido desenhado pela caneta de Bunyan retrata o
desespero daquele que, em algum momento, apostatou da fé. A sua apostasia
não aconteceu repentinamente. Ela foi apenas a conseqüência natural da
ausência de autoexame e de freqüentes flertes com o pecado. Como afirmou o
apóstata: “Deixei de vigiar, de me manter sóbrio. Larguei as rédeas no pescoço
das minhas paixões. [...] Tanto endureci o meu coração que já não posso me
arrepender”.
Um período crítico
Nós vivemos em um período muito delicado. Se fizermos uma rápida
pesquisa em nossa memória, verificaremos que o número de desviados é
enorme. Nós mesmos, certamente, conhecemos algumas pessoas que um dia
estiveram na igreja, mas que posteriormente se desviaram dos caminhos do
Senhor.
Mas o grande número de desviados não é o único indicativo para
entendermos que vivemos em um período delicado na história da igreja. A
ausência de cristãos verdadeira e profundamente comprometidos com o
evangelho de Cristo também nos choca. Não é incomum ouvirmos notícias que
65 BUNYAN, John. O peregrino. São Paulo: Mundo Cristão, 1999.p.41-42.
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51
divulgam tanto o crescimento das igrejas evangélicas como também os
escândalos promovidos por evangélicos.
J.I.Packer, prefaciando o livro “Santos no mundo” de Leland Ryken, fez a
seguinte observação sobre a situação da igreja ocidental, mais especificamente,
sobre a igreja norte-americana:
Um líder bem viajado, um americano nativo, declarou que oprotestantismo norte-americano – centrado no homem, manipulativo,orientado pelo sucesso, auto-indulgente e sentimental como é,patentemente – mede cinco mil quilômetros de largura e um centímetrode profundidade.66
Nós não podemos fechar os nossos olhos para essa realidade. Não
podemos despreocupadamente fazer festa por causa do crescimento da igreja.
De que adianta as pessoas fazerem parte da igreja terrena se elas correm o
risco de serem impedidas de entrar no Reino dos Céus. De que adianta as
pessoas proclamarem “Senhor! Senhor!” e, naquele dia, ouvirem da própria boca
de Jesus: “Nunca os conheci. Afastem-se de mim vocês, que praticam o mal!”67
O perigo da apostasia
Uma das causas que tem contribuído para o crescimento da apostasia em
nosso tempo é a correria incentivada pela sociedade moderna. Porque as
pessoas têm que desenvolver muitas atividades, elas precisam estar
constantemente correndo de um lado para o outro. Dificilmente alguém
consegue tirar um tempo livre. Todos estão sempre ocupados e, naturalmente,
impossibilitados de parar para, regularmente, fazer um auto-exame.
66 PACKER J.I. apud RYKEN, Leland. Santos no mundo: os puritanos como realmente eram.São Paulo: Fiel, 1992.p.6.67 Mateus 7.23 – NVI.
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52
Por causa disso – dessa ausência de um autoexame regular – sutil e
imperceptivelmente, o pecado vai encontrando espaço no coração e na vida das
pessoas. Foi exatamente isso o que aconteceu com o Homem que Cristão
encontrou na casa do Intérprete. Esse homem deixou de vigiar, de se manter
sóbrio e largou as rédeas no pescoço de suas paixões. Antes de ser envolvido
pelo pecado, esse homem se tornou irresponsável na sua vigilância e negligente
no seu autoexame.
John Owen, um escritor puritano do século XVII, escreveu sobre os
perigos da ausência do autoexame. Segundo ele, se o cristão é negligente, opecado, que ainda está alojado na sua natureza, não será identificado e
encontrará liberdade para agir. E se o pecado tiver essa liberdade, a menor que
seja, ele influenciará o cristão até levá-lo à apostasia.
O pecado sempre visa a produzir o máximo de prejuízo: se toda vez quesurge para tentar ou para seduzir, tivesse liberdade de atuação, levariaaté ao pecado supremo de sua espécie. Todo pensamento ou olharimpuro se transformaria, se pudesse, em adultério; cada desejo
cobiçoso se traduziria em opressão; cada pensamento incrédulo seriaateísmo, se tivesse licença de crescer até se completar. Os homenschegariam a ponto de, sem perceber uma voz escandalosa falando-lhesao coração, praticar grandes pecados de escândalo com a boca; e cadatentação à concupiscência, recebendo liberdade de agir, chegaria aoauge da iniqüidade. É como a cova, que nunca está satisfeita. Nisso seacha boa porção do engano do pecado, que assim prevalece a fim deendurecer o coração das pessoas, levadas finalmente à ruína (Hb 3.13).É sutil, por assim dizer, em seus primeiros movimentos e propostas, mastendo, por esse meio, conseguido acesso direto ao coração, avançafirme e ganha mais terreno. Essa nova atuação e essa incursão nãodeixam a alma perceber, de fato, que uma invasão já ocorreu para levarà apostasia de Deus.68
Nós só conseguiremos impedir que o pecado permaneça atuante em
nossos corações se nós o identificarmos. A nossa vitória sobre o pecado e,
conseqüentemente, sobre o risco da apostasia dependem do quanto estamos
68 OWEN, John. A mortificação do pecado: um clássico do século XVII. São Paulo: Vida,2005.p.39.
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sóbrios e vigilantes. Precisamos estar atentos ao nosso coração e aos
estratagemas que a nossa natureza pecaminosa usa para tentar nos afastar dos
princípios e da vontade de Deus. Se formos negligentes nesse auto-exame,
seremos pretendentes da apostasia.
A necessidade do autoexame
Precisamos mais do que nunca desacelerar o nosso ritmo se quisermos
viver a nossa vida cristã com mais segurança. O ativismo do nosso tempo, ao
invés de contribuir para a nossa intimidade com Deus, favorece o endurecimento
do nosso coração. Sem que percebamos, o pecado, muitas vezes, temconseguido afetar algumas das nossas posturas e decisões. Quantas não foram
as vezes que favorecemos alguém por partidarismo? Ou que oramos para
sermos notados? Ou que ajudamos alguém por motivos interesseiros? Ou que
buscamos o conhecimento a fim de sermos admirados?
Só conseguiremos saúde na vida cristã se escolhermos separar períodos
para praticarmos o autoexame. Regularmente, parar tudo o que estamos
fazendo a fim de nos dedicar a sondar o nosso coração e as nossas motivações
secretas é a única maneira de conseguirmos perseverar em nossas vitórias
sobre o pecado, o mundo e o diabo. John Owen comentou:
Realmente, uma das partes mais preciosas e eminentes da sabedoriaprática e espiritual consiste em descobrir as sutilezas, a política e asprofundezas de qualquer pecado que em nós habita. Tomar
conhecimento, considerando aquilo em que se acha sua força maior;que vantagem o pecado costuma tirar de oportunidades, ocasiões,tentações; quais são suas petições, seus fingimentos, seus raciocínios,seus estratagemas e suas desculpas; como colocar a sabedoria doEspírito contra a astúcia do velho homem; rastrear essa serpente emtodos os seus movimentos contorcidos e tortuosos; conseguir dizer,contra suas atuações mais secretas e imperceptíveis (para o modelocomum de coração): “Esse é seu modo antigo de agir, seu velho
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caminho, e sei o que você está pretendendo”, e assim ficar sempre emestado de prontidão, essa é boa parte de nossa guerra.69
É infantilidade ignorar a sujidade do pecado que ainda habita dentro de
nós. É suicídio permanecer vivendo aceleradamente. Essa vida corrida pode nos
levar à apostasia! Precisamos acordar! Devemos entender que o projeto
apresentado por esse mundo caído tem um esquema muito perverso. As
cobranças que a sociedade nos impõe, se forem aceitas, culminarão no
abandono da fé.
O esquema é muito simples: as muitas cobranças levam às muitas
atividades; as muitas atividades levam à escassez de tempo; a escassez de
tempo leva à ausência de autoexame; a ausência de autoexame permite
liberdade ao pecado; a liberdade ao pecado endurece o coração; o
endurecimento do coração conduz à apostasia.
O exemplo dos Pais do Deserto
Um olhar para a história nos faz perceber que, no final do século II d.C.,
os cristãos correram o risco de, em massa, abandonarem a fé. Praticamente
todos eles já viviam tranqüilamente dentro do contexto mundano. Não havia
qualquer tipo de ojeriza às práticas pagãs. Pelo contrário, havia, sim, por parte
dos cristãos, uma assimilação natural tanto da cultura quanto do pensamento e
das atitudes pagãs. A pergunta de Tertuliano, “o que Antenas tem a ver com
Jerusalém?”, segundo o historiador Markus,
é evidência não tanto de uma ponta de um iceberg submerso dehostilidade para com a cultura secular como de uma necessidade
69 OWEN, John. A mortificação do pecado: um clássico do século XVII. São Paulo: Vida,2005.p.86.
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sentida de fortalecer a percepção cristã de sua identidade específica emtempo de rápida assimilação que parecia ameaçá-la.70
O cristianismo, durante esse período, correu a passos largos em direção
à apostasia geral. Sutilmente, sem que muitos cristãos percebessem, a cultura
mundana começou a penetrar nas igrejas e a influenciar o estilo de pensamento
e de vida das pessoas. Começou a ficar difícil distinguir um cristão de um pagão.
Na verdade, eles se pareciam muito, excetuando, talvez o uso de algum jargão
específico.
Diante dessa crise geral que assolava as igrejas, um grupo de pessoas
decidiu se posicionar. O autor Thomas Merton escreveu na introdução do seu
livro “A sabedoria do deserto” que essas pessoas
Consideravam a sociedade... um naufrágio do qual todo indivíduo tinhade se afastar a nado para salvar a vida... Acreditavam que se deixarlevar passivamente, aceitando os princípios e valores do que conheciamcomo sociedade, era pura e simplesmente um desastre.71
Um dos primeiros homens que escolheu apartar-se das práticas pagãs e
costumes da sociedade mundana foi Antão, considerado um dos primeiros Pais
do Deserto. Nascido por volta de 251, ele era filho de alguns camponeses
egípcios. Num certo dia, estando na igreja, ele ouviu a leitura do evangelho na
parte em que o Senhor disse ao jovem rico: “Se você quer ser perfeito, vá,
venda os seus bens e dê o dinheiro aos pobres, e você terá um tesouro nos
céus. Depois, venha e siga-me”.72 Essas palavras atingiram diretamente o seu
coração. E ele resolveu obedecê-las. Vendeu tudo o que tinha, distribuiu os bens
entre os pobres e partiu para seguir a Jesus.
70 MARKUS, Robert A. O fim do cristianismo antigo. São Paulo: Paulus, 1997.p.37.71 MERTON, Thomas apud NOUWEN, Henri J. M. A espiritualidade do deserto e o ministériocontemporâneo: o caminho do coração. 2.ed. São Paulo: Loyola, 2001.p.19.72 Mateus 19.21 – NVI.
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Como a sociedade no meio da qual vivia era extremamente mundana,
Antão se retirou para o deserto. O seu propósito era o de, no afastamento dos
burburinhos da sociedade, aquietar-se a si mesmo e sondar o próprio coração.
Ele sabia que as tentações do diabo sempre iriam procurar algum respaldo em
seu interior, e que ele só venceria Satanás se o seu coração estivesse puro e
firme.
Não demorou muito tempo para que o diabo intensificasse as suas
investidas malignas contra Antão. Atanásio, ao escrever sobre esses ataques diz
que o acusadorPrimeiramente, tentou fazê-lo abandonar a ascese73, sugerindo-lhe arecordação dos bens, a responsabilidade pela irmã, suas relaçõesfamiliares, o amor ao dinheiro, o desejo de glória, o prazer variado dacomida, as outras satisfações da vida, enfim, a aspereza da virtude e asgrandes fainas74 que ela requer; ele lhe representou igualmente afraqueza de seu corpo e o longo tempo que lhe restava para viver. Emsuma, despertou em seu espírito tempestade de pensamentos,querendo fazê-lo renunciar a reta eleição. Mas quando o inimigo se viuvencido diante da resolução de Antão, vencido por sua constância,posto em fuga por sua grande fé e sucumbindo às suas oraçõescontínuas, ele [direcionou] as suas armas nos músculos do seu ventre.(São suas primeiras ciladas contra os jovens): ele atacou o jovem,perturbando-o noite e dia, e assediando-o de tal maneira que aquelesque o viam se apercebiam do combate. O diabo lhe sugeriapensamentos obscenos. Antão os repelia com a oração. O demônio oexcitava. Ele, ruborizando-se, fortalecia o corpo com a fé, as orações eos jejuns. À noite, o diabo miserável chegava a tomar forma de mulher ea lhe imitar os gestos, com o único fim de seduzir Antão, mas este,pondo Cristo no coração, meditando sobre a nobreza que vem dele esobre a espiritualidade da alma, apagava o tição dos embustes dodemônio.75
Antão somente saiu vitorioso sobre as tentações e contra o diabo em
virtude de seu recolhimento. Certamente uma pessoa fatigada pelas correrias do
dia-a-dia, estressada por causa das tantas atividades, descuidada com o seu
73 Exercício espiritual de devoção e meditação religiosa.74 Trabalho, serviço, ocupação.75 ATANÁSIO, Santo. Contra os pagãos; a encarnação do verbo; apologia ao imperadorConstâncio; apologia de sua fuga; vida e conduta de S. Antão . São Paulo: Paulus, 2002.p.298-299.
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próprio coração, inconstante na sua busca a Deus cairia diante da primeira
tentação. Foi isso o que aconteceu com o Homem apóstata que Cristão
encontrou na casa do Intérprete: ele primeiramente deixou de vigiar e de se
manter sóbrio.
A prática do autoexame
Na Segunda Carta que escreveu à igreja de Corinto, Paulo,
explicitamente, ordenou os cristãos a fazerem um autoexame. A situação
daquela igreja estava tão caótica e desordenada, que o apóstolo chamou-os
para se examinarem a si mesmos para verem se estavam na fé.
76
Aquelaspessoas corriam o risco de caírem na apostasia!
A prática do autoexame é fundamental para a saúde da fé; e o melhor
caminho para essa prática é o caminho da solidão. Ninguém consegue praticar
um autoexame no meio da turbulência, da correria e dos burburinhos. O
autoexame precisa ser praticado no ambiente em que a pessoa está livre de
qualquer possibilidade de interrupção. O momento do autoexame é um tempo da
pessoa com ela mesma sob a luz do Espírito Santo. Henri Nowen falou o
seguinte sobre os benefícios da solidão na prática do autoexame:
Na solidão, livro-me de meu cadafalso: nenhum amigo com quemconversar, nenhum telefonema a dar, nenhuma reunião à qualcomparecer, nenhuma música para me entreter, nenhum livro para medistrair, só eu – nu, vulnerável, fraco, pecador, carente, desalentado –,sem nada. É nesse nada que tenho de enfrentar a minha solidão, umnada tão horrível que tudo em mim quer correr para meus amigos, meutrabalho e minhas distrações para que eu o esqueça e volte a crer quevalho alguma coisa. Mas isso não é tudo. Assim que me decido a ficarna solidão, idéias confusas, imagens perturbadoras, fantasiasdesregradas e associações incompreensíveis saltam em minha mentecomo macacos em uma bananeira. A ira e a avareza começam amostrar suas caras feias. Faço longos discursos hostis para meusinimigos e tenho sonhos voluptuosos, nos quais sou rico, poderoso e
76 2Coríntios 13.5.
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muito atraente – ou pobre, feio e precisando de consolo imediato. Assim,tento mais uma vez fugir do abismo escuro de meu nada e restaurarmeu falso eu em toda a sua vanglória.77
Somente quando ficamos sozinhos com nós mesmos é que revelamos,
de fato, aquilo que está em nosso coração. Nesse momento de solidão, não
precisamos de máscaras para impressionar a quem quer que seja. Estamos
somente nós mesmos com o Senhor, completamente desarmados e
desnudados.
Nesse ambiente tão propício, o nosso coração costuma se revelar e
trazer à tona toda e qualquer sujeira que porventura esteja depositada no fundo;
sujeira essa que, nos momentos de agitação, costumava subir à superfície e
causar estragos na vida das outras pessoas. É nesse contexto que temos a
oportunidade de nos conhecer a nós mesmos e, com o auxílio do Espírito Santo,
nos disciplinar para a volta à sobriedade, à vigilância e à uma vida de comunhão
mais saudável.
77 NOUWEN, Henri J. M. A espiritualidade do deserto e o ministério contemporâneo: o caminhodo coração. 2.ed. São Paulo: Loyola, 2001.p.24-25.
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CAPÍTULO 6 – A COMUNHÃO
A cultura do ego
Vivemos em um mundo tão doentemente egoísta que a cultura do ego, o
culto ao deus ego é celebrado em cada esquina, quarteirão, anúncio de revista,
propaganda de televisão, conversa de corredor, sala de aula e sala de casa. As
livrarias divulgam e vendem os livros “faça-você-mesmo” ou “ajude-a-você-
mesmo”. Os heróis dos cinemas vivem sozinhos, vencem sozinhos e
permanecem sozinhos. Às vezes, eles podem até estar na companhia dealguém, mas somente para mostrarem que, realmente, não devem se envolver
com ninguém. O outro só atrapalha. O outro só arruma confusões. O outro não
ajuda em nada.
Os ícones da sociedade moderna são aqueles indivíduos que, sozinhos,
venceram na vida. Eles nasceram em uma situação desfavorável, mas, de
alguma maneira, encontraram forças em si mesmos para superar as
adversidades. Eles estudaram, trabalharam, sofreram, “engoliram seco”, suaram
a camisa, superaram-se a si mesmos e venceram. Conseguiram ficar ricos e
muito bem sucedidos aos olhos de uma sociedade que não ajudou em nada, ou
melhor, somente tornou as situações mais difíceis.
Quem nunca ouviu aquela história do menino pobre, que quase não tinha
o que comer, e que, sozinho, contra tudo e todos, ficou milionário? Ou a história
daquele atleta que, apesar do cansaço, conseguiu, sozinho, superar os seus
limites e atingir o objetivo? Ou a história daquela mulher rejeitada e
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marginalizada que, sozinha, venceu os preconceitos e se tornou bem sucedida?
Ou a história daquele empregado que, por causa da sua determinação, tornou-
se o dono da empresa onde trabalhava?
Mas, propositadamente, essas histórias de sucesso costumam não
revelar tudo. Essas histórias “inspirativas” costumam não revelar o quanto esse
estilo de vida solitário, e, posteriormente, egocêntrico e individualista causou de
prejuízos para a própria pessoa, para a família e para os outros. Os livros e a
mídia ocultam o preço cobrado pelo deus ego: famílias despedaçadas, filhos
desorientados e pessoas destruídas.A solidão e a comunhão
Ainda que as Escrituras enfatizem o aspecto positivo do estar sozinho,
elas também ressaltam a importância do estar em comunhão. Todo crente
precisa investir tempo em solidão; mas todo crente precisa igualmente investir
tempo em comunhão. A solidão sem a comunhão produz indivíduos
egocêntricos e individualistas. A solidão sem a comunhão faz o indivíduo
imaginar que, porque se conhece, ele se basta; porque tem consciência dos
seus limites, pode superá-los; porque já venceu sozinho algumas batalhas,
poderá vencer sozinho todas as guerras.
Dietrich Bonhoeffer sintetizou claramente esse princípio, essa realidade
paradoxal, essa tensão entre a solidão e a comunhão, ao dizer: “Quem não
suporta a solidão, que tome cuidado com a comunhão. Quem não se encontra
na comunhão, que tome cuidado com a solidão”.78
78 BONHOEFFER, Dietrich. Vida em comunhão.5.ed. São Leopoldo: Sinodal, 1997.p.59.
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De alguma maneira que não conseguimos compreender, o mistério da
Trindade – ou da Tri-unidade – nos revela esse paradoxo da solidão e da
comunhão. O Pai, o Filho e o Espírito Santo são pessoas distintas, não se
confundem, são cada qual, sozinhos, na Sua independência, plenamente Deus.
Igualmente, o Pai, o Filho e o Espírito Santo dependem cada qual Um do
Outro. O Pai, só é Pai, porque tem o Filho; o Filho, somente é Filho, porque é
eternamente gerado do Pai; e o Espírito Santo é eternamente procedente do Pai
e do Filho. Assim, cada pessoa da Trindade é definida pelas outras duas
Pessoas. A relação entre cada Pessoa é estabelecida pela comunhão que asPessoas têm entre Si.
Por ter sido feito à imagem e à imagem e semelhança do Deus Triúno o
ser humano também experiencia a sua vida em meio a esse paradoxo da
solidão e da comunhão. Na solidão, o indivíduo se conhece como um ser único,
diferente de todos os demais, chamado para cumprir um propósito específico. E
na comunhão ele se percebe como um ser comunitário, dependente de todos os
demais, chamado para unir o seu propósito ao propósito dos outros.
O chamado da igreja
A igreja é o espaço que Deus estabeleceu para que o indivíduo possa
unir o seu propósito ao propósito de outros. Foi Deus mesmo quem criou a
igreja! Ele a criou para que cada pessoa cumpra, com equilíbrio, o seu chamado
específico. Ele a criou para que ninguém se imagine independente dos outros, e,
da solidão caia no individualismo. Deus criou a igreja para que as pessoas vivam
a experiência da comunhão.
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Aos olhos de Deus, ninguém pode cumprir o seu chamado sozinho;
ninguém pode viver sozinho; ninguém pode vivenciar a salvação sozinho.
Gordon Fee faz o seguinte comentário:
Embora decidida individualmente, a salvação raramente é imaginadacomo simplesmente uma relação isolada com Deus. Embora tal relaçãoesteja incluída, na verdade, “ser salvo” significa especialmente juntar -seao povo de Deus. Neste sentido, o pai da igreja Cipriano, do terceiroséculo, tinha esta posição: não há salvação fora da igreja, porque Deusestá salvando um povo para o seu nome, não uma miscelâneadissociada de indivíduos.79
Deus está salvando um povo. Ele está edificando a sua igreja com pedras
vivas. Eles está unindo as pessoas na comunhão de Cristo. Ele está chamando
as pessoas a se relacionarem, não virtualmente, mas, realmente, umas com as
outras através de Jesus.
Por causa disso, a igreja televisiva é altamente questionável. Ainda que a
pessoa possa ser abençoada pelos cultos e palavras transmitidas pela TV, ela
não pode vivenciar a genuína comunhão pela TV. Pelo contrário, a televisão
somente torna as pessoas mais sozinhas, egocêntricas e individualistas. O
indivíduo é levado a pensar que não precisa dos outros e que pode bastar-se a
si mesmo, se somente possuir um controle remoto em suas mãos.
A visão bíblica de igreja aponta para a comunidade; para a convivência
das pessoas; para o relacionamento efetivo de uns com os outros. Segundo
Deus, a comunhão é tão imprescindível para o indivíduo, que todas as coisas
devem ser feitas uns aos outros. Como mostra Gordon Fee,
Todas as coisas são feitas allelon [um ao outro/uns aos outros]. Eles [oscrentes] são membros uns dos outros (Rm 12.5; Ef 4.25), que estãoedificando uns aos outros (1Ts 5.11; Rm 14.19), em favor uns dosoutros (1Co 12.25), amando uns aos outros (1Ts 3.12; 4.9; 2Ts 1.3; Rm13.8), procurando o bem uns dos outros (1Ts 5.15), suportando-se uns
79 FEE, Gordon D. Paulo, o Espírito e o povo de Deus. São Paulo: United Press, 1997.p.70.
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aos outros (Ef 4.2), levando as cargas uns dos outros (Gl 6.2), sendobondosos e compassivos uns com os outros, perdoando uns aos outros(Ef 4.32; cf, Cl 3.13), submetendo-se uns aos outros (Ef 5.21),considerando uns aos outros melhores do que nós mesmos (Fp 2.3; cf.Rm 12.10), sendo devotados uns aos outros em amor (Rm 12.10),vivendo em harmonia uns com os outros (Rm 12.6).80
Ninguém consegue experimentar a ordem bíblica de “uns aos outros” se
não vivenciar a comunhão efetiva de “uns com os outros”. Ninguém consegue se
relacionar efetivamente com o crente que está do outro lado do televisor.
Nenhum indivíduo consegue viver a genuína comunhão fora da convivência,
lado a lado, com alguém de carne e osso.
O privilégio da comunhão
São muitas as pessoas que ignoram o privilégio da comunhão. Isso
acontece, talvez, porque essas pessoas jamais tenham sido impedidas de se
relacionar com os outros. Tanto se acostumaram a estar com outras pessoas
que chegaram a banalizar o relacionamento. Desprezam a comunhão e,
perdidas na solidão, tornam-se egocêntricas. Mas Bonhoeffer faz o seguinte
alerta:
É graça de Deus uma comunidade poder reunir-se neste mundo, demaneira visível, em torno da Palavra de Deus e dos Sacramentos. Nemtodos os cristãos compartilham dessa graça. As pessoas presas,doentes, solitárias na dispersão, que pregam o Evangelho em terraspagãs estão sozinhas. Elas sabem que a comunhão visível é graça.81
E quantas vezes rejeitamos a comunhão com outros irmãos! Com que
facilidade desprezamos a presença e a companhia de outras pessoas! Com que
prontidão escolhemos fechar-nos em nós mesmos, em nossas vidas, em nossos
mundos e em nossas histórias! Essa jamais foi a atitude de Cristo e dos
apóstolos.
80 FEE, Gordon D. Paulo, o Espírito e o povo de Deus. São Paulo: United Press, 1997.p.72.81 BONHOEFFER, Dietrich. Vida em comunhão.5.ed. São Leopoldo: Sinodal, 1997.p.10.
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Quando estava vivendo períodos de intensa agonia, ao invés de
dispensar os discípulos e se esconder, Jesus os chamou para mais perto e lhes
disse: “A minha alma está profundamente triste, numa tristeza mortal. Fiquem
aqui e vigiem comigo”.82 Jesus conhecia o privilégio da comunhão e sabia que
estava na iminência de perdê-la por um espaço de tempo.
Paulo também reconhecia a supremacia da comunhão. Ele a colocava
acima de qualquer trabalho que pudesse fazer em nome do Senhor. Certa vez,
apesar de perceber uma porta aberta na cidade de Trôade, ele decidiu viajar
para a Macedônia. A razão para isso? Ele não conseguiu encontrar Tito, o seuamigo.83
Depois de anos de ministério, já estando na prisão, Paulo escreve uma
carta para Timóteo. A primeira preocupação de Paulo não é o trabalho, mas a
pessoa de Timóteo. Paulo se preocupa com o seu filho na fé. A pessoa de
Timóteo é muito mais importante do que o trabalho que o próprio Timóteo
realiza. Paulo sente saudades de Timóteo. Dia e noite, se lembra dele, se
recorda das lágrimas e da fé não fingida.84 O desejo de Paulo é que Timóteo vá
se encontrar com ele.85 Paulo deseja mais uma vez experimentar o privilégio da
comunhão e, por isso, não se envergonha de pedir que Timóteo vá até a prisão
para estar com ele.
82 Mateus 26.38 – NVI.83 2Coríntios 2.12-13.84 2Timóteo 1.3-5.85 2Timóteo 4.9.
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evangelho: famílias desestruturadas são restauradas; casamentos
despedaçados são renovados; pessoas perdidas são encontradas; jovens
angustiados experimentam o perdão.
Tudo isso acontece, não porque as pessoas têm poder em si mesmas,
mas, sim, porque a igreja é o lugar da habitação do Espírito Santo. É o Espírito
Santo quem tem poder para libertar, restaurar e transformar. É Ele quem opera
dentro da igreja, dentro dos corações e no meio dos relacionamentos. É Ele
quem usa pessoas para restaurar pessoas; usa relacionamentos para curar
relacionamentos; usa a comunhão para libertar os que estão presos na solidãodo individualismo.
Na igreja, as pessoas são chamadas para serem elas mesmas e para se
libertarem das imposições desse mundo caído. Elas são chamadas a tirar as
máscaras que as deformam e a lidar com suas próprias limitações. Elas são
chamadas a se despirem das roupas de herói e a serem gente como toda gente.
Elas são chamadas a revelar quem são verdadeiramente: pessoas que sofrem,
sentem dor, choram, erram, pecam, sentem ira, sofrem de angústia, passam por
desesperanças e experimentam fragilidades.
A igreja não é o lugar dos que são somente santos e nem o dos que são
somente pecadores. A igreja é o lugar daqueles que são completamente e ao
mesmo tempo santos e pecadores: santos por causa de Cristo e pecadores por
causa de si mesmos. A igreja é aquela comunidade dos fiéis que foram
resgatados pelo sangue de Jesus, foram unidos em Cristo e aguardam
ansiosamente a vinda do Cordeiro.
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Saber isso, que Cristo é o responsável pela igreja e pela nossa comunhão
é libertador. Como mostra Bonhoeffer:
O irmão com o qual lido na comunhão não é aquela pessoa honesta,ansiosa por fraternidade e piedosa que está diante de mim, mas é apessoa redimida por Cristo, justificada, chamada para a fé e para a vidaeterna. Nossa comunhão não pode ser baseada naquilo que a pessoa éem si, em sua espiritualidade e piedade. Determinante para nossafraternidade é aquilo que a pessoa é a partir de Cristo. Nossa comunhãoconsiste unicamente no que Cristo fez por nós dois. E isso não é assimapenas no início, como se, no decorrer do tempo, algo fosseacrescentado a essa comunhão, mas assim será para todo o futuro eem toda a eternidade. Só tenho e terei comunhão com outra pessoaatravés de Jesus Cristo.89
Porque Cristo foi quem desfez a inimizade que havia entre o homem e
Deus e entre pessoas e pessoas,90
e Ele me conhece profundamente, e me
aceitou, assim como estou, e me tornou membro do seu corpo, que é a igreja,
então eu posso, sem medo, viver sem máscaras na comunhão com meus
irmãos.
E se alguém me exigir que coloque máscaras, ou se os demônios me
sussurrarem nos ouvidos, dizendo que não posso ser eu mesmo, ou se a
instituição quiser me sufocar e me engessar na forma de herói, eu posso dizer
para mim mesmo e para quem quiser ouvir: “Fo i Cristo quem me trouxe para a
igreja! Foi Ele quem me chamou à comunhão! Foi Ele quem me libertou das
máscaras! Eu vou me manter fiel a Ele! Eu viverei Coram Deo! E com os olhos
nEle, naquele dia eu ouvirei: ‘Muito bem, servo bom e fiel! Você foi fiel no pouco,
eu o porei sobre o muito. Venha e participe da alegria do seu Senhor!’
91
”.